cuida bem de mim

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Escrevo este livro como um convite para abrirmos nossos corações ao afeto e poder escutar as vozes de uma juventude ameaçada pelas diversas violências e enxergar a depredação das escolas públicas como símbolo da destruição de relações humanas.Coloco-me como indivíduo sensibilizado por uma re- alidade socialmente excludente e violenta, que gera a falta de proximidade, carinho e cuidado que precisamos ter conosco, com o outro e com o planeta. Vejo que é necessário falar sobre atitudes sensíveis diante do quadro desumano que presenciamos em nosso cotidiano ainda de guerras, destruição do meio ambiente, desagregação familiar etc.

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  • Cuida bem

    de mimteatro, afeto e violncia nas escolas

    Ney Wendell

  • Universidade Estadual de Santa Cruz

    GOVERNO DO ESTADO DA BAHIAJaques Wagner - Governador

    SECRETARIA DE EDUCAOOsvaldo Barreto Filho - Secretrio

    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZAntonio Joaquim Bastos da Silva - Reitor

    Adlia Maria Carvalho de Melo Pinheiro - Vice-Reitora

    DIRETORA DA EDITUSMaria Luiza Nora

    Conselho Editorial:Maria Luiza Nora Presidente

    Adlia Maria Carvalho de Melo PinheiroAntnio Roberto da Paixo Ribeiro

    Dorival de FreitasFernando Rios do Nascimento

    Janes Miranda AlvesJorge Octavio Alves MorenoLino Arnulfo Vieira Cintra

    Lourival Pereira JuniorMaria Laura Oliveira Gomes

    Marcelo Schramm MielkeMarileide Santos Oliveira

    Raimunda Alves Moreira de AssisRicardo Matos Santana

  • Ilhus - Bahia2009

  • 2009 by Ney Wendell

    Direitos desta edio reservados EDITUS - EDITORA DA UESC

    Universidade Estadual de Santa CruzRodovia Ilhus/Itabuna, km 16 - 45662-000 Ilhus, Bahia, Brasil

    Tel.: (73) 3680-5028 - Fax: (73) 3689-1126http://www.uesc.br/editora e-mail: [email protected]

    PROJETO GRFICO E CAPAAlencar Jnior

    FOTO DA CAPACelso Pereira

    FOTOS DO MIOLOAdenor Gondin, Isabel Gouveia, Michele Zollini,

    Almir Bindilatti e Celso Pereira

    REVISOMaria Luiza NoraAline Nascimento

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Ficha catalogrfica: Silvana Reis Cerqueira - CRB5/1122

    W469 Wendell, Ney. Cuida bem de mim : teatro, afeto e violncia nas es- colas / Ney Wendell. Ilhus, BA : Editus, 2009. 164 p. : il.

    Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-7455-167-8 1. Teatro na educao. 2. Teatro e juventude. 3. Vio- lncia na escola. 4. Jovens e violncia. 5. Afeto. I. Ttulo. CDD 371.399

  • Dedico este livro ao meu filho, Luan Reyel, por me ensinar o amor dirio, a simplicidade do

    afeto e a beleza de ser pai.

  • Agradecimentos

    proteo divina e aos amigos espirituais que me acompanham nesta jornada de criao e luta: Vov Bezer-ra, Sai Baba, Papai Benedito, Irmo Estrela, Xang, Ians e Jesus.

    minha famlia, pelo aprendizado do afeto e o exer-ccio da saudade.

    s mulheres: Tia Zlia, pela me sincera; Gilka, pela ajuda fraterna e por nosso filho; Cibele, pela amizade e apoio sempre; Drica, pelos gritos de amiga; Beth, pela es-cuta e encorajamento; e Marcella, pela amorosidade e com-panhia potica.

    Ao grande amigo e irmo Luiz Marfuz, que abre ca-minhos e se mantm companheiro de desafios. A ele, todos os aplausos, por entregar ao mundo o espetculo Cuida Bem de Mim.

    Aos amigos: Srgio Farias, por ter mantido meu en-tusiasmo na pesquisa; Z Mauro, pela surpresa do com-putador; Mrcio e Fernando Filho, pelo apoio constante; Rafaela, pelas transcries geis; Edmundo, pela pacincia e pelo apoio espiritual; Ednlia e Peixinho, pelas bases es-pritas; Jair e todos os irmos da Liberdade; Zenny e Bira, pelos incentivos permanentes; Cajaiba e Bob, pela ateno e disponibilidade na etapa final; e Lucas, pelos grficos.

    minha paciente e cuidadosa orientadora Eliene Be-ncio, que soube estar prxima e segurar os impulsos do ariano.

    Aos colegas e amigos da ps-graduao em artes c-nicas e aos professores e funcionrios da escola de teatro da UFBA.

  • Aos outros colegas do Liceu: Dea, Paulinho, Tosta, Marcelo, Elaine, Regina, Nilson, Cristiano, Danilo, Fbio, Dai, Paulo Pereira (in memoriam), Serjo, Karina, talo, Srgio Souto, Vivina, Gleide, Bruno, Marilza, Elima, Diva, Dbora, Cladia, Nelson, Romel, jovens atores do Grupo de Teatro e todos os que estiveram juntos no sucesso do programa educacional.

    Ao Instituto Ayrton Senna (Monica Pellegrini, Si-mone Andr, Viviane Senna e Maria Lvia de Castro) e ao Programa Petrobras Fome Zero (Rosemberg Pinto, Iva Va-ladares e Adolfo Mitouzo).

    Aos jovens e professores das escolas pblicas que me presentearam com os depoimentos vivos des-ta pesquisa.

  • A importncia de uma coisa h que ser medida pelo encantamento que

    a coisa produza em ns.

    Manoel de Barros

  • Prefcio

    Por vrias vezes e em diferentes lugares , assisti ao espetculo Cuida Bem Mim. Nunca deixei de me emocionar como se visse a pea pela primeira vez. Aquela construo de afetos em meio a tantos desafetos entre os muros da es-cola vai muito alm da sala de aula. Sintetiza uma sociedade que no v, no respeita, exclui. Naquelas cadeiras quebra-das e, depois, reconstrudas em cenas, temos o pas que so-mos e o pas que gostaramos de ser. As angstias, desespe-ranas, dores, desentendimento, agressividade falam de um Brasil jovem que envelhece rapidamente, sem perspectiva. Falam no s de uma juventude envelhecida pela falta de perspectiva. Falam de uma juventude invisvel.

    Nas minhas viagens de investigao sobre a situao das crianas e adolescentes, aprendo que a pior forma de violncia a violncia da invisibilidade esta pior, cons-tatei, que a violncia fsica. Na invisibilidade, no somos nada para ningum. Muitas vezes, nem para ns mesmos. O resultado que acabamos nos destruindo, ou destruindo os outros. Na verdade, nos destrumos e destrumos os ou-tros. O verdadeiro problema da droga no a droga em si, mas a desesperana que ela semeia num ambiente j sem esperana, na qual no se constroem sadas. S entradas. Abusa-se de tudo porque o que existe o presente. O pas-sado no vale a pena ser lembrado, o futuro oferece pouca perspectiva. Tudo isso explica a marginalidade de nossas cidades, onde as escolas, especialmente as pblicas, viram um depositrio de ressentimentos.

    Cuida Bem de Mim puxa o fio desses ressentimentos, levando-o para os mais diferentes pontos, formando a rede da excluso a rede que explica, entre outras coisas, por que tantos aprendem to pouco na sala de aula. O que me toca na pea que vai muito alm da constatao, ao fazer com que o espectador suba ao palco, sinta-se como um dos

  • personagens e, mais do que isso, algum que sabe cons-truir e se reconstruir pelo afeto, pela capacidade de enten-der o outro, pela habilidade em seu entender. um teatro que cria aprendizes do afeto. No qualquer afeto. H uma busca explcita de fazer pensar problemas e solues em conjunto, fugindo desse narcisismo coletivo, baseado no imediatismo e em escassas conexes.

    Encenou-se, no palco, uma escola e um pas. Mas se fez do palco uma escola e um pas. A pea se transfor-mou numa sala de aula ambulante, montando classes por todos os lados. No final, aqueles holofotes ajudaram e esto ajudando a vencer ou ensinar como vencer a violncia da invisibilidade. Certamente por isso que o trabalho vem fazendo sucesso h tanto tempo, afinal est sempre atual, e mais emocionante.

    Gilberto Dimenstein

  • Sumrio

    Introduo ............................................................. 15

    1 O espectador ....................................................... 19

    2 A escola em cena ...............................................29 2.1 O nascimento da obra ..................................29 2.2 Os personagens ............................................33 2.3 O enredo .......................................................35 2.4 Da estreia para o mundo .............................44 2.5 A obra em aes educativas ......................... 51

    3 O afeto em cena .................................................61 3.1 O afeto pelas identificaes .......................... 61 3.2 Caminho dramtico do pblico ................... 71 3.3 Mltiplas identificaes .............................. 82 3.4 O efeito da projeo .....................................94 3.5 Do pblico para o pblico .......................... 107

    4 A violncia em cena .........................................117 4.1 Violncia e cultura juvenil ...........................117 4.2 As violncias ..............................................126 4.3 Violncia e diversidade .............................. 135

    5 A obra teatral educa .......................................149

    6 Referncias....................................................... 157

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    IntroduoEscrevo este livro como um convite para abrirmos

    nossos coraes ao afeto e poder escutar as vozes de uma juventude ameaada pelas diversas violncias e enxergar a depredao das escolas pblicas como smbolo da destrui-o de relaes humanas.

    Coloco-me como indivduo sensibilizado por uma re-alidade socialmente excludente e violenta, que gera a falta de proximidade, carinho e cuidado que precisamos ter co-nosco, com o outro e com o planeta. Vejo que necessrio falar sobre atitudes sensveis diante do quadro desumano que presenciamos em nosso cotidiano ainda de guerras, destruio do meio ambiente, desagregao familiar etc.

    O afeto foi minha porta de entrada para o teatro, pois nele aprendi a importncia do palco solidrio, da partilha em grupo e da entrega atenciosa aos aplausos. Uma esco-lha profissional que, em 2002, me levaria a trabalhar como professor de teatro na organizao no governamental (ONG) Liceu de Artes e Ofcios da Bahia1, onde me vinculei ao espetculo Cuida Bem de Mim, objeto de estudo desta pesquisa. A pea de autoria de Filinto Coelho2 e Luiz Mar-fuz3, tambm diretor do espetculo, e possui uma histria de 12 anos em cartaz, com realizao de 810 apresentaes para mais de 250 mil pessoas e atingido um total de 350 es-colas em vrias cidades brasileiras, conquistando prmios

    1 O Liceu de Artes da Bahia uma ONG que existe h 135 anos e que trabalhou entre os anos 2000 e 2007 com programas educacionais de formao de jovens artistas em teatro, dana, msica e design.

    2 Foi educador do projeto durante 5 anos. ator, diretor teatral e fun-dador do curso Todo Mundo Faz Teatro, em Salvador, que h 16 anos vem iniciando vrias pessoas na arte dramtica.

    3 Criador do projeto Cuida Bem de Mim. Doutor em Artes Cnicas e Professor da Escola de Teatro da UFBA. Diretor teatral com uma histria de 30 anos de teatro.

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    locais e nacionais, principalmente pela qualidade artstica com que trata do afeto, da juventude, da violncia e de v-rios outros temas sobre a escola pblica.

