crônica e imagem no prata luis guilherme assis...

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1 Crônica e Imagem no Prata Luis Guilherme Assis Kalil 1 Resumo: A apresentação pretende analisar a obra Viaje al Río de la Plata do cronista bávaro Ulrico Schmidl a partir do silêncio a respeito da presença religiosa nas expedições e o destaque dado à antropofagia praticada por espanhóis durante a primeira fundação de Buenos Aires tanto na crônica quanto nas ilustrações presentes nas edições realizadas por Theodore de Bry (1597) e Levinus Hulsius (1599). ________________________________________________________________________ Introdução: Em 1535 Pedro de Mendoza partiu de Sanlúcar de Barrameda rumo ao sul do Novo Mundo. Entre os navios que compunham sua expedição estava o de propriedade de dois comerciantes alemães (Sebastián Neithart e Jacobo Welser), onde, junto com cerca de 150 alemães e holandeses, veio Ulrico Schmidl. 2 Soldado bávaro que se alistou como voluntário na Antuérpia, Schmidl permaneceu na América por mais de dezesseis anos (1536 – 1553), onde participou de momentos importantes dos primórdios da conquista e colonização da região do rio da Prata, como a fundação de Assunção e Buenos Aires – seguida por seu despovoamento tempos depois devido à escassez de alimentos – além de expedições ao interior do continente em busca de ouro e do reino das Amazonas. Ao retornar à Europa o cronista decidiu escrever as memórias de sua viagem. Não se sabe exatamente quando a obra foi escrita, no entanto, seu conteúdo indica que ela foi feita após Schmidl ter partido para Regensburg, devido, provavelmente, à sua adesão ao protestantismo – que o levou a ser expulso de Straubing. A questão a respeito da possível conversão de Schmidl é controversa. Para autores como Edmundo Wernicke o cronista era “religioso e bom católico como todos os conquistadores” 3 . Já para outros, como Bartolomé Mitre e Samuel Lafone Quevedo, duas placas existentes em Regensburg, contendo seu Anais Eletrônicos do VII Encontro Internacional da ANPHLAC Campinas - 2006 ISBN 978-85-61621-00-1

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Crônica e Imagem no Prata

Luis Guilherme Assis Kalil1 Resumo: A apresentação pretende analisar a obra Viaje al Río de la Plata do cronista

bávaro Ulrico Schmidl a partir do silêncio a respeito da presença religiosa nas expedições e

o destaque dado à antropofagia praticada por espanhóis durante a primeira fundação de

Buenos Aires tanto na crônica quanto nas ilustrações presentes nas edições realizadas por

Theodore de Bry (1597) e Levinus Hulsius (1599).

________________________________________________________________________

Introdução:

Em 1535 Pedro de Mendoza partiu de Sanlúcar de Barrameda rumo ao sul do Novo

Mundo. Entre os navios que compunham sua expedição estava o de propriedade de dois

comerciantes alemães (Sebastián Neithart e Jacobo Welser), onde, junto com cerca de 150

alemães e holandeses, veio Ulrico Schmidl.2

Soldado bávaro que se alistou como voluntário na Antuérpia, Schmidl permaneceu

na América por mais de dezesseis anos (1536 – 1553), onde participou de momentos

importantes dos primórdios da conquista e colonização da região do rio da Prata, como a

fundação de Assunção e Buenos Aires – seguida por seu despovoamento tempos depois

devido à escassez de alimentos – além de expedições ao interior do continente em busca de

ouro e do reino das Amazonas.

Ao retornar à Europa o cronista decidiu escrever as memórias de sua viagem. Não

se sabe exatamente quando a obra foi escrita, no entanto, seu conteúdo indica que ela foi

feita após Schmidl ter partido para Regensburg, devido, provavelmente, à sua adesão ao

protestantismo – que o levou a ser expulso de Straubing. A questão a respeito da possível

conversão de Schmidl é controversa. Para autores como Edmundo Wernicke o cronista era

“religioso e bom católico como todos os conquistadores”3. Já para outros, como Bartolomé

Mitre e Samuel Lafone Quevedo, duas placas existentes em Regensburg, contendo seu

Anais Eletrônicos do VII Encontro Internacional da ANPHLAC Campinas - 2006ISBN 978-85-61621-00-1

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nome e data de morte, indicariam que ele teria adotado a Reforma4. Devido ao conteúdo de

sua obra praticamente ignorar a atuação dos clérigos da Igreja Católica e não citar o

processo de conversão dos indígenas, apontando que os europeus buscavam apenas

riquezas materiais em suas expedições, dificilmente pode-se sustentar que ele foi um “bom

católico”.

