c.s. lewis as crônicas de nárnia (volume unico)

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  • Volume nico

    Ordem de leitura (de acordo com o ndice) :

    O Sobrinho do Mago

    O Leo, A Feiticeira e o Guarda-Roupa

    O Cavalo e seu Menino

    Prncipe Caspian

    A viagem do Peregrino da Alvorada

    A Cadeia de Prata

    A ltima Batalha

  • C. S. LEWIS

    AS CRNICAS DE NRNIA VOL. I

    O SOBRINHO DO MAGO

    Traduo Paulo Mendes Campos

  • NDICE

    1. A PORTA ERRADA 2. UM DILOGO ESTRANHO 3. UM BOSQUE ENTRE DOIS MUNDOS 4. O SINO E O MARTELO 5. A PALAVRA EXECRVEL 6. COMEAM AS COMPLICAES DE TIO ANDR 7. O QUE ACONTECEU NA RUA 8. A BRIGA 9. A CRIAO DE NRNIA

    10. A PRIMEIRA PIADA 11. DIGORY E O TIO EM APUROS 12. A AVENTURA DE MORANGO 13. UM ENCONTRO INESPERADO 14. PLANTA-SE UMA RVORE 15. FIM DESTA HISTRIA E COMEO DE TODAS AS OUTRAS

    Para a famlia Kilmer

  • 1 A PORTA ERRADA

    O que aqui se conta aconteceu h muitos anos, quando vov ainda era menino. uma histria da maior importncia, pois explica como comearam as idas e vindas entre o nosso mundo e a terra de Nrnia.

    Naqueles tempos, Sherlock Holmes ainda vivia em Londres e as escolas eram ainda piores que as de hoje. Mas os doces e os salgadinhos eram muito melhores e mais baratos; s no conto para no dar gua na boca de ningum.

    Naquela poca vivia em Londres uma garota que se chamava Polly. Morava numa daquelas casas que ficam coladas umas nas outras, formando uma enorme fileira.

    Uma bela manh ela estava no quintal quando viu surgir por cima do muro vizinho o rosto de um garoto. Polly ficou muito espantada, pois at ento no havia crianas naquela casa, apenas os irmos Andr e Letcia Ketterley, dois solteires que moravam juntos.

    Por isso mesmo, arregalou os olhos, muito curiosa. O rosto do menino estava todo encardido. No poderia estar mais encardido, mesmo que ele tivesse esfregado as mos na terra, depois chorado muito e ento enxugado as lgrimas com as mos sujas. Alis, era mais ou menos isso que havia acontecido.

    Oi disse Polly. Oi respondeu o menino. Qual o seu nome? Polly. E o seu? Digory. Puxa, que nome sem graa! disse ela. Acho Polly muito mais

    sem graa. No , no. , sim. Bom, pelo menos eu lavo o rosto disse Polly. o que voc

    deveria fazer, principalmente depois... e parou. Ia dizer: Principalmente depois de ter chorado por a, mas achou que isso no seria muito delicado.

    Est bem, chorei mesmo disse Digory, bem alto. Sentia-se to infeliz que nem se incomodava que soubessem que andara chorando. Voc tambm choraria, se tivesse vivido a vida inteira no campo, e tivesse

  • tido um pnei, e um rio no fundo do quintal, e de repente viesse morar nesta droga de buraco...

    Londres no um buraco reclamou Polly, indignada. Mas o menino estava to aborrecido que nem prestou ateno, continuando a falar:

    ...e se seu pai estivesse na ndia e voc tivesse de viver com uma tia e um tio louco (quem ia gostar?), e isso porque eles tm de tomar conta de sua me... e se sua me estivesse doente e fosse... e fosse... morrer...

    A o rosto de Digory ficou esquisito, como se ele estivesse fazendo fora para no chorar. Polly falou com doura:

    Desculpe. Eu no sabia de nada. E, como no tinha mais o que dizer, ou querendo animar o garoto, perguntou:

    Seu tio mesmo doido? Ou doido ou ento h um mistrio nisso. Ele tem um estdio no

    ltimo andar e tia Leta nunca me deixa ir l. Isso no me cheira bem. Tem mais: sempre que ele quer me falar alguma coisa na hora do jantar, ela no deixa, dizendo: No aborrea o menino, Andr. Ou ento: Digory no est nada interessado nisso. Ou: Digory, acho melhor voc ir brincar no quintal.

    Mas que tipo de coisas ele tenta lhe dizer? perguntou a menina. No tenho a menor idia. Ela nunca deixa ele continuar. Tem outra

    coisa: ontem noite, eu estava passando perto da escada do sto, indo para a cama, quando ouvi um grito.

    Quem sabe ele no tem uma mulher louca que ele esconde l dentro? sugeriu a menina. j pensei nisso.

    Quem sabe ele faz dinheiro falso... Tambm pode ter sido um pirata e agora anda escondido dos

    antigos companheiros. Sensacional! exclamou Polly. Jamais podia imaginar que sua casa fosse to interessante.

    Voc diz isso porque nunca dormiu l. No nada agradvel acordar no meio da noite ouvindo as passadas do tio Andr no corredor, vindo na direo do seu quarto. E os olhos dele so de dar medo!

    Foi assim que Polly e Digory se conheceram. Era no incio das frias de vero e, como nenhum deles iria viajar para a praia, passaram a encontrar-se quase todos os dias.

    As aventuras comearam principalmente por um motivo: era um daqueles veres muito midos e quentes, de modo que, em vez de brincar ao ar livre, eles preferiam fazer incurses dentro de casa. impressionante

  • quantas exploraes a gente pode fazer num casaro, com um toco de vela na mo.

    Algum tempo atrs, Polly havia descoberto que uma portinha no sto de sua casa dava para uma caixa-dgua e um lugar escuro. O lugar escuro parecia um tnel comprido com uma parede de tijolos de um lado e um telhado inclinado do outro. No tinha assoalho no tnel: era preciso andar de viga em viga, pois entre elas havia somente massa, na qual no se podia pisar, sob o risco de se cair do teto no aposento de baixo. Polly utilizava um pedacinho do tnel, perto da caixa, como uma caverna de contrabandista. Levara para l tbuas de caixotes, assentos de cadeiras quebradas, coisas que ia espalhando entre as vigas, para fazer uma espcie de assoalho. Tambm guardava ali uma caixa contendo vrios tesouros, uma histria que andava escrevendo e mas. Era ali tambm que costumava beber tranqilamente sua garrafa de soda: as garrafas vazias ajudavam a fazer o ambiente.

    Digory gostou muito da caverna (ela no lhe mostrou a histria), mas estava mais interessado em prosseguir nas exploraes.

    Olhe aqui disse ele. At onde vai este tnel? Ele pra onde termina a sua casa?

    No, continua. S no sei at onde. Quer dizer, ento, que poderamos andar por cima de todas as casas

    do quarteiro. Poderamos, no, podemos. Hein? Podemos at entrar numa outra casa. Ah, ? E acabar na cadeia como ladro! No conte comigo. No seja to espertinho. Eu s estava pensando na casa depois da

    sua.

    Que tem a casa depois da minha? Est vazia. Papai disse que est vazia desde que mudamos para c. Vamos dar uma olhada disse Digory. Estava bem mais

    entusiasmado do que demonstrava. Naturalmente ps-se a imaginar por que a casa estava vazia h tanto tempo. Polly se perguntava a mesma coisa. Mas nenhum deles disse a palavra mal-assombrada. E ambos sentiram que agora seria uma fraqueza no ir adiante e descobrir o mistrio.

    Que tal se a gente fosse agora mesmo? indagou Digory. Est bem respondeu Polly. No precisa ir, se no quiser.

  • Se voc topa, eu tambm topo. Como a gente vai saber que est em cima da casa vizinha? Resolveram descer e contar quantos passos havia em toda a extenso

    da casa e, depois, contaram os passos entre uma viga e outra, para saber quantas vigas existiam sobre a casa. Ento, multiplicaram esse nmero por dois; o resultado obtido corresponderia ao fim da casa de Digory; dali para frente, s poderiam estar no sto da casa vazia.

    Mas no acho que ela esteja mesmo vazia! disse Digory. Como assim? Acho que algum mora l, escondido, saindo e entrando tarde da

    noite, com uma lanterna abafada. Acho que vamos descobrir um bando de assassinos e ganhar uma recompensa. besteira acreditar que uma casa fique vazia esse tempo todo, a no ser que exista algum mistrio.

    Papai acha que por causa do mau estado do encanamento observou Polly.

    Encanamento! Gente grande tem a mania de dar explicaes sem graa! disse Digory. Agora, que conversavam luz do dia, no parecia muito provvel que a casa estivesse mal-assombrada.

    No estavam muito seguros sobre as medies e os clculos no papel, mas, de qualquer maneira, no havia tempo a perder.

    No podemos fazer o menor barulho disse Polly quando subiram e se encontraram perto da caixa-dgua. Cada um levava consigo uma vela (coisa que no faltava na caverna de Polly).

    Estava muito escuro e empoeirado. Iam pisando de viga em viga, sem dizer palavra, exceto quando cochichavam um para o outro: J devemos estar na metade do caminho ou coisa parecida. Ningum tropeou. As chamas das velas agentaram firme.

    Por fim descobriram uma portinha encaixada na parede de tijolos, direita. No havia maaneta desse lado, mas havia um pegador, como se v s vezes na parte interna da porta de um armrio. Abro? perguntou Digory.

    Se voc topar, eu topo respondeu Polly. A coisa estava comeando a ficar sria, mas ningum ia dar para trs.

    Digory empurrou o pegador com dificuldade. A porta abriu-se toda e a sbita luz do dia doeu-lhes nos olhos. Ento, com grande espanto, viram que estavam olhando no para um sto vazio, mas para um quarto mobiliado.

  • No parecia ter ningum. O silncio era tumular. A curiosidade de Polly resolveu a indeciso: soprando a chama da vela, ela entrou no quarto estranho, quietinha como um camundongo.

    O local tinha naturalmente a forma de sto, mas estava arrumado como uma sala de estar. No havia canto de parede sem estantes, e no havia canto de estante que no estivesse atulhado de livros. O fogo crepitava na lareira; era um vero muito frio, como voc se lembra. Diante do fogo estava uma poltrona alta. Entre a poltrona e Polly, enchendo quase a metade da sala, havia uma mesa enorme, repleta de objetos livros, cadernos grossos, vidros de tinta, canetas, um microscpio. Mas o que Polly notou em primeiro lugar foi uma bandeja de madeira contendo um certo nmero de anis. Os anis estavam colocados em pares um amarelo e um verde juntos, um pequeno espao, depois outro anel amarelo com um anel verde. No eram maiores do que os anis comuns, e era impossvel deixar de olhar para eles, pois eram muito brilhantes e bonitos.

    A sala estava to quieta que se percebia logo de entrada o tique-taque do relgio. Mas, notava-se agora, no era to quieta assim. Havia no ar um ligeiro, um muito ligeiro zumbido. Se os aspiradores de p j tivessem sido inventados, Polly imaginaria que se tratava do rudo de um aspirador de p funcionando l longe, bem longe. O som era mais agradvel do que o de aspirador, mais musical, mas era to leve que mal se podia ouvir.

    Tudo bem disse Polly , no tem ningum aqui. Ela passou a cochichar. Digory tambm entrou, piscando o olho, sujo pra valer... Polly tambm no estava nada limpa.

    No estou gostando disso falou Digory. No uma casa vazia coisa nenhuma. melhor a gente cair fora antes que chegue algum.

    Que isso? perguntou Polly, apontando para os anis. Deixe para l. O melhor a gente cair... No chegou ao fim. A poltrona na frente do fogo moveu-se de

    repente e dela surgiu, como um diabo de comdia pulando de um alapo, a figura amedrontadora do tio Andr. No estavam mesmo na casa vazia: estavam na casa de Digory! No estdio proibido!

