cs - v1

59
1 CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

Upload: joel-pavan

Post on 01-Apr-2016

235 views

Category:

Documents


22 download

DESCRIPTION

 

TRANSCRIPT

Page 1: CS - V1

1CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

Page 2: CS - V1

2CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

Page 3: CS - V1

3CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

CAPÍTULO I

A PRIMEIRA VIAGEM: PARTIDA.

Marechal Cândido Rondon, Paraná. Dezembro de 2006.

Meio-dia. Sol a pino no oeste paranaense. A temperatura elevada é típica da região, que por sua vez, é uma das mais quentes do estado, sobre-tudo, no verão. A estação castiga os moradores da pequena cidade do interior. Nesta época do ano a população fica menor em consequência

do período de férias, principalmente na Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. Muitos estudantes, procedentes de outros municípios, aproveitam os dias livres para visitar seus familiares. Eu estava prestes a fazer o mesmo, contudo, de uma forma não muito convencional.

No interior da residência em que moro – um apartamento alugado próximo da universidade onde estudo História – o clima é um pouco mais ameno, mas não me deixa isento aos efeitos da temperatura. A inevitável transpiração se potencializa com a movimentação rápida e imprescindível. Cada segundo é importante para co-locar meu plano em prática. Razão pela qual minha refeição foi preparada e degus-tada em questão de poucos minutos.

Não houve descanso após o almoço e a temperatura diminuiu apenas quando a porta da geladeira foi aberta. Precisava retirar a garrafa de plástico com dois litros de água congelada, ela seria fundamental para a realização do objetivo proposto. Em uma mochila coloquei a garrafa e mais meia dúzia de bananas. A alimentação não poderia ser deixada de lado e por isso a bagagem também contava com pacotes de bolacha.

Page 4: CS - V1

4CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

Havia uma última tarefa antes da saída do apartamento para enfrentar defi-nitivamente aquele sol do velho oeste: deixar um aviso sobre a atividade que se iniciava (NR: nota sobre a importância do aviso). Em um pedaço de papel anotei o itinerário da viagem à Foz do Iguaçu. A diferença é que desta vez eu voltava para casa pedalando.

Poucas pessoas tinham conhecimento do que realmente estava para acontecer. Comentei apenas com alguns amigos sobre a possibilidade de visitar – pedalando – meus pais na cidade em que eu morava antes da mudança para Marechal C. Rondon. Mas nem mesmo a amizade impediu o rechaçamento da idéia que imediatamente foi considerada absurda. Também não hesitaram em me taxar de louco. Manter a calma e não se deixar influenciar pelas criticas negativas foi o segredo para não de-sanimar. Mesmo com a falta de experiência em uma viagem de bicicleta pela estra-da, considerava importante a convicção de que aquilo não se tratava de uma loucura e tampouco mostrava ser impossível.

Tranquei a porta do apartamento e ainda no corredor do modesto prédio me deparei com a vizinha e comuniquei que estava de partida para Foz do Iguaçu na-quele exato momento. Ela, incrédula, foi a primeira pessoa a ter conhecimento que meu plano saía do campo das ideias para ser colocado em prática. Talvez nunca me esqueça da sua expressão quando soube da notícia. Um sorriso tímido esboçava a desconfiança nas minhas palavras. E a reação era compreensível, afinal 175 quilô-metros separavam as duas cidades.

Às 13h00 finalmente aconteceu a esperada saída que foi marcada por uma sé-rie de sentimentos e, sobretudo, pelo pensamento positivo de que a chegada ao destino era apenas uma questão de tempo, apesar das surpresas que certamente eu encontraria pelo caminho. Enquanto me deslocava pelas ruas da cidade em direção à rodovia (BR 467), a euforia, ainda controlada, não deixava espaço para o cérebro compreender melhor a sensação daqueles primeiros metros pedalados. Simples-mente indescritível. Estava em êxtase.

Em um primeiro momento a sensação ímpar tirou de cena a questão da tempe-ratura. Ainda continuava excessivamente quente, mas a emoção era muito maior e pouco me importava se a pele queimava e que o suor praticamente cegava ao cum-primentar meus olhos. O coração acelerava de uma forma única. E os batimentos fi-caram ainda mais alvoroçados na medida em que eu começava a deixar o município para trás. Chegar ao ponto onde tudo começou me deu a certeza de que realmente estava onde gostaria. A “loucura” na verdade tinha outro nome: liberdade.

Essa fronteira (imaginária) em questão se tratava da saída da cidade em di-

Page 5: CS - V1

5CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

reção à Foz do Iguaçu e estava localizada a sete quilômetros de distância do apar-tamento. Retornar a este lugar com aquela circunstância me fez recordar o início surpreendente dessa história.

DO FIM, UM NOVO COMEÇO. A ANTECEDÊNCIA DA PARTIDA.

Alguns meses antes de começar a viagem meu coração também se comportava de modo inesperado, todavia, por uma razão nada animadora. Na ocasião acabara de ter um relacionamento rompido. E no dia em que esse episódio aconteceu, a bici-cleta foi, literalmente, a minha salvação. Fiquei arrasado e inconformado. Enquanto um jovem apaixonado meu estado era desolador e pela primeira vez atitudes ex-tremistas passaram a ser cogitadas. Naquele momento a vida parecia ter perdido o sentido.

Para não ficar preso em casa na companhia daqueles pensamentos, peguei a bicicleta e comecei a pedalar sem rumo. Não lembro com exatidão a data do episó-dio, mas com certeza era um final de tarde nebuloso, compatível com meu estado mental. Impossível esquecer os trajes nada apropriados daquela ocasião que mar-cara o início de uma longa jornada. Calça jeans, camiseta, chinelo e um inseparável boné caracterizavam um ser “perdido” pelo munícipio. Devido às circunstâncias, minha memória seletiva apagou maiores detalhes e não sei informar, por exemplo, a real motivação de seguir, especificadamente, por aquelas ruas que me levaram à saída da cidade em direção à Foz do Iguaçu. O que posso dizer é que deste ponto em diante, tudo ficaria diferente.

Neste dia nebuloso parei de pedalar quando cheguei ao final (ou começo) da cidade, exatamente onde está instalado um grande frigorifico. Não tinha a mínima idéia de quantos quilômetros havia sido o deslocamento, apenas observei o hori-zonte. Minha visão era favorecida pelo relevo. Privilegiado pela altitude admirava aquela mescla de montanhas arborizadas e hectares destinados ao cultivo de cultu-ras agrícolas intensivas, muito comum na região.

Enquanto minha memória funcionar ativamente, recordarei daquela paisagem intrigante. Ela não surpreendia pelo que apresentava, mas sim por aquilo que meus olhos, ainda marejados, não conseguiam visualizar. Fiquei pensativo enquanto, in-voluntariamente, o foco se tornava outro. A curiosidade me instigava a descobrir o que tinha além do horizonte. A reação foi como um despertar. Incrível o poder e

Page 6: CS - V1

6CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

impacto proporcionados pelo momento. Minha tristeza foi transformada em espe-rança. E o que norteava meus pensamentos era a possibilidade de conhecer aquele território de bicicleta. Possível ou não, sei que voltei para casa com a perspectiva de que nem tudo estava perdido.

Passado o período mais tenebroso, os dias seguintes ao término do relaciona-mento foram amenizados pela idéia que permanecia na cabeça; conhecer aquele horizonte através do deslocamento realizado por meio da bicicleta. Não tinha ab-solutamente conhecimento nenhum sobre a existência de outros praticantes dessa atividade e muito menos que havia uma denominação especifica para ela. Mas os ventos começaram a soprar em meu favor.

Carlos Henrique, um amigo do trabalho (NR sobre o serviço), praticava uma modalidade do ciclismo conhecida como BMX. Mesmo com sua pouca idade, ele já tinha experiência no assunto, inclusive, no que diz respeito à mecânica e toda a par-te funcional. Foi com sua pequena bicicleta que concluiu uma viagem para Toledo, cidade há quarenta quilômetros de distância de Marechal.

A viagem mencionada pelo amigo Carlos despertou ainda mais meu interesse em fazer algo parecido. Como imaginava, não era impossível viajar com um simples instrumento de locomoção. Não hesitei em questioná-lo sobre as possibilidades de pedalar à Foz do Iguaçu. A simplicidade da minha bicicleta (com equipamento todo genérico), daquelas que se compra em supermercados ou loja de móveis, exigia mo-dificações. A recomendação se baseava na troca de algumas peças para começar os primeiros treinos.

Com a idéia cada vez mais fortalecida, procurei trocar as peças da bicicleta na primeira oportunidade. Realizei apenas a substituição dos aros, raios, manetes e o pedivela. Foram repostos com modelos básicos de marcas mais conhecidas, nada muito além do que meu bolso (de universitário pobre) poderia pagar.

A intenção na substituição das peças era simples e objetiva; colocar um equi-pamento resistente o suficiente para aguentar a viagem à Foz. Garantia que foi cer-tificada pelos funcionários da bicicletaria após a reposição. Exatamente o que eu necessitava. Não gostaria de ficar pelo caminho logo na estreia.

Com a bicicleta renovada comecei a explorar um pouco melhor aquela rodovia na saída da cidade. Conforme orientação do Carlos deveria treinar antes de colocar a idéia em prática. Assim, iniciei essa rápida fase de preparação física e também de adaptação à bicicleta. Precisava confiar nos equipamentos que estavam à disposi-ção e, para isso, nada melhor do que coloca-los à prova.

Page 7: CS - V1

7CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

Treinamento. Passei novamente pela região do frigorifico, mas não sem antes deixar de apreciar, mais uma vez, o horizonte que estava prestes a começar a ser desvendado. Na primeira vez avancei poucos quilômetros e cheguei apenas ao dis-trito de Curvado. Cinco quilômetros (após a indústria de aves) podem parecer in-significantes, mas o trecho curto estabeleceu meu primeiro contato com a rodovia e ao que a ela estava relacionado.

A rodovia BR 467 em direção à Curvado certamente não era das mais recomen-dadas para se iniciar um treinamento e logo notei que precisaria de atenção máxi-ma pela limitação do acostamento, a sinuosidade e o sobe e desce da estrada, assim como o tráfego intenso de veículos, incluindo aqueles de carga. Se por um lado os perigos estavam presentes, por outro, eu também procurava pedalar conforme as leis de trânsito (NR sobre as leis básicas). Tinha que fazer a minha parte para evitar qualquer tragédia.

Na medida do possível a primeira “aula prática” foi tranquila e suficiente para me estimular a voltar. Na segunda pedalada de treinamento ousei ir mais longe e avancei para além de Curvado. Já na terceira vez o deslocamento completava trinta quilômetros entre ida e volta. Na rodovia meu ponto máximo era o trevo (PR 495) no distrito de Iguiporã. Para chegar a esse local o relevo colaborava, mas no retorno à Marechal os aclives predominavam e me desafiavam. Como iniciante, encontrei um pouco de dificuldade, mas somente no que se refere ao ritmo empregado para completar o trajeto. Na condição de principiante também não carregava nenhuma ferramenta. Pneu furado, por exemplo, resultaria em voltar a pé para casa. Por sorte isso não chegou a ocorrer. Tudo contribuía para eu continuar empolgado.

Realizei esse trajeto de 30 quilômetros mais três ou quatro vezes. Meu desem-penho melhorava a cada novo treinamento e o corpo começava a se adaptar a essa distância. Ansioso para viajar não demorei em achar que esse curso intensivo era o suficiente para encarar o desafio seis vezes maior. Ainda mais que a bicicleta tinha se comportado como o esperado. Chegara a hora de partir.

A PRIMEIRA VIAGEM: ALÉM DA FRONTEIRA IMAGINÁRIA.

Dezembro de 2006. Retornar ao local onde tudo começou, conforme mencio-nei, significava que eu estava onde realmente gostaria. E para, além disso, também mostrava o resultado de um planejamento, ainda que mínimo, para a execução do

Page 8: CS - V1

8CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

projeto. A falta de experiência não foi motivo para deixar de pensar no básico exigi-do pela atividade. Consequentemente, essa questão não se limitava apenas na mu-dança de algumas peças da bicicleta ou ao condicionamento físico e a preparação psicológica. Precisava saber por onde seguir.

Quando cheguei à fronteira imaginária, sabia o que me aguardava somente até o trevo de Iguiporã, onde o trecho final da BR 467 cede espaço à rodovia estadual PR 495. Deste ponto em diante meu conhecimento em relação à estrada se baseava somente na experiência obtida através da janela do ônibus que faz a rota Marechal x Foz. Havia percorrido o trajeto algumas vezes. Mas quando se têm alguém no con-trole (neste caso, o motorista) geralmente não nos preocupamos em ter maiores informações sobre onde estamos e o que fazemos para nos localizar. Para suprir essa carência fui obrigado a conhecer o universo cartográfico antes da viagem.

Mapas. A princípio parece um mal necessário, mas com paciência é possível aprender muito com eles. Meu interesse não tinha segredo, simplesmente ter uma noção básica da minha localização e realizar um traçado do trajeto que estava pres-tes a ser pedalado. Com auxilio da internet (NR: falar sobre a tecnologia do segmen-to em 2006) encontrei o mapa do Estado do Paraná e comecei a esmiuçá-lo. Para Foz do Iguaçu não existem muitas alternativas e por esse motivo não achei a tarefa complicada. O único trabalho foi apenas anotar o nome dos municípios e distritos presentes no caminho. Diferente do que imaginava, também não houve problema para descobrir a distância entre eles, pois a quilometragem entre as cidades estava marcada no próprio mapa.

Ao analisar o mapa cheguei a conclusão de que este caminho para Foz do Igua-çu era aquele mesmo percorrido pelo ônibus cujo trajeto é conhecido como Costa Oeste. A denominação está relacionada à localização da região às margens do Lago de Itaipu, formado a partir da construção da Hidrelétrica de Itaipu (NR: sobre a usina) na cidade de Foz do Iguaçu. A extensão do lago compreende boa parte dos municípios do itinerário definido para a viagem. Na prática isso significava a pas-sagem pelos balneários presentes em várias destas cidades. Trata-se das prainhas artificiais (bastante conhecidas) criadas pela existência do lago.

A primeira prainha encontrada naquela tarde ensolarada de verão foi na cidade de Entre Rios do Oeste. O local movimentado somado à minha timidez impediu uma excelente oportunidade de parar e desfrutar de todo aquele ambiente. Continuei em frente. A essa altura nem mesmo o fator psicológico, ainda envolvido por toda a situação, conseguiu amenizar os efeitos dos raios solares. A temperatura aumenta-va a cada quilômetro e mostrava meu primeiro equívoco; horário de partida. Come-cei a primeira viagem em um dos horários menos recomendados à exposição ao sol.

Page 9: CS - V1

9CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

Como consequência, precisei realizar inúmeras paradas para hidratar, descansar e obter informações sobre o trajeto.

A hidratação frequente logo evidenciou mais uma estratégia sem muito êxito. A água congelada que até então pesava na mochila colocada nas costas não durou o tempo esperado, no entanto, a ocorrência que poderia desestabilizar física e psi-cologicamente, acabou por mostrar uma realidade que é mais bem percebida por aqueles dispostos a viajar de bicicleta: a hospitalidade das pessoas encontradas pelo caminho.

Lembro perfeitamente da gentileza de uma senhora que residia às margens da rodovia. Eu precisava – com certa urgência – reabastecer minha garrafa de água e por isso não pensei duas vezes em parar e solicitar o líquido sagrado. No fundo da residência a mulher com dificuldade para andar, caminhou em minha direção para verificar meu chamado. Quando ela soube do que se tratava não hesitou em ajudar. Para além de completar o recipiente, me trouxe também um copo com água. Ambos acrescentados com gelo. Naquele momento eu começava a descobrir a hospitalida-de que ainda existe nas pessoas. Um comportamento simples, mas que se apresen-tava extremamente valioso. Pequenas e importantes atitudes que, infelizmente, se ausentam do nosso cotidiano.

Ao receber água eu ganhava muito mais do que uma simples e necessária hidra-tação. Eu tinha a certeza de que não estava sozinho. Não conhecia nenhuma pessoa daquele trajeto, mas isso não me distanciava delas, muito pelo contrário. E neste sentido notei a aproximação quase mágica causada pelo simples fato de viajar com a bicicleta. Em um primeiro contato as pessoas pareciam não acreditar na história apresentada, no entanto, a partir do momento que percebiam o propósito da ação e a simplicidade do proponente, a reação transformava e a confiança era depositada e a ajuda necessária oferecida. Essa inteiração passou a ser valorizada a cada parada.

A questão da receptividade também ajudou quando precisei de informações. Na maior parte das vezes, as perguntas de caráter preventivo eram realizadas ape-nas para saber se eu continuava na direção correta. Interessante que cada resposta positiva estava acompanhada de uma réplica para saber mais detalhes sobre aquela façanha de pedalar longas distâncias. Se a minha curiosidade era saber o que exis-tia além do horizonte, essas pessoas queriam desmistificar o que tinha na minha cabeça para fazer aquilo. Para muitas delas a minha “normalidade” merecia uma avaliação urgente.

Não me sentia diferente daquelas pessoas, mas a nossa realidade está estrutu-rada sobre padrões muito bem definidos onde praticamente tudo aquilo que foge à

Page 10: CS - V1

10CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

regra acaba por se destacar para o bem ou mal, reforçando aquela velha dicotomia. Minha pretensão estava longe de me tornar uma atração turística ambulante, muito pelo contrário, queria somente chegar à Foz do Iguaçu de bicicleta, contudo, pelo caminho recebia os mais diversos adjetivos, positivos e negativos. O discernimento geralmente caberá à sua sabedoria.

