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Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho” 1 Pedro Henrique Barreto de Lima Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho” 1ª edição Belo Horizonte Edição do autor 2020

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Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”

1

Pedro Henrique Barreto de

Lima

Crítica a “Conhecimento por

presença: em torno da filosofia

de Olavo de Carvalho”

1ª edição

Belo Horizonte

Edição do autor

2020

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Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho”

2

D353 de Lima, Pedro Henrique Barreto, 1987

Crítica a “Conhecimento por presença: em torno da

filosofia de Olavo de Carvalho” - 1. ed. - Belo Horizonte, Edição

Independente, 2020.

369 p.; 27 cm.

ISBN : 978-65-00-15294-4

1. Capítulo I - o que é a "pseudo-iniciação"?

I. Título

CDD 200

CDU: 11

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3

Sumário Capítulo I - o que é a "pseudo-iniciação"? ....................5

Capítulo II - Olavo de Carvalho e o tema do expletivo 76

Capítulo III - Um estudo teológico da teoria dos quatro

discursos .................................................................... 99

Capítulo IV - O ocultismo e o tema da "dúvida radical"

................................................................................ 169

Capítulo V – Ação histórica e o “trabalho do negativo”.

................................................................................ 236

Capítulo VI – O simbolismo do figo e o sonho de Olavo

de Carvalho ............................................................. 270

Capítulo VII – Simbolismo do filme “O náufrago”

(2000) ...................................................................... 329

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5

Capítulo I - o que é a "pseudo-

iniciação"?

Um homem e sua jovem filha

estão em um bar-restaurante,

conversando de modo

distraído e tranquilo. De

repente, chega um garçom à

mesa com duas taças de

martini, "Um 'cosmopolitan'

para o senhor", diz o garçom

pondo sobre a mesa um pedido

que pai e filha não haviam

requisitado, "e um 'sex on the

beach' para a moça. Cortesia

do homem à direita, no bar."

Gesto atrevido, mas ainda é

possível bufar sem estrondo e

seguir em frente; não fosse o

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bilhete deixado pelo abonador

desconhecido, vindo junto

com as taças: "Parabéns pelos

genes, velhote, a tua filha tem

saúde!"

Esse é o sentimento usual, de

algo impertinente, que sentem

os olavistas ante críticas

dirigidas à filosofia de Olavo

de Carvalho ou à linguagem

convencional do seu meio; isto

é, quando o crítico tem a sorte

de não se deparar com simples

indiferença ou desinteresse.

Dizem que Pierre Viret, um

colaborador de Calvino, foi

bem sucedido como

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missionário protestante pela

capacidade de infundir na sua

audiência sentimentos de

doçura. Eu desejaria que essa

fosse a minha posição

alcançável, no me dirigir

criticamente à filosofia

olavista. Lamentavelmente, o

crítico da filosofia olavista se

coloca na mesma posição de

certo personagem de filme,

vítima da conspiração de

gângsteres, homem que levou

para passear de carro uma

espiã se passando por

namorada, chamada

"Heroína"; ele um personagem

cujo porta-malas fora enchido

com a droga "heroína". O

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pobre homem se viu obrigado

a alegar, a policiais que o

pararam, que não estava

fazendo nada mais que levar a

Heroína para passear,

enquanto a sua "namorada"

dava no pé. Eu deixo ao leitor

julgar se é possível, em tais

circunstâncias, arrazoar com

sentimentos de doçura e

generosidade.

A tese central da minha crítica

à publicação de Ronald

Robson ("Conhecimento por

presença: em torno da filosofia

de Olavo de Carvalho") é a de

que o olavismo é uma pseudo-

iniciação, exatamente no

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sentido que o orientalista e

metafísico francês René

Guénon atribuiu a um

fenômeno como o teosofismo.

Importa, portanto, explicar o

que é a "pseudo-iniciação".

O principal discutidor

do assunto parece ter sido

René Guénon, mas o estudo

desse fenômeno foi de modo

similarmente formidável

empreendido pelo escritor

britânico J. R. R. Tolkien,

autor dO Senhor dos Anéis.

Guénon retrata a pseudo-

iniciação como um

"mecanicismo" que reduz os

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fenômenos terrestres a

"engrenagens" feitas por mãos

humanas; isso contrastando

com como no Livro de Daniel

a estátua do sonho do

Imperador Nabucodonosor

(esta um objeto "feito por

mãos" e potencial símbolo da

idolatria) é destruída por uma

rocha "não cortada por mão".

A "mão" significa tanto um ato

ou uma atividade, quanto um

ato especificamente criador. A

redução das coisas a

"engrenagens", ou à

"indústria", simboliza um ato

criador que se separa

usurpadoramente de uma

ordem ou processo "natural".

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Essa separação significa que

aquilo que é acidental se

separa do que é essencial

(embora essência e acidente

tenham um vínculo

subjacente), e ganha uma

espécie de ilusória aparência

auto-suficiente. Nessa analogia

o que é de criação humana

("feito por mãos") corresponde

ao acidente cujo vínculo com a

essência é obscurecido; o que

é de criação divina

correspondendo, de outro lado,

à essência que contém em si

todo acidente latente. Uma

expressão dessa separação é o

chamado "pensamento

metonímico" (que toma a parte

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pelo todo, o aspecto isolado

pelo fenômeno em si),

conforme bem descreve a

filosofia de Olavo de

Carvalho. Uma outra

expressão da separação entre

essência e acidente é o tema

bíblico da "árvore do fruto do

conhecimento do bem

[essência] e do mal

[acidente]".

O "Anel de Sauron", em O

Senhor dos Anéis, também

chamado "the one ring" ("o um

anel"); simboliza esse

fenômeno da pseudo-iniciação.

Simboliza a sombra de um

conhecimento (ou de uma

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tradição), sombra que

condensa em si os ecos desde

um vínculo subjacente com o

que é essencial e não sombrio;

mas esse vínculo foi de tal

modo afastado por um curso

degenerativo que restou

apenas um cadavérico

mausoléu onde outrora existira

um palácio real. O anel é um

objeto "feito por mãos",

forjado pelo ato criador de um

artífice, e adorna a "mão".

Assim, o fato de que a

narrativa do Sr. Tolkien fala a

respeito de o anel "ter uma

vontade própria", como um

ente vivo, de algum modo

reflete o tema apocalíptico da

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"imagem idolatrada da besta,

que ganha vida" (significando

o se deixar "encorajar e

vivificar" por aquilo que é

falto de "essência"), ou o tema

mitológico de Medusa, cujo

olhar torna as pessoas estátuas

(isto é, objetos "feitos por

mãos"); significando um efeito

hipnótico que torna as pessoas

sombras de si mesmas porque

refletidoras de uma forma

sombria ou "acidental" de

conhecimento; um efeito

hipnótico cuja expressão

política ou massificada é a

"obrigação de comprar e

vender com o sinal da besta"

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(a tirania vista desde um ponto

de vista espiritual).

O se tornar uma sombra de si

mesmo pelo impacto do

acidente separado da essência

("efeito-medusa") lembra o

preceito de etiqueta segundo o

qual "aquele que não sai do

lugar-comum [a Medusa

figurativa] força os outros a se

sentir míseros".

Antes de examinar o que o

fenômeno da pseudo-iniciação

significa mais detidamente,

talvez alguns exemplos

particulares ilustrem o assunto.

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Um primeiro exemplo é que o

fenômeno do "espiritismo" se

notabilizou por propor

narrativas sobre a vida no

"além", ou em outros

"planetas", que são

ofensivamente banais, como

meras sombras-repetições da

vida terrestre ordinária; dando

à impressão terrestre-ordinária

das coisas (acidente) a

aparência de algo que não

supõe um fundo mais

universal, ou um vínculo

subjacente com algo que

ultrapassa o ordinariamente

imaginável (esse "algo"

corresponde à essência).

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Esse mesmo padrão, no

espiritismo, se repete quando

os espíritas confundem a

noção dos resíduos psíquicos

imateriais de falecidos

(acidente), correspondendo ao

que os gregos antigos

chamavam de

"metempsicose"; com o

próprio "eu" de falecidos para

além da vida terrestre

(essência), correspondendo ao

que os gregos chamavam

"transmigração".

Um segundo exemplo é a

teologia de Gregório Palamas

(séc. XIV), prevalente entre

"ortodoxos orientais", segundo

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a qual a inteligência humana

tem acesso à "energia divina

incriada" (correspondendo à

manifestação e ao acidente),

mas não tem acesso à

"essência divina". A

valorização da manifestação

(acidente), em detrimento de

uma essência obscurecida, é

basicamente o principal traço

do existencialismo, de cuja

escola o marxismo é uma

espécie; assim restando tanto

mais compreensível a

incorporação do marxismo em

um país "ortodoxo" como a

Rússia. Ademais (e na esteira

disso), um pastor anglicano

chamado Gyordano

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Montenegro Brasilino deu-me

o parecer de que (na sua

opinião) a doutrina eucarística

calvinista, que supõe a

"presença espiritual" e não a

"presença real" de Cristo,

guarda uma "semelhança

estrutural" com a doutrina

palamista.

Há ainda o exemplo de certos

opinadores públicos soi-disant

tradicionalistas, os quais,

pressionados a admitir um

vínculo subjacente e

necessário entre dogma

(essência) e moral (acidente),

isto é, pressionados a admitir

que dogma e moral são termos

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relativos, como "pai" e "filho",

ou "grande" e "pequeno", ou

"agente" e "paciente", e,

portanto, mutuamente

prolongados um no outro

(porque necessariamente

sugerindo um o outro); negam

essa relação entre dogma e

moral de modo simples. Essa

relação entre "dogma" e

"moral", no entanto, não

apenas está dada na Carta a

Flaviano (Papa Leão I, ensino

"ex cathedra"), quando esta

fala das testemunhas terrestres

de 1 João 5:8 "sendo um"; em

particular o "espírito da

santificação" e a "água do

batismo" (o chamado

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"sacramento da fé"); mas está

dada no fato de as “três

testemunhas” ou princípios da

purificação religiosa (quais

descritos na epístola bíblica),

"espírito", "água" e "sangue",

corresponderem seguramente à

tripartição dos catecismos em

doutrina "dogmática",

"sacramental" e "moral".

Assim, existe entre o domínio

dogmático e o domínio moral

a mesma relação, um similar

paralelismo, que existe entre

um objeto e o seu reflexo no

espelho. O desvio dogmático

que separa da Igreja

corresponde a algum pecado; o

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pecado que separa da Igreja a

algum desvio dogmático. O

desvio dogmático em potência

que não separa da Igreja

("heresia material")

corresponde a uma condição

moral degenerativa ou ao

menos desvantajosa "em ato"

(ou "de imediato"), conquanto

secundária em importância,

por conta de uma inversão

analógica; como aquela pela

qual uma imagem no espelho

apresenta um dizer invertido.

Na mesma esteira, o desvio

moral em ato que não aparta

da Igreja corresponde a um

desvio dogmático "em

potência".

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A esse respeito é significativo

ou destacadamente inteligível

que; a moral seja um domínio

mais potencial que o domínio

dogmático; e tenha a moral um

seu aspecto comparativamente

"em ato" que é relativo a um

aspecto dogmático

comparativamente "em

potência". Isso sugere, note-se,

que essa simultaneidade de

"ato" e "potência" diz de uma

mesma coisa vista desde dois

planos distintos.

O paralelismo é intrincado,

mas suficientemente claro; a

relação entre os termos

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"dogma" e "moral" também,

adicionando subsidiariamente

à definição solene da Carta a

Flaviano.

Ora, o fato de que os

"tradicionalistas" que rejeitam

esse ensino infalível o façam,

tem certa continuidade com o

fato de que eles se indignem

com certas teses, baseados

precisamente na ideia da

autossuficiência e

independência da "impressão"

(acidente) em relação à

"concepção" (essência). Por

exemplo, se alguém disser aos

tais que os símbolos

maçônicos da régua e do

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compasso têm certa

continuidade doutrinal com as

noções católicas sobre o

batismo e sobre a função do

batismo (qual indicado no fato

de que o batismo também

supõe um simbolismo

geométrico, por exemplo

presente nos batistérios

tradicionais em forma

octogonal etc.), os

"tradicionalistas" vão

estereotípica ou

provavelmente tomar essa

afirmação como herética. A

maçonaria manipula de muitos

modos noções cristãs, incluso

por ser uma tradição ocidental,

notoriamente tomando o motif

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da ordem monástica dos

Templários, entre outros. Qual

é, pois, a diferença específica

(em termos de ocasião para

ofensa) entre, de um lado, se

indignar que alguém alegue

que a maçonaria discute uma

doutrina sacramental de modo

mais ou menos direto; e, de

outro, se indignar que alguém

alegue que os protestantes

(que não são católicos)

discutem uma doutrina

sacramental? E se alguém se

indigna com a primeira

alegação, e não a segunda,

essa diferença ocorre em

função do que, senão da

impressão ou do sentimento

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(acidente), em detrimento da

concepção (essência), assim

negando a "acidente" e

"essência" um vínculo

subjacente, e mesmo

confundindo de modo idólatra

o que é "feito por mãos"

(acidente) com o que não é

(essência)?

Isso permite perceber por

que o vínculo entre fé e moral

é negado: o hábito

existencialista de separar e

negar o vínculo subjacente

entre acidente e essência é tão

arraigado entre alguns que

pedir para se o deixar de fazer

em um caso particular soa no

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mais alto grau como uma

indiscrição, se é que o pedido

soa de todo compreensível.

O obscurecimento pseudo-

iniciático do vínculo entre

essência e acidente se

manifesta amplamente.

Por exemplo, no feminismo

(mesmo primitivo), porque

sucede que a situação a que se

endereçou Mary

Wollstonecraft criticamente

(Inglaterra do séc. XVIII) não

supunha uma intervenção

"comissivo-tirânica" da classe

masculina sobre a classe

feminina, mas, ao contrário;

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supunha uma espécie de

abandono e não cultivação; e a

autora parece mais se ressentir

(em certos pontos),

inadvertidamente, do papel

degenerativo, vazio e sombrio

que as mulheres haviam

assumido (acidente e "efeito-

medusa"), do que de alguma

formulação pedagógica

abundantemente administrada

e impingida às mulheres

(essência); sendo significativo,

a esse respeito, a tese de ares

aristotélicos segundo a qual a

tirania consiste precisamente

em tentar disfarçar o se estar

de mãos vazias. A solução

feminista histórica parece ter

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sido tornar as mulheres mais

parecidas com os homens (o

que inclui o desenvolvimento

feminista mais recente da

promoção indiscriminada do

lesbianismo), desembocando

corroborativamente na

ideologia identitária

contemporânea, que faz das

mulheres, dos negros etc.,

desde o seu tratamento

midiático, pouco mais do que

"personas" políticas e lugares-

comuns em forma humana.

Algo análogo se passa com a

crítica que certos opinadores

fazem da Igreja Pós-Concílio

Vaticano II, por exemplo o

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documentário "Scandal in the

Vatican"; o qual conclui dos

escândalos de abuso sexual e

pedofilia pelos clérigos pós-

conciliares; não que se deveria

voltar a uma moralidade sadia

tradicional, e sim que a vida

celibatária e casta é inviável, e

os clérigos devem tomar

esposas para não se tornar

desviantes. A solução para a

falta da vida consagrada

(essência) é aboli-la de vez

para que ela não desemboque

nos escândalos (acidente).

Entre os exemplos destacados

está o terem os conservadores

dos Estados Unidos da

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América erigido a "liberdade",

sobretudo religiosa (acidente),

quando menos como lema

ordinário, à condição de

supremo valor político ou

concernente à promoção do

bem comum (essência); o que

forçosamente anatematiza o

catolicismo "de facto" e

naturalmente tende a o alijar

de qualquer respeitabilidade

secular íntegra,

comprometendo a sua

liberdade de existir; já que o

catolicismo supõe a

anatematização de todas as

religiões não católicas, e

portanto a desaprovação

secular de todas elas; porque

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no catolicismo não é possível

tomar a "moralidade natural"

(acidente) como substituidora

suficiente da profissão

dogmática (essência); motivo

pelo qual Santo Tomás de

Aquino, em comentário a

Romanos 2:14, critica como de

ares pelagianos (ou heréticos)

a ideia hoje usual de que São

Paulo fala de um gentio

seguindo a "lei natural"

salvífica sem a conversão.

Propõe Santo Tomás, no lugar

disso, a ideia de que São Paulo

simplesmente fala de um

gentio recém-convertido,

socorrido pelas graças da

Igreja na apreensão suficiente

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do que leva à salvação. O

“catolicismo permitido”

(alheio às controvérsias

teológicas trazidas por

tradicionalistas como os

Irmãos Dimond com retidão),

em conclusão, é apenas um

catolicismo "feito por mãos".

Talvez o exemplo atual mais

emblemático do

obscurecimento do vínculo

entre essência e acidente seja a

tendência da New Age,

expressa em um estudioso

famoso (e prestigioso) como

Graham Hancock, de estudar

sítios arqueológicos; como se

a posse dos resíduos de

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civilizações antigas (acidente)

fosse uma gratificação da alma

suficiente ou representasse um

substituto suficiente (enquanto

gratificação) da reconstituição

de tais civilizações (essência).

Esse abrir mão de uma

gratificação intelectual, em

prol de uma gratificação

relativa a um efeito psíquico, é

propriamente o que se pode

chamar "xamanismo"; e

sucede que o Sr. Hancock é

conhecido ativista em favor do

benefício de ritos literalmente

administrados por xamãs, os

quais ritos incluem a ingestão

de substâncias alucinógenas.

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O que essas tendências de

modo geral assinalam é

precisamente um estado de

"decomposição" civilizacional,

no qual se tem acesso apenas

ao que é acidental, a "ruínas

arqueológicas".

É disso que fala o monólogo

inicial do filme "O Senhor dos

Anéis", dito pela personagem

elfa (os elfos representam as

pessoas contemplativas ou

dedicadas à intelecção),

Galadriel: "O mundo está

mudado. Eu sinto-o na água.

Eu sinto-o na terra. Eu cheiro-

o no ar. Muito do que havia

está perdido, porque ninguém

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agora vive que o lembra." São

palavras que assombram.

Na tradição hindu o "olfato"

não se associa ao elemento

natural do ar, mas sim à água.

É o "tato" que naturalmente

guarda uma associação

simbólico-metafísica com o

"ar". A água (olfato)

corresponde, no simbolismo

hindu dos cinco elementos, ao

domínio da atividade

econômica (enquanto o ar

corresponde ao domínio da

"atividade contemplativa"),

atividade econômica que tem

como um dos aspectos

principais ser relativo ao

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midiático ou público. Ao

alegar, pois, que fareja “no ar”

(não sente com o tato) o

obscurecimento do que fora

conhecido, Galadriel sugere

que a percepção do que é

próprio da vida contemplativa

passou a ser acirradamente

mais dependente do que

subsiste como exterioridade ou

cristalização midiática residual

(acidente), em oposição ao que

subsiste como conhecimento

carregado e não potencial

(essência).

Eu observei que o

obscurecimento do vínculo

entre essência e acidente se

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expressa na dualidade do fruto

do conhecimento do bem e do

mal, o fruto proibido no

paraíso. Ora, quando Adão e

Eva provaram o fruto os seus

olhos foram abertos e eles

perceberam a si mesmos como

nus, por isso eles coseram

folhas de figueira e fizeram

para si aventais (versão bíblica

Douay-Rheims). O "avental"

sugere uma atividade ou

indústria (acidente), além de

ser um objeto "feito por

mãos". O "fruto proibido" é a

separação dual do que estava

unido na "árvore da vida", a

saber, essência e acidente. O

fruto sagrado corresponde ao

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"figo"; de modo que os

aventais com folhas de

figueira são uma continuação

acidental do figo.

Essência e acidente

correspondem a "ato" e

"potência", ou "ápice" e

"gestação"; os quais por sua

vez correspondem a

"masculino" e "feminino". A

separação entre essência e

acidente, assim,

desembocando no abrir de

olhos que alertou para a

própria nudez, significa

também que Adão e Eva

perceberam a condição

sexuada de um modo mais

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pejorativo, sem a percepção

imediata de uma unidade

subjacente entre o masculino e

o feminino. Os aventais

suavizam isso, e são um meio

de sugerir a condição não

decaída. Essa diferença entre

ver algo desde um ponto de

vista mais elevado, e ver desde

um ponto de vista mais

decaído, corresponde, por

exemplo, ao fato de que um

mesmo termo, "plenitude",

pode significar "inteireza", de

um lado, e "copiosidade", do

outro. O primeiro é um sentido

mais qualitativo e "interno", o

segundo um sentido mais

quantitativo e "externo". Essa

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mesma dualidade se expressa

na passagem bíblica sobre o

"jovem rico" que possuía

muitas virtudes (copiosidade)

mas se recusou a ver a unidade

subjacente entre elas e a

pobreza (inteireza ou

plenitude).

Se os aventais cobrem o que

torna cada sexo separado, de

certo modo isso sugere que o

"figo" é precisamente aquilo

que é coberto, porque deixou

de ser "uno". A palavra "figo"

guarda uma conotação

etimológica de "órgão sexual

feminino" (e portanto, de

"órgão sexual sem

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qualificação"), por isso a

palavra de origem grega

"sicofanta" significa,

etimologicamente, "aquele que

faz um gesto indecente de dar

uma figa".

O ponto é que a unidade

subjacente entre essência e

acidente passou a ter de ser

intermediada por aquilo que é

"feito por mãos", algo

acidental, e o se gratificar com

o que pertence a essa unidade

passou a supor um esforço

("suor da fronte", Gênesis

3:19).

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Assim, embora aquilo que é

"feito por mãos" suponha uma

condição degenerativa ou

decaída, não supõe, entretanto,

algo inequivocamente

maligno. Com efeito, aquilo

que é "feito por mãos"

corresponde ao "domínio

psíquico", que é propriamente

o que o batismo na água

simboliza. Os

sacramentários recomendam

que o padre marque (com um

sopro) a água preparada para o

batismo com a letra grega

"psi" (Ψ – ψ), donde vem

"psique". O batismo ("água" e

avental) faz a

intermediação entre o mundo

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terreno ou sensível ("sangue" e

folha de figueira) e o mundo

celeste ou suprassensível

("espírito" e figo); por isso

"espírito", "água" e "sangue"

(1 João 5:8) são princípios do

testemunho, ou são

"testemunhas".

Ora, sucede que as chamadas

"duas testemunhas

apocalípticas" que profetizam

durante a hegemonia secular

da "Grande Cidade"

apocalíptica, correspondem a

"espírito" (que se associa ao

domínio suprassensível) e

"sangue" (que se associa ao

domínio sensível). O terceiro

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termo ("água") corresponde à

própria Grande Cidade, a

explicação disso requerendo

certo recuo.