    Minha nossa! exclamaram as duas crianas. Tio Andr era altssimo e muito magro. Tinha uma cara comprida, com um nariz pontudo, olhos faiscantes e uma moita de cabelos grisalhos.

    Digory estava mudo, pois tio Andr parecia mil vezes mais apavorante do que antes. Polly ainda no estava to amedrontada. Mas no demorou muito, pois a primeira coisa que tio Andr fez foi cruzar a sala e trancar a porta. Voltou-se, fixou as crianas com seus olhos faiscantes e sorriu, mostrando todos os dentes.

  • Ah! Agora a louca da minha irm no pode mais nos perturbar! Era terrvel, muito diferente de tudo o que se pode esperar de um

    adulto! Polly tinha o corao na boca. Ela e Digory comearam a caminhar na direo da portinhola por onde haviam entrado. Tio Andr foi mais ligeiro, fechando tambm essa passagem. Depois esfregou as mos, estalando os ns dos longos dedos muito brancos.

    Encantado em v-los disse. Duas crianas! Exatamente o que eu mais queria neste momento! Por favor, Sr. Andr disse Polly , est quase na hora do jantar e tenho de ir para casa. Quer deixar a gente sair, por favor?

    Ainda no respondeu tio Andr. A oportunidade boa demais para eu perd-la. Estou em plena fase de uma experincia importantssima. Utilizei um porquinho-da-ndia e parece que deu certo. Mas o que pode um porquinho-da-ndia relatar? Impossvel explicar para ele como voltar.

    Escute aqui, tio Andr disse Digory , est mesmo na hora do jantar, e daqui a pouco estaro chamando por ns. Melhor o senhor deixar a gente ir embora.

    Melhor... por qu? Digory e Polly trocaram olhares aflitos. No ousavam dizer coisa

    alguma, mas os olhares significavam o seguinte: Que coisa pavorosa! E tambm: Vamos ver se damos um jeito.

    Se o senhor permitir que a gente v jantar falou Polly , voltaremos mais tarde.

    Como posso saber que voltaro realmente? perguntou tio Andr, com um sorriso astuto. Pareceu, no entanto, mudar de idia.

    Muito bem, se precisam mesmo ir, que hei de fazer? No deve ser divertido para dois jovens como vocs conversar com um velhote. Deu um suspiro e continuou: Vocs no podem imaginar como me sinto sozinho s vezes! Podem ir jantar, meus filhos. Mas antes quero lhes dar um presente. No todo dia que encontro uma moa neste meu velho estdio, principalmente uma senhorita to bela como voc.

    Polly j comeava a achar que ele no era to louco, afinal de contas. Quer um anel, meu bem? perguntou tio Andr. Um daqueles verdes? Quero, sim! Um verde, no! replicou tio Andr. Lamento muito no poder

    dispor dos anis verdes. Mas terei o maior prazer em presente-la com um dos amarelos: de todo o corao. Experimente um.

  • Polly j havia superado o medo e estava convencida de que o velho no era louco. E os anis eram de fato atraentes. Caminhou para a bandeja.

    Estranho! O zumbido aqui mais forte. Parece que vem dos anis. Voc est imaginando coisas, cara menina disse o velho, com

    uma risada. Parecia uma risada comum, mas Digory percebera uma expresso quase de gula na face do tio.

    Polly, no banque a idiota! gritou ele. No toque nos anis! Era tarde demais. Polly j tinha pegado um anel. E imediatamente,

    sem barulho, sem um claro, sem nenhum aviso, j no existia Polly. Digory e tio Andr estavam agora sozinhos na sala.

  • 2 UM DILOGO ESTRANHO

    Foi to repentino, to horrvel, to diferente de tudo o que j havia acontecido a Digory, mesmo em pesadelos, que ele deu um grito. Instantaneamente a mo de tio Andr tapou-lhe a boca.

    Nada disso! Sua me pode ouvir, e voc sabe muito bem que ela no deve levar sustos.

    Nada podia ser mais desagradvel, disse Digory mais tarde, do que lidar com um sujeito naquelas condies. Mas no gritou de novo.

    Melhor assim disse tio Andr. Reconheo que chocante quando vemos pela primeira vez uma pessoa sumir. fato: at eu fiquei arrepiado quando vi outro dia o porquinho-da-ndia desaparecer.

    Foi naquele dia que o senhor deu um berro? Ah, voc ouviu? Espero que no ande me espionando.

    No fiz isso disse Digory, indignado , mas quero saber o que aconteceu com a Polly.

    Pode me dar os parabns replicou tio Andr, esfregando as mos. Minha experincia deu certo. A menina se foi, sumiu deste mundo!

    O que o senhor fez com ela? Enviei a menina para um outro lugar. Que histria essa? Tio Andr sentou-se e respondeu: Bem, vou contar-lhe tudo. J ouviu falar de dona Lenir? -No uma tia-av ou qualquer coisa parecida? No exatamente

    isso; era a minha madrinha. Aquela ali na parede. Digory olhou e viu uma fotografia amarelada, mostrando uma velha

    com um chapu antigo. Lembrava-se agora de que j vira uma foto dela numa velha gaveta. Tinha perguntado me quem era, mas esta preferira no tocar no assunto. No era uma figura simptica pensou Digory , mas a gente nunca tem certeza quando se trata dessas fotografias antigas.

    Havia alguma coisa... algo errado com ela, tio Andr? perguntou o menino.

  • Bom respondeu o tio, estalando os dedos , isso depende do que voc chama de errado. As pessoas so to quadradas! Sem dvida, ficou bastante esquisita nos seus ltimos tempos. No tinha muito juzo. Foi por isso que a prenderam.

    Num hospcio? No! Que isso?! De maneira nenhuma! S na cadeia. Ah, sim.. Por qu? Ah, coitadinha respondeu tio Andr , andou agindo mal. Tanta

    coisa! Mas no vamos falar nisso. Sempre foi muito boazinha para mim! Escute, tio, que tem a ver uma coisa com a outra? Quero saber se

    Polly... Tudo a seu tempo, rapaz. Eu era uma das poucas pessoas que

    minha madrinha gostava de ver quando adoeceu gravemente. Ela no se dava com as pessoas comuns, ignorantes, entende? Tambm eu sou assim. Mas ambos nos interessvamos pelas mesmas coisas. Poucos dias antes de morrer, ela me disse para ir buscar em sua casa uma pequena caixa, que ela guardava numa velha escrivaninha. No momento em que toquei na caixa j senti, pelo formigamento dos meus dedos, que tinha nas mos um vasto segredo. Deu-me a caixa e tive de fazer-lhe uma promessa: logo que ela morresse, tinha de queimar tudo, sem abrir, depois de certas cerimnias. No cumpri minha promessa.

    No diga! Foi muito feio de sua parte! exclamou Digory. Feio? perguntou tio Andr, muito admirado. Ah, estou

    entendendo. Est querendo dizer que os meninos devem cumprir suas promessas. Muito bem, estou gostando de ver. Mas tambm deve admitir que essas regras morais, embora excelentes para as crianas... e para a criadagem... e para as mulheres... e para as pessoas em geral... no podem ser aplicadas aos grandes estudiosos, aos grandes sbios, aos grandes pensadores. No, Digory! Homens como eu, conhecedores da sabedoria oculta, no esto amarrados a essas regras vulgares... do mesmo modo como estamos distanciados dos prazeres vulgares. Nosso destino, meu filho, solitrio, mas est acima de tudo.

    Suspirou e assumiu uma expresso to grave, to nobre, to misteriosa, que por um instante Digory chegou a pensar que ele dissera alguma coisa muito profunda. Lembrou-se porm da cara feia do tio um momento antes de Polly sumir, e as palavras perderam a eloqncia. Pensou: Ele est querendo dizer que pode fazer tudo o que quiser para obter tudo o que desejar.

  • Naturalmente prosseguiu tio Andr , durante muito tempo no ousei abrir a caixa. Sabia que devia estar guardando algo extremamente perigoso, pois a minha madrinha era de fato uma mulher fora do comum. Para dizer a verdade, era uma das ltimas criaturas mortais, neste pas, que ainda tinha nas veias sangue de fada. (Uma vez me disse que havia mais duas no tempo dela: uma duquesa e uma arrumadeira.) Srio, Digory, voc est agora conversando com o ltimo homem (muito provavelmente) que teve realmente uma fada madrinha. Que tal? uma coisa de que voc poder se lembrar com orgulho quando tiver a minha idade.

    Aposto que era mais uma bruxa do que uma fada, pensou Digory, acrescentando em voz alta: Quero saber de Polly.

    Que mania de bater sempre na mesma tecla! exclamou tio Andr. Como se isso fosse a coisa importante! Minha primeira iniciativa foi, naturalmente, estudar a prpria caixa. Era muito antiga. j bem sabia que no era grega, nem egpcia, nem babilnica, nem hitita, nem chinesa. Era mais antiga do que essas naes. Ah, que dia fabuloso quando descobri, afinal, a verdade! A caixa viera da Atlntida, quer dizer, era sculos mais velha do que essas coisas da Idade da Pedra que costumam desenterrar a na Europa. No era uma coisa rstica como aquelas outras. Pois j na aurora do tempo a Atlntida era uma grande cidade, com palcios, templos e homens cultos.

    Fez uma pausa como se esperasse algum comentrio de Digory. Mas este, que de minuto a minuto estava gostando menos do tio, no disse nada. Tio Andr retomou a palavra:

    Enquanto isso, eu estava aprendendo um bocado sobre magia em geral (no seria conveniente contar isso a uma criana). Enfim, cheguei a ter uma boa noo das coisas que podiam existir dentro da caixa. Depois a de vrios estudos, fui apertando o cerco. E claro: tive de conhecer algumas... bem... algumas pessoas, digamos, margem da sociedade... Passei por algumas experincias muito, muito desagradveis. Foi por isso que fiquei de cabelos brancos. Mas ningum pode virar feiticeiro sem pagar um preo. Acabei perdendo a sade. Mas melhorei. E acabei conhecendo o segredo.

    Embora no houvesse a menor possibilidade de que algum pudesse escut-los, tio Andr inclinou-se e cochichou:

    A caixa da Atlntida continha certa coisa que fora trazida de outro mundo, quando o nosso mundo mal comeava!...

    Que coisa? perguntou Digory, que mesmo sem querer j estava curioso.

  • P. P fininho, p seco. Nada de entusiasmar. Nada que valesse tanto trabalho o que voc deve estar achando. Ah, mas quando vi aquele p (tive o cuidado de no tocar nele) e pensei que cada grozinho ali j estivera em outro mundo... No estou falando de outro planeta, pois os planetas fazem parte do nosso mundo... Estou falando de outro mundo mesmo uma outra natureza, um outro universo , um lugar onde voc jamais chegaria, mesmo que viajasse eternamente atravs do espao deste nosso universo... Um mundo que s poderia ser alcanado atravs da magia! Bem...

    A essa altura tio Andr esfregava tanto as mos que seus dedos estalavam como fogos de artifcio. E prosseguiu:

    Sabia que, se fizesse direito, aquele p nos levaria ao lugar de onde viera. A dificuldade era esta: como fazer? Minhas primeiras experincias foram grandes fracassos. Usei porquinhos-da-ndia. Alguns apenas morreram. Outros explodiram feito bombas...

    Que maldade! exclamou Digory, que ia tinha tido um porquinho-da-ndia.

    Como voc teima em fugir do assunto! para isso que as criaturas existem. Paguei com o meu dinheiro! Onde mesmo que eu estava? Ah, sim. Afinal acabei conseguindo fazer os anis: os amarelos. Surgiu ento uma nova dificuldade. Estava convencido de que um anel amarelo remeteria ao outro mundo qualquer criatura que tocasse nele. Mas de que valeria isso, se a criatura no podia voltar para dizer o que havia visto por l?