    Foram seis anos de trabalho, atuando numa misso social de educar jovens para a vida, utilizando a formao em arte como base para fortalecer o lugar mobilizador e transformador da juventude. Durante a minha participa-o na pea e projeto Cuida Bem de Mim, percorri vrias funes, entre educador, pesquisador, coordenador peda-ggico e depois coordenador geral, que me facilitaram um amplo conhecimento de suas aes.

    Estive sempre muito prximo dos jovens que assis-tiam pea, tendo realizado vrios seminrios e oficinas nas escolas, alm de organizar a plateia no teatro, orientar os debates etc. Mesmo vendo e revendo as apresentaes, deixava-me levar por aqueles risos, choros e olhares bri-lhantes de jovens que tinham um dilogo peculiar e vivo com a obra. Muitas vezes, vi-me chorando ao ouvir deter-minado depoimento, com tanta sinceridade e reflexo, que me fazia pensar que era necessrio entrar neste mundo do pblico e entender o que acontecia num processo de ar-rebatamento como este. Foi o que fiz quando escolhi pes-quisar o Cuida Bem de Mim e com isso compreender as caractersticas e os processos da recepo teatral.

    Segui um desejo, como educador, de investigar o que acontecia com o pblico, suas reaes e principalmente o que ele aprendia com a obra. Desta forma, fiquei estimula-do a definir este momento de assistir a uma pea como um processo educativo, voltando-me para o professor da esco-la que pode aprender a usar a obra teatral como contedo e metodologia. Retornava, neste sentido, ao meu lugar tam-bm de professor e que precisava manter a luta por uma educao de qualidade, partindo para pensar numa pesqui-sa que ajudasse a escola a ampliar suas tecnologias educa-cionais. Acredito que trazer o teatro na forma que escolhi, olhando a recepo, pode valorizar ainda mais a incluso

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    da arte na educao e o teatro enquanto possibilitador de vrias formas de aprendizagem.

    Destaco, ainda, que, durante estes anos de trabalho, vivi o contraste entre a luta pelo afeto e o enfrentamento de violncias dirias. Ao percorrer dezenas de escolas pbli-cas em Salvador e outros estados, vi de perto a degradao, a misria e o abandono da instituio educacional. Vi, ali, um retrato do descaso do governo e da prpria comunida-de escolar, mas, principalmente, vi a escola como uma fe-rida aberta, ainda sangrando muito e sem usar remdios. Nestes locais, pude sentir a importncia da misso social do espetculo e o quanto ele, aps as apresentaes, conse-guia mobilizar as escolas para rever este quadro de caos e identificar possveis reconstrues.

    Valorizo este convite ao afeto do leitor, apresentando os textos numa escrita coletiva da primeira pessoa do plu-ral, seguindo a necessidade de criarmos um vnculo numa leitura compartilhada.

    O livro iniciado situando o leitor sobre as diversas caractersticas do espectador no teatro contemporneo, trazendo, depois, no segundo captulo, as informaes principais sobre o espetculo Cuida Bem de Mim; sua his-tria, desde a estreia em 1996; o enredo do espetculo; os perfis dos personagens; e a transformao da obra em um projeto.

    J no terceiro captulo, investigamos a recepo, atravs da transcrio e anlise de trechos dos debates, pesquisando a questo do afeto no espetculo e o foco no jovem, e como a obra ressoa nele. Trata-se de uma pesquisa sobre as mltiplas identificaes do jovem espectador com os jovens atores e os seus personagens. Para isso, criamos alguns diagramas que sintetizam as relaes afetivas que ocorreram entre plateia e texto, partindo de um olhar mais especfico sobre a dramaturgia do espetculo.

    No quarto captulo, abordamos o contexto deste jovem e o que denominamos de cultura juvenil. H uma

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    anlise da obra mais focalizada na encenao e em como seus elementos se conectam com o pblico. H refern-cias aos diversos signos da obra, mostrando as relaes de identificao com a cena e com as caractersticas da cul-tura juvenil que se encontram nos elementos como cen-rio, sonoplastia, iluminao, maquiagem, interpretao, figurino etc. Neste contexto, mostramos como a questo das violncias simblicas e fsicas da escola pblica so discutidas e refletidas a partir do espetculo.

    Conclumos mostrando o efetivo impacto educa-tivo de um espetculo, sendo algo que precisa ser mui-to pesquisado, pois vem junto a isso a argumentao de como o teatro educa e como isto se d dentro de um processo de recepo.

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    1 O espectador

    O lcus do significado da obra de arte s pode ser encontrado nas respostas dos prprios ob-servadores.

    (Ken Wilber)

    A escolha de investigarmos o teatro contemporneo pressupe um olhar mltiplo para uma cena teatral plu-ral e complexa, que no mais aceita definies fechadas ou deterministas. Hoje convivem estilos ou tendncias dentro de uma mesma obra cnica, exigindo instrumentais de pes-quisa que consigam examinar esta multiplicidade.

    Pensar neste campo de pesquisa que a recepo te-atral fica mais claro quando nos detemos no principal su-jeito do estudo, que o espectador. Para Ubersfeld (1996, p. 305),

    o espectador o destinatrio do discurso verbal e cnico. o receptor do processo de comunica-o. o rei da festa. Porm, tambm o sujeito de um fazer, arteso de uma prtica que se arti-cula perpetuamente com as prticas cnicas4.

    Falamos do prazer do espectador que enquadra e organiza sua percepo, recorda5, se posiciona dentro de um jogo e ao mesmo tempo lembra da vida fora do teatro, experimentando outras realidades (UBERSFELD, 1996,

    4 [...] El espectador es el destinatario del discurso verbal y escnico, el receptor del proceso de comunicacin, el rey de la fiesta; pero es tam-bin el sujeto de un hacer, el artesano de una prctica que se articula perpetuamente con las prcticas escnicas (1996, p. 305).

    5 Traduo nossa do original em Espanhol: encuadre, organice su per-cepcin, recuerde (UBERSFELD, 1996, p. 305).

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    p. 305). O autor Pavis (2003a, p. 140) fala do trabalho do espectador, que consiste em afirmar sem trgua uma s-rie de microescolhas, de miniaes, para focalizar, excluir, combinar, comparar.

    Os espectadores do Cuida Bem de Mim so priori-tariamente os estudantes, aqui delimitados em 2.500 jo-vens, oriundos de 14 escolas pblicas6 e que estudavam entre a 7 srie do ensino fundamental e o 3 ano do en-sino mdio e com faixa etria mdia de 14 a 20 anos, que assistiram ao espetculo e participaram do debate, no pe-rodo de 2005 a 2007, nas cidades de Salvador, Rio de Janeiro e Recife.

    Primeiramente, podemos dizer que este espectador do Cuida Bem de Mim pode ser visto como um contempla-dor, seguindo a viso de Bakhtin (1992), aquele que retor-na a si mesmo a partir da experincia esttica de assistir a um espetculo, e com isso recria a obra como um co-autor. Ele fala ainda do contato com o outro na atitude de con-templar. Para ele, o homem tem uma necessidade esttica absoluta do outro, da sua viso e da sua memria; memria que o junta e o unifica e que a nica capaz de lhe propor-cionar um acabamento externo (BAKHTIN, 1992, p. 55). atravs deste contato com o outro que podemos dizer que o espectador ganha um instrumental para fazer a leitura e reconstruir sua viso da obra, realizando o que ele chama de acabamento, cumprindo uma ao esttica.

    Podemos considerar, tambm, o espectador desta pea como um ouvinte, que Walter Benjamim (1993) conceitua como aquele que consegue ouvir a narrativa de um texto, a exemplo do Cuida Bem de Mim, e com isso tecer suas pr-prias histrias. Para este autor, estamos vivendo um declnio

    6 Estas escolhas foram realizadas junto com a equipe da instituio a par-tir de sua representatividade e, principalmente, por terem realizado os debates mais completos no que se refere ao roteiro pr-estabelecido.

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    destas experincias vivas das narrativas, do prazer em ouvir histrias. Isto se deve muito nfase na informao mas-sificada e sintetizada de nossos meios de comunicao. H nisto uma relao com o teatro, que pode ser este espao da experincia viva da histria, que se abre para que o especta-dor construa ou reconstrua suas histrias de vida.

    Quanto a isso, Philippe Meirieu (1993) refere-se necessidade de resgatar o valor pela narrativa, junto s crianas, que relacionamos aqui ao pblico jovem do Cui-da Bem de Mim, pois estamos num momento de flashs, de informaes fragmentadas, impostas pelos meios de comu-nicao, criando o hbito da segmentao e da seduo instantnea. Ele lembra que a experincia teatral pode contribuir no desenvolvimento da personalidade da crian-a, possibilitando que ela conquiste os estados narrativos e com isso alcance um estado de pensamento dialtico e de pensamento da descontinuidade (MEIRIEU, 1993, p. 2). Acredita ainda que este pensamento da descontinuida-de quebra a lgica do pensamento totalizante e abre espao para agregar a contradio e o paradoxo.

    O autor relaciona a esta falta de capacidade de pensar a descontinuidade com a violncia dos jovens na atualida-de7, que no conseguem agregar a oposio e no sabem en-frentar os conflitos dialticos. O teatro possibilita o aces-so aos conflitos interiores, as nossas contradies profun-das que fabricam nossa prpria humanidade, e contribui para que os jovens assumam as suas prprias contradies (MEIRIEU, 1993, p. 5).

    Seguindo estas possibilidades das caractersticas do espectador deste espetculo, vemos tambm como

    7 H, nesta opinio, uma relao com o estudo que fazemos sobre o Cuida Bem de Mim, enquanto obra teatral que se prope a influenciar no combate aos alarmantes ndices de violncia nas escolas.

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    o leitor8 de Jauss (1994). Na viso dele, a arte tem uma funo social que somente se manifesta na plenitude de suas possibilidades quando a experincia literria do lei-tor adentra o horizonte de expectativa de sua vida prti-ca, pr-formando seu entendimento do mundo e, assim, retroagindo sobre seu comportamento social (JAUSS, 1994, p. 51). O espectador vive, na experincia esttica, a possibilidade de se libertar das opresses de suas prxis de vida, na medida em que o obriga a uma nova percepo das coisas (JAUSS, 1994, p. 52). Dentro desta percepo, ele processa um estado de mudana, como esclarece Soa-res (2005, p. 55), quando noz diz que, para Jauss, tornou-se necessrio indagar o quanto o recipiente de uma obra de fato muda no ato de sua recepo e o quanto a fantasia do leitor responsvel por estas mudanas [...].

    Por fim, o nosso espectador do Cuida Bem de Mim pode ser visto como um apreciador. Para Ana Mae Barbosa (2001), a apreciao um dos pilares bsicos dos trs cami-nhos para se aprender arte, dentro da abordagem triangular, havendo o fazer artstico, a apreciao e a contextualizao. uma viso que se engloba no campo da arte-educao e que serve tambm para responder importncia em se pesqui-sar sobre os aprendizados no ato da apreciao, a exemplo de um espetculo como Cuida Bem de Mim. A abordagem da arte-educadora Fayga Ostrower (2006, p. 167) ressalta que, no ato da apreciao esttica, no existe um momento de compreenso que no seja ao mesmo tempo de criao.

    A apreciao um momento que, segundo Duarte Jr. (1988, p. 94), nos esclarece que h uma multiplicidade de sentidos e que nos conduz por intrincados caminhos

    8 Para Jauss, no ato da fruio de uma obra literria, cada leitor leva, entre outros aspectos, sua histria de vida pessoal, que diz respeito a sua experincia social, suas tradies, convenes, seu conhecimento de mundo [...] (CAJABA, 2005, p. 54).