A Grande Cidade, também

descrita como "a Meretriz

Babilônia sentada sobre a

besta", possui dois nomes,

"Sodoma" e "Egito". Esses

nomes degenerativos sugerem

expressões degeneradas,

respectivamente; do papel do

sacerdote, que deveria buscar

uma gratificação intelectual

elevada, e do papel do nobre,

que deveria disponibilizar uma

gratificação intelectual

elevada; porque, por assim

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dizer, enquanto o

sacerdote entende, o nobre se

faz entender. Sodoma e Egito,

assim, são imagens sombrias

ou acidentais do "espírito"

(sacerdote) e do "sangue"

(nobre), um par que também

correspondem a "luz" e

"calor".

Existe uma outra

correspondência dos dois

nomes da Grande Cidade, a

saber, "pseudo-iniciação"

(Sodoma), que é uma forma

pejorativa ou falsa de

gratificação sagrada; e

"contra-iniciação" (Egito), que

é a negação máxima de toda

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pretensão a uma gratificação

sagrada, isto é, se trata dum

"ceticismo" (análogo ao do

faraó de Êxodo) boicotador de

todo princípio, que por isso

mesmo permanece mais

discreto em relação ao olhar

público do que a "pseudo-

iniciação". O psiquiatra

Andrew Lobaczewski

acidentalmente topou com

essas duas categorias

(propostas por René Guénon),

no livro "Ponerologia:

Psicopatas no Poder", já que a

pseudo-iniciação (Sodoma)

guarda certa correspondência

com o "colaborador histérico"

da "patocracia" (o governo

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patológico); enquanto a

contra-iniciação (Egito)

guarda certa correspondência

com o "psicopata". Existe algo

de tenebroso e temível na

filosofia política do Dr.

Lobaczewski justamente

porque ele enxerga esses

agentes da patocracia não

como fenômenos cósmicos,

que têm um papel sagrado a

desempenhar na ordem total

das coisas, embora se

associem a uma destacada

desordem desde um ponto de

vista mais baixo; a promoção

da exclusividade deste ponto

de vista inferior sendo

basicamente um modelo do

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efeito que esses agentes

maléficos intencionam

produzir. No caso, tomar um

fenômeno cósmico por um

fenômeno sobretudo

psiquiátrico-político (a política

aí entendida em um sentido

não religioso), é precisamente

uma expressão do tomar o que

é acidental em um sentido que

supõe o obscurecimento do

vínculo entre acidente e

essência. Para falar de modo

figurativo ou analógico,

quando o Dr. Lobaczewski vê

os agentes patocratas ele vê

"fantasmas" ou "aparições"

hipnóticos (metempsicose)

sem um vínculo subjacente

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com o "eu" dos falecidos

(transmigração). A

ponerologia,

consequentemente, é uma

expressão da hegemonia

existencialista ou pseudo-

iniciática no mundo

contemporâneo. Esta última

afirmação não significa,

entretanto, que o próprio Dr.

Lobaczewski se enquadre na

condição precisa de

"colaborador histérico", uma

vez que entre o domínio do

conhecimento cosmológico e o

domínio ponerológico (isto é,

psiquiátrico-político) há uma

correspondência, não uma

coincidência; o primeiro

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domínio compreende e

ultrapassa o segundo.

Tampouco é a minha intenção

negar ao Dr. Lobaczewski e à

sua pesquisa cheia de

sacrifícios um mérito fora do

comum.

As categorias da "pseudo-

iniciação" (Sodoma) e da

"contra-iniciação" (Egito),

também correspondem,

respectivamente, ao tema das

"duas torres", em O Senhor

dos Aneis, a saber, "a torre de

Isengard" e "a torre de

Mordor".

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O fato de que a Grande Cidade

é una com dois nomes, e as

testemunhas são não apenas

distintas conceitualmente, mas

também apartadas

substancialmente, significa um

contexto em que não é

possível dar ao mundo secular

uma feição sadia estável por

conta da necessidade

premente, por conta de uma

tensão ou divisão entre o

inteligível ("espírito" e

concepção) e o ininteligível

("sangue" e impressão). Essa

tensão é uma gestação e

desvelamento cujo freio ou

cuja rejeição desemboca

precisamente na auto-

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indulgência da Meretriz

(Grande Cidade), a qual julga

que pode descansar desse

esforço mesmo sentada sobre

as instáveis "muitas águas" (a

"besta") que terminam por

ressentidamente mortificá-

la (essa mortificação

representa o efeito dissipativo

natural de retorno contra a

coesão intelectual de fachada,

pretendida). As duas

testemunhas são o tormento

dos "habitantes da terra"

porque elas assinalam que

concepção e impressão,

essência e acidente, são

distintos e também

substancialmente apartados,

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em vez de substancialmente

idênticos; ou,

consequentemente, em vez de

assinaladores de uma

estabilidade externa. Essa

realidade é uma expressão

figurativa do dizer evangélico

"O meu reino não é deste

mundo" (João 18:36).

A Grande Cidade é o alívio

dos habitantes da terra porque

ela alega que concepção e

impressão, ou essência e

acidente, são o mesmo, isto é,

se está em uma condição

paradisíaca. A Grande Cidade

representa a auto-indulgência

existencialista em favor do

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acidental como substituto

suficiente do essencial, as duas

testemunhas representam a

mortificação e confissão da

precariedade do "acidente"

(qual significado pelas

testemunhas se vestirem com

panos de sacos), elas

representam a necessidade do

contínuo desvelar do elo

subjacente entre acidente e

essência; esforço esse que

requer uma instabilidade no

domínio secular, ou das

aparências, que parece

excessivamente pesado aos

"habitantes da terra".

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A relação entre a Grande

Cidade e as duas testemunhas

é um tanto mais intrincada do

que até aqui referido. Sucede

que as duas testemunhas são o

princípio movente da Grande

Cidade, assim como a essência

é o princípio do acidente,

assim como a ortodoxia é (de

certo modo) o princípio da

heterodoxia. De outro lado, é o

desvio contínuo da Grande

Cidade que dá às testemunhas

matéria sombria ou acidental

com que desvelar um fundo

concepcional. O que ocorre

entre as duas testemunhas e a

Grande Cidade é uma "dança

da morte". Um dos sentidos

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que subjazem ao motif

artístico-alegórico da "dança

da morte", durante o Outono

da Idade Média, talvez seja

precisamente este: o caráter

degenerativo ou relativo a uma

instabilidade secular, daquele

período, assinalando um fundo

sagrado, uma ordem

subjacente.

As duas testemunhas operam

"na barriga da besta" (uma

alusão ao profeta Jonas), como

São Pedro e São Paulo atuam

desde a "Babilônia" (1 Pedro

5:13), a saber, Roma Pagã. A

besta apocalíptica representa a

pretensão da suficiência da

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impressão ou instinto

(acidente), em detrimento da

concepção ou intelecção

(essência). O resultado da

"dança da morte" é que a

atuação das testemunhas,

mesmo "divididas",

desemboca na suficiente

concentração concepcional.

Para melhor explicar a ideia do

que motiva a contínua

concentração concepcional, ou

para fins de metáfora: o

Patriarca Santo Atanásio de

Alexandria foi acusado numa

corte judicial, pelo partido da

heresia ariana (séc. IV), de

haver matado um clérigo

chamado Arsênio, e Atanásio

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também foi acusado de ter

realizado feitiçarias com a

mão do cadáver. Quando

Atanásio conseguiu apresentar

diante da corte o homem, vivo

e bem, que Atanásio teria

supostamente assassinado, a

reação dos arianos não foi dar

o braço a torcer; mas se diz

que os seus acusadores

alegaram com intensa

indignação que Atanásio,

sendo um feiticeiro, havia

ressurreto Arsênio por meio de

bruxaria. Esse é o tipo de

acusação pela qual as pessoas

não costumam esperar; e

equivale ao que em inglês se

chama "double down", "o

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dobro ou nada". Em vez de

desistir de propor a

coincidência substancial entre

"concepção" e "impressão", a

Grande Cidade, similarmente,

aumenta a aposta contra as

duas testemunhas toda vez,

como um viciado em jogo,

forçando as duas testemunhas

a continuar a se esforçar por

servir de oposição à Grande

Cidade.

O sentimento de admiração

ante essa ousadia da Grande

Cidade corresponde ao

"espanto" hipnótico que a

Meretriz Apocalíptica

(Apocalipse 17:6), ou a besta,

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incitam nas pessoas. Essa é a

mesma admiração que o "anel

de Sauron" incita no seu

portador, um fascínio ante uma

demonstração de poder, poder

de um tipo tanto mais sedutor

quanto mais apartado em

aparência de um vínculo

subjacente com o que "não é

feito por mãos". Essa

admiração, ou os agentes que

se associam a ela, representam

os "xamãs" substituindo o

clérigo na arena pública. A

esse respeito o exemplo do

partido contrário a Atanásio é

particularmente feliz, porque o

"xamã" se notabiliza por

produzir um efeito, em

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detrimento de transmitir um

conhecimento. O que lhe falta

em substância, é compensado

por suas faculdades teatrais,

que podem incluir a

capacidade de se indignar e

alegadamente se bater pela

verdade e a justiça com

comoventes apelos. O xamã

não é insincero no sentido

ordinário da palavra.

Ao chegar no limite da

concentração concepcional (ao

fim do período de cerca de três

anos e meio, metade de sete,

este um número que indica

"completude" e que é dividido

em paralelismo com as

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testemunhas) as duas

testemunhas morrem e jazem

sobre as ruas da Grande

Cidade durante cerca de três

dias e meio. Esse paralelo dos

períodos significa que aquelas

concepções acumuladas pelas

testemunhas durante a sua

pregação são injetadas, de

modo condensado, na cidade;

durante a exposição dos seus

corpos mortos; como o grão de

trigo que precisa morrer para

dar muito fruto (João 12:25).

A morte das testemunhas

significa que não é necessário

mais elas procurarem uma

unidade subjacente entre

impressão e concepção; isso,

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ao mesmo tempo que as faz

semelhantes e incorporáveis à

Cidade, num primeiro

momento, também significa

que existe um limite depois do

qual a aposta da Grande

Cidade não pode ser renovada,

como um apostador que

perdesse tudo após apostar

todas as fichas em um lance

infeliz.

A décima parte da Grande

Cidade cai ou desmorona no

terremoto (Apocalipse 11:13)

como expressão dessa

incompletude no seu se

manifestar (só é possível

"blefar" até certo ponto), após

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a ressurreição das

testemunhas; porque o número

"dez" representa completude

no domínio da manifestação.

As duas testemunhas, uma vez

ressurretas ou alçadas ao plano

celeste, se tornam finalmente

distintas e simultaneamente

partícipes da mesma

substância suprassensível. Isso

permite que a Grande Cidade

se torne a "terceira

testemunha" terrestre a fazer

com que os "habitantes da

terra" temam e deem glória a

Deus, a saber, a "água", o

domínio psíquico que serve de

intermediário entre o domínio

concepcional ou

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suprassensível ("espírito") e o

domínio da impressão ou

sensível ("sangue").

Tudo que é "feito por mãos",

como a Cidade associada às

muitas águas, pode

corresponder ao domínio

psíquico. Também a água,

como visto. A Grande Cidade,

portanto, é uma expressão do

domínio psíquico mais

"acidental" do que "natural",

ou cujo vínculo subjacente

com a essência foi mais

profundamente obscurecido.

Assim, é a influência de fator

"natural", o terremoto, que

restabelece esse vínculo.

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Um outro ponto é que a

influência das testemunhas

sobre os "habitantes da terra"

após a sua ressurreição

significa que, desde que uma

pessoa tenha passado pela

concentração concepcional de

modo suficiente, qualquer

matéria particular pode ser

usada comunicativamente

como meio de se expressar

plenamente. Por exemplo, há

coisas valiosas e de efeito

avassalador que são

comunicadas de modo sutil e a

despeito da aparência vulgar, a

despeito do conteúdo ordinário

na sua superfície. Isso é uma

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das coisas que significa a luta

vitoriosa de Sansão usando

apenas uma queixada de

jumento, contra mil filisteus

(essa metáfora é sugerida na

bula papal "Mira Circa Nos",

1228 A.D., que canonizou São

Francisco de Assis). Alguns

santos católicos profetizaram a

respeito do "Grande

Monarca", um líder cristão que

no final dos tempos restaurará

a cristandade no mundo todo

desde uma situação de

apostasia quase universal; esse

fenômeno guardando nítida

relação com o presente

assunto. Ademais, essa

profecia, pela pena de São

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Luiz Montfort, fala a respeito

de um papel destacado da

atuação da Virgem Maria, que

tem o título de "Cidade

Mística de Deus". A Virgem

Maria, sob o aspecto de ser um

instrumento humilde, que por

isso mesmo tanto mais

expressa a glória divina,

guarda certa correspondência

com a queixada de jumento.

Essas considerações, a respeito

de cuja extensividade eu peço

desculpas, não apenas

expressam o fenômeno da

"pseudo-iniciação", como

também expressam a sua

necessidade, isto é; expressam

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como o aspecto acidental do

real pode se destacar, e como

tem de se destacar em relação

ao que é essencial na esteira de

ser o que é. Assim, a pseudo-

iniciação não é um fenômeno

inequivocamente maligno,

como o número da besta

também não é (666, um

número triangular que

enquanto tal expressa o auge e

também o encerramento

cíclico da própria

degeneração). Ele significa o

crescimento do domínio

psíquico ou a multiplicidade

sem centro ou sem um vínculo

subjacente aparente com o

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"essencial", significa as

"muitas águas".

Diante do fenômeno da

"abominação da desolação"

(Mateus 24), que é um nome

para a pseudo-iniciação, é dito

por Cristo que os que estão na

Judeia devem fugir para as

montanhas; o que está no

telhado não deve descer para

tomar o que quer que seja da

casa; e o que está no campo

não deve voltar para tomar o

seu casaco. Esses três objetos,

"Judeia", "casa" e "casaco",

correspondem ao domínio

psíquico, são objetos "feitos

por mãos"; mas em diferentes

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escalas. Isso sugere diferentes

expressões de uma mesma

degeneração ou decomposição

do que é relativo ao domínio

psíquico, desde aquilo que é

menos inteligível porque mais

complexo e abrangente

("Judeia") até aquilo que é

mais grosseiro, familiar e

direto ("casaco"). Todos esses

objetos "feitos por mãos" estão

infectados e exigem "apartar",

quando da ascensão

degenerativa da Grande

Cidade. O lamento por aqueles

que estiverem carregando

criança (gestação) quando

desses dias de fuga; significa,

em parte, que a pessoa cujo

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esforço de receber a

transmissão religiosa (o

esforço das duas testemunhas)

estiver ainda muito incipiente,

vai ter esse esforço tanto mais

vulnerável e posto em perigo

pelos apelos hipnóticos da

Grande Cidade. Aquele cuja

fuga "se dá no sábado" parece

ser o indivíduo imerso na

circunstância de mais

enganoso "descanso e

estabilidade" ou "completude"

(o sábado é o sétimo dia);

aquele cuja fuga se dá "no

inverno" parece ser o

indivíduo imerso na

circunstância de sutileza

máxima da degeneração.

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Essas observações sobre a

pseudo-iniciação, assim,

bastem como sugestão do

assunto.

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Capítulo II - Olavo de

Carvalho e o tema do

expletivo

Na tarefa de demonstrar a

minha tese sobre a filosofia

olavista me parece útil

mencionar que, meses antes da

publicação do livro do Sr.

Ronald Robson (e do meu

conhecer a imagem da capa do

livro), eu havia escrito e

publicado um texto crítico ao

"Elementos da filosofia de

Olavo de Carvalho" (Ronald

Robson); e nesse texto eu

mencionara que a filosofia

olavista se associa ao

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simbolismo do "mar noturno".

Tanto a "luz lunar" quanto o

"mar noturno" são expressões

acidentais ou indiretas do sol

(porque o mar noturno se diz

que acumula de modo máximo

o calor solar). A luz lunar

representa o domínio

"racional-cerebral", o mar

noturno o domínio das

sensações ou dos sentidos.

Coincidentemente, o livro de

Ronald Robson tem na capa,

conforme descobri surpreso,

precisamente a imagem de um

mar em um período

crepuscular ou no princípio da

noite.

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Com o simbolismo, que é a

realidade mesma, a

realidade mesma se diz.

Consequentemente, pode

parecer quase vão dizer

qualquer coisa, se o efeito é

confirmar o que é sempre

confirmado. Por exemplo, e

semelhantemente ao caso da

capa do livro: eu publicara um

texto explicando que o papado

é um fenômeno "aquático", na

esteira de considerações como

as que constam mais acima,

significando uma

intermediação psíquica e

central ("Cidade Sagrada")

como o batismo. Alguém me

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perguntou se ao dizer isso eu

me baseara em Santo

Antônio de Pádua, um

franciscano e doutor que

dissera exatamente a mesma

coisa sobre o papado. A

resposta foi "não", eu não

tinha a menor ideia de tal

coincidência.

O símbolo está impresso nas

coisas. Mas é necessário sair

da posse "instintiva" dos

símbolos para uma posse mais

consciente, em particular no

caso presente.

Ora, um sinal simbólico

significativo a respeito da

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filosofia de Olavo de Carvalho

se expressa por meio de certa

tendência ao "instinto", como

oposto à "consciência", no

lidar eticamente com o que é

expletivo. Por exemplo, na

página 30 de "Conhecimento

por presença" diz o autor

(Ronald Robson): "Entre a

visão divina própria do

demônio e a cegueira

demoníaca inerente a Deus, o

ser humano vacila em meio à

ausência às vezes fria, às vezes

morna, que o separa do ideal e

ao mesmo tempo o anuncia."

Um expletivo é uma palavra

na qual a definição ordinária, o

conteúdo semântico principal,

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"vai para a reserva", por assim

dizer, é trocado (sem deixar de

ser sugerido como sombra) por

uma definição acidental.

Assim, quando se diz

"Macacos me mordam!",

"macacos" é aí expletivo,

porque a definição ordinária

de "macaco" não é o que se

quer dizer.

O Sr. Robson usou o vocábulo

"Deus" como expletivo nessa

passagem; mais significativo

ainda, o uso expletivo desse

nome sagrado é a primeira

menção a Deus em todo o

livro, tornando a intenção

expletiva tanto mais enfática.

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A doutrina católica proíbe que

se faça isso (essa é a violação

do Segundo Mandamento);

qual visto, por exemplo, em

que um autor renomado de

doutrina moral, o Frei Luiz de

Granada, expressa esse

Mandamento na fórmula

segundo a qual o nome

sagrado deve ser usado

"apenas com devoção e

afeição".

Não é a minha intenção; seja

corroborar essa última

observação com fontes ou

autoridades (que existem sem

escassez); seja transformar o

presente estudo em uma

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pregação ordinária; a intenção

é, antes, examinar por que

estas duas possibilidades estão

fadadas, desde a probabilidade

aparente, ao absoluto fracasso

em convencer ou demover o

meio olavista, para não falar

do próprio Olavo de Carvalho.

O fracasso provável delas não

é aparente senão em um

sentido "instintivo".

Para desenvolver o assunto é

preciso falar do que é o

"expletivo" considerado em si

mesmo. Ele pode ser

considerado a expressão

linguística do acidente se

destacando em relação à

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essência, ou se distanciando da

essência. Como nos festivais

carnavalescos da antiguidade,

em que se tratava de "inverter"

a ordem "natural" das coisas

de modo extraordinário,

substituindo a natureza por

aquilo "feito por mãos", qual

simbolizado pelas "máscaras"

que são feitas pela mão. A

linguagem expletiva tem algo

a respeito de si que é

carnavalesco e uma exploração

"extraordinária" da linguagem.

Não se pode viver em um

contínuo e ordinário carnaval;

também, uma pessoa não

consegue se comunicar apenas

por meio de expletivos,

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embora nas tiranias a

linguagem expletiva cresça de

modo extraordinário para que

a linguagem não sirva para

condenar a má conduta do

tirano (essa sugestão está

suficiente na Política, de

Aristóteles).

Acaso essas considerações

significam, por exemplo, que o

palavrão (um expletivo por

definição) é sempre

inadequado? Ora, se o

expletivo guarda paralelismo

com a situação carnavalesca, a

qual acontece a despeito de ser

extraordinária, dizer que o

palavrão não tem legitimidade

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para se incorporar à linguagem

seria o mesmo que julgar que a

qualidade "carnavalesca" não

pode ser descrita ou sugerida

de maneira nenhuma. Estar

imerso em uma situação

carnavalesca sem ser capaz de

a expressar verbalmente

sugere uma situação de

prevalência das duas noções

de Bruno Tolentino (que são

propriedades da tirania),

"mundo como ideia"

(correspondendo ao auto-

engano ou à superstição) e

"mundo como rapto"

(correspondendo a um

sentimentalismo ou

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obscurecimento acirrador do

"aqui e agora").

Se pode dizer que assim como

o coser os aventais "feitos por

mão", da parte de Adão e Eva,

lhes propiciou o amenizar a

sensação de "mundo como

rapto" da própria nudez,

trazendo como contrapeso a

insuficiência do avental em

restaurar a condição anterior à

Queda (isso corresponde a

"mundo como ideia"); o uso de

palavrão pode em algumas

situações (a título de

resistência primitiva ou

incipiente) amenizar a

sensação da dualidade "mundo

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como ideia" e "mundo como

rapto", que são dois lados da

mesma moeda. Por exemplo,

no filme "Anaconda 2 - A

Caçada Pela Orquídea

Sangrenta" (2004), cujo motif

ofídio baste para sugerir a

história edênica; o capitão do

navio que transporta os

cientistas-pesquisadores pela

selva, Bill Johnson (um

veterano militar), tem ele de

alojar essas pessoas no seu

barco velho e de pouco valor.

Além disso, tem ele de ceder o

próprio quarto a uma

pesquisadora destacadamente

atraente (essa qualidade dela o

próprio filme destaca)

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chamada Sam Rogers. A

situação é carnavalesca: o

Capitão Johnson tem de correr

riscos extraordinários por uma

rota perigosa

(vulnerabilidade); tem de

acomodar estranhos, de modo

que ele não sabe bem o que

esperar deles

(vulnerabilidade); e tem de

ceder o próprio quarto a uma

mulher atraente

(vulnerabilidade), nisso

necessariamente precipitando

uma familiaridade com pessoa

do sexo oposto

(vulnerabilidade) que vai

continuamente constatar os

traços furrecas do seu navio

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sem confortos

(vulnerabilidade). A

vulnerabilidade alheia é

indecente (ou pode ser

associada de algum modo ao

indecente), porque precipita no

sentimento excessivo de poder

sobre o outro, e o poder se

associa à gratificação

excessiva.

"Compreensivelmente", a

reação do Capitão Johnson foi

expressar a situação com um

expletivo ou palavrão

carregado do se ressentir ele

da situação, quando ele diz a

Sam Rogers "Se você precisar

de alguma coisa... azar o seu!"

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("If you need anything...

you're shit out of luck!").

Essa grosseria parece não ter

uma razão de ser, a princípio,

e sem dúvida supõe um mal

sentimento que deve ser

evitado, mas se pode

argumentar que, ao sugerir o

embaraço da situação, o

expletivo cristalizou a

possibilidade de refletir sobre

a situação desde uma posição

menos confusa. O expletivo

não é uma explicação pronta e

acabada, ou suficiente, mas ele

cria a possibilidade de um

recuo, conquanto

degeneradamente, em relação

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a uma condição degenerada;

como a Grande Cidade

colabora a seu modo com as

duas testemunhas. Mateus

18:7: "Ai do mundo por causa

de escândalos. Porque é

necessário que escândalos

venham: mas de todo modo ai

daquele homem pelo qual o

escândalo vem."