    E a prpria criatura? perguntou Digory. No podendo voltar, ficaria numa enrascada!

    Voc sempre olha as coisas de um ponto de vista negativo replicou tio Andr, com impacincia. No passa pela sua cabea que se tratava de uma experincia magna? S remetemos uma pessoa a outro lugar quando desejamos saber como esse outro lugar. Certo?

    Bem, e por que o senhor mesmo no foi? Digory jamais vira algum to surpreso e ofendido quanto o tio, por causa de uma simples pergunta:

    Eu?! Eu?! Esse menino deve estar maluco! Um homem da minha idade, nas minhas condies de sade, correr o risco do impacto e dos perigos de um universo diferente?! Nunca ouvi nada to disparatado em toda a minha vida! Voc sabe o que est dizendo? Pense bem: trata-se de um outro mundo, onde podemos encontrar tudo... tudo.

    E foi para l que o senhor enviou a Polly?! As bochechas de Digory estavam vermelhas de raiva. S tenho uma coisa a dizer: o senhor

  • pode ser meu tio, mas procedeu como um covarde, mandando uma menina para um lugar aonde o senhor no tem coragem de ir.

    Bico calado! ordenou tio Andr, dando um tapa na mesa. No admito que um fedelho fale comigo dessa maneira. Voc no entende nada. Eu sou o grande mestre, o mago, o iniciado, o que est realizando a experincia. claro que preciso de material para execut-la. Daqui a pouco voc vai me dizer que deveria ter pedido licena aos porquinhos-da-ndia antes de us-los. Nenhuma alta sabedoria pode ser atingida sem uma dose de sacrifcio. Mas a idia de que o sacrificado deva ser eu mesmo completamente ridcula. como pedir a um general para lutar como um soldado raso. Suponhamos que eu morresse... Que seria do trabalho de toda a minha vida?

    Olhe, melhor acabar com esse papo interrompeu Digory. O senhor vai trazer Polly de volta?

    J ia dizer-lhe, quando voc me interrompeu com os seus maus modos, que descobri afinal a maneira de fazer a viagem de volta. Os anis verdes so capazes disso.

    Mas Polly no levou nenhum anel verde. , no levou disse tio Andr, com um sorriso maldoso. Se no levou, no poder voltar! gritou Digory. como se o

    senhor a tivesse assassinado. Poder voltar se algum for busc-la, usando tambm um anel amarelo e levando consigo dois anis verdes, um para si, outro para ela.

    Digory percebeu que tinha cado numa armadilha. Ficou olhando para o tio Andr, estarrecido, boquiaberto. As bochechas passaram do vermelho ao plido. Tio Andr continuou, agora num tom forte e alto, como se fosse um tio perfeito que tivesse dado ao sobrinho um dinheirinho e um bom conselho:

    Espero, Digory, que voc no acene agora a bandeira branca. Ficaria muito triste se uma pessoa de nossa famlia no tivesse a honra e a nobreza de socorrer uma dama em... em perigo.

    Oh, cale a boca! gritou Digory. Se o senhor tivesse um pingo de honra, iria o senhor mesmo. Mas sei que no tem. Est bem. J vi que tenho de ir. S que o senhor um monstro. Tudo, tudo cruelmente planejado: ela foi sem saber de nada, e agora tenho de ir busc-la.

    claro comentou tio Andr, com seu odioso sorriso. Pois muito bem: eu vou. Mas tem uma coisa que fao questo de

    dizer antes de ir: at hoje no acreditava em magia. Agora sei que existe. Sendo assim, acho que os velhos contos de fada so todos mais ou menos

  • verdadeiros. E o senhor no passa de um bruxo cruel como os que existem nos contos. Escute ento: nunca soube de um bruxo que no acabasse pagando por sua maldade no final da histria. s.

    De todas as coisas ditas por Digory, foi esta a nica que teve endereo certo. Sobressaltado, tio Andr revelou tanto horror na face que, apesar de sua monstruosidade, era quase possvel ter pena dele. Um segundo depois recomps-se, dizendo com um sorriso forado:

    Bem, bem, natural que uma criana pense dessa maneira, uma criana criada entre mulheres, como voc. No precisa preocupar-se com os meus perigos, Digory. No seria melhor preocupar-se com os perigos por que passa a sua amiguinha? J h algum tempo que ela foi embora. Se algum perigo existir l... bem... seria uma pena chegar um pouquinho atrasado.

    At parece que o senhor se importa muito com isso! disse Digory, impetuosamente. J estou cheio desse papo. Que devo fazer?

    Antes de mais nada, aprender a controlar os seus nervos, meu filho respondeu o tio Andr, com frieza. Do contrrio vai acabar como a sua tia. Vamos.

    Levantou-se, calou um par de luvas e dirigiu-se para a bandeja de anis.

    Eles s funcionam quando esto de fato em contato com a pele. Com luvas posso peg-los vontade, assim. Se levar um no bolso nada acontecer. Mas tenha muito cuidado para no colocar a mo no bolso por distrao. No momento em que tocar um anel amarelo, sumir deste mundo. Quando estiver no outro lugar, espero que isso ainda no foi testado, naturalmente, mas sempre espero , ao tocar no anel verde, voc desaparea de l e reaparea aqui. Bem. Pego estes dois verdes e deixo que eles caiam dentro do seu bolso esquerdo. No se esquea do bolso em que esto os verdes. V para verde e E para esquerdo. V.E., preste ateno, as primeiras duas letras de verde. Um para voc, outro para a garota. Agora pegue um amarelo. Eu se fosse voc colocaria o anel no dedo, pois assim mais difcil perd-lo.

    Digory j estava para agarrar o anel amarelo quando se lembrou de algo importante:

    Espere um pouco: e mame? Se ela perguntar onde eu estou? Quanto mais depressa for, mais depressa estar de volta disse o

    tio Andr, tentando ser animador. Mas o senhor nem mesmo sabe se eu vou voltar.

    Tio Andr sacudiu os ombros, deu uns passos, abriu a porta e disse:

  • Pois muito bem. Como quiser. Desa para jantar. Deixe que as feras devorem a garota. Ou que ela se afogue. Ou que morra de fome. Ou que se perca no outro mundo. Se o que prefere. Para mim d no mesmo. Talvez fosse bom que, antes do ch, voc avisasse me dela que nunca mais ver a filha... S porque voc tem medo de colocar um anel no dedo.

    Ai, ai gemeu Digory , queria tanto ser grande para lhe dar um murro na cara!

    Abotoou o casaco, respirou fundo e pegou o anel. Pensando, como sempre pensou mais tarde, que no havia para ele outra maneira de proceder com dignidade.

  • 3 UM BOSQUE ENTRE DOIS MUNDOS

    Tio Andr e o estdio sumiram imediatamente. Por um momento tudo ficou turvo. Digory conseguiu ver uma suave luz verde vindo de cima e a escurido embaixo. No parecia estar apoiado em coisa alguma. Nada lhe tocava, aparentemente. Acho que estou dentro dgua pensou. Ou debaixo dgua. Levou um susto, mas percebeu em seguida que estava sendo levado para cima. De sbito viu que tinha chegado ao ar livre e que se arrastava para a relva da margem de um pequeno lago.

    Quando se firmou nos ps, notou que no estava pingando, nem respirando sem flego, como de esperar que acontea com quem tenha estado dentro dgua. Suas roupas continuavam sequinhas.

    Estava beira de um pequeno lago com uns trs metros de largura, cercado por um bosque. As rvores ficavam to prximas umas das outras que no podia ver o cu. A luz existente era a luz verde coando-se atravs das folhas. O sol em cima devia ser muito brilhante, pois essa luz verde era intensa e clida.

    No possvel imaginar bosque mais calmo. No havia pssaros, nem insetos, nem bichos, nem vento. Quase se podia sentir as rvores crescendo. O lago de onde acabara de sair no era o nico. Eram muitos, todos bem prximos uns dos outros. Tinha-se a impresso de ouvir as rvores bebendo gua com suas razes. Mais tarde, sempre que tentava descrever esse bosque, Digory dizia: Era um lugar rico: rico como um panetone.

    O mais estranho de tudo era que Digory tinha praticamente se esquecido de como viera parar ali. De qualquer modo, no se lembrava de Polly, de tio Andr ou mesmo de sua me. No estava assustado, excitado ou curioso. Se algum lhe tivesse perguntado: De onde voc veio?, provavelmente teria respondido: Nunca sa daqui. Ou, como disse depois: No era um lugar onde as coisas acontecem. As rvores vo crescendo, s isso.

    Depois de contemplar o bosque por um longo tempo, Digory notou que havia uma menina deitada ao p de uma rvore, ali pertinho. Seus olhos estavam semicerrados, como se estivesse entre a viglia e o sono. Olhou-a por um bom tempo e nada disse, at que ela falou, com uma voz sonhadora e satisfeita:

  • Acho que j vi voc antes. Tambm acho que j vi voc replicou Digory. Est aqui h

    muito tempo? Oh, sempre estive aqui respondeu a menina. Pelo menos... no

    sei.... estou aqui h muito tempo. Eu tambm. No, voc no. Acabei de ver voc saindo daquele lago. , acho que voc tem razo disse Digory com ar espantado.

    Tinha me esquecido. Ficaram em silncio por muito tempo. Escute disse depois a garota. Ser que j no nos encontramos

    antes? Tenho a impresso... como se fosse um quadro na minha cabea... de um menino e de uma menina iguaizinhos a ns dois... vivendo num lugar muito diferente daqui... Talvez no passe de um sonho.

    Tambm acho que sonhei a mesma coisa afirmou Digory. Sonhei com uma menina e um menino, vizinhos... e tem tambm umas vigas por onde os dois caminham. Lembro que a menina esta com o rosto sujo.

    No est confundindo? No meu sonho o menino que est com o rosto sujo.

    No consigo me lembrar do rosto do menino respondeu Digory. E perguntou: Que aquilo?

    Ora, um porquinho-da-ndia. E era mesmo, um porquinho-da-ndia gordinho, farejando a relva. Bem no meio do animalzinho havia uma fita e, preso a ela, um reluzente anel amarelo.

    Olhe, olhe! gritou Digory. O anel! E olhe aqui: voc tambm est com um anel amarelo. E eu tambm.

    A menina sentou-se, interessada pela primeira vez. Ficaram olhando um para o outro, de

    olhos muito arregalados, tentando captar alguma lembrana. E acabaram gritando ao mesmo tempo:

    O Sr. Andr! Tio Andr! Logo se deram conta de quem eram e comearam a relembrar o

    resto da histria, depois de alguns minutos de animada conversa.

  • Ento Digory contou a Polly de que maneira torpe tio Andr os levara at ali.

    Que vamos fazer agora? perguntou a menina. Pegar o porquinho e ir para casa?

    No temos pressa respondeu Digory, com um grande bocejo. Acho que temos. Este lugar calmo demais... to... to feito

    sonho. Voc est quase dormindo. Se a gente se entrega, cai por aqui mesmo e passa a vida toda cochilando.

    Pois estou gostando muito daqui disse Digory. Eu tambm, mas precisamos ir embora. Polly levantou-se e

    comeou a caminhar cautelosamente na direo do porquinho-da-ndia. Porm mudou de idia. Acho que devemos deixar o porquinho. Est todo feliz; se a gente levar o bichinho de volta, seu tio vai fazer algo horrvel com ele.

    Aposto que sim, pelo jeito que nos tratou! Alis, como que vamos voltar para casa?

    Mergulhando outra vez no lago, eu acho. Foram os dois para a beira do lago e puseram-se a olhar as guas calmas, que refletiam com profuso os ramos verdes e folhudos. Parecia um lago muito fundo.