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    dos sentimentos, onde habitam novas e vibrantes possi-bilidades de nos sentirmos e de nos conhecermos como humanos.

    Vimos, com isso, que o jovem que assiste ao Cuida Bem de Mim pode ser o ouvinte de Benjamim, o contem-plador de Bakhtin, o leitor de Jauss, o apreciador de Bar-bosa, mas que se aglutina, dentro de nossa abordagem, ao espectador de Ubersfeld e Pavis, nos quais nos delimitare-mos para analisar a recepo desta obra.

    importante esclarecer, tambm, que este espectador do Cuida Bem de Mim foi mobilizado com as aes educati-vas na escola antes da apresentao da pea e pode ser pre-parado para ver uma obra teatral que fala do seu mundo, que a escola pblica. Esta mediao importante, pois, como defende Bourdieu (2005, p. 71), a obra de arte, considerada enquanto bem simblico, no existe como tal a no ser para quem detenha os meios de apropriar-se dela, ou seja, de de-cifr-la, e vale lembrar que o pblico precisa desenvolver um grau de competncia artstica vinculado necessaria-mente ao grau de seu controle relativo ao conjunto dos ins-trumentos da apropriao da obra de arte. Para Desgranges (2003, p. 37), o espectador instrumentalizado encontra-se em condies de decodificar os signos e questionar os signi-ficados produzidos, seja no palco, seja fora dele. Este autor ainda nos diz que formar espectador consiste em provocar a descoberta do prazer do ato artstico mediante o prazer da anlise (DESGRANGES, 2003, p. 173).

    Ao definirmos que o receptor jovem para ns o es-pectador do espetculo, debruamo-nos sobre ele para identificar as reaes e reflexes trazidas nos depoimentos sobre o espetculo durante os debates e verificar como es-tas se cruzam com as propostas dramatrgicas e cnicas da obra. A leitura dos debates levou em conta a esponta-neidade das respostas, o vnculo com a temtica da relao afetiva, da violncia, da juventude e da escola em si, valo-rizando a riqueza dos dilogos e da profundidade emotiva

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    voltada para uma reflexo do jovem sobre sua vida pessoal e escolar. Valorizamos os momentos sensveis e afetivos destas repostas revelando conflitos, tenses, choros, risos, desabafos etc., atravs das palavras que confirmam o que a arte educadora Fayga Ostrower (1987, p. 21) nos diz sobre o processo de fruio da obra de arte:

    Usamos palavras. Elas servem de mediador en-tre o nosso consciente e o mundo. Quando ditas, as coisas se tornam presentes para ns. [...] o fa-lar torna-se mais do que um assinalar, torna-se um representar as coisas com seus contedos, torna-se um avaliar e um significar.

    Os depoimentos dos espectadores jovens tornaram-se elementos fundamentais para esclarecer o impacto do espe-tculo no pblico com sua capacidade de falar e de simbo-lizar, mostrando um potencial inato em articular ideias, revelar emoes e efetivar um processo de aprendizado, va-lorizando o contexto cultural de cada um (OSTROWER, 1987, p. 23). No caminho para estabelecer estes impactos no receptor, escolhemos realizar uma anlise do espetculo em dois aspectos fundamentais presentes na obra e na discus-so sobre ela: o afeto e a cultura juvenil em cena. A seguir apresentamos um diagrama (Figura 1) que representa este itinerrio da pesquisa e os pontos por ela estudados.

    Figura 1 Diagrama do itinerrio da pesquisa.

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    Estudar a recepo como processo educativo segue o que Srgio Farias (2002, p. 64) nos diz ao esclarecer que a anlise da recepo do espetculo, pelo educando, funda-mental para se firmar o teatro-educao como forma de en-sino que transpe as barreiras da sala de aula, e para se com-por uma metodologia dinmica e socializadora. Para ele, o espectador tambm um criador, uma fazedor de cultura. isso que fundamenta o carter educativo do teatro, indepen-dente do contedo abordado. O que veiculado pelos atores atravs das mensagens trazidas nas palavras, movimentos e recursos tcnicos, decodificado pelo espectador com base em sua histria de vida, sua viso de mundo e seu estado emocional naquele momento (FARIAS, 2002, p. 64).

    Por isso, avaliamos o processo de recepo teatral como uma experincia dividida em trs vias (Figura 2), di-ferentes e interdependentes. So elas, presentes no diagra-ma a seguir, esttica, artstica e pedaggica.

    Figura 2 Diagrama da experincia teatral.

    Ao nos referirmos via esttica, observamos o fenmeno da relao sensvel entre o pblico e a obra, que ser perceptvel nesta pesquisa quando falarmos

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    do afeto e das mltiplas identificaes com o texto e a encenao. J sobre a via artstica, destacamos os valo-res referentes ao fenmeno teatral, que se diferenciam da dana, da msica e das artes visuais e que tm, em sua histria de estilos diversos, toda uma construo de sentido para que tivssemos hoje o teatro contem-porneo. Buscamos, com isso, a especificidade do fa-zer artstico teatral na leitura do texto dramtico e da encenao. Com relao via pedaggica, mostramos o fenmeno educativo que se desenvolve na produo e na recepo teatral, focalizando, principalmente, as aprendizagens do espectador.

  • Figura 3 Cena do espetculo: eu sou um artista.

    A escolaem cena

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    2 A escola em cena2.1 O nascimento da obra

    O espetculo Cuida Bem de Mim estreou em 17 de novembro de 1996, mas, desde 1995, o diretor Luiz Mar-fuz foi convidado pela ONG Liceu para montar uma pea teatral que pudesse atender a um pedido da Secretaria da Educao do Estado da Bahia.

    Na poca, o Liceu, no seu processo de auto-sustenta-bilidade, j possua uma fbrica de mveis que produzia ca-deiras escolares, em sua maioria vendidas para as escolas do governo. Esses recursos adquiridos mantinham o tra-balho educacional da instituio, de forma gratuita, para jovens de baixa renda e de escolas pblicas.

    No mesmo ano de 1995, foi constatado pela Secreta-ria da Educao um grave ndice de destruio de cadeiras e de todo o patrimnio escolar e que o gasto era cada vez maior com a reparao dos danos. Pensando em resolver esse problema, o governo assumiu com o Liceu um contra-to de compra de cadeiras e, em contrapartida ao convnio estabelecido, a instituio faria um projeto que pudesse ser levado s escolas e que conscientizasse os estudantes sobre a conservao do patrimnio fsico.

    Num trabalho de cinco meses, o diretor conseguiu estabelecer uma equipe e as bases de uma proposta de son-dagem e diagnstico com estudantes, professores e dire-tores de escolas pblicas sobre os caminhos para reverter este grave quadro de destruio do patrimnio. Para no ficar apenas num diagnstico comum, a equipe apostou na criao de uma metodologia teatral que foi denominada Oficina Dramtico-pedaggica.

    As Oficinas Dramtico-pedaggicas foram desenvol-vidas seguindo os objetivos de diagnosticar a realidade es-colar e abrir um campo de escuta dos alunos, professores e

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    diretores, utilizando-se da metodologia teatral. A base te-mtica era a destruio, que passava pela depredao fsica da escola e se ampliava nos conflitos presentes nas relaes interpessoais.

    O pedido do governo, de resolver a problemtica da depredao do patrimnio, j se mostrava diferente, com o surgimento da questo central dos embates nas relaes humanas que, nestas oficinas, surgiam como foco dos pro-blemas da escola9.

    Aparecia, a partir disto, a viso que iria permear todo o projeto, de que a escola um espao que deve ser preservado em todas as suas dimenses: fsica, moral, re-lacional, cultural e pedaggica, em que preservar signi-fica manter relaes saudveis com as pessoas (MAR-FUZ, 2000, p. 42).

    A escolha por trabalhar com o teatro para diagnosti-car uma realidade to complexa como a escola pblica foi determinante para uma escuta diferenciada e uma obser-vao mais aprofundada dos indivduos e de suas relaes, atravs da atividade teatral, que oportunizou uma expres-so e uma reflexo espontnea, dinmica e impactante, como nos informa Marfuz (2000, p. 68):

    A oficina da destruio trazia os participantes para a sua prpria realidade e ele passava a agir impulsionado pela vontade de resolver o proble-ma atravs da ao espontnea de reconstruir a escola, a sociedade e o mundo, onde ele se sentia parte ativa.

    9 Na pesquisa realizada com 2.500 alunos, em 1997, 84,12% afirma-ram, antes da pea, que a origem das depredaes estaria relacionada aos prprios alunos, como resultado da falta de conscincia, e que era necessria a aplicao de punies. Depois da pea, os alunos aponta-ram a destruio do patrimnio como a parte visvel de uma situao de degradao das relaes sociais na escola (NUNES, 2006, p. 31).

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    Pela abordagem da temtica da destruio, a oficina j se mostrava uma experincia completamente nova para aquelas pessoas que, ao entrarem na sala da atividade, se debatiam com um amontoado de cadeiras quebradas, in-terrompendo a entrada, a exemplo do grupo da oficina es-pecfica para professores; ou com os alunos que entravam numa sala montada (cenicamente) com cadeiras quebradas onde todos sentavam e tomavam um susto com os seus des-mantelamentos. Foram duas oficinas, com metodologias si-milares, mas com algumas tcnicas diferenciadas devido s especificidades da clientela e da sua atuao na escola.

    O jornalista Marcos Uzel (1996, p. 8) nos relata que a experincia de utilizar o teatro como uma espcie de ar-rombador de portas, quebrando bloqueios e estimulando a reflexo, produziu reaes surpreendentes nos alunos. Ele ainda complementa explicando que a utilizao do ldico gerou o percurso criativo da experincia e trouxe a seguinte descrio sobre a oficina:

    Convidados a se expressar, inicialmente pelo mo-vimento do corpo, os adolescentes conseguiram relaxar e liberar o subconsciente. Para quebrar a timidez e a desconfiana inicial dos participantes, Luiz Marfuz buscou a msica, a brincadeira e a interao. Os alunos foram fazendo o reconheci-mento do espao fsico, do material escolar con-creto, da sucata recolhida como recurso da oficina. Tudo isso para chegar ao clmax da experincia: o estmulo quebra violenta das cadeiras, de for-ma agressiva e at transgressora, num momento de catarse, de sensao de caos, de desconforto. [...] Mas logo depois veio a pausa silenciosa com a msica de relaxamento e o convite reconstru-o, o incentivo necessidade de cuidar do que havia destrudo (UZEL, 1996, p. 8).

    A oficina (Figura 4) tinha as seguintes bases meto-dolgicas (MARFUZ, 2000): tcnicas de Grotowski, com

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    a sequncia exaustiva no trabalho corporal, nas vivncias de destruio e tambm na focalizao essencial de cada aluno-ator ou professor-ator que se entregava ao trabalho de criao; tcnicas de Stanislaviski, no que se refere ao tra-balho com os personagens e a colocao da vida no palco de forma mais realista atravs de circunstncias cotidianas, propostas para improvisaes; esttica de Brecht, devido ao uso teatralizado do elemento cnico cadeira e as mltiplas utilidades que este objeto ganha, alm do prprio elemento pico, com o levantamento de histrias, somando-se re-flexo crtica sobre o contexto social da escola; tcnicas de Boal, na questo do tratamento poltico e mobilizador da temtica da destruio e da reconstruo da escola pbli-ca com as sequncias de improvisaes sobre o sujeito e o contexto social e sua consequente reflexo para uma ao posterior de interferncia na prpria comunidade escolar.

