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 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

OS PARADOXOS DOS NOMES-DO-PAI COMO FUNDAMENTO DA RAZÃOSACRIFICIAL: SEGREGAÇÃO E EXTERMÍNIO DE VIDAS MATÁVEIS

Alexandre Dutra Gomes da Cruz

Belo Horizonte

2016

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Alexandre Dutra Gomes da Cruz 

OS PARADOXOS DOS NOMES-DO-PAI COMO FUNDAMENTO DA RAZÃOSACRIFICIAL: SEGREGAÇÃO E EXTERMÍNIO DE VIDAS MATÁVEIS

Tese apresentada ao Programa de Pós-Gradução em Psicologia da PontifíciaUniversidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial paraobtenção do título de Doutor em Psicologia.

Orientadora: Profª Drª. Ilka Franco Ferrari

Belo Horizonte

Fevereiro, 2016

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FICHA CATALOGRÁFICAElaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Cruz, Alexandre Dutra Gomes daC957p Os paradoxos dos Nomes-do-Pai como fundamento da razão sacrifical:

segregação e extermínio de vidas matáveis / Alexandre Dutra Gomes da Cruz.Belo Horizonte, 2016.

173 f. : il.

Orientadora: Ilka Franco FerrariTese (Doutorado) –  Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Psicologia.

1. Operações militares. 2. Violência policial. 3. Sacrifício. 4. Homicídio. 5.Biopolítica. 6. Segregação. 7. Simbolismo (Psicologia). 8. Metáfora. I. Ferrari,Ilka Franco. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa dePós-Graduação em Psicologia. III. Título.

CDU: 301.151.56

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Alexandre Dutra Gomes da Cruz 

OS PARADOXOS DOS NOMES-DO-PAI COMO FUNDAMENTO DA RAZÃOSACRIFICIAL: SEGREGAÇÃO E EXTERMÍNIO DE VIDAS MATÁVEIS

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da PontifíciaUniversidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial paraobtenção do título de Doutor em Psicologia.

 ________________________________________________________Profª. Drª. Ilka Franco Ferrari - PUC Minas (Orientadora)

 ________________________________________________________Profª. Drª. Andréa Máris Campos Guerra - UFMG (Banca Examinadora)

 ________________________________________________________Prof. Dr. Henrique Figueiredo Carneiro - UPE (Banca Examinadora)

 ________________________________________________________

Prof. Dr. Roberto Calazans - UFSJ (Banca Examinadora)

 ________________________________________________________Prof. Dr. José Ignacio Cano Gestoso – UERJ (Banca Examinadora)

Belo Horizonte, 29 de Fevereiro de 2016.

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 À minha filha Júlia, com muito amor.

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AGRADECIMENTOS:

À Ilka, pela orientação na justa medida e pela resoluta confiança que depositou neste trabalho.Agradeço, inclusive, por ter-me assinalado seu elemento fundamental: o título. Não há comodesconsiderar a importância dessa nomeação.

Aos professores doutores membros da banca examinadora: Andréa Máris Campos Guerra,Roberto Calazans, Henrique Figueiredo Carneiro e José Ignacio Cano Gestoso. Agradeço porgentilmente se disponibilizarem a ler este trabalho, contribuindo com o seu avanço. Estendomeus agradecimentos à professora doutora Tânia Coelho dos Santos, que participou da minhaqualificação, tendo também contribuído com importantes indicações. Agradeço também às

 professoras doutoras Nádia Laguardia Lima e Cristina Moreira Marcos por aceitarem meuconvite para participar da banca examinadora como suplentes.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e ao Fundo deInvestimento em Pesquisa (FIP) da PUC Minas, por terem investido no desenvolvimentodesta pesquisa.

Aos professores e funcionários da Pós-Graduação em Psicologia da PUC Minas. Em particular, agradeço à professora Jacqueline de Oliveira Moreira e aos funcionários MarceloAraújo e Cláudia Braga.

Aos meus pais Geraldo e Nara, por sempre terem sido um exemplo para mim e, também, permanente fonte de inspiração. Além do incentivo ao estudo e da valorização da vidaintelectual, agradeço por me proporcionarem as condições necessárias à realização dos meus

 projetos acadêmicos. Devo agradecimento adicional ao meu pai, por ter gentilmente revisadoa tradução do resumo da tese para a língua inglesa.

À Isabela e à Júlia, meus dois amores, que tiveram que lidar com minhas (muitas) ausênciasao longo do percurso do meu doutorado. Agradeço à Isabela em especial, por todo o carinho ededicação dispensados a mim e a nossa filha, enquanto eu me ocupava deste trabalho.

À minha irmã Renata e família, pela amizade e pelos excelentes momentos que passamos juntos. Entre eles, destaco nossa recente viagem para Cordisburgo, onde pude revigorar-meapós um semestre cansativo, e retornar à pesquisa com ânimo redobrado.

Aos companheiros de pesquisa Marcelo Cotta e Maria Cione, pela amistosa interlocuçãoacadêmica e compartilhamento de livros e textos. Isso para não falar dos agradáveismomentos passados em Recife! Agradeço também à Renata Riguini, com quem passei acompor essa categoria de pesquisadores que, certa vez, ela intitulou de ‘exploradores doabismo’.

À Valenir Machado, coordenadora do curso de psicologia da Faculdade de Ciências Médicasde Minas Gerais (CMMG). Estendo o agradecimento também aos professores e alunos docurso.

Aos amigos que me acompanharam ao longo da escrita da tese.

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 Aguardamos confiantes que a investigação de todos os outros casos de proibição sagrada leve ao mesmo resultado que no caso do horror aoincesto, a saber, que o sagrado originalmente não é outra coisa senão avontade continuada do pai primordial. Com isso também se lançaria umaluz sobre a ambivalência até agora incompreensível das palavras queexpressam o conceito de sacralidade. É a ambivalência que domina demaneira geral a relação com o pai. Sacer não significa apenas “sagrado”,

“consagrado”, mas também algo que só podemos traduzir como “infame”,“abominável.” (FREUD, 2014/1939 [1934-38]).

 Há algo de profundamente mascarado na crítica da história que temosvivido. É, presentificando as formas mais monstruosas e pretensamenteultrapassadas de holocausto, o drama do nazismo. Afirmo que nenhumsentido de história, fundado nas premissas hegeliano-marxistas, é capaz dedar conta dessa ressurgência, pela qual se verifica que a oferenda, a deusesobscuros, de um objeto de sacrifícios, é algo a que poucos sujeitos podemdeixar de sucumbir, numa captura monstruosa. A ignorância, a indiferença,o desvio do olhar, podem explicar sob que véu ainda resta escondido esse

mistério. Mas, para quem quer que seja capaz de dirigir, para esse fenômeno, um olhar corajoso - e, ainda uma vez, há certamente poucos quenão sucumbam à fascinação do sacrifício em si mesmo -, o sacrifíciosignifica que, no objeto de nossos desejos, tentamos encontrar o testemunhoda presença do desejo desse Outro que eu chamo aqui o Deus obscuro.(LACAN, 1964/1988).

 As soluções totalitárias podem muito bem sobreviver à queda dos regimestotalitários sob a forma de forte tentação que surgirá sempre que pareçaimpossível aliviar a miséria política, social ou econômica de um modo dignodo homem. (ARENDT ,1951/1989).

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RESUMO:

A pesquisa aborda as megaoperações policiais realizadas pelo governo do estado do Rio de

Janeiro no Complexo do Alemão. Essas megaoperações foram destacadas para estudo devido

à representatividade simbólica que assumiram, bem como às repercussões que geraram,

deixando em seu rastro farta documentação disponível. Como objetivo, propôs-se investigar, a

 partir da psicanálise, a razão sacrificial articulada aos paradoxos dos Nomes-do-Pai, situando

a segregação e o extermínio de sujeitos cuja existência é considerada supérflua, como

exemplos paradigmáticos de prática sacrificial. Buscou-se, dessa forma, elucidar a função do

sacrifício nas sociedades contemporâneas, marcadas pelo declínio dos semblantes

ordenadores do laço social, sem desconsiderar os efeitos devastadores que daí decorrem. A

 partir dos objetivos propostos, procedeu-se a uma pesquisa bibliográfica, aliada à análise

documental, na qual foram analisados documentos eletrônicos e vídeos obtidos na internet,

além de jornais, livros, revistas, relatórios, documentários e filmes. A proposta metodológica

adotada encontra sua sustentação no que hoje se convencionou chamar de psicanálise aplicada

ao social, que consiste em considerar certos fenômenos sociais, como os que aqui são

abordados, enquanto manifestações atuais do mal estar na civilização. Para a psicanálise, a

 problemática do sacrifício encontra seu fundamento nos paradoxos dos Nomes-do-Pai, ouseja, nas antinomias próprias à estruturação do laço social, situadas em suas intrincadas

articulações com os campos do desejo e do gozo. Essas antinomias se expressam na própria

etimologia do termo sacrifício - sacer facere - ato de revestir algo ou alguém de aura sagrada,

fazendo-o tramitar entre a dimensão abjeta do profano e a dimensão sublime do sagrado.

 Nesse percurso, destacam-se uma promissora interlocução entre a psicanálise e as ciências

sociais, bem como uma leitura da narrativa do sacrifício de Abraão, que conduziu à

 problemática do impasse no luto pelo pai ideal, assinalada pelo declínio das referênciassimbólicas na atualidade. A segregação e o extermínio foram reconhecidos, dessa forma,

como manifestações dessacralizadas da razão sacrificial. A investigação prosseguiu então

rumo à análise das relações de poder que tomam por objeto vidas matáveis, recorrendo aos

conceitos de biopolítica e vida nua. O estudo concluiu que a política de segurança adotada

 pelo poder público fluminense nos morros e comunidades desfavorecidas do Rio de Janeiro

atuava não apenas de forma violenta, mas também criminosa, transgredindo os princípios

democráticos sustentados pela Constituição Federal. Essa política adotou como estratégia de

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ação uma série de procedimentos típicos de um estado em guerra: intervenções militares,

conflitos armados sistemáticos, vigilância ostensiva, isolamento de populações

marginalizadas sob cerco militar, prática de tortura durante interrogatórios e execuções

sumárias. Nesse último caso, evidenciou-se que o auto de resistência se constitui como um

expediente institucional encobridor de uma política de extermínio, que autoriza os policiais a

reagirem com força letal em legítima defesa, executando suspeitos sem que isso caracterize

crime passível de sanção penal. A pesquisa revelou também que essa estratégia de intervenção

 policial, baseada na suspensão do Estado de Direito, encontra legitimação jurídica na doutrina

do direito penal do inimigo, disseminado hoje por vários países democráticos, a exemplo do

Brasil.

Palavras-chave: Sacrifício. Nomes-do-Pai. Extermínio. Biopolítica. Vida Nua.

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ABSTRACT:

The research addresses the police mega-operations carried out by the state government of Rio

de Janeiro in the slums of the Complexo do Alemão. These mega-operations have been

chosen in this study because of the symbolic representation that they assumed, as well as by

the impact they generated, leaving in its trace wide range of documentation available. From

the psychoanalysis, the sacrificial reason, articulated to the paradoxes of the Names-of the-

Father, was set as the aim of the research, situating segregation and extermination of certain

 people, whose existence is considered superfluous, as paradigmatic examples of sacrificial

 practice. This study thus has attempted to elucidate the function of sacrifice in contemporary

societies, marked by the degradation of the social bond’s guiding semblants, without

disregarding the devastating effects arising from it. Based on the proposed objectives, it

 proceeded to a literature search on the object, along with the documentary analysis, in which

were analyzed electronic documents and videos obtained on the Internet, as well as

newspapers, books, magazines, reports, documentaries and movies. The methodology adopted

to support the research is what has been called psychoanalysis applied to the social, which is a

way to consider certain social phenomenons, such as those here addressed, while current

manifestations of the malaise in civilization. For psychoanalysis, the problem of sacrificefinds its foundation on the paradoxes of the Names-of-the-Father, that is, in the antinomies

inherent to the guidance of social bond, located in their intricate relations with the fields of

desire and jouissance. These antinomies are expressed in the etymology of the term sacrifice - 

sacer facere - act to assign something or someone sacred aura, making him transact between

the profane dimension of the abject and the sublime dimension of the sacred. Along the way,

a promising dialogue between psychoanalysis and the social sciences is carried out, as well as

an approach of the narrative of Abraham’s sacrifice, which led to the dead-lock in themourning for the ideal father, marked by the decline of symbolic references today.

Segregation and extermination were recognized, in this way, as desacralized manifestations of

the sacrificial reason. The investigation then proceeded towards the analysis of power

relations that take, as their object, lives that may be killed without committing crime, using

the concepts of biopolitics and bare life. The study concluded that the security policy adopted

 by the Rio de Janeiro state government in the slums of Rio de Janeiro acted not only violently,

 but also criminally, violating democratic principles supported by the Federal Constitution.

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This policy adopted, as action strategy, several procedures typical of a state at war, such as

military interventions, systematic armed conflict, overt surveillance, isolation of marginalized

 populations under military siege, torture during interrogations and executions. In the latter

case, it became clear that the  Resistance to Arrest   is a juridical category which may easily

serve as a cover-up for an extermination policy, authorizing the police to use lethal force in

self-defense, which means execute suspects without being legally punished for committing

murder. The research also revealed that this police intervention strategy, based on the state of

exception, is legally legitimated in the theory of  Enemy Criminal Law, very popular today in

many democratic countries, such as Brazil.

Key words: Sacrifice. Names-of-the-Father. Extermination. Biopolitics. Bare life. 

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ILUSTRAÇÕES:

LISTA DE TABELAS:

TABELA 1 – Frequência absoluta de autos de resistência no Rio de Janeiro, Estado e Capital(1993 – 2011)............................................................................................................................28

LISTA DE FIGURAS:

FIGURA 1 – Militarização da segurança pública ................................................................... 26

FIGURA 2 – A guerra começa a ser vencida ...........................................................................35

FIGURA 3 – Capa da revista Veja – “O primeiro super-herói brasileiro”...............................37

FIGURA 4 – Caveirão de brinquedo........................................................................................38 

FIGURA 5 – Capa da revista Época – Inspetor ‘Trovão’.........................................................39 

FIGURA 6 - Capa da revista Época – Vamos vencer o tráfico.............................................41

FIGURA 7 - Policiais hasteiam bandeiras do Brasil e do Rio de Janeiro após a ocupação do

Complexo do Alemão, em novembro de

2010...........................................................................................................................................44

FIGURA 8 – Rotina de tiroteios no Complexo do Alemão......................................................51

FIGURA 9 – Oficiais do BOPE reprimem um protesto contra a morte de um morador no

Complexo do Alemão durante uma megaoperação em 2007....................................................52

FIGURA 10 – Exemplo de bilhete afixado pelos moradores nas portas de suas casas durante

as megaoperações no Complexo do Alemão em 2010..............................................................53

FIGURA 11 - O sacrifício de Isaac (Caravaggio, 1603).........................................................101

FIGURA 12 - Matema do discurso do mestre........................................................................108

FIGURA 13 – Banda de Moebius...........................................................................................109

FIGURA 14 – A torção moebiana dos discursos....................................................................110

FIGURA 15 – Os paradoxos dos Nomes-do-Pai....................................................................112

FIGURA 16 – Matema da fantasia sadiana............................................................................113

FIGURA 17 – O Cristo morto na tumba (Hans Holbein,

1521).......................................................................................................................................121

FIGURA 18 – Matema do discurso universitário...................................................................136

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS:

AI-5: Ato Institucional nº 5

BOPE: Batalhão de Operações Especiais

BPM: Batalhão da Polícia Militar

Cedae: Companhia Estadual de Águas e Esgotos

Comlurb: Companhia Municipal de Limpeza Urbana

CPI: Comissão Parlamentar de Inquérito 

FNS: Força Nacional de Segurança Pública

IML: Instituto Médico Legal

OAB: Ordem dos Advogados do Brasil

ONG: Organização não governamental

PM: Polícia Militar

PSOL-RJ: Partido Socialismo e Liberdade - Rio de Janeiro

RSI – Real, Simbólico e Imaginário (registros lacanianos)

SWAT: Special Weapons and Tactics (Armas e Táticas Especiais)

UERJ - Universidade Estadual do Rio de Janeiro

UNCHR: United Nations Commission on Human Rights (Conselho de Direitos Humanosdas Nações Unidas)

UPP: Unidade de Polícia Pacificadora 

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................13

1– MILITARIZAÇÃO DA SEGURANÇA PÚBLICA E CRIMINALIZAÇÃO DAPOBREZA: RUMO A UMA POLÍTICA DE EXTERMÍNIO...........................................241.1- As megaoperações policiais como recurso ordinário de gestão dacriminalidade...........................................................................................................................261.2- Os autos de resistência e a produção de cadáveres.......................................................291.3- As ordens de ferro das milícias: uma versão obscena da lei........................................301.4- O discurso da mídia como arma de guerra: do sensacionalismo à incitaçãosacrificial..................................................................................................................................331.5- Violência, preconceito e intolerância; a incitação sacrificial no discurso dasautoridades de Estado.............................................................................................................46

1.6- Os inimigos da vez: a voz dos moradores das comunidadesinvadidas..................................................................................................................................501.7 - A construção do inimigo: acerca de sua significação expiatória e legitimação

 jurídica.....................................................................................................................................60

2- A PERTINÊNCIA DA PROBLEMÁTICA DO SACRIFÍCIO PARA APSICANÁLISE........................................................................................................................672.1-O ato sacrificial e suas expressões dessacralizadas no cotidiano..................................752.2 - O sacrifício e a constituição do laço social....................................................................802.3 - Os paradoxos do supereu...............................................................................................832.4- Sacrifício, dádiva e reciprocidade: uma interlocução entre Lacan e a

antropologia.............................................................................................................................882.5 - A Akedah de Isaac e a pluralização dos Nomes-do-Pai...............................................99 2.5.1 -  Do mito paterno freudiano ao operador estrutural lacaniano..................................103 2.5.2- Sacrifício e extimidade: limiares topológicos da Akedah...........................................1082.6 – Ritual sacrificial, trabalho de luto e separação.........................................................115

3 - SACRIFÍCIO DESSACRALIZADO, BIOPOLÍTICA E VIDA NUA: O LUTOIMPOSSÍVEL DO PAI IDEAL...........................................................................................1193.1 - Razão sacrificial e gestão biopolítica de populações supérfluas...............................1223.2 – Estado de exceção permanente e a gestão de vidas matáveis...................................1303.3 - O campo: morada anômica do  homo sacer  e paradigma das formas

contemporâneas de segregação............................................................................................138 3.3.1- Breve história dos campos de concentração...............................................................138 3.3.2- Os campos de concentração e a despolitização da vida..............................................140  3.3.3– A segregação como prática sacrificial na era do capitalismo

 globalizado......................................................................................................................... .....143 

4 – CONCLUSÃO.................................................................................................................151

REFERÊNCIAS ...................................................................................................................157

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INTRODUÇÃO

Delimitou-se, como tema desta pesquisa, a razão sacrificial, fundamento das práticas

sacrificiais que vêm assumindo formas extremas na atualidade, época marcada pela

degradação do vínculo religioso e pelo declínio dos semblantes da autoridade.

Esta questão tem sido trabalhada por importantes autores, como se pode observar na

 bibliografia consultada, a exemplo de Marta Geréz-Ambertín (2009a), Éric Laurent (2007;

2012), Jacques-Alain Miller (2005b), Pierre Legendre (1974/1983), Slavoj Zizek (2012) e

Colette Soler (1998), mas para esse pesquisador, a presente pesquisa concerne a um

tratamento possível do real em jogo na aposta sacrificial, na medida em que invoca os

 paradoxos dos Nomes-do-Pai com suas implicações quanto ao enlace com a palavra, com a

dádiva, com o desejo, com a filiação e com a paternidade.

Para a psicanalista argentina Marta Gerez-Ambertín (2009a, p.25), não há uma teoria

do sacrifício em Freud e Lacan, mas sim uma “teoria sobre os paradoxos inerentes aos

 Nomes-do-Pai, do qual o sacrifício é somente uma de suas consequências.” Do ponto de vista

da psicanálise, os paradoxos dos Nomes-do-Pai se colocam em jogo na temática do sacrifício,

enlaçando-se às diferentes versões do pai. Aí destacam-se o pai-amor, que oferece seus dons

ao inscrevê-los na dialética do desejo, e o pai gozador, fora-da-lei, que vocifera mandatosinsensatos impossíveis de serem cumpridos, exortando o sujeito ao abismo do gozo sem

limites. Sendo assim, os paradoxos dos Nomes-do-Pai permitem diferenciar o sacrifício que,

 pela via do Outro barrado, viabiliza ao sujeito encontrar um lugar em seu desejo, do sacrifício

que coloca em cena o campo inegociável do gozo. Neste a oferenda sacrificial instiga a

ferocidade do “deus obscuro” (LACAN, 1964/1988, p.259), servindo aos “propósitos ocultos

do castigo.” (FREUD, 1938/1976, p.130, tradução nossa). 1 

Apesar do “progresso da espiritualidade” (FREUD, 1938/1976, p.114, tradução nossa)2, proporcionado pela sublimação advinda da palavra conciliadora do pai, resta sempre um

remanescente do gozo, “uma procura de sangue que, ao ser atribuída ao Deus pai, oferece o

álibi perfeito para a lógica sacrificial dos seguidores.” (AMBERTÌN, 2009a, p.27). Se, no

registro simbólico, a dívida para com o pai pode ser negociada mediante objetos inseridos na

1 “Secretos propósitos

 del castigo”.

 2 “Progreso en la espiritualidad”.

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equação das permutas simbólicas, no registro real não há negociação possível; paga-se a

dívida com o corpo.

 No contexto mais amplo das sociedades capitalistas contemporâneas, o laço religioso

vem perdendo espaço para o discurso da ciência, o que acarreta em uma modificação no

estatuto das práticas sacrificiais. Essa é uma indicação de Ambertín (2009a), ao afirmar que

essas práticas, em seu aviltamento, recolhem apenas resíduos da tradição, tornando-se

ineficazes no sentido de instituir o laço social.

Á medida que as sociedades foram se tornando mais complexas, o sacrifício foi perdendo o nexo com a instituição religiosa e passou a ser uma oferenda, um simplesautodespojo em benefício de alguma divindade criada pelos homens segundo omodelo de pai ideal e o seu avesso, o pai maligno. (AMBERTÍN, 2009a, p.51). 

Sendo assim, decorre dessa modificação no regime discursivo da nossa época uma

modificação da economia do sacrifício. A Lacan (1969-70/1992) não lhe passou despercebida

a modificação nos regimes discursivos da sua época, cujos efeitos se fazem sentir, hoje, de

forma ainda mais proeminente. Ao teorizar sobre os discursos que compõem o laço social,

Lacan não deixou de fazer referências ao discurso capitalista, que provoca uma mutação no

regime de funcionamento do discurso do mestre. O domínio de S1, significante mestre

responsável pela interdição do gozo e regulação do laço social, declina em favor da ascensãodo objeto mais de gozar (a) ao zênite social. Em tal regime de funcionamento discursivo, a

instância interditora perde sua efetividade enquanto transmissora da interdição e do desejo,

tornando-se uma instância de empuxo ao gozo.

 No contexto atual da realidade social brasileira, os efeitos do declínio dos semblantes

de autoridade podem ser claramente constatados em pronunciamentos por parte de dirigentes

e autoridades, responsáveis pela aplicação da lei e, também, pela elaboração e implementação

das políticas de segurança. Diante da escalada da violência, que assola os grandes centros

urbanos do país, as autoridades recorrem à razão sacrificial para justificar suas decisões, como

se pode perceber nessa declaração por parte do governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral,

ao se referir à incursão policial realizada no dia 27 de junho de 2007, no Complexo do

Alemão: “Hoje sabemos que a ordem pública é a garantia da cidadania. Todos temos que

fazer sacrifício pela vitória contra a barbárie. Não há como fazer omelete sem quebrar os

ovos.” (FERNANDES, 2007).

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 Nessa mesma direção argumenta José Mariano Beltrame, secretário de segurança

 pública do Rio de Janeiro: “O Rio chegou a um ponto que, infelizmente, exige sacrifícios. Sei

que isso é difícil de aceitar, mas, para acabarmos com o poder de fogo dos bandidos, vidas

vão ser dizimadas. (...) É uma guerra, e numa guerra há feridos e mortos.” (SOARES, 2007).

Tais declarações pretendem justificar e legitimar uma política do enfrentamento que,

na prática, implica a disseminação de megaoperações policiais em comunidades

desfavorecidas do Rio de Janeiro. Tomando a guerra ao narcotráfico como justificativa, “tem-

se empreendido em larga escala a criminalização das populações excluídas que habitam as

favelas, identificadas como principal foco do tráfico de drogas e difusoras da violência.”

(RIBEIRO; DIAS; CARVALHO, 2008, p.08). Desta forma, associam-se, por contiguidade, as

favelas e a população pobre que nelas reside com a criminalidade e com a violência. Ao

desconsiderar “a participação ativa de policiais e de outros segmentos sociais na organização

de redes criminosas” (RIBEIRO; DIAS; CARVALHO, 2008, p.15), a política de segurança

adotada por parte do Estado assume um viés segregacionista, tornando-se cada vez mais

criminalizadora da pobreza.

Giorgio Agamben (2002) traz contribuições relevantes a essa temática, ao resgatar do

antigo direito romano o termo homo sacer , que designa em sua origem uma categoria de

sujeitos excluídos, produzida pelo ordenamento jurídico. Situados fora desse ordenamento e

da vida política da cidade, sem por isso serem consagrados ao domínio divino, tais sujeitos se

inscrevem em uma zona indiferenciada de anomia, na qual não é a lei que se aplica, mas sim

uma sanção arbitrária, que assume a sua força. Nessa zona de anomia, habitada pelo homo

sacer , Agamben (2002, p.91) situa o cerne do ordenamento jurídico e civilizador das

modernas democracias ocidentais, confirmando assim o célebre adágio de que a exceção

constitui a regra: “soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem

celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi capturada

nessa esfera”. Cumprindo uma função de bode expiatório, esses sujeitos conferemconsistência às categorias de exclusão social, forjadas de modo a possibilitar a canalização da

angústia e da hostilidade para objetos passíveis de delimitação e nomeação.

A partir dessas considerações iniciais, levanta-se a hipótese de que a segregação e o

extermínio de sujeitos considerados descartáveis, objeto de estudo da presente pesquisa,

constituem modalidades atuais de prática sacrificial. Diante disso, formularam-se as perguntas

que orientaram o percurso traçado: Qual é o estatuto das práticas sacrificiais contemporâneas?

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Existe alguma eficácia simbólica nessas práticas, no tocante ao estabelecimento e regulação

do laço social? Que modalidade de gozo elas realizam? Que alteridade colocam em jogo? 

Para respondê-las traçou-se o objetivo geral de investigar, a partir da psicanálise, a

razão sacrificial articulada aos paradoxos dos Nomes-do-Pai, tomando a segregação e o

extermínio de sujeitos descartáveis como exemplos paradigmáticos de prática sacrificial.

Como objetivos específicos, estabeleceram-se: estudar as relações entre as práticas sacrificiais

contemporâneas e os paradoxos dos Nomes-do-Pai, buscando estabelecer um nexo entre essas

relações e o declínio dos semblantes ordenadores do laço social; analisar a função do

sacrifício na estruturação do laço social, buscando elucidar suas articulações com os campos

do desejo e do gozo; investigar, a partir dos conceitos de biopolítica e vida nua, o estatuto

sacrificial da segregação e do extermínio de sujeitos considerados descartáveis, delimitando

como foco duas megaoperações policiais realizadas pelo Estado do Rio de Janeiro no

Complexo do Alemão, a primeira em 2007 e a segunda em 2010. Essas megaoperações foram

escolhidas em virtude da representatividade simbólica que assumiram, bem como das

repercussões que geraram, deixando como rastro farta documentação disponível.

Considera-se que tal estudo é de grande relevância social, haja vista que a propalada

guerra contra a criminalidade e o tráfico de drogas se tornou palavra de ordem na política de

segurança adotada pelo Governo Federal, constituindo-se argumento central usado, porautoridades, para legitimar ações policiais violentas, que vitimam não apenas seus alvos

designados, mas também moradores das comunidades invadidas. A morte de inocentes tem

sido considerada, por alguns, um efeito colateral inevitável, um sacrifício necessário em nome

de um bem maior. Dessa forma, a política de guerra contra a criminalidade desconsidera a

dimensão social mais ampla de um problema complexo, que envolve um longo histórico de

desigualdade social, miséria e autoritarismo.

Em uma época marcada pelo declínio dos ideais e pelo empuxo ao gozo, pensa-se que pode ser de grande valia pesquisar, a partir da psicanálise, sobre o fundamento paradoxal da

razão sacrificial e das práticas que nela se sustentam; neste caso, a segregação e o extermínio

de sujeitos considerados descartáveis. Neste sentido, espera-se que a pesquisa possibilite

vislumbrar alternativas mais civilizadas para o gerenciamento de conflitos que possam,

eventualmente, traduzir-se em indicações e em propostas concretas de ação.

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A partir da psicanálise, segundo Castro (2005, p.34, tradução nossa) 3, é possível 

 propor uma distinção entre a “contingência e as realidades associadas” e o “fato de estrutura”,

avançando no “deciframento do fenômeno em suas formas contemporâneas, mas,

fundamentalmente, possibilitando dar um novo passo, franqueando uma passagem do

fenômeno social ao sintoma social.” Isso implica, segundo a autora, uma abordagem

estrutural, que não se detém na dimensão dos fenômenos, e nem desconsidera a subjetividade

aí implicada. Nesse sentido, a psicanálise permite aportar elementos inéditos no tocante à

temática proposta, a saber, as referências ao sujeito do inconsciente e ao campo do gozo,  

contribuindo para ampliar o que comumente é abordado no campo das ciências sociais, a esse

respeito. Por parte dos psicanalistas, não caberia esperar nada menos do que um

 posicionamento condizente com a ética da psicanálise, no sentido de reconhecer essas novas

formas de mal estar na civilização, para além do fascínio que despertam.

Para a realização da pesquisa, seguiu-se a metodologia de pesquisa proposta pelo

 psicanalista colombiano Mário Elkin Ramírez (2007a). Para ele, fenômenos sociais a exemplo

da segregação e do extermínio são passíveis de abordagem pela psicanálise. Nesse sentido,

Ramírez propõe a psicanálise aplicada ao social sem descuidar de distingui-la das análises

sociológicas, pois ela aborda os referidos fenômenos como envoltórios do sintoma social na

atualidade. Esses envoltórios variam segundo as contingências do contexto considerado, masseu cerne, sempre invariável, é constituído pela ação corrosiva da pulsão de morte sob as

variadas formas com que se manifesta na tessitura do laço social, analisadas criteriosamente

 por Freud em “O mal estar na civilização” (1930/2010). Vale mencionar também a troca de

correspondência com Albert Einstein (1932/2010), intitulada “Por que a guerra?”, na qual

Freud aborda os problemas da guerra e da violência como manifestações, em escala global, da

 pulsão de morte.

É interessante notar que apesar de recusar a tese junguiana de um inconscientecoletivo, Freud não deixava de afirmar a existência de uma neurose cultural, ou seja, um

sintoma social próprio de uma determinada época ou cultura. Isso pode surpreender o leitor

que não está familiarizado com a complexa articulação que a psicanálise estabelece entre as

dimensões subjetiva e cultural.

3 “En una perspectiva psicoanalítica, cabe plantear la distinción entre la contingencia y las realidades asociadas,

y el hecho de estructura. En ese sentido, el Psicoanálisis permite progresar en el desciframiento del fenómeno en

sus formas contemporáneas, pero, en lo esencial, hace posible dar un nuevo paso, para ir del fenómeno social alsíntoma social”.

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Se a evolução cultural tem tamanha similitude com a do indivíduo e trabalha com osmesmos recursos, não seria justificado o diagnóstico de que muitas culturas — ouépocas culturais, ou possivelmente toda a humanidade — tornaram-se “neuróticas”

 por influência dos esforços culturais? A dissecação analítica dessas neuroses poderiaser acompanhada de sugestões terapêuticas que reivindicariam muito interesse prático. Não posso dizer que uma tentativa dessas, de transferência dapsicanálise para a comunidade cultural, não teria sentido ou estaria condenadaà esterilidade. (FREUD, 1930/2010, p.119, grifo nosso).

Apesar de reconhecer o valor da extensão da psicanálise ao campo social, Freud

recomendava prudência, advertindo o leitor quanto a duas dificuldades nesse caminho. A

 primeira é de ordem epistêmica, e se refere tanto à limitação da analogia estabelecida entre

indivíduo e cultura, quanto à indevida extensão social de conceitos extraídos do campo da

clínica psicanalítica stricto sensu. A segunda dificuldade é de cunho terapêutico, pois de que

serviria um diagnóstico que não recomendasse nenhuma ação terapêutica? Essas dificuldades,

no entanto, não parecem desanimar Freud, que conclui suas reflexões sobre essa questão

assinalando a possibilidade futura de que “(...) alguém ouse empreender semelhante patologia

das comunidades culturais.” (FREUD, 1930/2010, p.120).

Com Lacan (1953/1998, p.322) o psicanalista é convocado a “alcançar, em seu

horizonte, a subjetividade de sua época”, ou seja, espera-se que ele esteja sempre em

condições de considerar os processos históricos e culturais envolvidos na produção dessasubjetividade, sempre conflituosa e sintomática. Dessa forma, ao problematizar o sintoma

social de sua época, o psicanalista estará em condições de abordá-lo a partir dos impasses no

funcionamento de um determinado sistema de poder que, em última instância, decorrem da

impossibilidade estrutural de uma justiça distributiva do gozo para todos. (RAMÍREZ,

2007a). Nesse sentido, pautando-se pela ética da psicanálise, pode-se questionar até que ponto

a lógica do capitalismo globalizado é compatível com o ideal democrático igualitário.

Para dar conta dessas questões no contexto da pesquisa acadêmica, Ramírez (2007a, p.11) propõe uma metodologia própria à psicanálise que, a partir dela, formula suas questões e

confronta-as com a “a análise e interpretação de enunciados tomados de testemunhos

recolhidos em fontes secundárias”, operando a partir da materialidade do material

significante. 4 Nessa metodologia, busca-se abordar os fenômenos sociais pela lógica forjada

a partir da análise dos indícios da subjetividade implicada, em cada testemunho prestado pelos

atores sociais envolvidos no problema que se propõe a investigar. Para tanto, Ramírez (2007a)

4 “(…) el análisis y la interpretación de los enunciados en los testimonio recogidos en fuentes secundarias”.

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 propõe um confronto desses indícios com uma hipótese explicativa da psicanálise, para então

inferir a emergência da particularidade no campo do fenômeno analisado. Trata-se, portanto,

de ‘fazer caso’ dos testemunhos recolhidos, cernindo um mesmo ponto de real no fenômeno

estudado, “(...) com a lógica do método e dos conceitos próprios à psicanálise” (RAMÍREZ,

2007a, p.19, tradução nossa) 5.

Para a consecução dos objetivos da pesquisa e a obtenção dos testemunhos dos atores

sociais implicados, elegeu-se o que na clássica metodologia se chama pesquisa bibliográfica,

aliada à análise documental. Apesar dessas duas modalidades de pesquisa serem comumente

utilizadas de modo combinado (CARVALHO, 1988), é importante distingui-las. Segundo Gil,

(1989, p.73),

Enquanto a pesquisa bibliográfica se utiliza fundamentalmente das contribuições dosdiversos autores sobre determinado assunto, a pesquisa documental vale-se demateriais que não receberam ainda um tratamento analítico, ou que ainda podem serreelaborados de acordo com os objetivos da pesquisa.

Tal é o caso de algumas das fontes documentais utilizadas para a consecução da

 pesquisa, que têm por base a coleta de informações oriundas de documentos diversos, como

 jornais, livros, revistas, cartas, publicações de organismos governamentais, documentos

eletrônicos obtidos na internet, documentários e filmes. Por documento, deve-se entender

“toda fonte de informações já existente”, que abarca, não apenas documentos impressos, mas

também recursos audiovisuais e digitais; enfim, toda e qualquer forma de “vestígio deixado

 pelo homem” (LAVILLE, DIONNE, 1999, p.166), que possibilite uma compreensão dos

fenômenos humanos.

Ao longo dessa pesquisa, a fonte documental foi diversificada, incluindo não apenas

autores de referência, mas também relatórios, reportagens e entrevistas extraídas de jornais,

revistas, e principalmente, da Internet. No caso dessas últimas, procedeu-se a sucessivas buscas no Google, utilizando como palavras-chave termos como megaoperação, sacrifício,

tráfico de drogas, extermínio, segregação, militarização, milícias, guerra, chacina, invasão,

caveirão, Complexo do Alemão, polícia e violência.

A escolha das fontes de informação considerou a produção acadêmica em torno do

assunto, mas no que tange aos veículos midiáticos de comunicação, o pesquisador elegeu

5 “Esto hace que lo que constituye el punto de encuentro entre el psicoanálisis aplicado y el fenómeno social, sea

el modo como, en dicho fenómeno, se cierne un mismo punto de real, con la lógica del método y de losconceptos propios al psicoanálisis”.

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aqueles que, sabidamente, exercem hegemonia no processo de difusão de informações e

formação de opinião no país. Sendo assim, no que tange às reportagens oriundas dos canais

abertos de televisão, a Rede Globo foi escolhida em virtude da supremacia que exerce no

setor televisivo. Com relação à mídia impressa, elegeram-se reportagens oriundas de revistas

semanais de ampla circulação, como a revista Veja e a revista Época.

Considerou-se a leitura crítica da documentação consultada, já que a experiência

ensina, e vários autores argumentam, a exemplo de Cellard, (2010), que esse é o primeiro

 passo para a análise documental, o que implica sua contextualização política, econômica e

cultural. Essa contextualização permitiu ao pesquisador orientar-se quanto à pertinência dos

indícios encontrados ao longo da busca de respostas para o seu problema. Dessa forma,

 buscou-se identificar a autoria do documento e compreender se seus autores falam em nome

 próprio ou em nome de algum grupo ou instituição. Foi importante também verificar se o

autor é testemunha direta dos eventos que relata, bem como considerar a distância geográfica

e temporal que separa seu relato desses eventos. Além disso, foram levados em conta os

interesses (confessos ou não) do texto em questão, que exigiram, por parte do pesquisador,

“informar-se sobre a origem social, a ideologia ou os interesses do autor do documento.”

(CELLARD, 2010, p.301).

Tendo-se em vista que a perspectiva do autor de um documento é sempre parcial,decidiu-se cercar a questão colocada a partir de diferentes pontos de vista, recorrendo a fontes

variadas de documentação, que possibilitassem uma análise mais abrangente, diversificada e

menos tendenciosa. Dessa forma, buscou-se por testemunhos prestados não apenas por

autoridades de Estado, como também por moradores das comunidades invadidas pela polícia,

 bem como por políticos, jornalistas e pesquisadores que se pronunciaram a respeito das

megaoperações e da política de segurança pública adotada no estado do Rio de Janeiro.

A ordenação de objetivos proposta resultou na composição de três capítulos. O primeiro deles reúne alguns testemunhos recolhidos pelo pesquisador, seguido de sua análise 

mediante a construção de eixos temáticos que foram estabelecidos segundo o critério de

 pertinência aos objetivos da pesquisa. A partir da análise da documentação, constatou-se que

as megaoperações policiais, expediente extraordinário de guerra utilizado em situações de

emergência, tornaram-se procedimentos de rotina com vistas a intervir nas comunidades

 pobres do Rio de Janeiro. Sendo assim, as tropas militares, juntamente ao pesado armamento

de guerra que mobilizam, passaram a integrar o cotidiano dos moradores dessas comunidades.

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Tendo declarado guerra ao tráfico, as autoridades propagaram na mídia de ampla circulação

discursos que incitam o preconceito e o sacrifício. Além disso, pôde-se perceber também que,

mediante a construção de um inimigo sob medida, as megaoperações contam não apenas com

elevado índice de aprovação popular, mas também, respaldo junto à mídia de ampla

circulação e às instâncias superiores. O final do capítulo 1 dedica-se a considerações a

respeito de como as megaoperações revestem-se de legitimidade jurídica a partir da doutrina

do direito penal do inimigo.

 No segundo capítulo, intitulado “A pertinência do problema do sacrifício para a

 psicanálise”, buscou-se estabelecer as articulações teóricas necessárias à interpretação da

informação obtida. O livro de Marta Gerez-Ambertín “Entre dívidas e culpas  – Sacrifícios:

crítica da razão sacrificial” (2009a) foi fundamental para situar as balizas teóricas necessárias

que sustentam a argumentação proposta, tendo como referência central Freud e Lacan. Alguns

termos e conceitos foram então sendo delineados, segundo o critério de pertinência aos

objetivos da pesquisa: Nomes-do-Pai, Lei, sacrifício,  Akedah, dádiva, supereu, trabalho de

luto, segregação e extimidade. Esses termos foram articulados a partir de uma revisão de

literatura acerca da temática do sacrifício em Freud e Lacan e, também, nos textos de alguns

comentadores.

Ao estudar a problemática do sacrifício em Freud, constatou-se que, desde as suas primeiras publicações, ele reservava um espaço para a reflexão acerca dos atos sacrificiais,

situando-os desde suas formas mais amenas, às mais intransigentes e violentas. Lacan, por sua

vez, abordou a questão do sacrifício de Isaac durante a única lição de seu seminário

interrompido sobre os Nomes-do-Pai (1963/2005), tendo assinalado a importância dessa

temática para a psicanálise. No seminário seguinte (1964/1988), Lacan retomou a questão do

sacrifício, dessa vez articulando-a com a segregação e o extermínio dos judeus nos campos de

concentração nazistas.Durante o estudo da questão do sacrifício nos textos de Freud e Lacan, constatou-se

que ambos recorreram aos desenvolvimentos de estudiosos do campo das ciências sociais,

mais particularmente, ao teólogo escocês William Robertson Smith e ao antropólogo britânico

Edward Burnt Tylor, no caso de Freud, e aos antropólogos franceses Marcel Mauss e Claude

Lévi-Strauss, no caso de Lacan. Dessa forma, essas referências também foram utilizadas na

 pesquisa, de modo a enriquecê-la.