    No temos roupas de banho disse Polly. Deixe de ser boba, no precisamos de roupas de banho replicou

    Digory. Podemos pular assim mesmo; j esqueceu que a gente no se molha? Sabe nadar?

    Um pouquinho. E voc? Bem... mais ou menos. Acho que no vai ser preciso nadar disse Digory. Ns

    queremos ir para baixo, no ? Nenhum deles achava muito simptica a idia de pular no lago, mas ningum disse nada. Deram-se as mos e contaram: Um... dois... trs... j e pularam.

    Foi aquela pancada na gua. Quando abriram os olhos viram que ainda se encontravam, de mos dadas, no bosque verde, com a gua dando nos calcanhares. Parecia que o lago no tinha mais do que um palmo de fundura. Os dois saram outra vez para a terra seca.

    Que que est errado, ora essa?! disse Polly com a voz assustada, mas no muito, pois era praticamente impossvel sentir medo naquele mundo demasiadamente calmo.

    Ah, j sei disse Digory. claro que no podia dar certo. Ainda estamos usando os nossos anis amarelos, que s valem para a viagem de vinda. o verde que leva para casa. Precisamos trocar de anis. Tem

  • bolso? timo. Ponha seu anel amarelo no bolso direito. Tenho dois verdes. Olhe aqui um para voc.

    Com os anis nos dedos, voltaram para o lago. Mas antes que tentassem novo mergulho, Digory deu um suspiro que no acabava nunca: O... o... o... oh!

    Que est acontecendo agora? Acabei de ter uma idia genial. E os outros lagos? No estou entendendo... Escute: se podemos voltar ao nosso mundo mergulhando aqui, no

    lgico que a gente deva ir para outro lugar pulando em outro lago? Imagine se h um mundo diferente no fundo de cada lago!

    Mas eu pensei que a gente j estivesse no Outro Mundo do seu tio, ou no Outro Lugar, seja l o que for. Voc no disse...

    No me chateie com o tio Andr, ora bolas! Acho que ele no entende nada deste lugar, pois nunca teve peito para vir por conta prpria. S falou de um Outro Mundo. Suponhamos que haja dezenas...

    Quer dizer, este bosque apenas um dos mundos? No! Acho que este bosque nem chega a ser um mundo. No deve

    ser mais do que um lugar de passagem. Polly olhava, intrigada. No est vendo? Lembre-se do tnel; no pertence a nenhuma das

    casas, mas voc pode andar por ele e entrar em qualquer uma delas. No ser este bosque uma coisa parecida?... Um lugar que no pertence a nenhum dos mundos, mas que d acesso a todos os mundos?

    Bem... ainda que... comeou a dizer Polly, mas o amigo nem parecia ouvi-la.

    Isso explica tudo continuou Digory. Por isso aqui to calmo e sonolento. Nada acontece, nunca. Como no tnel. dentro das casas que as pessoas conversam e fazem as coisas e comem. Nada existe nos lugares de passagem, atrs das paredes, em cima dos tetos ou debaixo do assoalho. Mas do nosso tnel podemos passar para todas as casas do quarteiro. Acho que daqui poderemos ir a um lugar fabuloso.

    Qual? Qualquer um. No precisamos mergulhar no mesmo lago por onde

    chegamos. Pelo menos no por enquanto. O Bosque entre Dois Mundos disse Polly, com olhar sonhador.

    Bonito!

  • Vamos logo. Que lago voc prefere? Preste ateno: eu que no vou experimentar nenhum lago novo

    antes de ter certeza de poder voltar pelo lago antigo. Ainda nem sabemos se vai dar certo.

    Perfeito! Voltar para ser agarrado por tio Andr, que vai tomar os nossos anis antes de a brincadeira ter comeado! Isso no!

    A gente no podia ir pelo menos metade do caminho no nosso lago apelou Polly , s para ver se funciona? Se funcionar, trocaremos de anis e subiremos de novo antes de voltar ao estdio do seu tio. Levamos bem pouco tempo para subir at aqui; acho que no vai demorar nada para voltar.

    Digory chegou a se atrapalhar um pouco antes de concordar com isso, mas no teve outro jeito, porque Polly se recusava a novas exploraes em novos mundos, caso no tivesse a certeza de poder voltar ao antigo. Em se tratando de muitos perigos, era quase to valente quanto ele (marimbondos, por exemplo), mas no estava interessada em descobrir coisas das quais nunca ningum jamais ouvira falar. Digory era do tipo que gostava de conhecer tudo e, quando cresceu, tornou-se o famoso professor Kirke, que aparece em outros livros.

    Depois de muita discusso, concordaram que deviam colocar os anis (Os verdes, por segurana, disse Digory, pois assim a gente no vai esquecer qual qual) e mergulhar de mos dadas. No entanto, quando calculassem estar de volta ao estdio de tio Andr, Polly deveria dar um grito Trocar! , e ento tirariam os verdes e colocariam os amarelos. Polly fez questo de ter o comando dessa operao, contrariando Digory.

    Colocaram os anis verdes, deram-se as mos e, mais uma vez, contaram com voz firme: Um... dois... trs... j!

    Dessa vez deu certo. difcil contar como foi, pois tudo aconteceu com uma rapidez extraordinria. Primeiro houve luzes brilhantes num cu escuro; Digory sempre achou que eram astros, jurando que chegou a ver Jpiter pertinho, a ponto de distinguir as luas do planeta. Mas quase instantaneamente comearam a surgir fileiras e mais fileiras de tetos, e puderam ver a catedral de So Paulo. Era Londres l embaixo. Mas enxergavam tambm atravs das paredes de todas as casas. Viram o tio Andr, a princpio sombrio e fora de foco, mas ficando cada vez mais ntido. Antes que ele se tornasse de fato uma realidade, Polly gritou: Trocar! e trocaram os anis. O nosso mundo foi se apagando mais uma vez, como num sonho, e a luz verde do alto ficou mais intensa, at que as cabeas apontaram fora dgua e ganharam a margem do lago. A operao toda no durou mais do que um minuto.

  • Pronto! exclamou Digory. Tudo certo. Agora, vamos explorao. Qualquer lago serve. Vamos experimentar este aqui.

    Um momento! No vamos fazer uma marca neste lago? Ficaram plidos e de olhos arregalados quando perceberam a

    extenso da loucura que Digory esteve por cometer. Pois existiam inmeros lagos no bosque, todos iguais, e iguais tambm eram as rvores. Se no assinalassem o lago que conduzia ao nosso mundo, as possibilidades de encontr-lo novamente seriam mnimas.

    A mo de Digory tremia quando abriu o canivete e cortou uma boa braada de relva na beira do lago. A terra, que cheirava deliciosamente, era de um vivo castanho-avermelhado, que se distinguia contra o verde.

    Ainda bem que um de ns tem um pouco de juzo disse Polly. No fique a contando prosa; vamos logo ver o que h num desses

    lagos. Polly deu-lhe uma resposta ferina e ele respondeu com palavras

    ainda mais indelicadas. A briga durou vrios minutos, mas seria aborrecido contar tudo aqui. Vamos saltar para o instante em que ambos, com o corao aos pulos e caretas de medo, puseram-se beira do lago desconhecido, com os anis amarelos nos dedos e de mos dadas.

    Um... dois... trs... j! Splash! Mais uma vez no funcionou. Esse lago, tambm, parecia ser

    somente uma poa. Em vez de alcanar um mundo novo, s conseguiram molhar os ps e as pernas pela segunda vez aquela manh (se que era manh: o tempo parece ser sempre o mesmo no Bosque entre Dois Mundos).

    Que droga! exclamou Digory. O que est errado agora? No pusemos os anis amarelos? Ele no falou amarelos para as viagens para fora?

    Acontecia o seguinte: o tio Andr, que no entendia coisa nenhuma do Bosque entre Dois Mundos, tinha uma idia errada sobre os anis. Os amarelos no eram anis para ir para fora e os verdes no eram para ir para casa. Pelo menos, no como ele pensava. A matria-prima de que eram feitos ambos provinha do bosque. O material dos anis amarelos tinha o poder de conduzir ao bosque; era matria querendo retornar s origens. Mas a matria dos anis verdes, pelo contrrio, estava querendo evadir, sair de seu prprio mundo; assim, um anel verde levava do bosque para um mundo qualquer.

    Tio Andr, entenda, estava trabalhando com coisas que ele prprio no conhecia muito bem; acontece isso com a maioria dos feiticeiros.

  • Digory, naturalmente, tambm no percebeu isso com clareza, a no ser mais tarde. Mas, depois de muita troca de idias, os dois decidiram experimentar os anis verdes, no mesmo lago desconhecido, s para ver no que dava.

    Se voc topar, eu topo disse Polly. Mas disse isso s por estar convencida, l no fundo do corao, de

    que anel nenhum iria funcionar no poo novo; s havia um acidente a temer, o baque dentro dgua.

    No sei com certeza se Digory estava pressentindo a mesma coisa. De qualquer maneira, quando colocaram os verdes e voltaram beira do lago de mos dadas, estavam bem mais animados e menos solenes do que da primeira vez.

    Um... dois... trs... j! 4

    O SINO E O MARTELO

    No pde haver dvida sobre a magia dessa vez. L se foram eles aos embolus, primeiramente atravs da escurido e, depois, atravs de um turbilho de formas em movimento, formas que podiam ser quase tudo que se pode imaginar. Foi ficando mais claro. De repente sentiram que estavam em cima de algo slido. Um instante mais e as coisas ficaram em foco; j podiam distingui-las.

    Que lugar mais estranho! exclamou Digory. No estou gostando nada daqui! disse Polly, com um tremor.

    Antes de tudo, chamou-lhes a ateno a luz. No era nada parecida com a luz do sol. E no era como a luz eltrica, ou de lampies, ou de velas, ou qualquer outra luz que j tivessem visto. Era uma luz tristonha, meio avermelhada, nada comunicativa. Uma luz parada.

    Estavam numa superfcie plana e pavimentada, com grandes edifcios ao redor; era uma espcie

    de ptio. O cu era de uma escurido fora do comum, de um azul quase preto.

    Que clima mais engraado disse Digory. Ser que chegamos na horinha de uma tempestade? Ou de um eclipse?

    No estou gostando nem um pouquinho repetiu Polly.

  • Estavam cochichando, mesmo sem saber por qu. E continuavam de mos dadas, tambm sem saber o motivo.

    As paredes ao redor do ptio eram muito altas, com janeles sem vidraas. Arcos sobre colunas abriam bocas escuras como tneis de estradas de ferro. Fazia um friozinho.

    A pedra das construes parecia vermelha, mas devia ser o reflexo da luz esquisita. Evidentemente era um lugar muito antigo. Muitas das pedras que pavimentavam o ptio estavam rachadas, e nenhuma delas se ajustava bem outra. Um dos prticos em arco estava atulhado de destroos.

    As crianas deram vrias voltas, examinando os recantos do ptio. Tinham medo de que algum ou alguma coisa as espreitasse enquanto estivessem de costas.

    Acha que existe algum aqui? murmurou Digory, tomando coragem.

    Acho que no. Est tudo em runas. No ouvimos nem um barulhinho at agora.

    Vamos ficar quietos e prestar ateno sugeriu Digory. Apuraram os ouvidos, mas a nica coisa que ouviram foi o bate-bate

    do corao. O lugar era no mnimo to silencioso como o silencioso Bosque entre Dois Mundos. Mas era um silncio diferente. A calma do bosque era clida e cheia de vida (quase que se podia ouvir as rvores crescendo); ali, ao contrrio, era um silncio morto, gelado e vazio. No dava para imaginar uma planta crescendo.

    Vamos para casa disse Polly. Mas ainda no vimos nada! protestou Digory. j que estamos

    aqui, vamos dar uma espiada. Aposto que no h nada que interesse neste lugar.