Mesmo não tendo finalizado seu texto, já em 1564 havia manuscritos circulando

pela região alemã (dos quais apenas três chegaram até os dias atuais, com diferenças entre

si – como citações de autores clássicos, expressões em latim – o que resultou no início do

século XX em uma longa discussão a respeito de qual seria o original). A primeira edição

da crônica data de 1567, organizada por Siegmund Feirabends e Simon Hüters. Outras

edições foram lançadas apenas no final do século XVI: em 1597 Theodore de Bry a editou

em língua alemã e dois anos depois em latim; em 1599 Levinus Hulsius lançou sua edição

da obra em Nüremberg.

A obra continuou tendo sucessivas edições em várias línguas e países (Inglaterra,

França, Holanda, Argentina, Paraguai, entre outros), mas nunca em língua portuguesa. No

entanto, apenas as edições dos protestantes de Bry e Hulsius ilustraram a obra.

Editores:

Levinus Hulsius (? – 1605) era geógrafo, construtor de instrumentos científicos e

editor, tendo traduzido para o alemão a obra Epítome de Ortelius além de uma coleção de

vinte e seis viagens para as Índias Orientais e Ocidentais. A obra de Schmidl corresponde à

quarta parte dessa coleção e, nela, o editor incluiu dezoito imagens além do preâmbulo e

epílogo (inexistentes nas edições anteriores).

Theodore de Bry era editor flamengo estabelecido na região alemã devido a suas

opiniões ligadas ao protestantismo. Em 1590 iniciou um grande projeto de ilustrar e

publicar crônicas de viagens divididas em duas séries: as Grands Voyages (Índias

Ocidentais) e as Petit Voyages (Índias Orientais). Após sua morte, em 1598, seu projeto foi

continuado por seus filhos e genro. A Viaje al Río de la Plata5 pertence ao sétimo volume

das Grands Voyages que contém treze partes em sua edição latina e quatorze na alemã6.

Chamado de “propagandista huguenote” por Manuela Carneiro da Cunha7, os trabalhos de

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de Bry são mostrados como um marco nas ilustrações de viagens. Segundo Moraes

Belluzzo é a partir dessa coleção que o “argumento visual toma proeminência e conquista

autonomia em relação ao texto, do qual se desgarra”.8

Imagens:

Ao analisar conjuntamente as imagens feitas pelos artistas dos ateliês de de Bry e de

Hulsius, nota-se que o canibalismo desperta muito interesse nos editores, o que se evidencia

tanto por sua presença quanto por sua ausência nas imagens.

Na obra de Schmidl, o autor discorre diversas vezes a respeito do canibalismo

indígena, contudo, apenas em duas delas ele descreve essa prática9. Nas outras passagens o

autor somente o cita – com grande naturalidade (“han perecido en este mismo tiempo por el

Cario hasta unas veinte personas y [éste] los ha comido.”10) – e com constantes

comparações com a Alemanha (“como aquí en esta tierra se ceba un cerdo; como aquí en

esta tierra se acompaña un casorio”). Para François Hartog esse procedimento seria uma

forma de aproximar situações distantes dando a elas um mesmo papel do ponto de vista

funcional11. Dessa maneira, a antropofagia indígena seria algo menos “estranho” e, de certa

forma, menos “bárbaro”.

Por outro lado, a descrição do canibalismo praticado por europeus durante a

primeira fundação de Buenos Aires é descrita apenas uma vez:

“... a más la gente no tenía qué comer y se moría de hambre y padecían gran escasez. (También) se legó al extremo de que los caballos no daban servicio. Fue tal la pena y el desastre del hambre que no bastaron ni ratas ni ratones, víboras ni otras sabandijas; también los zapatos y cueros, todo tuvo que ser comido. Sucedió que tres españoles habían hurtado un caballo y se lo comieron a escondidas; y esto se supo; así se los prendió y se les dio tormento para que confesaran tal hecho; así fue pronunciada la sentencia que a los tres susodichos españoles se los condenara y ajusticiara y se les colgara en una horca. Así se cumplió esto y se los colgó en una horca. Ni bien se los había ajusticiado y cada cual se fue a su casa y se hizo noche, aconteció en la misma noche por parte de otros españoles que ellos han cortado los muslos y unos pedazos de carne del cuerpo y los han llevado a su alojamiento y comido. (También) ha ocurrido entonces que un español se ha comido su propio hermano que estaba muerto. Esto ha sucedido en el año de 1535 en nuestro día de Corpus Cristi en la sobredicha ciudad de Buenos Aires.”