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À medida que se aprofundava na análise das fontes documentais, construíam-se suas

categorias de análise, e houve a necessidade de dialogar com autores de outros campos do

conhecimento, que propõem reflexões importantes sobre algumas temáticas pertinentes à

 pesquisa. Essa interlocução foi apresentada no capítulo três, trazendo novos elementos para

 pensar a questão do sacrifício, em uma época marcada pela ascensão do capitalismo

globalizado e das tecnociências, bem como pelo agravo dos processos de segregação daí

decorrentes. A partir dessas diretrizes buscou-se um adensamento das reflexões em torno do

sacrifício e da segregação, tendo como referência o campo de concentração, segundo

indicação de Lacan (1964/1988). Três autores merecem destaque nesse capítulo, que versa

sobre a biopolítica, o campo de concentração e a gestão de vidas matáveis, ou seja, sujeitos

cuja existência é considerada supérflua, e mesmo perniciosa: Michel Foucault, Hannah Arendt

e Giorgio Agamben.

Entre os três autores mencionados, Agamben foi a primeira referência consultada, em

virtude da pertinência e atualidade de suas elaborações acerca da função sacrifício. No

contexto aqui considerado, destacam-se duas temáticas abordadas por ele, que viabilizaram a

construção de algumas importantes categorias de análise: a vida nua e o estado de exceção.

Com o primeiro termo, Agamben assinala a situação de desamparo e vulnerabilidade de certos

sujeitos diante do poder soberano. Com o segundo, designa um procedimento de emergênciaque não invalida a vigência do ordenamento jurídico, mas suspende sua aplicabilidade,

tornando-o inoperante. Enquanto o estado de exceção vigora, os limiares entre o dentro e o

fora da lei se tornam indiscerníveis, criando uma situação de anomia jurídica na qual o

cidadão é despido de seus direitos constitucionais. Deve-se considerar ainda que, segundo a

 perspectiva de Agamben, esse recurso extraordinário vem sendo cada vez mais utilizado

enquanto técnica ordinária de governo.

O caminho que conduziu às elaborações de Hannah Arendt acerca dos campos deconcentração e da despolitização da vida, bem como às de Michel Foucault sobre a

 biopolítica, foram indicados por Agamben nos seguintes termos (2002, p.11):

Que a pesquisa de Arendt [acerca do primado da vida natural sobre a ação política]tenha permanecido praticamente sem seguimento e que Foucault tenha podido abrirsuas escavações sobre a biopolítica sem nenhuma referência a ela, é testemunho dasdificuldades e resistências que o pensamento deveria superar nesse âmbito.

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Buscou-se, a partir dessa indicação, situar o campo de concentração como um topos 

que operasse como possível margem de interlocução entre os referidos autores e a psicanálise,

mais particularmente, às já referidas indicações de Lacan acerca do sacrifício, da segregação e

dos campos de concentração. Essa investigação conduziu o pesquisador a situar o estatuto

sacrificial das práticas de segregação e extermínio, a partir dos conceitos de biopolítica e vida

nua, buscando assim designar as relações de poder que tomam por alvo vidas matáveis.

A partir da psicanálise, constatou-se que o declínio da Lei, acompanhado pela perda de

eficácia simbólica dos semblantes de autoridade, deixam em seu rastro efeitos devastadores.

Lacan (1974/s.d.) considerou, entre esses efeitos, a ascensão das ordens de ferro, facilmente

reconhecíveis no contexto aqui abordado, não apenas nas medidas extrajudiciais sancionadas

 por parte da política de segurança do Estado, como também, na lei do silêncio e no domínio

do terror impostos por milicianos e narcotraficantes. Viu-se, também, que as ordens de ferro e

seu poder de nomeação encontram respaldo jurídico na doutrina do direito penal do inimigo,

realizando-se em ato ao designar o inimigo a ser perseguido, hostilizado, combatido e,

eventualmente, exterminado. Para finalizar, o pesquisador apresenta algumas indicações de

Freud e Lacan acerca de um possível posicionamento por parte da psicanálise, diante da

 problemática abordada. 

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1– MILITARIZAÇÃO DA SEGURANÇA PÚBLICA E CRIMINALIZAÇÃO DA

POBREZA: RUMO A UMA POLÍTICA DE EXTERMÍNIO

O pensamento fundamentador do extermínio é o de que,eliminando-se os componentes de determinadosegmento ou etnia, promove-se o bem para acoletividade. O sacrifício da parte em favor do todo, aextirpação da porção maldita, faria a sociedadeencontrar seu estado ideal de normalidade, ou retornarao mesmo. (CRUZ-NETO; MINAYO, 1994). 

A política de combate à criminalidade, adotada pelo governo do Rio de Janeiro,

adotou como principal estratégia de ação a disseminação das megaoperações policiais nas

favelas, os assim chamados “territórios da pobreza” (COIMBRA, 2001, p.12). Essas incursões

 policiais nas favelas são conhecidas pela violência, e quando acontecem nem sempre se faz

distinção entre criminosos e moradores das regiões invadidas. Isso fica claro na letra das

músicas entoadas pelo Batalhão de Operações Especiais (BOPE), designado para as

megaoperações:

Interrogatório é muito fácil de fazerPega o favelado e dá porrada até doer.Interrogatório é muito fácil de acabar,Pega o favelado e dá porrada até matarHomem de preto, qual é a sua missão?É invadir favela e deixar corpo no chão.(THEOPHILO; ARAÚJO, 2003).

Destaca-se que, nessa vinheta musical, o sujeito visado pelas tropas é o ‘favelado’,

sem que haja distinção entre criminosos procurados pela justiça e moradores que estejam no

local no momento das operações. Dessa forma, Torna-se impossível distinguir entre o que

deveria ser um procedimento policial, com vistas a prender criminosos procurados pela

 justiça, e um procedimento militar, com vistas a combater inimigos. A flagrante violação dos

direitos dos moradores desses locais assinala um processo de criminalização da pobreza, tal

como denunciado por vários autores da bibliografia consultada (WACQUANT, 2003;

ZAFFARONI, 2007; BATISTA, 2014). Conforme afirma o jurista argentino Eugênio Raúl

Zaffaroni, “a essência do tratamento diferenciado que se atribui ao inimigo consiste em que o

direito lhe nega sua condição de pessoa. Ele só é considerado sob o aspecto de ente perigoso

ou daninho” (ZAFFARONI, 2007, p.18), um animal selvagem, que deve ser enjaulado ou

exterminado.

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As implicações da criminalização da pobreza podem ser situadas, por um lado, na

ascensão de um estado policial militarizado, acompanhada por uma retórica de combate ao

inimigo e libertação da população civil; por outro, na segregação de uma parcela dessa mesma

 população nos territórios da pobreza, transformados em campos de batalha. Nesses lugares,

desabonados do Estado de direito, seus habitantes se veem desamparados e acuados pela

violência. Aos sujeitos que integram essa parcela marginalizada da população, resta-lhes

cumprir a sentença formulada pelo jurista alemão Gunther Jakobs (2007): quem não pode ser

reconhecido como cidadão, deve ser combatido como inimigo.

Colocar em pauta a questão da razão sacrificial, ao discutir questões relacionadas à

gestão das políticas de segurança pública e à justiça social, implica em situar um ponto nodal

no qual o sacrifício se articula à dimensão política. É o que se pode depreender do que afirma

o psicanalista argentino Germán Garcia (1983), ao se perguntar como funciona o sacrifício em

nossas sociedades contemporâneas: “Tudo isso que lemos diariamente nas páginas policiais é

um  sacrifício; faz parte do jogo social, saber que vidas serão ceifadas, que pessoas irão

morrer.” (GARCIA, p.18, 1983, tradução nossa) 6. A partir das indicações de Garcia pode-se

 perceber que a razão sacrificial, mesmo desvinculada do domínio religioso, não deixa de se

inscrever no cerne da razão de estado, isso é, no modo como o Estado justifica a adoção de

medidas de segurança extraordinárias tendo em vista a presença de um perigo.É possível refutar, dessa forma, a tese defendida por René Girard em seu livro

“Violência e o sagrado” (1998), de que o sacrifício teria se atrofiado em sociedades que

desenvolveram um sistema judiciário, uma vez que nelas este sistema se encarregaria de

conter a violência originária, inerente a qualquer agrupamento humano. Sendo assim, Girard

(1998, p.31) enfatiza a função preponderante do sacrifício nas sociedades primitivas, na

medida em que tende a subestimá-lo nas sociedades contemporâneas: “É nas sociedades

desprovidas de sistema judiciário, e por isso mesmo ameaçadas pela vingança, que o sacrifícioe o rito em geral devem desempenhar um papel essencial.” Ao contrário do que afirma Girard

(1998) pode-se constatar, no entanto, que as práticas sacrificiais não se extinguiram com a

emergência do sistema judiciário, e ainda são legitimadas por ele.

6 “Todo eso que leemos en los policiales cada día, es un sacrificio; forma parte de la sociedad saber que una

cantidad de personas van a perder, van a morir. Es parte del juego social, el hecho de que exista la policía esaceptar que es así”.

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1.1- As megaoperações policiais como recurso ordinário de gestão da criminalidade

 Nosso bloco está na rua e, se tiver que ter conflito

armado, que tenha. Se alguém tiver que morrer porisso, que morra. Nós vamos partir pra dentro. (LYRAet al., 2004, p.18) 7.

Figura 1: Militarização da segurança pública

Fonte: GOMBATA, 2013.

As megaoperações policiais envolvem um complexo aparato de guerra, constituído por

numerosos agentes de segurança estadual e federal, armamentos militares (artilharia pesada,

tanques, helicópteros, veículos blindados, etc), bem como pela ampla cobertura midiática, que

 busca capturar in loco  as imagens dos confrontos. Apesar de serem qualificadas pelas

autoridades de ações pacificadoras (BRASIL, 2007), essas operações se traduzem, na prática,como ações que comportam um alto índice de letalidade, instalando o terror e o pânico nos

locais onde acontecem. Conforme assegura o sociólogo Ignácio Cano (2012), coordenador do

Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ),

além do inconveniente dos altos índices de letalidade, o modelo militarizado de segurança

7 Declaração feita durante a operação Rio Seguro, pelo então secretário de Segurança Pública, Coronel Josias

Quintal, ao jornal “O Globo”, em 27/02/03.

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comparado às polícias de outros estados do Brasil), como também, que ele vem crescendo de

forma assustadora, ano após ano.

Em nome do combate ao tráfico de drogas, o atual governo desencadeou uma sériede operações policiais em diversas comunidades e que resultaram, entre janeiro e junho do corrente ano, em 694 civis mortos pela polícia, representando um aumentode 33,5% (174 mortes a mais) em relação aos autos de resistência registrados nomesmo período em 2006. (BRASIL, 2007, p.4).

A tabela apresentada a seguir (BRASIL, 2007) contabiliza, em cada ano, a partir de

1999, os totais anuais de civis mortos pela polícia, na capital, e no estado do Rio de Janeiro,

classificados como autos de resistência:

Tabela1 – Frequência absoluta de “autos de resistência” no Rio de

Janeiro, Estado e Capital (1993 – 2011).

Fonte: ISP-RJ/Necvu-UFRJ

Deve-se considerar, contudo, que esses números contabilizam apenas os casos em que

os policiais registraram suas ações. Ou seja, estima-se que o número efetivo de mortes é

consideravelmente superior, uma vez que não estão incluídos nessas estatísticas os casos nos

quais a ação policial resultou em morte, sem que houvesse notificação do fato. Ficam fora

dessa contabilidade, também, ações ilegais por parte de policiais que participaram de

matanças em grupos de extermínio, as milícias. 

Ao comparar as estatísticas dos resultados das operações de segurança, entre os anos

de 2006 e 2007, o relatório (BRASIL, 2007) revela que o número de prisões diminuiu em

escala inversamente proporcional ao aumento do número de mortos. Fica claro, portanto, que

esses índices atestam um aumento da letalidade nas incursões da polícia aos morros e favelas

do Rio de Janeiro, revelando que “a atual política de segurança pública vem produzindo muito

mais ‘inimigos mortos’ do que orientando suas operações para a defesa da vida dos cidadãos.”

(BRASIL, 2007, p.4).

Ano 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010

Capital 187 278 381 615 798 676 707 673 902 688 643 485

Estado 289 454 592 900 1195 983 1098 1063 1330 1137 1049 855

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1.2- Os autos de resistência e a produção de cadáveres

A análise dos laudos cadavéricos (BRASIL, 2007) revelou que mais de 60% dos

cadáveres das vítimas, recolhidos ao IML (Instituto Médico Legal), após as intervenções

 policiais, apresentavam marcas de perfurações em regiões vitais, como nuca, cabeça.

Apresentavam, ainda, perfurações nas costas, indicando a impossibilidade de legítima defesa

e ausência de reação por parte da vítima. Em muitos casos as perfurações apresentavam claros

sinais de disparos efetuados à queima roupa. A presença de lesões adicionais às de arma de

fogo, em um terço dos cadáveres analisados, permitem inferir o uso de tortura e maus tratos,

antes da morte da vítima.

Esses dados, recolhidos por Ignácio Cano (1997) em uma pesquisa realizada sobre o

assunto, permitem afirmar que, durante as megaoperações levadas a cabo pela polícia, as

execuções sumárias, aliadas à prática de tortura, tornaram-se uma rotina. Isso é corroborado

 pelo relatório (BRASIL, 2007) que afirma que o uso abusivo da categoria ‘autos de

resistência’ constitui um expediente burocrático forjado pelas autoridades responsáveis pelas

megaoperações, com vistas a ocultar os indícios da prática de execuções sumárias. Essacategoria jurídica, tal como vinha sendo aplicada, permitia que casos de homicídios dolosos,

designação que lhes seria cabida em âmbito legal, não fossem reconhecidos oficialmente

como tais.

A desmontagem da cena do crime constitui outro exemplo de expediente usado pela

 burocracia estatal, com vistas a dificultar, ou mesmo impossibilitar o acesso às provas de

ações de extermínio por parte de policiais. Os cadáveres eram rapidamente removidos após as

ações, dificultando ou mesmo impedindo o procedimento pericial. É possível, inclusive,encontrar vídeos na internet (CASOS DE POLÍCIA..., 2013) mostrando cenas de policiais

fardados mudando a localização dos cadáveres, acompanhadas das transmissões de áudio que

tornam possível escutar os policiais mostrados nas filmagens falando, via rádio, em socorrer

 pessoas que, na verdade, já estão mortas. Procedendo dessa forma, os policiais violam a cena

original do crime e inviabilizam o trabalho pericial. Ao negligenciar os procedimentos

técnicos recomendados pelos Princípios Internacionais de Investigação (BRASIL, 1989), as

autoridades de segurança pública sabotam a produção fidedigna das provas necessárias para

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comprovação legal da ocorrência de execuções sumárias. Legitima-se, assim, a impunidade

dos agentes de segurança pública envolvidos nos confrontos seguidos de morte.

O uso do famigerado caveirão, veículo blindado usado durante as megaoperações, é

outro elemento dificultador nas investigações de policiais envolvidos com atos criminosos,

uma vez que a arquitetura desse veículo impede que os agentes que atuam de dentro dele

sejam vistos e identificados por quem esteja do lado de fora. Segundo a pesquisadora e

socióloga Maria Helena Moreira Alves (2012), o Governo do Rio modernizou os caveirões,

mas se recusou a instalar câmeras no interior desses veículos, desrespeitando as

recomendações do United Nations Commission on Human Rights 10 (UNCHR). Dessa forma,

o caveirão se constitui como mais um dispositivo institucional que garante a invisibilidade e o

anonimato dos policiais envolvidos com ações violentas e criminosas, impedindo a sua

identificação e punição.

Após as megaoperações, outras irregularidades podem ser mencionadas. Além da

impunidade dos agentes de segurança envolvidos com a suspeita de execuções, as famílias das

vítimas mortas em confronto com a polícia eram privadas do direito de reivindicar e obter as

devidas indenizações. Nesses casos, sobre os quais pairam suspeitas de execuções sumárias,

havia morosidade ou mesmo ausência de investigações (BRASIL, 2007). A flagrante

ilegitimidade dos procedimentos policiais e administrativos envolvidos na política desegurança assinala a inoperância da lei, enquanto instância reguladora do laço social e dos

conflitos que aí emergem.

1.3- As ordens de ferro das milícias: uma versão obscena da lei

A política de enfrentamento, então adotada pelo governo do Rio de Janeiro, veiculava para seus inimigos uma mensagem inequívoca: render-se às forças policiais equivalia à morte.

Dessa forma, aqueles que eram assim declarados preferiam morrer lutando em confronto,

alimentando o ciclo vicioso de violência. Para os policiais envolvidos diretamente no combate

à criminalidade, devem-se considerar os altos níveis de estresse a que eram submetidos

durante seu exercício profissional, exercício este que, segundo previsões baseadas nas

10 Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.

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estatísticas (BRASIL, 2007) lhes cobraria matar pelo menos uma pessoa ao longo de sua

carreira profissional.

A cultura policial passou a ser moldada pelo ideal da “glorificação da violência”  

(ARENDT, 1969/2011, p.27), corroborada através da concessão de premiações por bravura,

 por parte da Secretaria de Segurança Pública do Estado, aos policiais envolvidos em

ocorrências que resultaram na morte de suspeitos. Essas premiações, popularmente

conhecidas por “premiação faroeste” (RIBEIRO; DIAS; CARVALHO, 2008), acarretavam

um aumento variável entre 50% e 150% sobre o salário original desses agentes (BRASIL,

2007). Recompensando-se policiais pelo uso de força letal, nada menos se poderia esperar,

que um aumento no número de mortes durante as intervenções policiais. Dessa forma, a

 polícia, que deveria estar a serviço da lei, começou a emular as práticas criminosas,

reforçando a política de tratamento penal da miséria, que passou a ser virtualmente

criminalizada.

As premiações por bravura, no entanto, não eram o único recurso para alguns agentes

de estado conseguirem um aumento em sua renda mensal; o elevado número de policiais

mortos durante a folga (que, aliás, supera o de policiais mortos em ação) corrobora a hipótese

de que alguns deles morriam durante os ‘bicos’ que faziam, ou seja, jornada extra e irregular

de trabalho (BRASIL, 2007). Entre as atividades extraoficiais realizadas por alguns policiais,em seu horário de folga, uma das mais controversas era o envolvimento criminoso com as

milícias.

Apresentar uma caracterização geral do fenômeno das milícias é tarefa complicada, e

mesmo impossível, por ser um fenômeno universal que acontece em escala mundial,

manifestando-se de formas diversas, conforme o contexto considerado. No contexto

específico do escopo dessa pesquisa, considera-se que as milícias se caracterizam como

quadrilhas que assumem o controle territorial de um determinado espaço urbano, exercidosempre de forma ilegal, violenta e coativa, mediante a instalação do terror na comunidade

local. Elas são compostas por agentes do estado - policiais, ex-policiais, bombeiros e,

inclusive, membros das Forças Armadas - que após invadirem os territórios ocupados pelo

tráfico e deporem o controle exercido despoticamente por ele sobre a comunidade local,

 passam a assumir suas funções de forma ainda mais severa e violenta.

Diferentemente do que acontece em outros países, as milícias que atuam nas favelas

do Rio de Janeiro não lutam por causas ou ideais; não veiculam mensagens de protesto, nem

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defendem projeto algum de reforma social ou política. Sua principal motivação é o benefício

 privado, obtido através de uma ampla gama de atividades criminosas, que incluem o

monopólio exercido de forma ilegal e extorsiva sobre uma série de serviços prestados à

comunidade: a venda de gás, água, transportes de moto e van, TV a cabo e internet (a

gatonet ), e até mesmo a famigerada venda de proteção que, como se sabe, protege o pagante

da própria milícia. A taxa de proteção pode assumir também a forma de um arrego, gíria

utilizada para se referir à propina cobrada dos traficantes pelos milicianos, para que façam

vista grossa às suas atividades. 

Em sua forma de funcionamento, as milícias impõem rígidos códigos de ordem, que

 prevê severas penalidades para aqueles que os desobedecem. Há exemplos dessa forma de

funcionamento, que lembra as temidas diretrizes do AI-5 (Ato Institucional nº 5), pautadas na

suspensão das garantias constitucionais e dos direitos políticos dos cidadãos: os toques de

recolher, que proíbem a circulação de pessoas em certos territórios a partir de um determinado

horário, e a famigerada ‘lei do silêncio’, que pune com a morte qualquer forma de testemunho

acerca das atividades criminosas, confinando à omissão e à cumplicidade aqueles que vivem

nos territórios dominados.

Pautada em uma retórica de libertação do crime e limpeza territorial, mas aliada a um

regime de vigilância permanente, as milícias exercem seu domínio sobre a região ocupadacontando com os recursos do aparato oficial da força policial, incluindo o uso de

equipamentos militares, como armas e veículos blindados.

Desde 2002, o fenômeno das milícias vinha se expandindo de forma dramática nas

favelas do Rio de Janeiro. Isso, segundo Alves (2012, p.30), introduziu uma “estrutura de

crime organizado”, cuja extensão para o campo político tornou possível aos milicianos

estabelecer redes no interior dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (ZALUAR,

2007). Quando a mídia se refere ao tráfico como crime organizado, ou estado paralelo,desconsidera que esses termos se aplicariam melhor às milícias. Conforme afirmou o próprio

secretário de segurança José Mariano Beltrame, “não havia crime organizado nas favelas,

exceto o praticado pelas milícias.” (ALVES, 2012, p.30).

O fenômeno de expansão política do crime organizado é um claro indicador de que

não há como sustentar o ponto de vista de que a violência criminal é um problema localizado,

intrínseco às favelas ou à condição socioeconômica de seus habitantes; ele é parte da

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dinâmica social e política da cidade como um todo, e é um denunciador de uma série de

contradições sociais, como a injustiça, a impunidade e a corrupção dos agentes do estado.

1.4- O discurso da mídia como arma de guerra: do sensacionalismo à incitação

sacrificial

O tráfico de drogas e armamento militar, associados ao problema do aumento

crescente da violência, serviu como leitmotiv para que o governador Sérgio Cabral decretasse,

no início de sua gestão, uma guerra ao tráfico. O ano de 2007 se iniciou, dessa forma, com

uma série de invasões às favelas consideradas focos de violência, caracterizando um

 permanente estado de exceção para os moradores dessas comunidades. A estratégia adotada

 pelo governo do Rio de Janeiro previa, após as invasões, a ocupação dos territórios por forças

 pacificadoras.

A implantação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), iniciada durante o ano de

2008, culminou, em novembro de 2010, com mais uma megaoperação, que envolveu as

 polícias civil e militar, a Marinha, e o Exército. Assim como havia acontecido na

megaoperação de 2007, utilizaram-se aparatos militares de guerra, incluindo 2800 homens,dois helicópteros, 37 tanques blindados, entre outros armamentos de combate, como fuzis e

metralhadoras. Vale advertir, contudo, que apesar das semelhanças, essas megaoperações

devem ser distinguidas entre si em vários aspectos, inclusive pela diminuição dos índices de

letalidade, já que a megaoperação de 2010 se pautou mais por uma “tática de ocupação e

 pacificação” (MATIOLLI, 2014), que prescindia do confronto direto com os traficantes.

Apesar de terem sido apresentadas como “inovadoras” por uma revista semanal de

grande circulação nacional, a revista Época (MASSON; AZEVEDO; FERNANDES, 2008),as megaoperações executadas durante a administração de Sérgio Cabral não constituíam

nenhuma novidade para os habitantes do Rio de Janeiro, que desde o início da década de

1990, estavam habituados a testemunhá-las, e eventualmente, apoiá-las e prestigiá-las:

(...) tais incursões esporádicas do Exército – tais como: a ECO-92; as ocupações naFavela Roquette Pinto, em novembro de 1993; e, em setembro de 1994, a volta àsruas por cinco dias para "resguardar" o encontro de chefes de Estado latino-americanos - são seguidas de elogios e aplausos entusiasmados, reconhecendo a

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competência das Forças Armadas e de seus serviços de informação. (COIMBRA,2001, p.210).

Para legitimar o uso da violência policial, os dirigentes responsáveis pela elaboração e

implementação da política de segurança pública, amparada pela mídia e pelos meios de

comunicação em massa, recorreram ao argumento de que o Rio de Janeiro encontrava-se em

estado de guerra civil: “No plano da racionalidade governamental do Estado do Rio de Janeiro

atualmente impera o uso oficial de um discurso que prega a necessidade de proteção da

sociedade em situação de guerra.” (BRASIL, 2007, p.2).

Foi baseado nesse argumento que o estado pôde dispor de forças militares para intervir

no problema da criminalidade e do tráfico de drogas e armas nas favelas do Rio de Janeiro.

Para tanto, foi necessário uma extensa campanha propagandística da mídia, de modo a

angariar o apoio popular. O mote dessas propagandas, em cada ocasião em que aconteciam as

incursões policiais nos morros cariocas, afirmavam que haveria uma “guerra do tráfico”,

diante da qual seria necessário convocar o exército para retomar os territórios ocupados pela

“bandidagem que espalha o terror pela Zona Sul” (SOARES; LIMA, 2010, p.135) e salvar a

 população, em uma cidade sitiada pelo medo e pela violência. De forma tácita, adotava-se o

 princípio de que só se poderia designar de “população” aqueles que habitavam a zona sul.

Foi assim que, após uma megaoperação realizada em primeiro de dezembro de 2010,no conjunto de favelas da Vila Cruzeiro, a revista Veja estampou a seguinte manchete: “Ao

retomar o controle de uma das principais trincheiras do tráfico no Rio de Janeiro, o estado dá

um passo decisivo para vencer a bandidagem que ganhou poder sob a complacência de

 populistas.” (SOARES; LIMA, 2010, p.133).

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Figura 2 – A guerra começa a ser vencida.

Fonte: SOARES; LIMA, 2010.

 Nessa reportagem, lê-se que “A batalha do bem contra o mal foi mais uma vez travada

no Rio de Janeiro – agora com tintas de  Armagedon.” Após a batalha, foi possível a

“libertação da Vila Cruzeiro”, extirpando assim o “tumor maligno irrigado pelo populismo de

governantes irresponsáveis” que colocava em questão “capacidade do Rio de sediar com

segurança os jogos da copa do mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016.” Essa porção maldita,

 perseguida nas comunidades invadidas, era designada como a “escória” que “mancha a

magnífica paisagem carioca.” (SOARES; LIMA, 2010, p.135).

É possível perceber que, ao denunciar a fragilidade da segurança pública, a reportagem

veiculava uma mensagem que roga pelo endurecimento das medidas de segurança no

tratamento dos “criminosos perigosos”, banindo o que é qualificado pelos jornalistas como

“regalias”:

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Todo o episódio lança luz sobre as fragilidades da segurança pública brasileira. Umadelas diz respeito ao conjunto de leis lenientes com criminosos perigosos, que lhesgarantem relaxamento da pena e ainda certas regalias como, por exemplo, visitas de

advogados e parentes sem nenhum monitoramento. Os bandidos tiram proveitodessas situações para transmitir ordens às facções que continuam a comandar dedentro dos presídios. (SOARES; LIMA, 2010, p.142).

Em meio aos muitos elogios feitos à referida reportagem, por parte dos leitores da

revista, constava uma resposta de Leonardo Avelino Duarte, então presidente da OAB

(Ordem dos Advogados do Brasil). Ali ele afirmava que “O direito de conversa reservada

entre o preso e seu advogado não é uma regalia”, mas “uma garantia indispensável à

manutenção do contraditório e da ampla defesa, já que nenhum cidadão vai expor seus

 problemas a um advogado se não houver a garantia da confidencialidade.” Duarte lembra

ainda que o sigilo “protege o cidadão, e não o criminoso.” (LEITOR, 2010, p.42). 

Em reportagem anterior, comentando o sucesso do filme “Tropa de elite” (PADILHA,

2007), a revista Veja afirmava que o mérito do filme é retratar, com fidelidade, a realidade

 brasileira, “pondo pingos nos is”: “bandidos são bandidos, e não ‘vítimas da questão social’.”

(CARNEIRO, 2007). O ponto de vista veiculado pela reportagem era o de que o Brasil “é um

 país de ideias fora do lugar por causa da afecção ideológica esquerdista que inverte papéis,

transformando criminosos em mocinhos e mocinhos em criminosos.” Sendo assim, no Brasil

“a ‘questão social’ é justificativa para roubos, assassinatos e toda sorte de crime e

contravenção – mesmo quando praticados por quadrilhas especializadas, compostas por

integrantes que nada têm de coitadinhos.” (CARNEIRO, 2007).

Ao que tudo indica, a revista Veja propunha retificar o que qualificava de “ideias

fora do lugar.” (CARNEIRO, 2007). Para tanto, ela evocava as condutas desonestas e

violentas por parte de alguns policiais durante as megaoperações e justificava-as, alegando

que elas poderiam ser explicadas “pelo grau de penúria e abandono que o estado lhes

reserva.” (CARNEIRO, 2007). É patente a dissimetria entre os juízos emitidos quanto às

ações criminosas, cometidas por parte de criminosos ou policiais: aparentemente, para a

revista Veja, apenas os policiais seriam abandonados à penúria por parte do estado. Ou seja,

 para eles a ‘questão social’ deveria ser considerada; para o criminoso, não! Ao final dessa

reportagem, a revista Veja evocou uma fala do personagem Capitão Nascimento, vivido pelo

ator Wagner Moura no filme “Tropa de elite” (PADILHA, 2007): “o policial tem três

escolhas: ou ele se corrompe, ou se omite ou vai para a guerra”. E isso para concluir que

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(...) o Brasil só tem duas escolhas: ou derrota os criminosos ou é derrotado por eles.Pela acolhida que o filme está recebendo, os brasileiros não têm a menor dúvida docaminho a seguir. (CARNEIRO, 2007).

Após o lançamento do segundo filme da franquia - “Tropa de Elite 2: o inimigo agora

é outro” (PADILHA, 2010) - a revista Veja dedicou-lhe uma reportagem de capa,

apresentando o Capitão Nascimento como “o primeiro super-herói brasileiro.”

FIGURA 3 – Capa da revista Veja – “O primeiro super-herói brasileiro”. 

Fonte: MEIER; TEIXEIRA, 2010.

Segundo o comandante do BOPE, Paulo Henrique Moraes,

O Bope virou pop star no Rio. A gente tem um apoio muito grande da população.Viramos comentário até na boca de criança. Para você ter idéia, para o Dia dasCrianças lançaram aqui no Rio um caveirão de brinquedo – um carrinho que imitanosso veículo blindado - e esgotou. (MEIER; TEIXEIRA, 2010, p.122).

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Figura 4 - Caveirão de brinquedo.

Fonte: DIA DAS CRIANÇAS..., 2010.

 Na “tragédia brasileira” (MEIER; TEIXEIRA, 2010), encenada por bandidos

 perigosos e políticos corruptos, os soldados do BOPE foram promovidos à dignidade de“heróis populares” (SOARES; LIMA, 2010, p.137), justiceiros honrados e incorruptíveis que

fazem justiça com as próprias mãos, uma espécie de Rambo brasileiro.

 No primeiro filme da franquia, os inimigos eram os traficantes e os usuários de drogas,

sendo que esses últimos eram considerados como comparsas dos primeiros. Nesse segundo

filme, o ‘super-herói’ direcionava sua fúria contra os políticos e policiais corruptos, que

lucravam com as atividades criminosas realizadas nas favelas. Em sua exibição nas salas de

cinema, os filmes dividiram a opinião dos telespectadores. Para uns, os filmes eram dignos de

elogios, indicando às autoridades do Estado o caminho a ser seguido no trato com as questões

relacionadas à segurança pública e ao tráfico de drogas. Para outros, os filmes seriam

fascistas, ao veicularem a ideia de que violência deveria sempre ser combatida com violência,

não importando os meios necessários para alcançar a paz social. De qualquer forma, não se

 pode desconhecer que eles têm o mérito de colocar em pauta a discussão das questões aqui

consideradas.

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Além da revista Veja, a revista Época também dedicou reportagens de capa acerca da

guerra ao tráfico no Rio de Janeiro. Uma delas, já mencionada anteriormente, foi intitulada

“Um ataque inovador” (MASSON; AZEVEDO; FERNANDES, 2008), trazendo em sua capa

a imagem do inspetor Leonardo da Silva Torres, apelidado de ‘Trovão’. Nessa imagem Torres

caminhava entre três cadáveres estendidos no chão, vestido com uniforme de guerra, portando

em uma mão um rifle, e na outra, um charuto. Na reportagem, que abordava a megaoperação

realizada no Complexo do Alemão, afirmava-se que o inspetor simbolizava a “força policial

inovadora que hoje combate nos morros.” (MASSON; AZEVEDO; FERNANDES, 2008).

Figura 5 – Capa da revista Época – Inspetor ‘Trovão’.

Fonte: MASSON; AZEVEDO; FERNANDES, 2008.

Diante do título da reportagem, pode-se perguntar o que haveria de inovador em

invadir favelas e ‘deixar corpos no chão’, conforme as letras do hino de guerra entoado pelo

BOPE. Lendo-a pode-se depreender que a inovação concerniria, primeiramente, ao currículo

de Trovão, que foi “formado pela SWAT (Special Weapons And Tactics 11) americana e pelo

Centro de Inteligência da Marinha Brasileira.” (MASSON; AZEVEDO; FERNANDES,

11 Armas e Táticas Especiais

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2008). Além disso, inovador se referia também a uma mudança de estratégia durante as

incursões nos morros, conforme afirmou José Mariano Beltrame: “Não fomos lá prender uma

ou duas pessoas, uma liderança do tráfico. Fomos lá desmanchar bunkers, ilhas

inexpugnáveis. Fomos lá devolver direitos aos cidadãos.” (MASSON; AZEVEDO;

FERNANDES, 2008). Além disso, a operação integrou as polícias militar civil, bem como a

Força Nacional de Segurança, e foi baseada em um trabalho prévio de inteligência, feito a

 partir de informantes infiltrados nos morros e favelas.

Assim como se constatou nas reportagens da revista Veja, Época glorificava o policial

combatente, como se ele fosse o super-herói que iria, finalmente, redimir a população das

máculas do crime e da violência.

Seu uniforme de campanha e o charuto que mantém aceso mesmo em serviço deramuma cara nova aos agentes da invasão. Mais que isso, eles fizeram de Trovãoalguém com quem a população pode se identificar. Agora, há a sensação de que aação da polícia é para valer. (MASSON; AZEVEDO; FERNANDES, 2008).  

A reportagem segue, sempre tecendo elogios às ações policiais e à “transparência no

discurso” por parte das autoridades.

Tanto o secretário Beltrame quanto o governador do Rio, Sérgio Cabral, sãoelogiados publicamente. É como se a população do Rio de Janeiro não se sentissemais órfã nem refém do tráfico (MASSON; AZEVEDO; FERNANDES, 2008). 

Mesmo que se reconheça que “o número de mortos é elevado”, e que entre eles

“houvesse inocentes”, tudo vale quando se trata de acabar com a violência que “envergonha,

amedronta e empobrece o país.” (MASSON; AZEVEDO; FERNANDES, 2008).

 Na edição de 26/11/2010, a revista Época estampou na sua capa o símbolo do BOPE,

uma caveira atravessada por uma faca, com os dizeres: “Vamos vencer o tráfico.” O objeto da

matéria foi o início das incursões policiais feitas na favela da Vila Cruzeiro. Um pesado

aparato militar, incluindo seis tanques de guerra, similares aos que foram utilizados na guerra

do Iraque, foi utilizado para abrir caminho para os policiais do BOPE.

Estava em jogo ali a confiança do mundo na capacidade do Rio de sediar asOlimpíadas de 2016 e a Copa de 2014. E também o futuro da política de segurançada cidade, em especial de um projeto que, ao menos parcialmente, devolveu nos doisúltimos anos a paz a vários pontos da cidade: as Unidades de Polícia Pacificadora,ou UPPs. (FERNADES [et al.], 2010).

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Figura 6 - Capa da revista Época – “Vamos vencer o tráfico”.

Fonte: FERNADES [et al.], 2010.

A reportagem da revista Época celebrava a invasão policial, priorizando os eventos

esportivos que ocorreriam na cidade, em detrimento dos futuros rumos da política de

segurança. Além disso, apontavam-se diretrizes que poderiam contribuir para a maior

eficiência da polícia. Primeiramente, dever-se-ia “reformar as polícias”, coibindo “a

competição interna e a corrupção.” Além disso, seria necessário maior investimento na

“confecção de uma base de dados nacional de criminosos” (FERNADES [et al.], 2010), bem

como a construção de mais presídios de segurança máxima. Em nenhum momento se

concebia uma diretriz para a diminuição da criminalidade que não passasse pela policialização

da segurança pública. Nessa direção, nada mais se poderia esperar que o aumento da

violência, acompanhado do endurecimento das medidas extraordinárias de segurança.

Essas reportagens, imbuídas de um viés idealista e maniqueísta, buscavam glorificar a

violência policial e massagear o braço de ferro do estado, designando heróis e vilões, em uma

 batalha do bem contra o mal. O discurso expresso por elas assumia um tom belicista,

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colocando em jogo termos como invasão, ocupação, retomada ou “reconquista de territórios”

(LOUREIRO; TORRES; LEITE, 2010), “guerra no Rio”, “guerra contra o tráfico”, fazendo

eco à declaração de guerra do governador Sérgio Cabral: “É guerra!” (ISKANDARIAN,

2010). Conforme afirma Alves (2012, p.51),

Em sua versão mais simplista, os meios de comunicação construíam uma narrativasegundo a qual essas comunidades estariam infestadas de criminosos e dominadas por bandidos bem armados, em contraste com o restante da sociedade, localizado na parte de baixo da cidade do Rio, que zelaria pelas leis. Isso incentivou a opinião pública a fazer distinções nítidas entre quem vive nos morros e as classes média ealta, que residem nos bairros do asfalto. (ALVES, 2012, p.51).

O noticiário da TV Globo estendeu o escopo do discurso bélico, ao declarar “O Rio

contra o crime” (OCUPAÇÃO..., 2010), convocando a população de bem a lutar contra o mal

do tráfico. Conforme indica a psicóloga e presidente do Grupo Tortura Nunca Mais-RJ,

Cecília Coimbra (2001), esse tipo de discurso visa instilar na audiência uma sensação de

insegurança, de modo a angariar apoio popular para o reforço das medidas de emergência

decretadas pelo Estado. Pode-se perceber, claramente, conforme afirma Mendonça (2012),

que “a emissora assumiu a atitude de se tornar, discursivamente, parceira da ‘resposta’ das

autoridades aos criminosos.” Dessa forma, assim como boa parte da imprensa hegemônica,

ela se tornou importante aliada do Estado no apoio às ações militares.

Durante sua ampla cobertura midiática da “ocupação do Alemão” (OCUPAÇÃO...,

2010), em 2010, a TV Globo acompanhou in loco  a invasão do Complexo de favelas do

Alemão, mantendo em torno de 8 horas de cobertura diária durante os dias do conflito (24 a

29 de novembro de 2010). Ao longo desse período, a emissora bombardeou os lares dos

telespectadores com a transmissão ao vivo das imagens do confronto, incluindo-as em um

discurso que fazia coro com as vozes autorizadas. Durante a cobertura, repórteres da emissora

repetiram inúmeras vezes que se tratava de um “momento histórico”, algo efetivamente

“espetacular” (OCUPAÇÃO..., 2010), jamais testemunhado antes.

O depoimento dos jornalistas que participaram da cobertura, na época do confronto, é

esclarecedor no tocante à conversão da notícia em espetáculo. Ao serem convertidas em

espetáculo, as imagens da violência despertam o fascínio sacrificial, que seduzem e cativam

não apenas a audiência a quem se destina. Uma das jornalistas da TV Globo, encarregada de

cobrir a ocupação no Complexo do Alemão, lembra que a “alta tecnologia” proporcionou uma

“cobertura espetacular”:

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Foi assim, uma experiência incrível, ao mesmo tempo em que as pessoas em casaestavam vendo aquelas imagens inéditas, aqueles bandidos fugindo lá pelo alto daVila Cruzeiro, e todo mundo olhando aquilo de boca aberta, (...) e ficou todo mundo

abismado, chocado com aquilo. Ninguém nunca tinha visto aquele tipo de imagemna televisão ou em lugar nenhum. (OCUPAÇÃO..., 2010).

O depoimento da jornalista buscava acercar-se do excesso de um real inominável

veiculado pelas imagens, que mobilizavam aqueles que eram expostos a elas. A obsedante

captura sacrificial induziu, nesses sujeitos, um forte sentimento de comunhão, permitindo um

estreitamento momentâneo dos enlaces identificatórios. Conforme o depoimento emocionado

de outro jornalista da TV Globo, “Isso virou uma corrente, tava todo mundo falando, é uma

coisa diferente que está acontecendo, dessa vez é diferente, dessa vez está todo mundo junto.”(OCUPAÇÃO..., 2010). A formação dessa corrente se tornou possível a partir da designação

de um inimigo, destinado a cumprir a função de bode expiatório, elemento encarregado de

 polarizar a agressividade inerente a qualquer massa ou agrupamento humano. Nesse caso, os

 bandidos e criminosos foram designados como a exceção que permitiria ao conjunto se

constituir como massa coesa e compacta.