Reflexão. Talvez seja praticamente impossível não colocar o cérebro para fun-cionar – além do normal – durante uma viagem de bicicleta. Muitas vezes o quebra-cabeça daquilo que estava à minha volta era montado no decorrer dos quilômetros, entretanto, em determinadas situações ele se completou somente com uma refle-xão bem posterior. Uma delas aconteceu em razão de um fato que não é isolado: a nossa incrível capacidade de não ficarmos satisfeitos. “Pequeno” detalhe que faz muita diferença seja na estrada ou na vida. O resultado pode ser desastroso ou não. Isso vai depender de como você administrará os acontecimentos, principalmente aqueles que não estavam planejados.

Nas várias paradas para solicitar informações, praticamente não bastava saber se aquele era realmente o caminho que deveria ser seguido, segundo constava no rabisco feito com o nome dos municípios e distritos. Para a minha infelicidade eu também buscava, por exemplo, verificar se à frente havia subida. A resposta quase sempre era positiva, desanimadora e insuficiente para me deixar calado e continuar pedalando. Procurava ainda ter conhecimento se o aclive era íngreme, extenso, com acostamento e tudo o que me viesse à cabeça. Meu cérebro, sem dúvida, gostaria de receber uma mensagem positiva para digeri-la e imediatamente transferi-la ao cor-po já cansado. Mas a informação oposta não contribuía. Resumo: esteja preparado para qualquer resposta antes de realizar suas perguntas.

Independente do relevo e suas subidas eu tinha que chegar pedalando na casa da família, conforme estabelecido. Com muito custo os municípios e distritos fica-vam para trás, mas com o desenrolar da quilometragem as horas também avan-çavam em velocidade superior e aumentavam minha preocupação. Durante as paradas de descanso realizava uma tarefa a qual não estava acostumado: contas. Verificava a distância percorrida para calcular o tempo aproximado que ainda res-tava de viagem, uma vez que me baseava no período decorrido. A triste conclusão era de que dificilmente me encontraria no destino ao final do dia. Mais uma vez percebia o quanto tinha sido errada aquela minha saída após o almoço.

Eu passava a compreender a dura realidade de que muito dificilmente eu man-teria o ritmo inicial. Se a princípio eu tinha pedalado 40 quilômetros em 2 horas, infelizmente não poderia fazer o mesmo com a distância restante. A considerar a canseira acumulada, esse tempo poderia praticamente dobrar, sem contar o perío-

Page 11: CS - V1

11CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

do das frequentes paradas.

Na estrada não adianta se lamentar. Seguramente você encontrará alguém para desabafar e essa pessoa muito provavelmente ajudará, seja ao escutar com atenção suas reclamações – relacionadas ao clima e as subidas – ou ao colaborar com uma palavra amiga e um copo de água para auxilia-lo a continuar em frente, mas ela não poderá pedalar por você. Isso é exclusivamente de sua responsabilidade. E para a minha felicidade eu estava ciente disso.

Tentação. No município de Santa Helena novamente me deparei com um balne-ário ao lado da estrada e apesar do ambiente mais do que propicio para descansar, retomar o fôlego e refrescar o corpo nas águas do lago, mais uma vez continuei em frente porque o local estava muito cheio. Sua lotação se explicava pelo lugar convi-dativo para passar o final de semana. No entanto, o que mais colaborou para a se-quencia da viagem foi justamente a questão do horário. Neste momento eu comple-tava praticamente cinquenta quilômetros e mesmo com o corpo relativamente bem eu não poderia “perder” tempo para chegar ao destino em um horário adequado.

Durante os cinquenta quilômetros após Santa Helena a situação não mudou muito. O que me impressionava era a constatação da enorme área destinada à plan-tação de culturas intensivas como soja e milho. O Paraná está entre os maiores pro-dutos de grãos do país e a região oeste é onde esse tipo de agricultura está presente em grande escala e por todos os lados. É interessante visualizar ao vivo e a cores os aprendizados adquiridos na escola, mas ao mesmo tempo, a reflexão pode nos levar a conclusões estarrecedoras. Levantava indagações sobre a agressão (desmatamen-to) realizada em nome do “desenvolvimento”.

A percepção diferenciada que a bicicleta proporciona é mais uma das vanta-gens que a minha experiência permitia sentir. Para além do tipo de produção agrí-cola mencionado, as culturas de suíno e aves também são extremamente fortes na região. Com facilidade identificava propriedades rurais voltadas a essas criações. O cheiro inconfundível e nada agradável de dejetos dos porcos, por exemplo, se alas-trava por quilômetros pela estrada, que por sua vez, é onde trafegam os veículos que transportam esses animais (NR sobre a compreensão de ser para eles, o caminho da morte). Não raramente encontrava caminhões abarrotados. Ambos deixavam o odor inesquecível no ar. O deslocamento com a bicicleta permite justamente isso, observar e sentir as coisas como elas verdadeiramente são, ainda que em determi-nadas realidades a experiência não seja das melhores.

Mais assustador do que a idéia de permanecer na estrada noite adentro em ra-zão do horário era o trajeto entre Missal e São Miguel do Iguaçu. Foi muito sofrido.

Page 12: CS - V1

12CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

A estrada que já apresentava subidas resolveu colocar a “brincadeira” em um nível mais elevado e repentinamente eu me encontrava em plena montanha-russa. Um sobe e desce interminável levava minhas últimas energias. Em uma das pausas para descansar perguntei sobre a distância para chegar à São Miguel do Iguaçu e a única resposta que o rapaz soube dar foi: ainda está muito longe. Que animador! Não que-ria mais permanecer naquele parque de diversões.

Se você pretende se aventurar (NR sobre o termo aventura) pedalando pelas estradas, comece a olhar a subida por outro ângulo, se enxerga-la apenas como um obstáculo instransponível, certamente seu aspecto psicológico vai afetar o desen-volvimento físico do seu corpo. Mas vai dizer isso para alguém em sua primeira viagem. Na prática, as coisas são mais sofridas.

Apesar do sofrimento de uma viagem é possível aproveita-la. O deslocamen-to mais lento favorece um tempo maior para observar aquilo que se encontra ao redor, todavia, também permite refletir sobre o contexto desta realidade. No meu caso, pensava, entre inúmeras coisas, sobre o longo processo em torno daquelas plantações e criações. Desde seu plantio até a chegada final às mesas brasileiras ou estrangeiras, uma vez que boa parte dos alimentos é exportada a países europeus e asiáticos. Existe todo um sistema que dificilmente conhecemos e consequentemen-te não valorizamos. Reflexões que são despertadas a partir do momento em que você se encontra, de alguma maneira, inserido naquela realidade. É uma inteiração diferente de todas as outras.

Um desses momentos pensativos estava estritamente relacionado ao que eu havia percebido durante aquela tarde. Na estrada muitas pessoas tem um real in-teresse em ajudar a esclarecer suas dúvidas. E as minhas, em sua maioria, estavam ligadas à distância. Na ocasião eu não tinha nenhum tipo de velocímetro, apenas a anotação da distância entre um ponto A e B, ou seja, sem conhecimento da quilo-metragem percorrida entre eles. Dessa maneira, nada melhor do que perguntar aos moradores locais que, suspostamente, saberiam a resposta na ponta da língua. E re-almente não pensavam duas vezes antes de proferir – com a boca cheia – a resposta. Acontece que comecei a desconfiar delas quando passaram a ser desencontradas. Por isso, apliquei um teste: perguntas idênticas para pessoas de um mesmo local. O resultado: uma série de refutações. Mais uma lição, não acredite cegamente nas informações concedidas na estrada.

Claro que as pessoas que passavam as informações equivocadas não faziam isso propositalmente (pelo menos, espero). Acontece que muitas delas não tinham motivo para saber, com precisão, aquele dado especifico, afinal, seu deslocamento diário não exige obrigatoriamente esse conhecimento, explico: Se uma pessoa utili-za ônibus entre os pontos A e B, o que importa a ela é o tempo necessário para com-pletar o trajeto. Seu papel coadjuvante de passageiro em qualquer outro veículo

Page 13: CS - V1

13CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

motorizado também exime-o dessa responsabilidade. Por pensar em tais hipóteses não alimentei nenhum tipo de ódio. Afinal estava com tempo para refletir e evitar julgamentos precipitados. Algo extremamente difícil em nossa sociedade dita mo-derna.

Por não ter a informação correta sobre a distância do ponto em que me encon-trava até a cidade de São Miguel do Iguaçu, restou-me pedalar com a frase da pessoa que informou: ainda está muito longe. Naquele instante o pôr-do-sol, apesar de sua beleza, passou despercebido, uma vez que meu pensamento voltava-se ao fato de que eu não tinha a mínima idéia do que estava para acontecer, pois se a distância para a cidade em questão era considerada, ainda maior era a quilometragem à Foz do Iguaçu, localizada 45 km após São Miguel do Iguaçu. Quando eu chegaria ao des-tino final se tornou uma grande incógnita.

O temor em continuar na estrada de noite tinha um motivo especial, a falta de luz para visualizar o caminho. Não estava equipado com nenhum tipo de farol ou lanterna. E somente mais tarde fui me dar conta de que a falta de uma estra-tégia mais bem elaborada poderia ter me custado muito caro, afinal, eu pedalava por um trecho localizado entre vários balneários e que pressupõe-se um aumento no tráfego de veículos, sobretudo, no final de semana. Não seria difícil encontrar condutores possivelmente alterados por causa da ingestão do álcool, largamente consumido nas prainhas. Para melhorar minha situação, a rodovia não apresentava acostamento, principalmente depois do Balneário Ipiranga. E agora, José?

Pedalar cansado é, sem dúvida, uma das piores sensações que pode existir du-rante uma atividade deste porte. E naquele momento eu não sei como conseguia avançar. A dificuldade se tornava maior a cada metro. Mas mediante a todo aquele contexto em que eu estava inserido, a tensão em manter o foco na estrada para evitar qualquer tipo de acidente amenizou o cansaço. A escuridão apagou pratica-mente toda a minha visão na estrada. E sem o acostamento, meu referencial passou a ser a faixa lateral que ficava mais nítida apenas na passagem de algum veículo com o farol ligado. Para variar, as subidas continuavam (NR sobre subidas de noite). No final de uma delas percebi que me encontrava ao lado de valetas que ofereciam risco real à minha integridade física. Eu precisava a todo custo manter a bicicleta sobre a faixa lateral da estrada.

Pode não parecer real, mas mesmo na escuridão é possível ver o horizonte. Pelo menos avistei, ainda que a certa distância, as luzes das casas de São Miguel do Igua-çu. Por vezes desapareceram do meu campo de visão em razão das montanhas que insistiam em me fazer companhia. Saber que o fim da PR 495 estava próximo me animava. A BR 277 – duplicada, com acostamento amplo e bem sinalizada – tinha a estrutura necessária para um deslocamento mais tranquilo. Naquele momento pa-

Page 14: CS - V1

14CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

recia o paraíso a ser alcançado, mas antes eu deveria chegar à São Miguel do Iguaçu.

A chegada à São Miguel do Iguaçu aconteceu somente por volta das 22 horas. Eu estava extremamente cansado e com muita fome. Já não havia mais energia e por isso ela precisava ser reposta com urgência. Estacionei a bicicleta em uma milagro-sa padaria que ainda se encontrava aberta. Não sei o que a funcionária pensou ao ver aquele sujeito cansado e faminto. Sua expressão passou despercebida naquele momento. Eu apenas procurava algo para saciar parte da minha fome. Um salgado acompanhado de um refrigerante foi a solução momentânea. Sentei na cadeira e comecei a conversar com a atendente que ao saber da minha peripécia sugeriu, categoricamente, para não continuar pela BR naquele horário. Mesmo à beira da exaustão estava disposto a continuar, mas após a opinião firme da mulher pensei no que poderia ser feito.

Eu transportava pouco dinheiro e o mesmo seria apenas para um eventual caso de emergência e este me parecia o caso. A funcionária da padaria me recomendou um hotel no centro da cidade que não custava caro. Fiquei a pensar enquanto o cor-po esfriava e a canseira se multiplicava. Sem chance de continuar à Foz. Agradeci o conselho e fui à procura da hospedagem.

No hotel indicado a diária mais econômica custava dez reais em um quarto muito pequeno que, sem exagero, mal comportava uma cama. Tudo bem. Eu preci-sava apenas dormir para seguir na manhã seguinte. Meu estado físico praticamente me obrigou a deitar e recusar uma visita ao banheiro externo para um merecido banho. Sim, a sujeira da estrada misturada com suor não me deixava em um estado muito agradável, mas a prioridade era descansar o corpo, no mínimo, as pernas.

O pequeno ventilador no dormitório refrescou razoavelmente o ambiente. Como não costumo ter problema para dormir, a noite foi mais do que tranquila, neste caso o sono aliado à canseira resultou na combinação perfeita para restabele-cer as energias, pelo menos até voltar à estrada.

A diária no hotel incluía o café da manha, contudo, ele começaria a ser servido a partir das 08 horas da manhã. Horário tardio para quem pretendia chegar à Foz do Iguaçu o quanto antes. Evidente que eu estava com fome, o jantar da noite anterior ficou limitado aos salgados disponíveis na padaria. Desse modo não restou alterna-tiva a não ser devorar as últimas bolachas que ainda estavam na bagagem e partir para o trajeto final.

A saída do hotel ocorreu por volta das 7 horas. A refeição matinal à base de bolacha conseguiu enganar o estômago, todavia, meu corpo não fora iludido com as subidas

Page 15: CS - V1

15CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

anunciadas na saída da cidade. Eu estava dolorido e me sentia extremamente pesado para pedalar. Faltavam apenas 45 quilômetros para concluir a façanha, mas essa distân-cia não foi completada com facilidade.

O caminho entre São Miguel do Iguaçu e Foz do Iguaçu foi realizado pela BR 277, uma importante rodovia federal que não somente atravessa o Estado de Oeste à Leste, como acaba por fazer parte da ligação com o país vizinho, Paraguai. Naquele instante seria o caminho que me levaria de volta para a casa.

As pernas estavam cansadas, assim como o corpo todo, mas incrivelmente ainda conseguia pedalar. Mas o ritmo não era o mesmo e o psicológico ainda não acostumado com as subidas não ajudava o corpo a compreender aquilo que era o maior dos obs-táculos. Avistar um aclive era motivo para desanimar. E para ser sincero, avistava-se dezenas deles. A rodovia também é repleta de sobe e desce. Mas com muito esforço a distância ficou menor e inversamente proporcional ao meu estado emocional. Quase ao meio dia estava finalmente na famosa Terra das Cataratas. Restavam poucos quilôme-tros até chegar em casa.

Surpresa. Essa é a palavra de como todos me receberam em casa, estavam atôni-tos com a minha visita, ninguém esperava. Não comentei nada sobre a viagem, muito menos que seria de bicicleta. Por conhecer o jeito protetor do meu pai, sabia que não gostaria da idéia e muito menos aprovaria a aventura. Ele não mediria esforços para eu não realizar o trajeto sobre duas rodas. Não esqueço que perguntaram se eu tinha vindo de caminhão com a bicicleta na carroceria. Era realmente inacreditável. Sentado na área de casa, contava sobre a viagem e para a minha surpresa não fui repreendido, mas meu pai disse que se soubesse do pernoite em São Miguel teria me buscado. Ainda bem que ninguém da família tinha conhecimento, teria deixado todos preocupados.

A sensação era de vitória, conquista, superação e, sobretudo, que estamos vivos, em-bora naquele exato momento, quase morto de canseira. Fiquei três dias sem andar direito, estava tudo travado. Não era para menos, ter pedalado no máximo três vezes a distância de trinta quilômetros como treino e depois pedalar 175 km em menos de 24 horas. Mas a experiência existe para nos aperfeiçoarmos a cada dia. De algum modo, sentia que outros horizontes me aguardavam. Essa primeira aventura foi a porta de entrada para um estilo de vida que levaria comigo por muito tempo.

As pessoas, sim, elas continuarão a te chamar de louco, mas também vão lhe admirar, você acaba por inspirar muita gente, seja pela coragem, determinação ou pelo simples fato de não ser comum ver um ciclista viajando. Contar a história da viagem, as dificulda-des, belezas naturais do trajeto, os perigos da estrada, a hospitalidade do povo e todo o resto, talvez seja uma parte da aventura que não se acaba quando chega ao destino.

Page 16: CS - V1

16CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

Page 17: CS - V1

17CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

Capítulo II

Cicloturismo: muito mais do que uma modalidade.

A conclusão da primeira viagem no final de 2006 resultou em algo muito maior do que eu poderia imaginar. A repercussão foi enorme. Ao mesmo tempo em que as pessoas pareciam não acreditar elas também me para-benizavam pela realização que passou a ser considerada extraordinária.

Ser reconhecido não me causava espanto e muito menos algum tipo de constrangi-mento, pelo contrário, ficava feliz em descobrir algo que realmente despertava não somente o meu interesse, mas também daqueles que passavam a ter conhecimento do que é possível fazer com uma simples bicicleta.

Quando pessoas que não falavam comigo começaram a se aproximar para sa-ber mais a respeito deste acontecimento inusitado aos olhos da sociedade, imedia-tamente suspeitei que estava mesmo envolvido em uma atividade muito especial. A princípio a notícia se espalhou por toda a família, incluindo parentes do estado de São Paulo que exaltaram ainda mais a façanha. O mesmo ocorreu entre os amigos. Mas no momento em que o pessoal da universidade também descobriu e o compor-tamento foi semelhante, notei que a propagação rápida e a reação à ela alcançavam diversas áreas. Eu precisava entender melhor todo aquele efeito.