Aí está, de algum modo, a

chave para entender por que a

reação olavista previsível à

admoestação sobre o Segundo

Mandamento é provavelmente

infrutífera: os nomes sagrados,

bem como o Mandamento

(que é ele próprio sagrado),

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são tomados como termos

expletivos, não como termos

ordinários. A distância normal,

ou a perspectiva normal, entre

o termo ordinário e o termo

expletivo, foram obscurecidas;

de modo que o esforço por

superar essa condição

degenerativa, desde o ponto de

vista olavista, só pode ser

confuso e incipiente, só pode

estar amparado de impressões

primitivas.

O Sr. Robson não sugere de

modo suficiente a consciência

de que a linguagem que ele

usa supõe uma condição

política tirânica, uma condição

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acidental e não ordinária, de

modo que ele não percebe em

que medida a sua linguagem

exemplifica como funcionam

as categorias de "mundo como

ideia" e "mundo como rapto";

exatamente como o súdito de

uma tirania não percebe como

é não viver em uma tirania.

A "expletivação" da

linguagem sagrada, que é por

sinal uma propriedade da

tirania, torna a linguagem

sagrada um corpo de "lugares

comuns" que tornam as

pessoas "míseras" ou

"estátuas" (efeito-medusa),

correspondendo à obrigação de

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ter a marca da besta para

"comprar e vender". A lógica

interna do discurso olavista

toma por ordinário um

"contínuo carnaval".

Aqui não se trata de atribuir

essa condição degenerativa ao

meio social olavista apenas, e

não à sociedade

contemporânea de modo geral;

se trata apenas de notar a

expressão disso na teoria

olavista.

René Guénon fala de como

autores espíritas não

conseguem distinguir entre o

"imaginável" (correspondendo

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ao sensível) e o "concebível"

(correspondendo ao

suprassensível), em livros

espíritas em que se descreve a

vida em outros "planetas" e

"dimensões". As formas

"alienígenas" de vida são

apenas variações, de duvidosa

criatividade, do modo de vida

terrestre, banal. Assim, os

espíritas não parecem

conseguir conceber ou admitir

a possibilidade de seres vivos

cujo modo de ser não é

contínuo com a percepção

humana ordinária, seres vivos

hipotéticos, por exemplo, que

não perceberíamos como seres

vivos se topássemos com eles,

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ou cujo modo de ser fosse tão

estranho ao modo humano de

apreender que seria impossível

notá-los.

Isso tudo é análogo a como no

olavismo o dogma é

apreendido. É como se o

dogma fosse um ser vivente

cujo modo de ser é tão

estranho ao modo olavista de

apreender, que os dois cruzam

caminho sem a percepção

correspondente, "and none is

the wiser".

O que o Sr. Robson chama "a

visão divina própria do

demônio e a cegueira

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demoníaca inerente a Deus"

guarda correspondência,

respectivamente, com as

categorias de Bruno Tolentino,

"mundo como ideia" e "mundo

como rapto".

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Capítulo III - Um estudo

teológico da teoria dos quatro

discursos

Diz o Sr. Robson (página 100,

"Conhecimento por

presença"): "(...) a vontade,

livre, necessita perceber a

distância entre norma abstrata

e a situação concreta

específica, e as mediações

entre uma e outra, tão sutis e

de uma variedade que dá boa

imagem do que seja o infinito,

jamais acharão plena

expressão em códigos de lei

escrita. Quando uma pessoa

passa a acreditar que tudo que

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tem de fazer para ser livre e

boa é cumprir uma série de

regras prescritivas, está morta

e acabada em sua vontade, é

escrava de um Outro que

promete benevolência e

equanimidade, mas serve

apenas embotamento de

consciência."

Essa tensão entre "verdade" e

"vontade" guarda também

certa correspondência com a

dualidade ou bifurcação de

Bruno Tolentino, a saber,

"mundo como ideia e mundo

como rapto". Na página 64 diz

o Sr. Robson: "Essa

processão [da consciência do

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homem por estágios de

personalidade cada vez mais

elevados] necessita de um

motor: é a vontade, a vontade

que afirma a verdade,

precisamente porque a verdade

independe da vontade."

Nesse caso "verdade" e

"vontade" correspondem,

respectivamente, a "luz lunar"

e "mar noturno". Existe um

hiato entre esses dois aspectos

da natureza, embora ambos se

diz que reflitam algo do sol; a

lua a luz fria ou reflexa, o mar

o calor acumulado. Enquanto a

"verdade" é "imóvel" (luz

lunar), a "vontade" se move

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em tentativa corroboração da

verdade (mar noturno).

A independência entre

"verdade" e "vontade" é

sugerida pelo Sr. Robson

como paralela,

respectivamente, ao hiato entre

"norma abstrata" e "situação

concreta específica"; o

primeiro par sendo o aspecto

"essencial", o segundo o

aspecto "substancial" da

questão. Isso pode ser indicado

de modo simbólico: "verdade"

e "vontade" (polo essencial)

correspondem a "luz lunar" e

"calor do mar noturno",

enquanto "norma abstrata" e

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"situação concreta específica"

(polo substancial)

correspondem a "lua separada

da luz" e "mar noturno

separado do calor". A

dificuldade que ele examina

em se fazer uma intermediação

entre "verdade" e "vontade",

ou "norma abstrata" e

"situação concreta", também

corresponde à oposição que

ele irá mais tarde notar e

rejeitar (página 193) entre

"idealismo" ("inflação" do

sujeito) e "realismo"

("inflação" do objeto) quais

defendidos modernamente. No

par "verdade" e "vontade", o

elemento subjetivo

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corresponde à vontade, o

elemento objetivo à verdade.

No par "norma abstrata" e

"situação concreta" o elemento

subjetivo corresponde à norma

abstrata, o elemento objetivo à

situação concreta. No primeiro

par (verdade e vontade) o Sr.

Robson sugere a predileção

pela atuação do sujeito

(vontade). No segundo par

(norma abstrata e situação

concreta específica) o Sr.

Robson sugere a predileção

pela atuação do objeto

(situação concreta).

Consequentemente, a sua

própria formulação descritiva

inicial (os dois pares iniciais),

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com o respectivo problema da

dificuldade de uma

intermediação, sugere certa

afinidade com os pontos de

vista que mais adiante ele há

de retratar como supersticiosos

("idealismo" e "realismo")

associáveis a uma oposição

carecedora de uma

intermediação devida. Essa

afinidade não demonstra um

erro ou contradição da parte

dele, mas é um sinal retórico

de uma resolução por se

endereçar a um assunto

primeiro desde o aspecto

acidental ou "expletivo", desde

a impressão.

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Uma maneira de exemplificar

isso de modo mais palpável é

com dois exemplos, em

relação ao Segundo

Mandamento. O primeiro eu

tomo do opinador público

chamado "Conde Loppeux",

mas não no sentido de sugerir

que ele fale pelo meio olavista

(afinal, se eu não posso bancar

o Pierre Viret, que ao menos

eu não irrite as pessoas como o

cafajeste do bar). O segundo

de um aluno de Olavo de

Carvalho, o Sr. Jelcimar

Rouver Júnior.

Quando eu expliquei ao

"Conde Loppeux" que, de

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acordo com o Catecismo de

Baltimore (um manual usado

nos EUA pela Igreja Romana),

o Segundo Mandamento

impõe a proibição de se usar o

nome de Deus ou de coisas

sagradas para expressar

surpresa ou raiva; por conta de

um mal entendido (por não

achar a fonte etc.), ele

primeiro concluiu da citação

por mim dada que eu a tinha

inventado pura e

simplesmente. Quando ele

eventualmente percebeu que a

citação era verídica, e

contrastando com a reação

inicial de incredulidade

suscitada, ele basicamente

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propôs que a proibição vale

para os Estados Unidos

apenas, e seguramente diz

respeito às peculiaridades

linguísticas daquele país.

Assim, ele tomou o meu

entendimento como um mau

cálculo (nas palavras de

Ronald Robson) da "distância

entre norma abstrata e a

situação concreta específica",

e como uma admissão de

"regras prescritivas"

desembocando em uma forma

de "escravidão" e

"embotamento".

Em paralelismo a isso, o Sr.

Jelcimar, verossimilmente

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tomando como contexto certa

discussão de texto meu, propôs

a ideia de que o uso de

palavrões parece adequado ao

meio brasileiro por causa do

sensualismo vulgar reinante, a

saber, o palavrão na linguagem

brasileira dissipa certa

inconsistência existencial,

certa afetação. A discussão a

respeito tem a ver com a tese

(por mim traga) de que a

etiqueta guarda certa

continuidade com o preceito

religioso, por exemplo porque

tanto a religião quanto a

etiqueta têm por efeito visado

a assunção de

"respeitabilidade" ou "glória"

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(não no sentido de vaidade, e

sim em um sentido mais

elevado). Consequentemente,

a discussão do palavrão, a

respeito de etiqueta, deveria

ser discussão relativa (como a

religião) ao que independe de

tempo e lugar. A resposta do

Sr. Jelcimar a essa abordagem,

como visto, foi paralela a do

Conde Loppeux: fazer o

preceito descer ao que

depende de tempo e lugar.

Essa abordagem em relação a

preceitos ou normas abstratas

consiste precisamente em

"começar pelo acidental". Se

trata de um método, o qual é

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cristalizado na Teoria dos

Quatro Discursos. De acordo

com essa teoria do filósofo

Olavo de Carvalho, atribuída a

Aristóteles; conforme o Sr.

Robson elabora; a ordem da

sucessão dos discursos

acompanha uma crescente

escala de credibilidade, do

discurso poético ao discurso

analítico, passando pelos

discursos retórico e dialético.

Também, a formulação

cognitivo-cultural, de um dado

ou fenômeno, primeiro se

apresenta como "fantasia" ou

"possibilidade" (poesia);

depois como verossimilhança

ou apelo retórico (retórica);

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depois como superposição de

proposições desveladora de

um objeto complexo na ordem

do conhecer (dialética); por

fim, como exposição

demonstrativa transparente

(lógica).

Dessa teoria decorre a

constatação de que o Segundo

Mandamento é visto de modo

"expletivo" (em vez de uma

norma imediatamente

obrigante); desde a expectativa

ordinária; porque é visto como

"fantasia" ou "mera

possibilidade". Sugerir a um

olavista a imediata admissão e

aplicação desse preceito, por

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meio de uma citação doutrinal;

soa tão extravagante quanto

alegar que você é um príncipe

dinamarquês chamado Hamlet

e as pessoas o tratam como

maluco por causa de uma

atmosfera tirânica e de

perigosa intriga política.

Existe certo aspecto do

fenômeno da linguagem

expletiva que é, como já

sugerido, a simultaneidade

correlativa entre "impressão"

(correspondendo a "mundo

como ideia") e "sentimento"

(correspondendo a "mundo

como rapto"). O orientalista

Sir John Woodroffe, usando

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uma linguagem kantiana,

chama essa experiência de

"impressão sem concepção".

Na linguagem expletiva (por

exemplo, "Se você precisar de

alguma coisa... azar o seu!") o

aspecto eidético é primitivo ou

insuficiente demais para ser

associado a uma concepção no

sentido ordinário. Em outras

palavras, na linguagem

expletiva não se sabe direito o

que se está dizendo. Isso

corresponde à superstição de

"mundo como ideia"; às

tendências pejorativas logico-

matematizantes de autores

excêntricos como Otto

Weininger (qual o Sr. Robson

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discute em detalhe); e ao

caráter de obstáculo relativo

que o transcendentalismo de

Edmund Husserl atribui aos

"dados objetivos", que são

precisamente o que Sir

Woodroffe chamaria

"impressões sem concepção".

Parece, na esteira disso, que

discurso poético e discurso

analítico (ou lógico),

correspondem,

respectivamente, a "mundo

como rapto" e "mundo como

ideia". Isso é visto no fato de a

filosofia de Olavo de Carvalho

associar o discurso analítico,

por excelência (na prática), ao

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hiato e àquilo de restrito

alcance. É essa, inclusive,

matéria para certa "disputa"

entre Olavo e o Sr. Robson,

em que o último parece se

bater um pouco mais pela

utilidade ou valor do estudo

lógico.

O caráter inicial do discurso

poético (na sua

correspondência com a

inermedade da experiência de

"mundo como rapto") pode ser

ilustrado pelo sentimento de

Olavo no escrito "O trauma da

emergência da razão", citado

pelo Sr. Robson: "Nunca

estamos perfeitamente

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adequados à razão; ela nunca é

adequada para compreender

nenhum caso singular. E muito

menos o nosso. A razão é a

cruz que o homem carrega."

O discurso poético é

correlativo com o discurso

analítico, assim como "mundo

como rapto" e "mundo como

ideia" são correlativos, duas

faces da mesma moeda. Isso

não significa que o discurso

poético e o discurso analítico

sejam equivalentes, quais

presentemente entendidos,

porque, como Olavo de

Carvalho bem explica, eles

têm finalidades distintas. De

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outro lado, porque o discurso

analítico, desde o ponto de

vista olavista, é sempre

caracterizado como carregado,

na prática, de um hiato e de

uma insuficiência ou restrição

(que são acidentais à certeza

lógica enquanto tal); esse

aspecto tem necessariamente

de acometer o discurso

poético, ainda que isso

aconteça de uma maneira

analógica, como oposta a uma

maneira coincidente. Nos dois

casos se trata de que os

discursos se carregam

marginalmente (isto é, em

parte) de uma "impressão sem

concepção", ou se

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caracterizam marginalmente

por um vazio concepcional.

Ora, se o vazio concepcional

está dado no próprio discurso

de base que fundamenta as

possibilidades exploradas por

toda a progressão crescente; e

se está dado por definição;

todo o esquema da progressão

supõe um caráter pejorativo ou

insuficiente; e esse caráter,

sendo associável à cultura; tem

de ser associável à tirania, que

é o vazio concepcional

expresso no domínio político-

cultural. A teoria dos quatro

discursos é uma justificação ex

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post facto de uma condição

civilizacional tirânica.

Na progressão dos discursos a

dupla "discurso poético" e

"discurso lógico" guarda certa

correspondência com a dupla

"discurso retórico" e "discurso

dialético"; em que a noção de

"mundo como ideia"

corresponde a "discurso

lógico" e a "discurso retórico";

enquanto a noção de "mundo

como rapto" corresponde a

"discurso poético" e a

"discurso dialético". Tanto no

discurso retórico quanto no

discurso lógico se fixa

proposições ou afirmações;

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enquanto nos discursos poético

e dialético se trata

(comparativamente) de aceitar

o contato com o sombrio, com

o mistério não ainda

desvelado. A distinção aqui é

aquela entre coagulação

(retórica e lógica) e dissolução

(poética e dialética). Na

filosofia olavista a dupla

"retórica" e "dialética" (em

contraste com a dupla

"poética" e "lógica")

representaria o centro ou o

hotspot da atividade filosófica.

E, com efeito, é na

manipulação desses dois

discursos ("retórica" e

"dialética") que a filosofia

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olavista parece mais

"acordada" e exerce com

melhor desempenho o que o

seu "tour de force" tem a

oferecer. Consequentemente, o

paralelismo advindo das

noções de coagulação e

dissolução, que é atribuído aos

pares de discursos, sugere que

a poética e a lógica são

tomadas com sombras da

retórica e da dialética, são

periféricas, sob o ponto de

vista da gratificação

intelectual.

O próprio escrito do Sr.

Robson, que tem inegável

charme, ilustra isso ("tour de

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force") de modo tão palpável e

suficiente, que não é

necessário insistir nisso muito

mais. Entretanto, sucede que a

relação analógica entre os dois

pares de discurso possui uma

correspondência no

simbolismo da Grande Cidade

Apocalíptica. O livro sagrado

(Apocalipse) diz que a

meretriz se veste de púrpura e

escarlata. A cor púrpura

combina o azul (que simboliza

calma, estabilidade) com o

arder e a ferocidade da

escarlata. Assim, o par

"retórica-dialética"

corresponde à cor púrpura, o

par "poética-lógica" à cor

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escarlata; no primeiro caso se

trata do polo mais

estabilizador da dispersão ou

degeneração, no segundo caso

se trata do polo mais acirrador

da dispersão ou degeneração.

Se trata de algo análogo à

"tática das tesouras",

empregada e notabilizada pela

política comunista, em que se

apresenta duas opções, um

conflito interno dentro do

movimento com dois partidos

ou vertentes em aparente

oposição (por exemplo, como

quando o ditador comunista da

Albânia, Enver Hoxha,

escreveu um livro chamado "O

eurocomunismo é

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anticomunismo") para melhor

baixar a guarda do inimigo

ocidental e fazer que este se

alie a uma das vertentes.

O polo "retórica-dialética" na

sua exploração exuberante de

concepções "em ato", cria a

aparência de um equilíbrio e

contrapeso oposto ao polo

"poética-lógica". Entretanto,

por mais que as concepções

filosoficamente exploradas por

esse contrapeso sejam reais,

elas são, como visto,

necessariamente insuficientes.

Mais do que isso: a tensão

entre os polos, porque supõe

uma insuficiência; se expressa

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na realidade por meio da

promoção de uma inversão

carnavalesca.

A cor púrpura corresponde

àquele aspecto de uma

atmosfera tirânica em que a

impressão está maximamente

preenchida de concepção

(embora o preenchimento seja

insuficiente), a cor escarlata

corresponde ao aspecto da

atmosfera tirânica em que a

impressão está maximamente

esvaziada de concepção. Por

exemplo, o filme "O Senhor

dos Aneis" corresponde à cor

púrpura, i.e. o fundo

concepcional que supõe é

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insuficientemente

compreendido pela maioria; o

filme "Deadpool" corresponde

à cor escarlata. No primeiro

caso o apreender e pressentir

do fundo concepcional

envolvido tranquiliza e

estabiliza (correspondendo ao

"azul" da cor púrpura), a

insuficiência no desvelamento

desse fundo significa uma

deficiência marginal desse

efeito (correspondendo ao

vermelho da cor púrpura); ao

passo que em um filme como

"Deadpool", que é

francamente indecente, se trata

de se desviar maximamente do

que é tranquilizador ou

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estabilizador (escarlata). Como

a tirania não pode viver apenas

de carnaval, o elemento

púrpuro é precisamente aquilo

que sustenta e dá

"respeitabilidade" à cor

escarlata.

Em "O Senhor dos Aneis"

(que corresponde

alegoricamente, para fins do

meu argumento, ao polo

"retórico-dialético") o fundo

concepcional estabilizador é

velado por um "rearranjo

grotesco-ficcional" de seres ou

objetos materiais, por um

simbolismo; que ao mesmo

tempo esconde e revela o

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conteúdo de fundo. Em

"Deadpool" (que corresponde,

para fins do meu argumento,

ao polo "poético-lógico") a

ausência concepcional

desestabilizadora é velada por

um "rearranjo grotesco-

ficcional" não de seres ou

objetos materiais, mas de

emoções; por exemplo,

colocando o desespero de

modo expletivo-carnavalesco

como mais ordinário do que

que a esperança e a

consolação; e esse efeito é

reforçado ou tornado

verossímil precisamente pela

técnica de "breaking the fourth

wall", isto é, pelo reconhecer

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explicitamente que a trama e

os seus seres materiais são

fictícios e convenções vazias.

O rearranjo grotesco-ficcional

das emoções não se expressa

apenas em filmes, também se

expressa em eventos como o

carnaval, ou como a guerra

(além de movimentos políticos

como o comunismo). Por

exemplo, o historiador

britânico Paul Johnson cita no

seu livro "Modern Times"

(1983) que ao início da

Primeira Guerra Mundial um

número considerável de jovens

europeus se sentia

entusiasmado e encorajado

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pela oportunidade de participar

do conflito, como se fosse uma

forma de diversão; porque a

escala e a enormidade dos

eventos pareciam uma

exploração de possibilidades

fascinante. Essa emoção é um

exemplo de rearranjo grotesco-

ficcional das emoções, e supõe

translucidamente o

ressentimento contra o vazio

de concepções ou

possibilidades, na alma.

Segundo certas sugestões de

René Guénon, e certas

sugestões corânicas, a respeito

do islã, esta religião se baseia

precisamente em uma

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mitigação (como oposta a uma

dissipação) do jogo entre o

púrpura e a escarlata; porque

se baseia na separação enfática

entre exoterismo (mundo

como rapto) e esoterismo

(mundo como ideia); o que

desemboca necessariamente,

conquanto mitigadamente, no

rearranjo grotesco-ficcional

das emoções.

O ponto é que as proezas

intelectuais do Sr. Robson, do

filósofo Olavo de Carvalho, do

olavismo de modo geral, por

definição nunca são suficientes

para dissipar um efeito

marginal ou residual do

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rearranjo grotesco-ficcional

das emoções (que supõe a

valorização da impressão em

detrimento da concepção).

O que está na origem da

Teoria dos Quatro Discursos

qual formulada por Olavo de

Carvalho, é a premissa de que

a "impressão" principia de

algum modo a concepção. Isso

corresponde à tese proto-

marxista ou neoplatônica,

descrita por Leszek

Kolakowski; de que o mundo

criado (a "natureza",

correspondendo à impressão)

foi feito para servir de

princípio, ou de princípio

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aperfeiçoador, da própria

divindade (correspondendo à

concepção). Essa premissa é

sugerida quando o Sr. Robson

diz que os filósofos gregos,

posteriores ao período da

formulação dos mitos

fundadores gregos, "criaram

uma nova forma de explicar

algo da realidade". Não ocorre

ao Sr. Robson (ou, me parece,

ao próprio Olavo de Carvalho)

discutir ou examinar a tese

guenoniana de que o período

histórico da formulação e

disseminação dos mitos gregos

supunha de algum modo todas

as noções dos filósofos

posteriores, e era um período

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135

intelectualmente mais rico e

interessante do que o período

posterior, não apenas sob o

aspecto da impressão ou de um

discurso poético em que se

visa a que a possibilidade

explorada seja, primariamente,

tão só possibilidade. A ideia

de que a "impressão vem

primeiro", depois "vem a

concepção", também está

dada em um autor bem

conhecido e influente no meio

olavista, a saber, Eric

Voegelin, o qual propunha o

ponto de vista das

"civilizações cosmológicas"

(em que a distinção entre

impressão e concepção é

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obscurecida em um sentido

pejorativo) como "primitivo",

e não uma degeneração

posterior. Ora, esse é o mote

do existencialismo moderno

("a existência precede a

essência"), embora seja

aparentemente improvável que

o Sr. Robson se possa ver

inclinado a notar com

apreensão como isso é

estruturalmente insinuado no

seu dizer "Os Evangelhos são

narrativas; a teologia são

descrições (...) a verdade, nós

sempre a conhecemos como

uma narrativa; explicá-la - que

pena - só o podemos fazer com

descrições mais e mais

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abstratas." Aqui não se trata de

propor que para o Sr. Robson

o discurso poético não se

carrega por definição de

concepções tomadas como

tais, mas sim de propor que

para ele o processo com que

uma concepção se cristaliza

supõe necessariamente uma

"tão-só possibilidade (ou

impressão) prévia à

concepção".