Ao final da operação policial, as bandeiras do Brasil e do Rio de Janeiro foram

hasteadas no ponto mais alto do complexo de favelas do Alemão, assinalando a retomada dosterritórios estrangeiros por parte do Estado e a “libertação da comunidade” (LOUREIRO;

TORRES; LEITE, 2010), segundo afirmou o então comandante-geral da Polícia Militar do

Rio de Janeiro, coronel Mário Sérgio Duarte. Após o final das operações, ele anunciou a

vitória das forças invasoras:

As aeronaves da Polícia Civil fizeram vôos rasantes e nos deram cobertura de fogo.Tivemos o apoio mais a distância das aeronaves da Força Aérea, os blindadosfizeram o seu papel. A infantaria. Vencemos... vencemos. Trouxemos a liberdade para a população do Alemão. Agora é trabalho de busca, procura, prisões eapreensões. Menos resistência [...] Nós apenas conquistamos um terreno. O trabalhomais cansativo vem agora. (‘VENCEMOS...’, 2010).

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Figura 7 - Policiais hasteiam bandeiras do Brasil e do Rio de Janeiro após a ocupação do Complexo do

Alemão, em novembro de 2010.

Fonte: ERTHAL; RITTO, 2011.

O discurso do comandante reverberou na mídia, constituindo um lugar comum

 partilhado por outras autoridades de estado. Segundo esse discurso, os heróis da polícia

finalmente trouxeram a liberdade para uma população amedrontada e dominada pelo crime.

Por sua vez, a mídia legitimava essa fala autorizada, buscando estendê-la também aos

moradores das comunidades invadidas.

Os moradores sabem que nós viemos para libertá-los. Os moradores sabem que nósviemos aqui para trazer paz para a população. A população pediu isso. Nósrecebemos centenas de e-mails, centenas de pedidos de socorro. Se há casas ondemoradores dizem que a polícia não pode entrar, aí mesmo é que se torna maissuspeita. (‘VENCEMOS...’, 2010).

Como se pode perceber, esses discursos não apenas produziram a verdade do

acontecimento, como também já anunciavam medidas de emergência que se seguiriam às

invasões, buscando legitimidade para justificá-las perante a população. Dessa forma, os

discursos autorizados pretendiam falar em nome da população que residia nas comunidades

invadidas. Foi assim que, durante o encerramento da edição de 27/11/2010 do telejornal da

Rede Globo, a apresentadora leu a carta de uma moradora anônima da Vila Cruzeiro: “Aos

governantes e toda força militar, nossos guerreiros, nossos heróis: obrigada. Liberdade,

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liberdade abre as asas sobre todos nós!” (OCUPAÇÃO..., 2010). Ver-se-á, mais adiante, que

esse tipo de mensagem libertária não expressava apropriadamente o ponto de vista de muitos

dos moradores das comunidades invadidas. Na verdade, a voz dos moradores recebeu pouco

espaço na cobertura midiática, e só era mencionada quando estava em concordância com os

discursos autorizados.

Ao fim da invasão ao Complexo do Alemão, a PM pôde exibir diante das câmeras os

 presos como um troféu, enquanto que o âncora do Jornal Nacional da Rede Globo pôde exibir

orgulhosamente o troféu Emmy-2011 sobre sua bancada de trabalho. O prêmio veio para

celebrar, justamente, a cobertura da Rede Globo sobre a ocupação do Complexo do Alemão,

tendo sido comemorada como um marco de excelência no jornalismo brasileiro.

Pode-se perceber como Cristopher Lasch (1983, p.109) estava com razão, ao afirmar

que a dimensão política não constituiu exceção à generalização do apelo midiático do

espetáculo, tendo se mesclado com este para ser convertida em uma “arte de controle de

crises”.

A propaganda procura criar no público uma crônica sensação de crise, a qual, por sua vez, justifica a expansão do poder executivo e dos segredos que ocercam. (LASCH, 1983, p.109).

Michel Foucault, por sua vez, já advertia que a história não cessa de nos ensinar que

“o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas

aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.” (FOUCAULT,

1970/1996, p.10). A manipulação da opinião pública constitui, nos dias atuais, uma poderosa

arma de guerra. Apesar de ter sido muito criticado por alguns, o tom triunfalista das

reportagens mencionadas contaram com expressiva aprovação da população, que sem uma

reflexão mais detida acerca de suas implicações, apoiou as medidas extremas adotadas pelo

Governo Federal. Conforme afirma Alves (2012, p.24), “a opinião pública aplaude a guerra da

 polícia contra os bandidos do tráfico em bairros pobres, desde que o conflito não se estenda

 para as regiões nobres de classe média e classe alta”.

Reportagens como as que foram aqui mencionadas permitem compreender essas

complexas relações, entre os setores hegemônicos da mídia nacional e o discurso dos agentes

do Estado, de índole sacrificial, beligerante e totalitária. Esse discurso pôde ser claramente

delineado, não apenas a partir das declarações e notas oficiais tornadas públicas, mas também,

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a partir de pesquisas acadêmicas (ALVES, 2012; FILHO, 2010; RAMOS, 2010), que se

dedicaram exclusivamente ao estudo dessas questões. A seguir, serão abordadas algumas

dessas declarações por parte das autoridades de Estado, escolhidas em virtude de sua

 pertinência ao tema da pesquisa.

1.5- Violência, preconceito e intolerância: a incitação sacrificial no discurso das

autoridades de Estado

A militarização da segurança pública, no Rio de Janeiro, conforme afirma Cecília

Coimbra (2001), é sucedânea das operações policiais de perseguição a sujeitos considerados

subversivos pelo regime militar. No contexto atual, entretanto, o personagem perseguido não

é mais o revolucionário subversivo, mas o marginal que reside nas favelas. Ainda segundo a

autora (2001), a militarização da segurança pública encontra suas raízes, não apenas na

retórica da doutrina da Segurança Nacional, mas também no discurso higienista, que

consagrou a associação entre a miséria do povo e a disseminação de enfermidades,

concebendo a miséria como mazela social contagiosa, que deveria ser erradicada.

Podem-se perceber, em várias declarações prestadas pelos representantes públicos dalei, traços que permitem reconhecer, de forma clara, a sustentação de um discurso eugênico e

higienista, voltado para a imunização social e a difusão do terror entre as comunidades

desfavorecidas. Marcus Jardim, coronel da Polícia Militar (PM) do Rio de Janeiro, se tornou

famoso por suas declarações irônicas, divulgadas com estardalhaço pela mídia. Ao referir-se à

atuação dos traficantes, Marcus Jardim comparou-a a uma epidemia de dengue, associando,

metaforicamente, a PM como “o melhor inseticida social.” (TOLEDO, 2008). Tal declaração

se referia às incursões da PM na favela de Vila Cruzeiro, onde nove pessoas foram mortas eseis ficaram feridas. Pode-se perceber o tom eugênico e higienista dessa declaração que, de

forma irônica, asseverava que certos sujeitos seriam tratados como insetos daninhos, ou seja,

deveriam ser exterminados.

Em 2007, durante as incursões ao Complexo do Alemão, o coronel Marcus Jardim

declarou que aquele seria um “ano marcado pelos três ‘pês’: PAN, PAC e pau”, (TORRES,

2008), ou seja, os jogos Pan-Americanos, o Plano de Aceleração do Crescimento (então

adotado pelo Governo Federal) e a violência policial, à espreita dos moradores das

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comunidades pobres do Rio de Janeiro. De fato, o ano de 2007 se revelou extremamente

violento para os moradores dessas comunidades, especialmente para aqueles que residiam no

Complexo do Alemão: durante o mês de julho, as incursões feitas nessa comunidade deixaram

um saldo de 19 mortos e mais de 50 feridos.

Para José Mariano Beltrame, “um tiro em Copacabana é uma coisa, um tiro na Coréia,

no Alemão, é outra” (TOSTA, 2007), deixando claro, dessa maneira, que a violência só se

torna um problema quando desce o morro, mas nas favelas, ela é tacitamente aceita, e vista

como algo banal. Em suas declarações à imprensa, o secretário aproveitou a ocasião para

afirmar que se tratava de uma guerra (SOARES, 2007), e anunciar que “vai haver um

confronto onde inocentes irão morrer.” (TORRES, 2008).

Ao comentar a megaoperação policial realizada no Complexo do Alemão, em junho de

2007, o governador Sérgio Cabral afirmou à revista Época que “não há outro caminho a ser

seguido”:

A população está convencida da necessidade desse confronto. Nos últimos anoshouve um crescimento da musculatura do tráfico que a população não suporta mais.As pessoas estão prontas para fazer o sacrifício porque sabem que só isso vaimelhorar sua qualidade de vida. Durante muitos anos o campo progressivo, aesquerda, associou a ordem pública à ditadura, ao autoritarismo. Hoje sabemos que aordem pública é a garantia da cidadania. Todos temos que fazer sacrifício pelavitória contra a barbárie. Não há como fazer omelete sem quebrar os ovos. O próprio presidente Lula disse que o crime não se combate com pétalas de rosa.(FERNANDES, 2007).

 Na mesma entrevista ele afirmou que o objetivo das incursões policiais

(...) não é acabar com o tráfico. Isso ninguém conseguiu até hoje. O tráfico nãoacabou em Paris, em Nova Iorque e nem em Estocolmo, que têm muito maisrecursos do que nós. O objetivo é chegarmos a níveis civilizatórios de criminalidade.(FERNANDES, 2007).

Diante de tal declaração, surge a questão do que o governador entendia pelos alegados

“níveis civilizatórios de criminalidade.” Isso se torna pertinente, tendo em vista que, em

outras ocasiões, ele adotou um discurso claramente eugênico e criminalizador da pobreza,

afirmando que as favelas são fábricas de produzir marginais, verdadeiros berçários do crime.

A questão da interrupção da gravidez tem tudo a ver com a violência. (...) Você pegao número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e

Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão.

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Isso é uma fábrica de produzir marginal. Estado não dá conta. Não tem oferta darede pública para que essas meninas possam interromper a gravidez  (FREIRE,2007). 

 Nesta declaração, percebe-se que a pobreza caminha junto com a criminalidade, o que justificaria um procedimento preventivo de limpeza social dos morros e favelas. Ao se

 pronunciar dessa forma, o governador traz à tona a polêmica questão do aborto eugênico,

vinculando-a ao problema da violência pública. Ele acrescenta que essa indicação pode ser

encontrada no livro Freakonomics (2005), de autoria de Steven Levitt e Stephen J. Dubner,

que sustentam a tese de que “uma criança nascida em um ambiente familiar adverso tem

muito mais probabilidade que outras de se tornar um bandido.” (LEVITT; DUBNER, 2005,

 p.18). Nessa perspectiva, o discurso eugênico-higienista aponta para uma diretriz preventivade controle social, propugnando atacar o problema da criminalidade em sua raiz, evitando,

assim, o nascimento de futuros marginais.

O ideal de previsão dos riscos e controle das mazelas sociais faz parte da atual lógica

gestionária de governo, que anula a dimensão política da participação social, em benefício de

uma administração burocrática baseada no controle informatizado. Um exemplo de como essa

forma de administração racional se efetiva em ato é a política de tolerância zero, adotada na

cidade de Nova Iorque com relação ao problema do aumento da criminalidade e do

terrorismo, após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Na prática, essa política

implica em uma aplicação inflexível da lei, particularmente sobre delitos menores, uma vez

que se assume que esses são potenciais precedentes para delitos maiores. O enfoque é

 basicamente preventivo, baseado no cálculo das probabilidades.

Segundo Wacquant (2004), a política de tolerância zero se tornou mais um produto do

capitalismo globalizado, que agora é exportado para outros países, a exemplo do Brasil. Tal

 política é acompanhada da “retórica militar da ‘guerra’ ao crime e da ‘reconquista’ do espaço

 público, que assimila os delinquentes (reais ou imaginários), sem-teto, mendigos e outros

marginais a invasores estrangeiros.” (WACQUANT, 2004, p.19).

Isso fica patente no pronunciamento proferido durante a cerimônia de posse do então

 presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2007, ao afirmar que os ataques violentos que

ocorreram no Rio de Janeiro seriam tratados como atos terroristas: “Essa barbaridade que

aconteceu no Rio de Janeiro não pode ser tratada como crime comum. Isso é terrorismo e tem

que ser combatido com a política forte e mão forte do Estado brasileiro.” (SILVA, 2007, p.6).

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O discurso da guerra ao terror, adotado pelas autoridades, coloca em cena a figura do

terrorista, personagem encarregado de polarizar a agressividade contra o estrangeiro. A

condição sui generis  do terrorista diante do ordenamento jurídico é homóloga à do homo

sacer : sua morte não constitui um crime, pois é considerada como efeito colateral necessário

de um conjunto de ações planejadas e realizadas em nome de um bem maior.

A morte desses sujeitos constitui, a partir desse ponto de vista, baixa humana em uma

guerra, que só encontra inscrição em documentos oficiais sob forma das estatísticas que

compõem o resultado de operações legais de segurança. Nesse tipo de guerra, lembra Bauman

(2005), qualquer cidadão é potencial candidato ao papel de baixa colateral, ainda que ele não

tenha declarado essa guerra, nem concordado com ela.

Qualquer forma de resistência ao discurso intolerante propagado pelas autoridades e

 pelo segmento hegemônico da mídia era previamente desqualificada como simpatizante do

tráfico, o que tornava ainda mais ineficaz qualquer manifestação de repúdio pelas decisões

tomadas acerca da política de segurança. Inclusive o discurso acadêmico, que vem produzindo

inestimáveis contribuições ao trabalho de reflexão crítica em torno dessas questões, foi logo

de partida desqualificado, como fica evidenciado nessa declaração de José Mariano Beltrame:

 Não podemos passar a mão na cabeça dos marginais, com a desculpa de que eles sãoexcluídos sociais. Dentro desses conceitos vagos, as pessoas navegam sem rumo. Não fujo da discussão, mas não me apresentem discursos acadêmicos como se elesfossem solução. A meu ver, esse é um equívoco que as ONGs [organizações não-governamentais] cometem, pois não conseguem enxergar nada além das ciênciassociais. (SOARES, 2007).

Ainda pior foi o destino daqueles que eram imbuídos de autoridade e poder para

investigar e julgar os envolvidos nas ações criminosas: sofreram ameaças, foram perseguidos

e, eventualmente, assassinados. Um exemplo disso foi o assassinato da juíza Patrícia Acioli,

morta a tiros em 2011, na entrada da garagem de sua casa, em Niterói, por policiais

envolvidos com as milícias (ANDRADE, 2013). Acioli era conhecida pelo rigor com que

 julgava esses policiais, e mesmo tendo recebido várias ameaças de morte, a magistrada não

acreditava que pudesse morrer em decorrência do seu trabalho; infelizmente, ela estava

enganada. Vale mencionar também, como exemplo, o caso do deputado estadual do PSOL-RJ

(Partido Socialismo e Liberdade - Rio de Janeiro), Marcelo Freixo, que presidiu a CPI

(Comissão Parlamentar de Inquérito) das milícias em 2008, responsável por apurar o

envolvimento de 226 agentes do estado (incluindo políticos, agentes penitenciários,

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 bombeiros e policiais, civis e militares) com as atividades criminosas das milícias.

Diferentemente da juíza Patrícia Acioli, Marcelo Freixo sobreviveu, apesar das ameaças de

morte.

Em entrevista ao programa “A Liga” (VÍDEOS DA MADRUGADA..., 2013), ao ser

 perguntado sobre a ocupação militar no Complexo do Alemão, Marcelo Freixo disse que isso

é muito preocupante, pois “o exército não tem função de polícia”, e não se deveria

desconsiderar que essa ocupação ocorria em um país democrático,

(...) que saiu de uma ditadura militar que durou 21 anos, e que rediscute o seu parâmetro de segurança pública, enfim, direitos fundamentais, e você tem o exércitofazendo papel de polícia ocupando militarmente uma área, sem um debate profundo,

no qual os moradores possam ser ouvidos. (VÍDEOS DA MADRUGADA..., 2013).

 No dia seguinte à invasão policial no Complexo do Alemão, Freixo foi ao local escutar

os moradores, e se disse muito impressionado com os relatos que testemunhou.

1.6- Os inimigos da vez: a voz dos moradores das comunidades invadidas

Os campos de concentração e de extermínio dosregimes totalitários servem como laboratórios onde sedemonstra a crença fundamental do totalitarismo deque tudo é possível. (ARENDT, 1951/1989, p.488). 

 A gente, que mora na favela, nunca pode dizer: ‘Issonunca vai acontecer comigo’. Eu via casos de mortes pela televisão e pensava que isso nunca ia aconteceraqui, com a minha família. Podemos estar aquiconversando hoje e amanhã eu sair na rua e tomar umtiro. Estamos sujeitos a morrer em qualquer lugar, masaqui é mais perigoso. Eu me sinto mais vulnerável. (ALVES, 2012, p.114). [Depoimento de moradora que

 perdeu o filho de oito anos, morto pela polícia duranteum tiroteio].

O testemunho dos moradores é fundamental para avaliar o impacto das ações policiais

sobre as comunidades invadidas. Mesmo sabendo que a maior parte dos habitantes das favelas

não tinha ligação alguma com a criminalidade ou com o narcotráfico, eles acabaram se

tornando vítimas dos confrontos armados. Através da pesquisa documental, foi possível

encontrar alguns depoimentos, prestados por moradores das comunidades invadidas.

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Figura 8 – Rotina de tiroteios no Complexo do Alemão

Fonte: ARAÚJO, 2015.

Percebe-se, nesse contexto, uma perspectiva que difere daquela que foi abordada nos

tópicos anteriores. Esse confronto de pontos de vista antagônicos prolonga as linhas de força

envolvidas no conflito. De um lado, moradores se queixavam da brutalidade e truculência dos

agentes policiais, denunciando roubos, maltrato, extorsões, ameaças, torturas, execuções e

outras ações criminosas cometidas por eles. De outro lado, os agentes de estado, apoiados

 pelo setor hegemônico da mídia, responderam dizendo que muitos desses depoimentos eram

falaciosos, e sua finalidade seria acobertar os verdadeiros criminosos e manchar a reputação

da força policial perante a opinião pública. Muitos moradores temiam prestar depoimentos

 perante a polícia ou à imprensa, com medo de represálias, tanto por parte dos agentes doEstado, quanto por parte dos traficantes.

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Figura 9 – Oficiais do BOPE reprimem um protesto contra a morte de um morador no Complexo

do Alemão durante uma megaoperação em 2007.

Fonte: TEIXEIRA, 2013.

 Não se deve desconsiderar, também, que depoimentos tais como os que são aqui

elencados constituem, muitas vezes, uma transgressão da famigerada lei do silêncio, que

vigora nas favelas. A partir dos depoimentos dos moradores das comunidades invadidas, é

 possível perceber que eles não foram respeitados pela polícia, durante as incursões realizadas

 por ela. Segundo o morador Brito de Andrade,

As coisas de valor que temos em casa, dinheiro, temos que esconder tudo, porque oPM pode entrar e levar. Acontece muito. Fora que uma operação como essa mudatoda a rotina dos moradores, a gente ouve o barulho dos tiros e não consegue dormirdireito, fica em dúvida se vai trabalhar, se vai estudar. Pela televisão não ficamossabendo de nada com certeza, já que, sempre que falam do conflito, repetem cenas

antigas. Quando saímos do morro vemos vários soldados da FNS [Força Nacional deSegurança] com fuzis apontados pra nossa cara, isso é muito ruim. Sei que há policiais cumprindo ordens, honestos, mas em geral são muito violentos, sim. Otrabalhador é xingado, leva tapa na cara. (...) fico imaginando um morador dizer aum policial isso que vemos nas novelas: só falo na presença do meu advogado! Sevocê disser isso a um PM no mínimo vai levar muita porrada. (ABREU et al, 2014).

Quando os policiais invadem o morro, alguns desses agentes aproveitam a ocasião

 para tomar posse das moradias, mediante o uso da força:

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 No dia 11 de abril [de 2007] eles invadiram a casa de um amigo meu. Comeram tudoque tinha na geladeira, jogaram tudo no chão, sujaram tudo, quebraram muitascoisas dele. O rapaz não estava em casa. Sorte dele porque, se estivesse, talvez nemestivesse mais aqui para contar a história, pois eles matam mesmo. (ALVES, 2012, p.91).

A polícia estava cometendo muita arbitrariedade, agressão e violência contramulheres e crianças, abusos principalmente contra mulheres, idosos e crianças.Muita agressão. Jovens baleados e feridos. Simulavam encontrar drogas com jovens, prendiam irregularmente, entravam nas casas à força, arrombando. (ALVES, 2012, p.158).

A forma de abordagem dos policiais, tal como descrita, foi flagrantemente ilegal,

desrespeitando direitos constitucionais fundamentais, como a inviolabilidade domiciliar.

Figura 10 – Exemplo de bilhete afixado pelos moradores nas portas de suas casas durante as

megaoperações no Complexo do Alemão em 2010.

Fonte: GRANJA, 2010.

É possível constatar, também, que os policiais nem sempre faziam distinção entre

cidadãos de bem e criminosos procurados pela justiça, considerando, como petição de

 princípio, todos suspeitos. Embora houvesse agentes policiais qualificados como honestos

 pelos moradores, havia também aqueles que os desrespeitavam, agindo de forma criminosa.

Essa oposição entre as categorias de cidadão de bem (ou trabalhador) e criminoso, que tendia

a se apagar durante as operações policiais, era correlata, no lado da polícia, à oposição entre

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as categorias de policial honesto e policial corrupto. Sendo assim, essas categorias perderam o

seu efeito diferenciador, predominando uma zona de indistinção entre legalidade e

ilegalidade. Nesse contexto surgiam, a todo o momento, categorias marginais, nomeações que

não garantiam nenhuma possibilidade de reconhecimento do estatuto civil do sujeito em

questão: “Se você não é bandido, para eles é um desocupado, vagabundo...” (ABREU et al.,

2014).

Em uma entrevista concedida ao jornalista Marcelo Salles, Sadraque Santos, fotógrafo

e morador do Complexo do Alemão, afirmou que a presença ostensiva das forças policiais nas

favelas acarretava uma cessão do direito fundamental de ir e vir. Com isso, a população

tornou-se refém do cerco policial, impedida de sair para trabalhar, ou levar as crianças para a

escola:

 Na primeira [vez], tive que dar a volta e sair por outro lado. Em outra, tentei dar avolta, mas tava tudo fechado. Tive que esperar até onze horas da manhã para irtrabalhar. Nosso direito de ir e vir nunca é respeitado. (SALLES, 2007).

Este ponto é corroborado a partir de alguns depoimentos colhidos por Maria Helena

Moreira Alves, que abordam não apenas sobre o cerco policial imposto aos moradores, mas

também sobre o famigerado toque de recolher:

 Nós não temos mais direito de andar, de ir e vir, porque não tem mais direito não,não tem mais nada, a qualquer momento tem tiroteio, tem Caveirão, tem confronto.(ALVES, 2012, p.95).

Temos um curso de alfabetização de adultos que é para porteiros, para senhoras, para outros adultos analfabetos. E funciona das 20h às 22h. E não podemos maisfuncionar, porque às 21h30 há o toque de recolher e não se pode subir o morro. Elesnão descem porque depois não podem subir o morro para voltar pra casa. (ALVES,2012, p.173).

A arbitrariedade das operações policiais podem ter consequências bem mais nefastas

do que a cessão do direito de ir e vir. Durante as incursões policiais, “quando o caveirão vem

na favela, mata trabalhador também. Fizeram [barricadas] na Penha, na Fazendinha e no

Complexo do Alemão. Tá morrendo muito inocente.” (SALLES, 2007). Não havia, portanto,

nenhum critério de diferenciação entre aqueles que habitavam o território invadido: todos

eram tratados como foras da lei.

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crime, pois sua morte é considerada necessária no contexto da aplicação das medidas

extraordinárias de segurança, próprias de um Estado em guerra.

Conforme considera Ignácio Cano (2015), a partir de pesquisas realizadas sobre essa

questão, muitos daqueles que avalizam a máxima ‘bandido bom é bandido morto’ não

necessariamente apoiam a instituição legal da pena de morte no país. Eles “apoiam

simplesmente que a lei seja ignorada em caso de bandidos, mas quem será que vai decidir

quem é bandido e quem não é?”.

Em entrevista ao jornalista Rafael Fortes (2008), João Tancredo, ex-presidente da

Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, afirmou que, hoje, já se assume abertamente que

a matança é autorizada, haja vista que o extermínio se tornou política de estado para lidar com

o problema das populações pobres.

O extermínio é política de Estado. Vai fazer o que com este monte de pobres? (...).Matam, fazem o auto de resistência e dizem que foi em confronto e acabou. No[Complexo do] Alemão isso ficou muito claro (...) os policiais se sentem autorizadosa matar estas pessoas porque as vêem como coisa, e não como cidadãos com direitose garantias. (FORTES, apud FILHO, 2010, p.53).

Ora, em um Estado democrático de direito, o tratamento de criminosos deveria se

 pautar pela aplicação irrestrita das mesmas leis que valem para todos. Mas fica claro que nãoé isso o que acontecia na realidade dos moradores das favelas cariocas, em particular, durante

as incursões policiais. O tratamento dado pelo Estado a esses sujeitos não correspondia àquele

que deveria ser legalmente conferido a criminosos, nem muito menos a cidadãos.

Além do constrangimento de serem tratados como criminosos, os moradores relatam a

forma brutal pela qual os agentes do Estado tentavam obter informações por meio da força:

O pior é que a Polícia Militar, o Bope, pressionam os moradores, com armas na mão,

ameaçando se não disserem quem é quem, onde estão escondidos, onde tem pontode fumo, onde tem armas. (...) Eles falam assim: "Encosta aí na parede. Vocêssabem onde é que fica. Sabemos que vocês sabem, não querem é falar. Vamosarrancar isso de vocês". (ALVES, 2012, p.95).

Isso colocava os moradores em uma difícil situação, uma vez que, apesar da presença

massiva da polícia, a lei do silêncio imposta pelos traficantes ainda vigorava. Do ponto de

vista dos traficantes, a delação é considerada ofensa grave, passível de punição com a morte.

Sendo assim, o morador se via em um impasse: se delatava os criminosos, sofria as sanções

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dos traficantes; se não cooperava com a polícia, era tratado como cúmplice do tráfico, sujeito

a ser interrogado, ameaçado e torturado por seus agentes.

A maioria dos moradores, inclusive eu, reclama da atitude da polícia, que costumausar de covardia com os moradores. Covardia mesmo! Coisas do arco-da-velha, seeu contar você nem acredita. (...) Invadindo casa de morador, sacaneando morador,mexendo com filha dos outros. Estão fazendo coisas do mesmo nível dos bandidos.(SALLES, 2007).

 Não há mais respeito. Estão agindo corno se fossem traficantes. Estão se misturando, pra mim não tem mais diferença: policia é a mesma coisa que bandido. Até bandidorespeita mais os moradores. (ALVES, 2012, p.116).

Em entrevista concedida à Alves (2012), professores que lecionavam em uma escola próxima ao Complexo do Alemão narraram o horror que tomava conta do local durante os

confrontos. Ao ser invadida pelos policiais, a escola era transformada em base de operações;

com metralhadoras em punho, eles arrombavam as portas das salas de aula e subiam nas

mesas para poderem efetuar disparos do telhado.

A polícia chega aqui, sem dar a mínima importância a quem está no caminho - eaqui são cinco escolas -, troca tiros com os bandidos e vai embora deixando umcampo de matança. (ALVES, 2012, p.64).

A polícia agora usa a escola como escudo. Eu acho um absurdo que um poder quetem que nos proteger entre arrombando a escola, quebre coisas, e até roubeequipamentos. (ALVES, 2012, p.94).

Situada em uma área de fogo cruzado entre policiais e traficantes, a escola teve as suas

 paredes crivadas por balas de fuzil, disparadas durante os confrontos. Em função do tipo de

armamento utilizado, as balas trespassavam as paredes, tendo sido necessário blindá-las, de

modo a proteger alunos e professores durante os tiroteios. Em um único dia de confronto, os

 professores coletaram no pátio da escola 72 cápsulas de munição deflagrada.

A única forma de atuação do Estado aqui na comunidade é a guerra, o que vai permanecer enquanto tivermos essa ideia de, como diz o governador, que oComplexo [do Alemão] é um antro de marginais, é o ‘inimigo do Estado’. Me parece que é uma visão bem excludente, fascista mesmo, porque os pobres são todosinimigos e todos considerados bandidos. Então não importa se é na escola, se temmil crianças lá dentro, porque todos são marginais. Você vê, é uma políticacompletamente excludente, e a gente tem um tratamento puramente bélico, semrespeito algum. (ALVES, 2012, p.57).

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Conforme denunciaram os professores, o excesso da presença militarizada contrasta

com a ausência de assistência social por parte do Estado. Na comunidade em questão, não

havia posto de saúde, nem a presença de nenhum outro órgão público. Mesmo serviços

 básicos, como a coleta de lixo, correios, entre muitos outros, tinham que ser interrompidos por

causa dos confrontos frequentes. Para piorar a situação, os policiais costumavam cortar a água

e a luz antes das invasões, deixando aos moradores o encargo de fazer os reparos e custear o

 prejuízo.

 No ano passado eles estouraram os transformadores e ficamos dias sem água e semluz. Foi um tiroteio de três dias direto. Então agora os moradores se ajudam e fazemas manutenções eles mesmos, porque nem a Cedae [Companhia Estadual de Águas e

Esgotos], nem a companhia de luz, nem a Comlurb [Companhia Municipal deLimpeza Urbana], para o lixo, querem vir para cá. Nem os Correios temos mais.(ALVES, 2012, p.58).

 Nos depoimentos prestados pelas pessoas que residiam nas comunidades invadidas,

transparecem o horror e o desespero diante da situação de absoluto abandono político e

 jurídico. Uma vez que a própria polícia atuava de forma criminosa, não havia a quem recorrer.

Cada vez que tem um tiroteio a gente fica aqui, abandonada, vivendo horas de

horror. Porque não tem ninguém que se importe com a nossa vida, com a nossasituação, ninguém. (ALVES, 2012, p.65).

O Bope faz coisas horríveis. No lugar onde moro eles arrombam as casas, botamabaixo as portas e vão entrando. Se tiver homem lá dentro, matam. Graças a Deus,nunca pegaram meu marido dentro de casa, porque se pegarem homem dentro decasa, matam. Não querem nem saber quem é. Matam direto. Mulher e criança, eles batem, eles xingam, eles falam palavrões, e às vezes violam e matam. Não têmrespeito nenhum. (ALVES, 2012, p.90).

Foi um desespero, porque ali na minha esquina, a polícia fica escondida de um ladoe os bandidos ficam de outro. Quem aparece leva bala. Sair de casa é morrer. (...) Não querem nem saber se é criança ou não. Apareceu na rua, leva bala. Dos dois

lados, da policia e dos bandidos. (ALVES, 2012, p.92).

A arbitrariedade da atuação policial pode ser constatada também no uso do famigerado

elemento-surpresa, estratégia adotada pelo Estado no planejamento das megaoperações, com

vistas a surpreender os traficantes. Esse recurso aumentava sobremaneira os índices de

letalidade durante as invasões policiais, pois como elas não eram anunciadas, a população

local não contava com o tempo hábil para procurar abrigo e se proteger, permanecendo

acuada e desprotegida em meio ao fogo cruzado.

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mora na comunidade, sabe que tem certas regras. Se isso fosse verdade, todo mundoia sair da favela, nem que fosse para morar na rua. O traficante sabe que nessasocupações da polícia o morador é importante pra ele. (SALLES, 2013).

Em meio a essa guerra de informações, assistiu-se a uma profusão de discursos

conflitantes. Por exemplo, o discurso oficial, veiculado pela imprensa de ampla divulgação,

noticiava que os traficantes destruíam os geradores de energia. Santos  afirmou o contrário,

que a polícia era quem mandava cortar a energia elétrica, a água e as linhas telefônicas de

todos os moradores, durante as invasões.

Vê-se, dessa forma, que a alardeada ‘guerra ao tráfico’ reverberou uma guerra de

informações, peça chave das megaoperações policiais, pois antes que estas fossem colocadas

em prática, fazia-se necessário angariar o apoio popular, bem como voltar a opinião pública

contra o inimigo.

Dessa forma, é no ato de nomear - que compreende o poder de incluir ou de excluir,de qualificar ou desqualificar, de legitimar ou não, de dar voz, de tornar público -que se produzem as notícias sobre um real que, assim, está sendo construído. (COIMBRA, 2001, p.71). 

Percebe-se, assim, que o discurso midiático vê a guerra ao tráfico com “as lentes do

Estado repressor que mata bandidos” (ALVES, 2012, p.06), agravando, dessa forma, a

situação de desamparo, anomia e vitimização à que estão submetidos os moradores das

comunidades invadidas pela polícia.

1.7 – A construção do inimigo: acerca de sua significação expiatória e legitimação

 jurídica

Esse sangue é muito bom Já provei não tem perigoÉ melhor do que caféÉ o sangue do inimigo. (…) Bandido favelado Não se varre com vassouraSe varre com granada,com fuzil, metralhadora.[Canto do BOPE](THEOPHILO; ARAÚJO, 2003).

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Para Eugênio Raúl Zaffaroni, os discursos de índole totalitária ganharam um novo

impulso a partir da globalização e da revolução comunicacional, proporcionada pelas

tecnologias computacionais.

(...) este formidável avanço permite que se espalhe pelo planeta um discurso único,de características autoritárias, antiliberais, que estimula o exercício do poder punitivo muito mais repressivo e discriminatório, agora em escala mundial.(ZAFFARONI, 2007, p.53).

Para se referir a esta nova forma de totalitarismo, o autor cunhou a expressão

“autoritarismo cool” (ZAFFARONI, 2007, p.69), buscando indicar que, diferentemente das

formas mais tradicionais de autoritarismo, ele é assumido como uma moda que dispensa

qualquer convicção ideológica ou política mais profunda. Adere-se a esse discurso único para

não se tornar estigmatizado pela opinião pública, enfim, para fazer coro e reafirmar um

consenso popular. A argumentação de Zaffaroni acontece no contexto atual de um

interessante debate jurídico na área do Direito Penal, que gira em torno da doutrina do direito

 penal do inimigo, proposta por Gunther Jakobs (2007).

O direito penal do inimigo decorre da contraposição que se estabelece em relação ao

direito penal do cidadão. Este se destina àqueles reconhecidos como cidadãos de direito, que

consentem com as leis e as respeitam, enquanto que aquele se aplica a indivíduos

considerados perigosos para a ordem pública. Não se trata, para Jakobs (2007), de advogar a

favor da referida doutrina, mas sim de reconhecê-la e esclarecê-la, de modo a delimitar seu

campo de incidência. Isso significa assumir um dever ético de dar nome ao que tem vigorado

nas entrelinhas do Estado de Direito, mesclando-se sub-repticiamente com ele, e

eventualmente, sobrepujando-o. Do ponto de vista do jurista, reconhecer, delimitar e nomear

essa modalidade selvagem de direito seria menos prejudicial do que pretender ignorá-la, como

se ela não existisse.Apesar de considerar os entrelaçamentos e as inúmeras gradações possíveis entre as

duas modalidades de direito mencionadas, é possível distingui-las claramente: enquanto o

direito penal do cidadão mantém a vigência da norma, através da aplicação das sanções

 previstas no código penal, o direito penal do inimigo combate perigos, através da suspensão

da norma e da proclamação de medidas excepcionais de segurança. No primeiro, vigora o

Estado de Direito; no segundo, o estado de exceção policial e militarizado.

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 Na prática, a doutrina do direito penal do inimigo implica no recrudescimento das

medidas extraordinárias de segurança (tais como o U.S.A. Patriot Act  nos Estados Unidos),

 pautadas pelo sacrifício das liberdades individuais em nome do combate ao inimigo. O

autoritarismo inerente a esse modo de operacionalização do aparato jurídico, com vistas à

fabricação de um inimigo sob medida, entra em flagrante contradição com os princípios da

tradição democrática e da Declaração dos Direitos Humanos. No caso dos Estados Unidos, os

atentados de 11 de setembro de 2001 serviram como acontecimento propício para a nomeação

do terrorista como novo inimigo, destinado a preencher o lugar deixado vazio pela “implosão

soviética.” (ZAFFARONI, 2007, p.65). Tornou-se memorável a declaração de George Bush

(2001, tradução nossa), então presidente americano, após os atentados: “Cada nação, em cada

região, tem agora uma decisão a tomar. Ou estão conosco, ou estão com os terroristas” 12. Ou

seja, o inimigo não é apenas o terrorista, mas todo aquele que se opuser à política nacional de

segurança americana. Dizendo de outra forma, opor-se a esta política passa a ser considerado

como ato de terrorismo.

Apesar de ter se mostrado funcional, no sentido de viabilizar a nomeação e

individualização de um “inimigo crível”, (ZAFFARONI, 2007, p.65), a categoria de terrorista

é juridicamente imprecisa e obscura, permitindo que se inscreva sob seu domínio condutas

com grau de periculosidade muito variado. Mesmo assim ela serviu ao propósito de decretarum estado de emergência no território americano, acompanhado de uma guerra contra alguns

 países árabes, e uma implacável perseguição aos imigrantes de etnia considerada suspeita.

A necessidade de defender-se, por certo não mais dos atos concretos de homicídioem massa e indiscriminados, mas sim do nebuloso terrorismo, legitima não apenasas guerras preventivas de intervenção unilateral como também legislaçõesautoritárias com poderes excepcionais. (ZAFFARONI, 2007, p.66).

Vê-se, assim, que o inimigo declarado é um personagem central em torno do qualgiram os princípios fundamentais dessa doutrina. Seus princípios se baseiam na competência

 por parte do Estado em declarar guerra em nome da pacificação interna, ou seja, na

legitimação do poder de designar o inimigo, seja para neutralizá-lo, seja para destruí-lo. Dessa

forma, torna-se legítimo dispor da vida de algumas pessoas, declaradas como ameaça à ordem

do Estado.

12

  “Every nation, in every region, now has a decision to make. Either you are with us, or you are with theterrorists.”

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Segundo Zaffaroni (2007, p.17), crítico da doutrina de Jakobs, quanto mais concessões

são feitas ao direito penal do inimigo, maior é o risco de minimização da política e da

negociação, acarretando soluções violentas que, invariavelmente, desembocam em catástrofe.

Dessa forma, no contexto sociopolítico atual, coloca-se para a doutrina jurídica o seguinte

dilema: ou ruma-se para a política de negociação, que reconhece e respeita os direitos

humanos, ou se adota a “solução violenta, que arrasa com os direitos humanos e, mais cedo ou

mais tarde, acaba no genocídio.” (ZAFFARONI, 2007, p.17).

 No contexto aqui abordado, depoimentos por parte das autoridades de estado indicam

claramente a adoção do direito penal do inimigo como estratégia de intervenção em

comunidades pobres, sob o pretexto de exterminar bandidos e traficantes, considerados como

inimigos do Estado. Como exemplo, vale mencionar a declaração de guerra ao tráfico, por

 parte do governador Sérgio Cabral:

Estamos em guerra e vamos ganhar esta guerra, não tenho a menor dúvida. O Riochegou a um nível de violência e ousadia do tráfico absolutamente intolerável.Vamos acabar com essa musculatura do tráfico. Vamos continuar trabalhando, semshow pirotécnico, sem dizer que é amanhã ou depois de amanhã. Não vai ser tododia que teremos boas notícias. Vamos cometer equívocos, pode haver problemasaqui e acolá e vamos enfrentar. (AMORA, 2007).

Além da declaração de um estado de guerra, pode-se perceber que a morte de

inocentes já estava anunciada, qualificada pelo governador como “equívocos”, cota de

sacrifico necessária para assegurar a paz e a ordem. Fica claro, também, que os moradores das

comunidades invadidas não seriam avisados das intervenções policiais, que poderiam ocorrer

a qualquer momento.

Ao eleger seus inimigos internos e declarar-lhes guerra, as autoridades de estado

convocam a sociedade para escolher de que lado que ficará. Isso transparece no discurso do

Secretário de Segurança, José Mariano Beltrame: “É uma guerra, e numa guerra há feridos emortos. (...) Eu insisto em dizer que ela [a sociedade] tem de optar, definir de que lado está

nessa guerra.” (SOARES, 2007). Ou seja, aqueles que não estão a favor da política do Estado,

estão a favor do inimigo.

Dessa forma, o Estado recorre ao direito penal do inimigo, adotando “um

 procedimento de guerra” (JAKOBS, 2007, p.41), com vistas a destruir bunkers  terroristas,

eliminar suas fontes, “dominá-los, ou, melhor, matá-los diretamente, assumindo, com isso,

também o homicídio de seres humanos inocentes, chamado dano colateral.” (JAKOBS, 2007,

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 p.41). A própria indefinição do estatuto dos inimigos perseguidos assinala que se trata de uma

“persecução de delitos mediante a guerra.” (JAKOBS, 2007, p.41).

Surge, a partir do poder de nomear o inimigo, um incessante deslizamento semântico

quando se quer fazer referência a ele. Onde falta um nome, surge uma pluralidade de outros

nomes, criados a partir da delimitação de categorias de certos indivíduos que, “por suas

características ontológicas, forjadas por representações probabilísticas, deixam virtualmente

de cometer crimes para se tornarem, elas mesmas, crimes.” (BRASIL, 2007, p.98): favelado,

marginal, pobre, detento, traficante, bandido, vagabundo, fora-da-lei e assim sucessivamente.

Tais indivíduos tornam-se a própria encarnação do mal, que ameaça irromper a qualquer

momento no espaço de convivência social. Surge daí a necessidade de medidas drásticas, com

vistas a assepsiar e imunizar o corpo social. O extermínio constitui, precisamente, exemplo

 paradigmático dessas medidas de emergência.

O pensamento fundamentador do extermínio é o de que, eliminando-se oscomponentes de determinado segmento ou etnia, promove-se o bem para acoletividade. O sacrifício da parte em favor do todo, a extirpação da porção maldita,faria a sociedade encontrar seu estado ideal de normalidade, ou retornar ao mesmo.(CRUZ-NETO; MINAYO, 1994).