Com a pretensão de entender o porquê daquele rebuliço achei que uma retros-pectiva facilitaria. Iniciei esse processo pelas oportunidades oferecidas durante o tempo na estrada. O resultado indicava o(s) motivo(s) para a atenção em torno do que foi realizado por meio da utilização da bicicleta; conhecer – ainda que por um breve período – culturas diferentes; observar paisagens distintas e algumas vezes magníficas; superar próprios limites; desafiar corpo e mente; aprender a valorizar

Page 18: CS - V1

18CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

ainda mais as coisas simples e que atualmente nos parece irrelevantes, como a ali-mentação ou um mero copo de água; e principalmente, também sentir que existem pessoas com um espírito infinitamente humano e solidário.

E pensar que toda essa descoberta aconteceu apenas em razão de uma porta fechada que permitiu o acesso a outra que se abriu inesperadamente. A vida nos reserva muita surpresas e sem dúvidas eu estava diante de uma delas.

Após a viagem minha curiosidade ficou concentrada em procurar informações sobre essa modalidade do ciclismo que eu até então desconhecia. Bastou uma busca na internet para descobrir que eu não estava sozinho em um universo conhecido como cicloturismo.

No Brasil o termo cicloturismo é denominado para a modalidade do ciclismo que utiliza a bicicleta como meio de transporte na realização de viagens. Ao inteirar sobre o assunto acabei por me deparar com inúmeros cicloturistas. A audácia deles nem se comparava com a minha humilde aventura de volta para casa. Eram verda-deiras expedições pelo território nacional e também em terras estrangeiras, sem falar naqueles que realizavam voltas ao mundo sobre duas rodas. Simplesmente incrível. Fiquei fascinado em saber que não era o único e que as possibilidades de conhecer outros horizontes eram completamente possíveis. Mais uma vez eu não estava louco.

Já no ano de 2007 em uma rede social na internet (antigo Orkut) encontrei a comunidade Cicloturismo Paraná onde vários usuários – entre adeptos e simpati-zantes da modalidade – trocavam informações sobre todo o processo que está en-volvido em uma viagem, seja ela de grande ou pequeno porte. Depositei algumas horas com o conteúdo disponível e distribuído nos mais diversos tópicos.

Na comunidade encontrei um grupo de Curitiba que começava a se planejar para sair do litoral do Paraná e pedalar até o litoral norte do Chile. A expedição ba-tizada Do Atlântico ao Pacífico aconteceria no final de dezembro de 2007. O projeto de autoria do ciclista João Paulo Saboia me animou muito e mais uma vez lá estava eu repleto de perguntas. Queria saber cada detalhe e as chances reais para poder participar. Além de Saboia, o grupo também era encabeçado por Aramis Junior. Eles e os demais participantes não deixaram nenhuma dúvida sem resposta.

Não tinha nenhum impedimento à minha participação no projeto desde que eu estivesse preparado para encarar o desafio de pedalar longas distâncias no exterior. Afinal o trajeto passaria pelo Paraguai, Argentina e Chile. A duração da viagem ao Oceano Pacífico estava na casa dos vinte dias onde teríamos que vencer os mais

Page 19: CS - V1

19CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

diversos obstáculos em uma aventura com mais de 2 mil quilômetros. Aceitei o ‘de-safio’, como gostava de ressaltar o idealizador Saboia.

O convite para participar da expedição foi aberto para aqueles que realmente estavam dispostos a realizá-la. Não pensei duas vezes para aceitar aquela que me parecia uma oportunidade única. Mas uma coisa é pedalar 175 km e outra é atraves-sar o continente com uma bicicleta, percorrendo os mais variados terrenos, entre eles, a majestosa Cordilheira dos Andes. Não seria fácil e ninguém disse isso, pelo contrário, seria necessário muito planejamento e treinamento. À minha disposição, nove meses para preparar ainda melhor a bicicleta, corpo e mente. E literalmente não fiquei parado. Durante esse período foram executadas diversas viagens com estas finalidades, incluindo minha primeira expedição; a travessia do estado do Pa-raná.

A PRIMEIRA EXPEDIÇÃO: TRAVESSIA DO PARANÁ.

A idéia de atravessar o estado pedalando surgiu da necessidade de conhecer melhor a vida na estrada. Eu não poderia encarar uma viagem internacional sem antes saber das minhas condições físicas e psicológicas para permanecer dias con-secutivos sobre a bicicleta. A lição de casa repassada pelos ciclistas de Curitiba era clara; treinar em todas as circunstâncias.

Assumir o compromisso de participar da viagem ao Chile me deixou com a sen-sação de responsabilidade misturada com a ansiedade de querer ir cada vez mais longe. Mas antes de seguir para horizontes mais longínquos me limitei a pedalar pela região oeste. Comecei a desbravar estradas vicinais que levavam aos distritos de Marechal C. Rondon. Nada superior a 50 quilômetros entre idas e vindas.

Pela internet o grupo confirmado na expedição às terras estrangeiras trocava informações de como estava o andamento dos treinamentos. O pessoal da capital aproveitava a localização e começava a organizar pedaladas em direção ao litoral. Além da beleza e dificuldade do trajeto, a volta para Curitiba era ainda mais desa-fiadora em razão da Serra do Mar. Os quilômetros de subidas serviam como uma preparação intensiva para encarar a Cordilheira dos Andes.

Enquanto eles relatavam o cotidiano dos treinamentos na região litorânea eu também destacava a evolução das pedaladas no oeste paranaense. Nesta outra ex-

Page 20: CS - V1

20CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

tremidade do estado, ao invés da mata atlântica e as ondas do mar meu olhar se deparava com aquele mesmo cenário que encontrei na viagem à Foz do Iguaçu. As monoculturas que predominavam sobre as poucas áreas arborizadas.

Por esse caminho vicinal pedalei algumas vezes até o distrito de Margarida e consequentemente São Roque, este último a 25 quilômetros de Marechal. O trajeto era perfeito para treinar, pois o relevo fornecia exatamente o que eu precisava: subi-das moderadas e íngremes, descidas e retas. A estrada não tinha acostamento, mas em compensação o pouco movimento no trânsito oferecia uma tranquilidade maior no deslocamento. Era possível focar no desenvolvimento físico e mental. Isso me chamava atenção porque permitia a percepção sobre a forma como meu corpo tra-balhava durante a atividade física. O funcionamento dos músculos é simplesmente fascinante.

Os treinos começaram a ser praticados quase diariamente, mas eu ainda sentia que faltava algo a mais. Eu precisava expandir meus horizontes. E a presença de um feriado (1º de maio) no calendário possibilitava avançar além da distância pedalada nas redondezas. Os amigos de Curitiba também aproveitariam a folga para mais um treino ao litoral. Foi quando pensei em encontra-los no caminho para descer a serra na companhia deles.

Claro que para encontrar com aqueles ciclistas mais experientes (NR sobre o currículo deles) eu deveria me deslocar em direção ao leste do estado. A outra ex-tremidade ficava a pouco mais de 700 quilômetros de onde eu havia recém começa-do minhas aventuras. Seria muita audácia seguir sozinho em uma bicicleta?

A decisão não demorou a ser tomada. Estava disposto a encontrar aqueles ci-clistas que passaram a ser minhas referencias no cicloturismo. Além de conhecê-los pessoalmente era a oportunidade excelente para ter ainda mais confiança e certeza sobre a participação no projeto ao Pacífico.

Após confirmar ao grupo que estava de partida para o litoral comecei a analisar o que seria preciso para obter êxito na primeira expedição. Diferente da viagem à Foz do Iguaçu, desta vez eu necessitava pensar em mais detalhes. Para variar, conti-nuava sem muito dinheiro e por isso deveria criar alternativas viáveis para concluir meu próximo objetivo.

Não poderia me dar ao luxo de pernoitar em hotéis à beira da estrada, nem mesmo aqueles mais baratos. Ao invés de encarar essa dura realidade como pre-texto para desistir, aproveitei para ver pelo lado positivo. Seria mais uma ocasião favorável para colocar em prática uma questão que também seria empregada na

Page 21: CS - V1

21CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

viagem ao Chile: acampamento.

Acampar era uma grande novidade. Eu jamais tinha montado uma barraca e também não dispunha da mesma. E se eu não tinha dinheiro para hospedagem, também me faltava verba para adquirir aquela que seria a minha casa durante os dias até o Atlântico. Para resolver esse pequeno detalhe a solução foi acionar um amigo do meu irmão. Newton Muchael, residente em Foz do Iguaçu não hesitou em emprestar a barraca ao saber da nova viagem. Uma coisa a menos para resolver.

O trajeto foi outro ponto a ser resolvido sem maiores problema. Saída de Mare-chal Cândido Rondon (oeste) e chegada à Matinhos (leste), litoral. Como as cidades se localizam em duas extremidades, aproveitei para intitular a primeira expedição como Travessia do Paraná. O itinerário passava por apenas duas rodovias: a BR 163 entre Marechal e Cascavel e depois a BR 277 até Matinhos. Segundo as informações levantadas, ambas tinham acostamento que poderiam me oferecer uma segurança maior. Com a experiência da viagem anterior, esse contato com o mapa também não teve segredo.

A essa altura eu já tinha um conhecimento básico melhor sobre a mecânica da bicicleta, pelo menos um pneu furado eu sabia trocar (NR sobre a primeira troca). Dessa forma, mais uma vez separei as ferramentas necessárias e especificas para uma bicicleta antiga. A Magrela Guerreira como foi carinhosamente batizada não tinha, por exemplo, peças de pressão (que são mais fáceis de remover) e por isso precisava levar chaves extras. Esperava não precisar delas.

Faltava definir a estratégia sobre alimentação. Como eu não tinha dinheiro para as duas refeições diárias achei melhor priorizar o almoço. Desta forma eco-nomizaria bastante, afinal, isso também fazia parte do planejamento para a grande viagem no final do ano.

Com quase tudo certo bastou aguardar o dia da partida. Neste período realizei mais alguns testes. Com a barraca em mãos, procurei monta-la na sala do aparta-mento. Eu não tinha a mínima idéia de como a “casa” seria levantada. O amigo Ales-sandro da Silva acompanhava todo o processo desajeitado e orientava na medida do possível para o “encaixe” das peças. No final o resultado foi uma verdadeira obra de arte. Tudo certo.

Ainda pelo Orkut passei a ter mais contato com outros viajantes por meio da comunidade Cicloturismo que tinha um número muito maior de membros de todas as partes do Brasil. Vários participantes residiam no exterior e também contribuí-am com informações preciosas sobre o mundo todo. Aquele lugar parecia mágico.

Page 22: CS - V1

22CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

Os sonhos não tinham limites e transbordavam através das palavras que apontavam cada novo projeto, dúvidas, experiências e realizações que demonstravam o quanto o horizonte poderia ser desvendado.

Com as descobertas da minha primeira viagem somadas aos relatos e fotos encontrados nas comunidades eu me sentia extremamente inspirado e disposto a investir tempo, o pouco do dinheiro que me restava e o que fosse necessário para sentir o prazer e adquirir novos aprendizados proporcionados pelo cicloturismo.

A partir da leitura dos relatos encontrados na rede social notei que precisava investir em segurança. Boa parte dos ciclistas não dispensava as vestimentas apro-priadas e muito menos a utilização do capacete. Tudo o que eu ainda não tinha. A aquisição das roupas estava relacionada a um detalhe que não poderia passar despercebido. As cores deveriam ser chamativas para serem avistadas com maior facilidade pelos motoristas na estrada. Confesso que não tinha pensado sobre isso quando iniciei os preparativos para a viagem à Foz do Iguaçu em 2006. Mas a reco-mendação tinha lógica e iniciei as compras sem me esquecer dessa característica.

Para além dessa questão da cor, as roupas específicas para ciclistas são im-portantes por sua confecção com material próprio para melhor evaporação da transpiração. Sem contar que seu peso também é menor. A bermuda (NR sobre o preconceito), por sua vez, tem um acolchoado interno para amenizar as dores pro-venientes do contato com o banco (selim) durante as várias horas em cima da bici-cleta. Já as luvas impediriam a formação de calos e protegeriam no caso de eventual queda, uma vez que nesta situação a primeira providencia é levar as mãos ao chão para amortecer o tombo. O capacete também estava relacionado como medida pre-ventiva para proteger a cabeça em acidentes.

Junto com as vestimentas e o capacete comprei também algo que me fez muita falta na viagem inicial: farol e lanterna traseira. Não me esqueci dos óculos que se-riam fundamentais para proteção dos olhos contra o vento, poeira, insetos e outras sujeiras. Todos esses itens foram comprados em uma loja virtual na internet que possibilitava o pagamento parcelado através do cartão de crédito. Facilidade que ajudava muito no momento. A entrega não demorou em acontecer e as mercadorias chegaram sem nenhum problema e serviram perfeitamente.

Pela pouca experiência adquirida eu realmente não queria mais viajar com uma mochila nas costas pelo desconforto em razão do peso e por isso também pre-cisei providenciar um bagageiro traseiro para levar minhas coisas que ainda seriam transportadas na mochila. Nas comunidades virtuais eu descobrira que havia alfor-jes específicos para bicicleta, mas na ocasião seu preço não era compatível com meu

Page 23: CS - V1

23CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

orçamento, portanto, o planejamento precisava ser mesmo com a velha mochila. Paciência.

Para não ficar muito perdido e ter um controle maior em relação à quilome-tragem durante a viagem, comprei mais um equipamento que seria bastante útil: velocímetro que me indicaria, entre outras informações, a distância percorrida e a velocidade média.

Ainda no que diz respeito à distância, procurei realizar uma planilha de viagem mais bem elaborada. Peguei como exemplo uma que estava em desenvolvimento pelo João Paulo e tracei – com a ajuda do computador – todos os dados do caminho para o litoral. Com ela à disposição facilitava a leitura do cronograma que apresen-tava: datas, distâncias e cidades para chegar no tempo previsto em Curitiba. (colo-car modelo planilha).

O projeto finalmente estava elaborado, mas antes de partir eu necessitava dei-xar outra questão em ordem para não me preocupar durante o caminho. Em 2007 eu já não estava mais no mesmo emprego de quando realizei a primeira viagem. Por convite de uma professora da universidade aceitei participar de uma pesquisa. Eu passei a ser bolsista. É verdade que a remuneração era apenas simbólica, utilizada para pagar as contas básicas do cotidiano. Ainda assim, a mudança aconteceu por-que ser pesquisador me proporcionava um aprendizado muito maior e futuramen-te poderia me ajudar por causa da experiência obtida por meio desse estudo mais aprofundado.

Na teoria precisava dedicar exclusivamente 20 horas semanais à pesquisa, con-tudo, na prática gastava muito mais tempo nas diversas leituras de livros, revistas e jornais para entender melhor aquela temática (RN sobre a pesquisa). Como conse-quência, acabei por acumular inúmeras tarefas. Obrigatoriamente tinha que conci-liar matérias do 3º ano da faculdade, pesquisa e as pedaladas que se intensificaram após o final do ano passado. Até quando suportaria toda aquela situação eu não po-deria dizer, mas naquele momento procurei deixar tudo organizado para aproveitar o feriado com a tranquilidade que a atividade merecia. Avante!

A SAÍDA. DESTINO: LITORAL DO PARANÁ.

Aprendizado. É a palavra que mais bem define a primeira expedição. Seja por

Page 24: CS - V1

24CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

colocar em prática aquele adquirido anteriormente ou pelo conquistado durante os cinco dias na estrada. A começar pela saída. Diferente da partida na viagem de estreia, desta vez o planejamento estava um pouco acima do nível básico. Estratégia para aumentar as minhas chances de finalizar com sucesso a proposta de atraves-sar o Estado do Paraná. Estava um pouco ansioso, mas com a mesma curiosidade inicial de conhecer novos horizontes.

Para fazer valer o aprendizado empírico alcançado durante o percurso à Foz do Iguaçu e a recomendação dos outros cicloturistas, a partida aconteceu às 6 horas. Foi preciso madrugar para usufruir as vantagens de começar a pedalar cedo. Pelo menos nas primeiras horas da manhã não teria que me preocupar com o sol e a temperatura excessiva. Ponto positivo.

O beneficio da condição climática não seria interessante se mais tarde a falta de algum apetrecho comprometesse o avanço desejado, portanto, antes da partida a checagem básica na bicicleta e na bagagem foi imprescindível. A mochila estava mais carregada devido à provisão requerida para os próximos dias. Para não come-ter o erro de outrora, nada de água congelada na mochila. O espaço foi substituído por algumas roupas, coberta, ferramentas básicas e um pouco de alimento emer-gencial, leia-se, bolacha recheada e barra de cereal.

Para uma mochila pequena e pela própria ocasião me limitei a levar somente o necessário. O volume da bagagem estava relacionado, sobretudo, ao cobertor que além da sua função principal, serviria como colchão. Àquela altura estava ciente de que muitas pessoas utilizavam isolante térmico, saco de dormir e colchão inflável, mas meus gastos já tinham extrapolado e eu deveria seguir com aquilo que encon-trava à disposição.

Com ajuda dos extensores a mochila foi presa no bagageiro que também com-portou a barraca e um pequeno travesseiro, pensado para oferecer um pouco de conforto durante a noite nos futuros acampamentos. Também não faltou um equi-pamento ausente na primeira viagem: a câmera fotográfica para registrar o que es-tava para ser descoberto. Na época a máquina foi emprestada por uma antiga amiga de Foz do Iguaçu. Novamente eu contava com a ajuda daqueles que depositavam confiança no meu projeto.