    Ora, bolas! Que graa tem encontrar um anel mgico, que leva a gente a outros mundos, se voc tem medo quando chega l e quer dar para trs?

    Quem est falando em dar para trs? protestou Polly, largando a mo de Digory.

    S quis dizer que voc no parece muito entusiasmada. Pois fique sabendo que vou aonde voc for. Alm do mais, a gente pode cair fora quando quiser. Vamos pr os

    anis verdes no bolso esquerdo. No podemos esquecer que os amarelos esto no bolso direito. Pode ficar com a mo pertinho do bolso, mas no meta o dedo l dentro: tocar no amarelo e sumir.

  • Fizeram assim e caminharam para um prtico enorme, que dava para o interior de um dos edifcios. Quando chegaram perto, viram que l dentro no era to escuro quanto tinham pensado. A vasta sala apenumbrada estava vazia, mas, no lado mais distante, erguia-se uma fileira de colunas com arcos interligados. Dos arcos jorrava a mesma luz fatigante. Atravessaram o salo com muito cuidado, temendo encontrar no cho um buraco ou coisa pior. Quando afinal chegaram ao outro lado, cruzaram os arcos e se viram em outro ptio ainda maior.

    Aquilo ali no parece muito seguro disse Polly, apontando para um lugar onde a parede fazia uma barriga, como se estivesse pronta para desabar no ptio. Em certo ponto faltava uma coluna entre dois arcos. Era evidente que o lugar estava abandonado h centenas, talvez milhares de anos.

    Se agentou at agora, acho que agenta mais um pouco disse Digory. Mas o jeito no fazer barulho. Voc sabe que um barulhinho pode causar um desabamento... como as avalanches de neve nos Alpes.

    Passaram do ptio a outro prtico, de l a uma escadaria, desta a uma fileira de sales, uns depois dos outros, at que se sentiram tontos, to vastas eram as dimenses de tudo. Estavam sempre imaginando que iriam encontrar ar livre, na esperana de ver, afinal, que espcie de regio circundava o enorme palcio. Mas s encontravam ptio depois de ptio.

    Devia ter sido uma beleza de lugar quando as pessoas ali viviam. Num dos ptios havia um chafariz, com um grande monstro de pedra de asas abertas e boca escancarada. Embaixo, a larga bacia de pedra, que em outros tempos devia aparar a gua, estava mais seca do que um osso ao sol.

    Em outros lugares restavam galhos secos de uma espcie de trepadeira que se enroscara pelas colunas e chegara a derrubar algumas. Mas as trepadeiras estavam mortas h muito tempo. No viram formigas, nem aranhas, nem nenhuma dessas criaturinhas que costumam viver nas runas, e, entre as fendas das lajes partidas, nada de capim, nem musgo.

    Era tudo to lgubre e montono, que tambm Digory comeou a pensar que talvez fosse melhor colocar o anel amarelo e partir de volta para a verde e clida floresta do lugar intermedirio. Foi quando chegaram a uma enorme porta de folhas duplas, feita de um metal que poderia ser ouro. Entreaberta, era um convite a uma olhadela. Os dois olharam e recuaram para tomar flego, pois ali finalmente havia algo digno de ser visto.

    Por um instante acharam que o salo estivesse cheio de gente, centenas de pessoas, todas sentadas e impecavelmente imveis. Digory e Polly tambm ficaram impecavelmente imveis por um bom tempo, de olhos fixos l dentro. Por fim chegaram concluso de que as criaturas que

  • estavam contemplando no eram reais. No passava entre elas o menor sopro de vida. Pareciam esttuas de cera, as mais perfeitas que j existiram.

    Dessa vez Polly tomou a dianteira. Havia na sala uma coisa muito mais interessante para ela do que para Digory: as figuras usavam roupas deslumbrantes. Quem gostasse de roupagens bonitas no podia resistir tentao de chegar mais perto. E o resplendor daquelas cores tornava a sala no propriamente animada ou animadora, mas de certo modo suntuosa e majestosa, depois do vazio e do p das outras salas. Contava com um nmero maior de janelas e era bem mais clara.

    Mal posso descrever as roupagens. Todas as figuras envergavam mantos e usavam coroas. Os mantos eram rubros e cinza-prateado, ou purpreos com vvidos tons verdes, bordados com desenhos de flores e de estranhos animais. Pedras preciosas de tamanhos aberrantes refulgiam nas coroas, nos colares, nos cintos.

    No entendo como esses tecidos no apodreceram h muito tempo disse Polly.

    Magia murmurou Digory. No est sentindo o encantamento? Percebi logo que entrei.

    O mais barato desses vestidos custaria um dinheiro em Londres! Mas Digory estava mais interessado nas fisionomias, que eram

    mesmo dignas de ser olhadas. As figuras estavam sentadas em cadeiras de pedra nos dois lados da sala, deixando livre o espao do meio. Parece boa gente falou Digory.

    Polly assentiu com a cabea. As feies eram simpticas. Homens e mulheres pareciam bondosos e inteligentes. Deviam descender de uma raa bonita. Mas, medida que as crianas deram alguns passos na sala, aproximaram-se de faces bem diferentes. Rostos solenes. Para falar com aquelas figuras seria indispensvel caprichar na gramtica. Quando avanaram um pouco mais, encontraram-se diante de faces das quais no gostaram nada. Eram rostos de expresso forte e orgulhosa, porm cruis. Mais adiante as feies pareciam ainda mais perversas. Um pouquinho mais e depararam com expresses mais terrveis ainda, e nem um pouco felizes. Rostos quase desesperados, como se as pessoas s quais pertencessem tivessem cometido, e tambm sofrido, coisas pavorosas.

    A ltima figura era a mais interessante: uma mulher muito alta (de fato, todas as figuras do salo eram mais altas do que as pessoas do nosso mundo), vestida mais ricamente do que as outras, e com um olhar to aterrador e soberbo que quase tirava o flego.

    Apesar disso, era bela. Muitos anos depois, j velho, Digory chegou a dizer que nunca vira mulher mais bela em toda a sua vida. preciso

  • dizer, no entanto, que Polly, por sua vez, sempre afirmou no ter visto nela nada de especialmente bonito.

    Depois da mulher, havia uma poro de cadeiras vazias, como se o salo tivesse sido projetado para um nmero bem maior de imagens.

    Daria um doce para saber a histria que est por trs disso falou Digory. Vamos dar uma espiada naquela coisa no meio da sala.

    A coisa no era propriamente uma mesa. Era uma coluna quadrada com um metro de altura; em cima ficava um pequeno arco dourado do qual pendia um pequeno sino de ouro; ao lado encontrava-se um martelinho de ouro.

    Estou pensando... estou pensando... disse Digory. Acho que tem alguma coisa escrita aqui interrompeu Polly,

    agachando-se e olhando para um canto da coluna. Puxa, mesmo. Mas a gente no sabe ler a lngua deles... Ser que no? Tenho minhas dvidas. Ambos olharam com todos

    os olhos. Eram de fato estranhos os caracteres sulcados na pedra, mas ento o inesperado aconteceu: embora o talhe dos caracteres no se alterasse, os dois perceberam que aos poucos, medida que olhavam, iam tornando-se capazes de entend-los. O encantamento comeava a agir. Logo j sabiam o que estava escrito na coluna.

    O estilo devia ser melhor, mas o sentido dos dizeres era o seguinte: Ousado aventureiro, decida de uma vez: Faa o sino vibrar e aguarde

    o perigo Ou acabe louco de tanto pensar: Se eu tivesse tocado, o que teria acontecido? Eu que no entro

    nessa disse Polly. No quero ver perigo nenhum. No adianta, Polly, no est vendo que agora tarde demais? j

    camos na coisa. A gente vai passar a vida pensando o que teria acontecido se tivesse tocado o sino. Eu que no quero ficar louco, pensando a vida inteira nisso. Eu, no!

    No seja to bobo. Que interesse pode ter o que teria acontecido? Quem chegou at este ponto, no tem mais sada: ou toca o sino ou

    fica maluco. este o encantamento, voc no entende? j estou ficando empolgado... encantado...

    No estou sentindo nada disse Polly, meio zangada. E nem acredito na sua empolgao. fita sua.

    porque voc mulher. Mulher s quer saber de intriga e de fofoca sobre namoros.

  • Voc ficou igualzinho a seu tio quando disse isso. Por que est fugindo do assunto? Estvamos falando sobre... Voc est falando igualzinho a um homem! disse Polly, num tom

    de gente adulta. E acrescentou vivamente, no seu prprio tom: E no v dizer que eu tambm falo como uma mulher. No v bancar relgio de repetio.

    Nunca me passaria pela cabea chamar de mulher uma garotinha como voc disse Digory com arrogncia.

    Ah, quer dizer que eu sou uma garotinha?! Polly agora estava mesmo furiosa. Pois j no precisa se incomodar em acompanhar uma garotinha. Chega! Estou cheia deste lugar! E estou farta de voc tambm... seu bestalho... seu teimoso... burro!

    Nada disso! gritou Digory, num tom ainda mais rude do que pretendia, pois acabara de ver Polly enfiando a mo no bolso para agarrar o anel amarelo.

    De maneira nenhuma vou desculpar o que ele fez em seguida; s posso dizer que Digory se arrependeu muito depois. Antes que a mo de Polly chegasse ao bolso, ele agarrou-lhe o pulso, dando-lhe uma torcida. Defendendo-se da outra mo da menina com o cotovelo, pegou o martelinho e deu no sino de ouro uma bonita martelada. Depois soltou a pobre Polly e ficaram um olhando para o outro, respirando com dificuldade. Polly j comeava a chorar, no de medo, nem mesmo de dor, mas de pura e forte raiva. Dentro de dois segundos, no entanto, os acontecimentos iam varrer de seus coraes quaisquer ressentimentos.

    Logo ao ser golpeado, o sino dera uma nota, a doce nota que se podia esperar de um sino de ouro. Mas o som, em vez de ir morrendo, continuou, e continuou mais forte. No fim de um minuto era duas vezes mais alto do que no incio. Da a pouco estava to alto que eles (se, em vez de permanecerem de boca aberta, tivessem falado alguma coisa) no poderiam conversar. E o som foi ficando mais forte, mais forte, sempre a mesma nota, ao mesmo tempo suave e terrvel. Por fim todo o ar contido no salo vibrava com o som, e podiam perceber que as pedras tremiam sob seus ps. Em seguida, um outro som entrou na sala, um barulho confuso e desastroso, como um trem ao longe, a princpio, depois como o baque de uma rvore caindo. Finalmente, com estardalhao, uma boa parte do teto despencou no fim do salo; grandes blocos de alvenaria desmoronaram em volta deles; as paredes tremeram.

    O rudo do sino parou. As nuvens de poeira sumiram. Tudo voltou antiga quietude.

  • Nunca se descobriu se o desabamento do teto era devido a feitiaria ou se o insuportvel som do sino estava acima dos limites tolerveis por aquelas paredes vacilantes.

    Que tal?! Acho que agora voc est satisfeito! disse Polly, arquejante. Bom... de qualquer jeito, j acabou.

    E pensaram que tinha acabado mesmo; mas nunca estiveram to enganados em toda a sua vida.

  • 5 A PALAVRA EXECRVEL

    As crianas ficaram se entreolhando por cima da coluna. O sino, mesmo sem som, ainda vibrava. De repente ouviram um rudo ligeiro no canto da sala ainda intacto. Viraram-se como dois relmpagos. Uma das figuras, a mais distante, a mulher que Digory achava to bela, estava levantando-se da cadeira de pedra. Quando se ps em p, verificaram que era ainda mais alta. Via-se logo, no apenas por causa da coroa e da roupagem, mas pelo fulgor de seus olhos e pela curva de seus lbios, que se tratava de uma grande rainha. Olhou em torno, viu os estragos da sala, viu as crianas; no era possvel ler em seu rosto a menor reao. Avanou com passadas longas e ligeiras.