Desse modo, a classe ou segmento executor do extermínio coloca-se como autênticodetentor da justiça, em uma posição que, legitimada pelo ideal de benefício da coletividade,

confere-lhe poderes que se sustentam acima das leis e dos direitos constitucionais. Mesmo

que o termo extermínio soe como um recurso retórico imbuído de certo exagero, foi possível

encontrá-lo em várias fontes da pesquisa documental relacionadas ao tema, inclusive no

depoimento de moradores:

Para nós, está bem claro que existe uma política de segurança pública de extermínio,mas não dá pra acusar que é de extermínio mesmo porque não matam logo muitagente. Matam cinco pessoas num lugar, quinze no outro, vinte no outro e tal. Édifícil dizer "esses caras são exterminadores, genocidas". E tem essa questão detentar justificar de diferentes formas: dizendo que são ações isoladas, não fruto deuma política. No caso do Complexo do Alemão dizem que lá é lugar de gente má eterrorista. Dizem também que barriga de mulher de favela é fábrica de bandido.(ALVES, 2012, p.169).

Para Mário Elkin Ramírez (2007a), fenômenos como a segregação e o extermínio

 podem ser entendidos, conforme as indicações de Lacan (1974/s.d.), como decorrentes da

reconstituição do Nome-do-Pai no campo social, sob a forma de uma ordem de ferro, a partir

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do poder para nomear. “(…) são ordens para o extermínio, e não para a democracia, nem para

a convivência com a diferença. Seu princípio de funcionamento é o de uma segregação

radical.” (RAMÍREZ, 2007a, p.60, tradução nossa) 13.

Ramírez articula as ordens de ferro com a emergência de alguns fenômenos sociais que

são típicos em seu país, e que também ocorrem no Brasil. Como exemplo, ele menciona a

guerrilha urbana e as práticas de extermínio e limpeza social por parte de milícias e grupos

 paramilitares, que atuam com o propósito de eliminar sujeitos indigentes que habitam as ruas.

Esses sujeitos foram circunscritos em uma categoria social forjada a partir do discurso

capitalista: descartáveis. A partir dessa nomeação, eles se tornaram alvo de implacável

 perseguição por parte de seus executores.

 No contexto aqui abordado, a produção dos estereótipos de bandido, marginal ou

favelado constituem exemplos paradigmáticos dessa forma de nomeação, que traça o destino

daqueles que serão doravante encarregados de polarizar a agressividade, os conflitos e as

contradições sociais, inerentes a todo e qualquer espaço de convivência humana. Conforme

abordado anteriormente, esses sujeitos foram apontados pela mídia e por algumas autoridades

de estado como elementos desarmonizadores do grupo, responsáveis pelas mazelas sociais.

A fabricação de bodes expiatórios, conforme afirma Coimbra (2001), possibilita desviar

a atenção do público dos inúmeros problemas sociais, verdadeiros geradores da criminalidade:a corrupção dos agentes do estado, a má distribuição das riquezas, a marginalidade social, a

indigência política e as condições de precariedade a que estão sujeitos grandes contingentes

da população brasileira. Como decorrência, desconsidera-se a complexidade do problema

social colocado em jogo, mediante o uso do recurso simplista de interpretações maniqueístas e

lineares. Dessa forma, é possível perceber que a produção e legitimação do fenômeno do bode

expiatório, corolários da razão sacrificial, não acontecem sem estarem articuladas ao

 problema da criminalidade e às políticas de segurança pública, adotadas por parte do GovernoFederal. Essas políticas têm origem no saldo de duas décadas de regime militar, herança que,

segundo Wacquant (2004, p.06),

(...) continua a pesar bastante tanto sobre o funcionamento do Estado como sobre asmentalidades coletivas, o que faz com que o conjunto das classes sociais tendam aidentificar a defesa dos direitos do homem com a tolerância à bandidagem. Demaneira que, além da marginalidade urbana, a violência no Brasil encontra uma

13

 “(…) son órdenes para el exterminio, no para la democracia, ni la convivencia con la diferencia. Su principiode funcionamiento es el de una segregación radical”. 

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segunda raiz em uma cultura política que permanece profundamente marcada peloselo do autoritarismo.

Tal situação, segundo o autor, é o reflexo de uma conjunção de fatores presentes na

formação do estado democrático brasileiro, que busca suprir a carência do estado econômico e

social com um superinvestimento em um estado policial e penitenciário. A ausência de uma

sólida tradição democrática, aliada à presença de uma flagrante discrepância na distribuição

de renda, gera um regime de funcionamento feroz e predatório, que resulta na produção em

massa de miseráveis, sujeitos descartáveis que não encontram oportunidades de inserção no

mercado de trabalho. Advém daí a segregação e o eventual extermínio desses sujeitos, que se

tornam alvo da violência inerente a um ordenamento político caracterizado pelo estado de

guerra permanente, pautado pela militarização da segurança pública.

Ao desconsiderar a complexidade dos múltiplos fatores sociais, políticos e econômicos

envolvidos no problema da produção em massa de sujeitos miseráveis, as soluções adotadas,

 por parte das autoridades responsáveis, incidem de forma prevalente no campo policial.

Conforme afirma Wacquant (2004, p.05),

A insegurança criminal no Brasil tem a particularidade de não ser atenuada, masnitidamente agravada pela intervenção das forças da ordem. O uso rotineiro da

violência letal pela polícia militar e o recurso habitual à tortura por parte da políciacivil, as execuções sumárias e os ‘desaparecimentos’ inexplicados geram um climade terror entre as classes populares, que são seu alvo, e banalizam a brutalidade noseio do Estado.

Ao proceder dessa maneira, alimenta-se o círculo vicioso que oscila entre a violência

criminal e a violência policial, gerando um sentimento crescente de insegurança generalizada.

A angústia despertada pelo constante estado de alerta leva as autoridades a adotar medidas

cada vez mais repressivas e violentas que, eventualmente, trespassam os limites da legalidade.

A partir dessas considerações, é possível estabelecer uma aproximação inicial do

 problema do sacrifício, orientada pelas indicações de Freud e Lacan. Nesse sentido, destaca-se

que as práticas sacrificiais aqui concernidas - segregação e extermínio – podem ser entendidas

como uma forma de consagração maligna, que tramita à margem dos campos religioso e

 político, alçando o objeto de sacrifício a um topos  anômico. Esse objeto, constituído por

segmentos cada mais amplos de indivíduos e grupos, é marcado com o estigma de vida

descartável e sem valor. 

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2 - A PERTINÊNCIA DA POBLEMÁTICA DO SACRIFÍCIO PARA A PSICANÁLISE

Sustentamos a hipótese de que, na psicanálise, os

 paradoxos inerentes aos Nomes-do-Pai conduzemnecessariamente aos paradoxos do sacrifício. Osacrifício está indissoluvelmente ligado aos Nomes-do-Pai e seus paradoxos; ou seja, refere-se tanto ao desejocomo às faces do gozo do pai. (AMBERTÍN, 2009a, p.25). 

Mesmo advertindo que o sacrifício não emerge no campo psicanalítico com a

dignidade de um conceito, é importante não desconsiderar que ele marca presença, tanto na

obra freudiana como lacaniana, ao longo de momentos cruciais na elaboração teórica desses

autores. Em Freud, a temática do sacrifício emerge em momentos cruciais de suas

formalizações teóricas, particularmente naquelas que buscam estender seu alcance para o

contexto social, como “Totem e tabu” (1913/1987), “O mal estar na civilização” (1930/2010),

“Psicologia de grupo e análise do eu” (1921/2010) e “Moisés e a religião monoteísta” (1939

[1934-38], tradução nossa) 14.

Em âmbito clínico, pode ser detectado em diferentes versões, mas aqui se elege

algumas: no sacrifício heroico do Homem dos ratos no campo de batalha, pagando com a vida

sua dívida simbólica com o pai (1909/1987), e no martírio sacrificial de Daniel Paul Schreber,oferecido em benefício de seu deus obscuro (1911/1987).  Também faz uma aparição

alucinada, sob a forma de uma automutilação, no caso sobre o “Homem dos lobos” (1918

[1914] /2010), e na intriga histérica de Dora 15  (1905 [1901] /1987), na qual ela se oferece

como coisa sacrificada em nome do gozo do pai, bem como no caso da jovem homossexual

(FREUD, 1987/1920), sob a forma de uma perigosa passagem ao ato. Nesse contexto, pode-se

também destacar o texto “Luto e melancolia” (1917 [1915] /2010), no qual o sacrifício

assume sua forma mais letal, na via do autoextermínio do sujeito. Por fim, vale mencionartambém a narrativa de Édipo Rei, herói trágico que “arranca seus olhos, sacrifica-os, oferece-

 14 Moisés y la religión monoteísta.15 “... a Sra. K. também não a amara por ela mesma, e sim por causa do pai. Ela a havia sacrificado sem um

momento de hesitação para que seu relacionamento com o pai de Dora não fosse perturbado. Essa ofensa talvez atenha tocado mais de perto e tido maior efeito patogênico do que a outra com que ela tentou encobri-la, ou seja, ade ter sido sacrificada pelo pai (...) Dora dizia a si mesma incessantemente que seu pai a sacrificara a essamulher, fazia demonstrações ruidosas de que a invejava pela posse do pai e, dessa maneira, ocultava de si mesma

o oposto: que invejava o pai pelo amor da Sra. K. 

e que não perdoava à mulher amada a desilusão que ela lhecausara com sua traição.” (FREUD, 1905 [1901]/1987, p.64).

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Lacan (1964/1988, p.259) afirma que as suas “formas pretensamente ultrapassadas” não

cessam de ressurgir, constituindo um “mistério” velado pelas “premissas hegeliano-

marxistas”, que nada mais fazem do que obscurecê-lo:

Afirmo que nenhum sentido de história, fundado nas premissas hegeliano-marxistas,é capaz de dar conta dessa ressurgência, pela qual verifica-se que a oferenda, adeuses obscuros, de um objeto de sacrifícios, é algo a que poucos sujeitos podemdeixar de sucumbir, numa captura monstruosa. (LACAN, 1964/1988, p.259). 

Mais adiante, na sequência dessa passagem, Lacan reforça sua advertência com

relação ao fascínio sacrificial:

A ignorância, a indiferença, o desvio do olhar podem explicar sob que véu aindaresta escondido esse mistério. Mas, para quem quer que seja capaz de dirigir, paraesse fenômeno, um olhar corajoso- e, ainda uma vez, há certamente poucos que nãosucumbam à fascinação do sacrifício em si mesmo -, o sacrifício significa que, noobjeto de nossos desejos, tentamos encontrar o testemunho da presença do desejo doOutro que eu chamo aqui o ‘Deus obscuro.’ (LACAN, 1964/1988, p.259). 

Ao prosseguir em sua argumentação sobre o sacrifício, Lacan se coloca na

encruzilhada entre o  Amor Intelectualis Dei (Amor intelectual a Deus), de Espinosa, e o

imperativo categórico kantiano. Sem hesitação, faz sua opção por Kant, indicando que um

exame mais detido da lei moral kantiana permite revelar o desejo em estado puro. Esse desejo,

segundo Lacan, é

(...) aquele mesmo que termina no sacrifício, propriamente falando, de tudo que éobjeto de amor em sua ternura humana – digo mesmo, não somente na rejeição doobjeto patológico, mas também em seu sacrifício e em seu assassínio. É por isso queescrevi ‘Kant com Sade.’ (LACAN, 1964/1988, p.260).

É interessante observar como, ao abordar o sacrifício, Lacan passa da temática do

holocausto nazista para a articulação do imperativo categórico kantiano. Não se deve esquecer

que o seminário “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” (1964/1988), no qual essa

discussão acontece, ocorre um ano depois da publicação do célebre livro de Hannah Arendt,

“Eichmann en Jerusalen.” (1963/1999). Nesse livro, Arendt expõe um de seus mais célebres

conceitos, a ‘banalidade do mal’, depois de proceder a uma análise do julgamento de Adolf

Eichmann, oficial nazista acusado pela morte de milhares de judeus em campos de

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concentração. Na ocasião do julgamento, Eichmann evocou a ética kantiana do dever em sua

defesa, afirmando tê-la seguido à risca 19.

Há, nas passagens evocadas do referido seminário (LACAN, 1964/1988), um

deslizamento semântico do termo sacrifício: da oferenda sacrificial (sacrifício ritual ou

sacrifício de sangue) Lacan passa ao sacrifício moral, entendido como renúncia, a partir do

imperativo categórico kantiano. Na leitura proposta por Baas (2001), ao invés de se tomar a

renúncia como denominador comum das variadas formas de sacrifício, deve-se proceder de

forma inversa, tomando a própria incondicionalidade da lei moral enquanto sacrifício,

assassinato de todo e qualquer objeto patológico, seja ele ligado ao prazer, à sensibilidade, à

simpatia ou à ternura. Vale dizer que, no sentido kantiano, o caráter patológico do objeto é

sempre marcado pela contingência das inclinações afetivas e das paixões humanas, que devem

ser submetidas á estrita formalidade da lei moral expressa no dever, entendido pelo filósofo

como ato de uma vontade pura e autônoma, isenta de quaisquer móbeis empíricos ou

 passionais.

A partir dessas indicações, torna-se possível afirmar que Lacan buscava alcançar uma

“significação geral do sacrifício” (BAAS, 2001, p.85), o que implica ir além da consideração

do sacrifício como fenômeno histórico, social ou antropológico. Essa significação

corresponde exatamente à unificação de dois significados que, normalmente, se encontramseparados em outras propostas de abordagem: o sacrifício moral, entendido como renúncia do

sacrificante, e o sacrifício ritual ou de sangue, que coloca em cena uma oferenda, objeto

sacrificado.

É possível demonstrar como importantes teorias sociológicas e antropológicas,

 pautadas no evolucionismo, buscaram manter essa separação. Edward Burnett Tylor

(1871/1873) imprimiu o tom que seria seguido posteriormente por outros antropólogos e

sociólogos, na abordagem do sacrifício. Em seus estudos acerca das culturas primitivas e seussistemas religiosos, Tylor (1871/1873) concebia o animismo como uma forma menos

evoluída das religiões, na qual o sacrifício ritual representava uma função fundamental. A

19  Acerca dessa questão, outros desenvolvimentos elaborados pelo pesquisador podem ser encontrados em:CRUZ, Alexandre Dutra Gomes. Entre o dever da liberdade e a servidão voluntária: contribuições da psicanálise para o pensamento ético em nossa época. In: ROSÁRIO, Ângela Buciano; MOREIRA, Jaqueline de Oliveira(Orgs.). Culpa e laço social; possibilidades e limites. Barbacena: EdUEMG, 2013, p.47-66.

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oferenda sacrificial seria uma forma de ajustar as contas com as deidades, em sociedades que

ainda não haviam desenvolvido o abstrato senso ético da justiça distributiva.

Mas de forma geral, assim como a doutrina animista das raças inferiores ainda não éuma instituição ética, mas sim uma filosofia do homem e da natureza, o dualismoselvagem ainda não é uma teoria de princípios morais abstratos. (TYLOR,1871/1873, p.318, tradução nossa).20 

O animismo, segundo Tylor, não seria propriamente imoral, mas amoral. A

moralidade seria uma conquista a ser efetivada em estágios mais avançados do

desenvolvimento ético e religioso das culturas. Nesse sentido, as religiões monoteístas,

 particularmente o cristianismo, se constituiriam como formas culturais mais evoluídas, nas

quais o sacrifício ritual via oferenda cedeu lugar ao sacrifício moral via renúncia, nível

teleológico final de seu progressivo desenvolvimento.

O evolucionismo de Tylor exerceu certa influência em teorias sociológicas e

antropológicas posteriores, como a do antropólogo e sociólogo francês Marcel Mauss. Em seu

livro “Sobre o sacrifício” (MAUSS; HUBERT, 1968 [1899] /2005), escrito em parceria com o

sociólogo Henri Hubert, é possível perceber indícios do evolucionismo de Tylor:

À dádiva sucedeu a homenagem em que o fiel não exprime mais qualquer esperançade retorno. Para que daí o sacrifício se tornasse abnegação e renúncia não havia maisque um passo; assim, a evolução fez o rito passar dos presentes do selvagem aosacrifício de si. (MAUSS; HUBERT, 1968 [1899] /2005, p.8).

Essa forma, supostamente mais evoluída, acabada, enfim sublimada (é o termo usado

 por Mauss) do sistema sacrificial pode ser constatada claramente no cristianismo, que logrou

transportar sua eficácia simbólica “do mundo físico para o mundo moral.” (MAUSS;

HUBERT, 1968 [1899] /2005, p.99). O sacrifício do cristo, filho de Deus, assinala o fim do

sacrifício de sangue, e o início de um pacto, a aliança que enlaça a comunidade com o próprio

Deus, perpetuada no ritual da missa.

Os retornos ofensivos do caos e do mal constantemente requerem novos sacrifícios,criadores e redentores. Assim transformado e como que sublimado, o sacrifício seconservou na teologia cristã. Sua eficácia foi simplesmente transportada do mundo

20 “But as in general the animistic doctrine of the lower races is not yet an ethical institution, but a philosophy of

man and nature, so savage dualism is not yet a theory of abstract moral principles”.

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físico para o mundo moral. O sacrifício redentor do deus perpetua-se na missa diária.(MAUSS; HUBERT, 1968 [1899] /2005, p.99).

Dessa forma, o sacrifício ao deus, intermediado pela oferenda de uma vítima

sacrificial, progressivamente cede espaço para o “sacrifício do deus” (o cristo sacrificado,

filho do próprio deus), no qual já não há a necessidade de outro intermediário. Segundo os

autores, “é no sacrifício de uma pessoa divina que a noção do sacrifício chega à sua mais alta

expressão.” (MAUSS; HUBERT, 1968 [1899] /2005, p.83). Nessas passagens, pode-se

 perceber a presença de elementos do pensamento evolucionista de Tylor, que considerava o

cristianismo como uma forma religiosa mais evoluída do que o culto politeísta às “fetish-

deities” (TYLOR, 1871/1873, p.270) pagãs.

 Nas teorizações freudianas, as marcas do evolucionismo de Tylor também estão

 presentes, como se pode perceber nas elaborações acerca do animismo e do totemismo

apresentadas em “Totem e tabu” (1913/1987) e, também, em “Moisés e o monoteísmo”

(FREUD, 1939 [1934-38], tradução nossa) 21, texto no qual Freud afirma que o triunfo da

espiritualidade sobre a sensualidade assinala um progresso da cultura. Com efeito, Freud

interpreta esse deslocamento como uma passagem da maternidade para a paternidade, a

 primeira tomada como primado da experiência sensível, e a segunda assinalada com um

índice de incerteza. Dessa forma, a passagem ao pai marca o triunfo do espírito, da dimensãosimbólica, em relação ao corpo, à sensibilidade, enfim, à dimensão que Kant (1797/2003)

qualifica de patológica.

Mas, é na obra de William Robertson Smith que Freud buscará fundamentos para

desenvolver o problema do sacrifício ritual, a partir do estudo do totemismo. Os estudos de

Robertson Smith (1894/1927) indicam que a função do sacrifício nem sempre foi a mesma.

Em suas origens, o sacrifício tinha a significação de um ato de confraternização entre a

divindade e seus seguidores: “A ênfase colocada no sacrifício animal nos antigos rituaiscorresponde à ênfase em um tipo de sacrifício que não consiste meramente no pagamento de

um tributo, mas sim em um ato social de comunhão entre a divindade e seus adoradores.”

(ROBERTSON SMITH, 1894/1927, p.224, tradução nossa).22  Sendo assim, o repasto

sacrificial não representava nada mais do que “alimento dos deuses” (ROBERTSON SMITH,

21 Moisés y la religión monoteísta.22 “The predominance assigned in ancient ritual to animal sacrifice corresponds to the predominance of the type

of sacrifice which is not a mere payment of tribute but an act of social fellowship between the deity and hisworshippers”.

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1894/1927, p.224, tradução nossa) 23, que deveria ser compartilhado entre os homens e os

deuses.

Com o passar do tempo, no entanto, conforme afirma Robertson Smith (1894/1927), o

sacrifício entre os hebreus assumiu uma significação distinta. Se inicialmente significava de

comunhão entre o sacrificante e seu deus (Robertson Smith se refere a essa modalidade como

 zèbah), após a Lei Levítica, o sacrifício assume a função de oferenda ao Deus, da qual o

sacrificante não deve tomar parte (a essa modalidade, ele nomeia minha). O repasto sacrificial

deixa de ser um momento de confraternização para se tornar uma oferenda que não deve ser

tocada ou consumida por nenhum integrante da comunidade sacrificante, exceto pelos

sacerdotes, únicos autorizados a fazê-lo. Após o ritual sacrificial, os despojos da vítima

devem ser consumidos pelos sacerdotes, e o restante deve ser queimado e oferecido em

holocausto assinalando, dessa forma, seu desaparecimento. Em suma, Robertson Smith afirma

que a significação do sacrifício, na primeira modalidade mencionada, é um ato de comunhão,

enquanto que, na segunda, assume significação de uma dívida, de um tributo a ser pago aos

deuses 24.

Para Robertson Smith (1894/1927), a comensalidade instituía o primeiro laço social,

através do qual se metaforizava a relação de parentesco, que implicava o reconhecimento de

se partilhar do mesmo sangue e da mesma carne. O sacrifício desempenha uma função crucialnesse reconhecimento, uma vez que, mediante o consumo da vítima, ele instaura o laço de

 parentesco e permite a sua regulação. Freud frisou que o banquete totêmico pode ser situado

como o primeiro festival da humanidade, que celebrava a temporária suspensão dos tabus

interditores. “O excesso faz parte da essência do festival; o sentimento festivo é produzido

 pela liberdade de fazer o que via de regra é proibido.” (FREUD, 1987/1913, p.144). Nessas

ocasiões, regadas pelo excesso, a solene transgressão das proibições, codificadas nos tabus,

expressam uma liberdade paradoxal, uma vez que assumem a forma de uma obrigação. Atransgressão é, portanto, uma ordem.

A função sacrificial da comensalidade, segundo Robertson Smith, permitia a

instauração de um laço de sangue entre os membros do clã totêmico e o deus adorado. Além

do vínculo com essa figura supra-terrena, o sacrifício funcionava como argamassa do laço

23 All sacrifices laid upon the altar were taken by the ancients as being literally the food of the gods”.24 “In short, while the zèbah turns on an act of communion between the deity and his worshippers, the minha (as

its name denotes) is simply a tribute”. (ROBERTSON SMITH, 1894/1927, p.240).

 

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social, uma vez que exigia a participação e cumplicidade de todos os membros do clã. Tal

cumplicidade era necessária, uma vez que o animal devorado durante o festim era considerado

sagrado.

Como bem observa Freud (1913/1987, p.138), via de regra

(...) o sacrifício envolvia um festim e um festim não podia ser celebrado sem umsacrifício. O festim sacrificatório era uma ocasião em que os indivíduos passavamalegremente por cima dos seus próprios interesses e acentuavam a dependênciamútua existente entre eles e o seu deus.

Compartilhar o mesmo alimento fortalecia a convicção entre seus comensais de que

eram feitos da mesma carne e do mesmo sangue, e deveriam partilhar cumplicidade e

obrigações sociais recíprocas. Nessa perspectiva, “o sacrifício constituía um sacramento e o

 próprio animal sacrificado era membro do clã” (FREUD, 1913/1987, p.142), personificação

da própria divindade que, ao ser consumida, permitia aos integrantes a renovação da aliança

fraterna e o fortalecimento do sentimento de identidade com ela. Essa identidade, buscada

através da semelhança, é abordada no trabalho de Robertson Smith (1894/1927), ao

mencionar a existência de rituais nos quais os integrantes da comunidade sacrificante fazem

uso de trajes e fantasias, que aliados ao mimetismo expresso em dança e gestos, permitiam

que os membros de um determinado clã totêmico se assemelhassem ao máximo com o animal

sacrificado. Essa forma de identificação mimética, imaginária, evoluiria para um patamar

mais elaborado, sob forma do espírito de comunhão e renúncia, valorizado pela religião cristã.

Segundo Ambertín (2009a), as indicações de Robertson Smith quanto à ambiguidade

do termo sacer  permitem situar o sacrifício em duas vertentes distintas. Na primeira delas, o

sacrifício é um ato de sociabilidade, ou seja, laço social que viabiliza tanto o fortalecimento

da ligação com a divindade, quanto a identificação dos membros entre si. Na segunda

vertente, o sacrifício pode ser situado como um autodespojo dessacralizado, “extrínseco aoritual religioso.” (AMBERTÍN, 2009a, p.42).

 No primeiro caso, o ato de solidariedade comunal proporcionada pelo sacrifício vai

além da mera renúncia, constituindo-se como uma “ação sagrada.” (AMBERTÍN, 2009a,

 p.42). Nessa vertente, há a possibilidade de laço social entre os integrantes da comunidade e

seu Deus, e também entre os membros da comunidade entre si. No segundo caso, a autora

afirma que a aposta sacrificial circula “externamente ao estrito campo religioso”

(AMBERTÍN, 2009a, p.42), inscrevendo-se na banalidade da vida cotidiana. Ela não deixa de

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destacar também que, apesar de se situarem fora do campo religioso estrito, essas práticas

sacrificiais persistem nos ecos da nostalgia pelo pai. Neste sentido, vale lembrar que os

estudos sobre práticas e atos sacrificiais levaram Freud (1901/1987) a destacar esta vertente

do sacrifício como autodespojo, que pode ser percebida sob forma de descarte de objetos ou

da própria vida. Será necessário dedicar a estas considerações uma análise mais detalhada,

uma vez que, a partir delas, torna-se possível destacar importantes considerações acerca da

elaboração da questão do sacrifício em psicanálise.

2.1 - O ato sacrificial e suas expressões dessacralizadas no cotidiano

Articular o ato sacrificial com algumas ocorrências corriqueiras da vida cotidiana

implica aceitar a premissa de que, nesse contexto, ele não se inscreve como um acontecimento

ritualizado, delimitado em uma dimensão que lhe seria própria. Nem sempre é possível

reconhecê-lo, quando emerge em manifestações dessacralizadas e, por vezes, violentas, no dia

a dia.

Ao abordar os atos sacrificiais, Freud (1901/1987) recorre tanto a contribuições

advindas de sua clínica quanto a episódios de sua vida pessoal. Neles, um determinado objetoserve como oferenda, cumprindo uma função específica para cada caso: gratidão ao destino,

 barganha, e por fim, execução disfarçada, na qual o objeto se torna descartável, ao perder seu

 brilho agalmático.

Quando menciona a oferenda de objetos como forma de aplacar a fúria do destino,

Freud (1901/1987) propõe a análise de dois episódios nos quais ele, agindo de forma

aparentemente despropositada e desajeitada, quebra ou danifica objetos de coleção pelos quais

nutria grande afeição. No primeiro relato, ele nos traz o relato da quebra de uma estátua daVênus de Médici, sobre a qual atira furiosamente o chinelo que calçava, em um rompante

inexplicável. Enquanto observava o precioso objeto sendo despedaçado, ele cita

impassivelmente os versos do escritor e poeta alemão, Heinrich Christian Wilhelm   Busch:

“Oh! a Vênus de Medici. Catapimba! Agora a perdi!” (FREUD, 1901/1987, p.153).

Como bom observador, não escapou à Freud a estranha indiferença e impassibilidade

diante da quebra de um objeto tão valioso e estimado. Ao analisar o fato, concluiu que se

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tratava de um ato sacrificial, cujo significado era de gratidão pela recuperação de um ente

querido que estivera gravemente enfermo.

Meu acesso de fúria destrutiva serviu, portanto, para expressar um sentimento degratidão ao destino, e me permitiu realizar um ‘ato sacrificial’, como se tivesse feitouma promessa de sacrificar isto ou aquilo como uma oferenda, caso elarecuperasse a saúde! (FREUD, 1901/1987, p. 154, grifo nosso). 

Comenta ainda que a escolha pela Vênus de Médici nada mais foi do que uma “galante

homenagem à convalescente” (1901/1987, p.154), sendo digna de nota a precisão de sua

 pontaria ao quebrar unicamente essa estátua, que estava em meio a muitos outros objetos

delicados.

 No segundo relato, Freud conta como repreendeu de forma canhestra um amigo, a

 partir da interpretação que lhe deu de alguns indícios do seu inconsciente. Sentindo-se

ofendido, este amigo lhe escreveu uma carta reprovando sua atitude e dizendo que ele deveria

reservar o tratamento psicanalítico apenas aos seus pacientes. Constrangido com o episódio,

Freud responde desculpando-se pelo mau jeito. Enquanto escrevia essa carta com o pedido de

desculpas, de forma aparentemente acidental danificou o verniz de uma figura egípcia recém-

adquirida, com a caneta que empunhava. Ao comentar esse episódio, Freud (1901/1987,

 p.154) afirma que se tratava de um sacrifício propiciatório para afastar um mal: “Entendi que

havia causado essa calamidade para impedir outra maior. Por sorte, ambas as coisas - a

amizade e a figura - puderam ser cimentadas de modo a não se notar a rachadura”.

Há um terceiro relato nessa série de casos, que diferentemente dos anteriores, narra a

destruição de um objeto que já não gozava da estima do dono sendo, portanto, descartável:

uma velha bengala danificada. Ao quebrá-la durante uma brincadeira com o neto, Freud

aproveitou a ocasião para se desfazer dela. Nesse caso, trata-se de uma “execução disfarçada”

(FREUD, 1901/1987, p.154), manifesta no descarte de um objeto que perdeu o encanto. Nesses casos, Ambertín (2009a, p.64) comenta que a libra de carne não entra em jogo,

 pois um objeto contingente pode assumir seu lugar. Dessa forma, há “economia de sacrifício”,

que transita pela via do desejo e da concessão de dons. No último exemplo narrado, o objeto

não é revestido pelo encanto agalmático, e se torna simplesmente um despojo. Apesar dessa

diferença, em todos os três exemplos mencionados, a integridade corporal do sujeito é

mantida, através da interposição de um objeto intermediário como oferenda.

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Seguindo a leitura dos desenvolvimentos freudianos na “Psicopatologia da vida

cotidiana” (1901/1987), é possível articular outros pontos importantes relativos aos atos

sacrificiais. Se nos exemplos referidos anteriormente Freud era o protagonista, nos relatos

apresentados na sequência ele recorre à sua experiência clínica, que comprova que o ato

sacrificial pode manifestar-se com extrema violência. Em dois exemplos relatados, a oferenda

sacrificial não é nada menos do que uma parte de si, a “libra de carne.” (LACAN, 1962-63/

2005, p.139).  Nesses casos, nada resta ao sujeito senão oferecer o próprio corpo em sacrifício.

O primeiro caso relata acerca de uma paciente (1901/1987, p.165), que após tropeçar

na calçada bateu com o rosto no muro de uma casa. Não havendo esboçado nenhuma reação

 para protegê-lo, ela acabou se machucando muito, o que a levou temer pela perda da visão. 

Esse ato foi interpretado, por Freud, como um ato sacrificial que assumiu a forma de uma

autopunição por um aborto feito tempos atrás. No momento do tropeço a mulher estava indo

em direção a uma loja comprar um adorno para o quarto dos seus filhos, e tudo se passa como

se uma recriminação supereuóica, não formulada, lhe dissesse: “Mas para que você precisa de

um enfeite para o quarto das crianças, você que mandou matar seu filho? Você é uma

assassina! O grande castigo com certeza chegará!” 25. Após a consulta médica, a paciente

comenta que se sentia aliviada por saber que nada mais grave lhe sucederia como

consequência do incidente, pois acreditava que já havia sido “suficientemente punida.”(FREUD, 1901/1987, p.166).

O segundo caso é o de um carpinteiro que consulta Freud (1901/1987, p.164) para

saber sobre a possibilidade de extração cirúrgica de um estranho objeto que passou a integrar

o seu corpo: uma bala de revólver, alojada em sua têmpora esquerda. Depois de avaliar o

caso, Freud conclui que a remoção do projétil não era indicada, pois exceto pela cicatriz do

ferimento, acompanhada de ocasionais dores de cabeça, o paciente se sentia “perfeitamente

 bem”.O curioso, nesse relato, é a análise das circunstâncias que o envolviam. O paciente

alega que se feriu acidentalmente, ao brincar com o revólver do irmão, que julgava

descarregado. Colocou-o, então, contra a própria cabeça e efetuou o disparo. Ao questioná-lo

Freud (1901/1987, p.164) se convence de que a “negligência em certificar-se de que a arma

25  Não passam despercebidas as ressonâncias que essa ação sacrificial tem com a tragédia “Édipo Rei”, na qual o

herói sacrifica os próprios olhos após descobrir a significação parricida e incestuosa de suas ações. Cegar-se pode ser interpretado simbolicamente como um ‘não querer ver’, mas ater-se apenas a essa interpretação é

desconsiderar a dimensão do gozo, que encontra satisfação expiatória/masoquista no ato sacrificial.

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tosquiadores, ele não abriu a boca.” (ISAÍAS, 53:7). Há, portanto, cumplicidade muda do

sujeito com o funesto destino que o espreita. 

É digno de nota o posicionamento ético freudiano diante do reconhecimento da

implicação do sujeito no ato sacrificial. Dirigindo a essas práticas um “olhar corajoso”

(LACAN, 1964/1988, p.259)  e advertido, Freud situa, não sem uma ponta de humor, a

impiedade do seu posicionamento ético, que visando à implicação do sujeito com seus atos,  

recusa render-se diante do fascínio sacrificial: “Quando um membro de minha família se

queixa de ter mordido a língua, imprensado um dedo etc., não recebe de mim a compaixão

esperada, mas sim a pergunta: ‘Por que você fez isso?’” (FREUD, 1901/1987, p.162).

As elaborações freudianas aqui apresentadas abrem caminho para uma reflexão

aprofundada sobre as práticas sacrificiais na atualidade. A partir delas, torna-se possível

descortinar um vasto e promissor horizonte de pesquisa, que convida ao diálogo a psicanálise

e outros campos do saber, como a sociologia, a antropologia e a filosofia. O campo de

 pesquisa que aí emerge aponta para um leque amplo de fenômenos ligados à violência:

exposição a condutas de risco, vitimização, automutilações, ferimentos autoinfligidos,

assassinatos, suicídios, entre muitos outros. Nesse momento da elaboração freudiana, no

entanto, eles ainda são entendidos como atos falhos, que ocorrem de forma aparentemente

acidental, sem contar com o reconhecimento intencional do seu autor. Ainda que hajaintencionalidade consciente implicada no ato sacrificial, Freud reafirma que a causalidade

inconsciente, sempre atuante, escapa a essa intencionalidade:

Mesmo a intenção consciente de cometer suicídio escolhe sua época, seus meios esua oportunidade; e é perfeitamente consonante com isso que a intençãoinconsciente aguarde uma ocasião que possa tomar a seu encargo parte da causação.(FREUD, 1901/1987, p.163).

Ainda que se considere que, nesse momento de sua elaboração teórica Freud ainda nãotenha elaborado os conceitos de pulsão de morte e masoquismo primário, nem por isso ele

deixou de indicar a importância que eles viriam a assumir na abordagem desses fenômenos,

cuja raiz reside em uma “tendência à autopunição, que está constantemente à espreita e

comumente se expressa na autocensura.” (FREUD, 1901/1987, p.161). Nessa perspectiva, que

Freud adota no início de sua elaboração teórica, as práticas sacrificiais se inscrevem como

desfechos trágicos do conflito psíquico.

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Em um momento posterior de sua elaboração, entretanto, será possível indicar que

essas práticas podem assumir a forma de violentas passagens ao ato, ofuscando os sujeitos aí

implicados com o fascínio mortífero que irradiam. Ambertín (2009a) afirma que elas se

diferenciam das formações do inconsciente, uma vez que não provocam enigmas que

 permitiriam a incerteza subjetiva. Sendo assim, quando tomados pelo brilho agalmático que

emana dessas práticas, os sujeitos se entrincheiram na miséria de seu destino, recusando o

reconhecimento de sua implicação nelas.

 Nessa vertente sacrificial pode ser situado todo tipo de ação que implique autopunição

diante de uma culpa inconfessável, induzindo seu executor ao gozo mudo da “culpa de

sangue” (AMBERTÍN, 2009a, p.50). No entanto, Ambertín (2009a) alerta que é necessário

diferenciar essa vertente mortífera do sacrifício “de outras circunstâncias nas quais a

subjetividade deve suportar situações-limite uma vez que foi capturada em emboscadas

geradas por carrascos atrozes” (AMBERTÍN, 2009a, p.57). Nesses casos, em que “se está sob

a coação de delinquentes, terroristas ou sicários do terrorismo de Estado” (AMBERTÍN,

2009a, p.58), ou em que “feitiços mórbidos impelem para a aniquilação dos povos, como se

constata nos holocaustos (genocídios) dos séculos passado e presente” (AMBERTÍN, 2009a,

 p.95), o que acontece é algo muito diferente: “o carrasco toma impunemente o destino do

sujeito ou dos povos em suas mãos, sem que haja, necessariamente, cumplicidade”(AMBERTÍN, 2009a, p.58). Mesmo nessas circunstâncias, que dispensam a cumplicidade

masoquista, pode-se situar a razão sacrificial como fundamento dessas práticas, que se

inscrevem na esfera política e colocam em jogo a vida de muitos.

2.2 - O sacrifício e a constituição do laço social

Ao leitor do texto freudiano, não é novidade que o sacrifício se constitui como um

elemento estrutural, que pode ser situado na base do processo civilizatório. Sabe-se que Freud

nunca perdeu uma chance de extrapolar as hipóteses tecidas no contexto do trabalho clínico

 para o âmbito coletivo. Sendo assim, o conflito psíquico, base da constituição da

subjetividade, pode ser pensado em uma extensão sem solução de continuidade, como

constituinte do laço social.

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sendo-lhes concedida em pequenos montantes, apenas em certas ocasiões especiais, para

serem fruídas em cumplicidade com o grupo.

Ainda que a renúncia de uma satisfação direta das pulsões possa ser vista como

condição para o estabelecimento do laço social, uma vez que funciona como uma barreira

contentora da agressividade e dos excessos pulsionais, eventualmente ela pode se tornar

 patogênica, quando exige sacrifícios desmesurados em nome de um ordenamento moral

excessivamente rígido. E isso leva Freud a concluir, nesse momento de seu percurso teórico,

que a moral sexual civilizada constitui a base da doença nervosa moderna (FREUD,

1908/1992).

Durante sua análise da estrutura repressiva da moral sexual civilizada, Freud não

desconsidera as variáveis subjetivas, que permitem pensar, ao lado da dimensão coletiva do

laço social, o campo da implicação de cada sujeito com esse laço. A renúncia pulsional não

assume uma significação de sacrifício para todos; alguns a fazem sem maiores problemas,

chegando mesmo a fazê-lo com gosto, enquanto que outros necessitam adoecer para atendê-

las. Caso não consiga conformar-se aos imperativos morais ou legais de sua cultura, resta ao

sujeito enfrentar a sociedade como um libertino ou criminoso, um “fora da lei.” (FREUD,

1908/1992, p.168, tradução nossa).29 Este é o último recurso para aquele que não conseguiu

estabelecer sua exceção como grande homem ou herói.A submissão moral, acompanhada do sacrifício de si, constitui desde tempos

memoriais o sinal que permite reconhecer o indivíduo virtuoso. Este deveria saber conter suas

 paixões e manter a temperança. Assimilado pelo logos  cristão, o ideal grego da virtude

encontraria outras formas de expressão, como o claustro, o celibato e as práticas de jejum.

Até esse ponto Freud não traz grandes inovações, mas o sacrifício moral conduziria as

reflexões freudianas para caminhos inusitados, encontrando em seu cerne o supereu. A

renúncia pulsional imposta pela civilização se reverte, ela própria, em uma fonte primária degozo, expressando-se sob forma de sentimento de culpa. A renúncia não pacifica nem traz a

desejada aliança com o pai, pois ela serve de repasto ao hipermoral e insaciável supereu, que

nunca se contenta com as pequenas parcelas de gozo; almeja-o todo. Com o supereu, não há

 possibilidade de regateamento; suas severas exigências extrapolam qualquer negociação que

 pudesse vir em socorro do sujeito. A moralidade supereuóica se torna um pretexto encobridor

da necessidade de castigo, cuja expressão máxima, para Freud, é o sentimento de culpa. O

29 “Fuera de la ley”.

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corolário da intromissão do supereu no campo dos trâmites que envolvem as relações do

sujeito com a civilização não é o advento do senso moral, nem o fortalecimento do laço

social, mas sim o masoquismo, alimentado por uma incessante vontade de gozo, escamoteada

na renúncia e no sentimento de culpa que a acompanha. O oferecimento sacrificial de si (ou

de uma parte de si) permite comprová-lo:

Se é preciso limitar a satisfação pulsional para escapar do gozo e obter oreconhecimento do amor do pai, essa renúncia, degradada em sacrifício, fortaleceapenas o poder paterno que cresce em sua dimensão sanguinária e cruel e reenvia aogozo aquele mesmo gozo ao qual se pretendia renunciar . O sacrifício testemunha a presença de um pai-Deus brutal e malvado, mas também busca os signos de seudesejo para tentar pacificá-lo em troca de um pedaço do corpo ou da própria vida.  (AMBERTIN, 2009b, p.201). 

Contrapondo essas reflexões, advindas das elaborações freudianas desenvolvidas em

“O mal-estar na civilização” (1930/2010), com aquelas desenvolvidas acerca das práticas

sacrificiais, em “Psicopatologia da vida cotidiana” (1901/1987), é possível constatar que o

sacrifício, seja ele moral ou ritual, sempre coloca em jogo a problemática do supereu. Em

decorrência disso, essa distinção entre sacrifício moral e ritual, cara a alguns antropólogos e

sociólogos orientados pelo evolucionismo, não faz muito sentido na perspectiva freudiana.