Tudo certo. Porta trancada. A saída no horário previsto me fez encarar um curto período de escuridão, oportunidade para testar o farol e a lanterna traseira. Desta vez a vizinha muito provavelmente ainda dormia e por isso não presenciei ne-nhum encontro e muito menos sua expressão de espanto. Talvez a reação dela não fosse a mesma de quando esboçou um sorriso desconfiado, uma vez que naquele

Page 25: CS - V1

25CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

instante minha credibilidade estava em “alta” por ter chegado vivo à Foz do Iguaçu.

Às 6 horas da manhã o trânsito de Marechal C. Rondon praticamente não exis-tia, contudo, o mesmo não aconteceu na rodovia. Até parecia uma ironia do destino. Por que os caminhoneiros tinham decidido sair para mais um dia de trabalho jus-tamente naquele mesmo horário? A estrada movimentada não me assustou, mas fiquei muito concentrado para não cometer nenhum erro. Não poderia esquecer a minha condição de novato e que todo cuidado era pouco para continuar vivo.

A BR 163 não disponibilizava de acostamento decente e por vezes executei a difícil tarefa de pedalar em cima da faixa lateral. Ainda bem que essa situação du-rou poucos quilômetros porque a sensação de ver e, literalmente, sentir um veículo enorme ao seu lado não é das melhores. Não raramente precisei sair da estrada para não dividir o mesmo espaço com os caminhões. (NR sobre essa percepção).

Quando o acostamento proporcionou um espaço seguro e a tranquilidade pre-valeceu, a viagem se tornou muito mais agradável. O sol – na hora que apareceu – não castigava. Para ajudar, o vento também não fez questão de marcar presença. Tudo ocorria da melhor forma possível. O planejamento mostrava os primeiros re-sultados.

Ansiedade. Inerente àqueles que não veem a hora de colocar seus planos em prática, este estado emotivo foi amenizado a partir da conclusão de cada quilôme-tro que, por sua vez, era percorrido com a sensação incrível que mais um sonho se tornava realidade. Talvez esse seja um dos sentimentos mais emocionantes que um ser humano pode experimentar durante a vida.

Eu estava mais fortalecido, não apenas fisicamente, mas a cabeça conseguia ab-sorver melhor a realidade da estrada. Encarava a solidão sem maiores dificuldades, ainda que dificilmente eu ficasse mesmo sozinho em razão da presença constante dos veículos, principalmente após a passagem pela cidade de Toledo, quando o mo-vimento se tornou maior.

A passagem por Toledo marcou o aparecimento de uma companhia não muito desejada; vento-contra. Aliado às subidas cada vez mais íngremes, a força da natu-reza dificultou meu avanço à Cascavel. Uma pitada de paciência e a força redobrada nas pernas resolveu a questão, no entanto, a velocidade média mais baixa compro-metia a quilometragem estabelecida para o primeiro dia. Ainda assim procurei fo-car no lema: seguir em frente.

Neste trecho aconteceu um episódio trágico e cômico. Em uma pedalada longa

Page 26: CS - V1

26CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

pode ser complicado esperar o surgimento de um banheiro “salvador” para realizar suas necessidades fisiológicas, especialmente no caso do xixi que ocorre com mais frequência por causa da ingestão contínua de liquido. Para a maioria dos homens a ausência de um lugar especifico a essa finalidade não chega a ser um problema. Afinal é muito simples parar na pista e naquele mesmo local aliviar a bexiga sem cerimonia. Mas quando se trata de uma pessoa tímida, coisas desse tipo se maximi-zam e o improvável acontece.

Pois bem, estava com aquela vontade de tirar a “água do joelho” e quando não aguentei mais segurar simplesmente parei no acostamento e esperei o trânsito ficar mais tranquilo. Mas nada de diminuir o “bendito” movimento. Dessa forma, cansei de aguardar pela calmaria completa na estrada e apoiado na bicicleta me virei para o lado das plantações e comecei a sentir aquela sensação de alivio. Que maravilha! Foi neste instante que um caminhão resolveu aparecer para quebrar o clima do momento.

Não me importei com a presença do caminhão, mas deveria. A passagem do veículo criou uma espécie de tornado e tudo começou a girar. Em meio aquele tur-bilhão a bicicleta estava quase para ser levada pelos ares. As minhas mãos que esta-vam ocupadas (uma delas utilizada para direcionar a “água” e a outra para esconder meu órgão dos olhares curiosos) precisaram ficar livres. Instintivamente larguei tudo e segurei minha bicicleta. Imagine a cena: respingo para tudo quanto é lado durante o balanço geral para delírio da galera que acompanhava o desengonçado na linha tênue entre a alegria e tristeza. Que vergonha! Pensaria duas vezes antes de parar novamente.

Parei apenas no perímetro urbano de Cascavel por volta das 13 horas com a pretensão de almoçar em um restaurante à beira da estrada com buffet à vontade (NR sobre buffet). Que momento sublime. O corpo que clamava para repor as ener-gias perdidas durante o pedal agradecia pela refeição sagrada. Ela seria a mais im-portante do dia e por isso foi bastante caprichada. Voltei à estrada muito satisfeito para completar a distância restante.

Vale a pena ressaltar que o tempo parado no almoço foi curto e estratégico. Na verdade era uma adaptação ao estilo de viagem praticado pelo pessoal de Curitiba. Como eu viajaria na companhia deles, precisava começar a me adequar na medida do possível. Essa questão sobre o período de parada após a refeição é muito pessoal e pelos relatos de viagem lidos na internet notei que cada ciclista tem sua particu-laridade. Existem aqueles que almoçam e rapidamente voltam à estrada e também tem os que não hesitam em tirar duas horas de descanso, inclusive, para a sesta. Este último exemplo não condizia com os amigos da capital, portanto, meu descan-

Page 27: CS - V1

27CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

so foi restrito ao momento em que, sentado, degustava a comida.

O período da tarde mostrou que eu ainda tinha muito para aprender e que ja-mais poderia subestimar os possíveis imprevistos da estrada. Para chegar à capital na data combinada, elaborei um cronograma deveras audacioso, onde a distância pedalada no primeiro dia seria de aproximadamente 216 quilômetros. Ao realizar o planejamento, claramente não tinha levado em consideração a questão do ven-to-contra. E ele simplesmente não me deixava avançar como gostaria. A sensação térmica também despencava por causa do vento.

Enquanto pedalava já pensava no que poderia ser feito para reverter a situação do avanço comprometido. Independente de alcançar ou não a marca estabelecida no final do dia, o pensamento de seguir em frente continuava, mas eu precisava ser realista e sincero comigo mesmo sobre a dificuldade a ser superada. Não me subes-timava, acontece que uma decisão errada poderia prejudicar todos os outros dias. Naquele momento a solução encontrada foi pedalar o máximo possível e completar a distância restante no dia seguinte.

Com um plano B traçado, precisei apenas aproveitar o que de melhor o ciclotu-rismo proporciona no meu entendimento. Observava a paisagem com muita aten-ção e notava a mudança expressiva quando as monoculturas deixaram de ficar em evidência. Elas ainda marcavam presença, mas já era possível verificar o famoso Pinheiro-do-Paraná, também conhecido como Araucária (NR com mais detalhes so-bre ela). Claro que não deixei de registra-la.

Geograficamente o Estado do Paraná possui três planaltos. Lembro que estu-dei exaustivamente sobre eles na época do vestibular. Portanto, naquela conjuntura da estrada eu tinha consciência que pedalava pelo denominado Terceiro Planalto e me direcionava para a divisa com o Segundo Planalto onde a altimetria fica ainda mais elevada. Por isso não estranhava as subidas encontradas pelo caminho. No planejamento a questão da altitude tinha sido averiguada, contudo, também não levei em consideração essa característica para determinar a quilometragem diária. Equivoco que custaria caro. Conforme suspeitava, chegar à Nova Laranjeiras se tor-nava praticamente impossível.

Improvisar é quase inevitável a quem se propõe a viajar de bicicleta. E por mais que – racionalmente – você tenha preparado e analisado o projeto, a prática vai obrigá-lo a compor uma alternativa. Ainda mais quando o planejamento original não pode ser concretizado. Diante da situação em que me encontrava a decisão ba-seava-se em continuar na estrada enquanto houvesse confiança sobre a atividade desenvolvida.

Page 28: CS - V1

28CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

A BR 277 é pedagiada e por quase toda sua extensão é muito bem sinalizada. Pe-las placas informativas eu tinha conhecimento da distância exata para as próximas cidades. Pelo horário tudo indicava que meu pernoite aconteceria no município de Guaraniaçu. Não faltavam muitos quilômetros para alcança-lo, porém, terminaria o dia da mesma forma como iniciei: na escuridão. Juntamente com o sol, também foi embora o vento. Coincidência ou não, as energias foram revigoradas neste período. Lembrava daquele antigo pensamento: É somente na escuridão que podemos ver o brilho das estrelas. Eu continuava iluminado e com forças para seguir além da cida-de em questão, mas algo me dizia a não avançar mais e achei melhor não contrariar. Estava na hora de parar.

O Serviço de Atendimento ao Usuário (SAU) da concessionária responsável pela rodovia está presente em vários trechos. Um deles situado à beira da estrada, pouco antes de Guaraniaçu. Sem ter nada a perder, resolvo parar e perguntar sobre a possibilidade de montar a barraca atrás do local. Havia lido relatos de cicloturis-tas que utilizaram esse espaço para pernoitar. Mas não tive sucesso, mesmo após uma conversa sobre o estilo da viagem. O funcionário irredutível explicou a inviabi-lidade em razão da ordem superior a qual estava sujeito, no entanto, recomendou um posto de combustível mais à frente.

A resposta negativa do pernoite no SAU foi como um balde de água fria, jus-tamente no momento em que meu psicológico tinha escalado mais um degrau no nível de confiança. Paciência! Em direção ao local sugerido pelo funcionário pensei que também seria vetado de passar a noite. Neste caso, o que seria obrigado a fazer? Cheguei ao posto de combustível e a primeira atitude foi explicar a situação para o funcionário que estava na pista de abastecimento. Após o esclarecimento do que precisava ganhei a autorização desejada. Que felicidade! Mas o dia ainda não tinha finalizado, outra parte da vida de um aventureiro começava: montagem do acam-pamento.

Durante a aula prática de como montar uma barraca tudo ocorreu sem maiores dificuldades na sala do apartamento. A aprovação foi contribuída com a facilidade oferecida pelo ambiente totalmente plano e sem nenhum tipo de sujeira, realidade totalmente diferente daquela encontrada no posto de combustível. Mais uma vez precisava improvisar para dormir em paz.

Antes de montar a barraca fiz um rápido estudo de onde ela poderia ser le-vantada. Coloquei em jogo alguns critérios próprios. O local não poderia ser muito afastado da parte mais movimentada da área de abastecimento. Meu pensamento girava no seguinte raciocínio: Se acontecesse alguma coisa durante a noite eu pode-ria pedir socorro ao pessoal do posto, uma vez que o mesmo funcionava 24 horas.

Page 29: CS - V1

29CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

Neste sentido sobraram poucas opções e a mais ideal exigia mudanças.

O terreno irregular e desnivelado somado às pedras presentes no local não fa-vorecia em quase nada, mas não tinha alternativa. Mãos à obra. Primeiro retirei algumas pedras e rapidamente montei a barraca que ficou atrás de um pequeno muro de energia que escondia um pouco a minha presença. Fiquei surpreso com a velocidade em que deixei tudo pronto. Sempre tive um jeito mais sossegado, mas naquele momento minha adrenalina ainda estava alta e isso deve explicar a cena. Na verdade acredito que buscava deixar tudo pronto para entrar logo na “casa” e evitar o olhar curioso de outras pessoas.

Retirei toda a bagagem da bicicleta e coloquei no interior da barraca que ficou um pouco bagunçado pela movimentação rápida. A pressa tinha explicação. Gosta-ria de tomar um banho e posteriormente comer um salgado na lanchonete do posto. O estabelecimento tinha realmente todas as características mencionadas pelos ci-cloturistas; banheiro, lanchonete/restaurante e segurança. Excelente para acampar. Mas nem tudo foi como o planejado.

Era a minha primeira noite em uma viagem de bicicleta e por esse motivo eu estava meio atrapalhado e não tinha certeza se estava por fazer a coisa certa. De qualquer maneira tranquei a bicicleta do lado de fora da barraca, peguei a roupa de “civil” e os itens mais valiosos que, no caso, se limitavam à carteira e a câmera fotográfica. Medida preventiva. Não acreditava na entrada de alguém na residência. Ainda que ela estivesse sem trancas. Para quem não conhece uma barraca, a en-trada da mesma pode ser aberta e fechada por três zíperes. Desse modo, para uma proteção mais eficaz uma alternativa é a colocação de um cadeado que eu não tinha.

Sem dúvida posto de combustível é uma alternativa econômica para acampar. Confirmava todas as informações obtidas na internet. Mas não é qualquer pessoa que tem a sagacidade de permanecer no local. O banheiro, por exemplo, não era dos mais limpos e poderia ser confundido com aqueles (sem boa reputação) de rodovi-ária. Eu não esperava um serviço cinco estrelas, mas passava a ter uma idéia mais clara do que poderia encontrar nos próximos dias.

As necessidades fisiológicas foram realizadas com muita cautela. Sempre me preocupei com a higiene e naquele momento não foi diferente. Por se tratar de uma questão pessoal não é sempre que encontramos informações a respeito, mas não vejo porque não comentar sobre isso, uma vez que deve ser a dúvida de quem de-seja começar a dar os primeiros passos nessa vida de cicloturista. Aproveito para deixar as seguintes dicas:

Page 30: CS - V1

30CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

Leve papel higiênico, nunca se sabe quando precisará dele. Sua utilidade tam-bém pode ser para secar e revestir/forrar o vaso sanitário na hora de fazer o fa-moso “número dois”. Uma estratégia para tentar evitar o contato com milhares de bactérias que certamente existem nesses ambientes. Se por obra do destino você se deparar com um banheiro cuja porta esteja sem a chave/tranca não se desespere e faça o que tem que ser feito. Se alguém entrar no recinto, basta tossir, cantar, emitir qualquer tipo de som que evidencie sua presença. Marque seu território!

Para tomar banho a minha recomendação é simples, esteja de chinelo ou qual-quer outra coisa do gênero que evite o contato direto com o chão. Acredito que ele pode estar contaminado da mesma forma que a privada. Lógico que isso vai depen-der da higiene de cada lugar. Mas não confie muito na limpeza deles.

Outro detalhe que vale a pena ser destacado: esteja preparado para tomar um banho gelado. Não são todos os banheiros onde os chuveiros elétricos (em funcio-namento) estão presentes. E adivinha? Fiquei sem água quente. Mas isso ajudou na rapidez do banho. Eu não poderia perder muito tempo, uma vez que toda minha bagagem estava sozinha do lado de fora.

Ao retornar à barraca, minhas coisas se encontravam da mesma forma como havia deixado. Devidamente limpo e vestido fui verificar o que tinha para comer na lanchonete. Já havia planejado não jantar, mas precisava comer pelo menos algum salgado para enganar o estômago. Feito isso, escovei os dentes e fui dormir o mere-cido sono dos justos. Será?

Nunca pensei que dormir em uma barraca seria extremamente desafiador. Eu estava bastante cansado, é verdade, mas não imaginava que teria problema para dormir. Meu psicológico não conseguiu descansar e permitiu apenas cochilos du-rante a madrugada. Ficava atento a qualquer movimentação externa. Na minha ca-beça as pessoas faziam questão de passar ao lado da barraca apenas para disparar meu coração. Que crueldade! O acampamento estava localizado poucos metros da rodovia, mas o barulho dos veículos não incomodava, contudo, o mesmo não pode-ria ser dito das vozes e sonidos estranhos. Definitivamente aquela estratégia de não escolher um local mais reservado provou ser ineficaz. Mais um aprendizado para a lista.

Não adiantava ficar em um local movimentado e presumidamente mais seguro se eu não conseguia dormir. E essa atividade era de extrema importância para pe-dalar no dia seguinte. Ainda mais com o aumento da distância em praticamente 50 quilômetros em decorrência do não cumprimento do cronograma.

Page 31: CS - V1

31CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

Durante a madrugada não tinha muito que fazer a não ser esperar pelo dia ama-nhecer. O ruim foi aguardar o passar das horas. Incrível como o tempo é realmente relativo. Na estrada os minutos passavam rapidamente em contraposição aos quilô-metros que eu precisava atingir. Santa paciência. O som dos pássaros anunciava que a noite se transformara em dia, finalmente estava claro. E eu – é claro – aliviado em sobreviver à primeira noite na estrada.

Ao levantar, imediatamente guardei minhas coisas na mochila e ao sair da bar-raca constatei que tudo estava normal e a bicicleta do mesmo modo como deixara na noite anterior. Ponto positivo apesar dos pesares. Desmontei a “casa” sem pro-blema e com uma velocidade também surpreendente. Para o café da manhã peguei as bolachas recheadas que estavam reservadas para essa finalidade. Bebida quen-te? Nem leite, café ou chá. A água ajudou a digerir a refeição matinal.

Vale salientar que a temperatura estava baixa desde a saída de Marechal. Na estrada a utilização de um agasalho mais leve suportou a sensação térmica ainda menor por causa do vento. Durante a noite um moletom guardado na mochila fez a diferença. Não passei frio na madrugada. Acho que toda a adrenalina desviou mi-nha atenção e a apreensão aumentou a temperatura corporal. O cobertor também cumpriu sua função e me manteve aquecido. Já a incumbência enquanto colchão poderia facilmente ser questionada.

A noite não foi agradável, mas acordar na estrada e ver um nascer do sol (ainda que tímido) não tinha preço. Eu continuava cansado, principalmente por não ter o descanso merecido, mas mesmo assim me mantinha disposto a completar o objeti-vo. Com a parada em Guaraniaçu meu atraso no roteiro era de aproximadamente 50 quilômetros. Desse modo, eu deveria pedalar quase 200 quilômetros neste segundo dia para manter as chances de chegar na data prevista. Ânimo!