    Quem me acordou? Quem quebrou o encanto? Acho que fui eu respondeu Digory. Voc! disse a rainha, colocando no ombro do menino sua linda

    mo alva. Seus dedos, no entanto, eram mais fortes do que pinas de ao. Voc? Mas no passa de uma criana, uma criana comum! Qualquer pessoa v logo que no tem nas veias uma s gotinha de sangue nobre. Como uma pessoa assim ousou penetrar nesta casa?

    Viemos de outro mundo, por meio de magia disse Polly, achando que j era tempo de a rainha dar-lhe alguma ateno.

    Isso verdade ou mentira? perguntou a rainha olhando ainda para Digory, sem sequer espiar Polly com o canto do olho.

    verdade disse ele. A rainha, com a outra mo, levantou o queixo do menino, a fim de

    melhor observ-lo. Digory tentou encar-la tambm, mas no resistiu e baixou os olhos. Havia nos olhos dela alguma coisa que o sobrepujava. Depois que o examinou durante um minuto, soltou-lhe o queixo e disse:

    No tem nada de feiticeiro. No tem a marca. S pode ser servo de um feiticeiro. S por intermdio de feitiaria alheia conseguiu viajar at aqui.

    Foi o tio Andr que me enviou para c disse Digory.

  • Nesse momento, no propriamente no salo, mas de algum lugar bem prximo, chegou um ribombar, depois um grande estalido e, em seguida, o estardalhao de alvenaria desabando.

    Estamos correndo grande perigo disse a rainha. O palcio todo est prestes a ruir. Temos de sair logo para no ficar enterrados nas runas.

    Falou com a maior calma, como se estivesse apenas comentando o tempo. Vamos, acrescentou, dando as mos s crianas. Polly, que no estava gostando nem um pouquinho da rainha, no lhe teria dado a mo, caso pudesse opor alguma resistncia. Apesar da fala morosa, os movimentos da rainha eram mais ligeiros que o pensamento.

    Que mulher mais desagradvel, pensou a menina. Com uma torcidinha capaz de quebrar o meu brao. E agora que ela me agarrou, no posso mais alcanar o anel amarelo. Se eu esticar o brao at o bolso, vai perguntar o que estou fazendo. Acontea o que acontecer, no podemos revelar nada sobre os anis. Espero que Digory tenha tambm o bom senso de manter o bico calado. Seria timo se eu pudesse falar com ele a ss durante um segundo.

    A rainha os conduziu por um comprido corredor, passando depois por um labirinto de salas, escadarias e ptios. Com freqncia ainda ouviam pedaos do palcio desabando, s vezes pertinho deles. Um arco enorme despencou com estrpito logo depois que haviam passado por baixo dele. Tinham de apertar o passo para acompanhar a rainha, mas ela no mostrava o menor sinal de medo. Digory ia pensando: Que mulher mais corajosa! E como forte! isso que eu chamo de uma rainha! Tomara que ela nos conte a histria deste lugar.

    Enquanto andavam (ou corriam), ela ia dando algumas informaes: Esta a entrada do calabouo, Esta passagem conduz principal cmara de torturas, Este um antigo salo de banquetes, onde meu bisav recebeu setecentos convidados e matou a todos, antes que terminassem de beber. Tinham idias subversivas.

    Chegaram por fim a um salo mais amplo e mais grandioso do que os demais. Pelas suas dimenses e portas enormes, Digory achou que finalmente haviam atingido a entrada principal no que estava completamente certo. As portas eram negras de doer, de bano ou de algum metal preto que no existe em nosso mundo. Estavam trancadas com barras enormes, muitas to altas que no podiam ser alcanadas, e todas pesadas demais para ser erguidas. A rainha soltou a mo do menino e ergueu o brao. As portas altas e pesadssimas tremeram por um instante, como se fossem de seda, e esboroaram-se no cho, onde s ficou um monte de p.

    Fiu-fiu! assobiou Digory.

  • Ter o mestre feiticeiro, seu tio, poder igual ao meu? perguntou a rainha, segurando outra vez com energia a mo de Digory. Vou apurar isso mais tarde. Mas no se esqueam do que viram. o que acontece s pessoas que barram meu caminho.

    Uma luz, muito intensa para aquele mundo, invadia o prtico sem porta. No se sentiram nada surpresos quando foram conduzidos para o ar livre. O vento era frio, mas, ainda assim, tinha algo de ranoso. Encontravam-se em um alto terrao, do qual se avistava uma vasta e extensa paisagem l embaixo. Na linha do horizonte pousava um enorme sol vermelho, muito maior do que o nosso. Digory percebeu tambm que era bem mais velho que o nosso, um sol no fim da vida, j cansado de olhar para aquele mundo. esquerda do sol, mais ao alto, havia uma nica estrela, enorme e reluzente. Eram as duas coisas visveis no cu escuro e desolado.

    Na terra, em todas as direes, estendia-se uma grande cidade, onde no se via coisa viva. Os templos todos, as torres, os palcios, as pirmides, as pontes projetavam sombras longas e lgubres luz daquele sol murcho. Um grande rio percorrera a cidade em tempos idos, mas a gua desaparecera h muito, deixando no leito uma poeira cinzenta.

    Olhem bem, que jamais outros olhos vero este cenrio disse a rainha. Aqui foi Charn, a metrpole, a cidade do Rei dos Reis, o assombro do mundo, de todos os mundos, talvez. Seu tio governa uma cidade grandiosa como esta, menino?

    No respondeu Digory. J ia explicar que seu tio no governava coisa nenhuma, mas a rainha prosseguiu:

    Est em silncio agora. Mas aqui estive quando o ar vibrava com o estrpito de Charn; o soar dos ps, o ranger das rodas, o estalido dos chicotes, os gemidos dos escravos, o fragor das carruagens, os tambores dos ritos de sacrifcio ressoando nos templos... Aqui estive (mas j era o princpio do fim) quando o troar da batalha invadia as ruas e o rio de Charn corria vermelho.

    Fez uma pausa e acrescentou: No lampejo de um instante, uma mulher fez a cidade desaparecer

    para sempre. Quem? perguntou Digory, com a voz sumida, j imaginando a

    resposta. Eu! respondeu a rainha. Eu, Jadis, a ltima rainha, mas a rainha

    do mundo! As duas crianas ficaram caladas, tiritando no vento frio.

  • Foi culpa de minha irm prosseguiu a rainha. Levou-me a isso. Que a maldio de todos os poderes repouse sobre ela eternamente! Eu estava decidida a fazer a paz a qualquer momento... Sim, e estava tambm decidida a poupar-lhe a vida, desde que me entregasse o trono. Mas ela no quis. Seu orgulho destruiu o mundo todo. Mesmo depois de ter comeado a guerra, firmou-se o juramento solene de que ningum se utilizaria de magia. Quando ela quebrou o juramento, que me restava fazer? Desvairada! Como se ignorasse que eu possua mais poderes do que ela! E no ignorava tambm que eu possua o segredo da Palavra Execrvel! Teria pensado sempre foi uma fraca de esprito que eu no usaria o meu poder final? Qual era? perguntou Digory.

    O segredo de todos os segredos. Sempre foi do conhecimento dos grandes reis da nossa raa que existia uma palavra, a qual, se pronunciada com as cerimnias adequadas, destruiria todas as coisas vivas, menos a pessoa que a pronunciasse. Os antigos reis, entretanto, eram dbeis ou compassivos e comprometeram a si mesmos, e a todos que os sucederam, com grandes juramentos, de jamais nem mesmo buscarem a cincia dessa palavra. Mas eu tomei cincia dela num lugar secreto e paguei terrvel preo por isso. No a usei at que fui forada a faz-lo. Lutei desesperadamente para substitu-la por todos os outros meios. Derramei como gua o sangue dos meus exrcitos...

    Monstro! resmungou Polly, baixinho. A ltima grande batalha continuou a rainha raivou por trs dias

    aqui, no corao de Charn. Durante trs dias eu a contemplei deste mesmo local. S me utilizei da soluo final depois que tombaram meus ltimos soldados, quando a mulher maldita, minha irm, testa dos rebeldes, j subia aquelas imensas escadarias que vo do centro da cidade ao terrao. Esperei que estivssemos bem prximas e pudssemos distinguir nossas fisionomias. Faiscando seus horrveis olhos perversos em cima de mim, disse-me ela: Vitria!. Sim, disse-lhe eu, vitria, mas no sua. Ento pronunciei a Palavra Execrvel. Um momento depois era eu, sob o sol, a nica criatura viva.

    E o povo? perguntou Digory, sem ar. Que povo, garoto? O povo, ora, o povo que anda na rua, que nunca iria fazer-lhe mal.

    E as mulheres, as crianas, os bichos? Voc no est entendendo. Escute, eu era a rainha; eles todos eram

    os meus sditos; logo, s viviam para fazer a minha vontade. Coitados! disse Digory. Por um momento me esqueci de que voc no passa de um menino

    plebeu. Como iria entender razes de Estado? Precisa aprender uma coisa,

  • criana: o que talvez seja errado para voc, ou para qualquer pessoa comum, no errado para uma rainha como eu. A responsabilidade do mundo pesa sobre os nossos ombros. Precisamos estar livres de todas as normas. Nosso destino grandioso e solitrio.

    Digory ento lembrou-se de que tio Andr pronunciara aquelas mesmas palavras. S que ditas pela rainha Jadis soavam muito mais imponentes, talvez porque seu tio no tivesse dois metros de altura e nem fosse estonteantemente belo.

    Que fez a senhora depois? perguntou. J havia lanado intensas magias na sala onde se assentam as

    imagens de meus antepassados. E a fora desse encantamento era que eu deveria dormir entre eles, como uma esttua, sem precisar de alimento ou calor, ainda que passassem mil anos, at que chegasse algum, tocasse o sino e me acordasse.

    Foi a Palavra Execrvel que botou o sol desse jeito? perguntou Digory.

    De que jeito? To grande, to vermelho, to frio. Sempre foi assim. Pelo menos, h algumas centenas de milhares de

    anos. Vocs acaso possuem um sol diferente? , o nosso menor e mais amarelado. E produz muito mais calor. A... a... ah! O... o... oh! exclamou a rainha. Digory viu em sua

    face aquele olhar esfomeado e cobioso que reparara em tio Andr. Ah, quer dizer que seu mundo mais jovem!

    Olhou por mais algum tempo para a cidade vazia (se estava arrependida pelo que fizera, no o demonstrou) e disse:

    Agora, vamos partir. Est fazendo frio aqui, no fim de todas as eras.

    Partir para onde? perguntaram as duas crianas. Para onde? repetiu Jadis, com real surpresa. Para o mundo de

    vocs, claro. Polly e Digory se entreolharam, estupefatos. Polly sentira antipatia pela Rainha primeira vista; e o prprio

    Digory, que agora sabia de tudo, j estava farto dela. No era, em absoluto, o tipo de pessoa que nos d prazer convidar nossa casa. E, mesmo que o quisessem, no tinham a menor idia de como faz-lo.

  • Queriam mesmo era partir dali, mas Polly no podia pegar seu anel e, naturalmente, Digory no iria sem ela. Muito corado, o menino gaguejou:

    Oh... oh... nosso mundo. No... no sabia que a senhora desejava ir l.

    Ora, vocs s podem ter sido despachados para c a fim de levar-me para l.

    Sou capaz de jurar que a senhora no vai gostar nem um pouco do nosso mundo replicou Digory. No um lugar para ela, no acha, Polly? montono! No tem nada para se ver, no tem mesmo!

    Ter muita coisa para se ver depois que eu assumir o governo foi o comentrio da rainha.