Dessa forma, do ponto de vista da psicanálise, pode-se dizer que o supereu é umconceito fundamental para situar o sacrifício, considerando os paradoxos inerentes à

instauração da função paterna. Se, por um lado, essas diretrizes permitem estabelecer um

norte para a abordagem da razão sacrificial em nossa época, por outro elas tornam o problema

do sacrifício ainda mais complexo, uma vez que o conceito de supereu não recebeu uma

conceituação unívoca na obra freudiana.

2.3 - Os paradoxos do supereu

Complexidade, esse é o termo com o qual Ambertín (2009b) se refere ao conceito de

supereu na obra freudiana, pois se trata de um conceito que se inscreve em diferentes

dimensões da psicanálise: a clínica, a ética e a abordagem de fenômenos sociais. Freud

(1923/1910) estabeleceu o conceito de supereu no contexto da reformulação de sua

metapsicologia, a partir do esquema da segunda tópica, reservando-lhe um lugar de destaque

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na estruturação psíquica. Não se pretende aqui esgotar a discussão acerca do conceito de

supereu em psicanálise, nem torná-la exaustiva, mas – no que concerne aos objetivos

 propostos por esta pesquisa – extrair elementos teóricos pertinentes para a abordagem do

 problema do sacrifício na atualidade e suas incidências no campo dos fenômenos sociais.

Cabe destacar, inicialmente, que “o conceito freudiano de supereu é um dos que mais

deu lugar a mal-entendido, já que não há em Freud uma teoria sistematizada sobre o mesmo.”

(FERRARI, 2012). Em vários pontos da elaboração freudiana pode-se detectar certa

indefinição no que tange à distinção entre os conceitos de ideal do eu e de supereu. É digno de

nota que ela não deixa de se manifestar, inclusive em “O eu e o id” (1923/2010), livro no qual

Freud formaliza, pela primeira vez, o conceito de supereu. Seguindo as indicações de

Ambertín (2009a, p.220), o leitor é advertido no sentido de não assepsiar “o caminho

freudiano das asperezas de seus paradoxos”, e incitado a “descobrir os espaços que esses

 paradoxos inauguram.” (2009a, p.220). Não há melhor recurso para avançar nessa direção do

que retomar, resumidamente, alguns pontos fundamentais das elaborações freudianas acerca

do supereu.

Primeiramente, deve-se considerar que “o supereu não é simplesmente um resíduo das

 primeiras escolhas objetais do id” (FREUD, 1923/2010, p.42), precipitados da identificação

com o pai, como também uma “enérgica formação reativa” (FREUD, 1923/2010, p.42)erigida contra eles. Essa ambivalência marcará, inelutavelmente, qualquer forma de laço que o

sujeito estabeleça com o Outro. Em um exemplo paradigmático, Freud situa o paradoxo

inerente à constituição do supereu, articulado ao seguinte enunciado exortativo: “Assim

(como o pai) você deve ser.” (FREUD, 1923/2010, p.42). Esse enunciado supõe,

implicitamente, uma enunciação proibitiva que o contradiz: “Assim (como o pai) você não 

 pode ser, isto é, não pode fazer tudo o que ele faz; há coisas que continuam reservadas a ele.”

(FREUD, 1923/2010, p.43). Essa passagem permite articular o que Freud (1923/2010, p.43)designa como “dupla face do ideal do Eu”, ou seja, o caráter fundamentalmente antinômico e

contraditório do supereu, em suas relações paradoxais com a lei moral e com os ideais sociais.

Segundo Bassols (2001, p.56, tradução nossa), o problema colocado pelo supereu

concerne à enunciação da lei, independentemente do seu enunciado: “Uma lei sempre pode

ser enunciada de forma antinômica.” 30 Sendo assim, não importa o conteúdo veiculado pela

lei: em suas entrelinhas, na própria estrutura de sua enunciação, surge um forte apelo à

30 “Una ley siempre pude enunciarse de forma antinómica”.

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transgressão, veiculado pelo supereu. Essa constatação, facilmente demonstrável no campo da

clínica psicanalítica, assinala a presença irredutível de um pathos, inerente à própria dimensão

da linguagem. Conforme afirma Ambertín, “não basta indicar que o supereu é antagônico ao

desejo, é preciso assinalar que ele é o seu avesso, o que revela a patogenia da lei, sua falha

estrutural.” (AMBERTÍN, 2009a, p. 221).

Retomando o texto freudiano, e tendo como norte essas indicações, é possível

estabelecer uma diferenciação entre o supereu e a instância dos ideais, sem desconsiderar que

elas funcionam sempre de forma articulada. Quando retoma suas reflexões acerca do tema, em

suas “Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise” (1933/2010), Freud avança no

sentido de uma definição estrutural do estatuto do supereu, com a subsequente possibilidade

de distingui-lo dos ideais: “nossa postulação de um super-eu descreve de fato uma relaçãoestrutural, não personifica simplesmente uma abstração como a da consciência moral.”

(FREUD, 1933/2010, p.202, grifo nosso).

Essa relação estrutural, indicada por Freud, é retomada por Lacan quando aborda a

teoria dos quatro discursos, no seminário “O avesso da psicanálise” (1969-70/1992). Nesse

seminário, Lacan afirma que a estrutura da linguagem torna possível a existência de um

discurso sem palavras, que pode subsistir em “certas relações fundamentais” (LACAN, 1969-

70/1992, p.11):

Mediante o instrumento da linguagem, instaura-se um certo número de relaçõesestáveis, no interior das quais certamente pode inscrever-se algo bem mais amplo,que vai bem mais longe do que as enunciações efetivas. (LACAN, 1969-70/1992, p.11).

Atos e condutas, bem como a enunciação paradoxal implicada em certos “enunciados

 primordiais” (LACAN, 1969-70/1992, p.11), se inscrevem em uma estrutura pré-articulada,

que desde o início, disponibiliza lugares vacantes, estabelecidos a partir da estrutura dalinguagem. Lacan (1969-70/1992, p.11) aproveita esse momento de sua argumentação para

questionar o público que assistia ao seminário: de outra forma, “o que seria do que se encontra

 para nós sob o aspecto do supereu?”.

Falar de lugares vazios estabelecidos apriori  pela estrutura da linguagem, implica

 pensá-la em uma dimensão estritamente lógica, despida de qualquer forma de conteúdo

sensível ou personificação empírica, que permitiria conferir-lhe consistência fenomênica.

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Esses lugares podem vir a ser ocupados por diferentes elementos no campo da estrutura, e é

esse entendimento que viabiliza a justa apreciação da afirmação freudiana de que o supereu

(...) é construído não segundo o modelo dos pais, mas do super-eu dos pais; preenche-se com o mesmo conteúdo, torna-se veículo da tradição, de todos osconstantes valores que assim se propagaram de geração a geração. (1933/2010, p.205).

O supereu não é, portanto, o ideal (ou a lei moral), mas seu móbil, seu veículo de

transmissão, responsável pelo seu trâmite. Aqui, não há lugar para a entificação psicológica

dos pais da criança, pois Freud deixa claro que se trata de uma “instância parental”, que se

torna cada vez mais “impessoal” (FREUD, 1933/2010, p.202) com o passar do tempo. Por

isso, do ponto de vista da psicanálise, não faz diferença se os pais da criança a trataram de

forma severa ou benevolente: a herança que lhe cabe sempre traz a marca da rigidez e

severidade, a serviço da “função punitiva e proibidora.” (FREUD, 1933/2010, p.199). Daí o

sentido da afirmação de Ambertín (2009b, p.223): “o supereu da criança se edifica sobre os

 pecados do pai e o saldo cruel resulta ser um desarranjo irreparável da estrutura”. 

Por mais nobres que sejam os ideais, e ainda que eles estejam legitimados sob forma

de lei escrita e objetivada, nem por isso estão imunes à ação corrosiva do supereu, que incide

não sobre o campo do enunciado, mas em suas entrelinhas, no campo tácito da sua

enunciação, que quando não exorta à submissão absoluta, incita insistentemente ao desvario e

à transgressão. Se a lei, veículo da ordem e do pacto social, pode funcionar de forma insensata

e parasitária, não há como encontrar nela nenhuma garantia de apaziguamento do mal estar.

Uma célebre passagem freudiana, comumente usada por comentadores para definir o

supereu, afirma que ele é herdeiro do complexo de Édipo: “Mas o super-eu, que dessa forma

assume o poder, a função e até os métodos da instância parental, é não apenas sucessor, mas

também legítimo herdeiro desta.” (FREUD, 1932/2010, p.199). Alguns autores depreenderamdisso que o supereu seria um representante da lei paterna e da moralidade, diante das

exigências instintuais do id. No entanto, como legítimo herdeiro da instância paterna, o

supereu veicula não apenas o enunciado proibitivo, como também a significação incestuosa e

assassina que subjaz a ele.

Freud já havia notado que, em decorrência de sua origem pulsional, o supereu pode se

tornar feroz, sempre pronto a se voltar contra o sujeito de forma sádica e cruel. Essa vertente

 pulsional do supereu foi destacada por ele em seu texto “O problema econômico do

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masoquismo” (FREUD, 1924/2010), onde afirma, claramente, que seja em função de um

masoquismo do eu, ou de um sadismo do supereu, os paradoxos decorrentes da introjeção do

 pai sempre desembocam em um irredutível sentimento de culpa, expressão de uma

“necessidade que é satisfeita mediante o castigo e o sofrimento.” (FREUD, 1924/2010, p.

199). Certamente, “isto não beneficia nem a moral nem o indivíduo.” (FREUD, 1924/2010, p.

200).

Vê-se bem que a herança paterna, tramitada pelo supereu, não poderia estar a salvo

dos paradoxos impostos pela própria estrutura da linguagem. Como bem o articula Lacan

(1959-60/1988), recorrendo à Epístola de São Paulo aos romanos, é a Lei que instaura o

 pecado. O legado do pai, em sua dupla face, não poderia deixar de ser paradoxal, uma vez que

a herança tramita não em apenas em seu nome, mas também naquilo que lhe escapa: “O pai, o

 Nome-do-Pai, sustenta a estrutura do desejo com a da lei - mas a herança do pai é aquilo que

nos designa Kierkegaard, é seu pecado.”  (LACAN, 1964/1988, p.38). O pecado do pai –

mácula que denuncia um resto que não se inscreve no cômputo da sua herança - eis o que se

 busca expiar com a culpa e encobrir com o sacrifício.

Sendo assim, do ponto de vista da psicanálise, não há como corroborar as teses

antropológicas e sociológicas sobre o sacrifício, que o interpretam como uma forma de

comunicação entre o domínio profano dos homens e o domínio divino. Para a psicanálise, osacrifício é sempre encobridor, e a cada vez que ele ressurge, colocar-se-ão em questão os

 paradoxos inerentes ao legado paterno, que se efetivam no caráter ambíguo de sua palavra.

Esta é “guardiã do gozo”, mas também “opaca tentação” (AMBERTÍN, 2009b, p.221) à

transgressão.

Com Lacan torna-se possível entender as razões que levaram Freud a enveredar por

esses caminhos. O pai só assume eficácia simbólica e interditora depois de morto, mas por

outro lado, seu assassinato acarreta um recrudescimento da Lei, que ao invés de se enlaçar àtransmissão do desejo, toma-o como uma ameaça e coloca-se contra ele. Sendo assim, o saldo

da inscrição do Nome-do-Pai não acontece sem deixar cicatrizes permanentes no sujeito, que

constituirão as raízes do supereu:

Por que Freud envereda por esse paradoxo? Para explicar que o desejo, com isso,será apenas mais ameaçador, e, logo, a interdição mais necessária e mais dura. Deusestá morto, nada mais é permitido. O declínio do complexo de Édipo é o luto do Pai,mas ele se conclui por uma seqüela duradoura: a identificação que se chama

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supereu. O Pai não amado toma-se a identificação que cumulamos de críticas sobrenós mesmos. (LACAN, 1960/2005, p.30).

A inscrição do Nome-do-Pai, portanto, é sempre sintomática, paradoxal: a regulação

do gozo, proporcionada por sua incidência simbólica, não se efetiva sem deixar como rastro

“efeitos devastadores, até mesmo maléficos.” (LACAN, 1960/2005, p.31). Esse é o termo a

que chega Lacan após sua leitura do sacrifício de Abraão. Tal leitura se fez necessária, tendo

em conta que a referência ética legada por Freud em torno “da função, do papel e da figura do

 Nome-do-Pai giram em torno da tradição propriamente judaico-cristã, e nela são inteiramente

articuláveis.” (LACAN, 1960/2005, p.28). Antes de chegar a essa conclusão, no entanto,

Lacan percorreu, ao longo do seu ensino, um longo itinerário na temática do sacrifício. Nesse

 percurso, ele estabeleceu importantes interlocuções com o campo da antropologia, que agora

devem ser retomadas para um exame mais atento.

2.4- Sacrifício, dádiva e reciprocidade: uma interlocução entre Lacan e a antropologia

Peço-te que me recuses o que te ofereço porque: não éisso. (LACAN, 1971-72/2013, p.79).

Lacan abordou o tema do sacrifício ao longo de todo o seu ensino, tendo-o revisto

sucessivamente, conforme avançava rumo a uma teoria do gozo. Em “Complexos familiares”

(LACAN, 1938/2003), ele já falava do sacrifício ligado à automutilação e à complacência

somática presente na base do sintoma histérico.

É por um sacrifício mutilante que a angústia se oculta ai, e o esforço de restauração

do eu se marca, no destino da histérica, por uma reprodução repetitiva do reca1cado.Assim, é compreensível que esses sujeitos mostrem em suas pessoas as imagens patéticas do drama existencial do homem. (LACAN, 1938/2003, p.81).

 Nesse mesmo texto já é possível encontrar uma referência do sacrifício articulado à

“mítica do sacrifício de Abraão” (LACAN, 1938/2003, p.64), e ao “progresso da

espiritualidade”, mencionado por Freud (1939 [1934-38], p.108, tradução nossa) 31. Esse

31 Moisés y la religión monoteísta.

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 progresso se dá na medida em que o capricho das “tiranias matriarcais” (LACAN, 1938/2003,

 p.64) cede espaço ao domínio da Lei e da autoridade do pai:

Caso se refiram aos ritos sacrificiais com que as culturas primitivas, mesmo havendochegado a uma concentração social elevada, realizam com o mais cruel rigor -vítimas humanas desmembradas ou enterradas vivas - as fantasias da relação primordial com a mãe, eles lerão em diversos mitos que ao advento da autoridade paterna corresponde uma moderação da repressão social primitiva. (LACAN,1938/2003, p.64).

 Nesse momento inicial da elaboração lacaniana, ainda marcada por um tom kleiniano,

 pode-se perceber que o advento da autoridade paterna vem a ordenar, moderar, conter a

relação antropofágica que marca a relação primária com a mãe, assombrada pelo espectro

angustiante do corpo esfacelado. O advento do pai é ordenador, unificador e separador, uma

vez que permite o enlace do registro simbólico da Lei, barrando o excesso obsceno da relação

corpo a corpo com a mãe, característica do primado matriarcal. O sacrifício é evocado por

Lacan em um viés dilacerante, que coloca em cena o fantasma do desmembramento corporal;

no horizonte desabitado dessa experiência fronteiriça, delimita-se a sombra melancólica do

objeto, que se projeta sobre o sujeito. A teorização lacaniana indica que essa fronteira é

estabelecida a partir da castração, entendida como operação inaugural e estrutural de divisão

do sujeito. Por essa via, abre-se um amplo leque de reflexões acerca do sacrifício.

As elaborações tecidas no seminário “As relações de objeto” (LACAN, 1956-

57/1995), proferido ainda nos anos 50, marcam a primeira teorização lacaniana sobre o objeto

 pulsional, ainda sob a égide do termo ‘relação’. Durante esse primeiro momento do ensino de

Lacan, a emergência da questão sacrificial se efetiva articulada ao objeto enquanto dom,

ligado ao amor e à demanda ao Outro. A demanda de amor se estrutura em torno do signo

daquilo que está ausente, que falta, no campo do Outro. Como diz Lacan, “não existe maior

dom possível, maior signo de amor que o dom daquilo que não se tem.” (LACAN, 1956-

57/1995, p.142). Sendo assim, o dom é tributário da castração, e surge no contexto da

dialética do desejo, inscrita no circuito das trocas sociais entre os sujeitos. Apesar de

apresentar uma concepção intersubjetiva de amor, pensando-o como relação entre sujeitos,

Lacan já faz intervir aí a dissimetria que perpassa essa relação.

A referência usada por Lacan para pensar o dom ofertado no sacrifício é a obra

“Ensaio sobre a dádiva” (MAUSS, 1925/2003), de Marcel Mauss. Nesse ensaio, publicado

 pela primeira vez em 1925, e considerado seu mais importante trabalho, Mauss estudou as

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relações de troca na prática do potlatch em algumas sociedades primitivas, observando que os

laços de intercâmbio que uniam os homens eram estabelecidos sob forma da dádiva de

 presentes. Embora tudo se passasse como se esses presentes fossem oferecidos

espontaneamente, havia, na verdade, uma intrincada rede de obrigações mútuas, que

 preconizavam tanto a obrigatoriedade de sua oferta, quanto de sua retribuição.

Esse fenômeno, aparentemente banal ao observador comum, encontra sob a atenta

abordagem de Mauss uma grande importância, não apenas para compreender as instituições

sociais das antigas civilizações, mas também das atuais. Mauss considerava-o um fato social

total, pois estaria na raiz das mais diversas instituições sociais que hoje estruturam o

complexo sistema de contratos, trocas e dádivas entre os homens: instituições religiosas,

 jurídicas, morais e econômicas, funcionando enlaçadas uma à outra, sem estarem apartadas

em diferentes registros, tal como ocorre hodiernamente nas sociedades ocidentais.

Essa moral e essa economia funcionam ainda em nossas sociedades de formaconstante e, por assim dizer, subjacente, como acreditamos ter aqui encontrado umadas rochas humanas sobre as quais são construídas nossas sociedades, poderemosdeduzir disso algumas conclusões morais sobre alguns problemas colocados pelacrise de nosso direito e de nossa economia. (MAUSS, 1925/2003, p.188/189).

Para Mauss, os fenômenos de troca e contrato, observados na prática de oferecimentoe retribuição de presentes, constituíam uma primeira forma de mercado, distinta das atuais,

mas plenamente válida e funcional. Toda dádiva ofertada implicava, para o donatário, uma

dívida de reciprocidade. Os presentes funcionavam nos intercâmbios como moeda, ou seja,

índice que permitiria auferir poder e prestígio. Mas também podiam assumir a forma de

quitação de dívida, troca de favores ou ajuste de contas.

Os fenômenos da dádiva e retribuição compulsórias foram representados de forma

sintética por Mauss no ritual do potlatch, cerimônia festiva praticada por alguns povos na qual

um suntuoso banquete era servido, seguido da doação de presentes. Essa doação expressa uma

renúncia por parte do doador, que se desfazia assim da riqueza acumulada; por outro lado, o

valor da dádiva era considerado um inequívoco sinal de prestígio do doador.

O  potlatch  possui uma significação paradoxal, pois significa tanto dádiva quanto

consumo, no sentido de prover, nutrir. A oferenda se passa como ato de generosidade

desinteressada, mas na verdade, implica um rígido sistema de trocas compulsórias. Qualquer

descuido na retribuição da dádiva recebida poderia desencadear uma guerra entre os clãs

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envolvidos. “Recusar-se a dar, deixar de convidar ou recusar-se a receber equivale a declarar

guerra, é recusar a aliança e a comunhão.” (MAUSS, 1925/2003, p.58).

Mas, “que força existe na coisa dada que faz que o donatário a retribua?” (MAUSS

1925/2003, p.188). O objeto ofertado não tem valor independente de quem o oferece; ele

 possui um hau, ou seja, um espírito, uma anima partilhada com seu doador. Essa aura sagrada

do objeto é chamada pelos polinésios de maná, e é ela que acarreta a necessidade de restituir a

oferenda ao seu doador. Mauss reconheceu no  potlatch um sistema de prestações totais, ou

seja, não é o indivíduo isolado que oferece o presente, mas a toda a comunidade ou clã. Essa

troca se reveste de um valor simbólico, cuja importância recai não sobre os objetos trocados,

mas sobre a própria instituição universal de troca.

 Não passou despercebida a Mauss a relação entre o  potlatch e a prática da destruição

da oferenda, observada nos rituais de sacrifício. O sistema de trocas e contratos “arrastam em

seu turbilhão não apenas homens e coisas, mas os seres sagrados que estão mais ou menos

associados a eles.” (1925/2003, p.205). Mauss explica que esse envolvimento de seres

sagrados no sistema de trocas decorre do fato de que eles foram os primeiros contratantes com

quem os homens tiveram que negociar, pois eram os primeiros proprietários das riquezas do

mundo. Toda a prodigalidade característica do potlatch parte do princípio de que tudo o que é

ofertado foi, inicialmente, dado pelos deuses. Diante da generosidade da dádiva divina, há anecessidade de uma retribuição, e é através do sacrifício do excesso de riqueza que o homem

 poderá quitar sua dívida com os deuses. Aquele que quita sua dívida poderá esperar sua justa

compensação; já aquele que recusa sacrificar sua riqueza transgride, nesse ato, as leis de

intercâmbio, e deverá enfrentar as devidas represálias. Afinal, se por um lado “não há dádiva

gratuita que tenha força de lei” (MAUSS, 1925/2003, p.189), por outro, “ninguém é livre para

recusar um presente oferecido.” (MAUSS, 1925/2003, p.212).

Apesar da função de mediação entre os mundos sagrado e profano, cumprida pelosacrifício, Mauss ressalta que o caráter de dádiva na oferenda sacrificial só se efetiva

mediante a destruição do objeto ofertado. Nesse aspecto, o sacrifício é uma operação

irreversível, pois acarreta a aniquilação da vítima, sinal de uma renúncia total, por parte do

sacrificante, dos direitos sobre o objeto sacrificado.

Em sua retomada dos desenvolvimentos feitos por Mauss, Claude Lévi-Strauss

acentua que o caráter de irreversibilidade do sacrifício, representado na destruição do objeto

ofertado, encontra uma contrapartida no mundo sagrado, sob forma da “outorga da graça

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divina” (LÉVI-STRAUSS, 1962/1989, p.251), operação igualmente irreversível. Isso significa

que a mediação entre os homens e os deuses, proporcionada pelo ritual de consagração da

vítima, encontra seu termo na ruptura, no corte desse canal de comunicação, através da

destruição dessa vítima. Em suma, um vínculo de aproximação é estabelecido, para em

seguida, ser rompido, como se essa aproximação fosse perigosa, impossível de ser sustentada

de modo permanente.

Assim como Mauss, Lévi-Strauss reforça a função mediadora do sacrifício, afirmando

que ele visa “estabelecer uma conexão desejada entre dois domínios inicialmente separados”,

fazendo com que “uma divindade distante satisfaça os votos humanos.” (1962/1989, p.251). O

oferecimento de uma vítima consagrada, durante o ritual sacrificial, pretende justamente

constituir um elemento de barganha, que aproxima as duas partes interessadas. O caráter

oblativo da oferenda é evidente, pois se trata de sacrificar algo supostamente desejado pelos

deuses. Surge daí a indicação de que o sacrifício, longe de ter a pretensão de satisfazer a

insaciável sede de sangue dos deuses, é na verdade, um engodo, uma manobra de sedução,

que pretende colocá-los a serviço dos homens.

Esses estudos antropológicos foram muito importantes para Lacan, que neles se

 baseou para estruturar as relações entre o dom, o amor e o sacrifício, bem como situar o

desejo como conceito fundamental para compreender essas relações. Conforme sublinhaAmbertín (2009a, p.82), “os primeiros trabalhos de Lacan que aludem ao sacrifício giram em

torno das formulações sobre o pacto de aliança e reciprocidade que ligam ao Outro”.

Em “Função e campo da fala e da linguagem” (LACAN, 1953/1998), momento

inaugural de seu ensino, Lacan já estabelecia o “(...) vínculo da fala com o dom constitutivo

da troca primária” (LACAN, 1953/1998, p.312), indicando assim um enlace originário entre o

dom e a palavra, sendo esta última considerada como fundadora da dimensão humana,

eminentemente simbólica. Nesse primeiro momento de sua teorização, Lacan usava a expressão “dom da fala”

(LACAN, 1953/1998, p.323), enfatizando a dimensão intersubjetiva da circulação da palavra

e a sua função reguladora, tanto na constituição do campo do sujeito, quanto do

enquadramento da realidade. Nesse momento da sua elaboração, o grande Outro comparece

como lugar da linguagem, e, portanto, como elemento constitutivo na estruturação subjetiva.

Para além do corpo-a-corpo, característico da relação de cuidado estabelecida entre a

mãe e a criança, Lacan destaca a função simbólica da palavra ligada ao dom do amor, vale

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dizer, àquilo que falta ao Outro. A distinção entre essas dimensões fica evidente, quando se

considera que algumas mães confundem o cuidado relativo às necessidades da criança

( Ananké ) com o dom de seu amor (Eros), empanturrando a criança com a “papinha

sufocante.” (LACAN, 1958/1998, p.634). A função do dom da palavra surge, no ensino

lacaniano, ligado à instância paterna, eminentemente simbólica, e à falta no campo do Outro;

o amor emerge, invariavelmente, a partir dessa falta, que a partir do complexo de Édipo,

adquire a significação de uma interdição, de um limite à desmesura do capricho materno.

O campo da dialética do desejo, que serve de esteio para a elaboração que Lacan

desenvolve a respeito do amor como dom, ancora-se no falo, que é tomado como um

elemento lógico, revestido do caráter de signo primordial, chave universal que abre diante do

sujeito o campo das permutas simbólicas:

O desejo visa ao falo na medida em que este deve ser recebido como um dom. Paraeste fim, é necessário que o falo, ausente ou presente noutra parte, seja elevado aonível do dom. E é na medida em que ele é elevado à dignidade de objeto de dom,que faz o sujeito entrar na dialética da troca, aquela que irá normalizar todas assuas posições, até e inclusive as interdições essenciais que fundam o movimentogeral da troca. (LACAN, 1956-57/1995, p.144, grifo nosso).

É amparado pela dialética do desejo, estruturada a partir do declínio do complexo de

Édipo, que Lacan vincula a questão do dom ao falo, por um lado, e por outro, o sacrifício à

castração. Lacan situou o pai enquanto metáfora subjetivante, e a castração como operação

lógica, interditora e normativa, que autoriza ao sujeito assentir subjetivamente com a Lei e a

 perda de gozo que ela implica. Ocupando o eixo central dessa dialética, o falo se constitui

como elemento central na série de permutas simbólicas, que autoriza a troca de dons e o

reconhecimento mútuo entre os sujeitos que aí se inscrevem. Essas trocas só se estabelecem a

 partir da interdição do incesto, conforme já assinalava Freud em “Totem e tabu” (1913/1987).

A influência das pesquisas antropológicas e sociológicas sobre essas primeirasteorizações de Lacan levaram-no a enfatizar o caráter de gratuidade da dádiva, ponto de vista

que será modificado em elaborações posteriores.

O que faz o dom é que um sujeito dá alguma coisa de uma maneira gratuita; namedida em que, por detrás do que ele dá, existe tudo o que lhe falta, é que o sujeitosacrifica para além daquilo que tem.  O mesmo acontece, aliás, com o dom primitivo, tal como se exerce efetivamente na origem das trocas humanas sob aforma do potlatch. (LACAN, 1995/1956-57, p.143, grifos nossos).

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Escamoteadas sob a forma de dádiva, as oferendas nunca são desinteressadas: elas

convocam o Outro, constituindo-se como semblantes da falta estrutural que habita este campo

[S(A/)]. Sacrifica-se não o que se dá, mas o que resta como impossível de se oferecer em toda

e qualquer forma de dádiva. Dotados de uma eficácia simbólica, os objetos circulam a partir

do reconhecimento de uma falta no campo do Outro, e isso já é antecipado nesse momento

inicial da elaboração de Lacan, quando ele comenta que, ainda que o crente professe a fé de

que a Deus nada falta, os rituais sacrificiais atestam o contrário; falta-lhe a própria existência,

que deve ser constantemente colocada à prova.

 No fundo de toda crença em deus como perfeita e totalmente munificente, existe anoção de uma coisa qualquer que lhe falta sempre, e que faz com que se possa, aindaassim, sempre supor que ele não exista. Não há outra razão para se amar a Deussenão que talvez ele não exista. (LACAN, 1956-57/1995, p.143).

Trata-se aqui de uma primeira versão do famoso aforismo lacaniano, formulado em

momento posterior de seu ensino, que afirma que o Outro não existe, tal como expresso no

matema S (A/). A decorrência dessa constatação implica considerar toda a série de manobras

que o sujeito lança mão, para reconstituir esse Outro no campo do seu desejo, ou melhor, no

campo da fantasia, que sustenta o seu desejo.

Em seu seminário sobre a transferência, Lacan (1960-61/1992, p.146) se referiu a

essas manobras como “cilada para os deuses”, articulando o objeto-dom ao agalma, termo

grego que designa um objeto precioso destinado a causar o desejo. “O agalma surge como

uma espécie de cilada para os deuses. Aos deuses, esses seres reais, existem truques que lhes

enchem os olhos.” (LACAN, 1960-61/1992, p.146).

Segundo os estudos antropológicos de Louis Gernet (1968/1980, p.89), a etimologia

do termo grego agalma  alia a significação de objeto precioso, “riqueza nobre” (agalmata)

com a significação de ornamento, enfeite (agallein). Como objeto de alto valor, ele pode sereferir a qualquer tipo de objeto, inclusive seres humanos. Gernet (1968/1980) acrescenta que,

na época clássica, o uso do termo ficou estabelecido com o significado de oferenda aos

deuses, sobretudo na forma de oferenda que a estátua da divindade representa. Nesse sentido,

os agalmata assumem a significação de uma ostentação de luxo e “suntuosa generosidade.”

(GERNET, 1968/1980, p.90, tradução nossa) 32.

32 “Generosidad suntuosa”.

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 No contexto específico do seminário “A transferência” (LACAN, 1960-61/1992,

 p.146), no qual Lacan faz uso constante do termo, agalma é situado a partir de “O Banquete”

(PLATÃO, 380 a.C./1991), o mais célebre dos diálogos platônicos. Destaca-se, nesse diálogo,

o elogio que Alcibíades lança a Sócrates, comparando-o aos silenos, pequenas estátuas que,

como invólucros, guardam em seu interior objetos preciosos, servindo como “caixinhas de

 jóias, ou embalagens para oferta de presentes.” (LACAN, 1960-61/1992, p.141).

Lacan alerta que, cada vez que nos encontramos diante de agalma, devemos estar

advertidos de que, mesmo que pareça tratar-se de estátuas dos deuses, olhando mais de perto,

 poderemos perceber que se trata sempre de outra coisa. “Dou-lhes a chave da questão,

dizendo-lhes que é a função fetiche do objeto que é sempre acentuada.” (LACAN, 1960-

61/1992, p.144). Situado a partir da função do fetiche, o agalma  ganha consistência como

objeto escópico, que se oferece escamoteado sob a forma de imagens cativantes, que sempre

evocam o fascínio, a admiração e, até mesmo, a entrega servil do observador. Isso pode ser

 percebido claramente na fala de Alcibíades:

Uma vez porém que fica sério e se abre [o sileno], não sei se alguém já viu asestátuas[agalmata] lá dentro; eu por mim já uma vez as vi, e tão divinas me pareceram elas, com tanto ouro, com uma beleza tão completa e tão extraordináriaque eu só tinha que fazer imediatamente o que me mandasse Sócrates.   (PLATÃO,

380 a.C./1991, p.93).

 Agalma  é, portanto, algo que só se constitui a partir de um invólucro, de um

revestimento que, paradoxalmente, o mantém oculto. Olhar de frente para este objeto significa

enredar-se em seu encanto, cair submisso sob seu feitiço (de onde deriva, etimologicamente, o

termo fetiche).

Esse objeto, “auge da obscuridade em que o sujeito é mergulhado em sua relação com

o desejo” (LACAN, 1963/2005, p.70), conserva as características fundamentais que podem

também ser encontradas no sacrifício: ambos são fundamentalmente cativantes e enganadores,

 pois se constituem como ardis sedutores, ciladas para capturar o desejo do Outro. Com a

oferta do objeto agalmático, busca-se seduzir os deuses, dobrando-os aos caprichos humanos.

 Não passou despercebido a alguns psicanalistas a homologia estrutural entre o agalma,

o objeto a e a oferenda sacrificial. Antônio Quinet indica que há uma equivalência entre os

dois primeiros termos, enfatizando seu caráter metonímico e fugaz: “O objeto precioso que

 passa de mão em mão, como um anel, representa esse caráter do objeto a, impossível de

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Digamos que o religioso entrega a Deus a incumbência da causa, mas nisso corta seu próprio acesso a verdade. Por isso ele é levado a atribuir a Deus a causa de seudesejo, o que é propriamente o objeto do sacrifício. Sua demanda é submetida aodesejo suposto de um Deus que, por conseguinte, é preciso seduzir. O jogo do amorentra por aí. (LACAN, 1965-66/1998,  p.887).

 No sacrifício religioso, o enlace com o Outro se torna possível porque a ele falta

alguma coisa. Destinada a ser coroada pelo objeto agalmático, essa falta viabiliza o

intercâmbio com o Outro, sendo-lhe conferido o estatuto de uma dívida com Deus-pai. Aqui,

o sacrifício se inscreve sob a égide de Eros, o amor que brota do reconhecimento da falta no

campo do Outro (dar o que não se tem), viabilizando a constituição de um Outro barrado e

desejante [S (A/)].

(...) se o Outro carecesse de desejos seria impossível manter algum laço com ele.Esta suposta dívida circula na aposta sacrificial, na qual o filho procura darexistência a Deus e ao Pai como desejantes e para isso constrói o mito fundador noqual Deus e o pai esperam algo dele. (AMBERTÍN, 2009a, p.77).

 Na teorização lacaniana do sacrifício, nunca se pode perder de vista a função do Outro,

 pretenso destinatário dele. Trata-se, em suma, de capturá-lo nas malhas do desejo, vale dizer,

seduzi-lo, por meio da oferenda sacrificial. Dessa forma, o sacrifício mantém um véu

encobridor sobre a falta do Outro que, apesar de tudo, é reconhecida; de outra forma, não teriasentido fazer-lhe oferendas. O “jogo do amor” (LACAN, 1965-66/1998, p.887) instaura,

dessa forma, o engodo sedutor inerente ao ato sacrificial, possibilitando ao sacrificante

oferecer o que não tem, com vistas a quitar sua dívida simbólica com o pai, conferindo-lhe,

dessa forma, a almejada consistência.

 No primeiro momento do ensino lacaniano, conforme já foi mencionado, o

sacrifício tramita no campo da dialética do amor e do desejo, constituindo-se como uma

(...) tentativa de restaurar o circuito dos intercâmbios simbólicos (sempre ameaçadosde ruptura), mas também uma tentativa de capturar o desejo do Outro, de seduzir oOutro e, por este caminho, conseguir seu amparo. (AMBERTÍN, 2009a, p.78). 

 Na medida em que avança em seu ensino, entretanto, Lacan tende a se afastar cada vez

mais das teses antropológicas de Mauss e Lévi-Strauss (AMBERTÍN, 2009a), colocando em

questão a função pacificadora e homeostática do sacrifício. Em “Subversão do sujeito e

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Pode-se mesmo dizer que esse seminário constitui o marco decisivo nas elaborações

lacanianas sobre o sacrifício, uma vez que inclui o que não havia sido considerado nas

abordagens anteriores - o corpo enquanto libra de carne, com a qual se busca aplacar a

ferocidade divina: “sempre há no corpo, em virtude desse engajamento na dialética

significante, algo de separado, algo de sacrificado, algo de inerte, que é a libra de carne.”

(LACAN, 1962-63/2005, p.242). Ilustra-o bem o evangelho de Mateus, que confirma esse

caráter irascível e violento da barganha sacrificial: “Portanto, se o teu olho direito te

escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus

membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno.” (MATEUS, 5:29).

A partir de então, surgem os primeiros contornos de uma nova perspectiva de Lacan

acerca do sacrifício, sob a forma de uma versão maligna de Deus, que não negocia débitos

nem respeita os pactos que ele próprio instaura. O shofar 33 “... soa o encontro com o lado

implacável da relação com Deus, com a maldade divina em função da qual é sempre com

nossa carne que temos de saldar a dívida.” (LACAN, 1962-63/2005, p.242). Aqui, Lacan

levanta o véu que encobre o horror sagrado, suscitado pelo fascínio sacrificial: a essa altura, já

não há como sustentar que a dádiva é gratuita. Esse momento do percurso lacaniano assinala o

início de uma profunda mudança de perspectiva no tocante à sua concepção de sacrifício, que

se consumaria definitivamente, em suas elaborações posteriores.

2.5 - A Akedah de Isaac e a pluralização dos Nomes-do-Pai

O remanejamento lacaniano da problemática do sacrifício, efetivada no seminário “A

angústia” (1962-63/2005), desemboca, no ano seguinte, no seminário sobre os Nomes-do-Pai

(LACAN, 1963/2005), interrompido após a primeira lição. Trata-se de um momento decisivonas elaborações de Lacan acerca do sacrifício, pois ele o situa aí, pela primeira vez, como

modalidade de enlaçamento dos registros Real, Simbólico e Imaginário (RSI), recorrendo à

 Akedah (amarração, enlace) de Isaac, tal como apresentada na narrativa bíblica do sacrifício

de Abraão. Trata-se, portanto, do esboço de uma leitura borromeana do sacrifício, que

33  O shofar   é um instrumento sagrado de inestimável valor simbólico para a tradição judaica. Consiste basicamente em um chifre de carneiro, usado para emitir sons durante os rituais que celebram certas ocasiõessignificativas. Ele é revestido de uma importância especial, também, para a psicanálise; Theodor Reik, discípulo

direto de Freud, dedicou-lhe um estudo, referido por Lacan no seminário “A angústia.” (LACAN, 1962-63/2005, p.267).

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 pretende situá-lo como enlace originário que inscreve a Lei paterna, considerando-a não mais

em sua referência ao amor e ao dom, mas em sua referência ao gozo.

 Nessa leitura, Lacan confronta o sacrifício do Urvater , colocado em cena pelo mito

freudiano da horda primeva, com o sacrifício de Abraão, metaforizado na Akedah. Enquanto o

mito freudiano aborda o sacrifício na perspectiva do parricídio, o mito da  Akedah  de Isaac

aborda-o enquanto filicídio. Contrapondo o sacrifício do pai primevo ao sacrifício de Isaac

(que é também o sacrifício de Abraão), é possível perceber que ambas as narrativas abordam

o enlace originário que permite a articulação do desejo com a Lei. Ainda que as perspectivas

sejam inversas, a questão paterna encontra-se no cerne de ambas.

 Na Akedah de Isaac, o implacável Deus de Abraão exige que Isaac seja levado para o

Monte Moriá e oferecido em holocausto. O mandato divino se abate sobre Abraão com toda a

sua carga de absurdo e arbitrariedade, pois o nascimento de Isaac era considerado uma dádiva

de Deus. Filho único de Abraão com Sara, sua mulher, o nascimento de Isaac era considerado

como um milagre; Sara já contava com uma idade avançada, e há muito já havia se passado

seu período de fertilidade.

Mesmo perplexo diante do absurdo da exigência divina, Abraão decide sustentar sua

fé, ainda que ela o conduza por caminhos inusitados. Sendo assim, ele leva Isaac para o local

indicado e o amarra, ato pleno de significação, pois metaforiza o enlace proporcionado pelo pacto da aliança, ao mesmo tempo em que assinala a submissão incondicional à vontade de

Deus. Essas dimensões da  Akedah  apontam para diferentes perspectivas no tocante ao

sacrifício, em suas paradoxais relações com os Nomes-do-Pai: ele é constitutivo do enlace

com a palavra do pai, pela via do dom e do desejo, mas pode também deslizar sub-

repticiamente para a paixão pelo gozo servil, mobilizada pelo fascínio diante da onipotência

divina. Abre-se aí um obscuro caminho para aqueles que se dispõem a “experimentar não sua

demanda, mas sua vontade” (LACAN, 1960/1998, p.841), realizando-se como objeto dela. No ápice dramático dessa narrativa mítica, Abraão aproxima o punhal contra a

garganta de Isaac, firmemente decidido a cumprir a ordem de Deus. No instante em que

estava prestes a degolar o filho, surge um anjo que detém sua mão, impedindo o seu ato. O

sacrifício deve acontecer, mas a vítima sacrificial não tem que ser Isaac; o anjo lhe aponta um

carneiro, que deveria tomar o seu lugar.

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Figura 11 - O sacrifício de Isaac (Caravaggio, 1603).

Fonte: LACAN, 1963/2005, p.82.

Ao comentar essa narrativa, Pierre Legendre (2008a, p.26, tradução nossa) afirma que

ela expressa “(…) o fundamento último de toda filiação: que o assassinato não tem que

acontecer, pois, para o homem, a vida implica o horizonte da superação” 34. Deve-se observar,

no entanto, que a matança se consuma de fato, mas a vítima sacrificial é um substituto do

objeto inicialmente exigido por Deus. Conforme já foi abordado, o objeto que constitui a

oferenda sacrificial é metonímico, ou seja, desliza na sucessão de uma variedade

 potencialmente infinita de sucedâneos. Dessa forma, Abraão sacrifica o carneiro, para não ter

que sacrificar o filho.