A cada quilometro a estrada mostrava que mais uma vez seria muito difícil completar a distância planejada. A altitude alta e as subidas persistiam, assim como a minha reflexão sobre elas. Interessante é que o corpo cansado não impedia o cé-rebro de raciocinar. Esse processo também se tornou positivo, pois passei a com-preender que a estrada, sobretudo, a subida, estava há muito tempo naquele lugar, eu fui atrás delas, então deveria guardar minha ira e pedalar tranquilo para superar cada montanha. Desta forma tomei mais uma decisão: partir de Guaraniaçu e per-manecer o máximo possível na estrada, parar somente quando ao cair da noite e as pernas não aguentarem mais.

Page 32: CS - V1

32CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

Page 33: CS - V1

33CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

AS TRAGÉDIAS DO COTIDIANO DA ESTRADA.

Tristeza. Um dia para jamais ser esquecido pelo aprendizado adquirido, literal-mente, com muito pesar. Talvez seja de nosso conhecimento que a exposição real à vida resulta imediatamente aos riscos pelos quais estamos sujeitos em razão da nossa fragilidade enquanto ser humano. Por isso – sem pieguice – é preciso valori-zar e respeitar cada momento. Atitude exercida por poucos e ignorada por muitos que pagam com a própria vida. Infelizmente estava prestes a testemunhar essa tris-te realidade.

Meu corpo sentia a distância percorrida no dia anterior, sobretudo, por causa das subidas e pelo vento contra, que mais uma vez me acompanhavam. Não à toa o ritmo continuou baixo e fez com que meu plano inicial de quatro dias até a capital ficasse cada vez mais distante. Se por um lado a altitude diminuía o ritmo, do outro ela aumentava a beleza. Estava impressionado com os vales formados no horizonte onde as plantações extensivas davam lugar à mata fechada e deixava a paisagem do Estado diferente daquela na região oeste. Outra reflexão sobre o fato de subir cons-tantemente foi aquela quase óbvia, mas que é sempre válida de lembrar sob essas condições e por intermédio de Isaac Newton: se subiu tem que descer. Infelizmente o inverso se constatava.

Com o giro do pedal em um ritmo mais tranquilo não foi possível pedalar muito pela manhã. Novamente meu psicológico estremecia ainda mais diante da demora em obter o avanço necessário. Estava próximo do meu limite e notei isso quase na hora do almoço. O local escolhido para fazer a parada foi em um restaurante poucos quilômetros antes da cidade de Laranjeiras do Sul. Situado em uma região ainda mais alta, foi um enorme desafio chegar até o estabelecimento.

A canseira se tornava visível não apenas em meu semblante, mas também na forma como encarava tudo aquilo. Extenuante, parei no final de uma subida, antes do restaurante mencionado. Obrigatoriamente precisava de mais uma pausa na es-trada para recuperar as energias antes de retomar a continuação do aclive.

Hidratado e com parte do fôlego restabelecido fui ao restaurante na esperança de ainda encontrar comida. O horário tardio também me fez cogitar uma alternati-va conhecida na internet. Lembro que um cicloturista, na intenção de economizar, deixava para almoçar por volta das 15 horas. O motivo, segundo ele, é que receber a refeição sem custos se tornava mais fácil, uma vez que ganhava aquilo que não ti-

Page 34: CS - V1

34CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

nha sido vendido. Naquele instante pensei em sacar a mesma estratégia, mas minha timidez falou mais alto. Não tinha a condição financeira desejada, mas ainda dispu-nha do dinheiro da alimentação. Ainda mais quando o lugar simples com a comida boa e barata era mais do que eu precisava. A pausa foi de aproximadamente uma hora. Embora muito cansado, não poderia ficar muito tempo.

Na estrada, mal poderia imaginar o que estava reservado naquela tarde de sá-bado. Eu já não me encontrava muito animado com a existência das subidas e do vento-contra, mas no trecho entre os municípios de Virmond e Cantagalo meu psi-cológico ficou ainda mais abalado. Eu aproveitava um breve e esperado momento de descida quando no final dela observei uma curva e também a presença de pes-soas no acostamento. Alguma coisa muito grave tinha provocado aquele conglome-rado. Fiquei assustado.

Reduzida a velocidade da bicicleta, resolvo verificar o acontecido. O clima tenso pairava pelo ar. Atravesso atentamente a pista e do outro lado, inclino a direção dos meus olhos para baixo e deparo-me com um despenhadeiro e, infelizmente, um car-ro com as rodas para cima. Era um Gol que passara por mim minutos antes e perdeu a direção na curva e acabou por sair da estrada, caindo no barranco. Soube que duas pessoas estavam no interior do veículo, desafortunadamente um deles não resistiu aos ferimentos e faleceu no local. Eu ainda observava o desfiladeiro quando a fu-nerária deslocou o caixão – por meio de uma corda – até o corpo. A outra pessoa já resgatada tinha sido transportada para Virmond.

Esse foi o terceiro acidente avistado desde o inicio da viagem, mas talvez por sua gravidade tenha sido o que mais mexeu comigo. Mostrava a necessidade de atenção máxima na estrada. Eu apenas conseguia pensar sobre a fragilidade da nossa vida e o quanto devemos valoriza-la em todos os minutos, sem deixar de aproveitar cada instante, pois em algum momento inesperado pode ser a última oportunidade de respirar.

O restante da tarde limitou-se à reflexão e melancolia. Sinceramente mal espe-rava a hora de parar e poder descansar e começar outro dia, no entanto, uma nova situação ocorreu e me deixou bastante chateado. Minha blusa de frio e um boné foram perdidos na estrada. Estavam presos sobre a mochila no bagageiro. Mas a perfeição do acostamento na BR 277 acaba quando começam as lombadas em de-terminados trechos, são obstáculos a uma distância de quase 50-70 metros um do outro. Geralmente presente nas descidas, essas lombadas de pequeno porte fazem a velocidade diminuir drasticamente. Sair do acostamento e pedalar na pista era algo muito arriscado e com os acontecimentos daquela tarde estava totalmente fora de cogitação. Com o impacto das lombadas o boné e a blusa caíram e quando notei até

Page 35: CS - V1

35CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

retornei um pequeno trecho para procura-los, mas não tive sucesso. Pensei melhor antes de continuar a lamentar e cheguei a conclusão: o que significava a perda ma-terial em comparação à vida? Então não deixei me prostrar por tudo aquilo. Decisão corretíssima, pois o dia ainda prometia muito.

Com míseros 106 km acumulados no dia, finalizo a pedalada em Cantagalo du-rante o crepúsculo que ainda favorecia o avanço por mais algum tempo, mas ao avistar um posto quase na entrada da cidade não hesitei em parar e observar as condições do local para um possível acampamento. Desta vez expliquei a situação em que me encontrava na conversa com o funcionário de uma borracharia paralela ao posto. Com sua compreensão, a permissão para acampar foi concedida. Passaria a noite atrás da borracharia. Um local reservado e que poderia me proporcionar um verdadeiro descanso para corpo e mente.

Mais uma vez não há problema para montar a barraca. O terreno plano também colaborou. Com os acontecimentos do dia eu nem me importei com a ausência do banheiro com chuveiro disponível. Tranquei a bicicleta e rapidamente fui à lancho-nete do posto comer um lanche para não dormir com a barriga vazia. Calado, quase não conversava com as pessoas. Ao mesmo tempo em que sentia a falta de contato (como aconteceu na primeira viagem) mantinha-me introvertido. Buscava compre-ender a experiência daquelas horas na estrada.

No acampamento, conforme as horas passam algo começa a mudar e não é para melhor. O aumento no movimento da rua atrás do posto/borracharia se torna mais nítido e o som de motos, carros e um trio elétrico são facilmente captados pelos meus tímpanos. Todo esse som aumentava e impossibilitava meu sono. Sem conseguir dormir tentava descobrir o que aquele locutor gritava. Tratava-se de um evento de motociclistas cujos pilotos realizam manobras especiais. Para minha ‘sor-te’, o local era bem ao lado de onde eu esperava descansar tranquilo. Não tinha idéia de que horas terminaria o show.

O lugar onde eu estava era coberto, mas abandonado e muito sujo. A princípio achei que, por ser reservado, não precisaria me preocupar com a presença de ou-tras pessoas. Como medida de precaução a bicicleta ficou trancada em uma estru-tura de metal que estava no chão, praticamente ao lado da barraca. Em um breve momento a tranquilidade foi quebrada somente pelo som ensurdecedor do evento. Mas não demorou a aparecer novos indícios de que meu dia não tinha terminado.

Com a impossibilidade de firmar o sono, tenho apenas cochilos. Não raramente me desperto com o ronco das motocicletas envenenadas. Mas em um determinado momento durante a madrugada ouço vozes e imediatamente estranho a presença

Page 36: CS - V1

36CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

de pessoas naquele local. A conversação deixava evidente que alguém se aproxima-va da barraca onde eu já estava sentado e totalmente apreensivo. Tentava a todo custo identificar o que eles diziam. Quando finalmente decifrei meu coração dis-parou. Um dos indivíduos comentou que tinha visto óculos. Que óculos? Pensei. No mesmo instante fiquei paralisado. Pensava onde eu colocara a peça recém-compra-da. Enquanto forçava a memória também ouvia aqueles passos em minha direção. O que ainda estava reservado para aquela noite?

Lembrei que, infelizmente, os óculos avistados por aquelas pessoas eram o mesmo que eu esquecera do lado de fora da barraca. Recordei também que a essa altura a barraca e a bicicleta também tinham se tornado alvo dos sujeitos. Na oca-sião minha barba estava bem comprida e pensei que a única defesa em caso de emergência era tentar mostrar uma aparência medonha aliada a uma voz grossa, forçada propositalmente. Fiquei na expectativa para ver o precisaria fazer.

Da mesma forma rápida como escutei a aproximação dos passos, também iden-tifiquei seu distanciamento. Milagre! A presença da barraca – e consequentemente a minha – foi totalmente ignorada por eles. Tornei-me invisível. Em seguida: Silên-cio! Antes de sair da barraca faço uma checagem para ver se tratava realmente do mesmo objeto. Sem encontrar nada fui ao local do “crime”. A constatação ocorreu quando verifiquei que um grupo de quatro pessoas se afastava daquela área. As luzes refletiam na lente dos meus óculos que estava na mão de um deles. Que tris-teza! Não poderia esboçar nenhuma reação. Sozinho, não estava louco a ponto de tirar satisfação, principalmente quando ambos aparentavam sinais de embriaguez. Fiquei chateado por perder um item que comprara recentemente. Sua utilidade du-rante a viagem tinha sido comprovada e aprovada. E acredite, a noite ainda não chegara ao fim.

Suspense? Terror? Sei que aproximadamente uma hora após o primeiro epi-sódio da perda dos óculos, ouço – novamente – vozes próximas à barraca. Imedia-tamente torno a pensar: voltaram para pegar mais alguma coisa, só pode ser. Na verdade foi uma confusão difícil de entender. Parece-me que mais duas pessoas voltaram pra esconder uma bicicleta que não era a minha. Neste instante fiquei atento em relação à Magrela Guerreira, sem ela não tinha condição de continuar a expedição. Ainda no interior da barraca imagino que a bicicleta deles foi abando-nada pelas redondezas. Continuei apreensivo para ver o final daquele filme em que eu participava involuntariamente. Passado alguns minutos, novos passos, mas nada além disso. Neste momento meu coração acelerado poderia se equiparar ao de um soldado em campo de batalha. E enquanto um combatente em ação, não poderia dormir e tampouco cochilar. Sentinela exemplar.

Page 37: CS - V1

37CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

Ficar atento a todo movimento surtiu efeito. Identifiquei mais uma situação embaraçosa. O barulho de ferro oriundo do lado da barraca era um sinal claro: mexiam na minha bicicleta. Foi o suficiente para eu perder a paciência. Não pensei duas vezes e muito nervoso saí da barraca quando me deparei com um rapaz na tentativa de abrir o cadeado que prendia a bicicleta. Utilizando a estratégia pen-sada anteriormente engrosso a voz para intimidar a pessoa. Há resultado e o cara se assusta e procura argumentar algo, mas não deixo estender sua fala e começo a perguntar o que ele pretendia fazer com a minha bicicleta. O jovem, atônito pela mi-nha presença se levanta e, espantosamente, pede desculpa. Segundo ele, achou que era a bicicleta que tinham deixado minutos antes. Reforço, sem meias palavras, que não! E complemento: já vieram buscar o que você procura. Claro que a informação foi inventada. Eu não tinha a mínima idéia de onde a outra estava. Eu queria apenas manter distância daquele sujeito.

Enquanto ele se afastava, ainda perguntei sobre meus óculos ao lado da barra-ca, pois identifiquei que ele era uma das pessoas que estava no grupo da primeira ocasião. Surpreendentemente o jovem menciona algo que não pude acreditar, ques-tionou: Qual barraca? Aponto para a minha e insisto: Essa! Ele, com veemência, res-ponde que não havia barraca alguma no local. Sem querer prolongar o dialogo, não falo nada e o individuo vai embora. Na barraca, penso: Que noite!

Um cochilo. Foi o máximo que consegui após todos esses episódios. Quando o evento terminou o silêncio não imperou. Um grupo passou a ouvir músicas (com um volume estarrecedor) em seus veículos estacionados no posto. Infelizmente fo-ram parar somente quando eu arrumava minhas coisas para seguir viagem. Pelo menos eu estava prestes a retornar à estrada.

A lição da noite: procure escolher bem o lugar para o acampamento, sobretu-do, quando estiver sozinho. Tenha cautela. E antes de deitar, verifique se algo não ficou para fora da barraca. Conforme costumam dizer; prevenir é melhor do que remediar.

SURPRESAS: DA CACHOEIRA À ESCOLA ABANDONADA.

Definitivamente, o dia e a noite anterior não havia sido dos melhores. Desejava, mais uma vez, tranquilidade neste terceiro dia de pedal. Sem a possibilidade de dormir, não houve problema para acordar e antes das sete horas da manhã já estava

Page 38: CS - V1

38CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

na estrada. Buscava ficar o mais longe possível daquele local.

O atraso no cronograma se aproximava dos 100 km ou duas cidades em relação ao roteiro original. Essa distância implicava – diante da realidade observada – pra-ticamente o acréscimo de um dia no projeto. Adeus ao encontro com o pessoal de Curitiba? Reverter a situação não ficou em segundo plano, mas estava ciente que precisaria pedalar muito.

Serra da Esperança. Localizada na região de Guarapuava, marcava a altitude máxima do meu roteiro. Conscientemente não estranhei as inúmeras subidas após a saída de Cantagalo, mas justiça seja feita e a verdade dita: O trecho também pro-porciona descidas alucinantes que revitalizaram meu humor e energia. Que visual maravilhoso! O registro fotográfico é apenas limitado em razão do tempo curto. Ne-cessitava aproveitar a velocidade proporcionada em cada descida. Ainda mais com a trégua do vento-contra. Movimento e um ritmo mais rápido ajudariam a diminuir parte da distância.

Nesta região do Estado nota-se com muita facilidade a existência de um núme-ro maior de Araucárias que se tornam uma beleza à parte na paisagem. Impossível não registrar sua presença marcante. Com aproximadamente mil metros de altitu-de o horizonte se apresenta infinitamente majestoso. As subidas ainda eram parte constante do trajeto, mas eu começava a me adaptar a elas e também a trabalhar melhor o fator psicológico que, sem dúvida, passou a ficar mais bem preparado para encarar aclives monstruosos antes da chegada à Guarapuava.

Surpresa! Justamente quando usufruía do aumento da velocidade média es-cutei o indesejado som de vazamento de ar. Pneu estava furado. Mas certamente se tratava de um pequeno furo. Para minha felicidade demorou a murchar. Como eu estava exatamente há vinte quilômetros de Guarapuava aproveitei para seguir viagem daquele jeito. Era próximo ao meio dia e esperava encontrar um restaurante na entrada de cidade, assim aproveitava para almoçar e posteriormente trocar a câmera. Não estava disposto a perder o ânimo conquistado pela manhã.

Na entrada de Guarapuava não foi difícil encontrar um posto de combustível com o estabelecimento desejado. No restaurante, mais uma vez, a refeição é um de-licioso buffet, bom e barato. Para não perder tempo após o almoço, fui à borracha-ria anexada ao posto na pretensão de solicitar ao funcionário o reparo na câmera furada. Tinha executado a tarefa somente uma vez e, portanto, não achei que aquele era o momento para realizar a segunda substituição. Certamente perderia um tem-po mais do que precioso. Por isso a preferência pela borracharia. Em questão de poucos minutos estava tudo pronto. Novamente na estrada. Desta vez com outra

Page 39: CS - V1

39CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

surpresa: Pelo céu carregado a chuva não demoraria a cair. Adiante!

O trecho da rodovia que passa por Guarapuava é longo e ainda no perímetro urbano começaram os primeiros sinais da chuva. Faço uma breve parada em um ponto de ônibus para certificar que a câmera fotográfica não molharia. Eu estava consciente e prevenido para situações como esta. Pelos relatos de determinados cicloturistas notei que não existia muito segredo. Para não deixar a bagagem en-charcada bastava proteger tudo com sacolas plásticas, essas que se adquire em su-permercado, solução simples e eficaz.

Como era a primeira vez que chovia durante a viagem não titubeei em registrar o momento para mostrar – futuramente – que um cicloturista está sujeito a diver-sas variações climáticas. Não esperei a chuva parar e continuei a pedalar surpreen-dentemente em um giro muito bom. A velocidade aumentava durante as generosas descidas.