    Figura 4 Oficina Dramtico-Pedaggica com os alunos.10

    10 As fotos do Projeto Cuida Bem de Mim, aqui reproduzidas, so de autoria dos seguintes fotgrafos: Adenor Gondin, Isabel Gouveia, Mi-chele Zoulline, Almir Bindilatti e Celso Pereira.

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    Foi a partir da documentao composta por muitos depoimentos e registros de cenas teatrais destas oficinas que a equipe construiu as ideias centrais para o espetculo, ficando nas mos de Filinto Coelho e Luiz Marfuz a cons-truo dramatrgica final. O texto, desta forma, foi basea-do nos depoimentos e nas cenas improvisadas por alunos e professores durante as oficinas.

    Com este elemento em mos, a equipe partiu para a montagem do espetculo e a composio de aes artsti-co-pedaggicas, denominadas educativas, para alm da apreciao da pea. Nascia, neste momento, as bases para a futura Tecnologia Educacional com o Teatro, que seria finalizada somente trs anos depois com a sistematizao terica, metodolgica e tcnica das aes que comporiam o projeto.

    2.2 Os personagens

    Para melhor entendimento da pea, fundamental conhecermos os personagens desta histria. Primeiramen-te o protagonista Bactria, que o maior bagunceiro da sala, usurio de drogas, arredio e dissimulado. Demonstra ran-cor e revolta pela vida e principalmente pela escola. Ele o principal parceiro do colega Sinval que, no incio da pea, o lder dos bagunceiros. tido como sedutor e o bonito da turma. rival da personagem Rita, mas depois se apaixona por ela e muda toda a sua histria, passando a trabalhar no Grmio Estudantil. Rita a lder de classe, mais consciente e madura em relao turma. filha de pais separados e vive com a me. No se preocupa com a sua aparncia, vi-vendo o esteretipo da menina inteligente, at se apaixonar por Sinval. No meio dos dois, encontra-se Raimundo, que tambm apaixonado por Rita, mas no correspondido e acaba desistindo. um aluno politizado, luta pela escola e tem como grande meta a formao do Grmio.

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    A figura engraada da turma representada pelo per-sonagem Das Dores, que religiosa, gordinha e a melhor amiga de Rita. Entre os personagens jovens da histria h tambm Mirinha, uma garota sedutora e que procura estar na moda. rf e mora com a irm mais velha. Muito re-belde, faz parte tambm da turma dos bagunceiros e de vez em quando namora o Sinval. Os personagens foram apre-sentados e se dividem em dois grupos, os bagunceiros, que so Sinval, Bactria e Mirinha, e os comportados, que so Rita, Raimundo e Das Dores.

    Com relao aos personagens adultos, h a Diretora, que firme e dedica sua vida escola, deixando a famlia em segundo plano. Mostra-se preocupada e dividida en-tre o comportamento autoritrio e a necessidade de estar aberta ao dilogo com os alunos. Os professores so dois: Clia11 e Carlos. A professora Clia, da disciplina de lngua portuguesa, teve toda a sua vida dedicada ao trabalho, sem formar famlia, e mantendo-se solitria. No momento da ao da pea, ela se encontra cansada e quase desistindo da escola. No consegue obter a ateno e o entusiasmo dos alunos em suas aulas. O professor Carlos, da disciplina ma-temtica, mais jovem e est iniciando sua carreira, viven-do muito ocupado com vrios empregos, o que acarreta em seus atrasos nas aulas. Consegue dar aulas por ter um bom dilogo com os alunos.

    Fora do ambiente da escola, existem dois personagens que representam a comunidade: a baiana de acaraj Creuza e seu filho Anacleto. Creuza uma mulher guerreira e luta-dora. Possui pulso forte com os jovens e muito querida por todos. O seu filho um personagem engraado por ser carac-terizado como lento, mas vive o tempo todo trabalhando.

    11 A depender da disponibilidade do nmero de atores femininos, o diretor opta por colocar este personagem masculino com o nome de Prof. Alcides.

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    So 11 os personagens da histria, que ainda com-posta por um grupo de trs alunos figurantes que intera-gem com a turma.

    2.3 O enredo

    O texto Cuida Bem de Mim segue uma estrutura rea-lista12, retratando fielmente o contexto de uma comunidade escolar.

    Com referncia ao nascimento deste texto, Luiz Mar-fuz (2000, p. 13) nos esclarece que o seu argumento foi concebido a partir de um fato real ocorrido em uma das escolas trabalhadas pelo projeto, onde o amor de dois ado-lescentes mobilizou toda uma comunidade escolar.

    A pea comea com a entrada da personagem Das Dores arrumando a sala de aula bagunada e cheia de bolas de papel no cho. Enquanto ela arruma, os colegas bagun-ceiros gritam do lado de fora da sala e acabam assustando-a. Ela se irrita e grita com eles tambm. Depois entram em cena os personagens Rita e Raimundo conversando sobre as festas no final de semana. Cantam e danam lembrando das msicas de Ax13 que ouviram.

    Logo aps entra a turma dos bagunceiros formada pe-los amigos Bactria, Sinval e Mirinha. Espalham o lixo do vaso pela sala, derrubam cadeiras e gritam muito. Ironizam

    12 A opo pela estrutura dramtica aristotlica (centrada numa ideia clara, desencadeada em torno de uma ao dramtica, como perso-nagens bem construdos e polarizados por um conflito evidente, de-senvolvido a partir de uma trama composta por aspectos que apre-sentam verossimilhana com a vida real) reside no fato deste modelo persistir como uma maneira eficaz de contar uma histria (MAR-FUZ, 2000, p. 60).

    13 Um dos estilos de msica (Ax) produzido na Bahia e que em 2006 comemorou 20 anos de histria.

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    a religiosidade de Das Dores e iniciam uma briga com a tur-ma dos comportados.

    Chega a professora de lngua portuguesa, Clia, que faz tudo o que pode para tentar dar aula e no consegue. impossibilitada de fazer a chamada e obter a ateno da turma. Os bagunceiros resolvem cantar um parabns para Mirinha e sobem na cadeira e na mesa da professora der-rubando os seus livros. Clia consegue dar uma bronca na turma e, ao andar pela sala, Sinval cola em suas costas uma frase que diz: Clia encalhada (Figura 5). Cantam uma msica com esta frase e todos se divertem muito.

    Figura 5 Cena da aula da Professora Clia.

    A professora, com raiva, resolve aplicar uma prova surpresa e no momento que passa a prova para os alunos apita o sinal para o intervalo. Os alunos saem da sala de-volvendo a prova e falando para a professora se atualizar. Quando a professora se v s na sala, desabafa sobre sua vida, seus sonhos e frustraes na escola. Ao final do mo-nlogo, ela descobre que Das Dores estava ouvindo tudo e acaba sendo consolada pela aluna.

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    A sala fica vazia e os bagunceiros aproveitam este momento para destruir mais ainda as paredes. Fazem uma armadilha para o lder ao deixar sua cadeira completamen-te quebrada, alm de colar a cadeira do professor na mesa com fita crepe. Novo sinal e os alunos voltam para a sala. Rita acaba caindo da cadeira e reclama com a turma, falan-do sobre a depredao da escola. Neste momento, Sinval vai at ela brincando de agarr-la por trs. Mirinha, com cimes, entra na confuso e discute com Rita.

    Com a entrada do professor Carlos, de matemtica, a confuso cessa. O professor chegou bastante atrasado e os alunos reclamam e ironizam a situao. Ao tentar sentar, Carlos v que sua cadeira est com fita crepe e fala um pou-co sobre o cuidado com o bem pblico. O professor conse-gue dar sua aula, mas no meio da atividade interrompido pelo sinal.

    Inicia-se o intervalo e todos se dirigem para o ptio. H uma mudana de cenrio para representar a parte ex-terna da escola. Neste local, encontra-se a baiana de aca-raj (Figura 6), com a qual os alunos, por no terem me-renda na escola, fazem seu lanche. Neste momento, eles cantam, danam e se divertem com a baiana Creuza, que respeitam muito. Alm dela, o seu filho Anacleto bem engraado. Trazem um pouco, nas suas falas, comporta-mentos e brincadeiras, valores da cultura baiana, crenas e suas musicalidades. Os alunos se mostram amigveis e convivem integrados.

    Ao terminar o intervalo, eles retornam para a sala. A primeira a entrar na sala Rita, que se surpreende com as paredes cheias de pichaes depreciativas em relao a ela. As frases esto assinadas por Luntico, que ela no sabe quem . Fica triste e sozinha. Pega depois um espelho e comea a se olhar e a arrumar os cabelos. Aos poucos, vai cantando uma msica de Ivete Sangalo (cantora baia-na) e danando com desenvoltura por toda a sala. Para de repente, pois ouve uma voz vinda do banheiro perguntan-

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    do quem est cantando. Ela mente falando que se chama Ivete e ele, que Sinval, inventa que Mrcio. Os dois con-versam e acabam se apaixonando um pelo outro sem real-mente saberem quem so. Rita sai da sala eufrica e alguns alunos entram e dialogam na maior diverso sobre sexo e masturbao.

    Figura 6 Cena da baiana do acaraj.

    Rita e Sinval chegam separadamente na sala e comen-tam, sem se ouvirem, sobre o acontecimento do banheiro, quando eles escutaram uma voz e se apaixonaram. Mirinha anuncia a chegada da diretora que entra na sala para inves-tigar quem foi o responsvel por ter jogado uma cadeira no ptio. Raimundo fala sobre a preservao da escola, mas ningum revela quem foi o culpado e a diretora decide que sero colocadas grades em todas as janelas e sai.

    Os alunos se revoltam e, pela emoo, a turma dos bagunceiros e a dos comportados se unem para protestar contra a deciso da diretora. Tomam a atitude de fechar a porta com um amontoado de cadeiras, criando uma barreira.

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    A professora Clia chega para dar aula e no conse-gue entrar. Depois de muito pedir, ela resolve empurrar as cadeiras e dar aula na sala como est. O assunto que ela escolhe trabalhar a poesia e a literatura nos temas cvi-cos (Figura 7). Solicita um aluno que saiba cantar o Hino Nacional.

    Figura 7 Cena do Hino Nacional.

    Alguns cantam e chegam s at a metade ou trocam as palavras enquanto se divertem com isso. Somente Rita resolve cantar e vai at o final. Quando Sinval ouve a voz de Rita cantando, ele descobre que ela Ivete, a jovem que ele ouviu no banheiro. A seguir, revela para o pblico que est apaixonado e que vai lutar para conquist-la.

    O ambiente se transforma em outro dia de aula. Os personagens Raimundo e Rita conversam sobre a aula de qumica, que est sem professora ainda, enquanto Mirinha chora preocupada com Bactria que passou mal, vtima de uma overdose. Ouve-se um grande murmurinho e Das Dores entra conduzida por outros colegas, pela diretora e pela professora Clia, devido a um assalto que ela sofreu

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    e tambm tentativa de abuso sexual em frente escola. Raimundo e Rita aproveitam para exigir da diretora que lute por mais segurana e acabam falando sobre outros as-suntos do Grmio. Ela responde, marcando uma reunio com eles.