A substituição de Isaac pelo carneiro foi cristalizada na conhecida expressão bode

expiatório, designando metaforicamente aquele que deve se encarregar de expiar os males e

as culpas de um povo 35. A lendária figura do bode expiatório surge no contexto da tradição

34 “(…) el fondo último de toda filiación: que el asesinato no tiene que consumarse, sino que, para el hombre, lavida implica el horizonte de la superación”.35 Em seu livro sobre os chistes (1905/1987, p.192), Freud não perdeu a chance de dedicar uma divertida anedota

à temática do bode expiatório: “Há uma história cômica (...) de uma vila húngara onde o ferreiro fora condenadoà pena capital. O burgomestre resolveu, entretanto, que um alfaiate e não o ferreiro devia ser enforcado, pois

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 judaica, celebrada anualmente no ritual do  Iom Kippur  (do hebraico, dia da expiação, ou dia

do perdão). Esse ritual se encontra relatado no capítulo 16 do Levítico, um dos livros do

Antigo Testamento, também conhecido como livro dos sacrifícios. As instruções que se

seguem ao sacrifício anunciam a lei perpétua, que deverá ser observada tanto pelos nativos

quanto pelos estrangeiros que vivem entre eles:

(...) no sétimo mês, no décimo dia do mês, jejuareis e não fareis trabalho algum, porque nesse dia se fará a expiação por vós, para que vos purifiqueis e sejais livresde todos os vossos pecados diante do Senhor (...) (LEVÍTICO, 16; 30).

Estabelece-se assim a “instituição perpétua” (LEVÍTICO, 16; 20) do sacrifício, a se

realizar anualmente. Além do legado da Lei perpétua (S1), indicada no Levítico, há algo maisque resta como saldo da operação sacrificial: o shofar , chifre do carneiro sacrificado, que

 permanece, ainda hoje, como memorial do sacrifício de Abraão. Lacan dedicou uma longa

análise ao shofar   em seu seminário “A angústia” (1962-63/2005), no contexto das

reformulações em torno do conceito de objeto a, legado da originalidade de sua contribuição

 para a psicanálise. Nesse momento de seu ensino, Lacan é levado a repensar o estatuto do

objeto em psicanálise, situando-o mais além da dádiva e da reciprocidade.

Ao longo do seminário sobre a angústia, Lacan atravessa os variados semblantes

imaginários que revestem esse objeto, que em si mesmo, nada mais é do que o limiar de um

vazio, ponto de opacidade no cerne da estrutura simbólica que constitui o inconsciente. O

shofar,  semblante invocante do objeto, é a voz de Deus, que permanece como um resto

inassimilável após a instauração da Lei. Tem-se aí sintetizadas, portanto, duas versões do pai:

o pai espiritualizado, que instaura e transmite o logos  da lei pacificadora, e o pai irascível,

inumano, que vocifera na ausência de qualquer mensagem a ser transmitida. Nessa segunda

versão, a paternidade e a filiação são inviáveis; só há lugar para uma rivalidade infinita.

Ainda hoje, durante os rituais que marcam o encerramento do  Iom Kippur , o shofar  é

usado para emitir o som que faz vibrar as cordas do objeto invocante. Tomar o som do shofar  

como semblante do objeto a  permite incluir este último no campo da matemização da

estrutura do sujeito, pareado pela Lei perpétua (a Lei do Pai - S1) e pelo sujeito barrado ($).

havia dois alfaiates na cidade mas não havia um segundo ferreiro e o crime devia ser expiado.” Esse aparenteabsurdo, com efeito de chiste, expressa o paradoxo inerente à culpa e expiação, próprio da lógica doinconsciente: ainda que um inocente seja sacrificado, alguém deve ser designado para assumir a culpa, de modo

que o crime seja expiado.

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Entre o sujeito $, aqui ‘Outrificado’, se posso me expressar desse modo, em suaestrutura de ficção, e o Outro, A, não autenticável, nunca inteiramente autenticável,o que surge é esse resto, a, é a libra de carne. (LACAN, 1962-63/2005, p.139).

Há, portanto, um resto de gozo que não é passível de reintegração no campo simbólico

do Outro. Ele está no cerne dos sistemas simbólicos com pretensão de totalização, como é o

caso das religiões monoteístas, e também, do ordenamento jurídico. O sacrifício, na medida

em que marca presença em ambos os sistemas, inscreve-se como ponto de articulação entre a

tessitura simbólica ritualística, cânone que ficciona o real 36, e o que lhe excede, involucrado

imaginariamente pela libra de carne.

Situando-se como fronteira móvel entre os registros RSI, o sacrifício não poderiadeixar de reverberar os paradoxos que decorrem da inscrição do gozo no campo do Outro. De

um lado o sacrifício moral, espiritualizado e sublimado, exigido como prerrogativa do pacto

da aliança. De outro, sua dimensão sangrenta e inegociável; a mutilação, que provoca uma

separação entre o sujeito e uma parte de si. Assim o foi para Abraão, ao ver-se confrontado

em ter que sacrificar seu próprio filho, carne de sua carne, sangue de seu sangue. Assim

também o é, para cada judeu, quando se submete ao ritual da circuncisão.

2.5.1 - Do mito paterno freudiano ao operador estrutural lacaniano

 No mito freudiano, o pai intervém, da maneira maisevidentemente mítica, como aquele cujo desejo invade,esmaga, impõe-se a todos os outros. Não haverá nissouma evidente contradição com um fato obviamentedado pela experiência - o de que, por intermédio dele, oque se efetua é algo totalmente diverso, qual seja, a

normalização do desejo nos caminhos da lei? (LACAN,1962-63/2005, p.365). 

Para a psicanálise, a Akedah se coloca em jogo sempre quando se evoca os paradoxos

inerentes aos Nomes-do-Pai. Seguir a trilha desses paradoxos, a partir de uma desmontagem

das elaborações freudianas acerca do pai, cobraria de Lacan o preço de sua excomunhão da

comunidade analítica; a partir desse momento, ele se tornaria um dissidente, e seu ensino

assumiria uma significação herege perante ela. Não deixa de ser desprovido de significação

36 Ou seja, inscreve-o e fixa-o no registro simbólico.

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considerar que a inflexão fundamental no tocante à leitura lacaniana do sacrifício ocorra,

 precisamente, no momento em que Lacan coloca em questão o desejo de Freud, em uma única

lição do seminário interrompido, intitulado “Os Nomes do Pai.” (LACAN, 1963/2005). Ao

fazê-lo, ele inicia uma verdadeira reviravolta em seu ensino, mais particularmente, em sua

 perspectiva quanto à função do pai em psicanálise.

Se Freud coloca no centro de sua doutrina o mito do pai, é claro que é em razão dainevitabilidade da questão. Não menos claro é o fato de que, se toda a teoria e práxis da psicanálise nos parecem atualmente em pane, é por não terem ousado, nessaquestão, ir mais longe que Freud. (LACAN, 1963/2005, p. 71).

 No momento da interrupção do seu seminário sobre os Nomes-do-Pai, Lacan havia

 prometido que nunca mais retomaria o tema, “vendo nisso o sinal de que esse lacre ainda não

 pode ser retirado para a psicanálise.” (LACAN, 1963/2005, p.92).  Esse é o lacre-do-pai, que

o próprio Freud teria se encarregado de colocar sobre a psicanálise; assim como Abraão, e

como zeloso psicanalista, Freud também sabia guardar bem o seu silêncio.

Para avançar na questão do sacrifício, que o conduziria à pluralização dos Nomes-do-

Pai, Lacan toma como referência o livro “Temor e tremor” (1843/1979), do filósofo

dinamarquês Soren Kierkegaard, no qual o filósofo apresenta quatro versões da narrativa

 bíblica, cada uma apresentando um desenlace diferente. Esses desenlaces, apresentados ao

final de cada versão, são concluídos com referências pontuais ao processo de separação entre

mãe e filho, chamada metaforicamente pelo autor de desmame. O desenlace proporcionado

 pelo desmame dá a tônica de cada versão, e antecipa essa verdade bem conhecida pelos

 psicanalistas: para não ter que sacrificar o filho ao próprio capricho, cada mãe é confrontada

com a perspectiva de separar-se dele. Perde-o, assim, como complemento à sua falta fálica,

mas abre diante dele a possibilidade de desejar algo para além dela própria. Por este caminho,

a criança emancipa-se do primado da onipotência materna (identificação com o falo da mãe),ao ingressar na Lei paterna.

 Na primeira versão da  Akedah  de Isaac, apresentada por Kierkegaard, é possível

distinguir claramente as duas faces do pai. A primeira surge quando pai e filho rumavam para

o local do sacrifício: “o rosto de Abraão era o de um bom pai: o olhar doce e a voz

exortavam.” (KIERKEGAARD, 1843/1979, p.197). Ao voltar o olhar novamente para o pai,

Isaac vê sua face alterada, com “olhar feroz” e “feições aterradoras.” (KIERKEGAARD,

1843/1979, p.197). A voz também se altera, e brada: “Estúpido! Supões que sou teu pai? Sou

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um idólatra! Crês que obedeço às ordens de Deus? Faço o que me apetece!”

(KIERKEGAARD, 1843/1979, p.127). Essa passagem ilustra brilhantemente os paradoxos

dos Nomes-do-Pai, articulando-os em torno de uma dupla hiância: o que o pai sabe, mas

esconde (seu pecado – S (A/)) e o que o filho, em sua perplexidade, não consegue

compreender. Dessa hiância, atravessada pelo absurdo advindo da lei caprichosa, emerge a

angústia, assinalando a dimensão de verdade que se transmite de pai para filho.

O Deus de Abraão se constitui como elemento terceiro, que media essa transmissão,

 permeada de angústia. Angústia de Isaac que, fremente, brada: “Deus do Céu? Tem piedade

de mim! Deus de Abraão, tem piedade de mim, sê meu pai, porque já não tenho outro na

Terra!” (KIERKEGAARD, 1843/1979,  p.197). E angústia de Abraão, que roga: “Deus do

Céu, dou-te graças. Vale mais que me julgue um monstro do que perca a fé em ti.”

(KIERKEGAARD, 1843/1979,  p.198). Dessa forma, Abraão mantém intacta a fé em Deus,

ainda que isso o leve a ter sua imagem conspurcada diante dos olhos do filho. Preservar a

crença na existência de Deus é um propósito tão nobre que, em nome Dele, Abraão está

disposto a sacrificar tudo, inclusive o filho. Tudo, menos perder a fé, o amor ao pai. Nessa

versão, o desenlace se processa como ruptura violenta e traumática:

Quando chega o tempo do desmame, a mãe enegrece o seio, porque manter o seuatrativo será prejudicial ao filho que o deve abandonar. (...) Feliz aquele que nãotenha de recorrer a meios ainda mais terríveis para desmamar o seu filho!(KIERKEGAARD, 1843/1979,  p.198).

 Na segunda versão, Abraão leva Isaac para o local do sacrifício e chega a colocá-lo

amarrado sob a faca, mas no fim, sacrifica apenas o carneiro. Após retornar para casa, nunca

mais foi o mesmo; tornou-se incapaz de esquecer o absurdo que esteve prestes a fazer e

 perdeu a alegria de viver, envelhecendo rapidamente. Nessa versão, conforme afirma Silvia

Helena Tendlarz (2005), “Kierkegaard nos apresenta o pecado do pai: o pecado de havertentado matar seu filho retorna como sentimento de culpa.” Quanto maior a magnitude do

sacrifício, maior é o retorno do sentimento de culpa. Aqui a tônica do desenlace é o pudor, a

vergonha diante dos olhos do filho: “Quando o menino, já crescido, tem de ser desmamado, a

mãe, pudicamente, oculta o seio e o menino já não tem mãe. Feliz o filho que não perdeu a

mãe de outro modo!” (KIERKEGAARD, 1843/1979,  p.198).

A terceira versão apresenta o paradoxo que permeia as relações entre o crime, o

 pecado e o castigo. A obediência incondicional ao absurdo decreto divino não apenas não

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alivia o sentimento de culpa, como também reforça as autoacusações. Abraão está entre a cruz

e a caldeira: se não obedece a Deus, é ímpio. Se o obedece, tanto pior, pois se vê refletido nos

olhos de Isaac como um filicida criminoso. O perdão é impossível diante de tão grave ofensa,

e aqui se dispõem os insondáveis paradoxos do supereu. O desenlace reveste-se de um tom

nostálgico que, no entanto, reconhece a inevitabilidade da separação.

Quando chega o tempo do desmame, a mãe fica triste pensando que ela e o filho seirão separar; que o menino, a princípio sob o seu coração e depois embalado no seio,nunca mais se encontrará tão perto dela. E juntos sofrerão esta curta pena. Felizaquele que conservou o filho tão perto do seu coração e não teve outro motivo dedesgosto! (KIERKEGAARD, 1843/1979,  p.199).

A quarta e última versão apresenta um Abraão fraco, hesitante, cuja mão “crispava dedesespero” (KIERKEGAARD, 1843/1979,  p.199) diante do ato sacrificial. Ao retornar para

casa, Isaac perde a fé, e o que se segue é uma silenciosa cumplicidade entre pai e filho –

nunca mais falaram do assunto, e comportaram-se como se nada tivesse acontecido. Tudo foi

em vão, a transmissão do enlace fracassa. Bem aventurados aqueles que demonstram decidida

determinação e força de vontade para assumir a separação e, dessa forma, estreitar o “vínculo

sagrado” (KIERKEGAARD, 1843/1979,   p.201) que se estabelece entre as gerações,

 permitindo sua majoração e renovação. “Quando chega o tempo do desmame, recorre a mãe àalimentação mais forte para evitar a morte do filho. Feliz aquele que dispõe de alimento

forte!” (KIERKEGAARD, 1843/1979,  p.199). Infeliz é aquele que dessa força não dispõe.

As diferentes versões da narrativa do sacrifício de Isaac, propostas por Kierkegaard,

antecipa para Lacan um recurso importante para tratamento do impossível, concernido no

enigma do silêncio de Abraão: a pluralização dos Nomes-do-Pai. Esse recurso, que renuncia a

equivalência hegeliana entre a verdade e a totalização do saber, começou a ser elaborado no

seminário interrompido (LACAN, 1963/2005), mas só alcançou sua plena formalização anos

depois, sob forma da lógica do enlace borromeano.

Essa forma de aproximação do real, e da angústia suscitada por ele, tal como delineada

em “Temor e tremor” (KIERKEGAARD, 1843/1979), pode ser mais bem apreciada à luz do

impacto que a narrativa do sacrifício de Abraão exerceu sobre Kierkegaard. Segundo afirma

ele próprio, seu pensamento é rechaçado a cada vez que busca acercar-se do paradoxo de

Abraão; assim como Isaac, ele fica estupefato, não consegue compreendê-lo em meio à

 perplexidade que o invade: “(...) quando me ponho a refletir sobre Abraão, sinto-me como que

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aniquilado. Caio a cada instante no paradoxo inaudito que é a substância da sua vida.”

(KIERKEGAARD, 1843/1979,  p.216).

 Na lição do seminário interrompido, Lacan se refere ao punhal do sacrifício, dizendo

que o gume de sua lâmina estabelece um marco “entre o gozo de Deus e o que, nessa tradição,

 presentifica-se como  seu desejo. Aquilo de que se trata de provocar a queda é a origem

 biológica. Aí está a chave do mistério.” (LACAN, 1963/2005, p.85). Lacan assinala, então,

que a inscrição do nome próprio vem a ocupar o lugar dessa indigência simbólica, própria da

mera existência biológica. O mito freudiano, construído em Totem e tabu, adorna essa hiância

com a figura obscena e feroz do pai primevo, que retinha todo o gozo para si e nada desejava.

 Na tradição hebraica da  Akedah  de Isaac, o primeiro ancestral humano revela-se como o

carneiro sacrificado, promovido a “Deus de sua raça.” (LACAN, 1963/2005, p.85).

 Na Akedah, a animalidade feroz do pai primevo é metaforizada pela Lei perpétua, ou

seja, há uma passagem do regime totêmico, regido pela identificação imaginária com o totem,

 para o regime simbólico da Lei do pai, do Nome-do-Pai. Segundo Éric Laurent, “O totem

nomeia uma descendência mediante uma identificação com um nome, descendência sem fim,

animal, ao passo que a  Akedah supõe um nome que só se sustenta na eficácia de seu dizer.”

(LAURENT, 2007, p.74). Essa eficácia na enunciação da Lei paterna é garantida, na

narrativa, pela intervenção do anjo que detém o punhal de Abraão, apontando-lhe overdadeiro objeto de sacrifício. Inaugura-se assim, a partir do gume do punhal de Abraão, o

 primeiro corte - a castração - que assegura um enlace inédito: a paternidade e o vínculo de

filiação que ela instaura. Conforme afirma Lacan, é da castração “que provém o que é

 propriamente a sucessão” (LACAN, 1969-70/1992, p.114), ou seja, aquilo que efetivamente

se transmite de pai para filho. A Lei tramitada pela barakah  (do hebraico, benção) paterna

efetiva um corte com a descendência biológica do homem, para instituir o enlace com a

 benção da palavra do pai. Esse é o corolário da “desconstrução lacaniana do pai freudiano”(LAURENT, 2007, p.74), que desembocará, no final do seu ensino, na redução do Nome-do-

Pai a um puro instrumento, ferramenta que só assume seu valor a partir do uso particular que

cada sujeito, em sua diferença absoluta, faz dela.

Lacan é conduzido, dessa forma, ao paradoxo que se estabelece entre a universalidade

da função paterna, corolário da inscrição normativa do Nome-do-Pai, e a particularidade de

seu gozo, de sua ex-sistência enquanto pai real, verdadeiro agente da castração.

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Aí reconhecemos, com efeito, para além do mito de Édipo, um operador, umoperador estrutural, aquele chamado de pai real - com a propriedade, eu diria, detambém ser ele, na qualidade de paradigma, a promoção, no coração do sistemafreudiano, do que é o pai do real, que coloca no centro da enunciação de Freud umtermo do impossível. (LACAN, 1969-70/1992, p.116).

É assim que se estabelece a passagem do pai mítico freudiano ao pai real, operador

estrutural lacaniano, que intervém separando a criança da mãe. Esta separação, instaurada a

 partir da intervenção da linguagem, se enuncia, para a mãe, por um: “não reintegrarás teu

 produto” (LACAN, 1957-58/1999, p.209), e para a criança: “não te deitarás com tua mãe”

(LACAN, 1957-58/1999, p.209), já que fez sua opção pelo falo.

2.5.2- Sacrifício e extimidade: limiares topológicos da Akedah

O gume do punhal de Abraão traça a borda que estabelece o marco da aliança e da

ancestralidade. Pela via do ato sacrificial, a Akedah instaura, simultaneamente, corte e enlace:

o corte da separação entre o sagrado e o profano, entre a Lei e o gozo, entre o sujeito e seu

objeto. Mas ela é também ligadura, enlace originário que permite a captura de algo do que foi

inicialmente separado.Diferentemente de Freud, Lacan concebe a castração como efeito real da incidência da

linguagem sobre o vivente, que até este momento, reduz-se apenas a sua “estúpida e inefável

existência” (LACAN, 1998 [1957/58], p.555). O efeito dessa incidência, por si só, gera

entropia, uma perda de gozo que só se inscreve para o sujeito como um mais-de-gozar . Isso,

 para Lacan, é o que opera no real, articulado enquanto impossibilidade, tal como matemizado

no discurso do mestre.

Figura 12 – Matema do discurso do mestre

Fonte: Adaptado de LACAN, 1969-70/1992, p.27.

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O matema do discurso do mestre ilustra a operação de constituição do sujeito do

inconsciente ($), efeito de verdade que emerge mediante a intervenção de um significante

mestre (S1) em um conjunto de significantes já articulado enquanto saber (S2), no campo do

Outro. Ao final dessa operação, o objeto mais-de-gozar (a) resta como um excesso

inassimilável pela estrutura da linguagem, que o sujeito, em vão, buscará incessantemente

recuperar. A barra ( // ) que separa o sujeito ($) do mais-de-gozar (a) constitui um ponto de

 basta, indicando que essa recuperação do gozo será sempre restrita, limitada pelas condições

impostas pela própria estrutura do discurso.

A sequência das operações de corte e enlace, apresentada metaforicamente na

narrativa do sacrifício de Abraão, é exatamente a mesma que deve ser executada para

constituir uma banda de Moebius.

Figura 13 – Banda de Moebius

Fonte: Elaborado pelo autor

Essa enigmática figura topológica subverte a noção habitual de espaço, pensada a

 partir dos pares de oposição direito/avesso ou dentro/fora. A banda de Moebius é o desenho

topológico da extimidade, neologismo lacaniano destinado a denominar o que é mais íntimode um determinado campo, mas que, no entanto, situa-se fora dele. Trata-se de um viés que

não apenas permite colocar em questão as complexas fronteiras entre interior e exterior, em

um determinado espaço, como também situar a posição êxtima  do objeto a em relação ao

campo da linguagem: “O sujeito está, se nos permitem dizê-lo, em uma exclusão interna a

seu objeto.” (LACAN, 1965-66/1998, p.875, grifo nosso).

A teoria dos quatro discursos, tal como elaborada por Lacan no seminário “O avesso

da psicanálise” (1969-70/1992), considera o axioma que afirma que o inconsciente é

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estruturado como uma linguagem, mas introduz aí a consideração ao gozo, polarizado em

torno do objeto a. A operação de corte, efetivada com a incidência da linguagem sobre o

vivente, pode ser demonstrada topologicamente mediante o recurso à banda de Moebius, que

desenha o trajeto dos sucessivos giros que possibilitam o deslizamento entre os diferentes

discursos:

Figura 14 – A torção moebiana dos discursos

Fonte: Elaborado pelo autor

A produção do mais-de-gozar assinala que, não importa de que forma se busque

amestrar, normalizar, capturar, capitalizar ou totalizar o gozo, ele sempre faltará no campo

simbólico, apesar de estar sempre aí implicado. O sacrifício é o subterfúgio pelo qual o

sacrificante pretende recuperar o gozo perdido mediante a entrega a Deus da incumbência da

causa de seu desejo, “o que é propriamente o objeto do sacrifício.” (LACAN, 1965-66/1998,

 p.887). Nesse ato, conforme indica Lacan, (1965-66/1998) ele barra ( // ) seu acesso à verdade.

O que é sacrificado de bem para o desejo (...) -, essa libra de carne é justamenteaquilo com o que a religião desempenha seu ofício e que se aplica em recuperar. É oúnico traço comum a todas as religiões, isso se estende a toda a religião, a todo osentido religioso. (LACAN, 1959-60/1988, p.377).

Essas indicações abrem caminho para pensar a economia do sacrifício, ligada a uma

compulsão à recuperação do gozo perdido no campo do sentido. Econômico é o sacrifício que

faz intervir a dimensão simbólica (S1 S2), estancando a entropia da perda de gozo e

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 barrando o circuito incessante da recuperação compulsiva ($//a), produzindo efeitos de

sentido. Dispendioso é o sacrifício que denega a falta de onde provém o desejo, atribuindo a

um deus obscuro a ordem que comanda o sacrifício.

Pela superfície sem avesso da banda de Moebius, circulam sem solução de

continuidade termos paradoxais e antagônicos, que fazem convergir suas contradições para

um único nome. Este é o caso do termo sacer , cuja ambiguidade já havia sido sublinhada por

Freud, a partir da leitura de Robertson Smith, bem como unheimlich, termo alemão cuja

significação também se presta ao mesmo caráter antitético, uma vez que expressa um

estranhamento permeado por familiaridade. Mas é também o caso, no ensino de Lacan, do

termo extimidade, que expressa essa torção na qual dentro e fora se conjugam, em uma

complexa relação de exclusão interna.

Baas (2001) alerta que, se as preciosas indicações lacanianas sobre o sacrifício,

mencionadas anteriormente, forem lidas com cautela, perceber-se-á que, quando Lacan fala da

insuficiência das teorias dialéticas, baseadas nas “premissas hegeliano-marxistas” (LACAN,

1964/1988, p.259), ele tem em vista o impasse da identificação, no qual desemboca qualquer

tentativa de síntese unificadora. E não é acaso se Lacan discute essa questão justamente no

momento em que articula o problema do fim de análise, apontando os impasses das

concepções em vigor na época, que preconizavam a identificação com o analista como termofinal de uma análise. Lacan (1963/2005, p.63) chega mesmo a dizer que “a dialética hegeliana

é falsa”, por pretender integrar toda forma de existência particular em um todo completo e

unificado.

A partir do espaço topológico instaurado pela banda de Moebius, é possível situar

termos antinômicos que tensionam entre si, mergulhados em um espaço sem fronteiras

instaurado pela  Akedah. Ambertín indica que o recurso à topologia pode ser utilizado para

abordar os paradoxos dos Nomes-do-Pai, sem ter que recorrer à dialética hegeliana, que visauma superação dos paradoxos através de uma síntese unificadora. Trata-se, portanto, não de

solucionar as aporias próprias desse campo, mas de sustentá-las, nos tênues limiares que

marcam a passagem entre o pai simbólico, espiritualizado e sublimado no corpus da Lei, e o

 pai totêmico, que se faz valer como voz supereuóica: “O pai maldito e sanguinário e o pai

 purificado, de bondade pura, deslizam juntos por uma borda da curva de Moebius.”

(AMBERTÍN, 2009a, p.49).

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Figura 15 – Os paradoxos dos Nomes-do-Pai

Fonte: AMBERTÍN, 2009a, p.28.

 No campo do pai simbólico, se dispõem termos como a castração, a Lei, o desejo, o

amor, a aliança, a dádiva e a dívida simbólica. Essa vertente do pai instaura uma linhagem

genealógica através da transmissão de um Nome, viabilizando um lugar de reconhecimento

que abrigará o sujeito em sua unicidade diferenciadora, inscrevendo-o no laço social. Essa

 perspectiva permite conceber o sacrifício em termos de equivalência com a castração,

operação simbólica constitutiva do sujeito. Nessa vertente, o sacrifício autoriza negociação, e

o sujeito pode decidir pelo que está disposto a sacrificar em nome de seu desejo. No entanto,

ele não é livre para não decidir-se.Em outra perspectiva, situam-se termos ligados ao real, cuja incidência é sempre

traumática: o gozo invocante do supereu, a fascinação sacrificial, a “culpa de sangue”

(FREUD, 1913/1991, p.155, tradução nossa) 37, a libra de carne e o anseio parricida,

escamoteado sob forma de renúncia ao gozo, raiz do servilismo alienante da “sede de

obediência.” (FREUD, 1921/2010, p.30). Nessa versão, o pai comparece como espectro

maligno; sua lei não interdita, mas compele o sujeito a sacrificar-se cada vez mais. Ineficaz

em garantir uma via de enlace simbólico, a Lei do pai degrada-se em um regime masoquistade funcionamento, destinado a encobrir, compulsivamente, a falha estrutural no campo do

Outro, tal como ilustrado no matema da fantasia sadiana (LACAN, 1963/1998, p.786):

37 “Culpa de sangre.”

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Figura 16 – Matema da fantasia sadiana

Fonte: LACAN, 1963/1998, p.786.

 Nesse matema, Lacan indica que o imperativo categórico kantiano pode ser

interpelado, ao nível de sua pura enunciação, pela vontade de gozo sadiana. O desejo (d),

estruturalmente sustentado pela demarcação fantasmática ($  punção de  a), desliza sub-

repticiamente para a vontade de gozo (V), operando uma inversão de lugares entre o sujeito e

o objeto de gozo ( a  punção de $). O sujeito sadiano se oferece masoquisticamente como

instrumento da vontade do deus obscuro (V), realizando-se como a voz de comando que

ordena o gozo ( a). Obtém-se, mediante o acosso da divisão subjetiva da vítima sacrificial ($),

um sujeito bruto do prazer, que encarna o desmentido sobre a castração (S).

Essas perspectivas, articuladas à problemática do sacrifício, foram assinaladas de

forma resumida por Patrick Guyomard (GUYOMARD, 2007), em uma conferência onde ele

discute formas perversas de apropriação da lei, em uma época dominada pelo discurso da

ciência. Segundo esse autor, o sacrifício é o termo que constitui a própria fronteira entre as

vertentes do desejo e do gozo, ou seja, ele constitui o domínio próprio da relação de

extimidade, estabelecida entre o registro real e o registro simbólico. Em sua vertente

simbólica, o sacrifício liberta (GUYOMARD, 2007); em sua vertente gozoza, ele

invariavelmente supõe “uma dominação, um esmagamento ao qual o desejo se opõe.”

(GUYOMARD, 2007, p.43). Deve-se considerar ainda, conforme alerta Guyomard (2007), a

 possibilidade de uma relativa indiferenciação entre essas vertentes do sacrifício, já que as

fronteiras que as demarcam podem, em certos momentos, se tornar tênues, e mesmo se

apagarem.

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Pode-se escrever a primeira vertente do sacrifício com a notação S (/A), significante

do Outro barrado. Trata-se do significante que falta no campo do Outro, assinalando sua

incompletude.

Com efeito, não tenho nenhuma garantia que este Outro, o sistema do Outro, possame devolver o que lhe dei - seu ser e sua essência de verdade. Não há, eu lhes disse,Outro do Outro. Não há no Outro nenhum significante que possa no caso responder pelo que sou. (LACAN, 1958-59/1986, p.47).

Isso implica, para o sujeito, na impossibilidade estrutural de receber uma derradeira

nomeação que permitiria designá-lo perante o desejo do Outro. O intercâmbio dos dons é

viabilizado, ainda que sem qualquer garantia de reciprocidade. Nessa vertente, a própria vida,

enquanto “entumescência vital” (LACAN, 1958-59/1986, p.47), é capturada e mortificada

 pelo logos  da Lei da linguagem, assinalando que o sacrifício, no registro simbólico, é

equivalente à castração:

É a parte de vocês que foi sacrificada aí, não sacrificada fisicamente como se diz, ourealmente, mas simbolicamente. Esta parte de vocês, que adquiriu funçãosignificante, há só uma, é a função enigmática que chamamos o falo (...) Dito deoutra forma, tão sacrificada quanto ela esteja ao Outro, sua vida não é, ao sujeito,devolvida pelo Outro. (LACAN, 1958-59/1986, p.47).

Trata-se, para o sujeito, de um sacrifício originário e estruturante, que condiciona a

aceitação da perda de gozo implicada na inscrição significante, pois somente assim ele

franqueará acesso à dimensão dos dons. Qualquer ganho que daí lhe advenha, será sempre

significado sobre o pano de fundo dessa perda. O dom da palavra só é oferecido àquele que se

dispõe ao sacrifício do gozo da Coisa ( Das Ding), nomeando-a, barrando-a, significando-a,

em suma, mortificando-a. O próprio fato de situá-la como perda já é uma forma de atribuir-

lhe, aposteriori, uma primeira significação simbólica, pois a princípio, ela é uma faltafundamental no campo do Outro, matriz estruturante da constituição do sujeito.

O que ocorre com o sujeito enquanto tenha sido simbolicamente castrado? Ele foisimbolicamente castrado no nível de sua posição como sujeito falante e não no nívelde seu ser. Seu ser tem de fazer o luto do que ele ofereceu em sacrifício, emholocausto á função do significante falante. (LACAN, 1958-59/1986, p.84).

Assim que seja significada no campo do Outro, essa perda originária convocará o

sujeito para um trabalho de luto, que implica na separação do objeto perdido. Aqui se dispõe

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 para ele uma escolha forçada, entre seu ser em falta, e a perda do objeto a, seu suposto

complemento, ao qual é mais apegado do que a si mesmo.

Lacan propõe uma perspectiva inédita no tocante ao conceito de castração em

 psicanálise, ao torná-la equivalente a um sacrifício simbólico. Contrariando a tradicional

concepção de castração veiculada pelo revisionismo pós-freudiano, que a concebe como um

fato traumático cuja lembrança evocaria horror e evitação, Lacan propõe o inverso.

Mas essa castração, contrariando essa aparência, é algo a que ele se apega. O que oneurótico não quer, o que ele recusa encarniçadamente até o fim da análise, ésacrificar sua castração ao gozo do Outro, deixando-o servir-se dela (LACAN,1960/1998, p.841).

Então o que está em questão no sacrifício é a própria falta, a própria castração, que até

o momento de sua negativação no campo do Outro, encontra-se velada pelo semblante fálico,

cristalizado por Freud (1937/1991) na célebre metáfora de um rochedo intransponível. A

formulação que melhor lhe corresponde seria: tudo menos isso.

 Na perspectiva lacaniana, o falo é designado como significante que falta no campo do

Outro, descompletando-o e assinalando-o como desejante, introduzindo, assim, o sujeito na

metonímia do desejo. Para aceder ao ‘ter’ da dimensão desejante dos dons, é necessário que se

sacrifique o gozo de ‘ser’ o falo, objeto que preencheria a falta do Outro. Nessa perspectiva, a

castração é separadora e normativa, pois a custo de um sacrifício, ela refreia o gozo no campo

do Outro e o restitui, “na escala invertida da Lei do desejo.” (LACAN, 1960/1998, p.841).

2.6 – Ritual sacrificial, trabalho de luto e separação

O declínio do complexo de Édipo é o luto do Pai, masele se conclui por uma sequela duradoura: aidentificação que se chama supereu. O Pai não amadotoma-se a identificação que cumulamos de críticassobre nós mesmos. (LACAN, 1960/2005, p.30). 

O trabalho de luto cumpre uma função fundamental no sacrifício simbólico, e nesse

sentido, não é despropositado recorrer às teorizações freudianas contidas no texto “Luto e

melancolia.” (FREUD, 1917 [1915] /2010). Nesse texto, Freud traça uma oposição entre duas

diferentes reações, por parte do sujeito, diante da perda de um objeto ou ideal amado: o

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trabalho de luto e a reação melancólica. O trabalho de luto é caracterizado por uma retirada

dos investimentos amorosos do objeto, acompanhada da liberação da libido nele retida,

 permitindo ao sujeito separar-se dele e reinvestir a libido liberada em outro objeto. Na reação

melancólica, o sofrimento vem acompanhado de “recriminações e ofensas à própria pessoa”,

 podendo chegar “a uma delirante expectativa de punição.” (FREUD, 1917 [1915] /2010

 p.173). “No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio eu.”

(FREUD, 1917 [1915] /2010, p.176).

Essa distinção, situada em nível tópico por Freud, indica que na melancolia, não há um

trabalho psíquico em torno da perda; o sujeito é arrastado por ela, sem possibilidade de

restabelecer os laços que o ligam à vida. O trabalho do luto não consiste apenas em separar-se

do objeto perdido, mas também em restabelecer uma nova forma de enlace com ele, através

do remanejamento dos investimentos libidinais. Caso esse reinvestimento fracasse, a libido

retida no objeto reflui para o eu de forma devastadora, como se pode constatar no auto-

martírio melancólico. Nesse caso, a sombra do objeto recai sobre o sujeito, e as trevas da

obscura necessidade de castigo prevalecem sobre o enlace com o Outro. Ou seja, a

identificação com o objeto abandonado provoca uma irreparável hemorragia narcísica,

acompanhada do colapso da demarcação fantasmática, que se dissolve na ausência do luto

separatório.Se no referido texto Freud (1917 [1915] /2010) indica o caráter ambivalente da

identificação, afirmando que a auto-recriminação melancólica nada mais é do que um retorno

da hostilidade dirigida originalmente ao objeto perdido, no texto “Neuroses de Transferência”

(1915/1987), ele vai mais além, destacando que o objeto em questão é o pai primevo. “O luto

 pelo pai primitivo emana da identificação com ele, e tal identificação provamos ser a condição

do mecanismo da melancolia.” (FREUD, 1915/1987, p.80). Além disso, Freud acrescenta que

o ciclo entre mania e melancolia, observado em alguns casos, pode ser comparado à “(...)sucessão semelhante de triunfo e luto que forma o conteúdo regular das festividades

religiosas. Luto pela morte de Deus; alegria triunfal na sua ressurreição.” (FREUD,

1915/1987, p.80).

 Na medida em que se identifica com o pai morto, o sujeito dirige a si mesmo todo o

ódio e ressentimento que estava inicialmente voltado para ele. Não há a metaforização deste

 pai morto, que permitiria reconstituí-lo na escala invertida do laço social como pai simbólico

da Lei, mas sim sua  foraclusão, que encontra formas selvagens de retorno. Quinet (1997,

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 p.125) afirma que, nesse caso, não há identificação com o pai simbólico, mas sim “com o furo

deixado pelo pai morto, com este vazio. (...) Se o sujeito não consegue a incorporação

simbólica, o que lhe resta é a identificação com o vazio deixado pelo pai, com o pai ausente”.

Segundo Ambertín, o luto pode ser entendido como a “subjetivação de uma perda”

(2009a, p.115), “um trabalho de separação e, ao mesmo tempo, de enlace com o objeto

 perdido.” (2009a, 118). Pode-se pensar que esse trabalho consiste em restabelecer os marcos

do enquadre fantasmático da realidade, abalado pela perda do objeto amado. Após o abalo, as

fronteiras que demarcam a separação entre o sujeito e o campo do Outro se apagam, e novas

referências precisam ser estabelecidas. Efetivar esse trabalho é tarefa dispendiosa e

necessária; àquele que a recusa, resta o funesto destino de reviver a nostalgia do pai morto, no

que ele tem de pior. Nessa via, nada mais resta ao sujeito senão o tormento permanente ligado

à culpa e à autoimolação, verdadeira incitação ao auto-sacrifício, que anula qualquer

 possibilidade de diferenciação com relação ao objeto sacrificado.

Ao desvendar o mecanismo da identificação, Freud (1921/2010) abriu o caminho para

o entendimento de que o sujeito se constitui a partir de um traço tomado do campo do Outro.

O traço unário celebra o gozo que irrompe quando, “confrontado com o significante

 primordial, o sujeito vem, pela primeira vez, à posição de se assujeitar a ele.” (LACAN,

1964/1988, p.260). No sacrifício, essa operação de divisão subjetiva se apresentará como umadualidade irredutível entre o sacrificante ($) e o objeto sacrificado ( a). Os limiares que

sustentam a separação entre esses dois polos tornam-se tênues a ponto de esfumar-se,

fazendo-se necessária a intervenção dos rituais separadores.

Desde os estudos de Mauss e Hubert (1968 [1899] /2005), sabe-se que existe uma

função diferenciadora nos rituais de sacrifício, que visam estabelecer um limiar entre o

sacrificante (profano) e sua oferenda (sagrada), em uma zona demarcada. Lacan (1958-

59/1986) considerou a importância dos ritos funerários no processo de luto, assinalando queeles fazem intervir o registro simbólico como resposta ao vazio deixado pela perda do objeto,

vivida pelo sujeito no registro narcísico:

O trabalho do luto é primeiramente uma satisfação dada ao que se produz dedesordem por causa da insuficiência dos elementos significantes para fazer frente ao buraco criado na existência. Pois é o sistema significante no seu conjunto que écolocado em questão pelo menor luto. (LACAN, 1958-59/1986, p.75).

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A função do ritual é fundamental para velar e  ficcionar  o horror despertado diante da

traumática revelação da inconsistência no campo do Outro, bordejando-a, e permitindo assim

ao sujeito remanejar seus pontos de ancoragem. Nesse sentido, “o rito introduz uma mediação

em relação ao que o luto abre como hiância.” (LACAN, 1958-59/1986, p.77). Em suma, o rito

opera no sentido do trabalho de luto, permitindo re-vestir  o objeto assim desnudado com o

manto agalmático da idealização i ( a), sustentado no amor. Esse processo torna possível ao

dolente sustentar um enlace diante do desejo do Outro, quando sua única alternativa é deixar-

se cair como objeto nadificado.

A função do ritual no trabalho de luto preserva a função do desejo, e da falta que lhe é

consubstancial. Não há trabalho de luto possível se a falta no campo do Outro - S (A/) - não

for significada pelo sujeito. O que constitui a verdadeira dádiva no amor é, essencialmente,

dar aquilo que não se tem, ou seja, empenhar a própria castração: “Só nos enlutamos por

alguém de quem possamos dizer a nós mesmos: eu era sua falta.” (LACAN, 1962-63/2005,

 p.156). Dessa forma, o enlutado pode consentir com essa falta, com a perda do amado, mas

sem ter que renunciar ao seu amor. Renunciá-lo, adverte-o bem Freud (1917 [1915] /2010),

significa cedê-lo ao ressentimento por suas falhas e às recriminações supereuóicas, que

acabam se voltando violentamente contra o enlutado.

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3 – SACRIFÍCIO DESSACRALIZADO, BIOPOLÍTICA E VIDA NUA: O LUTO

IMPOSSÍVEL DO PAI IDEAL

 Atualmente os seres humanos atingiram um tal controledas forças da natureza, que não lhes é difícilrecorrerem a elas para se exterminarem até o últimohomem. Eles sabem disso; daí, em boa parte, o seuatual desassossego, sua infelicidade, seu medo. (FREUD, 1930/2010, p.122).

O trabalho de luto pode ser situado no tocante à dimensão econômica das duas

vertentes do sacrifício, mencionadas anteriormente: aquele que estabelece a aliança e aquele

que a dissolve. Considerá-lo no contexto histórico da época atual, marcada pela ascensão do

discurso capitalista, aparelhado pela tecnociência, constitui ocasião oportuna para aprofundara pesquisa em direção à referida segunda vertente do sacrifício. Qual é o impacto desse

discurso de índole totalitária e segregacionista sobre o sacrifício, entendido como limiar

êxtimo entre o desejo e o gozo?

Primeiramente, deve-se considerar, conforme já advertia Lacan (1962-63/2005,

 p.301) em sua época, que o fato de termos perdido nossos deuses “na grande feira

civilizadora” não deve nos fazer esquecer que, durante um longo período da história, sua

 presença se impunha a ponto de suscitar desavenças com os homens.

A questão toda era saber se esses deuses desejavam alguma coisa. O sacrifícioconsistia em agir como se eles desejassem como nós, e se desejavam como nós, o ateria a mesma estrutura. Isso não quer dizer que eles engulam o que lhessacrificamos, nem tampouco que isso possa lhes servir para alguma coisa; oimportante é que o desejem e, direi ainda, que isso não os angustie. (LACAN, 1962-63/2005, p.302).