Essas considerações tornam

um tanto mais embaraçoso

que, conforme o Sr. Robson

nota (citando Olavo de

Carvalho), para Santo Tomás

de Aquino os quatro discursos

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são ordenados conforme "o

sentido unilateral de uma

hierarquia descendente que vai

do mais certo (analítico) ao

mais incerto (poético)", dando

a entender que "da Tópica

[discurso dialético] 'para

baixo', estamos lidando apenas

com progressivas formas do

erro ou pelo menos do

conhecimento deficiente". Em

outras palavras, Santo Tomás

(que segundo o Sr. Robson

teria apreendido "um tanto

mal" a unidade dos discursos)

inverte em 180 graus o sentido

da progressão olavista dos

discursos; do que se pode

inquirir: "Acaso Santo Tomás

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consideraria a Teoria dos

Quatro Discursos uma

inversão carnavalesca?"

Ora, a Teoria dos Quatro

Discursos tem certa relação

com o tema dos "ciclos

cósmicos", por exemplo

porque a progressão dos

discursos se expressa em

certos desenvolvimentos

históricos, e há épocas e

lugares mais centrados em um

discurso em detrimento do

outro, conforme o Sr. Robson

explica.

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Olavo de Carvalho, entretanto,

se opõe à existência dos ciclos,

como é bem sabido.

Na teoria dos ciclos, qual

exposta por René Guénon, um

sinal da razão de ser dos ciclos

é que na origem dos

desenvolvimentos no "mundo

terrestre" está a intervenção ou

atuação de um personagem

sagrado chamado "o Rei do

Mundo"; indicado em

diferentes tradições (como o

hinduísmo); inclusive no

judaísmo e no cristianismo. No

judaísmo é o "Melquisedeque,

rei de Salém". No

cristianismo, o Rei-Mago

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Melquior, que presenteia o

Messias quando do nascimento

dEste em Belém. No

Comentário de Santo Tomás

de Aquino à Epístola aos

Hebreus, a respeito do dizer de

São Paulo sobre a "ordem

[sacerdotal] de

Melquisedeque"; Santo Tomás

reconhece e discute por que

Melquisedeque se destaca de

modo extraordinário na

narrativa de Gênese, a saber,

porque Melquisedeque não é

introduzido com referência ao

seu pai ou número de anos.

Hebreus 7:3: "Sem pai, sem

mãe, sem genealogia, não

tendo nem começo de dias

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nem fim de vida, mas

assemelhado ao Filho de Deus,

continua sacerdote para

sempre". Isso sugere que

Melquisedeque transmitia

orientação, sem jamais receber

de outrem ou de um pai. Santo

Tomás reconhece de algum

modo o fundo de mistério por

trás da linguagem paulina, ao

asseverar ser uma heresia

confundir Melquisedeque com

o próprio Verbo Divino (o

Filho, na Santíssima

Trindade). Se trata, portanto,

conforme a fórmula

guenoniana, mais alusiva do

que estrita, de que o rei do

mundo é uma expressão

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cósmica do princípio divino,

sendo por isso mesmo

diferente do princípio divino

enquanto tal. Não é possível

entender ou definir o "rei do

mundo" de modo análogo a

como não é possível entender

ou definir "Deus"; ou,

conversivelmente, não é

possível ser o pai do rei do

mundo, lhe transmitir

conhecimento ou bênção, de

modo análogo a como é

impossível "criar Deus". Por

isso Abraão foi abençoado por

Melquisedeque, em vez de o

abençoar, e pagou dízimo a

Melquisedeque.

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A "criação da divindade",

sugerida na tese proto-

marxista ou neoplatônica

supramencionada, guarda

correspondência,

consequentemente, com a

pretensão de "atuar como um

pai para o rei do mundo". E é

precisamente isso que ocorre

quando se ordena os discursos

partindo da "impressão" para

se chegar à "concepção". O rei

do mundo transmitiu o

conhecimento na ordem

tomista do mais certo para o

mais incerto, porque no

conhecimento dele a distinção

entre concepção e impressão

não supunha uma separação

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substancial destacada, de

modo análogo a como as

pessoas divinas são distintas

(ou "diferentes quanto à

categoria da relação",

conforme a fórmula

agostiniana) mas a substância

delas é exatamente a mesma.

Isso também corresponde ao

fato de que, para São Paulo,

Melquisedeque é

"assemelhado ao Filho de

Deus", o Verbo ou Logos

Divino. Ora, o termo "Logos"

sugere, etimologicamente,

tanto "vocábulo"

(correspondendo à impressão),

quanto "termo"

(correspondendo à concepção)

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unidos por um vínculo

essencial.

Esse ponto de vista

cosmológico ou relativo a

desenvolvimentos históricos se

relaciona à Teoria dos Quatro

Discursos. É possível se

perguntar se a tese de Olavo

de Carvalho, de acordo com a

qual o ápice da revelação

religiosa na história

(cristianismo) pôde acontecer

em qualquer momento, pôde

acontecer em um ponto

indeterminado "no meio"

como expressão da liberdade

divina; se essa tese tem certa

correspondência estrutural

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com a progressão dos

discursos, uma progressão na

qual o ponto mais "quente"

(em termos da obtenção

filosófica da concepção) é

precisamente "no meio" (do

discurso retórico para o

discurso dialético), um ponto

caracterizado pela

indeterminação ou por uma

qualidade residualmente

"errática".

O assunto pode ser melhor

esclarecido se à ordem dos

discursos dada por Olavo de

Carvalho for sobreposta a

ordem dos mistérios do

rosário. Os cinco "mistérios

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gozosos", compreendendo

eventos da juventude de Jesus,

correspondem ao discurso

poético e, em parte, ao

discurso retórico. Os cinco

"mistérios dolorosos",

compreendendo eventos da

Paixão, correspondem ao

discurso retórico e dialético.

Os cinco "mistérios gloriosos",

compreendendo a ressurreição

de Jesus até a coroação de

Maria no céu, correspondem

ao discurso dialético e lógico.

Essa tripartição também

corresponde a "doutrina

sacramental" (mistérios

gozosos e poética-retórica),

"doutrina moral" (mistérios

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dolorosos e retórica-dialética),

"doutrina teológica" (mistérios

gloriosos e dialética-lógica). O

que essa correspondência

significa é que o início da

"iniciação não carnavalesca"

se associa aos sacramentos,

porque os sacramentos são

uma intermediação entre moral

("impressão" e costume) e

dogma ("concepção" e

profissão de fé), condensando

as duas coisas antes de certa

"expansão ulterior". Os

sacramentos são,

simultaneamente, não

sucessivamente, poesia e apelo

retórico, porque

simultaneamente abrem

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possibilidade e estabelecem

normas com justificação

suficiente. A doutrina moral é

simultaneamente, não

sucessivamente, apelo

retórico-normativo e

sobreposição dialética de

impressões, estas com um

fundo concepcional

marginalmente potencial (não

imediato). A doutrina

dogmática é simultaneamente,

não sucessivamente, um tecido

de teses sobrepostas

marginalmente obscuras

(dialética), e uma arquitetura

de proposições luminosas cuja

admissão e profissão imediatas

constituem uma gratificação

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intelectual real e não

meramente potencial (lógica).

Assim, do discurso poético ao

discurso lógico não acontece

uma "aquisição consciente de

concepção desde a impressão",

mas uma espécie de expansão

predicativa desde um corpo

condensado de concepções e

impressões não bifurcadas

umas em relação às outras.

Isso pode ser visto em que a

salvação, de acordo com a

teologia tomista, se baseia em

uma antecipação terrena

suficiente de concepções do

mundo celeste, e com o

batismo sacramental mesmo

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bebês pequenos podem ser

salvos pelo efeito antecipativo,

de acordo com o dogma

católico. Por exemplo, como

visto no "Decreto do Papa São

Sirício a Himério" (385 A.D.),

documento ex cathedra, que

fala a respeito do batismo

como um "socorro" para esses

bebês, caso estejam em risco

de morte. Também, a tradição

cristã fala a respeito de bebês

batizados como vestindo "o

hábito (veste 'feita por mãos')

da fé", e é impossível atribuir

à fé o ter na concepção um

acidente, não uma

propriedade. O aspecto

“hábito” corresponde à

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impressão, o aspecto “fé” à

concepção.

Há certa significativa

observação constante do livro

"Aristóteles em nova

perspectiva" (citada pelo Sr.

Robson): "o discurso humano

é uma potência única, que se

atualiza de quatro maneiras

diversas: a poética, a retórica,

a dialética e a analítica

(lógica)." Desde essa

observação, que pode ser

expressa com a ideia de que,

em um sentido subjacente, os

quatro discursos "são um"; há

um sinal mais de que os quatro

discursos correspondem a

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"espírito" (dogma), "água"

(sacramento) e "sangue"

(moral), uma vez que os três

"são um" (1 João 5:8).

Existem outras

correspondências relativas à

Teoria dos Quatro Discursos.

A primeira é a

correspondência entre os

quatro discursos e as "quatro

criaturas viventes" de

Apocalipse 4:6. A segunda é

entre os quatro discursos e os

"quatro impérios" (de ouro,

prata, bronze e ferro)

expressos na alegoria da

Estátua de Nabucodonosor

(Daniel 2:38). A terceira, que é

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uma variação das demais, é a

correspondência dos quatro

discursos com as quatro castas

sociais, a saber, sacerdote,

nobre, "comerciante" e servo.

As criaturas viventes se

apresentam na seguinte ordem:

leão, bezerro, homem, águia.

O leão é um simbolismo do

centro, ou um símbolo solar, o

que sugere que ele concentra

(numa correspondência)

"concepção" e "impressão". O

bezerro conota,

etimologicamente, tanto a

ideia de inatividade quanto a

ideia de dilatação/crescimento,

o que pode ser visto como um

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prolongamento do simbolismo

real, por exemplo em que

desde a "cadeira" ou "trono"

na qual o rei se senta, o poder

dele se dilata ou se estende (o

rei é um "inamovível

movente"). O homem é uma

sugestão tanto de uma

expressão reflexa, "cerebral"

ou "lunar", da "intuição solar",

quanto do centro (o

inamovível movente divino),

porque é feito "à própria

imagem" de Deus (Gênese

1:27). A águia também é um

simbolismo solar, como René

Guénon observa; mas é,

complementarmente, algo que

conota "segredo", e um olhar

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penetrante desvelador do

mistério; porque, como dito no

evangelho a título de promessa

da acessibilidade eventual da

salvação aos eleitos, "onde

quer que o corpo esteja, lá as

águias também estarão

reunidas juntas." (Mateus

24:28).

É possível notar que a

progressão dos animais

corresponde à progressão

anterior, desde os mistérios

gozosos aos mistérios

gloriosos.

Quando as criaturas viventes

são contrastadas com os quatro

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impérios ou partes da estátua

(cuja cabeça é de ouro, os

braços e peito são de prata, as

coxas de bronze, as pernas de

ferro, os pés de ferro

misturado a barro); se nota, em

primeiro lugar; que o contraste

das criaturas com a estátua

corresponde à distinção entre

"coisas não feitas por mãos" e

"coisas feitas por mãos", a

saber, essência e acidente.

Assim, o contraste é também

aquele entre "ordem do ser" e

"ordem do conhecer".

A cabeça de ouro corresponde

ao Imperador Nabucodonosor

(segundo o profeta Daniel), em

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cujas mãos repousam os

pássaros do céu. As mãos

correspondem à impressão (ao

acidental), os pássaros à

concepção. Essa dualidade

simultânea e condensada

perfaz o discurso poético.

Depois vem o império de

prata, que Daniel diz que é

"inferior". Significa essa

inferioridade um afastamento

da concepção, mas a

simultânea possibilidade de

resistir ao esvaziamento com o

apelo ou esforço dos "braços"

(que correspondem à ação ou

ao acidente), o discurso

retórico se notabilizando

precisamente pelo apelo. O

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bronze simboliza não mais

uma univocidade (metálica),

mas uma liga metálica, ou ao

menos, por uma restrição

etimológica, uma liga metálica

possível. No bronze o

princípio mais escuro, ou

cobre, se esconde no estanho,

que é mais claro, assim como

no discurso dialético a

extensividade da sobreposição

de impressões de superfície

guarda uma continuidade mais

universal, oculta

marginalmente pela mistura da

liga. O bronze "há de governar

sobre todo o mundo", segundo

Daniel, em correspondência

com a expansão ou

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extensividade própria do

discurso dialético. Nas pernas

de ferro a distinção entre cobre

(oculto) e estanho (externo) dá

lugar a uma uniformidade

cheia de hiatos, como visto

nos pés terem ferro misturado

a argila. O hiato é significado

tanto por essa

descontinuidade, quanto pela

propriedade das pernas de

"saltar"; que é precisamente

correspondente aos saltos

lógicos inevitáveis; e a

tendência inferior lógico-

matematizante que o Sr.

Robson descreve corresponde

à posição inferior das pernas

no corpo. A uniformidade e o

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hiato simultâneos expressam o

discurso lógico.

Na correspondência entre isso

e as castas sociais: o sacerdote

é aquele que disponibiliza a

obra divina (pássaro e

concepção) por mãos humanas

(impressão); o nobre é aquele

cuja ação visa a remediar uma

situação degenerativa, e que

portanto deseja, apela ou ora

por uma correção; o

comerciante ou agente

econômico é aquele que se

dirige ao mundo

midiaticamente ou expande a

sua elaboração prévia

concepcional mais secreta em

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colaboração com o mundo; o

servo é aquele que obedece

justamente porque outrem

preenche para si o hiato da sua

fórmula concepcional

compreensível. As quatro

castas, adicionalmente,

correspondem aos "Quatro

Cavaleiros do Apocalipse".

Essas correspondências

permitem explicar que os

quatro discursos têm, cada um,

uma expressão mais elevada e

uma expressão mais

pejorativa. A expressão

elevada do discurso poético se

expressa nos sacramentos

recebidos com piedade. O

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discurso poético também se

expressa pela função

sacerdotal (a "Ordem de

Melquisedeque"). A expressão

pejorativa do discurso poético

se expressa pelo jogo duplo

dos arranjos grotesco-

ficcionais, isto é, as cores

púrpura e escarlata da Meretriz

Apocalíptica.

A expressão elevada da

retórica, na Teoria dos Quatro

Discursos, é mais ordinária em

aparência do que a expressão

elevada da poética;

provavelmente pela

cristalização secular da noção

pejorativa de "sofística", que

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implica automaticamente um

contraste, incluso entre o

orador filosófico e o sofista.

Há que se atentar, entretanto,

que para Aristóteles a dialética

é um ramo da retórica, e que

isso por sua vez sugere que

esta última é, desde certo

ponto de vista, não apenas a

predecessora da dialética, mas

o seu princípio ordenador. A

expressão elevada da retórica é

a profissão religiosa, incluso

porque, conforme Aristóteles

sugere, é um ponto de vista

insuficiente no estudo da

retórica o desviar-se das

proposições e teses

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particulares que orientam a

expectativa humana.

A expressão elevada da

dialética figura de modo

particularmente claro no seu

contraste com sua expressão

pejorativa. O contraste entre a

exuberância econômica, de um

lado, e a exuberância jurídica

(que sugere prolixidade

tirânica), de outro; demonstra

do que se trata; e essas duas

exuberâncias, por sua vez,

guardam certa

correspondência,

respectivamente, com os

caminhos “estreito e largo" do

evangelho.

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A expressão elevada da lógica,

como oposta à sua expressão

pejorativa, está, de certo

modo, no efeito do

transcendentalismo

husserliano em transfigurar a

impressão em concepção,

abrindo uma fenda na

impressão (pelo exame

detido); o que corresponde à

"rocha cortada de uma

montanha sem mãos" (Daniel

2:34) que quebra os pés de

ferro misturado a barro, da

estátua de Nabucodonosor, e

com isso todo o resto da

estátua é quebrado. Isso

significa a demonstração que

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jorra por si mesma, em um

sentido, para usar linguagem

teológica,

“anagógico”. Também

corresponde isso à passagem

evangélica: "onde quer que o

corpo [impressão] esteja, lá as

águias [concepção] também

estarão reunidas juntas."

(Mateus 24:28). A associação

das águias a certo socorro

alegórico também está em O

Senhor dos Anéis.

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Capítulo IV - O ocultismo e o

tema da "dúvida radical"

O ocultismo tem como

propriedade ser uma espécie

de "formulação

civilizacional" que prepara o

mundo para a ausência de

clérigos; os clérigos

entendidos aqui como os

indivíduos que correspondem

à concepção na esfera política,

assim como o leigo

corresponde à impressão. O

clérigo administra a concepção

ao leigo, num elo de

paternidade que supõe um

vínculo amoroso. É útil manter

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170

em mente, a esse respeito, o

enfático preconceito espírita (o

espiritismo e o teosofismo têm

estreita ligação histórica, e

certa interpenetração

doutrinal) contra os clérigos.

No ocultismo, que supõe a

justificação discursiva do

boicote ou da perseguição ao

clérigo, está implícito um

igualitarismo na esfera

intelectual, mesmo quando a

ideia de elitismo espiritual seja

sugerida (como no caso do

teosofismo, claramente

distinto do espiritismo a esse

respeito, ou como quando os

teóricos espíritas dão alguma

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importância ao sacerdócio

católico a despeito do seu

profundo anticlericalismo).

Esse igualitarismo se expressa,

por exemplo, no alçar a moral

à condição de competidora

extrínseca ao dogma (qual

sugerido no livro de Albert

Pike, "Morals and Dogma",

em que vem primeiro, no

título, a "moral"), justamente

porque a moral é, como um

corpo de preceitos,

relativamente mais acessível à

inteligência da maioria. Esse

processo desemboca na

redução da religião a uma

espécie de "ética cívica"; e no

atribuir a certas empresas

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172

filantrópicas, por si mesmas, o

caráter de "obras salvíficas".

Ora, a perspectiva

epistemológica vitalista de

Ortega y Gasset; tomada (pelo

Sr. Robson) como uma

influência positiva sobre

Olavo de Carvalho; se baseia

precisamente em uma

oposição (expressa

literariamente) à preeminência

da concepção, entendida

pejorativamente, quando

contrastada com a vida, com o

mundo da experiência vital.

Ortega y Gasset muito

habilmente tomou o ponto de

vista racionalista anglo-saxão

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173

como assinalador de um hiato

ou uma incongruência vital; o

racionalismo como uma

representação alheia ao

cotidiano ou ao "aqui e

agora".

É por conta de um exame

filosófico, desde o seu

vitalismo, que Ortega y Gasset

substituiu a noção de

sociedade cunhada por

Durkheim, por uma outra

noção. Para Durkheim a

sociedade, e a expressão

concreta do fenômeno social,

supõem uma consciência

sobrehumana sutil operando

por meio de agentes humanos.

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As pessoas seriam "fantoches"

da sociedade. Para Ortega y

Gasset, ao contrário, os

costumes (sinônimos do que é

relativo à sociedade), são

como ferramentas sem vida

própria, mas impressas com o

selo do gênio humano (tanto

na origem quanto na

manutenção), que operam

vivificadas "pela vida mesma"

num curso marginalmente

errático.

A oposição vitalista a um

abstratismo pejorativo, e

mesmo à personificação

fantasmagórica de um ente

abstrato ("a sociedade"),

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responde com o tomar a

sociedade como justamente o

oposto a algo tão

imediatamente inteligível

quanto uma "abstração";

responde essa oposição, em

suma, com o tomar a

sociedade como aquilo que é,

por definição, marginalmente

ininteligível. Isto é, tão

marginalmente ininteligível

quanto a vida entendida no

vitalismo ou no

existencialismo. Lembrando as

palavras do filósofo Olavo de

Carvalho, que se aplicam ao

fenômeno vital: "Nunca

estamos perfeitamente

adequados à razão; ela nunca é

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176

adequada para compreender

nenhum caso singular. E muito

menos o nosso. A razão é a

cruz que o homem carrega."

A teoria de Ortega y Gasset

sobre a sociedade associa a

sociedade a uma arquitetura ou

rede de linguagens cujo

significado permanece

"potencial" e não

imediatamente acessível (não

acessível sem a sua presença,

sem ao menos a proximidade

do "aqui e agora" como ponto

de referência); a teoria dele faz

essa associação entre

"costume" e "sentido do

costume" de um modo que

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torna obscurecida, ou ao

menos problemática, a

distinção entre o sentido que

se atribui ao costume e o

sentido intrínseco ao costume.

O costume, aí, é visto como

um acidente cujo vínculo com

o que é essencial pode ser

eventualmente esclarecido;

mas, ao mesmo tempo (e

paradoxalmente), é visto como

algo cujo auto-bastar-se só

pode ser comprometido pela

ausência da convivência

humana, pela ausência da vida

(que é por definição

marginalmente ininteligível, e

sob esse aspecto acidental ela

própria).

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Por conta disso Ortega y

Gasset apresenta como

louvável e saudável o

fenômeno da riqueza inglesa

de costumes, costumes cuja

linguagem então lhe parecia

destacadamente sutil e

propiciadora de gratificação.

Ademais, a vantagem nos

costumes o autor (Ortega y

Gasset) parece tomar como

modelo de vantagem

civilizacional ou bem

civilizacional.

Entretanto, os costumes

ingleses não podem ser

inequivocamente separados

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179

das tendências racionalistas

anglo-saxãs (expressas, por

exemplo, na escola analítica

criticada pelo Sr. Robson).

Com efeito, a exuberância de

costumes pode ser vista como

uma sobreposição do domínio

abstrato-normativo sobre o

domínio da situação concreta

específica, ou um avanço do

primeiro sobre o segundo.

A valorização vitalista dos

costumes é um paradoxo, já

que o vitalismo é uma

valorização do concreto-vivido

em detrimento do abstrato;

quando a vida cotidiana em

muito depende de convenções

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e costumes registrados como

preceitos abstrato-normativos

(por exemplo, em que o

Direito Canônico moldou o

cotidiano hispânico que o Sr.

Robson toma como causa

formal da escola vitalista).

Existe um vínculo profundo

entre racionalismo e vitalismo,

assim como existe um vínculo

na origem entre "luz lunar" e

"mar noturno", que é a

influência remota, e distinta,

do sol sobre ambos.

O racionalismo e o vitalismo

são duas faces da mesma

moeda, assim, como as

categorias de Bruno Tolentino,

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"mundo como ideia" e "mundo

como rapto".

O Sr. Robson longamente

descreve as dificuldades

teóricas, na mesma esteira, de

um crítico literário

chamado Hans Ulrich

Gumbrecht (intelectual de

Stanford); dificuldades que

opõem a "construção do

sentido" da obra à

"substancialidade" da obra.

Essa oposição é ainda mais

uma variação correspondendo

à oposição entre norma

abstrata (linguagem ou

costume) e vida (intuição);

com a mesma sugestão do ser

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obscuro quer um ou outro dos

polos em disputa se basta ou

necessita do outro.