    Muda-se o ambiente para a sala dos professores onde est Clia, que atende a um telefonema de Sinval, que se diz Mrcio, e pede para falar com Rita, que rapidamente segura o telefone e fica toda derretida e apaixonada quando descobre quem est falando. No final da conversa, marcam um encontro. Rita sai e vai contar para as amigas que mar-cou um encontro com o Mrcio e acaba pedindo ajuda a Mirinha, mesmo que as duas no se gostem. Mirinha resol-ve dar uma aula de moda e de movimentos corporais para conquistar um homem. Elas se divertem com esta situao e por fim conversam sobre famlia. Neste momento, Miri-nha revela seu sofrimento familiar e as colegas, com gestos afetivos, consolam-na.

    Tem-se um novo ambiente, que a sala de aula, onde Rita tinha marcado com Mrcio para se encontrar. Quando ela chega, v novas pichaes com seu nome, ao mesmo tempo em que Mrcio (Sinval) entra. Ela, sem saber que Sinval Mrcio, pergunta se ele foi o responsvel e ele res-ponde que sim, pensando que ela questiona sobre se ele o Mrcio. Na verdade, ela queria saber se ele era o Luntico e se tinha feito todas as pichaes. Com a resposta positiva dele, ela se revolta e acabam discutindo.

    H uma comdia de erros no dilogo dos dois, pois, ao conversarem, Sinval fala sobre Mrcio, e Rita sobre a pichao. No meio da discusso, ele a agarra e ela grita, mas Sinval ainda consegue dizer que ele Mrcio, o que a deixa atnita. A diretora e os professores entram na sala. A professora Clia acusa Sinval de assdio sexual e Rita no fala nada, deixando Sinval em apuros ao no conseguir se explicar. Com isso, a diretora resolve suspender Sinval du-rante dois dias.

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    Passado um tempo, Rita est no ptio quando en-contra Bactria e Mirinha, que a culpam pela suspenso de Sinval. Quando Bactria ameaa bater em Rita, Raimundo chega e protege-a. Bactria vai embora com Mirinha e Rai-mundo resolve se declarar para Rita. Ele acaba descobrin-do que ela est apaixonada por Sinval. Na cena seguinte, Sinval, depois de ter pulado o muro da escola, surpreende Rita no banheiro. Os dois se mostram apaixonados, mas passam por situaes difceis com a entrada e sada de Das Dores e da diretora. Depois de toda a confuso os dois se beijam e iniciam o namoro (Figura 8).

    Logo aps, na sala da diretoria, a diretora conversa com Clia e Carlos sobre o problema de Sinval. H uma

    Figura 8 Cena do beijo entre Rita e Sinval.

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    grande discordncia de opinies entre os dois, sendo Car-los o mais flexvel. A diretora decide pela manuteno de Sinval na escola e mostra a sua fragilidade humana na fun-o que ocupa, falando de seus problemas pessoais e fa-miliares. O professor Carlos acaba por consolar a diretora, enquanto Clia se mostra reservada em relao a isto.

    Da sala da direo, o ambiente se transforma no ptio onde acontece a festa do Grmio. Nesta festa, todos esto danando e se divertindo quando Sinval e Rita aparecem de mos dadas e assumem que esto namorando. Bactria e Mirinha se revoltam com esta situao e, por fim, as duas acabam se engalfinhando no meio da festa. Aps a briga, Bactria assume para Sinval que no mais seu camarada. Para complicar mais a situao, Bactria revela para Rai-mundo que Sinval o famoso pichador Luntico. Raimun-do, aproveitando-se da situao, fala isto para Rita. Sinval e Rita brigam mas, com o pedido de desculpas, ela decide continuar namorando-o.

    No dia seguinte, todos voltam para a sala. Bactria se encontra isolado e Mirinha aparece com uma nova postu-ra sobre os estudos, e resolve ficar muito mais prxima de Das Dores para aprender um pouco mais e ser aprovada. Ela v Bactria isolado, mas no o ajuda, pois sabe que ele est muito drogado. Rita, como nova lder da sala, conver-sa com os colegas sobre suas ideias para a escola e para a atuao no Grmio. Todos resolvem sair da sala para jogar bola e Sinval chamado por Bactria. Os dois conversam.

    Bactria est sob o efeito de drogas e muito nervoso. Em pouco tempo, eles comeam a discutir e Bactria perde a calma, quebrando todas as cadeiras da sala. Os dois bri-gam. Os outros alunos voltam pra sala e a briga vira uma verdadeira guerra de cadeiras onde so aguadas as dife-renas entre os grupos. No pice da guerra (Figura 9), o professor Carlos entra e interrompe, juntamente com a di-retora, nervosa e impactada com a cena.

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    Figura 9 Cena da briga no final.

    Figura 10 Cena da queda de Bactria.

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    Logo depois, chega a professora Clia, que desaba-fa jogando todas as provas e a bolsa no cho, culpando a diretora pelo que est acontecendo. As duas discutem e a diretora d um tapa no rosto de Clia, mas recua quando v Bactria cair (Figura 10), acometido por uma forte crise. A diretora corre e o segura firme pedindo para que ele reaja e fala que todos esto ali para ajud-lo.

    Os outros alunos se mostram sensveis ao problema do colega e ajudam a diretora a coloc-lo numa cadeira. C-lia pega sua bolsa para ir embora, mas desiste ao ouvir o pedido de Mirinha para que ela no v, dizendo que os co-legas precisam dela. Os outros alunos endossam o pedido, inclusive Bactria, que sensibiliza a professora ao ter uma atitude simples de pegar algumas provas no cho e esten-der o brao para devolv-las. Os outros alunos tm a mes-ma atitude, fazendo com que Clia se convena a ir pegar o papel na mo de Bactria, o que faz com que todos peguem o papel no cho e o ofeream para a plateia.

    Finaliza-se a pea com o sorriso estampado no ros-to de todos expressando um futuro melhor para a escola e tambm gritando a frase Eu estou aqui14 (Figura 11).

    2.4 Da estreia para o mundo

    A primeira montagem da pea teve um elenco for-mado por atores profissionais que passaram por uma au-dio pblica. Num processo rpido e intensivo, a pea foi levantada em no mximo dois meses de trabalho, contan-do com uma equipe formada por experientes profissionais baianos nas reas de direo, sonoplastia, iluminao, fi-

    14 Esta frase muita utilizada pelo projeto nas finalizaes das oficinas e tambm no final do debate quando a plateia levanta e grita junto com os atores, estando todos de mos dadas.

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    gurino, cenrio, coreografia, preparao corporal e vocal, contrarregragem, comunicao e, principalmente, uma empresa de produo, que pde administrar o nascimen-to do espetculo.

    Para a cidade de Salvador e seu movimento cultural, este era um produto de grande porte, com uma estrutura fsica e humana altamente profissional. Isto foi fundamen-tal, pois deixava de lado o estigma do trabalho social de ONG que era, muitas vezes, tido como de m qualidade ou no preocupado com o profissionalismo. Era uma novida-de, para a rea cultural e social, que se somava ao diferen-cial do aspecto educacional com teatro, que determinava um valor especfico do teatro-educao no enfrentamento da depredao patrimonial.

    Desta forma, a pea estreava em novembro de 1996 com a tutela do projeto Quem Ama Preserva, criado pela Secretaria da Educao do Estado em convnio com o Liceu. As apresentaes aconteciam no teatro e os alunos eram le-vados de nibus para assistir, o que garantia uma lotao diria. Os atores se apresentavam at trs vezes por dia,

    Figura 11 Plateia gritando: Eu estou aqui!

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    cinco dias por semana, num esforo para atender ao maior nmero de pessoas possvel em pouco espao de tempo. Para manter a valorizao destes profissionais, entre atores, educadores e tcnicos do projeto, o Liceu manteve as pes-soas contratadas com carteira assinada, uma singularidade no trabalho de instituies sociais. importante esclarecer que, para a cena local, isto teve um valor histrico, pois era uma das primeiras vezes no percurso do teatro baiano, nes-tes ltimos anos, que os profissionais intrpretes eram con-tratados como atores profissionais, com carteira assinada e todos os direitos trabalhistas garantidos.

    Figura 12 Elenco da primeira verso do espetculo.

    Desde a estreia, o espetculo seguiu um caminho na-tural ao se manter apresentando a cada ano e ampliando

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    o nmero de escolas atendidas, chegando em 2000 a um total de 450 apresentaes. Neste percurso de quatro anos, o projeto passou por algumas mudanas de elenco, tendo trabalhado no espetculo atores que agora representam a Bahia nacionalmente, como Lzaro Ramos, Wagner Moura, Ana Paula Bouzas, Lucci Ferreira, entre outros (Figura 12). Neste perodo, o projeto tambm circulou por 17 cidades do interior baiano, inaugurando os teatros do Colgio Modelo Luiz Eduardo Magalhes, e fez ainda uma curta temporada em Braslia. Em 2000, finalizou o convnio com a SEC e assim encerrou-se o projeto Quem Ama Preserva.

    Em 2002, o Liceu obteve aprovao no edital do Pro-grama Petrobras Social que, a partir de 2004, passou a ser chamado programa Petrobras Fome Zero - para a exe-cuo do agora denominado projeto Cuida Bem de Mim. A instituio ficou entre as 35 selecionadas no edital, concor-rendo com mais de 2.300 instituies no Brasil. Isto s foi possvel pela histria bem sucedida dos seis anos do pro-jeto e de sua eficcia no impacto social dentro das escolas pblicas do Estado da Bahia.

    Com a aprovao no edital, o projeto ganharia novo flego, com uma meta anual de atingir mais de 25 mil jo-vens, o que foi alcanado, atingindo at 30 mil jovens no final de 2003.

    Como os atores antigos j tinham sido desligados da instituio, precisava-se formar com agilidade um ou-tro elenco. Coincidentemente, o Liceu, neste mesmo ano, estava criando seu novo programa educacional denomina-do Arte, Talento e Cidadania, que mudava radicalmente a histria de 130 anos da instituio com uma nova linha de formao de jovens, voltada especificamente para as ar-tes15. Com este programa, foram colocados 300 jovens den-

    15 Infelizmente o Liceu passou por uma crise financeira em 2007 e, no incio de 2008, teve suas atividades educacionais suspensas, parali-

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    tro da instituio, selecionados entre mais de 5.000 outros jovens, de 16 a 20 anos, oriundos de escolas pblicas e de bairros mais pobres de Salvador e da rea metropolitana. Eles foram divididos entre as oficinas de iniciao artstica ao teatro, dana, ao design, fotografia e restaurao de mveis e azulejos. Alm disso, foram instalados dois gru-pos artsticos semi-profissionais de dana e teatro16.

    O Grupo de Teatro, com a parceria do Instituto Ayrton Senna, era integrado por 15 jovens vindos, algum deles, com alguma experincia em teatro, pois eram oriundos de grupos de comunidade ou organizaes no governamentais.

    A existncia deste grupo na instituio mudaria com-pletamente a histria do projeto Cuida Bem de Mim, pois, com a deciso de formar um novo elenco para o espetculo, a equipe pedaggica do programa Arte, Talento e Cidada-nia apresentou a possibilidade de o grupo de teatro consti-tuir este elenco. Isso, inicialmente, foi completamente des-cartado, pois eram jovens que ainda no tinham formao profissional. Eram considerados imaturos para fazer os pa-pis adultos da pea, entre tantas outras impossibilidades. Houve uma insistncia da equipe pedaggica, colocando as justificativas ligadas relao coerente destes jovens com a realidade da pea: porque eles ainda estudavam em escolas pblicas; pela agregao de valor educacional para o proje-to, devido ao desafio de form-los em interpretao teatral; pela possibilidade de se recriar o espetculo a partir da vi-vncia destes jovens.