Com a oferenda sacrificial, busca-se responder a esse enigma do desejo do Outro e

 pacificar a angústia que ele suscita, revestindo objetos mundanos (pessoas, animais, etc) como manto agalmático e fazendo-os circularem no campo da demanda do Outro. Enquanto esse

circuito da troca de dádivas opera, há uma economia de sacrifício; quando ele sofre ruptura,

emerge a angústia.

Situado como instituição, em sua vertente simbólica, o ritual sacrificial se pauta pelo

 princípio necessário que rege qualquer forma de laço social: “refrear o gozo.” (LACAN,

1967/2003b, p.362). Essa função, conforme já mencionado, opera a expensas da captura e

domesticação dos deuses nas redes do desejo, vale dizer, nas malhas do significante. Nesse

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sentido, o sacrifício se institui como discurso, e está sujeito às mesmas diretrizes que regulam,

de maneira geral, as diferentes modalidades de laço social: “A referência de um discurso é

aquilo que ele confessa querer dominar, querer amestrar. Isto basta para catalogá-lo em

 parentesco com o discurso do mestre.” (LACAN, 1969-70/1992, p.65). A domesticação dos

Deuses, empreendida no ato sacrificial, pode ser entendida como forma de refrear e amestrar

o gozo no campo do Outro, buscando apaziguá-lo. Quando esse propósito fracassa, o enlace

simbólico com o Outro se rompe, emergindo daí a angústia, diante do objeto despido de seu

semblante agalmático.

Conforme indica Ambertín (2009a), as práticas sacrificiais assumem um caráter

universal no mundo humano. Sua origem pode ser remontada às mais antigas narrativas e

costumes, e elas nunca deixaram de marcar presença na vida dos povos. Em povos antigos,

essas práticas buscavam angariar favores junto às divindades, como por exemplo, garantir que

o sol renasceria no horizonte a cada dia, em troca de um derramamento de sangue.

Em sua história, os seres humanos sempre mantiveram o hábito de atribuir suas

venturas e desgraças a uma instância superior e transcendente: Deus, a Providência ou o

Destino. Na atualidade, no contexto das sociedades secularizadas, dominadas pelo mercado e

administradas pelas modernas tecnologias de gestão, a economia do sacrifício se modificou,

 bem como a significação que a ele se atribui. Se as práticas sacrificiais se mantêm vivas eatuantes - ainda que tenham mudado seu estatuto – isso se deve à persistência das ameaças

advindas de “uma potência colérica” (AMBERTÍN, 2009a, p.34), de caráter maléfico,

denominadas por Freud de “império das pulsões malignas” (FREUD, 1907/1991, p.109,

tradução nossa) 38, e por Lacan de “deuses obscuros.” (LACAN, 1964/1988, p.259). “Nós as

especificamos como espreita do real.” (AMBERTÍN, 2009a, p.34).

Freud sabia muito bem que as eclosões do real, acompanhadas do seu potencial

dessubjetivante, nunca cessam, por mais que a civilização tecnocientífica tenha possibilitadoao próprio homem se constituir como um “deus protético.” (FREUD, 2010/1930, p.52).

Mesmo paramentado pelo arsenal tecnológico proporcionado pelo avanço da ciência, o

homem contemporâneo não está imune ao mal estar de sua época. Freud também não

desconhecia que, no fundamento de quaisquer das instâncias superiores reconhecidas pelos

homens, residia um inelutável apelo a um “pai grandiosamente elevado.” (FREUD,

1930/2010, p.27). No fundo de sua alegada descrença, o homem desencantado e desamparado

38 “Imperio de pulsiones malignas”.

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da civilização tecnocientífica acredita poder “salvar o Deus da religião, substituindo-o por um

 princípio impessoal, espectralmente abstrato.” (FREUD, 1930/2010, p.27). Reside aí o

fundamento da aposta sacrificial, que a cada dia se renova em busca de uma solução para o

desamparo humano. Mesmo sendo cada vez mais degradada e desprovida dos rituais

separadores, essa aposta continua a exercer seu fascínio mortífero, na busca pela consagração

do pai ideal.

O quadro “O Cristo morto na tumba”, pintado em 1521 por Hans Holbein, retrata uma

imagem que permite vislumbrar os efeitos corrosivos e desagregadores que o declínio das

referências ordenadoras provocou no laço social. No quadro, o cadáver do Cristo repousa

inerte em sua tumba, deixando à mostra as feridas e os estigmas que lhe foram impostos

durante seu martírio. O realismo da imagem é assustador, exibindo impudicamente cada

detalhe das marcas do castigo.

Figura 17 – O Cristo morto na tumba (Hans Holbein, 1521).

Fonte: WIKIPEDIA, 2015.

Como se sabe, o quadro de Holbein exerceu grande impacto no escritor russo Fiodor

Dostoiévski, servindo-lhe como fonte de inspiração para a escrita do romance “O idiota”

(DOSTOIÉVSKI, 1869/2002), um de seus livros mais aclamados. Ao deparar-se pela

 primeira vez com esse quadro, no Museu de Basiléia, o escritor ficou estupefato,

 permanecendo diante dele em um transe que durou por longos minutos. Esse efeito de

sideração foi transferido a um dos protagonistas do romance, o príncipe Míchkin, que em

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determinado momento exclama: “Este quadro!... Este quadro! Mas sabes que ao olhá-lo, um

crente pode perder a fé.” (DOSTOIÉVSKI apud KRISTEVA, 1989, p.103).

Em uma publicação sobre “O Cristo morto na tumba”, Julia Kristeva (1989) comenta

que a tradição da iconografia italiana enaltece o semblante de Cristo em suas representações,

sempre adotando o cuidado de cercar o seu corpo com a presença de outros personagens, com

os quais o observador possa se identificar. Trata-se de um recurso iconográfico que sugere a

atitude que nós próprios deveríamos adotar diante da paixão de Cristo: reverência pelo

sofrimento do mártir e regozijo pela sua ressurreição.

 No quadro de Holbein, contudo, o Cristo é deixado absolutamente só, abandonado sem

nenhuma mediação que se interponha entre o espectador e a melancólica nudez de sua morte.

A solidão do cadáver se conjuga, na imagem, com o realismo cru da pedra tumular; ela fecha,

claustrofobicamente, qualquer possibilidade de transcendência para um além: “esse cadáver

não se levantará mais.” (KRISTEVA, 1989, p.105).

Completamente abandonado pelo pai, o Cristo morto de Holbein não oferece nenhuma

 perspectiva ao espectador; o sepulcro é talhado na mesma medida que o cadáver ali exposto,

sem nenhum ponto de fuga que permita vislumbrar a saída da tumba. Percebe-se assim que o

sacrifício falhou em sua eficácia espiritual e simbólica, comprometendo o trâmite entre a

esfera profana e a divina. Nesse sentido, o Cristo morto de Holbein é o homo sacer , matável e

insacrificável em seu abandono. Sua herança é o desamparo irremediável, consagrado pela

violência e mera matabilidade, sem nenhuma eficácia sagrada. Em suma, o quadro de Holbein

representa muito bem o desamparo do homem moderno, para quem Deus está morto. Estará

esse homem à altura da exigência do trabalho de luto, implicada nessa perda?

3.1 - Razão sacrificial e gestão biopolítica de populações supérfluas

Pois é perfeitamente concebível, e mesmo dentro das possibilidades políticas práticas, que, um belo dia, umahumanidade altamente organizada e mecanizadachegue, de maneira democrática- isto é, por decisão damaioria- à conclusão de que, para a humanidade comoum todo, convém liquidar certas partes de si mesma. (ARENDT, 1951/1989, p.332).

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O declínio da referência simbólica, nos dias atuais, responde pela desagregação do

laço social e pela eclosão de fenômenos sociais como a violência e a criminalidade. Os

discursos da ordem operam com a finalidade manifesta de conter e moderar o gozo excessivo

que reverbera no laço social. Percebe-se, no entanto, que ao assumir uma conformação

 biopolítica, eles acabam potencializando o ódio e a violência que visam combater. Conforme

indica Henrique Carneiro (2010), “a violência guarda relação direta com a ineficácia dos

discursos normativos”. O autor explica como o desgaste dos mitos estruturantes desencadeiam

efeitos perversos nas subjetividades que aí se engendram, entre eles o rechaço de qualquer

 possibilidade de responsabilização ou assentimento subjetivo com relação às passagens ao ato

criminosas. “A outra consequência destacável é que implode o lugar da alteridade como um

lugar de referência a um mito”, instaurando o “império do thanático  por excelência”.

(CARNEIRO, 2010).

 Nas modernas sociedades industriais e capitalistas, que “perderam seus Deuses na

grande feira civilizadora” (LACAN, 1962-63/2005, p.301), as práticas sacrificiais continuam

a ocorrer, com toda a sua carga de fascínio e violência, mas sem estarem submetidas à

limitação imposta pelos rituais e pelo ordenamento pautado no discurso religioso.

À medida que as sociedades foram se tornando mais complexas, o sacrifício foi perdendo o nexo com a instituição religiosa e passou a ser uma oferenda, um simplesautodespojo em benefício de alguma divindade criada pelos homens segundo omodelo de pai ideal e o seu avesso, o pai maligno. (AMBERTÍN, 2009a, p. 51). 

Referindo-se às sociedades de consumo contemporâneas, Legendre (2008a, p.24)

comenta que em tais sociedades se fala de problemas sociais, mas não de sacrifícios e

sacrificados, indicando que, para elas, “o sacrifício humano de massas adquiriu o estatuto de

uma simples prática gestionária.” 39  Dessa forma, a segregação e o que ele nomeia como

“sacrifícios ultramodernos” (LEGENDRE, 2008a, p.27) são escamoteados, camuflados sob aideia da inevitabilidade de efeitos colaterais, inerentes ao progresso social. Por essa via, as

sociedades capitalistas reproduzem em seus mecanismos homogeneizadores novas formas de

intolerância, cada vez mais selvagens.

39 “El sacrificio humano de masas adquirió estatus de simple práctica gestionaría”.

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Em nossas sociedades industrialistas são necessários os holocaustos ou exploraçãode grupos, reduzidos por vezes a um estado de sub-humanidade, para que a questãosacrificial volte a aflorar no discurso. (LEGENDRE, 1996, p.61). 40 

Dessa forma, a modificação na economia do sacrifício na atualidade pode ser pensadadentro de um contexto mais amplo, na “era do governo tecnocientífico” (LEGENDRE, 1996,

 p.12, tradução nossa) 41, que submete o domínio da lei ao primado da norma, regida pelos

 princípios da “gestão ultramoderna.” (LEGENDRE, 1996, p.12, tradução nossa) 42. Nesse

contexto, o discurso científico cumpre uma função fundamental, no sentido de instaurar novas

formas de submissão, através da instituição de normas de regulação social.

 Na perspectiva adotada por Jacques Derrida (2000), a gestão tecnocrática da vida

 prolonga a agonia do sacrifício de Isaac até os dias de hoje, despertando o furor sacrificial nãoapenas entre os povos do Livro, como também “no restante do mundo faminto, entre a imensa

maioria dos homens.” (DERRIDA, 2000, p.72, tradução nossa) 43. No contexto das

sociedades contemporâneas, as práticas sacrificiais extrapolaram o campo religioso, tendo se

tornado um fator fundamental na gestão tecnocrática das populações.

Uma sociedade como essa não apenas participa deste sacrifício incalculável, comotambém o organiza. O bom funcionamento de sua ordem econômica, política, jurídica, o bom funcionamento de seu discurso moral e de sua boa consciênciasupõem a operação permanente deste sacrifício. (DERRIDA, 2000, p.85, traduçãonossa) 44.

Tanto pior, afirma Derrida (2000), que essas modalidades dessacralizadas e

 perdulárias de gestão do sacrifício, que ceifam tantas vidas, tenham por corolário a cessão de

responsabilidade, ou seja, não há ninguém que possa realmente responder por elas.

Transformado em espetáculo pelas emissoras de televisão, o fascínio sacrificial é amplamente

disseminado, ascendendo ao zênite social em sua potência absoluta, com imagens de horror e

violência.

40 “En nuestras sociedades industrialistas son necesarios los holocaustos o la explotación de grupos reducidos a

veces al estado de subhumanidad para que la cuestión sacrificial vuelva a aflorar en el discurso”.41 “Era del gobierno tecno-científico.”42 “Gestión ultramoderna.”43 “El resto del mundo hambriento, la inmensa mayoría de hombres.”

44  “Una sociedad así no sólo participa de este sacrificio incalculable, sino que lo organiza. El buen

funcionamiento de su orden económico, político, jurídico, el buen funcionamiento de su discurso moral y de su buena conciencia suponen la operación permanente de este sacrificio”.

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Lacan (1974/s.d.) considerou que, na conjuntura histórica da época, era possível

constatar um declínio do Nome-do-Pai, que havia sido substituído por um poder de “nomear

 para.” (LACAN, 1974/s.d. tradução nossa). Este poder, conforme assevera Lacan, se constitui

como uma ordem de ferro, que não deve ser confundida com a Lei, uma vez que ela nada

mais é do que o retorno selvagem do Nome-do-Pai foracluído. Diferentemente da Lei do pai,

que nomeia assegurando reconhecimento e filiação, a ordem de ferro é anônima e anômica, se

aproximando mais dos arbitrários mandatos do supereu. A primeira reconhece a interdição,

mas a segunda não; por isso, Lacan fala de foraclusão e retorno no real, cujo corolário é signo

de uma “degeneração catastrófica” (LACAN, 1974/s.d., tradução nossa) 45, que pôde ser

testemunhada a partir da ascensão dos regimes totalitários, durante o século XX. Tais

movimentos assinalam uma degradação do espaço político contemporâneo, que assume a

conformação de uma tecnocracia biopolítica.

Essas elaborações podem ser articuladas à indicação lacaniana (LACAN, 1967/2003a,

 p.263) de que os campos de concentração se constituem como efeito do remanejamento dos

grupos sociais orquestrados pela ciência, pela via da segregação. Segundo Lucíola Macêdo

(2014), “este é um modo de dizer da  biopolítica, ainda que tal noção só tenha sido formulada

 por Foucault nos anos setenta”. A autora acrescenta que, tendo em vista o contexto da

atualidade, marcada pela globalização, vivemos em uma época na qual a biopolítica e a política se sobrepõem, constituindo “os terrenos privilegiados sob os quais o real é tocado

 pela técnica.” (MACÊDO, 2014).

Em seu livro “As origens do totalitarismo”, Hannah Arendt (1951/1989) soube antever

a crise do espaço político de sua época, e não deixou de assinalar a importância que a

 burocracia assumiria no funcionamento político das sociedades contemporâneas. O automaton

 burocrático das instituições políticas ameaça aniquilar o espaço democrático da liberdade, e

com ele, a dimensão ética da responsabilidade. As reflexões estabelecidas pela autora, nessaépoca, já apontavam que a burocratização da esfera política se constituía como fator sine qua

non para o estabelecimento dos regimes totalitários.

As implicações acerca da burocratização generalizada da vida política conduziram

Arendt (1969/2011), alguns anos depois, a vincular o problema do primado da violência sobre

a ação política ao declínio da autoridade. Aonde quer que o poder político fraqueje, surge a

violência, entendida como expressão radical da impotência e do fracasso do vínculo

45 “Degeneración catastrófica”.

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 proporcionado por ele. Sendo assim, na medida em que o poder político se aproxima do pacto

simbólico, estabelecido em torno da autoridade, a violência é um sintoma que indica a

degradação desse pacto. O fracasso do enlace político não é prerrogativa dos regimes

francamente autoritários; ele pode muito bem ocorrer em regimes democráticos, que também

não estão a salvo das mazelas da violência, a exemplo do Brasil, conforme se viu na pesquisa

documental apresentada no primeiro capítulo.

Tal como hoje se pode constatar, o campo da decisão política é subsumido sob o

 primado do “poder anônimo dos administradores.” (ARENDT, 1969/2011, p.103). A figura

do soberano, do líder carismático, cede lugar para as modernas tecnologias de gestão

automatizada, que assumem o ar de uma “tirania sem tirano.” (ARENDT, 1969/2011, p.101).

A burocratização das instituições políticas é uma consequência da complexificação da vida

em sociedades de massa, que criam novas necessidades e demandam dispositivos de controle

cada vez mais sofisticados. “Quanto maior torna-se um país em termos populacionais, de

objetos e posses, tanto maior será a necessidade de administração, e com ela, o poder anônimo

dos administradores.” (ARENDT, 1969/2011, p.103). Conforme já se disse, a implicação

desse modo automatizado de gestão é a cessão de responsabilidade. Afinal, quando não há

quem decida, ninguém se responsabiliza.

Alguns anos após essas reflexões, estabelecidas por Hannah Arendt, Michel Foucault(1999) cunhou o termo biopolítica, para se referir ás técnicas emergentes de gestão

tecnocrática das populações, constituídas a partir da segunda metade do século XVIII.

Segundo Foucault, o auxílio do conhecimento produzido pelas ciências emergentes forneceu

subsídios para que a biopolítica se exercesse positivamente sobre a vida, promovendo a sua

gestão, manutenção, majoração e multiplicação, assegurada pelo mote  fazer viver e deixar

morrer.  Difere-se, portanto, do poder soberano, que pauta-se pela divisa  fazer morrer e

“deixar viver.” (FOUCAULT, 1999, p.130).O ponto de ancoragem do aparato normativo biopolítico é o indivíduo tomado como

membro de uma espécie, despojado de toda forma de determinação simbólica ou política.

Esse desnudamento do sujeito político tornou-se crescente em decorrência dos avanços do

discurso científico, que estendeu ramificações em direção à formulação de tecnologias de

gestão das populações. 

Foucault alertava que o surgimento da biopolítica teria provocado uma mudança

radical no modo de funcionamento do sistema jurídico. Essa mudança, assegura ele, é a “a

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importância crescente assumida pela atuação da norma, a expensas do sistema jurídico da lei.”

(1999, p.135). Isso não quer dizer que a lei, e o aparato jurídico que a sustenta tende a

desaparecer, mas sim que

(...) a lei funciona cada vez mais como norma, e que a instituição judiciária seintegra cada vez mais num contínuo de aparelhos (médicos, administrativos etc.)cujas funções são sobretudo reguladoras. Uma sociedade normalizadora é o efeitohistórico de uma tecnologia de poder centrada na vida. (FOUCAULT, 1999, p.135).

 Na medida em que o aparato biopolítico de regulação social conquista hegemonia, a

instância interditora da lei perde sua eficácia de enlace simbólico. No campo político assim

transformado, surge uma nova forma de existência, condicionada por uma administração

 burocrática pautada no racismo estatal biologizante e no “ordenamento eugênico da

sociedade” (FOUCAULT, 1999, p.140), imbuídos da “preocupação mítica de proteger o

sangue e purificar a raça.” (FOUCAULT, 1999, p.140). Esses princípios encontraram forma

máxima de expressão no genocídio sistemático dos judeus, entre outras populações

consideradas supérfluas, durante o domínio do regime nazista.

Foi a partir do ideal eugênico de purificação da raça humana que o nazismo lançou as

 bases de sua ideologia, que implicava, por princípio, a segregação de indivíduos considerados

racialmente degenerados. Temia-se que tal degeneração se propagasse, contaminando e

corrompendo os segmentos sadios da população, caso nada fosse feito para contê-la. Tais

regimes, que exercem o poder baseados no princípio de que a sociedade deve constituir uma

unidade pura, seja ela racial ou nacional, têm como decorrência necessária a segregação e o

sacrifício de alguns segmentos populacionais considerados decadentes e corrompidos, em

 benefício de um todo saudável, regrado e harmônico. Nesses regimes, a lei cede lugar a um

colossal aparato normativo, cujo campo de incidência não é mais o sujeito político, o cidadão,

mas sim o vivente, reduzido a sua mera existência biológica.Situar a raça como princípio organizador da estrutura política não constitui

 propriamente um evento inédito, e a história é pródiga de lições que o confirmam. Antes que

este expediente fosse largamente utilizado pelo regime nazista, ele já estava presente no

 zeitgeist  do século XIX, conforme afirma Arendt.

 No fim do século XIX, escritores tratavam de assuntos políticos em termos de biologia e zoologia, e zoólogos escreviam “Observações biológicas sobre nossa

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 política externa”, como se houvessem descoberto um guia infalível para osestadistas. (ARENDT, 1951/1989, p.210).

A autora destaca que, apesar de ter estado sempre presente na vida política dos povos,

o racismo nunca havia chegado a produzir “novas categorias de pensamento político.” 

(1951/1989, p.214). A partir do século XIX, o racismo é promovido como ideologia oficial de

Estado, servindo como princípio da segregação de populações indesejadas. Tornava-se, dessa

forma, elemento fundamental nas propagandas veiculadas pelo Estado, que encontrava nele

meio para angariar apoio popular e força para a adoção de políticas cada vez mais sectárias e

segregacionistas. O que se seguiu às elaborações de Arendt (1951/1989) foi uma escalada,

sem precedentes, do processo de biologização da dimensão política, confirmando, dessa

forma, as teses sustentadas pela autora.

Tendo ultrapassado o “limiar de modernidade biológica” (FOUCAULT, 1999, p.134),

as atuais democracias ocidentais complexificaram seus dispositivos de gestão das populações,

ocasionando uma profunda modificação na economia do poder. Contando com um

aparelhamento tecnocientífico cada vez mais sofisticado, o poder passa a incidir cada vez

mais na dimensão biológica, em detrimento da dimensão política. Seu corolário é a

degradação do espaço político ás custas da animalização do homem. Se ao longo de dois

milênios o homem permaneceu o que era para Aristóteles – “um animal vivo e, além disso,capaz de existência política - o homem moderno é um animal, em cuja política, sua vida de

ser vivo está em questão.” (FOUCAULT, 1999, p.134).

Esses apontamentos de Foucault vão de encontro às teses desenvolvidas por Hannah

Arendt, em seu livro “A condição humana.” (1958/2007). Segundo ela, o bios politikos 

aristotélico

(...) denotava explicitamente somente a esfera dos assuntos humanos, com ênfase naação, praxis, necessária para estabelecê-la e mantê-la. Nem o labor nem o trabalhoeram tidos como suficientemente dignos para constituir um bios, um modo de vidaautônomo e autenticamente humano; uma vez que serviam e produziam o que eranecessário e útil, não podiam ser livres e independentes das necessidades e privaçõeshumanas. (ARENDT, 1958/2007, p.21).

Pode-se considerar então que a vida de ser vivo ( zoe), referida por Foucault (1999), é

 justamente aquela que os gregos limitavam à esfera doméstica do lar (oikos), sendo a ela

correspondentes formas apolíticas de existência: o labor escravo à custa do suor da testa, e o

labor do parto das mulheres, que, como se sabe, também não estavam incluídas no seleto

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grupo de cidadãos da polis. No labor escravo, entrava em jogo o trabalho como produção dos

meios de subsistência biológica do homem; no labor da mulher, o que estava em jogo era a

reprodução dos meios de subsistência biológica da espécie. Ora, nenhuma dessas duas formas

de labor era considerada pelos gregos como dignas o suficiente para serem qualificadas de

 políticas. Tratavam-se, para eles, de formas fúteis de existência, na medida em que

aprisionavam os sujeitos nelas envolvidos aos grilhões da necessidade, a imperiosa ananké ,

urgência da vida com vistas à sobrevivência.

O campo político só poderia ser efetivado por sujeitos que estivessem liberados da

urgência imperiosa das necessidades naturais. Somente esses estariam aptos a exercer sua

liberdade, verdadeiro corolário da ação política.

(...) a ação é a única que não pode sequer ser imaginada fora da sociedade doshomens. A atividade do labor não requer a presença de outros, mas um ser que‘laborasse’ em completa solidão não seria humano, e sim um animal  laborans nosentido mais literal da expressão. (ARENDT, 1958/2007, p.31).

Apesar de se constituir como um poder que se encarrega da administração da vida,

visando sua expansão e melhoramento, o biopoder tem ampla incidência no campo das

decisões que envolvem a necessidade de “matar para poder viver.” (FOUCAULT, 1999,

 p.129). Tal é o caso dos holocaustos em massa presenciados ao longo do século XX,

nomeadamente a Shoá e o holocausto atômico no Japão, ambos possibilitados pelo avanço

tecnocientífico. Essas formas genocidas de extermínio, que ceifam a vida de populações

inteiras, não encontram inscrição nas categorias jurídicas tradicionais, extrapolando os limites

do direito de matar, prerrogativa do poder soberano. Também não são passíveis de inscrição

religiosa nos ritos sacrificiais tradicionais, que supõem um intercâmbio com alguma

divindade transcendente.

À primeira vista, há aí uma contradição. Como pode o biopoder ter um alcance tãovasto de letalidade, se sua função primordial é gerir e majorar a vida? Foucault responde:

“São mortos legitimamente aqueles que constituem uma espécie de perigo biológico para os

outros.” (1999, p.130). Deve-se considerar, então, que a gestão tecnocrática e calculista da

vida nada mais faz do que recobrir “a velha potência da morte em que se simbolizava o poder

soberano.” (FOUCAULT, 1999, p.131).

Percebe-se, assim, que uma mudança na economia dos poderes que se encarregam da

vida implica, também, uma modificação na forma de administrar a morte: esta é

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desqualificada, despida de dramatização e dos rituais fúnebres que tradicionalmente a

acompanhavam. Ilustra-o bem a famigerada afirmação atribuída ao ditador Josef Stalin, de

que uma única morte é uma tragédia, mas que um milhão de mortes é uma estatística.

A morte aos milhares, em escala industrial, é uma produção do biopoder, reverso

encobridor de uma tanatopolítica. Conforme afirma Foucault, “as guerras já não são travadas

em nome do soberano a ser defendido” (1999, p.129), mas em nome da sobrevivência de

todos:

(...) populações inteiras são levadas à destruição mútua em nome da necessidadede viver. Os massacres se tornaram vitais. Foi como gestores da vida e dasobrevivência dos corpos e da raça que tantos regimes puderam travar tantas

guerras, causando a morte de tantos homens. (FOUCAULT, 1999, p.129).

Para alcançar sua efetividade em nível populacional, a tanatopolítica demanda a

elaboração de complexos dispositivos tecnocientíficos, de modo a proporcionar uma máxima

eficácia em termos de letalidade. Não há como deixar de evocar aqui todo o laborioso projeto

genocida nazista, que contou com o suporte dos mais destacados cientistas, que contribuíram

na elaboração das propagandas do regime, das teorias científicas necessárias para legitimar as

decisões políticas, para não falar da complexa logística envolvida na segregação, no

transporte e no extermínio de populações inteiras.

Em seu alcance mais amplo, a tanatopolítica invariavelmente supõe que vidas indignas

de serem vividas devem ser sacrificadas em nome da preservação de outras vidas,

consideradas valiosas, dignas de serem protegidas e defendidas. A indignidade de algumas

vidas remonta a uma série de contingências, dependendo do contexto histórico e geográfico

considerado: a raça, a periculosidade, a degeneração (doenças, contágio) ou a condição

econômica. A partir do momento em que o ordenamento político/social é compreendido como

um gigantesco organismo, cuja saúde deve ser garantida, surge a necessidade de defendê-lo eimunizá-lo, mediante a execução de medidas profiláticas.

3.2 – Estado de exceção permanente e a gestão de vidas matáveis

Coube a Giorgio Agamben (2002) o mérito de retomar o fio das reflexões de Hannah

Arendt sobre o totalitarismo, aliadas aos desenvolvimentos foucaultianos em torno da

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 biopolítica. Agamben (2002) afirma que, entre esses autores, há um ponto de conexão

encoberto, denunciador das dificuldades suscitadas por esse tema. E é desse ponto que parte

Agamben para formular sua teoria política, cuja lógica não desconsidera a razão sacrificial.

Ao retomar as análises foucaultianas, Agamben reconsidera o conceito de soberania,

que Foucault havia deixado em segundo plano ao estabelecer sua analítica do poder. Dessa

forma, em sua análise, busca-se circunscrever a zona de “intersecção entre o modelo jurídico-

institucional e o modelo biopolítico do poder.” (AGAMBEN, 2002, p.14). Desse ponto de

vista, a biopolítica não pode ser pensada separadamente da soberania, uma vez que ambas

colocam em jogo o paradigma da exceção como fundamento do poder.

Diferentemente de Foucault, que considerava a biopolítica como uma produção

moderna, que viria paulatinamente ocupar o lugar do poder soberano, Agamben considera que

há uma estreita vinculação entre eles, presente desde sua gênese. Trata-se, portanto, de um

vínculo originário que enlaça a exceção soberana àquilo que o filósofo nomeia como vida nua 

(AGAMBEN, 2002).

Com o termo vida nua Agamben (2002) se refere a formas marginalizadas e indignas

de existência, que não são revestidas pelo manto protetor do ordenamento jurídico. Trata-se

de sujeitos que vivem em condições de absoluto abandono por parte do Estado de Direito, e

enfrentam uma das mais paradoxais facetas do desamparo, sendo despidos da condição decidadania e de quaisquer direitos constitucionais que, supostamente, deveriam ser universais.

Conforme já foi mencionado, Agamben (2002) resgatou do antigo direito romano o termo

homo sacer  para se referir a essas categorias de marginalização jurídica, sem clara

delimitação simbólica.

O homo sacer  é o nome das vidas indignas de serem vividas, sendo por isso matável e

insacrificável, ou seja, seu extermínio não constitui crime nem sacrifício, mas rebotalho,

despojo que pode, em todo caso, ser contabilizado como estatística pelo sistema normativo.Destaca-se aí a “especificidade do homo sacer : a impunidade de sua morte e o veto de

sacrifício.” (AGAMBEN, 2002, p.81). Nem criminoso perante as leis do Estado, nem vítima

sacrificial perante a lei divina, essa figura que habita as margens do ordenamento jurídico não

está à altura de se constituir como oferenda sacrificial pacificadora. O interesse de situar o

lugar desse obscuro personagem, para Agamben, reside no fato de que, apesar de estar à

margem do referido ordenamento, ele habita o seu cerne. Dessa forma, ele pode ser

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considerado como paradigma originário do espaço político do ocidente, constituído

topologicamente a partir de uma dupla exclusão.

Para reconstituir essa topologia, Agamben recorre ao filósofo político Carl Schmitt,

que afirmava que “soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção.” (1922/2009,

 p.13, tradução nossa) 46. Tal decisão implica não a anulação, mas a suspensão do

ordenamento jurídico diante de uma situação emergencial que o ameaça. A possibilidade de

decidir acerca da suspensão da lei situa o soberano, paradoxalmente, à margem dela, assim

como acontece com o homo sacer . Agamben (2007a, p.39) esclarece que, para dar conta deste

 paradoxo, faz-se necessário passar da simplicidade da “oposição topográfica” à complexidade

da “relação topológica.” Com o recurso à topologia, torna-se possível interrogar categorias

clássicas do pensamento filosófico, como o dentro e o fora, ou o interno e o externo. Sem esse

recurso, não há como explicar o paradoxo colocado em jogo pelo estado de exceção.

 Na verdade, o estado de exceção não é nem exterior nem interior ao ordenamento jurídico e o problema de sua definição diz respeito a um patamar, ou a uma zona deindiferença, em que dentro e fora não se excluem, mas se indeterminam. Asuspensão da norma não significa sua abolição e a zona de anomia por ela instauradanão é (ou, pelo menos, não pretende ser) destituída de relação com a ordem jurídica.(AGAMBEN, 2007a, p.39).

O paradoxo do estado de exceção implica em se estar “legalmente fora da lei”

(AGAMBEN, 2002, p.23), para quem o decreta. Ou então, dito de outra forma, implica que

não há fora da lei, mas que esta nada garante, quando está suspensa. Excetuar não é excluir;

ex-capere, origem etimológica do termo exceção, implica em ser capturado fora, implicando

que, com referência à vida nua, a norma só se aplica “desaplicando-se, retirando-se desta.”

(AGAMBEN, 2002, p.25). Ao contrário do que se pensava, a partir da tradição do

 pensamento político inaugurada com Thomas Hobbes, o estado de exceção definitivamente

não é o estado de natureza, a temida guerra de todos contra todos. Muito ao contrário, há uma

lógica do estado de exceção, que nada tem em comum com o caos ou a anarquia. Conforme

afirma Schmitt (1922/2009), há uma ordem no estado de exceção, ainda que ela não seja uma

ordem jurídica.

O estado de exceção, campo da decisão soberana, desliza com o homo sacer  sobre um

espaço topológico homólogo á banda de Moebius. Direito e avesso, lei e anomia deixam de se

46

 “Soberano es quien decide sobre el estado de excepción.”

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ditadura militar, estabelecidos a partir do Ato Institucional nº 5. Nesses locais, situados à

margem do ordenamento jurídico, suspeitos de envolvimento com atividades subversivas

eram torturados e mortos, sem que houvesse julgamento ou sanção penal. Os desaparecidos

 políticos, vítimas do autoritarismo da ditadura militar brasileira, constituem um exemplo de

homo sacer , pois suas vidas eram consideradas não apenas matáveis, como também

insacrificáveis, ou seja, despidas de qualquer formalidade institucional, seja a que acompanha

os ritos jurídicos, seja a que acompanha os ritos fúnebres. Muitos desses sujeitos permanecem

desaparecidos até hoje, e a interminável busca por seus corpos constitui um verdadeiro

martírio para suas famílias.

Apesar do fim do período da ditadura militar, e do subsequente advento da democracia

no Brasil, acompanhada da promulgação da assim chamada Constituição Cidadã, em 1988, os

campos continuam a se proliferar em larga escala, espalhados por todo o território nacional.

Como bem o observa Agamben, as periferias das grandes metrópoles industriais se

assemelham muito aos campos, locais onde qualquer distinção entre vida nua e a vida política

se apagam em uma “zona de absoluta indeterminação.” (AGAMBEN, 2015, p.45) 50.

 Na perspectiva adotada por Agamben, a evocação das variadas formas de campo de

concentração, em diferentes contextos históricos e sociais, não desconsidera que estas nada

mais são do que referências conjunturais; no entanto, há algo de estrutural em suaconstituição, que pode ser abordado topologicamente. Nessa perspectiva, as favelas,

territórios da pobreza no contexto da realidade sócio-histórica brasileira, constituem exemplo

dessa matriz paradigmática, que Agamben nomeia de campo. Conforme já abordado pela

 pesquisa documental, foi possível perceber que esses locais apresentam as mesmas

características estruturais que um campo submetido a um estado de exceção, quando se

tornam alvo das incursões policiais e militares.

 Nesse ponto, faz-se necessário certo rigor para a apreciação cuidadosa dessaselaborações sustentadas por Agamben (2002; 2015), que foram alvos de muitas críticas, em

 particular, o axioma no qual ele afirma que o campo de concentração constitui a matriz oculta

do espaço político democrático do ocidente. Ou seja, para Agamben, do ponto de vista da

racionalidade governamental regida pela tecnocracia e pelo capitalismo globalizado, todo

50  “Mas também certas periferias das grandes cidades pós-industriais e as gated communities estadunidensescomeçam, hoje, a assemelhar-se, nesse sentido, aos campos, nos quais vida nua e vida política entram, ao menos

em determinados momentos, numa zona de absoluta indeterminação”.

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cidadão é potencialmente vida nua, passível de captura pelos dispositivos biopolíticos que

operam à margem da lei. Nesse sentido, os propalados ideais democráticos de igualdade,

liberdade e dignidade da vida humana são encobridores de uma “fratura biopolítica

fundamental” (AGAMBEN, 2015, p.37) que cinde o espaço político entre a pátria e o campo

e, também, o habitante da polis entre o cidadão e a vida nua.

Ernesto Laclau (2008), filósofo político argentino, foi um dos teóricos que se opôs a

essa tese, alegando que ela fecha o horizonte de qualquer possibilidade real de ação política

emancipatória, desembocando no niilismo político. Não se pretende, nesta ocasião, estender o

debate que Laclau propôs em torno de uma série de elementos das proposições de Agamben,

mas apenas destacar que as elaborações deste último não são imunes a críticas; antes pelo

contrário, receberam várias delas. Vale a pena conferir, acerca disso, o excelente artigo “O

futuro anterior: Giorgio Agamben e o método paradigmático” (FAVARETTO, 2014),

ricamente documentado com vasta bibliografia sobre o assunto.

A retomada da discussão em torno das críticas suscitadas pela publicação de “ Homo

Sacer  – O poder soberano e a vida nua” (2002) constituiu, para Agamben, uma oportunidade

 para esclarecer melhor seus critérios metodológicos. Em seu livro “Signatura rerum” (2009),

o autor esclarece que, para chegar à consideração do campo de concentração como paradigma

 biopolítico na atualidade, utilizou um método paradigmático similar ao procedimentometodológico adotado por Foucault (1975/1999) no estudo do  panóptico. Trata-se de elevar

um determinado modelo de organização do espaço político (o  panóptico, por exemplo) à

condição de paradigma demonstrativo, com potencial para elucidar as relações de poder em

contextos e épocas diversos, trazendo à tona certos elementos que, de outro modo,

 permaneceriam ocultos.

Dessa forma, assim como Foucault (1975/1999) elevou o  panóptico à dignidade de

 paradigma da configuração do espaço político das emergentes sociedades liberais, pautadas pela incidência generalizada de dispositivos disciplinares, Agamben (2002) situou o campo

como paradigma de configuração das democracias contemporâneas, atravessadas pela

generalização do estado de exceção.

Do ponto de vista da psicanálise, é possível estabelecer uma leitura das propostas de

ambos os autores, procurando delimitar os fundamentos da biopolítica a partir dos elementos

mínimos situados por Lacan (1969-70/1992) em sua teoria dos quatro discursos. Isso é o que

assegura o filósofo esloveno Slavoj Zizek (2004, tradução nossa) em um artigo intitulado “O

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inoperantes, cederam espaço às medidas draconianas, próprias do estado de exceção. Dessa

forma, a dimensão política é subsumida à técnica da administração especializada, que Zizek

(2004, p.36) ironicamente nomeia como “política sem política”.

A própria guerra, recurso supremo do mestre em suas atribuições de exercer seu

soberano poder, encontra-se totalmente subsumida e integrada à maquinaria biopolítica do

discurso universitário. É conhecido o famoso aforismo de Clausewitz 52 que considera a guerra

como a continuação da política por outros meios. Esse aforismo destaca a guerra como

 prolongamento da política, e dessa forma, ela pode ser entendida como uma atribuição própria

da autoridade colocada em jogo pelo discurso do mestre. Em regimes biopolíticos, agenciados

 pela tecnocracia, o paradoxo da política sem política instaura uma inusitada continuidade

entre a guerra e a ajuda humanitária. Para ilustrá-lo, Zizek (2004, p.47) recorre ao exemplo da

guerra ao terror, indicando como os ataques aliados agenciados pelos Estados Unidos no

Afeganistão passaram a ser justificados pela necessidade de garantir a distribuição da ajuda

humanitária aos necessitados, em condições de segurança 53. Trata-se daquilo que Lacan

(1973/1993, p.58) designou, em certa ocasião, de “humanitarismo sentimentalóide de

encomenda”, destinado a encobrir as atrocidades aí perpetradas.

 No contexto aqui abordado, as megaoperações policiais nas favelas do Rio de Janeiro

serviriam como um exemplo na medida dessas indicações. Nesse caso, a guerra ao tráfico se justificaria a partir de argumentos já mencionados nesta pesquisa, como a libertação da

 população civil que vive oprimida nas favelas, ou então, garantir a segurança dos cidadãos de

 bem, acuados pelo medo, pela criminalidade e pela violência. A imagem do homo sacer  que

aqui se poderia delinear, parodiando o exemplo de Zizek, é a do morador da favela atônito

diante de uma incursão policial, impossibilitado de saber ao certo se ela veio de fato para

libertá-lo da opressão imposta pelo narcotráfico, prendendo criminosos e fazendo valer a lei,

ou emular as ações criminosas, impondo o terror e a violência à comunidade sitiada.

52 Carl Phillip Gottlieb von Clausewitz, general e estrategista militar prussiano.53 “La imagen última del tratamiento a las ‘poblaciones locales’ como homo sacer es quizás la de un avión deguerra norteamericano sobrevolando Afganistán y del que nunca se está seguro de lo que va. a soltar: bombas o paquetes de comida . . . Así pues, podemos decir efectivamente que, con la actual " guerra contra el terror", laguerra misma -ese último dominio del discurso, del Amo- ha sido integrada finalmente en el discurso de laUniversidad”. (ZIZEK, 2004, p.47).

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3.3 - O campo: morada anômica do  homo sacer  e paradigma das formas

contemporâneas de segregação

“(...) o problema do campo de concentração, bem comode sua função nesta época de nossa história, de fato temsido integralmente mal examinado até aqui,completamente mascarado pela era de moralizaçãocretinizante que se seguiu imediatamente à saída daguerra, e pela ideia absurda de que se poderia acabarcom ele com toda essa rapidez - continuo a falar doscampos de concentração”. (LACAN, 1962-63/2005, p.163).

“O campo é o próprio paradigma do espaço político no ponto em que a política se torna biopolítica e o homosacer se confunde virtualmente com o cidadão”.

(AGAMBEN, 2015, p.44). 

Durante o século XX, o surgimento dos campos de concentração no seio dos grandes

estados unificados assinala o início de uma mudança crucial no estatuto da decisão soberana,

no contexto da biopolítica moderna: soberano, então, torna-se “aquele que decide sobre o

valor ou sobre o desvalor da vida enquanto tal” (AGAMBEN, 2002, p.149). Essa mudança

advém a partir de uma profunda crise no sistema de inscrição da vida no espaço político,

 pautado pelo nexo entre cidadania e território. Os desdobramentos dessa crise podem serconstatados na atualidade, em cujo contexto a política se converte em biopolítica (ou

tanatopolítica) e o cidadão é reduzido à sua vida nua, na condição de homo sacer .