Se destaca na exposição do Sr.

Robson sobre a filosofia de

Olavo de Carvalho

precisamente um se desviar do

tratar "luz lunar" (discurso) e

"mar noturno" (intuição) como

fenômenos guardando um

vínculo subjacente e uma

relação, a despeito da

admissão de que o discurso ou

a linguagem fazem de algum

modo a intermediação do

conhecimento. Esse vínculo é

discursivamente suprimido

como um vácuo no meio da

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exposição. Por exemplo, ao

falar do início da experiência

intelectual, e da sua expressão

"fundante" (a tripla intuição,

que supõe a apreensão

simultânea e sensível de

"sujeito", "conhecimento ou

nexo" e "objeto"), nenhuma

menção é feita à relação entre

a intuição direta, propiciada

pela presença direta do objeto;

e o discurso poético (que é

alhures sugerido como a causa

formal necessária da obtenção

da concepção desde a

impressão). Essa supressão ou

vácuo, em meio ao estabelecer

a intuição direta (e sua

respectiva concepção) como

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fenômeno fundante do

conhecimento, guarda relação

com Ortega y Gasset ter

estabelecido a vida mesma

como fundamento do

conhecimento, num sentido

que parece atribuir à

linguagem ou aos costumes

uma posição lateral ou

acidental. Conversivelmente, a

posição de Ortega y Gasset,

segundo a qual a vida

"vivifica" os costumes, guarda

certa correspondência com a

sugestão olavista de que a

intuição direta de alguma

maneira ativa o discurso ou é

parcialmente descompactada

nele.

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Diz o Sr. Robson à página

232: "Que de todo modo essa

experiência [intuição como

pressão do real] seja

inescapável, aí está algo que

aponta para uma modalidade

mais fundamental de

conhecimento que não só não

se identifica com o raciocínio

discursivo, como é ainda

matriz da própria possibilidade

da intuição e das formas de

preensão."

A intuição direta, a "presença"

fundante, correspondem ao

"mar noturno"; enquanto o

costume, e consigo a

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construção discursiva,

correspondem à "luz lunar". O

motivo pelo qual o "mar

noturno" é tomado como auto-

bastante, e algo com um elo

acidental-obscuro com a "luz

lunar", é precisamente o

mesmo motivo pelo qual a

noite torna esses dois

fenômenos maximamente

apartados da sua fonte remota,

o sol, com isso obscurecendo a

sua relação autêntica. Isso está

particularmente evidente em

um trecho do texto de Olavo

de Carvalho chamado “Ser e

Conhecer” (citado pelo Sr.

Robson), que propõe “eliminar

a dualidade do racional e do

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intuitivo, reduzindo tudo ao

intuitivo”. Não há dúvida, em

conclusão, que na filosofia

olavista a intuição direta seja,

desde a premissa aparente,

algo que tem no discurso em

geral, e no poético em

particular, um acidente: isto é,

para o olavismo, se você tem a

intuição você não

necessariamente tem o

discurso, mas se você tem o

discurso você tem a intuição.

Ora, a proposta de uma caráter

auto-bastante atribuído a algo

acidental (mar noturno em

relação ao sol) guarda

correspondência precisamente

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com o fenômeno ocultista pelo

qual o leigo (correspondendo à

impressão) parece bastar-se

sem um vínculo religioso com

um clérigo (correspondendo à

concepção). O motivo pelo

qual Ortega y Gasset atribui

um caráter ontologicamente

estável à sua perspectiva

acidental a respeito do que

sejam os costumes, é que ele

está contando com a

ordinariedade da penúria de

clérigos, clérigos cuja função é

precisamente tornar acessível

o sentido dos costumes, e a

vinculação necessária dos

costumes a algo tanto mais

principial que a vida humana

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quanto o sol é mais principial

que o calor noturno do mar,

acumulado desde o sol

diurno.

Basicamente toda a abordagem

olavista fiada na ideia de

presença é uma expressão

análoga ao se fiar no calor do

mar noturno como substituto

do sol diurno.

O aspecto fundante atribuído à

"vida concreta" ou à

"presença" é noção parecida

com a ideia destacada de

"civilização" (este um termo

que surgiu há bem poucos

séculos): é uma noção que

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surgiu vocabularmente para

compensar a penúria da sua

manifestação carregada de

sentido.

O vitalismo, e a teoria da

presença, desde a maneira com

que são apresentados, são

justificações ex post facto da

penúria de clérigos.

Há algo ainda mais

significativo a respeito desse

fato, que é o paralelismo que

pode ser estabelecido entre

vitalismo e a dúvida radical

cartesiana (tão criticada por

Olavo de Carvalho no livro

"Visões de Descartes"): se na

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tentativa dúvida radical de

René Descartes (filósofo

renascentista e racionalista) se

tratou de projetar sobre o

mundo uma "expletivação",

um ver as coisas desprovidas

do seu sentido ordinário (e tal

em um sentido

"inadvertidamente"

carnavalesco); a mesma coisa

opera no vitalismo da Escola

de Madrid, incluso sob o

aspecto de esta última ter um

vínculo dir-se-ia discreto, mas

real e profundo, com

tendências racionalistas (como

visto na teoria sociológica de

Ortega y Gasset, que abraça

noções abstratas acidentais

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quando cristalizadas em

costumes). Nesses casos se

trata de uma manifestação do

fenômeno, observado por

René Guénon, em que os

filósofos modernos se veem

reduzidos a justificadores ex

post facto da mentalidade da

própria época; no caso se trata

de épocas, cada uma a seu

modo, marcadas pelo

acirramento do vazio da

atuação clerical.

Consequentemente, a reação

indiferente usual de pessoas do

meio olavista à

obrigatoriedade católica de

não usar o nome de Deus para

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expressar surpresa ou raiva, ou

em um sentido acidental

(Segundo Mandamento); qual

ensinado em certas fontes

doutrinais legítimas; guarda

certa continuidade com a

dúvida radical cartesiana. Se

trata da expressão hiperbólica

de um recuo em relação ao

ajuizar doutrinal, um recuo

continuado, que tem como

fundo político precisamente a

desesperada expectativa da

não atuação de clérigos, que

poderiam auxiliar a ajuizar.

Isso guarda certa continuidade

com um motif literário,

segundo me parece: "El gran

teatro del mundo". Nem há

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outro meio de explicar por

que, na olavista Teoria das

Doze Camadas da

Personalidade; é ordinário ou

regra passar por tantos

desenvolvimentos de

personalidade (não que passar

por todos seja sequer tomado

como provável) antes de se

chegar na camada final, da

vida estritamente piedosa ou

dedicada à religião: essa

prolixidade (baseada,

certamente, em um estado de

coisas, conquanto acidental) é

uma expressão de uma dúvida

radical e do recuar em relação

às gratificações próprias da

religião.

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Em todo caso, o vínculo

subjacente e essencial, entre

"intuição direta" e "discurso",

tem certo fundamento

teológico. Foi dito que as três

testemunhas terrestres de 1

João 5:8, a saber, "espírito",

"água", "sangue";

correspondem a "doutrina

dogmática", "doutrina

sacramental", "doutrina

moral". Ora, essa

correspondência não esgota o

sentido dessas testemunhas,

que também podem, entre

outros, corresponder ao

"domínio suprassensível",

"domínio psíquico" e

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"domínio sensível". O domínio

psíquico é um elo

intermediário entre o mundo

sensível e o mundo

suprassensível, assim como os

sacramentos fazem

intermediação entre dogma e

moral.

Cada uma dessas testemunhas

guarda dentro de si uma

imagem dessa relação

tripartite, com o elemento do

meio servindo de

intermediário. Por exemplo, no

que se refere ao "sangue"

(mundo sensível), ele pode

significar o domínio da

intuição sensível; também, por

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extensão, o domínio da

intuição "por presença"

(significando a percepção

direta, temporal e substancial

de linhas de possibilidades).

Esse domínio possui "autor do

testemunho", "nexo de

conhecimento" e "objeto

testemunhado". O

reconhecimento simultâneo

dessas três peças e da sua

interconexão, conforme tese

olavista, supõe a demonstração

de que essas três peças são

unas ou possuem uma

continuidade ontológica

inseparável. Ora, o mesmo

ocorre com as três

testemunhas terrestres,

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"espírito", "água", "sangue"; o

texto sagrado diz que elas "são

um", e a Carta a Flaviano

(Papa Leão I) propõe a ideia

de que o elo entre as

testemunhas é inseparável.

Entretanto, não é apenas no

"sangue", uma das

testemunhas, que opera um elo

interno tripartite como imagem

das testemunhas mais gerais.

Por exemplo, a testemunha

"água", que pode significar os

sacramentos (os quais supõem

um elo tripartite entre

"fórmula verbal", "intenção" e

"matéria"), também significa

qualquer expressão psíquica

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intermediadora do "céu" e da

"terra". Por exemplo, a "água"

se expressa no "sinal da cruz".

Aqui, em vez de "sujeito",

"nexo" e "objeto", se tem o

sentido do gesto de que o

sujeito se carrega, a sua

aplicação, e a mão com que se

aplica o gesto.

No que se refere à testemunha

"espírito"; ela se assemelha

mais ao discurso do que à

intuição por presença (de fato

compreendendo o domínio

discursivo), quando se

expressa em uma tripartição

como "referente, significado,

signo"; mas sucede que as

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coisas destacadamente

"invisíveis" (distintas do que o

Sr. Robson chamaria "intuição

interna") também têm um polo

mais "em ato", um polo "mais

potencial", e um elo de ligação

entre os dois; como acontece

com as noções de "essência",

"ordem" e "acidente", em que

a "ordem" entre o aspecto "em

ato" (essência) e o aspecto "em

potência" (acidente) estabelece

entre os dois um "elo" (porque

o essencial vem primeiro que o

acidente os dois são

vinculados por uma ordem);

elo expresso

independentemente de alguma

manifestação material.

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201

Ora, se as três testemunhas,

"espírito", "água" e "sangue",

"são um" (1 João 5:8), por que

atribuir ao "sangue" (intuição

sensível, sensação ou

"presença") um caráter

fundante e principal em

detrimento das outras duas

testemunhas? Fazer isso

guarda certa correspondência

(como oposta a coincidência)

com a pretensão de que seja

possível a perfeição moral em

detrimento da profissão

dogmática (a posse da fé

Romano-trinitária), o acidente

a auto-bastar-se sem a

essência. Essa pretensão

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202

também corresponde à redução

da religião a uma "ética

cívica" etc. O acidente

apartado da essência é uma

sombra do acidente cujo

vínculo com a essência (cuja

unidade subjacente com a

essência) é tornado patente.

Não é possível falar da

"presença" (correspondente ao

"sangue") como uma

experiência fundante, mais do

que é possível falar de

qualquer outra das três

testemunhas. Ademais, as três

testemunhas terrestres se

prolongam umas nas outras de

modo paralelo às três

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testemunhas celestes (Pai,

Verbo e Espírito Santo) serem

relativas umas às outras desde

um vínculo inseparável (um

paralelismo que a passagem

bíblica em questão, sobre as

testemunhas, indica de modo

explícito).

Se cada uma das três

testemunhas terrestres tem

uma tripartição interna, as

testemunhas terrestres supõem

ao todo nove elementos que se

espelham mutuamente. Ora, o

número "nove" corresponde

simbolicamente à serpente

(como é visto na tradição

chinesa, e pelo formato

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204

ordinário do algarismo etc.).

Esse número corresponde

precisamente à sutileza

(Gênese 3:1: "Ora, a serpente

era mais sutil que qualquer das

bestas da terra que o Senhor

Deus fez."), justamente porque

a unidade subjacente entre as

três testemunhas terrestres

supõe um desvelamento, de

uma verdade escondida a

despeito de estar à mostra.

A "presença" ("sangue"), de

que fala Olavo de Carvalho;

no seu caráter fundante e

abrangente, sempre a esconder

um fundo latente, sempre

impondo à inteligência uma

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205

condição instintiva ou de

mudo testemunho ante o que

não pode ser descompactado

suficientemente; se é uma

noção correlativa com

"espírito" (suprassensível),

como de fato é; faz surgir uma

certa analogia. A "presença"

corresponde ao tema bíblico

do "camelo" (uma corda que

supõe composição e

complexidade), enquanto o

"olho da agulha" corresponde

ao "espírito" ou

"suprassensível" (Mateus

19:24), aquilo que é

desprovido de todo peso e

possui máxima simplicidade.

A incapacidade de ver uma

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unidade subjacente entre a

"presença" e o "espírito", a

incapacidade de ver para além

da presença, é algo que a

passagem evangélica parece

sugerir ser um obstáculo

essencial à salvação da alma,

tanto quanto é um obstáculo ao

"jovem rico" a sua riqueza.

Essa mesma incapacidade

corresponde à irritação dos

trabalhadores da vinha, em

outra história evangélica

(Mateus 20:1-16), os quais se

irritaram por receber o mesmo

pagamento, após trabalharem

todo o dia, que tinham

recebido os trabalhadores que

entraram tardiamente na

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jornada trabalhando uma só

hora.

O apego olavista à

multiplicidade e ao extensivo

(o "camelo"), em detrimento

do uno e "sintético"; se

expressa, ademais, no fato de o

Sr. Robson ter primeiro, e

repetidamente, chamado

atenção; na sua exposição dos

temas filosóficos

fundamentais; para a noção de

"Ápeiron" (Anaximandro)

cunhada na antiguidade, isto é,

a noção de um campo

ilimitado para além do qual

não se consegue ver; em

detrimento de chamar primeiro

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208

atenção para o "simbolismo do

centro" que concentra todas as

possibilidades, representado

por uma circunferência.

Mesmo quando referiu esta

última noção, o Sr. Robson o

fez com o destaque para o

símbolo do centro como

ocasião para um sentimento

aflitivo de separação em

relação ao centro. Esse tipo de

abordagem sugere o tema da

"angústia metafísica", como a

de um personagem de

Fernando Pessoa como Álvaro

de Campos; cuja ordinariedade

é desencaminhadora.

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209

A ideia de presença, conforme

as sugestões acima, é bem

diferente de uma noção

filosófica ordinária. É, na

verdade, um simbolismo sacro.

Esse símbolo (da "presença")

corresponde, na história de

Jonas, ao "grande peixe"

(Jonas 1:17). A entrada de

Jonas no ventre do grande

peixe guarda um paralelismo

com a entrada de Jonas "na

parte interior" da embarcação,

para dormir, quando se levanta

uma tempestade ameaçadora.

A diferença específica entre os

dois veículos ("embarcação" e

"peixe") é que, enquanto a

embarcação é algo "feito por

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210

mãos" (acidente), o peixe é

algo "natural" (essência),

enquanto a embarcação supõe

a companhia coletiva (domínio

secular), o peixe supõe o estar

a sós com a própria

consciência (com efeito, o

peixe representa a própria

consciência, sob o aspecto da

sua maturação tomando do

instinto). Jonas é atirado ao

mar voluntariamente, para

acalmar a tempestade e salvar

os tripulantes da tempestade: a

tempestade representa

precisamente o campo a um

tempo externalizado e sutil,

pesado e profundo, que tem de

ser digerido ou examinado,

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isto é, o conhecimento

potencial (não imediato) que

tem de ser assimilado, a fim de

se dar sobrevida ao domínio

secular degenerado (pela

transmissão de conhecimento

restauradora), essa digestão

representada por Jonas no

ventre do peixe.

As águas e vagas que oprimem

ou cercam Jonas no ventre do

peixe guardam um sentido.

Para citar o Sr. Robson: "A

água é tradicionalmente o

símbolo das potencialidades da

realidade primeva; as águas de

onde tudo assoma, a partir da

qual [sic] tudo se forma. É

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212

símbolo de fonte de vida, de

formalidade possível." Essas

águas (como campos de

possibilidade), associadas à

maturação ou digestão

suspensiva e instintiva do

peixe, que esmagam o

intelecto de Jonas com a

própria extensividade, são

precisamente a "presença" de

Olavo de Carvalho; expressas

em um sentido mais sacro e

dramático; além de serem uma

transposição da "tempestade"

desde um domínio secular para

um domínio mais recôndito.

Essas águas, entretanto,

existem antagonicamente em

relação a Jonas; como a prévia

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213

companhia de Jonas junto dos

tripulantes da embarcação

sugere; precisamente em

função de um desafio retórico

do qual Jonas havia tentado

escapar. Ademais, o

paralelismo entre a

embarcação tripulada e o peixe

sugere uma unidade subjacente

entre o domínio discursivo-

cultural ("espírito") e o

domínio da presença

("sangue"). Há, ainda, certo

paralelismo entre o par

“embarcação e peixe” e o par

“mistérios gozosos e mistérios

dolorosos”; um paralelismo

que, à luz do que foi discutido

acima, sugere que, em um

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214

sentido inconsciente, Olavo de

Carvalho valoriza de modo

particular o discurso dialético

em paralelismo com a sua

valorização da “presença”;

embora na filosofia olavista

esses termos relativos ou

paralelos sejam vistos desde

uma abstração que os separa,

tanto entre si, quanto da ordem

previamente explicada dos

mistérios.

A concepção de presença, na

filosofia olavista, é, em suma,

a Grande Cidade Apocalíptica,

vista desde uma operação

abstratista que isola o aspecto

potencial da Cidade (a

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215

impressão ou "sangue") da sua

correlação com o aspecto atual

(concepção ou "espírito").

Tanta (e tão repetida)

importância ser dada à

impressão do aspecto

extensivo e inabarcável da

"presença"; por uma operação

abstratista; é algo isolado de o

mundo contemporâneo ser

marcado por uma

extensividade discursiva

externa ou cultural (um efeito

degenerativo associável,

acidentalmente, ao discurso

dialético); como se a segunda

extensividade fosse acidental à

primeira e não um seu reflexo

correlato. É uma propriedade

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216

da Grande Cidade

precisamente o tomar a

"impressão" como guardando

de modo suficiente a

concepção, em uma alegada

equivalência substancial entre

impressão e concepção que

necessariamente dá à

concepção um sentido

pejorativo; e mesmo quando

tal entendimento signifique

(em um sentido subjacente) a

proposta de uma estabilização

secular degenerativa, a

proposta da estabilização de

uma mentalidade eivada de

transitoriedade, que está

fadada a ser corroída pelo

curso temporal.

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217

A estadia no ventre do grande

peixe é uma condição

carnavalesca (ainda que de

efeitos benéficos desde um

ponto de vista elevado),

extraordinária, e a proposta da

continuação e da ordinariedade

dessa suspensão equivale à

proposta de um "perpétuo

carnaval", um perpétuo estado

de dúvida radical, um perpétuo

estado de penúria

concepcional na esfera

político-secular. É

compreensível, portanto, que

Jonas tome a experiência no

ventre do peixe como

pesarosa: Jonas 2:2: "E eu

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218

disse: Estou lançado para fora

da visão de teus olhos: mas

ainda assim hei de ver teu

templo santo de novo." O

"templo santo de Deus" é um

dos títulos do próprio Deus,

sob o aspecto de uma

gratificação divina. A

"presença", nesse sentido

acirrado, é uma experiência da

qual o profeta, pessoalmente e

desde certo ponto de vista,

prescindia, mas à qual ele se

dirigiu em prol de outrem,

desde um contexto retórico.

Se pode comparar a explicação

que eu dei para o significado

do "Anel de Sauron", e a

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219

explicação dada em um escrito

de J. R. R. Tolkien. Este

propõe o anel como um

símbolo para o depósito do

"poder" naquilo fora do autor

do poder, como a criação de

um partido, de bens, etc., de

um modo que torna esse

poder, ou esses bens, passíveis

das vicissitudes terrestres,

como a traição ou o roubo etc.

Isso é diferente da minha

explicação, a saber, a do anel

como a expressão acidental,

degenerativamente afastada da

origem, de um conhecimento

ou tradição. Entretanto, as

duas explicações possuem um

fundo comum, uma

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220

corroboração de fundo

(suficientemente assinalada

pela distinção entre essência e

acidente). Consequentemente,

tanto uma como a outra

poderia ser antevista, e é de

fato antevista, uma na outra,

porque são a mesma tese vista

desde pontos de vista

diferentes. A manifestação

consciente ulterior dessa

antevisão, que é em si mesma

um acidente; não precisa

necessariamente acontecer; no

mesmo sentido em que o

"jovem rico" não precisa das

suas riquezas.

A importância dada à

necessidade de sempre

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cumular novas atualizações de

noções acidentais, sem

associar esse esforço de algum

modo a um fim retórico-

discursivo; está ligada à

contínua dúvida radical em

relação à gratificação da

profissão religiosa; porque é

uma propriedade da profissão

religiosa gratificar a alma de

modo suficiente (sintético,

como oposto a extensivo) e

fazer se prescindir de uma

expectativa desesperada e

temerária como aquela que

Olavo de Carvalho habilmente

atribuiu a René Descartes. A

esse respeito não faz diferença

se a preparação retórico-

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discursiva do clérigo leva

tempo, e passa ao largo dos

olhos do mundo secular

(mesmo por muitas gerações);

o que importa é que a digestão

na "barriga do peixe" tenha

uma razão de ser correlativa

com essa preparação; e que

esse estado suspenso de modo

nenhum seja considerado por

si a máxima aspiração

intelectual humana, e não um

acidente.

A ilusão de tomar a impressão

de modo não correlato com a

concepção (de a tomar de um

modo que não que requer um

recuo contemplativo, como

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oposto a uma estabilização

secular) se manifesta, por

exemplo; na tese olavista de

que as passagens evangélicas a

respeito dos milagres de Jesus,

ante o testemunho dos

discípulos de João Batista

(Lucas 7:18-23, Mateus 11:2-

6); significam que a

autodefinição do cristianismo

é a "sucessão de milagres",

"não um discurso doutrinal".

Ora, Santo Tomás de Aquino

toma como segura a tese do

Papa Gregório I, segundo a

qual "quando as sagradas

escrituras descrevem um fato,

revelam um mistério". Santo

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224

Tomás também toma como

seguro que as sagradas

escrituras supõem

multiplicidade de sentido sem

ocasionar equívoco, e que o

sentido literal (correspondendo

à impressão) é só a camada

mais inferior, apresentada de

modo alegórico para esconder

o seu sentido e não dar aos

cães aquilo que é santo

(Mateus 7:6).

Nas duas passagens (Lucas

7:18-23, Mateus 11:2-6) o

número de argumentos ou

respostas de Jesus, tomando

como ocasião as curas, é

sete. Esse número significa

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225

completude, especificamente a

completude da obra divina,

que opera de modo uno

subjacente à multiplicidade,

como a sétima cor

(branco) contém todas as

demais de modo subjacente,

como o sábado da criação

contém os seis dias, porque o

descanso divino é o "dia

eterno". Esse detalhe numérico

é acaso parte do argumento

messiânico? Sim. Inclusive

porque o contexto é a pergunta

vinda de João a respeito de se

Cristo é o messias que vem

trazer a completude, isto é,

uma obra sem a necessidade

de alguém mais. A pergunta

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226

não era a respeito de se Jesus

era um verdadeiro mestre,

entre outros motivos pela

formulação da pergunta, além

do prévio e firme testemunho

de João a respeito de Cristo; e

sim se haveria de vir algum

outro. O próprio número de

argumentos (sete), portanto,

indica as duas dimensões de

que o Papa Gregório I fala (a

do fato e a do mistério, a da

superfície e a do fundo

subjacente).