Sem problema nenhum por causa da pista molhada sigo em direção à Serra da Esperança. Por alguma razão o ritmo parecia mais rápido com a chuva, mas esta se mostrou passageira e poucos quilômetros depois o tempo começou a clarear nova-mente. Em um declive aproveitei para filmar minha felicidade diante das circuns-tâncias: barriga cheia, descida, chuva e alma lavada. No vídeo transparece a combi-nação desses elementos somada à sujeira visível no rosto.

Segundo meu roteiro a elevação máxima aconteceria na cidade de Guará, cerca de vinte e cinco quilômetros depois de Guarapuava, portanto, mais algumas subidas no caminho, todavia, não eram um obstáculo como no inicio. Graças a um controle, sobretudo, emocional elas proporcionavam um pedal mais tranquilo.

Os Pinheiros do Paraná continuavam visíveis à beira da estrada e também ao horizonte. A semente dessas árvores, conhecidas como pinhão, cujo interior é co-mestível depois de assado ou cozido, é ampla e comumente vendida no supermer-cado ou mesmo no acostamento da rodovia, fato presenciado, principalmente nesta região central. Sem muito apreço pelo sabor do pinhão não tinha interesse em ad-quiri-lo. Caso contrário teria que resistir à tentação, afinal, cada centavo estava re-servado para as refeições do meio-dia. Mas de qualquer forma me chamou atenção para o grande número de pessoas que realizavam a sua venda.

Para tornar o pedal ainda mais agradável, uma bela surpresa pelo caminho. A chuva que deixara o asfalto molhado exigia ainda mais atenção para evitar aciden-tes. Inevitável mesmo era permanecer limpo, os respingos dos pneus nas roupas (RN sobre vestimenta para chuva) e no corpo eram visíveis, mas pra falar a verdade,

Page 40: CS - V1

40CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

não me importava com tal aspecto naquele instante. Mais uma vez conseguira aque-le estado de êxtase. Para aumentar minha alegria surge, inesperadamente, à beira da estrada, uma cachoeira. Ela estava quase no topo da subida e acessível àqueles dispostos a aprecia-la. Desconhecia sua existência e por isso fiquei surpreso a ponto de quase não acreditar no que enxergava. Maravilha da natureza!

O cenário e a ocasião foram um prêmio pelos três dias pedalados nos aclives do primeiro e segundo planaltos. Muito embora acredite que a maioria dos ciclo-turistas não pedala com a intenção de ser premiada com essa ou aquela paisagem, pois a vitória principal está justamente em realizar aquilo que muitos desejam, mas poucos colocam em prática: a renúncia ao estilo de vida habitual para lutar pelos seus ideais.

A obra que a natureza se incumbiu de fazer tornaram o momento inesquecível e a sensação única. A cachoeira no território do município de Guará ficou marcada pela beleza e resistência da natureza à ação dos homens. Ainda observava atrás da queda d’água o Pinheiro do Paraná. Resultado: um ambiente ímpar e perfeito para recuperar as energias e seguir em frente.

Após registro da cachoeira através de vídeo (NR sobre o conteúdo) e foto, se-guia a BR 277 pelo roteiro original, incluindo as devidas mudanças em razão do atraso. Meu objetivo continuava o mesmo: pedalar enquanto possível. O período vespertino chegava ao fim quando uma placa na estrada indicava o início de desci-da de serra. Extensão: sete quilômetros. A mensagem foi mais do que bem-vinda. Coroava o excelente dia.

Parece que para ser aventura de verdade não pode ser fácil. A descida não pôde ser encarada como deveria em razão das lombadas presentes no acostamento em uma distância pequena entre elas. Sem chance de ganhar velocidade ao trafegar pelo acostamento. Que injustiça! O fluxo de veículos não era pequeno e incluía mui-tos caminhões que por questão de segurança desciam em baixa velocidade. A con-sequência: trânsito mais lento e formação de uma longa fila.

Por alguns metros eu resisto à idéia de pedalar na pista e a bicicleta salta quase desastrosamente os obstáculos. Em um raro momento sem automóveis ou cami-nhões saio do acostamento e vou à faixa principal, uma decisão arriscada e tomada somente para completar a descida rapidamente. A atitude não prosseguiu por mui-to tempo, logo à frente faço parte do congestionamento e fico atrás de um carro, mas não demora muito pra uma caminhonete aparecer atrás de mim. Sem querer virar um sanduíche, embora estivesse todo equipado, inclusive com farol e lanterna acesos, não pensei duas vezes em voltar para o acostamento repleto de lombadas

Page 41: CS - V1

41CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

miseráveis que provocam a ira de muitos que passam de bicicleta por esse trecho.

Em uma das poucas leituras de cicloturistas sobre o trajeto pela BR 277 me lembro das recomendações sugeridas pelo experiente Valdo – um cicloturista com seus mais de sessenta anos – que me pediu atenção especial durante a descida. Em sua passagem pelo local confessou que também ficou muito chateado com a existência das lombadas e que por muito pouco não foi ao chão. Situação realmente lamentável.

Durante a descida, mesmo no escuro, avistava ao lado esquerdo da rodovia, o conhecido Morro do Chapéu, nome alusivo ao formato da montanha, uma bela paisagem já presenciada em uma viagem de automóvel com a família realizada no ano anterior. Ainda assim faço uma breve parada para registrá-lo, contudo, pela ausência de luz mal consigo enxerga-lo na fotografia.

No final da descida da serra, o município de nome peculiar: Relógio. Obser-vo um movimentado posto de combustível à esquerda com a marcante presença de caminhões, ao lado direito uma lanchonete e borracharia, nesta última resolvo parar e perguntar ao funcionário sobre a possibilidade de passar a noite em algum lugar no posto existente no outro lado da rodovia. O senhor que me atendeu, era na verdade, o dono dos estabelecimentos deste lado direito e que ficavam paralelos à casa dele. Infelizmente ele não me convidou para dormir na casa dele, mas fez uma grande recomendação.

A indicação do senhor referia-se a uma escola abandonada que estava ao lado de um terreno baldio vizinho à borracharia. Não consigo lembrar o nome do senhor, mas jamais esquecerei a atenção concedida. Emprestou-me sua lanterna para facili-tar meu acesso ao local. Quando foi questionado sobre a presença de outras pessoas no imóvel, ele respondeu que ocasionalmente mendigos se abrigavam naquele lu-gar, principalmente no inverno. Ainda não estávamos na estação, mas a temperatura baixa sugeria que eu poderia ter visita a qualquer momento da madrugada. Aproxi-mando-me da escola, percebo que ninguém se encontrava no cômodo definido para pernoitar. Precisaria conversar civilizadamente sobre a divisão do ambiente apenas se alguém batesse à porta de noite. Buscava manter a calma, mas estava apreensivo apesar da calmaria aparente da área. Não queria passar mais uma noite acordado.

O dono da borracharia tinha avisado sobre a existência de chuveiro no ba-nheiro da lanchonete. Não pensei duas vezes para arrumar rapidamente as coisas no cômodo da escola, incluindo a barraca montada, mesmo com a cobertura do lo-cal. Sentiria mais seguro dentro dela. Aproveitei para lavar a roupa de ciclismo em uma torneira ao lado da borracharia. O sabão foi emprestado pelo mesmo senhor.

Page 42: CS - V1

42CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

Não precisa chegar à capital todo sujo. No banheiro, outra surpresa: banho quente, um milagre. Ficaria devidamente limpo após a chuva no período da tarde. Acho que nunca havia valorizado tanto uma oportunidade dessas. Pensava o quanto des-prezamos, ainda que inconscientemente, as coisas simples do nosso cotidiano pelo simples fato de estar sempre à disposição.

De volta ao ‘quarto de hotel’, deixo tudo dentro da barraca, exceto a bicicleta que fica cadeada dentro do cômodo. A porta existente era carente de tranca. A so-lução foi simples, fechar a porta e usar os extensores que amarravam a bagagem para evitar a abertura dela durante a noite. Em caso de emergência serviria como alarme. Se as armadilhas funcionariam não sei, esperava não tirar uma prova real de sua eficácia.

A difícil missão de simplesmente dormir. A noite foi relativamente tranquila, ainda mais se comparada às anteriores, contudo, novamente não consigo adorme-cer. Atento a cada pequeno movimento não tirava o foco do que supostamente acon-tecia ao redor da escola. Procurei pensar positivo para não desestabilizar a parte psicológica. No final das contas eu estava limpo, um pouco descansado e minhas coisas em ordem no alojamento. Antes de tentar dormir eu havia agradecido ao senhor da borracharia pela ajuda dispensada. Para economizar, minha janta ficou resumida às bolachas do estoque transportado na mochila. O café da manhã seguin-te seria servido com o mesmo cardápio.

A SUPERAÇÃO INIMAGINÁVEL

Início do quarto dia na estrada. Ainda no cômodo da escola abandonada cer-tifico que nada ficou para trás a não ser o farelo das bolachas recém-devoradas. Coloco a mochila sobre o bagageiro e estou pronto para sair após mais uma noite sem dormir. Ainda não são seis horas da manhã, mas o movimento já era intenso no posto ao lado. Definitivamente a temperatura baixa e a minha roupa lavada há pou-cas horas e ainda úmida não foi uma combinação boa. Sem alternativa utilizei da mesma forma. Para complementar visto uma blusa de frio já que o moletom ficara perdido na estrada. Essa questão não me preocupava, pois uma vez em movimento o corpo aquece e o tempo frio não se torna um obstáculo intransponível. A não ser na presença de ventos fortes, que não era o caso.

Neblina. Os primeiros minutos de pedal são tranquilos, pouco trânsito, mas

Page 43: CS - V1

43CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

muita cerração que exigia novamente ainda mais atenção. Faço questão de deixar a lanterna (ligada) bem visível atrás da bagagem para alertar os motoristas sobre a minha presença. A paisagem peculiar no campo é transformada pela condição climática e poderia muito bem desviar a concentração de qualquer individuo. Por mais de uma hora fui obrigado a pedalar sob forte nevoeiro. Com o tempo um pouco mais claro e a infiltração dos primeiros raios solares sobre nevoa tornava o cenário bucólico agradável de ser observado.

Objetivo do dia: chegar à Curitiba, distância: 215 quilômetros. A quilometra-gem alta resultava pela soma de todos os atrasos anteriores onde o cronograma não foi alcançado de acordo com o planejamento inicial. Algo que tornava a finalidade de pedalar à capital ao término do dia praticamente impossível. Afinal meu deslo-camento máximo tinha sido de “apenas” 160 km no primeiro dia, quando as forças e energias ainda não estavam desgastadas. Praticamente impossível é diferente de impossível e dessa forma, contrariava todas as especulações e ainda acreditava na realização do plano inicial.

Sem dúvida o ritmo era maior se comparado aos dias anteriores. A dispersão da neblina cede espaço para um sol forte que não chegou a prejudicar. O tempo limpo e sem muito vento ajudava a manter o giro mais constante. Mas mesmo pe-dalando bem a chegada ao município de Irati – distante cerca de 60 quilômetros – ocorreu somente na hora do almoço. Como completaria mais de 100 quilômetros no período da tarde?

Na região de Irati faço uma parada em um restaurante à beira da estrada. No-vamente a comida é farta e o preço bom. Aproveito para ligar para o João Paulo em Curitiba e mantê-lo informado sobre a minha localização. Inicialmente tinha combi-nado de avisá-lo sobre minha chegada somente à capital para descermos a serra no dia seguinte que seria feriado. Mesmo com toda a distância restante para Curitiba, informo que consigo chegar até o final do dia. Mais tarde eu saberia que o João não havia acreditado nas minhas palavras.

Conversei um pouco com o dono do restaurante para ter informações sobre o trajeto que enfrentaria até a capital. Ele também não depositou muito esperança na minha chegada até o final do dia, não pela dificuldade do relevo, mas em razão da distância. Sem tempo a perder, a parada do almoço não durou uma hora e de novo retornava à estrada.

O trecho na região de Irati encantava os olhos e proporcionava registros fan-tásticos da natureza exuberante do local. Mas com meu tempo ainda limitado, faço poucas fotografias. Essa mostrava ser uma das desvantagens de viajar com data

Page 44: CS - V1

44CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

pré-estabelecida para a chegada e a volta. Tudo deveria ocorrer conforme o plane-jado para não comprometer a qualidade da viagem. Mas imprevistos não faltaram durante esses quatro dias.

A estrada boa confirmava as palavras do dono do restaurante e as condições do relevo favoreciam um ritmo cada vez mais forte. Minha palavra ao João era mais um incentivo para não desanimar diante das subidas que surgiram nas proximidades da cidade de Palmeira. Nesta região o relevo oscilava bastante. Em determinados momentos estava em uma descida quilométrica e sinuosa com uma visão privile-giada dos arredores. Em outros instantes, a única imagem à minha frente era de mais uma subida interminável. Paciência é algo que mais se pratica no cicloturismo.

Mesmo com a oscilação do relevo, finalmente, consigo chegar à Palmeira, mas estava escuro por causa do horário avançado. O ponteiro do relógio marcava sete horas da noite. Antes, no entanto, vale ressaltar uma parada durante a tarde em uma lanchonete às margens da rodovia onde aproveitei para comer dois salgados, tomar um refrigerante e utilizar o local muito limpo para fazer as necessidades básicas.

Na saída do estabelecimento um senhor começa a conversar comigo e explico sobre a viagem, fato repetido algumas vezes durante a expedição. Mas ele fez uma pergunta que, no mínimo, achei curiosa, questionou se minha viagem baseava-se em alguma promessa realizada. Respondo que não. Ele parece desapontado e curio-so para então saber ou entender a motivação real. Tento explicar em poucas pala-vras sobre o cicloturismo e que o deslocamento à capital fazia parte do treinamento para o Chile, afinal a Travessia do Paraná significava o começo dos treinos para a grande expedição ao Oceano Pacifico. Se ele me entendeu, não sei. Mas continuei em direção ao meu destino.

A chegada à Palmeira sinalizava que faltavam mais duas cidades para alcançar Curitiba: São Luiz do Purunã e Campo Largo. Apesar da escuridão não pensava em parar enquanto minha a palavra não fosse cumprida. Estava cansado, mas ainda sentia capacidade física para continuar pedalando. Como a estrada tinha acosta-mento, também concluí que estava seguro. Com o avanço da quilometragem au-mentava a altitude novamente e com os aclives também apareciam a famosa tercei-ra faixa. Ela é exclusiva para os veículos lentos (geralmente caminhões) para evitar o congestionamento na pista principal. A inclusão desse espaço acontece em detri-mento do acostamento. Consequentemente o ciclista é obrigado a dividir o mesmo espaço com esses veículos na terceira faixa.

Não foi a primeira vez que precisei compartilhar a terceira faixa. Ela é comum nas subidas mais íngremes da rodovia. No entanto, desta vez, a perda do acosta-

Page 45: CS - V1

45CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

mento me obrigava a pedalar na mesma faixa destinada aos caminhoneiros duran-te a noite, algo que preocupava pelos relatos de outros ciclistas que tinham uma “bronca” muito forte com esses condutores. A principal reclamação destinava-se à falta de respeito, sobretudo, na distância mínima exigida por lei que é de 1,5 metros. Não duvido dessa contestação, mas preciso ser justo e dizer que ela não pode ser generalizada, pois em nenhum momento desses dias na estrada estive em um mo-mento mais delicado por falta de segurança em razão de uma possível imprudência.

Com ausência do acostamento na região de Palmeira, pedalava sempre sobre a faixa da direita. Não tive nenhum problema com os caminhões, a maioria respeitava minha presença na estrada, inclusive a passagem acontecia a mais de um metro e meio da bicicleta, que por sua vez, estava devidamente iluminada e contribuía bas-tante para esse comportamento por parte dos motoristas.

Vale a ressalva que poucos condutores de veículos automotores ainda resistem ao respeito à lei e à vida e passam muito próximos da bicicleta. Por isso cada vez mais eu estava convencido que cicloturista também precisa ter sangue frio e não se apavorar diante das circunstâncias mais delicadas. Neste instante a preocupação também poderia se voltar com a questão dos assaltos, principalmente pelo horário e a circulação em uma região totalmente desconhecida. Mas, felizmente, a tranquili-dade imperava e isso não me afligia. Tinha noção dos riscos, mas isto, nós todos es-tamos sujeitos, mesmo em uma simples caminhada até a esquina de casa. Continuei.

Noite adentro, sozinho, cansado e com fome, deparo-me com um posto de com-bustível em São Luiz do Purunã. Pensei, sinceramente, em ficar e passar a noite no local. Mas eu tinha pedalado tanto e não poderia me entregar a essa altura do campeonato. Ainda mais com a informação recebida pelo funcionário do estabele-cimento. Segundo ele, existia um trecho longo de descida à Campo Largo, distante a 26 quilômetros. Isso me animou bastante.

Sem resistir à façanha de chegar no dia previsto, coloquei a Magrela Guerreira novamente na estrada e continuei. Realmente havia uma longa e alucinante descida de serra. Uma experiência nova e radical: declive sinuoso em alta velocidade, na-quela hora da noite. Esquecia de quase tudo e aproveitava o momento. Fiz apenas uma pausa para fotografar a placa com a quilometragem das próximas cidades. O registro só foi possível graças ao flash da câmera. Nada mais era visível, apenas mi-nha força de vontade para pedalar mais dez quilômetros, chegar à Campo Largo e avisar o João para me esperar na entrada de Curitiba, conforme o combinado.