    O diretor do espetculo foi colocado diante de uma difcil deciso, pois estava em sua frente o desafio de pas-sar o espetculo para um elenco inexperiente, que herdaria

    sando tambm o projeto Cuida Bem de Mim.16 Somente em 2004 seria criado o grupo de msica, e em 2005 o grupo

    de design, constituindo, assim, os 4 grupos profissionais de jovens artistas do Liceu existentes no ano de 2007.

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    toda a histria de sucesso de pblico, premiaes17 etc. Para tomar esta deciso, a equipe artstica do projeto resolveu fazer uma sequncia de testes com os jovens, observando perfis, talentos, aptides tcnicas para perceber o poten-cial do grupo em assumir esta empreitada. Depois de trs meses, houve a deciso de que seriam eles a formar o novo elenco da pea. Foi um momento de grande celebrao para a equipe e para os jovens, alm de um marco para o projeto e para a instituio que passava para as mos deles o seu maior produto social naquele momento18. A maioria destes jovens tinha o Cuida Bem de Mim como primeiro espetculo teatral que assistiu: uma referncia para o inte-resse inicial pelo teatro.

    A partir desta deciso, eles passariam mais 18 me-ses19 em formao at conseguirem ficar prontos para es-trear em 7 de agosto de 2003. Neste perodo, o grupo teve o apoio do Programa Educao pela Arte do Instituto Ayr-

    17 O espetculo foi premiado em 1996, como Destaque do Ano no Trofu Bahia Aplaude, que atualmente se chama Prmio Braskem de Tea-tro. J em 1997, ganhou o prmio da Cmera Americana do Comrcio como melhor experincia educacional do ano no Brasil.

    18 Quando anunciei que os jovens do Grupo de Teatro do Liceu fariam a nova verso do Cuida Bem de Mim anteriormente defendida igual-mente com competncia pelos atores baianos, desde sua estreia em 1996 o desafio estava lanado. Sabia que viver no era fcil para aqueles jovens e o quanto cada um arrancava de dentro de si e de fora de si o mximo, s vezes at para viver o mnimo. Mas, acreditava na capacidade deles de transformarem este mnimo no mximo. Para superar tudo (MARFUZ, 2007, p. 8).

    19 Durante estes 18 meses, todos participaram de um processo de prepa-rao artstica, desenvolvimento pessoal e social: aulas de corpo, voz, interpretao, mmica corporal dramtica, contact improvisacion, tcnica de clown, dana afro, dramaturgia, histria do teatro, anli-se do texto, improvisao, interpretao, tcnicas do espetculo, en-saios; alm de formao em contedos como educao para valores, mobilizao social, pesquisa e sistematizao, construo de projetos e estrutura escolar.

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    ton Senna, que se tornaria um parceiro fundamental do projeto (INSTITUTO..., 2004). Antes disso, eles se apre-sentaram em vrios ensaios abertos e temporadas experi-mentais em teatros de bairros, acumulando experincia. Para Luiz Marfuz (2006, p. 8), havia dois pontos funda-mentais nesta formao com os jovens atores a estrat-gia: exigir deles o mximo, nas frestas que cintilam entre a carncia e a plenitude. A meta: desenroscar-se da dor de existir e atingir o prazer de se reconhecerem como pessoa, artista e cidado.

    Na construo do espetculo com os 15 jovens do Grupo de Teatro20, a encenao ganhou novas concepes ligadas a algumas adaptaes do texto, de cenas, composi-es de personagens, figurino21, sonoplastia e cenrio. Na composio inteira, o espetculo ganhou um visual liga-do cultura jovem recente, totalmente influenciada pelos atores, e uma musicalidade que j traduzia esta gerao do incio do sculo XXI. Para o educador do Liceu Paulo Al-cntara (2006, p. 18), eles transpuseram para a cena um universo no qual transitavam, testemunhas de suas dores e dificuldades. Os adolescentes conheciam bem e de perto as agruras de uma escola [...]. Ele ainda nos esclarece que, apesar da pouca idade e da inexperincia, eles mergulha-ram em uma experincia do fazer teatral em toda sua com-pletude e rigor, apostando na arte do ator [...] (ALCNTA-RA, 2006, p. 16).

    A base dramatrgica e cnica foi mantida, mas, com a presena destes jovens, as possibilidades despertadas pe-las discusses e improvisaes de cenas se abriram para

    20 Como resultado da aposta no potencial destes jovens o projeto conse-guiu que 14 destes 15 jovens ingressassem em universidades, estando hoje, em 2008, com quatro graduados em nvel superior e os outros em finalizao de cursos.

    21 O figurino desta nova verso do espetculo foi concebido por um jo-vem do grupo, Fernando Santana, que na poca tinha 17 anos.

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    uma nova obra. A principal mudana se refere ao final, que deixou de apresentar a soluo fechada com a reconstru-o da sala de aula e passou a ser a total destruio da sala com as paredes cadas e toda a sujeira de papis e cadeiras contorcidas. H um incio de soluo com a unio de todos para ajudar o protagonista Bactria, mas a pergunta fica para a plateia quando os atores viram seus olhares no final e apontam pedaos de papis que estavam no cho, para o pblico, trazendo uma pergunta implcita: o que faremos juntos para reconstruir esta escola? Ou melhor: de quem esta tarefa?

    A riqueza da reconstruo do espetculo foi registra-da por mais de 50 horas em vdeo, fotos, protocolos22 e ins-trumentos avaliativos, o que demonstra a preocupao do projeto em manter vivos os rastros criativos do processo.

    2.5 A obra em aes educativas

    Ao longo de 12 anos, o espetculo j se solidificou como um projeto. A pea permaneceu como ponto cen-tral e disparador de todas as aes dentro do projeto.

    Estas aes foram denominadas educativas, por colocar como eixo a arte em seu processo artstico-pe-daggico. So atividades que amplificam o impacto do espetculo e transformam a apreciao da obra em um campo educacional. A escola no apenas convidada a assistir ao espetculo, mais do que isto, ela sen-sibilizada e mobilizada para participar de um projeto que tem como causa a luta por uma educao pbli-ca de qualidade. Para a educadora do Liceu, Adriana

    22 O protocolo um instrumento dirio onde um dos educadores ficava como observador da atividade e fazia o descritivo de toda a atividade desenvolvida no dia, alm de comentrios e depoimentos.

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    Amorim (2006, p. 28), urgente que recuperemos o valor do espao escolar, que devolvamos o afeto a esse pedacinho de mundo.

    Durante o perodo que vai de 6 a 10 meses, a escola escolhida para participar do projeto atendida pelas aes educativas, passando por um itinerrio que vai da chegada com a mobilizao at a construo de projetos prprios de melhoria da escola. Alguns dos resultados alcanados demonstram que a eficincia destas aes foi a diminui-o da depredao escolar; a criao de grupos teatrais ou de outras linguagens artsticas; a formao ou ativao de grmios; a criao de grupos organizados para melhoria da escola; as gincanas sociais; os festivais de arte; o aumento de atividades artsticas na metodologia dos professores; o maior rendimento escolar dos jovens participantes das ati-vidades, entre outros resultados relacionados melhoria das relaes interpessoais e, tambm, conservao do pa-trimnio escolar. Sobre este ltimo resultado, verificamos que o projeto conseguiu, no ano de 1997, diminuir em 36% os gastos com a reposio de cadeiras nas escolas atendidas (SECRETARIA..., 1998).

    Como eixo, o espetculo se encontra no meio de uma metodologia de interveno na comunidade escolar, utili-zando-se de uma tecnologia educacional com teatro. ele o divisor e o disparador, por isso h uma organizao de aes compostas pelo antes, durante e depois da pea.

    So trs etapas denominadas aes pr-pea, que acontecem dentro do ambiente escolar e tm como objetivo sensibilizar e mobilizar a escola para que ela participe inte-gralmente do projeto, alm de prepar-la para o uso poten-cializador dos contedos presentes no espetculo. As aes durante a pea so vinculadas diretamente apresentao do espetculo e executadas no teatro, tornando este momento um espao de apreciao e reflexo sobre a obra, ampliando o seu impacto junto ao pblico. Por fim, h as aes ps-pea quando a equipe retorna escola e dinamiza a reverberao

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    da pea, desdobrando-a em eixos tericos e temticos nas aulas e projetos diversos que so criados aps as solues levantadas. Com isso, para a pesquisadora do Liceu, Cibele Nunes (2006, p. 32), o projeto busca, com a arte, superar as dificuldades e oferecer possibilidades pessoais e profissio-nais aos jovens alunos e, para a escola, mais uma via para o enfrentamento de problemas por meio do dilogo.

    Para maior esclarecimento, destacamos as atividades que so feitas em cada uma destas trs etapas. No momen-to pr-pea, a primeira atividade a entrevista com a dire-o, que serve para colher informaes, fazer um diagns-tico inicial da escola e fechar acordos referentes ao projeto e ao seu cronograma. Depois, a equipe de educadores e jo-vens atores vai escola no turno em que ser atendida e faz uma bateria de atividades, comeando por um diagnsti-co do ambiente, uma pesquisa atravs de um formulrio e faz um levantamento sobre os principais problemas da escola, suas causas e solues, alm de levantar conceitos sobre a temtica da violncia. Enquanto isso, parte dos ato-res caracterizados como personagens da pea fazem inter-venes teatrais na escola, convidando de forma dinmi-ca e criativa os alunos para assistirem pea, explicando tambm como vai ser o evento no teatro. Quando chega o intervalo das aulas, os alunos so surpreendidos por uma performance teatral, no ptio da escola, mostrando uma das cenas do espetculo, adaptada para teatro de rua, e que cumpre o objetivo de estimular os alunos a gostar de teatro e a aumentar o interesse pelo espetculo.

    Ainda no mesmo turno, aps o intervalo, a equipe se divide em algumas salas para fazer um seminrio artsti-co-pedaggico com representantes estudantis (Figura 13) e outro seminrio com professores. Nestes seminrios, o foco passa a ser a escola. Atravs de uma exposio, o pro-jeto apresentado e, depois, com uma metodologia teatral, as pessoas passam por uma vivncia sobre a escola que se tem e a escola que se quer, entrando nas diversas tem-

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    ticas do espetculo. Ao longo destes anos, foi-se acrescen-tando tambm a reflexo sobre uma frase do texto: O que tenho aqui dentro da escola que ningum pode me dar l fora, dita pelo personagem Mirinha.

    Figura 13 Jovens atores realizando seminrio artstico-pedaggico com os alunos.

    Figura 14 Seminrio com os professores.

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    Dependendo do convnio firmado com a escola, fei-ta, ainda, uma ltima ao: a oficina dramtico-pedaggica com professores (Figura 14), na qual eles passam por uma intensa atividade teatral com foco na destruio e reconstru-o, seguindo-se uma verso mais simplificada das oficinas dramtico-pedaggicas feitas para criao do texto da pea.