Os sete testemunhos são: os

cegos veem; os aleijados

andam; os leprosos são

limpos; os surdos ouvem; os

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227

mortos se levantam de novo

(ressuscitam); aos pobres o

evangelho é pregado; e os que

não hão de se escandalizar em

Cristo hão de ser abençoados.

Ora, nem todos dos sete

testemunhos são feitos

explicitamente "corporais",

associáveis a milagres de

modo estereotípico; porque a

pregação do evangelho é um

milagre comparativamente

mais concepcional do que

corporal. Todos esses milagres

são apresentados como

guardando uma unidade

subjacente e como

complementares, porque as

suas facetas estão todas

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embutidas sem separação na

unidade subjacente à

multiplicidade. Disso se pode

deduzir, por exemplo, que a

pregação do evangelho trazia

alívio corporal; enquanto as

curas corporais supunham uma

correlação simbólica com

certas gratificações

intelectuais.

Ademais, o sétimo testemunho

("e os que não hão de se

escandalizar em Cristo hão de

ser abençoados") é

propositadamente colocado

(versão Douay-Rheims) em

um modo verbal chamado

"potencial";

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229

consequentemente, um modo

não associado direta ou

inequivocamente a passado,

presente ou futuro; em vez de

no tempo presente (como nos

demais casos). Isso

corresponde à sutileza do

sétimo dia (isto é, o dia do

eterno descanso divino) ser

temporalmente subjacente nos

demais dias (e ser de algum

modo o primeiro e o único);

porque não se associa ao

domínio temporal mais

determinado em que estão

inseridos os demais dias.

O que o messias está dizendo é

que a aparência de distância

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rigorosa entre o elemento

corporal ou natural (a

impressão) e o elemento

concepcional (a pregação

evangélica) é dissipada por um

vínculo subjacente operado

sobrenatural ou

providencialmente.

Consequentemente, a resposta

messiânica aos discípulos de

João sugere que se o vínculo

subjacente entre "impressão" e

"concepção" não estivesse

sendo estabelecido de modo

providencial, tampouco seria

Cristo "aquele que está para

vir".

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231

Uma exemplificação a respeito

disso, no contexto de um dos

sete argumentos de Cristo

("aos pobres o evangelho é

pregado"); é que com "pobre"

não se quer dizer exclusiva e

inequivocamente uma

condição econômica; assim

como na passagem sobre o

"jovem rico" (Mateus 19:16-

22), a riqueza deste não

significa uma exclusiva e

inequívoca riqueza econômica.

A "copiosidade" do jovem rico

(como oposta à noção de

"plenitude") é o motivo pelo

qual, ao se dirigir a Cristo, o

jovem rico o chama de "bom

mestre" em um sentido

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232

acidental (correspondendo à

impressão), sugerindo nisso a

incapacidade de enxergar em

Cristo a sua divindade

(correspondendo à concepção).

Conversivelmente, quando

Cristo fala a respeito dos

"pobres" recebendo a pregação

do evangelho, está impressa a

sugestão de que se trata

daqueles que têm a "plenitude"

(concepção), como oposta à

"copiosidade" (impressão).

Uma semelhante transposição

se aplica aos demais

argumentos de Cristo ante os

discípulos de João Batista.

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233

Um milagre tem de ser

entendido como um fenômeno

no qual tanto a concepção

quanto a impressão estão

presentes, com a sua unidade

subjacente estabelecida. Nesse

sentido o cristianismo é de fato

uma "sucessão de milagres".

De outro lado, sugerir que o

cristianismo é uma sucessão

de feitos "miraculosos" sem

um fundo concepcional, é

como a sugestão inadvertida

do jovem rico de que Cristo é

bom no tocante à impressão

("copiosidade"), como oposta

à concepção ("plenitude"); é,

em suma, como a sugestão de

que o "camelo" pode passar

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234

pelo olho da agulha sem a

intervenção divina, isto é, sem

a intermediação celeste. O

Catecismo de Trento propõe a

ideia de que, na oração do Pai

Nosso, o "céu" significa o

domínio suprassensível

(concepção), ou o aspecto não

corporal do fiel. A vontade

divina tem de ser feita "tanto

na terra como no céu" em

paralelismo com o milagre ter

de ser relativo tanto à

impressão (ou manifestação

física) quanto à concepção

(conhecimento sagrado). A

distinção e unidade subjacente

entre “céu” e “terra” se repete

pelo correr dessa oração

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235

sagrada; por exemplo, na

distinção entre “as nossas

dívidas” (concepção) e as

dívidas dos “nossos

devedores” (impressão); uma

distinção entre o que é

conhecido íntima ou

plenamente, e o que é

conhecido externa ou

“numericamente”.

Por fim, na oração do Pai

Nosso, a correlação entre

“impressão” e “concepção”

está dada pelos termos “nome

santo” e “Pai”, ou seja, pelo

Segundo Mandamento.

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236

Capítulo V – Ação histórica e

o “trabalho do negativo”.

Eu cito o Sr. Robson (página

312, “Conhecimento por

presença”): “(...) a teoria da

tripla intuição abre caminho

para a intuição radical que

fundamenta a objetividade do

instalar-se do indivíduo na

verdade, ao passo que a teoria

da verdade como domínio

estabelece uma segunda via de

retorno à presença, agora com

maior ênfase na razão

discursiva, construtiva”.

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237

O motivo pelo qual a intuição

fundante e a teoria da verdade

como domínio não são vistas

como “dois lados da mesma

moeda”, ou “termos relativos”,

e sim como “caminhos”

mutuamente independentes em

relação à presença; conforme

eu previamente preparei como

sugestão; é que “linguagem” e

“construção raciocinante”, na

teoria de Olavo de Carvalho,

não são vistas como termos

relativos com a “presença”; e

sim como termos que têm de

ser em última instância

reduzidos à presença. Isso,

simbolicamente, equivaleria a

reduzir a “luz lunar” a “mar

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noturno”; tornando a redução

mais claramente inadequada,

ou só adequada desde um

ponto de vista com duvidoso

senso de hierarquia.

Um zoom em cima da citação

acima, ademais, indica que

existe entre o fenômeno

fundante da “tripla intuição” e

o fenômeno ulteriormente

constatado da “verdade como

domínio em que se está

imerso”, um paralelismo ou

uma analogia com as noções

filosóficas do simbolismo do

centro (circunferência) e do

Ápeiron (Anaximandro).

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239

As analogias supõem

necessariamente uma inversão.

Aquilo que era uma noção

sobretudo suprassensível

(simbolismo do centro) passa a

corresponder a uma intuição

fundante “sensível” ou

“terrestre”, a tripla intuição.

Aquilo que era uma noção

sobretudo sensível ou relativa

à intuição direta, o Ápeiron,

passa a corresponder à “teoria

da verdade como domínio”,

isto é, a um campo, nas

palavras do Sr. Robson, “agora

com maior ênfase na razão

discursiva, construtiva”.

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240

A tripla intuição corresponde

àquilo que é abarcado ou visto

de modo concentrado, pontual.

A verdade como domínio

corresponde àquilo extensivo e

no qual se está imerso.

Quando a presença é retratada

de modo extensivo e

abrangente, não se traça o

paralelismo destacado entre

ela e a “verdade como

domínio” (como que para não

se ter de admitir que a

presença é correlativa com o

discurso dialético, o que traria

como consequência a

correlação entre a intuição

fundante e o discurso poético).

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241

Quando a presença é retratada

de modo intensivo ou pontual

(tripla intuição fundante) em

comparação com o domínio da

verdade extensiva (esta a

“racionalidade discursiva”), aí

sim a comparação é feita.

Isso significa que a ordem dos

discursos, em paralelismo à

ordem da apreensão direta;

conforme a progressão

decrescente sugerida em Santo

Tomás etc.; é evitada na

filosofia olavista na base do

“heads I win, tails you lose”

(“se for cara eu ganho, se for

coroa você perde”); na base da

finta hipnótica inadvertida.

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242

A presença, conforme antes

indicado, corresponde ao

“sangue” (das três testemunhas

terrestres), que corresponde na

passagem bíblica (1 João 5:8)

ao Espírito Santo. O Espírito

Santo se associa à “vida”, algo

em que as pessoas estão

imersas, e também à

“caridade” (amor), que supõe

o se sentir imerso em um

mistério (Chesterton).

Também se associa ao

“conhecimento”, que é algo

em que se está imerso. O Pai,

por sua vez, se associa ao

“sujeito do conhecimento”, o

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243

Filho “ao objeto do

conhecimento”. Essas

distinções, entretanto, não

dizem respeito à substância

das Pessoas, mas à sua relação.

Analogamente, a verdade pode

ser vista como um domínio no

qual se está imerso, mas isso é

tão acidental à verdade quanto

um predicado sob a categoria

da relação (“Pai”, por

exemplo) é acidental à

substância de qualquer das

pessoas divinas.

Não é uma noção mais

fundante, da verdade enquanto

verdade, que ela seja um

“domínio” do que é que ela

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244

seja um objeto, ou um sujeito.

Essa maneira acidental de

enxergar a verdade

(correspondente à “razão

construtiva”) é análoga à

pretensão de ver na tripla

intuição uma experiência

fundante em detrimento das

outras duas testemunhas como

fundamento.

É uma maneira de separar

“impressão” e “concepção”; é

mais um aspecto de uma

justificação ex post facto do

boicote ao clérigo, ou do

boicote ao Segundo

Mandamento, que é

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245

conversível com a linguagem

do clérigo.

Segue uma postagem de Olavo

de Carvalho em rede social (26

de dezembro de 2020): ‘Como

a política é uma dimensão da

vida prática e não da mera

especulação teórica, É ÓBVIO

E INCONTESTÁVEL que o

sentido verdadeiro de um

preceito ideológico está na sua

tradução prática e não na sua

pura expressão verbal. O lema

"Liberdade, igualdade,

fraternidade" significa

ACIMA DE TUDO a

guilhotina e o reino do terror.

"Ditadura do proletariado"

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246

significa acima de tudo a

ditadura de intelectuais

burgueses SOBRE o

proletariado. O resto é farsa.’

Essa declaração guarda certa

continuidade com uma

passagem citada pelo Sr.

Robson (do livro “Apoteose da

Vigarice”): “Todo discurso de

agente contém, de maneira

compactada e distinta, dois

elementos: os dados

verdadeiros ou falsos que ele

possui sobre a situação e as

ações que pretende

desencadear com seu discurso.

A força de sua influência sobre

os ouvintes depende, muitas

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247

vezes, de que esses dois

elementos permaneçam

mesclados. Por isso mesmo há

em toda ação histórica um

componente de mistificação,

que pode chegar à completa

automistificação. A análise

decompõe esses fatores,

tornando inteligível o processo

na medida em que fornece os

meios de neutralizar, se

preciso, a força do agente.”

Essas declarações, se de um

lado não propõem a redução

da gratificação intelectual ao

ativismo que toma o ideal da

contemplação como

supersticioso, como faz

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248

Antonio Gramsci; de outro

lado também não parecem

admitir a possibilidade de

certa simultaneidade entre o

agir político-histórico e a

concentração concepcional

elevada.

A hipótese dessa

simultaneidade é (em

aparência) admitida por Olavo

de Carvalho sob a forma da

“intervenção profética na

história” (Cf. O Jardim das

Aflições, 2015, página 245);

que não parece ocorrer ao

filósofo como correspondente

a um discurso próprio

diferente do ponto de vista

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249

quaternário estabilizado na sua

teoria da cultura (“heads I win,

tails you lose”). Em outras

palavras, com a atuação

profética é feito algo similar

àquilo que é feito com o

fenômeno dos milagres.

Como consequência dessa não

correspondência, a tipologia

espiritual dos agentes

políticos, na teoria olavista,

(“intelectual”, “nobre”,

“comerciante”) não supõe

destacadamente a dualidade

“impressão” e “concepção”,

que por sua ver corresponde à

dualidade “ação política” e

“recuo contemplativo”.

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250

Como os agentes políticos não

são vistos desde esse ponto de

vista dual, eles não são vistos

desde o ponto de vista da

profissão do Segundo

Mandamento.

Com efeito, a transposição que

o Sr. Robson parece fazer do

conteúdo de texto olavista

(“Elementos de tipologia

espiritual”), sugere uma

familiaridade insuficiente do

ponto de vista de Olavo de

Carvalho com o trabalho de

René Guénon sobre o

hinduísmo e a tipologia das

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251

castas ("Etudes sur

l'Hinduism", 1966).

O Sr. Robson apresenta o

objetivo de vida dos vaixias

(os comerciantes, as pessoas

que promovem o mundo

material-econômico) como

sendo “o sucesso (a

acumulação de riqueza e o

encarecimento da imagem

pessoal perante a

comunidade)”; e dos sudras

(trabalhadores braçais) como

sendo “o prazer (o gozo dos

cinco sentidos)”.

Essa qualificação, embora

tenha um valor estereotípico

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252

válido (conquanto precário), é

desencaminhadora. São os

vaixias, e a sua iniciação

específica, que têm a ver com

a busca do prazer, ou com o

atendimento de desejos. Isso

pode ser visto em que explorar

a satisfação das

concupiscências tem

necessariamente uma

amplitude potencial que pode

facilmente escapar ao escopo

dos sudras; estes por definição

se apartando de grandes

pretensões. Seria mais

adequado falar da aptidão dos

sudras como de tipo “infra-

econômico”, uma expressão

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253

atenuada e restrita das

pretensões ao prazer sensível.

O conhecimento próprio dos

vaixias opera por meio da

simultaneidade do segredo e

do público (do cobre e do latão

unidos numa mesma liga

metálica, o bronze), da

concentração e da dispersão.

Consequentemente, não faz

mais sentido falar dos vaixias

como tendo a intenção de

“acumular riquezas”, do que

faz sentido falar deles como

tendo a intenção de consumir

riquezas. Similarmente, se esse

jogo entre concentração e

dispersão é transposto para os

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interesses sociais dos vaixias,

ele esbarra nas emoções

propriamente sociais (a

crueldade e a gentileza, que

correspondem a

“concentração” e “dispersão”),

as quais constituem o processo

da sedução, e implicam

necessariamente o exercício

oposto ao “encarecimento da

imagem pessoal ante a

comunidade”. Por exemplo,

segundo o especialista em

sedução, Robert Greene, é um

aspecto do sedutor hábil ser

capaz de deliberada ou

calculadamente apresentar

uma conduta não sedutora, que

desagrada e faz outrem o

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255

evitar. O ser capaz de exercer

essa técnica intencionalmente

faz parte de como o vaixia

explora a o seu campo de

conhecimento;

consequentemente, não é

inteiramente mais correto

associar a aspiração humana

em questão à obtenção do

prestígio social do que à

capacidade dissipar o prestígio

social.

A dualidade dos vaixia é uma

expressão do Segundo

Mandamento na faixa de

conhecimento que lhes é

própria; em que a

“concentração” sugere o que é

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256

mais “grave”, a coisa sagrada,

enquanto a dispersão sugere o

que é menos grave, o “nome

sagrado”. A “concentração”

(ou “gravidade”) corresponde

à justiça (o nome

“Melquisedeque” significa “rei

de justiça”); a “dispersão”

corresponde à paz

(Melquisedeque era o “Rei de

Salém”, isto é, o “rei da paz”).

A mesma ausência de

dualidade está na abordagem

olavista da casta dos xátrias

(nobres e guerreiros) que

aspiram à realização de um

“senso de dever”. O Sr.

Robson afirma que o xátria

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257

“encontra na espada” o exercer

ação sobre o círculo de

possibilidades dos demais

indivíduos. Ora, essa

abordagem é insuficiente; por

exemplo, em que o urso (um

símbolo tradicional do nobre)

tem como propriedade uma

aparência extraordinariamente

fina e atraente, em associação

a uma aparência formidável e

ameaçadora. Ao lado do

aspecto “grave” do nobre

(“justiça”) tem

necessariamente de

corresponder um aspecto

“suave” (“paz”). É

precisamente por meio dessa

dualidade que o nobre exige

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258

dos seus súditos a submissão

ao Segundo Mandamento;

porque se pode dizer tanto que

a magnanimidade do nobre,

junto de certa correlativa

paciência, faz dele uma

expressão secular e viva do

Segundo Mandamento; quanto

se pode dizer que a reverência

para com o nobre (Quarto

Mandamento) é em certo

sentido uma reverência para

com o próprio nome de Deus.

Um sinal retórico disso é que

certo nobre francês poderoso,

Charles de Orléans (séc. XIV),

se notabilizou como excelente

cortesão (sugerindo isso os

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aspectos mais suaves do urso),

e viveu décadas exilado, o que

sugere certa paciência

correlativa com a

magnanimidade ou expansão

do nobre (expansão que se

pode manifestar no “uso da

espada”).

À casta brâmane (que

representa o intelectual ou

clérigo) Olavo também parece

tirar a sua dualidade (na esteira

do que já foi dito a respeito da

Teoria dos Quatro Discursos);

uma dualidade que se expressa

de modo destacado na função

do clérigo como formador de

nobres ou “kingmaker”.

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260

Na formulação dos aspectos

passivo e ativo do poder

dessas castas (aspectos que

sugerem sombria ou

acidentalmente a dualidade em

questão), como consequência

das premissas estereotípicas

usadas; nem a dualidade em

questão é bem expressa, nem a

mútua corroboração entre os

termos é claramente sugerida.

Desde a supressão da

dualidade do Segundo

Mandamento nas esferas de

ação político-históricas, surge

um embaraço adicional: como

ao aspecto comparativamente

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dispersivo da dualidade

(“paz”) tem de estar correlato

um aspecto concentrado

(“justiça”); também ao aspecto

“negativo” da atuação política

tem de estar correlato um

aspecto “positivo”.

Segue disso que a pretensão da

filosofia olavista à ausência de

um “projeto de sociedade”, e a

uma atuação perfeitamente

negativa (“o trabalho do

negativo hegeliano”); tem de

ser correlata necessariamente

com um esforço positivo de

concentração concepcional e

formulação civilizacional. Se o

projeto pedagógico olavista

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não reconhece esse esforço ou

não lhe atribui visibilidade ou

importância, é, como se diz em

inglês, “beside the point”.

A simultaneidade da

destruição e da construção é

um dos aspectos da “dança da

morte” travada entre as duas

testemunhas e a Grande

Cidade. Às testemunhas cabe,

comparativamente, a

concentração e a construção, à

última, a dispersão e

destruição comparativas. Esses

atributos se apresentam de

modo potencial, até ambíguo,

durante essa gestação, durante

a dança. Em todo caso, é

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preciso estar próximo à

dualidade das testemunhas e

ao seu esforço de concentração

civilizacional para perceber a

correlação substancial entre a

destruição e a construção.

É claro que, porque as

testemunhas estão por

definição, antes do seu

“martírio”, alijadas de uma

posição estável de autoridade

secular, será secularmente

inconveniente reconhecer essa

correlação substancial; assim

como requererá pouco esforço

da Grande Cidade para impor

a inconveniência em questão.

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Por exemplo, um autor e

etnógrafo americano, crítico

da chamada “escola

tradicionalista” fundada por

René Guénon, o senhor

Benjamin Teitelbaum; tentou

retratar o tradicionalismo (ou

perenialismo) como

subversivo ou extravagante,

em uma entrevista a

professores do Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas

da UNICAMPI.

Um dos argumentos em favor

do que o Sr. Teitelbaum

aparentemente tomaria como a

radicalidade indecente

específica do tradicionalismo é

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a crítica tradicionalista

enfática do establishment

acadêmico, como se a classe

universitária estivesse em uma

condição degenerativa demais

para não ser objeto destacado

de oposição e vilipêndio. Esse

ponto de vista não é de modo

algum o teor da abordagem

literária de René Guénon, o

qual veria nisso, sem dúvida,

uma forma de ativismo bem

distante do que é típico da sua

forma de atuação.

Ainda que fosse legítimo fazer

essa atribuição que faz o Sr.

Teitelbaum, entretanto, se teria

que lidar com a consideração

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de que tanto Ortega y Gasset,

um filósofo talentoso que

inspirou a criação de uma

organização secularista como a

União Europeia, sem os

auspícios de um princípio

religioso ou “tradicional” no

sentido de Guénon; quanto

Max Horkheimer (Cf. “Senhor

Feudal, Cliente e

Especialista”, 1964), um

teórico marxista com prestígio

acadêmico; estudaram e

propuseram, na prática, o

fenômeno da crescente

degradação das classes

acadêmicas. A marginalização

ou queda do “nobre”, na

acepção de Ortega y Gasset,

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corresponde ao fenômeno do

desaparecimento ou

enfraquecimento crescente do

“especialista”, na linguagem

de Horkheimer.

Assim, a bandeira contrária ao

establishment acadêmico, ou

crítica dele, não é de modo

nenhum uma propriedade do

“tradicionalismo”.

Em adição a essas

considerações, e tornando a

perspicácia do Sr. Teitelbaum

tanto mais evidente, há o fato

da influência profunda e

avassaladora, a intervenção, de

René Guénon no meio

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acadêmico e literário europeu,

particularmente na França.

A alegação do Sr. Teitelbaum,

que vai acima, é apenas uma

amostra, é um exemplo da

acusação xamanística que

toma o efeito psíquico como

suficiente, mesmo apartado de

alguma contraparte

concepcional. A acusação não

apenas é baseada no

escândalo, mas ela funciona

justamente por causa disso.

A ausência da dualidade

“impressão-concepção” na

esfera secular impede esse

domínio mais externo de

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captar a gestação mais sutil

ocorrendo no “centro do

mundo”; porque as finalidades

da esfera secular-degenerativa

são diferentes das finalidades

da esfera da concentração

concepcional.

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270

Capítulo VI – O simbolismo

do figo e o sonho de Olavo de

Carvalho

Existe uma relação entre os

porcos-monteses da passagem

evangélica de Lucas 8:26-39 e

a tradicional associação da

montanha com a iniciação

(sendo os porcos, ou mais

especificamente o javali, um

símbolo tradicional do

sacerdote ou do clérigo).

Como os porcos da passagem

supramencionada caem em um

lago, consequentemente, há

relação entre essa passagem de

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Lucas e aquelas (e.g. Marcos

11:23) em que Jesus Cristo

fala a respeito de como uma

montanha pode ser lançada no

mar pela força da crença. A

conexão pode ser

suficientemente sugerida

tomando em conta que a

pérola (na sua raridade e valor)

pode se associar tanto à “fé

que move montanhas”, quanto

(como de fato o faz

etimologicamente) ao porco.

Entretanto, tal conexão pode

ser aprofundada com destaque

para os contextos de Marcos

11, Mateus 21, Gênese 3 e

Lucas 8.

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272

Um primeiro ponto a respeito

de Gênese 3 é que, segundo

Santo Tomás de Aquino, o

“fruto proibido”, do qual Eva

toma, guarda paralelismo com

o “fruto do ventre” de Maria.