Em Campo Largo, as condições do tempo são estranhas. Frio e uma mistura de neblina com chuvisco, algo que não soube identificar. Mas, finalmente, estava

Page 46: CS - V1

46CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

cada vez mais próximo do destino. Na entrada da cidade eu não consigo encontrar nenhuma placa que confirme o nome do local, mas a quantidade de luzes – que embaraçosamente se visualizava em meio do mau tempo – indicava um munícipio metropolitano. Para tirar a dúvida, resolvo entrar um pouco na cidade e no primeiro posto de combustível do caminho (que já estava fechado) converso com os seguran-ças presentes. Eles confirmaram a chegada à Campo Largo e que Curitiba estava a praticamente 20 km. Eu tinha pedalado, até aquele momento, 200 km, mais vinte não seria nenhum sacrifício, meu corpo ainda aguentava e a mente estava prepara-da. Mas algo que não esperava aconteceu.

No posto de combustível liguei para o João Paulo na intenção de avisá-lo sobre a minha chegada e a possibilidade para me aguardar na entrada da capital, afinal, já se aproximava da meia-noite. O telefone demora a ser atendido e apenas na se-gunda tentativa ouço sua voz, a ligação não era boa, mas percebia-se nitidamente que estava sonolento, certamente acabara de ser acordado. Para minha surpresa ele disse que estava na praia. Praia? Como assim? Mencionou o nome dela que foi compreendido somente depois de repetir duas vezes. Foi quando caiu a ficha e per-cebi que meu “guia” não poderia ajudar. Com a minha ligação em Irati (ao meio-dia) João explicou que não imaginou que chegaria a tempo em Curitiba. Assim, resolveu descer a serra em direção à praia com a galera. Que azar!

Combinei com o João Paulo que encontraria ele e toda a turma no dia seguinte durante a descida da Serra do Mar, no entanto, infelizmente estaríamos em sentidos opostos já que o retorno deles foi adiantado.

Com a mudança dos planos fiquei sem saber ao certo o que fazer. Não tinha mais motivo para continuar à capital naquele momento. Com a grandiosidade da cidade somada ao horário e a ausência de um local certo para pernoitar não demo-rei em decidir ficar em Campo Largo. O posto onde eu estava seria uma boa opção já que aparentava, pelo menos, ser seguro. Precisava apenas pedir autorização para os seguranças. Ao que tudo indicava o local exigia vigilância redobrada, pois quatro ou cinco funcionários realizavam a ronda pela área.

O saldo diário tinha sido muito positivo. Considerava o término do pedal em Campo Largo uma verdadeira vitória dentro de todas as situações encontradas pelo caminho. Não tinha concluído o cronograma de chegar à Curitiba em quatro dias por questão de segurança, afinal, restavam pouquíssimos quilômetros e meu avan-ço só não aconteceu pela falta de apoio. Apesar de toda a canseira, estava muito feliz. Para comemorar liguei rapidamente à minha mãe que ficou mais aliviada ao saber das notícias. A omissão de detalhes foi imprescindível para não deixa-la pre-ocupada. Pelo mesmo motivo somente meu pai não estava ciente sobre a viagem.

Page 47: CS - V1

47CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

Fiquei mais uma vez sem tomar banho, mas isso novamente não me incomo-dou. A necessidade maior era finalmente dormir, nada mais. O jantar repetiu o café da manhã. A barriga não reclamava por comida. Ela e todo o corpo exigiam, na ver-dade, uma boa noite de sono.

Montei acampamento em um local aberto designado pelos seguranças. O ter-reno plano e cimentado favoreceu o levantamento ainda mais rápido da residência. Em poucos minutos a bagagem se encontrava toda dentro da barraca. Para ameni-zar a perda de temperatura corpórea tratei logo de me enrolar na coberta. A região de Curitiba é conhecida também por apresentar as temperaturas mais baixas do Estado. Realidade constatada durante a madrugada.

Mesmo com frio (suportável) não poderia reclamar. A noite foi sem dúvida a mais tranquila da viagem até aquele momento. Meu sono foi despertado em poucos momentos em razão da comunicação via rádio entre os seguranças. Ainda assim consegui cochiladas um pouco mais longas.

A EMOCIONANTE CHEGADA!

Acordei por volta das sete horas da manhã, mas demorei algum tempo para levantar, já passavam das oito horas quando o acampamento foi desmontado. O ho-rário tardio se justificava não somente pela canseira ainda presente, mas também pela indecisão de não saber qual alternativa colocar em prática.

Por algum motivo coloquei na cabeça que a passagem por Curitiba acontece-ria apenas na presença de algum amigo ou conhecido para me guiar pela cidade até a saída ao litoral. O João Paulo estava com a galera na praia e eu tinha apenas uma amiga que morava na capital, cogitei passar na casa dela, fazer uma visita e consequentemente ter informações sobre qual trecho dentro da cidade era o mais apropriado para seguir em direção à Serra do Mar.

Antes de começar a expedição entrei em contato com essa amiga para avisar sobre a possibilidade de reencontra-la, visto que há muitos anos não tínhamos con-tato. Com o telefone dela em mãos não hesitei em chama-la por meio de um telefone público no posto de Campo Largo. Ela ficou surpresa com a conclusão da viagem sobre duas rodas, mas infelizmente não poderia me ajudar. Assim como os amigos curitibanos ela também aproveitara o feriado para ir à praia. O que fazer?

Page 48: CS - V1

48CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

Realmente eu não sabia exatamente qual decisão tomar. As horas passaram e a fome aumentou, uma vez que meu café da manhã tinha sido o mesmo dos dias an-teriores; bolacha e água. Às 11 horas da manhã ainda permanecia no mesmo local e aproveitei para providenciar o almoço na lanchonete paralela ao posto. As opções não eram nada animadoras. Apenas salgados fritos e inundados em gordura. Mas na estrada não se tem muita escolha e para não passar fome acabei por comprar dois salgados.

Na estrada. Com a barriga cheia é mais fácil pensar. Dessa forma tomei a de-cisão de procurar, sozinho, o caminho para o litoral. Com o tempo bom, vou em direção à Curitiba e consequentemente para a Serra do Mar. Se nenhum apoio me aguardava na capital, meu deslocamento por ela seria à base de muitas perguntas até o retorno à BR 277 sentido litoral, pois tinha conhecimento que logo na entrada da cidade a rodovia cedia espaço para as ruas e avenidas. Precisaria de várias infor-mações para voltar à BR 277.

Por volta do meio-dia chegava, finalmente, à entrada da capital do estado, Curi-tiba. Uma vitória parcial da minha aventura. A distância percorrida até aquele mo-mento era de 608 quilômetros. Mas tinha muito para pedalar ainda. Com muito cuidado para não pegar um caminho equivocado, solicito informações com muita frequência e logo nos primeiros trechos dentro da cidade é visível o nível de educa-ção dos curitibanos, muito embora, os mesmos levem a fama de ser um povo ‘frio’, mais fechado. Minha impressão não poderia ser a mesma desta reputação já que as pessoas se mostravam solícitas (NR sobre ter sua própria opinião sobre as coisas). Para todos aqueles a quem questionei sobre qual caminho deveria seguir, foram muito bem educados em explicar detalhadamente como prosseguir.

Para minha felicidade, o roteiro pelo qual sou indicado me direcionava justa-mente para uma parte da região central digna de uma capital: edificações e grandes monumentos históricos, praças e jardins muito bem conservados que me encanta-vam, mas não surpreendiam, afinal, Curitiba é considerada uma das cidades mode-lo do país.

O trânsito na capital é tranquilo. Era feriado e aqueles que não estavam em suas casas, aproveitaram para ir à praia. Desse modo, o deslocamento pelas ruas da cidade foi sem dificuldade. Ponto positivo. As surpresas que realmente não espera-va surgiram quando repentinamente estava diante do Teatro Guairá, um dos mais expressivos do Paraná, sua fachada é marcada pela obra daquele que é considerado um dos maiores artistas do estado (NR sobre Poty).

Ao redor do teatro as edificações chamavam atenção pela sua peculiaridade,

Page 49: CS - V1

49CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

um estilo pelo qual não consigo encontrar comparação para descrevê-lo. Na frente do teatro uma praça impecavelmente linda, limpa e organizada é motivo para fazer uma pausa e registrar o momento. Aproveitei que uma moça passava ao meu lado e solicitei gentilmente para tirar uma fotografia minha diante do Teatro. Agradeço a atenção e continuo pedalando conforme orientações dos próprios moradores pela tranquila e bonita Curitiba.

Para mim, tudo era novidade, afinal, se tratava da minha primeira visita à Curi-tiba, uma das capitais mais modernas do país, com uma estrutura urbana espelhada em países de primeiro mundo. Particularidade comprovada e admirada. No cami-nho também encontrei a Universidade do Paraná, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. O mais curioso, no entanto, ficava na frente da universidade: uma papelaria com o xerox ao preço de sete centavos. Na época fiquei surpreso pelo preço bem mais baixo do que em Marechal Rondon, onde eu e todos aqueles que necessitavam do serviço de fotocópia pagava treze centavos, quase o dobro. Um absurdo.

Não demorou muito para eu ficar diante de outro monumento importante: A Casa do Expedicionário. O acesso ao interior do museu estava fechado, mesmo as-sim foi possível observar peças e maquinários utilizados no período de Guerras no continente europeu onde a participação de soldados paranaenses é lembrada por meio da exposição de placas condecorativas na pequena praça na frente do museu, onde também se encontram armamentos de combate, tanques de guerra e o im-pressionante Avião tipo P-47 D Thunderbolt, utilizado pela FAB na 2ª Guerra Mun-dial, como indica a informação paralela à aeronave. Enquanto acadêmico de história ficava admirado por toda a exposição, um presente inesperado proporcionado pelo cicloturismo.

A partir das orientações dos moradores me aproximava do retorno à BR 277. Sem querer acabei por entrar em uma avenida muito movimentada, no qual não recordo o nome, mas que passava ao lado do Jardim Botânico, talvez um dos pontos turísticos mais famosos da capital. Para não chegar muito tarde ao litoral evitei a entrada e deixei de conferir a beleza do local. Mas pelo menos registrei a estufa, principal obra do empreendimento. Que felicidade! Era mais do que eu imaginava encontrar. E sozinho seguia para o litoral.

Após alguns quilômetros por Curitiba, chegava novamente à outra extremida-de da BR 277 que atravessa todo o estado. Sentido litoral, essa foi a direção. Quase às 13 horas, uma placa na rodovia indicava Matinhos a uma distância de 104 km, ou seja, ainda havia esperança de completar a expedição em cinco dias, mesmo com a quilometragem alta, pois além do ânimo de quem está prestes a finalizar seu obje-tivo eu ainda me beneficiaria com a descida da serra. Perfeito.

Page 50: CS - V1

50CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

Ao que tudo apontava o encontro com João Paulo, Aramis e os demais ciclistas aconteceria durante a descida da serra. Enquanto isso aproveitava todo o visual oferecido gratuitamente – pelo menos para quem se locomove de bicicleta – pelo trajeto. O pedágio da Serra do Mar tem o preço mais elevado do Paraná. Um ver-dadeiro absurdo. Ainda bem que meu meio de transporte é a bicicleta. E com ela pedalava em plena Floresta Atlântica, diga-se de passagem, muito bem preservada, sobretudo, por ser uma área de proteção ambiental. Conforme avançava a paisagem ficava ainda mais espetacular e a descida da serra aos poucos se mostrava mais acentuada.

Não demorou muito e por volta das 15 horas encontrei – no outro lado da rodo-via – o primeiro ciclista da comunidade: Aramis Junior que subia com a sua bicicleta speed. Após o reconhecimento mutuo não pensei muito e freei bruscamente para diminuir a velocidade. Deixei minha bicicleta no acostamento e atravessei a estrada para conhecer honrosa e pessoalmente aqueles que haviam me inspirado muito a colocar a bicicleta na estrada e o sonho em prática.

Naquele momento conversei com o Aramis que avisou que a turma aparece-ria em breve. Enquanto esperávamos a reunião do grupo, conversávamos sobre a viagem e os planos para a grande Expedição até o Oceano Pacifico. Durante a prosa a galera apareceu. Bruno e o João Paulo surgiram ao finalizar mais uma parte da subida da serra.

O plano inicial pode ter sido modificado, mas encontrar com o pessoal na estra-da foi gratificante. De alguma forma, estávamos todos focados no mesmo objetivo. Aquela fase de treinamentos seria fundamental para concluir com sucesso a expe-dição que sairia do papel em poucos meses. Conversamos praticamente uma hora. Trocamos muitas informações e reafirmamos os planos para o próximo desafio.

Conhecer pessoalmente a famosa galera de Curitiba me animou ainda mais, pois comprovara a simplicidade dos meus futuros companheiros de viagem. É claro que aqueles poucos minutos não eram suficientes para conhecer uma pessoa, mas bastou para depositar confiança de que o estilo deles era compatível com o meu. Explico: ao buscar informações sobre cicloturismo me deparei com vários ciclistas e notei que muitos encaram a modalidade com uma série de pré-requisitos que muitas vezes me parecia pura vaidade. Já a turma da capital tinha um tipo mais despojado. A eles não importava marcas de bicicletas, peças e vestuário. Também não se preocupavam em dormir em acampamentos ou comer em qualquer lugar. O principal era a realização daquilo que tinha sido proposto independente do que nos seria apresentado durante os dias na estrada. Esse era o espirito!

Page 51: CS - V1

51CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

A conversa estava excelente, mas eu deveria seguir viagem. Na estrada desço a Serra do Mar em ritmo alucinante. A velocidade não impede que eu aprecie o fan-tástico visual que se estende por todo o percurso. Com o tempo bom a paisagem se destacava. A cada trecho realizava uma parada e registrava as belezas naturais; os vales, a fauna e flora da região.

Pedalar na serra requer atenção de todos aqueles que trafegam pela a mesma. É preciso cuidado especial, sobretudo, com os caminhões que descem para o litoral. Quando carregados os veículos necessitam ter a velocidade reduzida pelo condutor para não perder o controle. Situação parecida com aquela encontrada na Serra da Esperança, a diferença é que na Serra do Mar não existiam as incomodas lombadas no acostamento e proporcionava ao ciclista a ultrapassagem segura por estes cami-nhões, no entanto, esse nosso espaço se torna inexistente nos viadutos quando nos resta apenas um pequeno trecho para pedalar. Não chega a ser um obstáculo para quem está de bicicleta, mas a situação exige concentração redobrada, pois os cami-nhões são frequentes, uma vez, que a rodovia é rota obrigatória para o Porto de Pa-ranaguá, um dos principais do país. (NR sobre o escoamento da produção no oeste)

Ainda durante a descida da serra encontro mais dois ciclistas de Curitiba. João Paulo e Aramis avisaram que Guto e Gabriel estavam em um ritmo mais tranquilo. E sem dúvida a informação foi confirmada, mas também se constatava que tinham problemas com uma das bicicletas. Ao avista-los parados resolvo cumprimenta-los. Infelizmente não posso ajudar muito em relação à questão mecânica do pedivela solto de uma das bicicletas. Troco algumas ideias, aviso que o pessoal não está mui-to perto, faço um registro do encontro e continuo a descida.

Descer a serra me deixou com frio, mesmo com o brilho do sol sobre toda aque-la natureza. Fui obrigado a colocar o único agasalho que restava. Na sequencia no-vos horizontes magníficos diante dos meus olhos. Com o entardecer a claridade se tornava menor a cada giro do pedal. Finalizo a descida e chego ao “pé da serra” antes de escurecer totalmente. Em seguida surgem vários estabelecimentos ao lado da estrada, a maioria realizava a venda de produtos naturais. A banana era o mais visível em quase a totalidade das lojas e barracas.

Àquele momento meu estômago estava preenchido apenas pela refeição de Campo Largo (dois salgado) e poucas bolachas. A fome me fez parar e perguntar sobre o preço das bananas, uma das frutas mais preferidas entre os atletas. O preço compatível com meu bolso não assustou, contudo, a aquisição tinha que ser por ca-cho. E levar uma penca carregada na bicicleta não parecia uma decisão inteligente, mas pior ainda seria pagar e não poder levar. Quer dizer, na verdade o problema principal era não saciar a fome.

Page 52: CS - V1

52CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

Resolvi comprar um cacho inteiro de banana. Devorei rapidamente pelo menos uma dúzia de uma variedade menor e com o preço mais acessível. Não demorei muito no local e continuei a viagem. Uma sacola cheia de banana passou a fazer par-te da bagagem. Sem espaço para carrega-la sobre o bagageiro, a sacola foi amarrada no quadro da bicicleta, diante das minhas mãos. A qualquer instante elas poderiam servir de aperitivo na ausência de um local especifico para realizar a última “janta” da expedição.

Escurece e mais uma vez estou na estrada. O fluxo de veículos é intenso no sentido contrário ao qual eu pedalava. Os moradores que não encontrei em Curiti-ba retornavam para casa após aproveitarem o feriado no litoral. Por ser duplicada neste trecho, a rodovia não apresentou nenhum problema com esse aumento no trânsito. Continuei o pedal pelo trajeto mais tranquilo – pelo menos no que diz res-peito ao relevo – da BR 277 até a entrada da PR 407, um dos caminhos de acesso às praias. Aramis tinha me indicado essa estrada ao invés da PR 508, contudo, a pista duplicada não continua na PR 407, mas o trânsito contrário (direção Curitiba) ainda era bastante intenso.

Com a escuridão e o aumento no fluxo de veículos fiquei diante de um proble-ma sério: as luzes dos veículos em minha direção. Não tinha condições de olhar para frente que toda essa iluminação me cegava. O que conseguia fazer era olhar para baixo e pedalar mais devagar pelo acostamento. Atenção redobrada também pelo fato que neste espaço estava presente aqueles olhos de gato que servem como obstáculo para que os veículos motorizados não trafeguem pelo acostamento. Por inúmeras vezes não enxerguei esses obstáculos e saltei por eles em manobras que quase me levaram ao chão no final da viagem.