    Numa segunda etapa, a comunidade escolar levada ao teatro para assistir pea. Ao chegar ao teatro, passa por uma recepo feita pelos prprios atores com a cami-sa do projeto, e todos recebem o programa do espetculo. Enquanto isto, um nmero de alunos que chega a 10% da plateia convidado para entrar no teatro e fazer parte da pesquisa de impacto da obra. Desta forma, constitudo um grupo de avaliao que preenche um questionrio antes e depois da apreciao da pea. Aps a entrada do pblico, um ator vai ao palco, como apresentador do dia, e faz o que chamamos de formao da plateia, que uma explanao dialogada sobre o projeto, a instituio e o prprio grupo de teatro, focando mais no esclarecimento sobre o que uma apresentao teatral e quais os comportamentos m-nimos para uma qualificada apreciao.

    Aps a explanao, o pblico tem a oportunidade de conhecer o processo de montagem e os depoimentos dos atores na exibio do vdeo-documentrio, com durao de 15 minutos, que traz, de forma emocionante, os desa-fios, conflitos e alegrias vividos no grupo. Chega-se, enfim, ao ponto central de toda esta histria que a apresentao da pea, quando, durante 1 hora e 20 minutos, o pblico conhece aquilo para que foi sensibilizado e mobilizado para assistir. uma etapa que se conclui com duas atividades si-multneas: o debate, onde acontecem reflexes emociona-das e vivas, traduzindo em palavras as sensaes e os pen-samentos experienciados durante a pea, e, paralelamente, o grupo de avaliao responde a um outro questionrio que j traz questes sobre o que ele acabou de ver.

    Na terceira e ltima etapa do projeto, so realizadas as

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    aes ps, que se caracterizam como um retorno escola para que se efetive o desdobramento do espetculo. Primeiramen-te, a equipe de jovens atores volta ao colgio e faz um oficino de teatro com todos os alunos do turno que foi atendido. As aulas so interrompidas e os alunos e professores participam desta atividade, quando ser aplicada uma metodologia tea-tral com as vrias temticas da pea, direcionando o trabalho para gerar aes concretas de melhoria da escola. Durante o oficino, os alunos so convidados a se inscrever nas oficinas de teatro que a prxima atividade, e que duram em mdia de trs a quatro meses e funcionam no contra-turno do alu-no, com periodicidade de dois dias por semana.

    As oficinas de teatro so ministradas pelos prprios jovens atores do espetculo, com orientao dos educado-res, e trabalham diretamente com os contedos do teatro ligados voz, corpo e interpretao, possibilitando uma iniciao teatral.

    A metodologia destas oficinas proporciona aos par-ticipantes que se transformem num futuro grupo teatral dentro da escola, servindo para ampliar a produo cul-tural da comunidade do entorno. Ao final destas oficinas, ocorre o festival de teatro, com apresentaes de espetcu-los de cada grupo, formado durante dois a trs dias para o pblico da escola e da comunidade. Eles expem no palco o aprendizado e efetivam a mudana ocasionada por terem sido espectadores e agora atores, cumprindo um processo artstico de apreciao, reflexo e produo esttica.

    Paralelo a tudo isto, o projeto destina aos professores da escola um curso de educao pela arte, que permite o domnio de algumas teorias de arte numa perspectiva da educao para o desenvolvimento humano e tcnicas arts-ticas para serem includas na metodologia em sala de aula23.

    23 Esta proposta segue as diretrizes do Instituto Ayrton Senna para arte e educao para o desenvolvimento humano (INSTITUTO..., 2004).

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    Tambm, simultaneamente, feito o acompanhamento pe-daggico da escola junto direo, professores e coordena-o para monitorar a repercusso do espetculo na escola e orientar aes que foram geradas nas oficinas.

    Figura 15 Mutiro de limpeza da escola na ao ps-pea.

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    Durante a estadia do projeto na escola, criado tam-bm um grupo de trabalho com alunos para executarem as aes propostas no oficino de teatro. A equipe orienta estas aes deixando espao para que os prprios alunos coordenem o processo de execuo. So aes como gin-canas sociais, eventos culturais, mutires de limpeza etc. (Figura 15).

    importante destacar que todas estas atividades so documentadas por vdeos e fotos, alm de monitoradas pedagogicamente com instrumentos avaliativos que faro parte de um documento final chamado relatrio devoluti-vo, no qual so expostos os indicadores de impacto do pro-jeto, as descries das atividades com as devidas anlises, sugestes, depoimentos, imagens etc. esta a ltima ao do projeto: enviar o relatrio para a escola, depois de uma mdia de seis a oito meses de trabalho. Junto ao relatrio, vai um kit do projeto com todos os materiais visuais utili-zados e um certificado para a escola comprovando que foi atendida pelo projeto Cuida Bem de Mim.

  • Figura 16 Cena da festa

    O afetoem cena

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    3 O afeto em cena3.1 O afeto pelas identificaes

    Para o espetculo, o afeto um dos fundamentos b-sicos que alimentam sua base ideolgica de socializao e construo coletiva, acreditando que o afeto a porta e a cidadania o ponto de chegada24.

    Quando falamos aqui do afeto, nos referimos primei-ro noo de relao interpessoal (WEIL, 2000), na qual vemos o aprendizado da convivncia baseada numa edu-cao para o desenvolvimento humano (DELORS, 2001). Nesta relao e convvio com as outras pessoas, preciso desenvolver a capacidade de se colocar no lugar do outro, respeitando suas diferenas, sabendo que interagir estar atento [...] saber falar, saber ouvir, ensinar falando, apren-der ouvindo, mantendo um compromisso com o coletivo (ANDR; COSTA, 2004, p. 78-79).

    Ao olharmos para o afeto como relao, voltamo-nos tambm para o dilogo, que, para o diretor da pea, Luiz Marfuz (1997, p. 82), uma forma de combater a violn-cia e a destrutividade, que complementado por Morais (1997, p. 74), ao nos dizer que

    O fundamento do dilogo a generosidade, to-mada em sua origem etimolgica: a capacidade de encontrar, no outro, algum que como eu faz parte do gnero humano. Algum de direitos e deveres, de alegria e sofrimentos.

    Isto se conecta ao que Szondi (2001, p. 30) esclare-ce, quando nos diz que, no drama, com sua origem dialti-ca, h o domnio absoluto do dilogo, que constitui uma

    24 Frase slogan do projeto utilizada nos materiais de divulgao do Liceu.

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    comunicao intersubjetiva. O autor chega a declarar que da possibilidade do dilogo depende a possibilidade do drama (SZONDI, 2001, p. 34). O teatro constitudo por estas relaes intersubjetivas, entre sujeitos diferentes que dialogam em cena e por isso sua completa ligao com o que aqui chamamos de afeto.

    Tambm trabalhamos com a noo de afeto trazida comumente pela psicologia, que tem sua definio enquan-to emoo e sentimento, onde os afetos abarcam muitos estados pertencentes ao prazer-desprazer e que acabam se expressando nos desejos, sonhos, fantasias, expectativas, nas palavras, nos gestos, no que fazemos ou pensamos (BOCK; TEIXEIRAS; FURTADO, 2002, p. 189-191).

    A partir destes levantamentos tericos sobre o afeto, ele ser visto de duas formas: como relao (vnculo afetivo entre o espectador e a obra, entre o jovem e a escola) e como reao (resposta emocional e sensvel do pblico obra).

    Falarmos de relaes uma redundncia para o pr-prio teatro que, por si, j uma arte das relaes humanas, como nos diz Esslin (1978, p. 24) ao esclarecer que o dra-ma a forma mais concreta na qual a arte pode recriar si-tuaes de relaes humanas [...]. O teatro como uma arte coletiva para um coletivo ao vivo tem, em sua dramaticida-de, os elementos das relaes interpessoais que permeiam as especificidades dos contextos sociais que nos cercam. O palco percebido como um lugar das relaes intersubjeti-vas, do dilogo entre sujeitos (SZONDI, 2001).

    Me d carinho, me d amor, se eu estiver fraco me carregue em seus braos. assim que um aluno de Belford Roxo - Rio de Janeiro, cidade que j esteve em primeiro lu-gar no Brasil pelos seus ndices de violncia, explica o que significa a frase Cuida Bem de Mim, escrevendo isto no questionrio antes de assistir ao espetculo. H um grito, um alerta ou apenas um simples pedido contido no ttu-lo deste espetculo, que rapidamente se comunica com os sentimentos de solidariedade das pessoas.

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    Cuida Bem de Mim uma frase-ttulo que nasceu nas oficinas de criao do texto junto com os prprios alunos de escola pblica, e que diz claramente e sem rodeios qual o desejo daquele que a pronuncia.

    Na poca em que o espetculo distribuiu bottons (brindes) para o pblico com o ttulo da pea, uma vice-diretora de escola falou, no debate: Vou pegar um bot-tom bem grande para eu botar Cuida Bem de Mim, eu t precisando que cuidem bem de mim [...]. Falou isso num momento em que estavam ali professores, alunos e funcio-nrios da escola em que ela trabalhava. Era um desabafo que fez a plateia silenciar alguns segundos e perceber o que realmente representava aquele pedido.

    O que aquele jovem de Belford Roxo escreveu aponta para esta demanda solidria, urgente e alarmante que atinge a todos ns, independente de classe, etnia etc. Este depoi-mento ganha um tom socialmente mais representativo de-vido s condies de misria e falta de oportunidade em que o jovem vive, onde muitas vezes nem a escola, nem a famlia abre espao para o cuidado e o carinho que ele pede.

    De alguma forma, este jovem anunciava previamente o final do espetculo que iria assistir, onde o personagem protagonista cai drogado, aps liderar a destruio da sala, e amparado pelos braos da diretora, num momento deci-sivo entre as ltimas cenas da pea. Uma ao que foi bem explicada por uma diretora de escola ao dizer que A pea mostrou no final como resolvermos as coisas. No momento em que cada ser humano olhar o outro como ser humano, o mundo estar diferente. Com este depoimento, chegamos a uma das palavras que melhor representa a demanda fun-damental para cada um de ns nos dias de hoje: o afeto.

    A temtica do afeto estava presente na 27 Bienal de Arte de So Paulo, em 2006, quando nos colocou uma questo como tema central: como viver juntos? uma per-gunta que est na ordem do dia. Os noticirios nos mos-tram incansavelmente as graves crises de violncia que as-

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    solam nossas capitais brasileiras; as incontrolveis guerras no Oriente Mdio; as cises religiosas, econmicas, cultu-rais etc. Estamos, assim como as chocantes e desestrutu-rantes obras da bienal, respondendo impossibilidade de vivermos juntos.

    Num momento em que os caminhos traados por objetos blicos, cadeias superlotadas e gastos exorbitantes em segurana no mais solucionam as crises de violncia, nos perguntamos sobre onde esto as solues, como vi-ver diante de tantas possibilidades pessimistas, o que falta para vivermos juntos? O que viver junto?

    Ao pensar estas questes para o ambiente escolar, Milani (2005, p. 50) prope algumas possveis respostas:

    As melhores vacinas para a violncia dentro da escola so uma boa relao educador-educando baseada em afeto, dilogo e respeito mtuo; nor-mas de convvio resultantes de discusso e con-senso entre todos os integrantes da comunidade escolar; justia e imparcialidade por parte da direo no trato com alunos e professores; par-ticipao mxima dos pais, envolvimento com a comunidade, e um ambiente de valorizao, ale-gria e flexibilidade. Isso demora mais e d mais trabalho do que as medidas repressivas, mas s assim a escola cumprir a sua misso. Se desis-tirmos dela, o que nos restar?