Esse paralelismo é tanto mais

claro porque o fruto proibido

jazia “no meio” do paraíso

(Gênese 3:3); e Deus guarda

correspondência com o

simbolismo do “centro”. Ora,

assim como o “fruto de Maria”

guarda certa continuidade com

Maria, na medida em que um

filho guarda continuidade com

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273

a sua mãe, também é legítimo

supor que Eva guarda

continuidade com o fruto da

árvore do conhecimento do

bem e do mal. Essa

continuidade é tanto mais

compreensível porque a

mulher significa

potencialidade, processo,

gestação, precisamente o

ponto de vista acidental desde

o qual se acirra a divisão entre

o bem e o mal; como oposto

ao ponto de vista da

imutabilidade e do que é

inamovível e essencial, não

acidental. O gesto de tomar o

fruto, de Eva,

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consequentemente, significa o

projetar sobre Deus (centro e

essência) o que é não divino

(circunferência, acidente);

conversivelmente, a

Encarnação no ventre de

Maria significa o projetar (de

modo restaurador) sobre o que

é não divino (a mulher na sua

acidentalidade) o seu fundo

divino.

O tomar do fruto é associado à

morte, e “morte”,

etimologicamente (desde

conotação proto-germânica),

significa precisamente “ato,

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275

processo, condição”, isto é,

“acidente”.

Ora, ao referir a ordem divina

de não tomar do fruto

proibido, Eva (segundo a

versão Douay-Rheims)

testemunha que de acordo com

Deus apenas “talvez” eles

morressem caso tocassem e

comessem do fruto. Essa

contingência ou qualidade

relativa a potencialidade e

possibilidade (contida no

efeito do fruto), sendo

contínua com a qualidade

feminina, torna tanto mais

natural que ela tenha cedido à

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276

tentação da serpente. A mesma

contingência, ademais, guarda

correspondência com a

passagem (Mateus 7:6) em que

há a ordem de não lançar

pérolas aos porcos para eles

“talvez” não retaliem com

agressão. Ora, o paralelismo

do fruto proibido com a pérola

decorre não apenas de

“pérola” significar (entre

outros) “fruto”,

etimologicamente, mas

também do fato de o porco

guardar uma continuidade

relativa com a pérola, assim

como Eva guarda uma

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continuidade relativa com o

fruto.

Como consequência dessas

observações, se pode inferir

que, assim como o porco

corresponde no simbolismo

tradicional ao sacerdote

(etimologicamente, aquele que

sacrifica ou oferece o que é

sagrado), Eva possuía uma

condição sacerdotal e

sacrificial no paraíso. Como o

porco não poderia ter a si

lançada a pérola (que significa

“presunto” em latim,

significando o fruto da própria

mortificação) sem o risco de se

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escandalizar, Eva não poderia

se aproximar do fruto no

centro do jardim sem correr o

risco de se escandalizar. Esse

paralelismo é tanto mais

estranho por causa da

continuidade do porco com a

pérola (uma continuidade

inusitada, sem dúvida); a

continuidade de Eva com o

fruto, a despeito da proibição

de aproximar-se ela dele,

sendo similarmente inusitada.

Esse mistério exige certo

recuo a uma meditação a

respeito do que seja a condição

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sacerdotal. A própria

continuidade relativa de Eva

com o “centro” ou o fruto

sugere o que seja essa

condição. O sacerdote é como

o centro de onde a graça é

repartida; na esteira disso não

sendo senão inteligível que o

papa, estando no centro da

cristandade, seja o protetor e o

promotor por excelência dos

sacerdotes (graça), aquele que

os disponibiliza ao mundo. O

ponto no centro de uma roda

não se move, para que a roda o

faça; assim, é tanto mais

possível comunicar vida e a

guardar desde essa condição

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imóvel. De outro lado, o

sacerdote pode ser visto desde

o aspecto da sua aparente

oposição à vida, ao

movimento, na sua

inamobilidade. É o paradoxo

do desencontro meramente

aparente entre estar estático e

estar comunicado ao

movimento — que

corresponde à oposição entre

essência e acidente –; o que,

na fala da serpente, imprimiu

curiosidade e confusão em

Eva. Se é verdade que não se

tem acesso ao fruto central (ou

relativo ao inamovível), então

parece ser verdade que não se

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tem acesso aos demais frutos

(Gênese 3:1), que são a

circunferência que se move

comparativamente. O fruto

central corresponde a

“plenitude”, os demais frutos à

“copiosidade”. A tentativa de

consumir o fruto central

guarda, assim, a pretensão

figurativa de tornar o centro

inamovível móvel para melhor

se comunicar consigo, porque

o consumo supõe mudança e

movimento, o que guarda certa

correspondência com Gênese

6:2, a respeito da pretensão

aparente ou duvidosa de certos

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anjos de tomar mulheres por

esposas.

A pretensão, assim, sendo a de

se dirigir a mulher (que

representa o acidente ou

movimento) ao fruto

inamovível; a despeito do fato

de previamente ter havido

comunicação, e mesmo certa

continuidade, entre a mulher e

o fruto; como há comunicação

e continuidade entre o centro

da roda e a sua circunferência.

A perda da condição

sacerdotal e “divina”, assim,

decorreu da inadvertida

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tentativa de se aproximar de

uma condição sacerdotal e

divina que já havia. Por outro

lado, aquilo que Deus havia

prometido se encontrar no

fruto proibido, correspondendo

a uma contingência (“um

talvez”), era um movimento,

um domínio acidental, e não

inamovível; por oposição à

inamobilidade do se

permanecer no “paraíso de

prazer” (Gênese 2:15) alheio

às aflições associáveis ao

domínio acidental.

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Afinal, Eva procurou a

essência ou o acidente no fruto

proibido? O próprio fruto, ou

ao menos o se aproximar dele,

é essa distinção entre essência

e acidente (ou bem e mal). O

se associar a condição

paradisíaca ao centro sugere

uma concentração e

indiferenciação primordial

entre a essência e o acidente;

por isso a possibilidade de

uma diferenciação se tem

suficiente sugestão de que só

possa ter partido desde esse

próprio centro. O tomar do

fruto foi uma escolha

(acidente) e ao mesmo tempo

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uma necessidade (essência),

um mistério que está

subjacente no fato de que a

serpente “era a mais sutil das

bestas da terra que o Senhor

Deus tinha feito” (Gênese 3:1),

porque o termo “sutil” conota

um emaranhado ou uma

multiplicidade (diferenciação)

subjacente ou discreta. Essa

qualidade pode ser destacada

pela associação tradicional da

serpente com o número nove,

já que o nove se associa tanto

à universalidade ou

“plenitude”, porque

compreende todos os

algarismos arábicos, quanto

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(subjacentemente) à

particularidade, porque supõe

cada um dos algarismos

tomados separadamente

(“copiosidade”). Tanto essa

universalidade quanto essa

particularidade são subjacentes

ou a princípio latentes,

bastando comparar o nove

(chamado pelos pitagóricos de

“número sem sorte”) com o

número dez, cuja aparência de

completude etc. é mais

manifesta.

É uma intenção deste estudo

examinar, à luz desse

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paralelismo, qual o sentido de

Marcos 11:23, a respeito da

“montanha que se lança no

mar”.

Para isso recuo é necessário à

aos capítulos Marcos 11 e

Mateus 21. Ambos começam

com a entrada triunfal de Jesus

em Jerusalém. Mateus 21:1

refere que Jesus Cristo e os

seus chegaram a Betfagé (uma

cidade que significa “casa de

figos não maduros”). Marcos

11:1 refere que Jesus Cristo e

seus discípulos se

aproximavam (não refere que

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chegaram) à cidade de Betânia

(que quer dizer “casa de

figos”).

Em Marcos se refere a um só

jumento ou potro, em Mateus

a uma mula e sua cria ou

potro; sobre os quais senta-se

Jesus quando da sua entrada

triunfal. A dualidade como

associada ao potro (a mãe da

cria, já que o feminino se

associa à dualidade),

entretanto, não está ausente em

Marcos de todo, porque o

potro é achado “ante um

portão de fora no encontro de

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dois caminhos” (Marcos 11:4).

Logo, a mãe do potro

corresponde a essa dualidade.

Como o jumento tem uma

conotação satânica ou

pejorativa, e o sentar-se de

Jesus sobre o jumento

significa precisamente o

triunfo sobre o mal, a mãe do

jumento também tem uma

semelhante conotação, por isso

mesmo ambígua. O encontro

dos dois caminhos ao pé de

um portão supõe tanto a

advertência a respeito do

“portão estreito” e os dois

caminhos que se pode seguir

(Mateus 7:13), caminhos

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associáveis ao “império de

bronze” (e ao discurso

dialético), quanto a ideia de

uma indistinção entre os dois

caminhos na escala da

eternidade (eternidade na qual

todo mal é dissipado ou

perfeitamente sujeito ao jugo

divino, como o jumento e o

estranho dono do jumento

estão sujeitos à entrada

triunfal).

A ideia dessa indistinção

permite devolver o presente

estudo ao paraíso de Gênese,

tanto por causa de uma alusão

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a uma indistinção primordial

entre bem e mal; quanto por

causa do jogo temático com

“figos”, maduros ou não

distintamente imaturos em

Marcos (“Betânia”) e imaturos

em Mateus (“Betfagé”);

porque a primeira coisa que

Adão e Eva fizeram ao

apreender os efeitos de tomar

o fruto proibido foi costurar

para si mesmos aventais com

folhas de figueira. A

proximidade das localidades,

Betânia e Betfagé, sugere a

proximidade paradisíaca entre

bem e mal. Tais sugestões

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parecem implicar que o figo é

o próprio “fruto proibido”.

Ora, o termo “potro” na versão

Douay-Rheims é referido

como “colt”, que sugere tanto

o jumento jovem, quanto o

cavalo jovem, e até mesmo

(em um sentido

etimologicamente mais

remoto) o javali jovem,

também a criança humana

jovem. Que Marcos fale

apenas de um jumentinho, e

Mateus de um jumentinho e

sua mãe, significa

precisamente a tentativa de

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propor a proximidade entre

antigo e novo, maduro e

imaturo, ápice e gestação,

entre bem e mal, entre

essência e acidente. Como

“potro” se refere,

etimologicamente, também a

crianças, as crianças

exclamando “Hosana!” em

louvor de Jesus no templo dez

versos mais adiante, em

Mateus 21:16, são um

prolongamento do potro (isso

é reforçado porque tal

prolongamento é anterior ao

encerramento do tema da

figueira, iniciado no início do

capítulo discretamente). A

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simultaneidade do louvor das

crianças e da indignação dos

escribas e sacerdotes do

templo corresponde à

simultaneidade ou

proximidade indistinta

primordial do bem e do mal,

da mãe e da cria, dos dois

caminhos.

Essa mesma proximidade entre

bem e mal é significada pela

multidão durante a Entrada

Triunfal a jogar mantos e

ramos sobre o caminho. Em

Mateus 24, entre outros, uma

continuidade é estabelecida

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entre “sobreveste” e “casa”,

significando que as duas

coisas, sendo fruto do criar

humano, guardam certa

correspondência com a

dimensão psíquica humana. O

lançar a veste sobre o caminho

é um oferecer ou submeter os

próprios pensamentos a Cristo,

enquanto os ramos (que

etimologicamente significam

“braços” ou “armas”)

significam o lançar ou

submeter a Cristo as próprias

ações. Ora, pensamento e ação

correspondem a essência e

acidente, e, portanto, a “bem e

mal”, significando mais uma

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sugestão alegórica da

associação da Entrada Triunfal

com a condição paradisíaca.

A proximidade indistinta entre

bem e mal é significada,

também, pela exclamação

“Hosana!”, já que ela significa

tanto um louvor grato (bem)

quanto um pedido de socorro

(mal).

Em Marcos 11:12-14 é

narrado o fato de Jesus

amaldiçoar a figueira por não

haver dado fruto, sem que ela

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secasse de imediato, mas

secasse miraculosamente

apenas quando da volta à sua

visita ao templo. Em Mateus

21: 18-22 é narrado o fato de

ela secar imediatamente, e no

contexto da volta do templo.

Isso também sugere uma

proximidade e indistinção,

entre o potencial e o actual (ou

mal e bem), que correspondem

ao acidental e o essencial.

Ora, nessa esteira parece que

há certa continuidade entre

figo (o fruto proibido), e os

aventais costurados por Adão

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e Eva com folhas de figueira.

Há certa similaridade

vocabular entre “figo” (no

inglês “fig”) e palavras como

“figment” ou “figure”, que

derivam de certa raiz que

significa “aquilo que é

formado, construído”. Existe

certo laço profundo entre

aquilo que é incriado (o fruto

proibido) e aquilo que é criado

pelo homem (os aventais).

Esse laço é alusivo da unidade

de fundo entre bem e mal,

entre essência e acidente.

Ademais, os aventais se

associam, etimologicamente, à

conotação de algo que é “útil”

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como oposto a “bom em si

mesmo”, sugerindo essa

oposição mais uma unidade

subjacente na oposição.

A associação, aliás

multimilenária, entre o figo e

certo gesto sexual insultuoso,

deu origem ao termo

“sicofanta”. Assim, o figo

necessariamente sugere,

ordinariamente, o mal, como a

nudez tornada vergonhosa pela

ingestão edênica do figo. Esse

aspecto do figo é mais uma

sugestão da proximidade entre

bem e mal, ou, no jargão

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aristotélico, do fato de que

ambos vício e defeito, opostos

um ao outro, guardam certa

relação com um centro de

equilíbrio de que são uma

imagem ou projeção.

Tais considerações permitem

retornar à relação entre os

porcos-monteses gadarenos de

Lucas 8:26-39, que caem de

um precipício para o lago, e a

passagem (no contexto da

figueira tornada seca) de

Marcos 11:23, sobre a

montanha lançada no mar pela

força da crença. Esse

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paralelismo termina de

resolver o mistério de quão

estranha é a continuidade

subjacente entre o porco e a

pérola. A pérola é um objeto

do oceano ou do meio

aquático, e não tem vida;

enquanto o porco é terrestre, e

mesmo inclinado à montanha,

e vivente. A pérola é rara, o

porco é comum. A pérola

encoraja, o porco não, ou se o

faz enquanto símbolo do

sacerdote, o faz de um modo

mais sutil e indireto, como o

sacerdote. O encontro desses

dois objetos é tão inusitado

quanto o encontro entre a

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montanha e o mar, como o

encontro entre o bem e o mal,

como o encontro entre

essência e acidente.

A montanha supõe um

conhecimento sagrado perene

(o bem), as águas a

mutabilidade das formas (o

mal). De outro lado, a

possessão demoníaca dos

porcos a pastar na montanha

associou a montanha (bem) ao

mal, e fez que as águas (mal)

protagonizassem um bem ( o

sufocar dos porcos tornados

maus pela possessão). Esses

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303

paradoxos são prolongamentos

do simbolismo do “fruto

proibido”.

Há um aspecto do simbolismo

da Grande Cidade apocalíptica

que adiciona ao mistério do

figo (conforme pretendo

presentemente propor). Se

trata do fato de a meretriz,

uma variação da Cidade, estar

sentada sobre “muitas águas”,

como as águas nas quais a

montanha é lançada; que

constituem a um tempo a besta

e o mar de onde sai a besta

(significando uma indistinção

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pejorativa entre princípio e

principiado, isto é, uma

perversão da ideia de

hierarquia). A meretriz, à luz

disso, e no seu caráter

degenerativo, parece

corresponder à montanha no

sentido pejorativo da

associação sua com os porcos

gadarenos.

Esse repousar sobre as águas

sugere um mistério justamente

porque as águas não servem

para se repousar. O verbo

usado no texto é “sentar”,

além de “governar” as águas.

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A ideia de estar em inatividade

(repouso) está ligada à ideia de

governar, por isso a cadeira é

um símbolo do poder. Mesmo

o flutuar nas águas, embora

possa se associar ao lazer ou

deleite conversíveis com

repouso, não se adequa à ideia

de repouso perfeitamente;

porque jazer na água requer

constante estar atento, e de

todo modo não supõe

inamobilidade mas sim

constante deslocar-se.

Esses traços supõem um

paralelismo com a “mulher

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306

vestida do sol”, a qual se acha

no deserto como a meretriz. O

“sol” corresponde ao “rei dos

reis” que está no seu ventre; o

qual necessariamente repousa

no seu ventre ou interior. O

paralelismo indica que de uma

mulher para a outra foi

invertida a função; isto é, a

mulher vestida do sol serve

como a “cadeira” onde o

princípio se assenta; apesar de

que essa condição é efêmera

por causa do parto, do dar à

luz próximo; enquanto a

meretriz usa as “águas” (que

simbolizam precisamente a

ausência de um centro ou

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307

princípio) como “cadeira”. O

paralelismo supõe uma

inversão.

Essas noções naturalmente

guardam correspondência com

certas noções do hinduísmo, a

saber, “purusha” e “prakriti”,

as quais não chegam a

coincidir com a dualidade

escolástica de “ato” e

“potência”, mas guardam

consigo correspondência. A

palavra “purusha” significa

etimologicamente, em parte,

“cidade em repouso”. As

cidades são expressões

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308

externas e extensivas de

concepções, nisso

simbolizando que a origem do

extensivo ou quantitativo é

uma qualidade desprovida de

todo valor quantitativo, e

repousando ou “habitando” a

quantidade, independente da

sua manifestação particular. A

cidade, portanto, é a expressão

externa, potencial e

“substantiva” de um princípio

interno, actual e “essencial”. A

noção de purusha significa

justamente a noção da unidade

subjacente entre esses dois

polos, e a sugestão do caráter

mais elevado do polo “em

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repouso” ou alheio a todo

acidente. Ora, quando isso é

comparado com o paralelismo

apocalíptico entre as mulheres,

se nota que a mulher vestida

do sol é a cidade nesse sentido

(“purusha”), significando que

há uma unidade substancial

entre ela e o “rei dos reis” no

seu interior, que é o “sol” cujo

resplandecer imaterial sugere o

repouso ou a inatividade.

De outro lado a meretriz

parece estar desolada e

apartada desse interior solar, e

o repousar dela sobre as águas

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310

significa um ecoar ou imitar o

interior em repouso de que ela

carece. Quando o polo

essencial está presente (sol), o

polo substancial é ordenado e

purificado (mulher). Quando

ele está ausente, e portanto

quando está ausente a

dualidade de “interior”

(concepção) e “exterior”

(impressão), o polo

substancial-exterior se arroga

tiranicamente a função de

repousar.

Essas observações não

esgotam o assunto, porque

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311

sucede que o texto

apocalíptico diz que as

“muitas águas” não toleram

pacificamente o serem usadas

como “cadeira”, o que no fim

chega até a ser previsível, e

eventualmente devoram (na

forma dos chifres da besta,

significativamente aspectos

“sem vida” da besta) a carne

da meretriz; fazendo com que

desde a sua pretensão de

repousar sobre as águas e

assim imitar a função de um

seu interior e unidade, ela

termine no interior das águas

feita em pedaços. Uma

exemplificação contingente

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312

disso seria o tomar riquezas

materiais (correspondendo ao

polo substantivo) como

valores auto-bastantes e não

meramente simbólicos ou

alusivos de uma riqueza

interior, assim se submetendo

ao apego a elas desembocar

(sem a intervenção essencial

de um elemento “vivente”) na

constatação de certa

insuficiência no se orientar, e

em sofrimento.

A esse respeito é significativo

que no filme “Lara Croft:

Tomb Raider” (2001) a

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313

protagonista tenha dois

grandes ajudantes, o mordomo

antiquado Hilary, e o

tecnologista Bryce. O

mordomo Hilary se associa à

casa, e guarda a “essência” do

seu interior, não obstante de

modo degenerativo (qual

significado pelo perda do pai

de Lara pairando sobre o

ambiente doméstico). Não

existe grande distância entre

uma mansão e uma cidade, em

termos de simbolismo,

especialmente se a mansão é

nobre (como no caso do

filme), uma vez que a cidade é

apenas uma extensão ou

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314

prolongamento do seu coração

ou palácio central. Bryce, de

outro lado, corresponde ao

“mar”, ao idiossincrático e

sem forma. Assim, é tanto

mais significativo que Bryce

não habite no interior da

mansão, assim como as

“muitas águas” não habitam a

meretriz, mas esta usurpe a

condição de princípio interior.

Com mais de oitenta quartos

na mansão, Bryce prefere

viver em um trailer fora.

Esse detalhe simboliza a

impossibilidade daquilo que

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não é interior ou principial

(“as muitas águas”) de habitar

e vivificar a “mansão”. As

“muitas águas”, entretanto,

sendo algo “que era e não é”,

são um reflexo, conquanto

degenerado, do sol interior; e

por isso foram geradas

remotamente por esse sol e

têm uma função a

desempenhar na ordem total

das coisas. Essa é uma

explicação para o título dado a

Maria de “estrela do mar”,

significando a conciliação em

si da oposição entre bem e

mal. E sucede que o filme Lara

Croft: Tomb Raider (2001)

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316

gira em torno do simbolismo

da estrela e do mar, embora

não caiba aqui maiores

detalhes.

A pretensão da filosofia de

Olavo de Carvalho de

“eliminar a dualidade do

racional e do intuitivo,

reduzindo tudo ao intuitivo”

corresponde a essa tentativa

das águas de devorar a Grande

Cidade, a Meretriz. É claro

que, porque as águas guardam

uma unidade subjacente com o

“sol” que é o princípio remoto

da estabilidade da Grande

Cidade, essa pretensão não é

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317

infundada sob todo ponto de

vista; nem é possível negar

que esse processo de digestão

tenha uma razão de ser

benéfica desde certo ponto de

vista mais elevado.

Esse ponto de vista elevado, o

fundo benéfico por trás da

dissipação das águas, é como a

figueira estéril do evangelho

cuja associação discreta com o

figo está dada pela

comparação narrativa de

“acto” (Mateus 21:18-22) e

“potência” (Marcos 11:12-14),

referida antes. Assim, o fruto

da árvore da vida se esconde

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318

por trás da figueira estéril,

como o sol por trás das muitas

águas.

Isso equivale, implicitamente,

a uma resposta a certo

missionário anticristão, o

Rabino Michael Skobac, o

qual corretamente observou

que o Antigo Testamento

propõe que o messias não

praticaria a violência, e no

entanto Jesus Cristo foi

violento com a figueira, a

fazendo secar.

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Se a figueira representa a

acidentalidade de superfície

escondendo o fruto da vida,

então o fazer ela secar tem o

sentido, por exemplo, de

representar a dissipação da

antiga religião, para dar à luz

uma nova. Tem o sentido de

representar a morte do próprio

Jesus na sua aparência

terrestre (correspondendo ao

endereçamento do jovem rico,

que o chamou “bom mestre”),

a “impressão” se dissipando

para dar lugar à concepção, à

vida celeste. A violência

alegada pelo rabino é só uma

benevolência envolta em

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mistério; um ato cirúrgico, não

um mal em detrimento de

algum bem, que define a

violência em sentido ordinário.