Demorou bastante para o movimento acalmar na estrada. Quando isso aconte-ceu, me bateu uma dúvida se eu estava mesmo no caminho certo. Não encontrava placa informativa e muito menos sinal de civilização. O trecho plano parecia infini-to. Estava ansioso para chegar ao destino final quando vejo luzes à frente e consigo identificar: Praia de Leste, finalmente litoral. Ainda não visualizava o mar. À beira da rodovia fui procurar informação sobre horário de ônibus para Curitiba. O que encontrei foi um ponto de vendas de passagem onde me informaram os horários de partida, inclusive com saída de Matinhos que aconteceria somente no dia seguinte.

Matinhos estava há quinze quilômetros de Praia de Leste. Com pouca ilumina-ção durante o caminho a escuridão predominava e eu não tinha a mínima idéia para qual lado o mar se localizava. Mas a areia em grande quantidade na estrada me fazia ter a certeza que me encontrava mesmo no litoral.

Page 53: CS - V1

53CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

Quase dez horas da noite do dia primeiro de maio de 2007 eu concluía com 736 km minha primeira expedição. Estava em Matinhos, um dos destinos mais procura-dos do litoral paranaense. A sensação da chegada é mais uma vez indescritível e na hora parecia inacreditável. Realmente passava um filme na minha cabeça de tudo o que ocorreu durante a viagem. Como não foram poucas as histórias pelo caminho eu tinha motivo suficiente para me emocionar.

Na entrada da cidade ainda encontrei estabelecimentos em funcionamento. Em comemoração pela conclusão da viagem parei com o propósito de comer um ca-chorro quente, mas foi somente um mesmo. Sem dinheiro para comer outro, fiquei restrito ao que estava à minha condição financeira. Na conversa com o funcionário descubro, finalmente, a localização do mar. Para minha surpresa não estava a mais de cem metros de distância. Aliás, por mais de quinze quilômetros foi essa a distân-cia que me separou do Oceano. O senhor que preparou o cachorro quente me orien-tou a ir ao centro da cidade e na sequencia caminhar pelo calçadão para conhecer a praia, pois a escuridão do local onde nos encontrávamos não proporcionava muita segurança. Depois de comer meu lanche fui em direção à praia através da indicação recebida.

Sem dificuldade encontro o local recomendado e começo a caminhada pelo calçadão e sinto a brisa do mar e com a iluminação da lua refletida sobre as ondas identifico sem nenhuma dúvida que a vitória da minha expedição era real. Estava novamente diante do imenso Oceano Atlântico. Dessa vez existia uma sensação di-ferente por todo o esforço para superar as dificuldades e obstáculos para chegar onde desejava. Um sonho realizado a partir de uma simples bicicleta e a força de vontade que vai além de qualquer expectativa. É o trabalho em conjunto entre seu corpo e mente em sua essência para alcançar a liberdade de seguir não apenas um destino, mas um estilo de vida nada habitual.

Pelo horário a praia estava deserta e por isso fiquei atento a qualquer atitude suspeita. Notei a presença de algumas pessoas a poucos metros e então de forma rápida e discreta aproveitei para registrar a praia e a bicicleta diante do Oceano. Precisava gravar aquele momento único.

Em seguida vou em direção à rodoviária e tenho a informação que o próximo ônibus sai às 5h30 da madrugada. A passagem estaria disponível para venda a par-tir das cinco horas. Assim como a praia, a rodoviária estava deserta. Na recepção do terminal tinha um centro de informações ao turista que pareceu um lugar perfei-to para pernoitar. A ausência de qualquer individuo me pareceu seguro e por isso preparei o local (sem montar a barraca) para descansar e na medida do possível, dormir, mas não sem antes deixar a bicicleta desmontada para entrar no bagageiro

Page 54: CS - V1

54CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

do ônibus.

Bicicleta desmontada. Apenas retirei as duas rodas e o banco. Coloquei o qua-dro e o selim dentro da barraca que serviu como uma mala bike (NR sobre o objeto) e amarrei as duas rodas. Pronto! Estava preparado para retornar. Tudo parecia em ordem. Estiquei minha coberta na recepção e antes de deitar utilizei o banheiro para fazer as necessidades e escovar os dentes. Sem chuveiro, apenas joguei uma água no rosto para tirar a sujeira mais grossa. Vou dormir e durante a noite a única presença notada é de policiais que não se incomodam em me ver no local.

A VOLTA E REVIRAVOLTA

Acordei às cinco horas da manhã e como está quase tudo pronto bastou guar-dar a coberta e o travesseiro e na sequencia comprar a passagem. Foi quando surgiu um grande obstáculo, a última surpresa que eu não gostaria de ter. No guichê da empresa de ônibus tenho a informação que o único cartão aceito como forma de pa-gamento é de débito. Tenho apenas um cartão de crédito e nem mais um centavo. Eu estava feliz porque o planejamento financeiro foi na medida para concluir a viagem, mas repentinamente surge essa notícia do cartão. Novamente precisava improvisar.

Saí de casa com apenas cinquenta reais que foram suficientes para a minha alimentação. A passagem de Matinhos para Curitiba custava somente dezoito re-ais dos quais eu não dispunha nenhum centavo. Erro de estratégia? Não sei. Como poderia imaginar que uma rodoviária não aceitaria cartão de crédito? Ainda mais nos dias de hoje quando a maioria dos estabelecimentos proporciona essa opção ao cliente. Fiquei sem saber o que fazer e voltei à recepção onde estavam minhas coisas.

Eu teria que pensar rápido em alguma alternativa. O ônibus sairia em poucos minutos. Começava uma corrida contra o tempo. Lembrei-me da possibilidade de sacar dinheiro com o cartão de crédito. Mas para isso eu precisava me deslocar até o banco que se localizava no centro. A bicicleta estava desmontada e eu não poderia perder nenhum segundo. Com sorte um carro apareceu na rodoviária para deixar um passageiro. Sem tempo para timidez, expliquei rapidamente a situação para o motorista que gentilmente compreendeu a urgência e me levou até o banco. Apre-ensivo, converso muito pouco durante o percurso e agradeço pela carona.

Page 55: CS - V1

55CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

Já no caixa eletrônico do banco, outro problema. Como nunca precisei usar essa comodidade de sacar dinheiro pelo cartão, não lembrava a senha para efetuar o serviço. As várias tentativas foram sem sucesso. Eu deveria ser rápido, pois além da saída do ônibus, meus pertences estavam todos na recepção, sem nenhuma prote-ção. Eu levara apenas minha carteira e celular para o centro.

Eu estava preocupado, não posso negar. Mas em nenhum momento deixei a tranquilidade de lado. Na saída do banco pensei no que poderia fazer. A praia fica-va a menos de cem metros e era o mesmo local que eu passara na noite anterior. A paisagem era infinitamente diferente. Com a claridade dos primeiros sinais do dia, conseguia visualizar, ainda que distante, perfeitamente as ondas do mar. A ca-minhada pelo calçadão me aproximava cada vez mais da praia quando me deparei diante de um dos cenários mais belos que presenciei em toda minha vida. O impres-sionante nascer do sol no horizonte. Surgia do fundo do mar com uma energia in-crível e cores intensas, inerente ao astro rei. Um verdadeiro espetáculo da natureza.

Para contemplar melhor a paisagem sentei em frente ao mercado de peixes da praia. O ambiente com embarcações de pesca na areia à espera de seus navegadores para mais um dia de trabalho, somado ao nascer do sol, resultaram em uma dos re-gistros fotográficos mais belos que já tive a oportunidade de fazer. Aquele momento fecharia com chave de ouro a viagem. E pensar que nada disso tinha sido planejado, muito pelo contrário, naquele instante eu deveria estar no ônibus que partira da rodovia sem a minha presença. Mas eu já não me preocupava por ter perdido esse primeiro horário, no entanto, ainda deveria achar um meio (legal) para conseguir o dinheiro da passagem.

Com o celular em mãos ligo para a casa dos meus pais em Foz do Iguaçu. A intenção era pedir com gentileza para minha mãe entrar em contato com a empresa do cartão de crédito para a emissão de uma nova senha que permitisse a realização do saque. Mas não foi tão simples assim. Em primeiro lugar, minha mãe não estava em casa e adivinha quem atendeu? Meu pai! Precisei explicar rapidamente a situa-ção para ele que não tinha conhecimento nenhum da viagem. Ficou surpreso e um pouco nervoso com a ocasião em que eu me encontrava. Sem poder ajudar muito avisou que a minha mãe estava em Marechal C. Rondon.

A notícia que a mãe estava no meu apartamento aumentou as chances de resol-ver esse problema. Pois eu tinha certeza que havia uma carta do banco com a senha. Liguei pra ela e também expliquei o que acontecera. Ela achou a carta. A senha era a mesma que eu havia utilizado (sem sucesso) minutos atrás no caixa eletrônico. Restava ligar para a empresa do cartão. A mãe ficou encarregada de fazer isso. Mi-nutos depois retornou minha ligação e mencionou que uma nova senha poderia ser

Page 56: CS - V1

56CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

emitida, contudo, somente através dos correios e após alguns dias. Tempo que eu não tinha disponível. Portanto, deixei toda minha família preocupada e não cheguei a uma solução. Ponto negativo.

Pensei nas possibilidades para conseguir o dinheiro. Cogitei pedir na rua. Mas quem acreditaria na minha história se nem mesmo a bicicleta estava comigo. Tam-bém levantei a hipótese de passar nas bicicletarias, mas ainda era muito cedo e não estavam abertas. Que dificuldade! Andava pelo centro da cidade em busca de uma luz no fim do túnel. Foi quando surgiu a idéia de simular a transação em algum estabelecimento, claro com a conscientização do responsável do local. Eu passaria o cartão no valor equivalente a vinte reais, porém não levaria nenhum produto, apenas o dinheiro. Mas será que alguém entenderia minha situação e aceitaria me ajudar?

A primeira tentativa para simular a transação foi em um posto de combustí-vel. Mas não foi fácil. Para saber a resposta – sim ou não – precisei esperar alguns minutos para conversar diretamente com o gerente. Explico resumidamente o que aconteceu e pretendo apenas conseguir os vinte reais para seguir à Curitiba. Não sei se ele compreendeu a minha situação ou gostaria de me ver longe do posto. De qual-quer forma, prefiro acreditar na primeira hipótese porque ele aceitou me ajudar com a condição que de não comentaria sobre o ocorrido. Combinado! Maravilha!

Com os vinte reais que precisava para a passagem ando a passos largos em direção à rodoviária. Se não me engano o próximo ônibus sairia exatamente às nove horas. O interessante na caminhada é que acabei por conhecer melhor a cidade. Novamente no guichê consigo comprar uma passagem. Mas então começou uma nova intervenção do destino. A empresa queria me cobrar uma taxa extra, que era maior que o preço da passagem, pelo transporte da bicicleta. Argumentei que ela estava devidamente desmontada e embalada. Levei um funcionário da empresa até a recepção para conferir. Ele, com cara de poucos amigos, me informou que era para conversar com o motorista. Fiquei no aguardo e também na expectativa até a hora do embarque.

Vale lembrar o episódio encontrado quando retornei do centro. Minhas coisas estavam em ordem na recepção, porém, quando eu já me preparava para levar tudo para a área de embarque, apareceu um funcionário da rodoviária nada educado. Disse que eu não poderia permanecer no local. Mencionei que sairia naquele exato momento. Pensei comigo: Sorte a minha que ele não apareceu de noite.

Precisei aguardar pela chegada do ônibus. A movimentação da manhã desper-tou minha fome e se tornava imprescindível comer alguma coisa. Comprei salgados

Page 57: CS - V1

57CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

e refrigerante para o estômago aguentar até Curitiba. Claro que o pagamento foi com o cartão de crédito em um estabelecimento ao lado da rodoviária.

Fim do mistério. O ônibus da empresa Graciosa estacionou na área de embar-que/desembarque e para minha surpresa não tenho nenhum empecilho por causa da bicicleta. O rapaz que fez o embarque dela no bagageiro ainda perguntou se o quadro era de carbono (NR sobre o material nas bikes). Naquele momento com-preendi que ele não sabia nada de bicicleta, mas isso não tinha relevância. O impor-tante é que não precisaria pagar taxa-extra. Aleluia! Finalmente uma etapa da volta para casa estava vencida. Haveria mais duas pelo caminho.

De Matinhos para Curitiba acompanho a Serra do Mar atrás da janela do ônibus e definitivamente a sensação não é a mesma de quando se está de bicicleta. A come-çar pela velocidade alta que impede a melhor observação de praticamente tudo que está pelo caminho. Não à toa em questão de poucos minutos já estava na rodoviária da capital que tem um movimento intenso. Busco ser rápido no meu desembarque até um local mais calmo e seguro. A venda de passagens fica em uma área distan-te deste ponto em que me encontrava. Deslocar-se com uma bicicleta desmontada e todo o restante da bagagem não estava cogitado. Então tenho a seguinte idéia: solicitar a um senhor que estava sentado – aparentemente no aguardo de alguém – para cuidar rapidamente das minhas coisas. Sem dúvida arriscava todos meus per-tences ao tomar uma decisão desse porte, entretanto, por algum motivo, depositei confiança naquele senhor.

Correria! No guichê descubro que o ônibus parte em menos de dez minutos. Precisava agilizar. Para a minha felicidade aceitaram meu cartão de crédito. Deta-lhe: a linha seguia para Toledo e não Marechal C. Rondon, isso implicaria em outro detalhe, eu necessitaria de muita sorte para encontrar um ônibus para Marechal após o desembarque em Toledo.

NOTA DO AUTOR

Mussum ipsum cacilds, vidis litro abertis. Consetis adipiscings elitis. Pra lá , depois divoltis porris, paradis. Paisis, filhis, espiritis santis. Mé faiz elementum girarzis, nisi eros vermeio, in elementis mé pra quem é amistosis quis leo. Manduma pindureta quium dia nois paga. Sapien in monti palavris qui num significa nadis i pareci latim. Interessantiss quisso pudia ce receita de bolis, mais bolis eu num gostis.Suco de cevadiss, é um leite divinis, qui tem lupuliz, matis, aguis e fermentis. Interagi no mé, cursus quis, vehicula ac nisi. Aenean vel dui dui. Nullam leo erat, aliquet quis tempus a, posuere ut mi. Ut scelerisque neque et turpis posuere pulvinar pellentesque nibh ullamcorper. Pharetra in mattis mo-lestie, volutpat elementum justo. Aenean ut ante turpis. Pellentesque laoreet mé vel lectus scelerisque interdum cursus velit auctor. Etiam ac mauris lectus, non scelerisque augue. justo massa.Casamentiss faiz malandris se pirulitá, Nam liber tempor cum soluta nobis eleifend option congue nihil imperdiet

Page 58: CS - V1

58CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA

A viagem de Curitiba para Toledo é tranquila. A passagem custou-me 80 reais. Gastei mais um pouco durante a parada do almoço, quando me alimentei apenas de salgados para economizar. Cheguei à Toledo no período da noite. No terminal rodo-viário outra notícia indicava que a saga ainda não estava finalizada.

O último ônibus que seguia para Marechal era do tipo metropolitano, uma linha de ônibus que não tem bagageiro e suas paradas são frequentes a cada cidade e distrito pelo caminho. A dúvida: como embarcar uma bicicleta em um veículo com essas características. Para minha sorte, em razão do horário, poucos passageiros embarcaram no veículo e o cobrador autoriza sem problema a subida da bicicleta, inclusive, ajudou muito nessa tarefa.

Se aconteceria mais alguma coisa inusitada eu não sabia, diante de todas as circunstância muito provavelmente eu seria surpreendido, mas naquela hora eu apenas desejava chegar em casa são e salvo. A calma e o silêncio marcaram o traje-to. A bicicleta e eu ocupávamos toda a área do fundo do ônibus. Durante o percurso pensava seriamente como carregaria toda aquela bagagem a pé da rodoviária de Marechal até a minha casa, uma distância de aproximadamente dois quilômetros.

A chegada em Marechal Rondon aconteceu por volta das dez horas da noite. Desembarco antes da rodoviária para ficar mais perto de casa. Mesmo assim custo a andar com todos aqueles itens que ocupavam mãos e braços. Caminhava dez me-tros e parava e isso se sucedeu por cerca de cem metros. Neste momento apareceu um conhecido acadêmico de História que eu apenas cumprimentava-o na universi-dade. Mesmo procedimento realizado quando ele passou por mim naquela noite e me surpreendeu logo na sequencia.

Ao notar minha dificuldade em carregar, principalmente a bicicleta, o futuro historiador retornou e perguntou se precisava de ajuda. Claro que a mesma não foi negada. Ele estava de bicicleta, mas ainda assim me ajudou muito. Como ele morava perto do meu apartamento, fez questão de me acompanhar até a entrada do prédio. Fiquei imensamente grato pelo socorro.

Finalmente estava de volta. Minha mãe ainda estava no apartamento em mais uma visita, mas se surpreendeu com a minha chegada inesperada àquela hora da noite. Eu retornava vivo, mas não era mais o mesmo. A partir dessa viagem posso dizer que minha vida mudou completamente. A Travessia do Paraná foi um suces-so e também causou muita repercussão entre aqueles que souberam da aventura. O sabor da vitória se repetia, todavia, com um gosto a mais de sentir que vivia da maneira que gostaria de viver.

Page 59: CS - V1

59CICLOTURISMO SELVAGEM PEDAL PELA AMÉRICA LATINA