 3.3.1- Breve história dos campos de concentração

 Não foram os nazistas que inventaram os campos de concentração; antes da ascensão

do Terceiro Reich, tal experimento já havia sido colocado em prática pelos ingleses, durante a

Guerra dos Bôeres, no início do século XX. E mesmo antes disso, em 1896, os espanhóis

também já haviam criado em Cuba, durante a Guerra da Independência, um dispositivo

semelhante, com a finalidade de segregar uma parcela da população civil suspeita de apoiar a

rebelião 54.

54  Não escapou a Michel Foucault o nexo estrutural trans-histórico entre a segregação e os campos de

concentração: “Os campos de concentração, que foram conhecidos em todos esses países, foram para o século

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Esses campos correspondem, em muitos detalhes, aos campos de concentração docomeço do regime totalitário; eram usados para ‘suspeitos’ cujas ofensas não se podiam provar, e que não podiam ser condenados pelo processo legal comum. Tudo

isso aponta claramente na direção dos métodos totalitários. (ARENDT, 1951/1989, p.491).

 Nesse sentido, os campos devem ser distinguidos das penitenciárias, uma vez que

seus habitantes não são considerados infratores de quaisquer leis vigentes em um determinado

Estado. “Em hipótese alguma deve o campo de concentração transformar-se em castigo

 previsível para um crime definido” (ARENDT, 1951/1989, p.499), ou seja, o campo funciona

à margem do ordenamento jurídico-penal, e a condição dos sujeitos aí capturados deve ser

diferenciada daquela do criminoso comum, que responde por uma determinada infraçãoreferida a esse ordenamento.

Inclusive no contexto da história do Brasil, foi possível encontrar referências

relativas à existência de campos de concentração no estado do Ceará, conhecidos como

“currais do governo” (ROCHA, 2008). Esses campos serviam como espaços de confinamento

de flagelados da seca de 1932, e tinham por finalidade resguardar as cidades de saques e

invasões. Os sujeitos ali confinados eram mantidos em uma condição sub-humana, vindo

eventualmente a morrer de fome, ou por conta de alguma moléstia.De acordo com um levantamento bibliográfico feito a respeito dos campos de

concentração, pôde-se constatar que eles foram criados para funcionar em diferentes

contextos, de acordo com as conjunturas específicas do contexto geográfico e histórico

considerado. Foi somente a partir do surgimento dos regimes totalitários, contudo, que os

campos deixaram de ser uma medida de caráter extraordinário, aplicada em situação de

guerra; tornaram-se então uma prática comum, aplicada de forma sistemática nos gulags55 da

Rússia revolucionária, e na Alemanha nazista, a partir da década de 1930. Doravante, os

campos deixaram de ser um recurso provisório de emergência para se tornar “uma solução de

rotina para o problema domiciliar dos refugiados e deslocados de guerra.” (ARENDT,

1951/1989, p.312). O que é inédito, a partir desse momento, é o surgimento de populações

inteiras nessa condição de anomia jurídica.

XX o que as famosas vilas operárias, o que os famosos pardieiros operários, o que a famosa mortalidade operáriaforam para os contemporâneos de Marx.” (FOUCAULT, 1977/2006, p.225).

55 Campos de trabalhos forçados.

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O drama dos campos de concentração, além de trágico, é revelador de muitas

contradições que até então não haviam sido detidamente consideradas pelos estudiosos do

tema. A possibilidade de ser deserdado pela pátria, desnacionalizado, é escandalosa para

aqueles que acreditavam na existência de direitos naturais e inalienáveis do homem.

Paradoxal é o fato de que tenha sido necessário o surgimento de uma legião de pessoas em

uma condição de absoluta privação de direitos para que fosse possível reconhecer que, mesmo

os direitos mais fundamentais não são naturais, ou seja, não emanam espontaneamente do fato

 biológico do nascimento, enfim, não constituem uma realidade prévia à dimensão política.

(...) o homem sem Estado - um fora-da-lei por definição - era uma ‘anomalia para aqual não existia posição apropriada na estrutura da lei geral’,  ficava completamenteà mercê da polícia, que, por sua vez, não hesitava muito em cometer atos ilegais paradiminuir a carga de indésirables no país. Em outras palavras, o Estado, insistindo emseu soberano direito de expulsão, era forçado, pela natureza ilegal da condição deapátrida, a cometer atos confessadamente ilegais. (ARENDT, 1951/1989, p.317).

De exceção à regra, os campos de concentração se constituíram como “único

substituto prático de uma pátria. De fato, desde os anos 30 esse era o único território que o

mundo tinha a oferecer aos apátridas.” (ARENDT, 1951/1989, p.317). Então, antes de serem

considerados como problema, os campos se constituíram, apesar de toda a precariedade e

desumanização que lhe são próprias, como soluções totalitárias para conter, dominar,

controlar e, eventualmente, exterminar sujeitos despidos da condição de cidadania,

desamparados pela pátria, enfim, sem direito a ter direitos.

 3.3.2- Os campos de concentração e a despolitização da vida

Hannah Arendt (1951/1989, p.489) costumava sublinhar que o estudo dos campos de

concentração era fundamental para se entender o que realmente estava em jogo para o regime

totalitário, pois eles estão longe de ser mera margem, ou periferia da estrutura política;

constituem “a verdadeira instituição central do poder organizacional totalitário”.

A zona anômica estabelecida no habitat dos campos não é causa, mas consequência

do processo de despolitização da vida, provocada pelo avanço das estratégias biopolíticas de

controle absoluto. Antes que se pudesse estabelecer esse controle, tornou-se necessário “matar

a pessoa jurídica do homem” (ARENDT, 1951/1989, 498), ou seja, privá-lo de seus direitos e

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garantias constitucionais, assegurados por lei. Criou-se, dessa forma, uma categoria

inominável de sujeitos que excedia o sistema jurídico. Em seguida, delimitou-se um território

destinado a abrigar e conter esses sujeitos, à margem da legislação penal em vigor.

Esse processo de despolitização da vida tornou-se evidente na estratégia adotada pelo

regime nazista: antes de enviar os judeus para os campos, adotou-se uma série de

 procedimentos prévios, como despojá-los de sua cidadania e segregá-los em guetos, à margem

das cidades. Após esses procedimentos iniciais, transportou-se essa população para os campos

de concentração, que foram posteriormente transformados em campos de extermínio. Dessa

forma, antes de exterminar esses indivíduos, pôde-se certificar que eles não eram

reivindicados por ninguém.

A condição de absoluto desamparo político e jurídico de certas categorias de sujeitos,

imposta pelo estado de exceção permanente decretado pela Alemanha nazista, possibilitou ao

mundo testemunhar os efeitos devastadores dos laboratórios tanatopolíticos, erigidos para um

novo tipo de experimento: “fabricar algo que não existe, isto é, um tipo de espécie humana

que se assemelhe a outras espécies animais” (ARENDT, 1951/1998, p.488). Para cumprir esse

encargo sinistro, criou-se um espaço onde vigora um “domínio total”, que não se deixa

seduzir nem por “motivos utilitários” (ARENDT, 1951/1989, p.488), nem pelo  pathos  das

inclinações pessoais. Enfim, um lugar onde “tudo é possível” (ARENDT, 1951/1989, p.488), pois apesar da presença de massivos mecanismos de controle, reina uma absoluta ausência de

lei.

O campo alia as formas mais selvagens de segregação com a degradação de qualquer

vestígio de dignidade humana, ocasionando o aniquilamento de qualquer rastro de

singularidade ou espontaneidade, enfim, apagando toda diferenciação subjetiva que permita

distinguir um indivíduo do outro. No campo, todos os internos têm o mesmo estatuto: vida

nua, marcada pela indigência jurídica e pelo anonimato. O estatuto desses sujeitos é politicamente indefinido, ou seja, eles não gozam de nenhum reconhecimento civil por parte

do Estado a que pertencem. Sem a investidura simbólica que lhes proporcionaria inscrição no

ordenamento político-jurídico, eles assumem, assim, a condição de vida indigna e descartável,

excedentes indesejáveis e perigosos.

Segundo Agamben (2002), o campo é o espaço que se instaura quando o estado de

exceção torna-se regra. Nessas condições, o lugar da exceção deixa de existir como tal. A

 partir das contribuições da psicanálise, sabe-se que essa exceção é normativa, pois ela

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constitui o próprio fundamento do enlace da Lei com o desejo. A exceção é o lugar que deve

 permanecer hiante, de modo que o ordenamento significante possa se articular em torno do

 primado fálico da Lei. Torná-la regra, tal como acontece nos regimes biopolíticos da

atualidade, é anulá-la. Qualquer consistência que se queira conferir a este lugar da exceção,

destinado a permanecer vazio, acarreta o pior: “Quando nosso tempo procurou dar uma

localização visível permanente a este ilocalizável, o  resultado foi o campo de concentração”

(AGAMBEN, 2002, p.27). O campo surge, portanto, como símbolo da incurável paixão de

nossa época: buscar, a todo custo, complementar o Outro, pacificá-lo, conferir-lhe a

derradeira consistência. Tais são os princípios da aposta sacrificial, que se prolonga nos dias

de hoje.

Do ponto de vista da psicanálise, pode-se dizer que, durante o estado de exceção,

vigora a Lei de Talião, em Freud (1913/1987), ou as ordens de ferro, em Lacan (1974/s.d.);

trata-se de versões rebaixadas e degradadas do Nome-do-Pai, que reduzem a pátria ao campo,

zona de exceção permanente, na qual se coloca em jogo a “consistência última do poder

soberano” (AGAMBEN, 2002, p.149). Tal consistência pode ser remetida, na terminologia

aqui adotada, aos paradoxos dos Nomes-do-Pai. Hannah Arendt (1951/1989, p.312) mostrou-

se sensível a esses paradoxos, abordando-os à sua maneira ao indicar que o campo de

concentração não constituiu um problema, mas sim uma solução:

 Nenhum paradoxo da política contemporânea é tão dolorosamente irônico como adiscrepância entre os esforços de idealistas bem-intencionados, que persistiamteimosamente em considerar ‘inalienáveis’ os direitos desfrutados pelos cidadãosdos países civilizados, e a situação de seres humanos sem direito algum. Essasituação deteriorou-se, até que o campo de internamento - que, antes da SegundaGuerra Mundial, era exceção e não regra para os grupos apátridas - tomou-se umasolução de rotina (...).

O pensamento de Arendt revela-se tragicamente atual, quando atualmente se

testemunha um número crescente de refugiados oriundos de países em situação de guerra civil

afluir, desordenadamente, para territórios europeus. A jornada desses sujeitos é marcada pela

dor, pelo desamparo e, eventualmente, pela morte. Mesmo nessa situação, eles não perdem a

esperança de reconstruírem suas vidas em outro país. Esses acontecimentos servem para

confirmar que o processo de despolitização da vida ocorre hoje em larga escala, e isso é ainda

mais expressivo quando se considera a forma com que os países de tradição democrática vêm

lidando com essa situação; os novos campos de refugiados atestam-no.

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 3.3.3 – A segregação como prática sacrificial na era do capitalismo globalizado

Com Lacan (1964/1988, p.259), é possível afirmar que as práticas sacrificiais

contemporâneas são formas aviltantes de reviver a nostalgia do pai, no que ela tem de pior.

Esta se coloca em jogo na aposta sacrificial, que nada mais faz do que buscar “o testemunho

da presença do desejo desse Outro”, o deus obscuro. Para indicá-lo, Lacan se referiu aos

campos de concentração nazistas, modalidade extrema de sacrifício, pautada no mecanismo

da segregação. Mesmo sendo cada vez mais degradadas e desprovidas dos rituais separadores,

as práticas sacrificiais continuam a exercer seu fascínio mortífero, na apaixonada busca pela

consagração do pai ideal.

Ainda segundo as indicações de Lacan (1964/1988, p.259), abordar a questão dos

campos de concentração significa tocar no que há de mais mascarado pela “crítica da história

que temos vivido”: a ofuscante e fascinadora dimensão sacrificial do “drama do nazismo”,

materializado não apenas no horror dos campos de concentração, mas também, no arbítrio de

uma ordem de ferro, que não vale mais como Lei, mas como força, encarnação do desejo

obscuro do Fuhrer . Pensar o estatuto dos novos campos de concentração, a partir da psicanálise, implica retomar as indicações feitas por Lacan acerca do recrudescimento dos

 processos de segregação em nossa época, não sem considerá-las à luz da teorização freudiana

do laço social.

O termo segregação deriva de uma etimologia latina, segregare; o prefixo se que

significa afastar, separar, isolar, apartar, enquanto gregário provém de grex, que significa grei,

rebanho. Portanto, segregar significa, etimologicamente, separar do rebanho, vale dizer, do

conjunto de indivíduos de uma mesma espécie. Conforme afirma Ferrari (2007, p.245), a partir do século XIV “o termo passou a ser aplicado a fenômenos humanos, em diferentes

situações culturais.” Segregar não é sinônimo de exclusão ou banimento; trata-se de um

 processo que coloca em jogo uma exclusão interna, ou seja, o elemento segregado vive em um

espaço territorial demarcado e nomeado, mantendo-se sempre próximo.

Leitor atento do texto freudiano, Lacan estava bem advertido de que os agrupamentos

sociais não se estabelecem sem a ancoragem proporcionada pelos ideais de massa. Esses

ideais, Freud (1921/2010) já indicava, funcionam como verdadeiros diques canalizadores da

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libido grupal, fazendo-a confluir para um ponto convergente, mediante o empréstimo de um

traço, insígnia que proporciona aos membros do grupo uma identificação coletivizadora.

Quando imerso nos ideais do grupo, o sujeito comunga um sentimento oceânico de

transbordamento narcísico, que faz vacilar os limiares que separam o eu do mundo externo.

 Não se trata apenas de um sentimento de comunhão com o grupo, pela via do amor, mas

também, de um excesso de gozo que não é passível de inscrição nas insígnias dos ideais.

 Nesse sentido, Freud já alertava para os efeitos nefastos que decorrem da formação de

massas compactas, pautadas no fascínio servil: a agressividade, a impulsividade e a alienação,

reunidas por ele sob a égide da “miséria psicológica da massa.” (FREUD, 1930/2010, p. 83).

Freud destacou também o “narcisismo das pequenas diferenças”, termo cunhado por ele para

se referir a essas paixões grupais, mais particularmente, à intolerância e à rivalidade que

marcam o cotidiano da vida dos grupos, em relação aquilo que destoa de seus ideais. “Sempre

é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restem outras para que se

exteriorize a agressividade. Dei a isso o nome de narcisismo das pequenas diferenças.”

(FREUD, 1930/2010, p. 81).

Dessa forma, pode-se perceber que o fortalecimento do laço grupal só se efetiva a

expensas da exteriorização da cota de agressividade amalgamada nas identificações que o

estruturam. A matriz narcísica, que rege o funcionamento dos grupos, fica assim bemevidenciada: o fascínio desmesurado pelo ideal, eventualmente encarnado na figura de um

líder, se faz acompanhar pelo horror à diferença, que sempre emerge como ameaça à coesão e

à homogeneidade do grupo.

 Nesse aspecto, Lacan não apenas retoma as indicações freudianas, como as relança,

 propondo uma abordagem da escalada dos processos de segregação e racismo, intensificados

na atualidade a partir do empuxo à homogeneização, imposto pelo capitalismo globalizado,

aliado ao avanço das tecnociências. Assim como Freud, Lacan não desconsiderou aimportância do contexto histórico de sua época, indicando que este contexto está diretamente

relacionado aos invólucros com que as novas formas de mal estar se apresentam. A partir

disso, advertiu que a universalização resultante da parceria estabelecida entre o discurso

capitalista e as tecnociências acarretaria um agravo nos processos de segregação, ao

estabelecer o mercado como denominador comum dos intercâmbios sociais:  “Nunca se

terminou completamente com a segregação. Posso dizer a vocês que ela vai sempre reaparecer

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Sendo assim, apesar de enfatizar a dimensão estrutural da linguagem na tessitura dos

diversos discursos que circulam na civilização, a psicanálise não desconsidera as lições da

história; a partir delas, adverte que regimes de índole totalitária e unificadora operam

segregando e excluindo a diferença.

 No que concerne ao contexto da problemática aqui abordada, a segregação é evocada

como uma modalidade de prática sacrificial, própria do laço concentracionário evocado por

Lacan (1949/1998), predominante nas sociedades contemporâneas. Com a globalização da

ordem capitalista, o consumo é elevado à dignidade de ideal unificador, homogeneizando os

sujeitos que integram essa categoria ao custo da segregação daqueles que dela destoam.

Quanto mais avança o discurso capitalista em seu afã globalizador, maior se torna a margem

de excluídos, confirmando aquilo que Lacan já previra em sua época: que “nosso futuro de

mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos

 processos de segregação.” (LACAN, 1967/2003a, p.263).

O mercado, entendido como uma nova versão do grande Outro, assume, então, os

contornos  de um deus obscuro, que exige o sacrifício daqueles que são considerados

supérfluos à lógica do consumo. Segundo Delgado (2001, p.16), na época do capitalismo

globalizado, o triunfo neoliberal se afirma mediante o sacrifício dos sujeitos considerados

supérfluos, criando “novos campos de concentração e extermínio” 57, verdadeiras vilas damiséria. Do ponto de vista da psicanálise, o regime de funcionamento homogeneizador e

massificador imposto pela nova ordem mundial nada mais faz do que recrudescer os

 processos de segregação, que avançam em escala proporcionalmente inversa ao empuxo em

direção ao global, ao universal.

Enquanto discurso globalizante, o capitalismo assume uma índole totalitária, que

segrega contingentes populacionais cada vez mais numerosos, considerados supérfluos. Como

forma de fundamentalismo econômico, ele cultua a produção, sacraliza o consumo e sacrificaaqueles que aí não encontram lugar. O que resulta daí é o aumento na extensão da margem de

excluídos, que hoje compõem uma população supérflua, excedente que constitui, segundo

Bauman, (2005, p.13) uma vasta “linha de produção de refugo humano ou de pessoas

refugadas.” O índice crescente de populações nessas precárias condições “exige políticas

segregacionistas mais estritas e medidas de segurança extraordinárias para que a ‘saúde da

sociedade’ e o ‘funcionamento normal’ do sistema social não sejam ameaçados.” (BAUMAN,

57 “(...) nuevos campos de concentración y exterminio”.

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2005, p.107). Surge, dessa forma, a necessidade de imunizar o corpo social, mediante a

segregação e eventual expurgo de seus segmentos corrompidos pela miséria.

 No Brasil, o fenômeno da segregação urbana e residencial é revelador dos

antagonismos típicos de uma sociedade marcada pela injustiça social: a elite abastada se isola

em condomínios de luxo, enquanto a ralé   se amontoa nos guetos e favelas densamente

 povoados. A segregação, que opera na demarcação de territórios no espaço urbano, incide

 primeiramente no campo da linguagem, constituindo os assim chamados muros invisíveis do

racismo. Os estigmas criados a partir daí constituem exemplos das nomeações da ordem de

ferro.

Um exemplo disso, típico da realidade social brasileira, é a percepção banal de que os

 problemas da violência e da criminalidade são efeitos diretos da situação de pobreza que

marca a vida de parte da população, particularmente nos grandes centros urbanos e em suas

imediações. Tal percepção não é exclusividade da mídia sensacionalista, que noticia as

megaoperações nas favelas; essa nada mais faz do que reverberar esse ponto de vista, que já é

dominante entre aqueles que moram no ‘asfalto’, ou seja, do outro lado do muro.

Alba Zaluar (1994), antropóloga brasileira que há muitos anos vem desenvolvendo

reflexões sobre a violência, a criminalidade e o racismo, assinala que os estigmas sociais

reforçam a hostilidade dirigida contra as classes desfavorecidas. Seus integrantes, constituídos

 predominantemente por pessoas negras e pobres, são considerados cidadãos de segunda

classe, elementos sempre suspeitos durante as operações policiais. Para todos os efeitos, eles

são considerados perigosos até que provem a idoneidade de seu caráter. Ou seja, que são

trabalhadores, e não vagabundos ou bandidos.

Zaluar (1994) comenta que o estigma de periculosidade imposto a esses sujeitos

acabam muitas vezes por se confirmar, tornando-se profecias autocumpridas. Dessa forma, ao

se referir à escolha pela vida criminosa por parte de jovens residentes nas favelas, a

antropóloga considera que

Os membros das classes populares deixam de tornar-se trabalhadores porque sua própria condição de pobres ameaça e amedronta os que lhes poderiam forneceremprego. Em outras palavras, eles são perigosos antes de efetivamente o serem aooptar pela vida criminosa. (ZALUAR, 1994, p.17).

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 Na perspectiva de muitos desses jovens, o trabalho torna-se associado à submissão,

exploração e humilhação, visão reforçada pela observação da labuta diária dos seus pais, que

trabalham muito para ganhar pouco, submetendo-se a atividades subalternas. Por outro lado, a

vida no tráfico acena não apenas com a possibilidade de ganhar muito dinheiro em pouco

tempo, mas também, prestígio: andar armado, ocupar postos de comando e, assim, conquistar

 belas mulheres. Estes são elementos que conferem uma aura especial à vida no crime, na

 perspectiva de muitos dos jovens residentes em favelas. Essas considerações são importantes

do ponto de vista da psicanálise, por não deixar de levar em conta a perspectiva do sujeito

confrontado com as escolhas que constituirão as coordenadas do seu destino.

Ao se aproximar desses jovens, Zaluar (1994, p.16) escutou inúmeras vezes por parte

deles: “Quem faz o bandido é a polícia”. Em pesquisa de campo desenvolvida pela

 pesquisadora, ela afirma que pôde testemunhar por si própria como ocorre o processo que leva

o jovem a decidir-se pela vida no crime. Em seu relato, ela menciona uma festa em um morro

carioca, na qual estava presente um destacamento inteiro da PM, acompanhado de cães

farejadores. Nesse ínterim, os policiais incitavam os cães em direção aos jovens que

consideravam suspeitos, de modo que, quando encontravam alguma droga, eles eram

imobilizados entre os dentes dos animais até a chegada dos agentes. Conforme comenta

Zaluar (1994, p.16), “A lição tinha endereço certo e isso ficava patente nos olharesamedrontados dos jovens que assistiam à exibição”. Como se isso não bastasse, era de amplo

conhecimento entre esses jovens que o posto policial local agia arbitrariamente, prendendo e

torturando suspeitos, ainda que seu envolvimento com a criminalidade não fosse comprovado.

Reside aí uma articulação de ordem ética, muito difundida entre os moradores dos morros e

favelas: “Embora tanto o bandido quanto o policial tenham imagens carregadas de

ambiguidades, é a polícia que aparece quase sempre caracterizada pela completa ausência de

moral” (ZALUAR, 1994, p.19).Dessa forma, a opção pela vida no crime não deixa de evocar a escolha forçada,

evocada por Lacan (1964/1988) para indicar que qualquer margem de liberdade possível, no

campo do sujeito, não se dá sem um forçamento, um confronto com um ponto limite que se

situa para além da ética dos bens. O franqueamento desse ponto conduzirá o jovem à sua

“travessia do Rubicão” 58 (1967-68/s.d.), ou seja, à passagem ao ato que marcará o início de

58

 Trata-se de uma referência ao estadista romano Júlio César, utilizada por Lacan no seminário inédito “Ato psicanalítico” (1967-68/s.d.) como uma metáfora para se referir ao caráter transgressor e irreversível do ato de

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uma nova vida: a vida no crime. Zaluar (1994, p.22) articula o processo que conduz o jovem

às veredas do “condomínio do diabo”, ou seja, à opção pela vida no crime, ao trinômio

“repressão-medo-revolta” (ZALUAR, 1994, p.16). Destinatário das cenas de opressão,

arbitrariedade e violência protagonizadas pelos agentes policiais, esse jovem, acossado pelo

medo e pela impotência, prefere revoltar-se a submeter-se passivamente aos caprichos dessa

figura obcena do grande Outro. “A bolsa ou a vida!”, já dizia Lacan (1964/1988, p.201). É

matar ou morrer, diz o jovem.

Por outro lado, na perspectiva do opressor, incluindo aí não apenas os policiais

diretamente envolvidos em ações violentas, mas também as autoridades que as ordenam, a

mídia sensacionalista que as alardeia e o cidadão que as prestigia, “a associação entre pobreza

e criminalidade não é uma hipótese passível de discussão.” (ZALUAR, 1994, p.46); eles

 próprios se encarregam de sancioná-la definitivamente, mediante suas ações.

É interessante perceber que o espectro do autoritarismo paira não apenas sobre a visão

das autoridades e agentes do estado; ele encontra-se amplamente difundido na sociedade,

entre os cidadãos de classe média e alta, que não apenas aprovam a violência policial, como

clamam por mais rigor nos castigos. É o que constata Zaluar (1994, p.46), depois de analisar

2000 questionários de uma pesquisa sobre a criminalidade no Rio de Janeiro:

(...) tive a impressão de percorrer alfarrábios sobre os suplícios medievais contadosnuma linguagem moderna da punição. Entre as sugestões oferecidas pela populaçãoda Zona Sul, Tijuca e Grajaú onde se concentram as classes de rendas mais altas,figuravam as de transformar o Maracanã e a Praça da Apoteose em locais deexecução pública de bandidos. Aos ladrões (crianças e jovens), senhoras distintas eeducadas propunham cortar os dedos, as mãos etc.

Vê-se assim que, no país do carnaval, nem mesmo a punição de criminosos deveria

constituir exceção ao massivo apelo do espetáculo. Os ritos de suplício e execução decriminosos, conforme já assinalava Foucault (1975/1999), deveriam ser tão ou mais violentos

do que o próprio crime cometido por eles, assinalando a gloriosa vingança do soberano contra

o malfeitor e a catarse coletiva, proporcionada pela expiação do mal. Dessa forma, segundo os

elementos de análise trazidos pela pesquisadora, e a partir das contribuições de Foucault,

 pode-se afirmar que o clamor popular pelo endurecimento das medidas punitivas implica em

atravessar o Rio Rubicão. Nas coordenadas geopolíticas da época, isso configurava um ato de guerra, a partir doqual o líder militar se convertia em um inimigo da República.

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um retrocesso na lógica do castigo do criminoso: da economia dos direitos suspensos, própria

da reclusão prisional no Estado de Direito, ao dispêndio sanguinário de violência, próprio do

 poder soberano de supliciar e matar.

 No tocante à problemática aqui discutida, pode-se acrescentar que a psicanálise não

desconsidera a responsabilidade do sujeito diante de suas decisões e de seus atos. Contudo,

ela tem algo mais a ensinar, na medida em que pressupõe que o que se passa no campo do

sujeito jamais se esgota em plano individual. Para a psicanálise, a problemática do sujeito

sempre implica as escolhas subjetivas de cada um, mas isso não significa desconsiderar a

ubiquidade do mal estar na civilização, que em suas manifestações diversas, concerne tanto à

constituição das subjetividades contemporâneas quanto ao laço social.

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4 – CONCLUSÃO

“No descaminho de nosso gozo só há o Outro parasituá-lo, mas é na medida em que dele estamos

separados. (...) Deixar a esse Outro seu modo de gozo,eis o que só se poderia fazer não impondo o nosso, nãoo considerando como um subdesenvolvido.” (LACAN,1973/1993, p.58).

Desde as primeiras publicações de Freud, até as importantes contribuições de Lacan,

a razão sacrificial percorre um longo caminho no corpus teórico da psicanálise, como se pode

vislumbrar no que foi aqui abordado. Nesta tese foi possível acompanhar os intrincados

 paradoxos que se articulam na problemática do sacrifício, tanto na trama do saber textual da psicanálise, decantado a partir da experiência clínica, quanto em uma leitura atualizada do mal

estar na civilização, que constituiu a principal diretriz desta pesquisa.

Para o pesquisador, situar a segregação e o extermínio de sujeitos descartáveis como

expressões dessacralizadas da razão sacrificial, nos dias atuais, não foi uma articulação

evidente. Para chegar até ela foi necessário, primeiramente, buscar um entendimento mais

aprofundado do significado do sacrifício em psicanálise, sem desconsiderar os estudos

antropológicos e sociológicos que constituíram referências fundamentais para as elaborações propostas por Freud e Lacan.

Dessa forma, a eficácia simbólica do sacrifício foi abordada mantendo como norte da

 pesquisa a articulação entre a razão sacrificial e os paradoxos dos Nomes-do-Pai. Concluiu-se

que esses paradoxos decorrem das antinomias entre o desejo (ou a Lei, seu equivalente estrito)

e o gozo, o que já estava antecipado, inscrito na própria etimologia do termo sacrifício: ato de

tornar algo ou alguém sagrado. Como se viu, Freud já atentava para o caráter antitético do

termo sacer , que designa tanto o sagrado e o sublime, quanto o profano e o abjeto.A partir daí, procedeu-se uma diferenciação entre duas vertentes do sacrifício: a

 primeira, que é orientada pelo desejo, viabiliza a separação entre o sujeito e o Outro, sendo

 bem sucedida em estabelecer um enlace entre eles. O luto pelo declínio do pai ideal possibilita

que o sujeito se aproprie, sem culpa ou ressentimento, da herança paterna que se dispõe sob a

forma de dom simbólico. Nesse sentido, o Nome-do-Pai é o dom-do-pai  por excelência. A

segunda vertente foi situada no campo inegociável do gozo, retornando como feroz exigência

de sacrifício. Na ausência de qualquer dom simbólico que possibilite estabelecer o

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reconhecimento de filiação e pertença, o sujeito cai como resto, libra de carne sacrificada aos

mandatos supereuóicos do Outro. Essas diferentes vertentes do sacrifício nada mais fazem do

que repercutir os paradoxos dos Nomes-do-Pai, que estão em sua raiz. Ao desembocarem no

campo político, eles se reverberam nas múltiplas versões do pai que aí emergem: a Lei, a

 pátria, a autoridade, o herói e assim sucessivamente.

Freud já advertia que governar, juntamente a educar e psicanalisar, constituem três

ofícios impossíveis. Dizer que são impossíveis significa que essas tarefas jamais são

conduzidas com êxito pleno: por estarem vinculadas ao amestramento do gozo, elas sempre

deixam um resto, marca da incompletude que lhes é inerente. A observação freudiana assume

seu devido valor quando se considera que a política é um dos Nomes-do-Pai, exercendo uma

função de regulação do gozo a partir do agenciamento do significante mestre ( S1). Lacan

(1966-67/2008, p.350) já o assinalava, ao afirmar que “O inconsciente é a política”,

designando assim o enlace moebiano que articula o que há de mais íntimo e singular em cada

um à tessitura do laço social.

Conforme afirma Francisco Pereña (1996), o pacto democrático constitui uma pré-

condição para a psicanálise, pois ele reconhece a diversidade e não denega a verdade da

castração. Ainda segundo o autor, a democracia que se deseja não é apenas aquela que

reivindica os direitos do cidadão, tão em voga hoje em dia, mas poder-se-ia dizer também,aquela que consente com a inconsistência do Outro, possibilitando assim o luto pelo declínio

do pai ideal. Conforme já ensinava Freud (1913/1987), o pai vale metaforicamente como Lei

apenas depois de morto e pranteado. A elaboração desse luto é vital, no sentido de viabilizar o

consentimento com a dívida simbólica, instaurada pela herança paterna. Essa indicação está

 presente na célebre passagem de Goethe, que Freud (1913/1987, p.160) tanto apreciava:

“Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu”.

Em uma publicação que hoje já se tornou referência para os psicanalistas deorientação lacaniana, Éric Laurent (2007) delineia os contornos do analista cidadão,

assinalando a importância do engajamento do desejo daquele que sustenta a prática analítica

com o enlace político proporcionado pela democracia. Se for verdade que quem quer os fins,

quer também suas condições, pode-se dizer que não há como desconsiderar a comunidade de

interesses que enlaça a psicanálise e a democracia. Essas indicações poderiam facilmente

levar o leitor desavisado a pensar que os psicanalistas engrossariam as fileiras dos entusiastas

da democracia. Nesse ponto Laurent (2004) recomenda cautela, ao considerar que, na

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atualidade, vive-se em um mundo regido pelo capitalismo globalizado, no qual o pacto

democrático é cada vez mais subsumido em uma burocracia biopolítica de caráter disciplinar.

O autor adverte ainda que o declínio do pacto democrático nos dias de hoje se faz acompanhar

da expansão, sem limites, do estado de exceção. Como consequência disso, as “(...) ‘novas

autoridades’ declaram voluntariamente a suspensão dos direitos humanos em sua comunidade

discursiva” (LAURENT, 2004, p.71, tradução nossa59), decretando guerra aos seus inimigos

internos e despolitizando a vida de um contingente cada vez mais numeroso de cidadãos.

Ainda segundo o autor, diante do desafio político colocado em jogo pela incidência patológica

da nostalgia pelo pai ideal, caberia ao psicanalista colocar a seguinte questão: “Como suportar  

a inconsistência do Outro sem ceder ao imperativo de gozo do supereu?” (LAURENT, 2004,

 p.72, tradução nossa60).

Fazer valer a lei e os limites instaurados por ela é, reconhecidamente, uma das mais

relevantes conquistas democráticas. Em uma publicação conjunta com Jacques-Alain Miller,

o linguista Jean-Claude Milner (2006, p.6) observa que nas modernas democracias, o contrato

tomou o lugar do pacto social. Diferentemente da eficácia jurídica proporcionada pelo pacto

social, “a força da forma contratual está em poder ser multiplicada de maneira ilimitada”. A

 partir desse momento, a democracia entrou na era do ilimitado, ou dizendo de outra maneira,

na era do totalitarismo biopolítico, pautado pelo famoso sintagma foucaultiano “Temos dedefender a sociedade.” (FOUCAULT, 1975-76/2005, p.73).

 No contexto abordado pela pesquisa, ou seja, as megaoperações policiais realizadas no

Complexo do Alemão, concluiu-se que a política de segurança pública adotada pelo governo

do Rio de Janeiro não ficou indene à criminalidade e à violência que propôs combater, antes

 pelo contrário; reforçou-as e legitimou-as. A flagrante ilegalidade dos procedimentos policiais

e administrativos, envolvidos nessa política, evidencia o declínio dos semblantes de

autoridade e a inoperância da Lei, enquanto instância reguladora do laço social e dos conflitosque aí se apresentam. Tornou-se claro, ainda, que essa política agenciou práticas francamente

autoritárias e segregacionistas, incompatíveis com a democracia e o Estado de Direito, a

exemplo dos extermínios acobertados sob a insígnia ‘auto de resistência’.

Constatou-se também, a partir da pesquisa documental, que o discurso autoritário e

intolerante veiculado pelas autoridades, bem como pela mídia de ampla circulação, encontrou

59  “(...) ‘nuevas autoridades’ declaran de buen grado la suspensión de los derechos humanos en su comunidad

discursiva”. 

60 “¿Cómo soportar  la inconsistencia del Otro sin ceder al imperativo de goce del superyó?” 

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expressivo apoio popular. Não é difícil reconhecê-lo, quando propõe falar em nome do povo,

silenciando e desqualificando as vozes discordantes. Nesse contexto, as ordens de ferro e seu

 poder para nomear, indicados por Lacan (1974/s.d.), se realizam na legitimação do ato de

designar o inimigo a ser perseguido, combatido e, eventualmente, exterminado. Isso ficou

evidente, como se viu, à luz da doutrina do direito penal do inimigo, que confere legitimidade

 jurídica às medidas preventivas de segurança, com vistas a neutralizar indivíduos

considerados perigosos. Na verdade, quando o direito penal do cidadão é suspenso, o que vem

em seu lugar não pode ser mais ser chamado de direito, pois ele implica, segundo Agamben

(2007a, p.61), uma pura vigência sem aplicabilidade: a “força-de-lei”. Ao se generalizar, o

estado de exceção, enquanto topos anômico situado à margem do Estado de Direito, assinala

não apenas o declínio, mas a pulverização da exceção fundadora, que a psicanálise ensina a

reconhecer como tributária do Nome-do-Pai. A questão passa a ser referida, portanto, ao que

veio ocupar o seu lugar.

O avanço da investigação, rumo à biopolítica e à gestão de vidas matáveis, viabilizou a

articulação entre a problemática da segregação e o paradigma do campo de concentração, tal

como abordado por Arendt (1951/1989) e Agamben (2002; 2007a). Seguindo as indicações

desses autores, viu-se que os campos de concentração não constituem apenas uma margem,

mas o próprio cerne do universo concentracionário. Vale lembrar, nesse sentido, que o predomínio da regência democrática, sob os auspícios do Estado de Direito, de forma alguma

significou a derrocada do espectro do totalitarismo, e muito menos, o fim dos campos de

concentração. Arendt (1951/1989, 511) já advertia que “as soluções totalitárias podem muito

 bem sobreviver à queda dos regimes totalitários sob a forma de forte tentação que surgirá

sempre que pareça impossível aliviar a miséria política, social ou econômica de um modo

digno do homem”. Agamben (2007a, p.13), por sua vez, alerta que, na atualidade, vigora um

totalitarismo moderno a partir da declaração de uma “guerra civil legal” que autoriza “aeliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de

cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político.” Esse tipo de

guerra constitui, hoje, prática gestionária comum nos estados democráticos contemporâneos,

que oscilam em “um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo.”

(AGAMBEN, 2007a, p.13).

Essas indicações foram fundamentais, no sentido de esclarecer que a contrapartida da

generalização do estado de exceção, típica dos dias atuais, é a proliferação dos campos de

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concentração, bem como a produção em larga escala de vidas matáveis. Além disso, a partir

da leitura proposta por Michel Foucault (1999), pôde-se perceber que o reverso do declínio da

Lei é a ascensão do aparato normativo biopolítico, que incide sobre os corpos e as vidas dos

cidadãos, despolitizando-os. Entre as diretrizes desse colossal aparato normativo, destacam-se

a multiplicação de expedientes burocráticos e medidas extrajudiciais de ocasião, que nunca se

exercem sem opressão e violência.

Assim como os Nomes-do-Pai, a biopolítica também é atravessada por paradoxos.

Talvez o principal deles seja considerar que um regime calcado na gestão burocrática e

calculista da vida, com vistas ao seu prolongamento e majoração, se revele uma máquina letal,

com o potencial para segregar e massacrar populações inteiras. A partir dessas reflexões,

concluiu-se que a biopolítica generaliza o lugar da exceção, destituindo o sujeito do seu estofo

simbólico ao promover uma gestão integral da vida - vida nua, supérflua e indigna - e por

isso, matável e insacrificável.

Lacan (1970/2003), em sua época, não havia deixado de indicar que a ascensão do

objeto a ao zênite social constituía corolário da extensão sem limites do discurso capitalista,

devidamente paramentado pelas tecnociências. Não se contentando em profetizar a escalada

do racismo e dos processos de segregação daí decorrentes, ele propôs, ao longo do seu ensino,

diversas indicações acerca do posicionamento da psicanálise diante dessas questões. Em umadelas, pertinente ao contexto que aqui se aborda, ele recomenda que, diante da foraclusão da

verdade da castração, agenciada pelo discurso da ciência, a psicanálise reintroduza o Nome-

do-Pai na consideração científica (LACAN, 1965-66/1998), e porque não dizê-lo também, na

consideração política.

Para uma justa apreciação dessa indicação, concernente ao posicionamento do

 psicanalista confrontado com o despudor obsceno do gozo sacrificial, não é demais evocar um

trecho da entrevista concedida por Freud ao jornalista americano George Sylvester Viereck,em 1926. Nessa entrevista, o jornalista assume diante de Freud uma posição de interlocutor

ingênuo, incitando-lhe com perguntas provocadoras. Em determinado momento da entrevista,

ele comenta que tem a impressão de que a psicanálise desperta em seus praticantes o espírito

da caridade cristã. Isso, segundo ele, porque ela seria capaz de elucidar os aspectos mais

torpes e sombrios da existência humana. Para concluir seu raciocínio, Viereck (1926, tradução

nossa) 61  evoca o célebre provérbio francês: “tudo compreender é tudo perdoar”. Freud

61

 “Tout comprendre, c'est tout pardonner”.

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contesta energicamente o comentário infeliz do seu interlocutor, respondendo-lhe

severamente: “Compreender tudo não é perdoar tudo. A tolerância para com o mal não é de

maneira alguma um corolário do conhecimento.” (VIERECK, 1926).

Vê-se assim que a “ética do  Bem-dizer ” (LACAN, 1973/1993, p.72), própria da

 psicanálise, não deve permanecer restrita ao gabinete de trabalho do psicanalista, no trato

 pessoal com seus pacientes; ela vale também quando ele se defronta com o mal estar na

civilização de sua época. E, justamente ao contrário do que supunha Viereck, o que essa ética

recomenda ao psicanalista é que esteja advertido dos “contragolpes agressivos da caridade”,

sabendo que eles nada mais são do que reações aos “impulsos agressivos ocultos sob todas as

chamadas atividades filantrópicas.” (LACAN, 1998/1948, p.110). Por parte do psicanalista,

dever-se-ia esperar cautela quanto às insondáveis paixões humanas, particularmente aquelas

regidas pela razão sacrificial, como o anseio messiânico de salvar o Outro.

Diante disso, suscitar a vergonha (LAURENT, 2012) talvez seja o derradeiro recurso

 para dissociar o sujeito dos significantes mestres que o enfeitiçam, ou melhor, en-fetichizam,

capturam e comandam, revelando assim sua inconsistência. Para tanto, ali onde isso era, ou

seja, a ostentação obscena da razão sacrificial sancionada pelo mestre moderno, o psicanalista

deve advir, tomando a palavra e reconstituindo a cena simbólica degradada, mediante um

dizer na justa medida do real colocado em jogo. Nesse sentido, ele opera como uma versão do pai no circuito simbólico dos dons: não o que dá o nome, ou mesmo o perdão - sobretudo

quando perdoar significa esquecer -, mas sim aquele que dá a vergonha. Afinal, quando se

trata do pai imaginário, o “manto de Noé” (LACAN, 1973/1993, p.40) é o que melhor lhe

convém. 

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