De todo modo, o acirramento

da impressão de que o devorar

das águas é tão só o que parece

ser (olavismo e teoria da

presença), corresponde de

algum modo à impressão do

rabino de que o secar a

figueira é tão só o que esse ato

parece ser; isto é, uma vez

perdida de vista a dualidade de

“ato” e “potência” (etc.)

supramencionada.

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321

Essa impressão de algum

modo é contínua com um

sonho que Olavo de Carvalho

mencionou em alguma

gravação pública, sonho em

que ele, Olavo, se via no

paraíso; mas a sua esposa, no

paraíso, era uma criança e não

uma pessoa adulta. Se trata

mais propriamente de um

pesadelo. Esse sonho é

análogo àquele de Maquiavel:

o sonho de que no inferno

estavam os pensadores

clássicos que Maquiavel

admirava, e no paraíso pessoas

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de caráter inferior ou

desinteressante, desde cuja

consideração Maquiavel

preferiu habitar o inferno.

Nos dois casos o paraíso é

apresentado não como um

lugar ideal, mas como um

lugar infernal. Isso tem a ver

com o paraíso corresponder à

Grande Cidade, na sua

condição degenerativa, e o

inferno corresponder às águas

que devoram a cidade, as quais

têm um sentido

intrinsecamente ambíguo,

maléfico e benéfico.

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323

O “paraíso” de Olavo traz a

sua esposa em uma faixa etária

“infernal”. Esse fato sugere

que o atribuir à fase primitiva

ou “jovem” do discurso, que é

o “império de ouro” (poesia),

uma qualidade insuficiente

relativa ao “principiar” a tão-

só impressão ou possibilidade;

em detrimento da concepção;

voltou para assombrar o seu

autor. A esse respeito é

significativo que, de um lado,

a infância seja associada (por

Robert Greene) à natureza,

que, como visto, corresponde à

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impressão (ou à tão-só

possibilidade); porque a

ingenuidade e demais

características infantis têm a

aparência de algo “natural”,

não premeditado; de outro

lado, que o discurso poético,

enquanto discurso ou

“construção raciocinante”, seja

necessariamente “feito por

mãos”, e sob esse aspecto seja

artificial. É esse paradoxo,

esse serem Cidade e águas, luz

lunar e mar noturno, paraíso e

inferno, dois lados da mesma

moeda, que parece assombrar

o sonho em questão; desde a

falta do atinar que ser algo

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325

“natural”, do mar noturno, não

equivale a ser “não feito por

mãos” sob todo ponto de vista;

isto é, o ser algo “natural” tem

diferentes acepções, a mais

elevada (“luz solar”)

dissipando a dualidade e ao

mesmo tempo clarificando o

vínculo entre essência e

acidente.

A “fase de ouro” é vista como

insuficiente, e por isso mesmo

o seu caráter paradisíaco é

questionado. Onde Olavo

deveria ver o princípio solar

habitando a Grande Cidade

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326

(purusha), ele vê a Grande

Cidade extensa resistindo à

sua assimilação às águas, ou

sendo devorada pelas águas;

daí a estranheza da “esposa

infantil” (não extensividade).

A Grande Cidade representa a

própria esposa, ambas

representam o mundo secular.

Para Olavo de Carvalho se o

mundo secular não é

vivificado ou principiado no

seu curso pelas “muitas

águas”, que representam um

estágio ulterior de

desenvolvimento, não o

estágio primaveril (“império

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de ouro” e purusha), não é

realmente possível se

relacionar com o mundo

secular, e a tentativa de fazê-lo

soa absurda e infernal; assim

como é absurdo que as “muitas

águas” devorem uma cidade

não dilatada ou não extensiva

(“esposa infantil”).

Que a esposa represente o

mundo secular é indicado, por

exemplo, em que um dos

principais sinais simbólicos do

assumir sua vocação, da parte

do nobre, é o matrimônio, o

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qual encarna o seu senso de

dever.

A atuação solar sobre a mulher

“vestida do sol”, mulher que

corresponde às duas

testemunhas; é uma atuação

“exilada” ou apartada em

aparência do centro da arena

secular (“deserto”). É aí que

está a condição paradisíaca;

assim como a condição

paradisíaca está no “olho da

agulha”, como oposto ao

“camelo”.

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Capítulo VII – Simbolismo do

filme “O náufrago” (2000)

O filme “O náufrago” casa-se

com o tema presente, acredite

o leitor se quiser.

Na história, estrelando o ator

Tom Hanks, o protagonista

chamado Chuck Noland é um

funcionário da FedEx, uma

empresa de remessa expressa

de correspondência, e um

homem num relacionamento

sério com uma mulher

chamada Kelly Frears (eles

moram em Memphis,

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Tennessee). Ele desempenha

atividades no exterior, e

supervisiona ou treina outros

funcionários, sendo uma

pessoa obcecada com a

administração otimizada do

tempo. O filme destaca a sua

atuação na Rússia, antes de um

acidente de avião que o torna

um náufrago, com um

propósito.

A Rússia expressa a ideia de

uma civilização cujos

princípios secularistas ou

existencialistas entraram em

relativa e desvelada

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decomposição (fim da Guerra

Fria), numa espécie de

interstício ou suspensão

desafiando o senso comum de

propósito. Isso é uma espécie

de “autoexílio civilizacional”,

e um “congelamento do

tempo”.

No exílio, como o que viveu

Chuck Noland por anos em

certa pequena ilha não

habitada (e sem significativa

esperança de resgate), depois

do acidente de avião; ele foi

cortado ou separado do

“movimento” e da

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“transmissão palpável” em

relação ao mundo secular.

Essa condição foi tão

purificadora, em certo sentido,

quanto foi não purificadora a

pretensão de Eva (no paraíso)

de se ligar de um modo

palpável ao fruto “no centro”

inamovível, a fim de tornar

mais palpável a relação entre o

fruto no centro e os demais

frutos.

A ilha do naufrágio representa

esse não mover-se, esse estar

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apartado das transformações

do mundo secular. Significa o

próprio Jardim do Éden; tanto

quanto a condição paradisíaca

está simbolizada na vida

monástica, a comunicação

entre a falta de movimento no

monastério e o movimento do

mundo ordinário sendo sutil

em paralelismo com ser sutil a

comunicação do fruto no

centro do jardim com os

demais frutos.

Existem dois sinais da

purificação pela qual passa

Chuck Noland na ilha,

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enquanto tenta sobreviver no

ambiente “natural” ou “não

feito por mãos”. O primeiro é

a sua dor de dente e o arrancar

o dente, para aliviar a dor.

O dente simboliza uma

concupiscência, um desejo,

especificamente (em um

sentido mais ou menos

destacado) no contexto de

desejar provar o que é relativo

ao “ter todo tempo do mundo”,

à juventude; daí a expressão

inglesa “colt’s tooth” (“dente

de potro”), que significa

“devassidão”, “desejo”. Não

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por coincidência a parceira de

Chuck Noland, Kelly Frears,

se casa com o dentista de

Chuck durante o naufrágio. A

função do dentista é cuidar da

manutenção do atendimento da

concupiscência.

O sacrifício da

concupiscência, da parte de

Chuck e desde a ilha (desde o

“centro”), tem a sua

contraparte na manutenção da

concupiscência no mundo

secular (na circunferência). A

comunicação entre esses dois

termos, “sacrifício” e

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“atendimento da gratificação”,

está no centro do mistério da

história sobre o paraíso.

Um outro sinal do caráter

purificador da estadia de

Chuck na ilha, tem a ver com

o seu “amigo de mentirinha”,

uma bola de volleyball

(contida em uma das remessas

da FedEx) que Chuck apelida

“Wilson”, e com quem

mantém “conversas” para

exercer o próprio senso de

urbanidade e não se sentir tão

só.

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337

Wilson é um ídolo, de certo

modo. Não só porque é um

objeto “feito por mãos” como

as estátuas, e literalmente

impresso com a marca de

sangue (este uma das três

testemunhas terrestres) com o

formato da mão de Chuck. Ele

é um ídolo porque é a

manifestação da necessidade

de se ser encorajado ou

vivificado por aquilo que não

tem realmente vida. Wilson,

com efeito, representa o

acidente que perdeu o vínculo

com o essencial, o

existencialismo.

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338

O contínuo se desgastar, de

Wilson, expressa a contínua

“purificação” de Chuck

Noland; o clímax disso sendo

a perda de Wilson em alto-

mar, no meio das “muitas

águas”, quando da fuga

decisiva em relação à ilha.

Como Chuck, ao perder

Wilson, se tornou menos

“acidental”, menos uma

sombra de si; assim como o

personagem Frodo Bolseiro

(Senhor dos Aneis) ao destruir

o “um anel”; se pode dizer que

de certo modo Chuck e Wilson

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339

são o mesmo, ou o segundo

era um espelho do primeiro.

A forma de atuação no mundo

secular contemporâneo, das

pessoas dedicadas à

contemplação, tem esses ares

dramáticos.

Após o seu regresso ao mundo

secular Chuck Noland não é

mais o mesmo. Os detalhes

simbólicos por trás disso são

intrincados, e desnecessários

ao escopo do presente narrar.

Baste a menção de que o

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protagonista tenta de algum

modo “retomar” de onde

parou, dirigindo aos

destinatários as encomendas

de que se valeu no naufrágio,

entre elas uma bola de

volleyball nova em folha.

No retorno de uma das

entregas, não tendo sido

atendido à porta mas tendo

deixado a encomenda na

soleira, Chuck estaciona o

carro em uma encruzilhada e

consulta um mapa. Uma

mulher estaciona ao lado e lhe

orienta sobre o caminho, e

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sucede que ela é a mesma

pessoa (sem que ele se dê

conta de imediato) a quem ele

acabara de deixar a

encomenda, uma mulher

chamada Bettina Peterson. A

encomenda dela era a única

que ele não tinha aberto

durante a sua estada na ilha.

Essa encomenda representa o

“fruto proibido”, e não a haver

aberto representa o se apartar

da tentação da serpente. Há a

sugestão de que o conteúdo no

embrulho se associa ao

símbolo das “duas asas de

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342

anjo” que estão tanto no

embrulho quanto na

caminhonete de Bettina

Peterson. As duas asas se

associam às “duas asas de uma

grande águia” que são dadas à

mulher vestida do sol

(Apocalipse 12:14) no exílio

dela no deserto. A dualidade

das asas guarda

correspondência com as duas

testemunhas, e com o próprio

fruto proibido.

A Ms. Peterson, com efeito, é

uma espécie de contraparte de

Chuck Noland, assim como os

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elementos do fruto (“bem e

mal”), por exemplo em que

aparentemente ambos tiveram

relacionamento amoroso

interrompido ou rompido.

O encontro e simultâneo

desencontro entre eles é mais

uma variação do mistério da

aparente não comunicação

entre o fruto no centro do

jardim e os demais frutos, isto

é, o mistério de uma

comunicação sutil, como

oposta a palpável.

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344

A cena final em que Chuck

mira para as direções de

estrada, no centro da

encruzilhada, representa o

inesperado se achar no

“centro”, apartado de todo

acidente ou possibilidade

particular munido da

“suspensão temporal

máxima”; pressionado pela

pergunta “E agora?” como

quem tivesse terminado de

ouvir a canção do rouxinol.

Ele saíra da ilha mas a ilha não

saíra dele, porque a eternidade

compreende todos os tempos e

lugares.

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A mesma situação retratada no

filme acometeu o Apóstolo

Pedro. Certo estudo histórico

de um autor chamado Sean

McDowell sugere que os

historiadores seculares

consideram estranho Dionísio

de Corinto (segundo registrou

Eusébio de Cesareia) a

mencionar em carta ao Papa

Sóter, séc. II, que os apóstolos

Pedro e Paulo tenham fundado

a Igreja de Corinto juntos, e

tenham ensinado em Corinto

juntamente, assim como o

fizeram em Roma. A

estranheza se deve ao fato de

Atos dos Apóstolos, e as

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epístolas, não mencionarem

explicitamente esse fato,

quando houvera oportunidade

ampla de o fazer.

É possível que a explicação

disso tenha a ver com o

Apóstolo Pedro ser o

personagem “Áquila” (que

significa “águia”), com quem

Paulo esteve hospedado em

Corinto. A passagem de Atos

18 não esclarece se Áquila e

sua esposa (Priscila) tinham

sido convertidos e batizados

antes (ou depois) de encontrar

e receber Paulo na sua morada

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de exílio, nem tampouco

explica por que o Imperador

Cláudio expulsara os judeus de

Roma, trazendo inconveniente

para Áquila.

Logo após a hospedagem de

Paulo eles (Paulo e Áquila) se

associam na indústria de

fabricação de tendas, o que

seguramente tem um sentido

esotérico. Em primeiro lugar

porque “tenda” significa a

formulação psíquico-

discursiva que ampara uma

situação civilizacional

principiante (por exemplo, no

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tema da tenda de Noé após o

dilúvio), como oposta a uma

situação civilizacional

avançada, qual ilustrada na

construção do Templo de

Jerusalém. Em segundo lugar

porque, de acordo com um

canonista americano chamado

Charles Augustine, o Apóstolo

Paulo tem como título sacro

“fazedor de tendas”.

O motivo para a expulsão dos

“judeus” de Roma, portanto, o

próprio paralelismo com a

passagem em Gênese a

respeito da “tenda” de Noé

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sugere qual seja: esse

paralelismo é que assim como

Noé escandalizou o seu filho

Cam quando foi achado

“embriagado” na sua “tenda”,

o Apóstolo Pedro escandalizou

os romanos ao transmitir um

conhecimento tecnicamente

judaico. Isso de algum modo

confirma certas lendas não

bíblicas sobre São Pedro ter

sido uma figura bem

conhecida de Roma, qual é

sugerido em certas tradições

hagiográficas em torno da

biografia do Papa Alexandre I.

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Na esteira disso é mais do que

natural que um historiador dos

tempos de Mânio Glábrião

(um cristão primitivo da elite

romana), como Cassio Dio,

tenha falado a respeito de uma

perseguição de políticos

importantes por causa da

adesão deles a certas

novidades judaicas, se tratando

evidentemente da adesão ao

cristianismo.

No cenário em questão a

dificuldade de Pedro

corresponde ao que os

estudiosos de Stanford, Dan e

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Chip Heath, chamaram “a

maldição do conhecimento”

(Cf. o livro “Ideias que

colam”), o conhecer tão

perfeita e extensivamente um

assunto quanto a ignorar a

extensão da ignorância alheia.

Pedro conhecia tão

perfeitamente a unidade

subjacente entre essência e

acidente, o vínculo íntimo no

tecido de continuidades entre o

cristianismo e o judaísmo, que

ele tinha dificuldade de

perceber a incapacidade alheia

de perceber esse vínculo. Isso

é provavelmente suficiente

para explicar o conflito entre

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Pedro e Paulo entre os gálatas,

e é significativo a esse respeito

que São João Crisóstomo

tenha proposto que esse

conflito foi algum tipo de

“encenação”, portanto não

sendo um conflito em um

sentido ordinário.

Paulo era capaz de ver a

ignorância alheia, inclusive o

seu protagonismo na fundação

da Igreja de Corinto tem

precisamente a ver com o

sofrimento de ter de

testemunhar essa ignorância e

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ainda se carregar de esperança

como pregador.

Assim como Noé (qual Adão e

Eva) teve de ser “coberto”, a

fim de se cobrir a sua nudez e

remediar a sua embriaguez,

São Pedro teve de ser

“coberto” na passagem para

contornar a dificuldade de

explicar a sua dificuldade

específica, uma dificuldade

paradoxal decorrente de uma

vantagem; incluso coberto

com um “ofício industrial”, o

que lembra os aventais de

Adão e Eva.

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O papel de São Paulo junto a

Pedro, assim, era o de servir

de “filtro” ou intermediador a

promover um ajuste

discursivo. Se Pedro é o

vigário de Cristo, Paulo é um

reflexo vicário do sopro de

Cristo sobre os discípulos

(João 20:22), o qual sopro é o

Espírito Santo. Se Cristo é o

grão de trigo que tem de

morrer para frutificar (João

12:24) – o fruto se associa ao

Espírito Santo, enquanto

distribuidor de dons e

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“consolador enviado” –, Pedro

tinha de se manter em relativa

obscuridade, por assim dizer

“morrer” para o mundo, a fim

de a sua condição

contemplativa e concentrada,

inamovível e movente,

permitir a atuação e a

intervenção de Paulo no

mundo.

Na associação de “Pedro” com

“águia” é curioso, conforme

antes observado, que a

linguagem bíblica permita um

paralelismo entre a “rocha não

cortada por mão” (Daniel

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2:34) e as águias reunidas em

torno dos corpos (Mateus

24:28); porque o nome

“Pedro” basicamente significa

“rocha”.

O detalhe de que “Áquila” fora

nascido em Pontus, na

Anatólia, também é

significativo. Esse termo,

“Pontus”, sugere

etimologicamente tanto

“ponte”, donde vem

“pontífice”, quanto “mar”,

donde está sugerida a ideia de

multiplicidade e de aparências

irreconciliadas ou distintas. O

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cenário da atuação apostólica é

justamente o de conciliar

unidade e multiplicidade, ou,

mais alegórico, o fazer o

obscuro chegar ao claro, a

águia chegar ao corpo.

Nesse sentido, tem conotações

subjacentes o detalhe de que

Áquila era casado com uma

mulher chamada Priscila (São

Pedro era casado, embora

decreto do Papa São Sirício

deixe claro indiretamente que

ele estava obrigado, como

clérigo, a se abster de

relações). O termo “Priscila”

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conota etimologicamente, a

ideia de “anterior”, e também

de “superior”. Isso sugere o

“oriente”, que é superior

porque anterior

(concentração). Disso decorre

que Priscila pode conotar

adicionalmente a Igreja como

oposta à sinagoga, isto é, que a

Igreja é a expressão não

degenerada ou apartada de

desvios, em relação à

sinagoga, como Cristo é

associável à semente

precedendo o desenvolvimento

do fruto e a eventual

decadência do fruto. De outro

lado, a palavra “Priscila”

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também conota “posterior”,

não apenas “anterior”, o que é

uma ambiguidade inerente à

eternidade do caráter doador

de vida do Verbo, e ao caráter

da Igreja de fundação e algo a

ser desenvolvido e a frutificar.

Um último ponto é que o

nome “Áquila” tem um

fonema que une “quê” e “ele”,

e isso é uma expressão

invertida de parte dos nomes

“Melquisedeque” e

“Melchior”. A etimologia de

“Melquisedeque” é “rei de

justiça”, em que o fonema

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discutido corresponde a “rei”.

Esse paralelismo sugere a

associação do poder real ao

segredo; e do poder temporal,

“externo”, com um reflexo de

espelho em relação ao poder

exercido em segredo.

Essa sugestão também é

contínua, de algum modo, com

a ideia de que o Apóstolo

Pedro foi crucificado de

cabeça para baixo, de modo

invertido; para significar o ser

ele um reflexo do Pastor

Eterno, não um estrito

equivalente.

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No entanto, os dois apóstolos,

Pedro e Paulo, não apenas são

em aparência igualmente

associados à Sé Romana (por

exemplo, em um padre como

Santo Irineu, séc. II); como se

diz que a Festa de São Pedro e

São Paulo é um dos dias mais

sagrados do calendário

litúrgico.

É um dos alegados trunfos do

filósofo Olavo de Carvalho

contra René Guénon que este

último tenha proposto como

distintas as noções metafísicas

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da “impossibilidade de

manifestação” e da

“possibilidade da não-

manifestação”; sem, de acordo

com Olavo; reparar que essas

noções são estritamente

idênticas.

Entretanto, porque há um claro

paralelismo entre a atuação

“mais escura” de Pedro, e

“mais às claras” de Paulo,

numa unidade subjacente

indicada pela festa

supramencionada; se pode

concluir que essa unidade

subjacente na distinção entre

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as noções suprassensíveis é

precisamente o que a literatura

guenoniana intencionou

indicar.

Aparentemente, Olavo ignorou

a sugestão de Guénon (por

exemplo contida em um

estudo como “O Esoterismo de

Dante”) de que a linguagem

sacra guarda aquilo que é

significativo precisamente no

que escapa ao ordinariamente

palpável, e reside no que é

fugidio e sutil.

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A distinção e equivalência em

questão é precisamente uma

das camadas de sentido da

expressão “purusha” (“cidade

em repouso”), em que a

“possibilidade da não-

manifestação” corresponde ao

“repouso”, e em que a

“impossibilidade de

manifestação” corresponde à

“cidade”, a qual denota

necessariamente uma não

transposição da concepção

para o “mundo secular”

(“impressão”), porque uma tal

transposição é

necessariamente imperfeita ou

aquém. Os dois aspectos são,

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no fundo, idênticos. Isso

também é sugerido pelo ter

Machado de Assis apresentado

(no romance “Esaú e Jacó”) os

irmãos “Pedro” e “Paulo”,

cujo nome de batismo fora

inspirado nos apóstolos, como

simultaneamente gêmeos e de

distinto caráter; e a vida

suspensa da moça que os amou

(“transforma-se o amador na

coisa amada”) a expressão de

possibilidade e

impossibilidade simultâneas e

conversíveis.

O se recusar a escolher um

deles, da moça Flora,

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corresponde ao se apartar da

arena secular da parte das

“duas testemunhas

apocalípticas”. Logo, está

sugerida certa degeneração ou

cegueira secularista na rejeição

das noções guenonianas em

questão.

Friedrich Nietzsche teria dito,

antes de morrer: “Se há um

Deus vivo eu sou o mais

miserável dos homens.” Se

Olavo de Carvalho

concordasse com o conteúdo

do presente livro, ele teria de

sentir-se não muito diferente.

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Ante um carnaval de absurdos,

a resposta escandalizada às

vezes vem de modo

semelhante a duas “faces” ou

versões possíveis da figueira

amaldiçoada. De um lado está

Ofélia, delirante, a balbuciar

“Eu enchi o mundo de rosas, e

guardo nas mãos espinhos!”.

De outro está Laertes, a não

esperar nem conceder

misericórdia e bondade, senão

no íntimo.

O que Chuck Noland sentia

em relação a sua amada, no

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“exílio”, se pode imaginar, é

que sacrificaria muito para

algum dia poder testemunhar

mais um gesto gentil e amigo

dela, embora admitindo tal

uma impossibilidade.

Também, que ele sacrificaria

mesmo isso para estar seguro

do seu bem-estar (consideraria

esta possibilidade um consolo

igualmente gentil e amigo).

Em uma peça sobre Thomas

Becket, arcebispo e mártir, em

uma das cenas finais; quando

os nobres a mando do rei

entram com espadas no seio da

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igreja para assassinar e

martirizar o arcebispo piedoso,

Becket pronuncia calmamente

as palavras: “Ela está aqui

agora, a Grande Loucura; esta

é a sua hora” (possibilidade); e

também, vendo cair pela

espada um amado clérigo

ajudante, morto pouco antes

dele próprio: “Ó Senhor, quão

pesado é carregar a tua honra!”

(impossibilidade).

Eis a figueira amaldiçoada, eis

a vida eterna.