    Oh, mas no d! disse Digory. Tambm no assim. Eles no vo deixar a senhora entrar, sabe? A rainha sorriu, com desprezo:

    Grandes reis, inmeros, pensaram que poderiam enfrentar a Casa de Charn. Caram todos e at seus nomes foram esquecidos. Jovem insensato! No percebe que, com a minha beleza e a minha magia, terei todo o seu mundo a meus ps antes de um ano? Prepare seu encantamento e leve-me imediatamente para l.

    Essa de lascar disse Digory a Polly. Talvez receie por seu tio disse Jadis. Mas, caso ele me preste as

    honras devidas, poder conservar a vida e o trono. No vou para destru-lo. Deve ser um grande feiticeiro, j que descobriu como envi-lo at aqui. Ele rei do mundo todo ou s de uma parte?

    No rei de coisa nenhuma! respondeu Digory. Mentira sua! A magia e o sangue real andam sempre juntos.

    Algum j ouviu falar de gente comum que conhecesse feitiaria? No adianta mentir para mim; eu posso ver a verdade. Seu tio o grande rei e o grande mago de seu mundo. Graas sua arte, viu a sombra de meu rosto em algum espelho mgico ou num lago encantado. E, por amor minha beleza, manipulou um feitio que abalou as bases do mundo e o levou atravs do abismo entre dois mundos, para que rogasse da minha graa a concesso de ir at ele. Responda: foi ou no foi assim?

    No foi bem assim respondeu Digory. No foi bem assim? gritou Polly. Isso uma besteira do

    princpio ao fim. Porcariazinha! gritou por sua vez a rainha, virando-se furiosa

    para Polly e agarrando-lhe os cabelos bem no alto da cabea, onde di mais. Mas, ao fazer isso, soltou as mos de ambos.

  • Agora! gritou Digory. J! gritou Polly. Enfiaram as mos direitas nos bolsos. Nem precisaram colocar os

    anis. Foi s toc-los e o mundo aterrador desapareceu. Deslizaram para cima, e uma clida luz verde foi-se tornando mais intensa.

  • 6 COMEAM AS COMPLICAES DE TIO

    ANDR

    Me solte! Me solte! berrava Polly. No estou segurando voc! respondia Digory. Suas cabeas em

    seguida surgiram do poo e, mais uma vez, a luminosa quietude do Bosque entre Dois Mundos os envolveu. Parecia ainda mais cheio de vida, mais clido e mais tranqilo depois dos destroos deteriorados de Charn. Se lhes fosse dada a oportunidade, decerto teriam se esquecido de quem eram, de onde vieram, teriam se estendido no cho, deleitando-se, meio adormecidos, a escutar o crescimento das rvores. Dessa vez, porm, uma coisa os manteve mais acordados do que nunca: logo que pisaram a relva descobriram que no se achavam ss. A rainha, ou feiticeira, tinha viajado com eles, agarrada aos cabelos de Polly. Por isso esta gritava me solte.

    Isso vinha a provar uma outra coisa sobre os anis; tio Andr nada informara a respeito para Digory porque tambm ignorava o fenmeno. Para mudar de um mundo para outro, trazido pelo anel, no era preciso us-lo ou toc-lo; bastava tocar a pessoa que estivesse em contato com ele. O anel funcionava como um im; se voc agarrar um alfinete com um m, pode puxar outros alfinetes em contato com o primeiro.

    Mas no bosque a rainha Jadis no era a mesma. Para comear, estava muito mais plida; to plida que mal lhe sobrava alguma beleza. Curvada, parecia ter a respirao opressa, como se o ar local a sufocasse. J no dava medo s crianas.

    Solte o meu cabelo! Solte o meu cabelo! esbravejou Polly. Solte logo o cabelo dela! gritou Digory. Ambos caram em cima

    da rainha e livraram os cabelos de Polly em poucos segundos. Estavam agora mais fortes do que ela, que tinha uma expresso de terror nos olhos.

    Depressa, Digory disse Polly. Vamos trocar os anis e mergulhar no lago que nos leva para casa. Socorro! Socorro! Tenham pena de mim! suplicou a feiticeira, com uma voz fraca, enquanto cambaleava, ofegante, na direo deles. Levem-me tambm. Se me deixarem aqui ser uma crueldade, um crime de morte.

  • Trata-se de uma razo de Estado falou Polly com menoscabo. A mesma razo pela qual voc assassinou aquela gente toda l no seu mundo. Depressa, Digory.

    Colocaram os anis verdes, mas Digory disse: Que maada! O que vamos fazer? Mesmo sem querer, sentia uma certa pena da rainha.

    No banque o idiota disse Polly. Aposto dez contra um que ela est fingindo. Venha logo. Os dois pularam no lago. Polly ainda pensou: Que idia genial ter marcado o lugar! Mal tinha saltado, Digory sentiu que dois grandes e glidos dedos haviam pinado sua orelha. medida que afundavam e as confusas formas do nosso mundo comeavam a surgir, a garra dos dedos apertava mais. Pelo jeito, a feiticeira estava recuperando as foras. Deu tapas e chutes, mas no adiantou nada: j se achavam no estdio de tio Andr, que l estava, olhando boquiaberto a estranha criatura que Digory trouxera de alm-mundo.

    E era mesmo de abrir a boca. A feiticeira vencera a languidez do Bosque entre Dois Mundos. No nosso mundo, com as coisas de sempre ao redor, a rainha era impressionante. Em Charn j parecera alarmante; em Londres, era de meter medo. S agora faziam uma idia exata do tamanho da mulher. Nem chega a ser humana pensou Digory, olhando para ela. E devia estar certo, pois se diz que h sangue de gigante na famlia real de Charn.

    No entanto, a altura da rainha no era nada comparada sua beleza, impetuosidade e selvageria. Parecia dez vezes mais cheia de vida do que a grande parte das pessoas que a gente encontra em Londres. Tio Andr, inclinando a cabea, esfregando as mos e abrindo os olhos, parecia um coelho acuado. Melhor: ao lado da feiticeira, mais parecia um camaro. Pois, apesar de tudo, como Polly observou mais tarde, havia qualquer semelhana entre ela e ele, qualquer coisa na expresso do rosto. Era o olhar dos bruxos, a marca que Jadis no encontrou na face de Digory.

    Pelo menos uma vantagem havia em ver os dois reunidos: no se podia mais ter medo de tio Andr, assim como no se tem mais medo de minhoca depois de se topar com uma cascavel, ou medo de uma vaca depois de se topar com um touro bravo.

    Bah! disse Digory para si mesmo. Feiticeiro, ele! No d nem para enganar. Ela, sim, pra valer!

    Tio Andr continuava a esfregar as mos e a curvar a cabea. Procurava uma coisa bem delicada para dizer, mas a boca estava seca como o chafariz de Charn; no conseguia falar. Seu experimento com os anis, como dizia ele, estava sendo um sucesso acima do desejvel. Apesar de

  • estar metido em magia h anos, sempre reservara as misses perigosas para outras pessoas. Nada parecido lhe acontecera at ento.

    Jadis falou. No muito alto, mas alguma coisa na sua voz fez a sala estremecer.

    Onde est o feiticeiro que me convocou a este mundo? -Ah... ah... minha senhora arquejou tio Andr , uma honra... excelsa... eu... um... encantador prazer... de acolher...

    se ao menos este seu humlimo servo fosse antes avisado de vossa real chegada... eu... eu...

    Onde est o feiticeiro, idiota? perguntou Jadis. Ah... ah... minha senhora. Espero que a senhora tenha perdoado...

    hum... quaisquer liberdades que porventura estas crianas levadas tenham tomado diante de to augusta presena. Posso assegurar-lhe...

    Voc, ainda? disse a rainha, numa voz ainda mais aterradora. Com uma passada, cruzou a sala, apanhou um punhado do cabelo cinzento de tio Andr e empurrou a cabea dele para trs. Examinou-lhe o rosto demoradamente, enquanto o velho piscava os olhos e molhava os lbios o tempo todo. Por fim, soltou-o to abruptamente que ele rodopiou de encontro parede.

    Sei que tipo de feiticeiro voc disse a rainha com desprezo. Fique firme, animal, e pare de rebolar como se estivesse falando com gente de sua laia. Como aprendeu magia? Sangue real posso jurar que voc no tem.

    Bem... realmente... real, no estrito senso da palavra, no tenho voltou a gaguejar tio Andr. No precisamente real, senhora. Os Ketterley, contudo, pertencem a uma velha famlia... a uma tradicional famlia...

    Basta disse a feiticeira. J sei o que voc . No passa de um feiticeiro de meia-tigela, que s opera por meio de livros e fmulas. No h um pingo de magia verdadeira em seu sangue. Gente de seu tipo foi varrida do meu mundo h mais de mil anos. Aqui, entretanto, concedo que voc seja o meu servo.

    Ser uma honra... uma grande ventura, senhora, poder prestar-lhe qualquer servio, um de-de-deleite que...

    J chega. Voc fala demais. Preste ateno em sua primeira tarefa. Estamos numa grande cidade, estou vendo. V buscar-me uma carruagem triunfal ou um tapete voador ou um drago em boa forma... Ou qualquer coisa habitualmente usada pelos nobres de sua terra. Leve-me depois a

  • lugares onde eu possa obter vestidos e jias e escravos dignos da minha alta posio. Amanh comearei a conquistar o mundo.

    Eu... eu... vou correndo buscar um cabriol disse o ofegante tio Andr.

    Espere disse a feiticeira. Que a sombra da traio nem passe pela sua cabea. Meus olhos enxergam atravs das paredes e dentro do esprito dos homens, e estaro dentro de voc em todos os lugares. Ao primeiro sinal de desobedincia, rogo-lhe esta praga: onde se sentar, ser como o ferro em brasa; quando se deitar, invisveis blocos de gelo pousaro em cima de seus ps. Agora, v!

    O velho saiu como um cachorro com o rabo entre as pernas. As crianas temiam agora que Jadis quisesse ajustar as contas pelo

    que ocorrera no bosque. No entanto, a rainha nunca mais mencionou o assunto. Eu acho (e Digory tambm) que a mente dela era de um tipo que jamais se lembraria daquele lugar calmo. Voc poderia lev-la para l vrias vezes, e deix-la por um longo tempo, que ela continuaria sem lembrana nenhuma.

    Agora que ela estava sozinha com as crianas, nem notava a presena delas. Ela era assim mesmo. Em Charn, queria usar Digory e no deu a mnima ateno a Polly; agora, que tinha tio Andr nas mos, pouco se importava com Digory. As bruxas em geral so assim. No esto jamais interessadas nas coisas ou nas pessoas, mas na utilidade eventual destas. So de um esprito prtico implacvel.

    Fez-se silncio na sala por um ou dois minutos, mas, pelas pancadas do p de Jadis no cho, via-se que sua impacincia crescia. Por fim falou, como para si mesma:

    Que andar fazendo aquele velho maluco? Devia ter trazido um chicote. E, sem olhar para as crianas, saiu, como um pavo, procura de tio Andr.

    Opa! exclamou Polly, respirando aliviada. Tenho de ir j para casa. tarde pra burro.

    Est bem, mas volte o mais cedo que puder disse Digory. No pode haver nada mais medonho do que ter esta mulher aqui em casa. Temos de combinar um plano.

    O problema de seu tio. Foi ele quem comeou a confuso toda. Est certo... mas voc volta? No v me deixar sozinho numa

    enrascada destas.

  • Vou para casa pelo tnel disse Polly, com bastante frieza. o caminho mais rpido. Se quer mesmo que eu volte, no acha que est na hora de pedir desculpa?

    Desculpa? Mulher fogo! Que que eu fiz? Oh, nada, claro! respondeu Polly, com sarcasmo. S torceu o meu pulso como um saca-rolha! S deu uma martelada no sino como um imbecil de fivela! S bancou o bestalho, deixando que ela agarrasse em voc l no bosque! S isso!