    So questes com as quais nos debatemos sobre uma crise maior que est por trs de uma das catstrofes da ps-modernidade, que a crise das relaes. O espetculo traz algumas reflexes sobre a reconstruo do afeto a par-tir da observao e da valorizao dos vnculos existentes numa comunidade escolar. Para o crtico teatral Clodoaldo Lobo (1996, p. 7), o texto aposta no amor como uma porta de entrada capaz de fazer o espectador compreender, pela via afetiva, tanto a proposta do espetculo quanto do pro-

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    jeto [...]. Isto bem esclarecido por um aluno que, aps o espetculo, diz: A afetividade est muita ligada aos rela-cionamentos. Sem ateno, carinho, amor e afeto ningum consegue caminhar, ou seja, aprender. Este aprender nos desloca para um dos espaos de maior aprendizado no que diz respeito s relaes humanas, que a escola. Nela se manifesta uma comunidade que espelha a sociedade em geral.

    neste ambiente que a histria da pea se desenvol-ve. Nele o afeto pesquisado em todas as relaes poss-veis entre aluno-professor-diretor. O aluno vive parte de sua vida na escola, construindo permanentemente relaes grupais. Nestes grupos, eles constroem mltiplas identifi-caes de linguagens, vestimentas, comportamentos e inte-resses. Criam uma rede de relacionamentos que determina a qualidade de sua convivncia na escola. Ano aps ano, o vnculo scio-afetivo construdo, e quando abalado por qualquer briga ou fato que provoca o seu desinteresse, isto deixa o jovem desestimulado em manter uma relao de prazer com a escola.

    um campo de relaes onde as diferenas se mani-festam em oposies individuais ou grupais de forma agres-siva, somando-se a outros fatores para tornar a escola um ambiente desestimulante. Com isso, fcil vermos que:

    Um ambiente escolar violento prejudica a capa-cidade de aprendizado, provoca falta s aulas e cancelamento de atividades, o que aumenta as chances de repetncia e/ou evaso. O fracasso escolar pode levar frustrao, agressividade e violncia (MILANI, 2005, p. 43).

    Estamos falando de situaes de vnculos que in-cluem vrios olhares sociais, culturais e educacionais, para que se entenda a diversidade de fatores. Mas hoje vemos que grave a falta de interesse pela escola, e a evaso mui-

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    tas vezes est ligada a este fracasso. Quando isto acontece, instala-se um processo de culpabilizao e de deteriorao da auto-estima, com sentimentos de inferioridade por acre-ditar que, tendo fracassado na escola, fracassar tambm na vida (MILANI, 2005, p. 45).

    O espetculo Cuida Bem de Mim retrata, em cena, o valor e o lugar da convivncia social em todas as relaes estabelecidas dentro de uma comunidade escolar, deixan-do isto em evidncia pelos dilogos e fatos que acontecem no cotidiano das pessoas na escola. Esta evidncia da con-vivncia social vlida tambm para o professor e para a direo, que, na escolha de seu ofcio de educar, lidam cla-ramente com a vida de alunos e com a sua prpria, ao tra-balhar em conjunto com outros profissionais.

    Na escola, o professor coloca muitas vezes sua misso de vida e suas paixes pela educao. Da as dores e os pra-zeres de dedicarem grande parte do tempo a viver em uma comunidade escolar, como podemos ver no depoimento de uma professora, a seguir:

    Eu fui aquela professora que s vezes olha pro aluno, que grossa com o aluno, que beija o alu-no, e que s vezes, precisa politizar esse aluno. Ento, na voz do professor de matemtica, eu me achei; na voz da professora de portugus, eu me achei. Chorei porque eu tenho pena [emociona-da] com o que t acontecendo hoje no Colgio. E eu sou uma das professoras que t assim igual professora de literatura, pedindo pra sair. Por qu? Porque se perdeu o limite das coisas? Os alunos esto perdendo os limites. Esto que-brando os mveis, esto desrespeitando os fun-cionrios, do professor ao colega, ao vice [...]; desse jeito, gente, vocs vo perder professor por professor.

    Neste depoimento, podemos ver a desistncia, pois

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    o personagem a que ela se refere pede para sair, mas os alunos solicitam que ela (a professora) fique, o que acaba ocorrendo. uma fala que retrata um estado de desinte-resse pela escola e, ao mesmo tempo, um pedido para que as coisas sejam de outro jeito. Revela para todos que no aguenta o que est acontecendo, mas tambm afirma a im-portncia de seu lugar de professora.

    Pela emoo que se instala no momento em que fala, percebemos tambm que uma constatao reveladora para sua vida e que ali, a professora na plateia abriu seu corao para que todos os alunos a ouam como tambm ouviram a professora da pea.

    Desta forma, o espetculo escolhe retratar a crise das relaes dentro de uma escola pblica com todos os papis definidos e facilmente reconhecidos pelo pblico, mesmo aqueles que no estudam mais, assistem e veem que, em algum momento de sua vida, passaram pela escola e sabem do que a pea fala. Quando a pea trata das relaes, coloca em foco cada pessoa e sua forma de conviver com o outro. Por isso, pela escolha desta temtica central, ela j estabe-lece um vnculo de entendimento com o pblico, que, na sua maioria, faz parte do mesmo tipo de ambiente repre-sentado. A partir da pea, constri-se uma oportunidade para aprender a conviver, como verificamos no dado do questionrio ps-pea sobre o que mais se aprendeu com o espetculo; 80% das respostas dos jovens foram catego-rizadas dentro da competncia social, demonstrando como a questo do relacionamento est por trs das diversas vio-lncias (LICEU..., 2005).

    Na viso de Clodoaldo Lobo (1996, p. 5), um dos grandes mritos de Cuida Bem de Mim no reduzir-se em maniquesmos: vai alm da proposta ecolgica/antidepre-dadora inicial, mostrando a importncia do incremento da educao e da educao pblica no pas, e apontando as feridas sociais.

    A escola um ambiente que esconde, por trs das

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    violncias, toda a demanda afetiva que move a qualidade das relaes. Uma demanda que a plateia acaba expondo a partir do momento em que assiste ao espetculo e toma conscincia do quanto difcil viver junto, apontando possveis caminhos para que isto acontea de forma mais consistente. No depoimento a seguir, a jovem vai alm da reflexo e pede desculpa publicamente a uma colega, re-vivendo o que o personagem aluna fez com a professora em cena:

    Eu gostaria de falar assim, porque muitas pes-soas acham e, falam que uma pea de teatro, como essa que vocs apresentaram, pode at no mudar nada. Mas eu gostaria de dizer que no verdade, muda. Hoje, quando eu me sen-tei aqui pra assistir essa pea, infelizmente, uma aluna de outro colgio teve uma discusso comigo. E depois que eu vi essa pea, eu vi que isso realmente no necessrio. Cuida Bem de Mim mostra que a violncia no necessria. Eu gostaria at de pedir desculpa a ela [bus-ca a colega na platia], se eu fiz alguma coisa a ela. E gostaria, verdadeiramente, de agradecer a vocs por ter me proporcionado essa experi-ncia maravilhosa que foi assistir o Cuida Bem de Mim.

    Esta cena, durante o debate, mostra o quanto o te-atro tem a fora de mover as pessoas para uma tomada de atitude. No caso exposto, a aluna, aps assistir pea, pede desculpa por um fato ocorrido anteriormente. Fica clara a demonstrao de atitude provocada aps a pea e um conflito sendo explicitado e j iniciando sua resoluo. uma predisposio e abertura desta jovem para revelar sua natureza afetiva atravs do respeito ao outro numa atitude aberta ao pblico e com a disposio de pedir des-culpa. Sobre a relao entre os alunos (LICEU..., 2005),

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    verificou-se que, antes da apresentao, 35% dos jovens colocam no questionrio que tm um bom relacionamento com os colegas e depois do espetculo, 51% optam por me-lhorar este relacionamento.

    Convm afirmarmos que o teatro pode mudar e no mesmo momento agir ainda num estado de tenso e que o espetculo o incio de uma transformao social neces-sria e no um momento de equilbrio e repouso, como assinala Boal (2003, p. 19). Para Ken Wilber (1997, p. 121), a obra entra suavemente pelos seus poros, e ainda assim, de algum modo, voc se modificou, talvez um pouquinho s, talvez bastante, mas voc se modificou.

    Esta aluna representa uma comunidade escolar (Fi-gura 17) que expe a falta de afeto nas relaes e como isso pode ser a raiz da excessiva destruio. Antes de de-terminar o foco na diminuio dos ndices de violncia na escola, necessria uma renovao no vnculo das pesso-

    Figura 17 Aluna falando no debate.

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    as com este ambiente fsico e humano que guarda grande parte de nossas experincias de vida. Sobre este assunto, a educadora do projeto, Adelice Souza (2006, p. 44), ainda nos diz:

    J ouvimos pedidos de desculpas emocionadas de alunos para professores e vice-versa, pois ali, naquele instante e que o projeto deseja que o instante perdure o resgate e a comunho do sagrado se fazendo presente na escola: um ser quer ensinar ao outro aquilo que sabe, aquilo que aprendeu e que tambm o sentido maior da sua existncia, da sua arte, do seu ofcio [...]. O teatro, ento, s vem reacender a chama, mos-trar caminhos possveis, abrir as estradas e os seus desvios.

    A questo das identificaes neste espetculo ponto chave para um mergulho mais claro na reao do pblico. Para isso, foram construdos quatro diagramas que sinte-tizam uma anlise do espetculo em seus aspectos ligados ao seu dilogo com a cena, alm de deixar mais claro que a apresentao um evento complexo, artstica e pedagogi-camente falando, para as escolas.

    Foram diagramas pensados para as caractersticas especficas que deveria ter este espetculo e que possibi-litassem determinar alguns elementos temticos que res-pondessem a sua recepo junto ao pblico. O primeiro o diagrama do Caminho Dramtico do Pblico, que retrata uma correlao entre a curva dramtica da pea e a identi-ficao do pblico com os diversos momentos da histria; o segundo, Mltiplas Identificaes, mostra as diversas relaes entre pblico, ator e personagem; o terceiro, O Efeito da Projeo, expe o palco como um espao que espelha, gerando reflexo; e o quarto, Do Pblico para o Pblico, esclarece a sequncia de participao do jovem entre produo e apreciao da pea.

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    3.2 Caminho dramtico do pblico

    Figura 18 Diagrama do Caminho Dramtico do Pblico.

    Neste diagrama (Figura 18), descrevemos o caminho dramtico da pea destacando pontos centrais que pos-sam dar uma dimenso de sua complexidade e como isso interfere na construo de uma viso mltipla da plateia. Usaremos uma diviso clssica do texto dramtico para ex-plicitar o caminho da histria e a identificao desta com o pblico.

    A diviso segue as seguintes etapas (ESSLIN, 1978): Exposio (incio da histria onde os personagens so apre-sentados para o pblico em suas categorias de simples ou complexos e com seus perfis fsicos e psicolgicos); Com-plicao (parte da histria em que se configura claramente o conflito central da pea e o n da trama comea a se es-tabelecer); Clmax (parte do enredo onde se chega ao pice do conflito entre os personagens, e as foras antagnicas

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    so expostas claramente) e, como ltima etapa, o Desfecho (parte final da pea quando se desfaz o n desenlace - e abre-se para as possveis solues do conflito).

    O grfico traado no diagrama mostra, no incio, que a pea introduz as pessoas no cotidiano de uma escola p-blica e apresenta os personagens dentro dos dois grupos principais destas histrias: comportados e bagunceiros. Leva o pblico a entrar na vida diria da sala de aula com as tpicas s