    Oh! exclamou Digory, muito surpreso. Muito bem, muito bem, desculpe, desculpe. Reconheo a culpa de tudo. J disse: desculpe! Mas, por favor, volte. Estarei frito se no voltar.

    No vejo o que poder acontecer com voc... Acho que o seu tio Andr quem vai sentar-se nas cadeiras quentes.

    No isso, Polly. Estou preocupado com mame. Imagine s se aquela coisa aparece no quarto dela; a mame morre, na certa.

    Ah, agora estou entendendo disse Polly, em outro tom de voz. Perfeito. Pazes feitas! Volto... se puder. S que tenho mesmo de ir.

    E esgueirou-se pelo tnel. O lugar escuro, que fora uma aventura poucas horas antes, parecia agora um lugar manso e domstico.

    Voltemos ao tio Andr. Seu velho corao ia tuque-tuque-tuque quando ele desceu os degraus do sto, dando pancadinhas na testa com um leno. Chegando ao prprio quarto, no andar de baixo, trancou-se. A primeira providncia que tomou foi buscar no guarda-roupa uma garrafa e um clice, mantidos ali fora da vista policialesca da tia Leta. Serviu-se de uma dose herica da herica bebida e bebeu de um gole igualmente herico. Depois respirou profundamente.

    Palavra! falou para si mesmo. Estou inteiramente... Que coisa louca! Na minha idade! Bebeu de um gole outro clice de herosmo e comeou a mudar de roupa: um colarinho muito alto, muito reluzente e muito duro, desses que mantinham o queixo erguido o tempo todo; um colete branco todo trabalhado, a corrente do relgio de ouro atravessando de lado a lado; uma sobrecasaca, que ele usava somente em casamentos e enterros; a cartola muito bem escovada. Apanhou uma flor no vaso (colocado ali por tia Leta), prendendo-a lapela. Procurou um leno limpo (um leno excelente, impossvel de se encontrar hoje em dia), deixando cair nele algumas gotas do que se chamava frasco de cheiro. Atarraxou o monculo de fita preta diante do olho e foi olhar-se no espelho.

    As crianas so bobas de um jeito, os adultos de outro. Naquele momento tio Andr estava comeando a ficar bobo ao jeito dos adultos. Como a feiticeira no estivesse com ele na mesma sala, j se esquecera do

  • quanto ficara aterrorizado, passando a pensar no quanto ela era deslumbrantemente bonita. Ficou repetindo para si mesmo: Que mulher! Que mulher! Que criatura impressionante!

    Tambm tratara de esquecer que foram as crianas que trouxeram a criatura impressionante: sentia-se como se ele prprio, por sua fora mgica, tivesse trazido a mulher de um mundo desconhecido. Mirando-se no espelho, disse:

    Andr, garoto, voc est diabolicamente conservado para a sua idade. Um homem de aparncia muito distinta, cavalheiro.

    Veja voc: o tonto do velhote estava de fato comeando a imaginar que a feiticeira ficaria apaixonada por ele. Provavelmente os dois goles ajudavam a sustentar essa opinio, e as melhores roupas tambm. Mas, enfim, sempre fora vaidoso como um pavo; foi s por isso que se fez feiticeiro.

    Abriu a porta, desceu as escadas e mandou a empregada procurar um cabriol (todo o mundo podia ter uma poro de empregadas naquele tempo). Na sala de visitas, como esperava, encontrou tia Leta. Estava ajoelhada, muito entretida em remendar um colcho.

    Ah, minha irmzinha querida disse tio Andr , eu... ham... hum... tenho de sair. S queria que me emprestasse umas cinco libras, por a...

    No, meu caro Andr respondeu tia Leta com sua voz inflexvel, sem erguer os olhos do trabalho. J disse a voc inmeras vezes que no lhe empresto dinheiro.

    Por favor, mana, no complique; de uma importncia transcendente. Ficarei numa situao terrivelmente embaraosa se...

    Andr disse tia Leta, fitando-o , voc no tem vergonha de me pedir dinheiro emprestado?

    Escondia-se toda uma comprida e aborrecida histria de gente grande atrs daquelas palavras. Basta voc saber o seguinte: tio Andr zelava pelos negcios de tia Leta. Como nunca trabalhou e gastava muito com charutos e conhaque (os quais a irm sempre pagava), conseguiu deix-la mais pobre do que era trinta anos antes.

    Minha querida, voc no est entendendo. O caso que eu tenho umas despesas extraordinrias hoje. Sou forado a levar a passear... uma...

    Levar a passear quem, Andr? Uma... uma estrangeira que acabou de chegar... da mais alta

    distino.

  • Da mais alta asnice! H uma hora que a campainha no toca. Nesse momento a porta escancarou-se. Tia Lera virou-se e, com o

    maior assombro, viu ali parada uma imensa mulher, esplendorosamente vestida, de braos nus e olhos chamejantes. Era a feiticeira.

  • 7 O QUE ACONTECEU NA RUA

    Escravo, por quanto tempo terei de esperar pela minha carruagem? bradou a feiticeira.

    Tio Andr encolheu-se todo. Agora, na presena dela, os pensamentos bobos que tivera ao espelho foram desaparecendo. Tia Lera levantou-se logo e foi para o meio da sala.

    Andr, quem esta jovem, se e que tenho o direito de saber? perguntou, em tom glacial.

    Uma distintssima estrangeira... mu... muito im... im... importante. Asneira! disse tia Lera, virando-se depois para a feiticeira. Saia

    desta casa imediatamente, sua sirigaita! Ou eu chamo a polcia! Achava que a feiticeira era artista de circo e, alm disso, no consentia braos nus.

    Quem esta mulher? perguntou Jadis. Ajoelhe-se, sua ordinria, antes que eu a desmonte. Cuidado com as palavras que usa na minha casa, senhorita! disse tia Lera.

    Nesse momento, tio Andr teve a impresso de que a rainha ficara ainda mais alta. Seus olhos faiscavam. Estendeu o brao e pronunciou umas palavras de som assustador, como fizera para destruir o portal de Charn. Nada aconteceu; tia Lera, pensando que aquelas palavras horrveis fossem um ingls malfalado, disse:

    J estou entendendo. A mulher est bbada. Completamente bbada! Nem pode falar direito. Deve ter sido horrvel para a feiticeira perceber que o seu poder de reduzir pessoas a p no funcionava em nosso mundo. Mas s perdeu a compostura durante um segundo. Sem gastar tempo com palavras, agarrou tia Lera pelo pescoo e pelos joelhos, levantou-a acima da cabea como se fosse uma boneca de pano, e fez o lanamento... Enquanto tia Lera rodopiava no ar, a empregada (que estava tendo um dia de maravilhosa animao), enfiou a cabea na porta e disse:

    O cabriol chegou. Vamos, escravo disse a feiticeira para tio Andr. Ele tentou resmungar qualquer coisa como uma lamentvel

    violncia, mas ficou mudo ao erguer os olhos para a rainha, que o

  • conduziu para fora da casa. Digory veio correndo pelas escadas e chegou a tempo de ver a porta da rua sendo fechada.

    Puxa! Agora ela est solta em Londres. E com tio Andr! Pode acontecer tudo neste mundo. Oh, seu Digory disse a empregada (que estava vivendo um dia maravilhoso) , acho que dona Letcia est um pouco machucada.

    Ambos correram para a sala de estar. Se tia Lera tivesse cado na madeira do assoalho ou mesmo no

    tapete, teria decerto quebrado todos os ossos. Por pura sorte, havia cado no colcho. Era uma velha dura, como costumavam ser as tias solteironas daquele tempo. Depois que cheirou seus sais, descansou por alguns minutos e disse que no era nada: apenas algumas manchas roxas. No demorou a comandar a situao, falando empregada:

    Sara, v imediatamente delegacia dizer que h uma doida solta por a. Eu mesma levo o almoo de dona Mabel.

    Dona Mabel era a me de Digory. Depois de almoar com a tia, o menino ps-se a pensar profundamente.

    O problema era o seguinte: como enviar a feiticeira para o mundo dela, ou pelo menos expuls-la do nosso o mais cedo possvel? O importante, fosse como fosse, era impedir que ela continuasse a tumultuar a casa. No podia de maneira nenhuma ser vista por sua me. Igualmente, se possvel, no deveria tumultuar a cidade de Londres. Digory no estava na sala de estar quando ela tentou desmontar tia Lera, mas tinha assistido ao desmonte do portal de Charn. No sabia que ela perdera seus medonhos poderes em nosso mundo, mas sabia que pretendia conquistar a Inglaterra e o resto. Naquele momento s podia estar desmontando o Palcio de Buckingham ou o Parlamento. Muitos policiais j deviam estar reduzidos a p. Haveria alguma coisa que pudesse fazer?

    Os anis funcionam como ms, pensava ele. Se eu tocar nela e agarrar o amarelo, iremos para o Bosque entre Dois Mundos. Ser que ela perder suas foras de novo ao chegar l? Ou foi apenas o choque da primeira experincia? Tenho de arriscar. E como que vou encontrar aquela imbecil aqui em Londres? Alis, acho que tia Lera no me deixar sair se eu no disser aonde vou. E o dinheiro que tenho no d nem para a conduo. Nem sei onde comear a procurar. Ser que tio Andr ainda est com ela?

    Por fim, concluiu que s podia fazer uma coisa: esperar que tio Andr e a feiticeira voltassem. Se voltassem, agarraria a feiticeira; colocaria o anel amarelo antes que ela entrasse em casa. Tinha de ficar observando da porta da rua como um gato de olho num rato. Foi para a sala

  • de jantar e amassou o rosto contra a vidraa. Podia ver os degraus da entrada e a rua, e ficou imaginando o que Polly estaria fazendo.

    A primeira meia hora escorreu lentamente. Polly havia chegado tarde para o jantar, com as meias e os sapatos muito molhados. Quando lhe perguntaram onde estivera e o que andara fazendo, respondeu que tinha sado com Digory Kirke. Havia molhado os ps numa poa. A poa estava num bosque. Onde era o bosque, no sabia. Em algum parque da cidade? Parecia com um parque.

    A me de Polly achou ento que a filha havia ido, sem dizer nada a ningum, a um lugar de Londres que no conhecia, brincando a de chapinhar em poas. Resultado: tinha sido uma menina muito levada, e estaria proibida de brincar com o tal de Digory se aquilo acontecesse de novo. No ganhou sobremesa e no devia sair do quarto durante duas horas. Acontecia isso com muita freqncia naquele tempo.

    Assim, enquanto Digory estava de olho na janela da sala de jantar, Polly estava estendida na cama, pensando ambos como o tempo custa a passar.

    Acho que a situao de Digory era pior. Polly tinha apenas de esperar que as duas horas passassem, enquanto ele, ao ouvir qualquer barulho de rodas na rua, logo se sobressaltava, pensando So eles, para em seguida verificar que estava enganado. Entre esses falsos alarmes, o relgio continuava soando e uma mosca esvoaava na vidraa, fora do alcance da mo. Era uma dessas casas que ficam muito quietinhas e aborrecidas durante a tarde e que sempre cheiram carne de carneiro.

    Um pequeno fato aconteceu durante a longa espera: uma senhora chegou porta trazendo umas uvas para a me de Digory. Tia Leta foi receb-la e Digory no pde deixar de ouvir a conversa entre ambas.

    Que uvas maravilhosas! disse a tia. Ela vai gostar tanto! Mas, coitada da minha Mabelzinha, acho que agora s uma fruta da Terra da Eterna juventude poderia fazer bem a ela. Frutas deste mundo j no resolvem, infelizmente.

    As duas comearam a falar baixo e ele no pde escutar mais. Caso Digo