12 o que não impediu que esse trecho fosse muito ressaltado pelos dois editores,

principalmente por Theodore de Bry. Levinus Hulsius inclui a passagem em duas de suas

imagens, sendo a principal delas a que retrata Buenos Aires:

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Percebe-se nessa imagem uma seqüência, a partir do alto da ilustração, de

acontecimentos relacionados ao canibalismo espanhol: os três soldados levando o cavalo, a

morte do animal já dentro de Buenos Aires e os corpos dos infratores sendo esquartejados

pelos outros soldados. Essa seqüência narrativa que incorpora o fluxo do tempo nos limites

de um quadro espacial, segundo Alberto Manguel é próprio da Idade Média: “Com o

desenvolvimento da perspectiva, na Renascença, os quadros se congelam em um instante

único: o momento da visão tal como percebida do ponto de vista do espectador. A

narrativa, então, passou a ser transmitida por outros meios”13. Entretanto, nota-se que esse

procedimento foi também utilizado nas ilustrações de crônicas do XVI. Além da obra de

Schmidl podemos citar as imagens presentes na primeira edição de Hans Staden,

provavelmente realizadas por Hans Dürer14, onde o soldado alemão aparece várias vezes

em uma mesma imagem.

Theodore de Bry também dedica uma imagem ao canibalismo europeu, porém, suas

críticas aos espanhóis e católicos são muito mais enfáticas. Maria de Fátima Costa ao

comparar as ilustrações das duas edições aponta as diferenças entre elas: "... de Bry destaca

mais as cenas de antropofagia espanhola cristã e a queima de homens, Hulsius, com um

número muito maior de gravuras, dá ênfase ao pitoresco da narrativa, ilustrando quase

capítulo por capítulo.”15 Das quatro ilustrações presentes no volume de de Bry, apenas uma

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não apresenta um tom crítico, entretanto, essa exceção não foi inspirada na obra de

Schmidl. Apesar de estar na edição, a imagem que retrata os espanhóis ainda na Europa se

preparando para o embarque da expedição de Mendoza é uma reutilização: ela já estava

presente no volume das Grand Voyages editado por de Bry em 1592 para a obra de Hans

Staden.16

Ainda a respeito da edição que contém a crônica de Hans Staden, Ronald Raminelli,

no verbete dedicado a Theodore de Bry no Dicionário do Brasil Colonial (1500 – 1808),

cita a antropóloga Bernadette Bucher para afirmar que foi neste volume que a coleção “...

iniciou um processo de demonização dos americanos, destacando-se o canibalismo e os

costumes exóticos”17. Segundo a antropóloga os volumes anteriores formavam um libelo

contra os espanhóis, trazendo denúncias da “lenda negra” e estímulos à colonização

protestante.

Essa inflexão, entretanto, não se apresenta nas imagens feitas posteriormente pelo

ateliê de Theodore de Bry para a crônica de Schmidl:

Seguindo o procedimento utilizado por Deolinda de Jesus Freire18 (para a análise

das imagens feitas por de Bry para a Brevíssima de Bartolomé de Las Casas), de dividir a

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tela em triângulos (considerado influência de Leonardo da Vinci), observa-se que essa

ilustração também apresenta essa característica: há o “primeiro triângulo” à esquerda,

marcado pela escada encostada na forca, onde se ressalta os corpos mutilados dos espanhóis

mortos e seus companheiros levando o alimento para suas tendas cujas fogueiras já estão

acesas – o contorno da tenda forma um “segundo triângulo” à direita; percebe-se também

no fundo da imagem um acontecimento anterior, a morte do cavalo utilizado para alimentar

os soldados que depois serão punidos com a forca.

Nessa ilustração há uma clara seqüência de acontecimentos em dois tempos: o

fundo da imagem, que mostra o cavalo sendo morto e comido, e o primeiro plano, com os

corpos dos prisioneiros sendo mutilados, levados para as tendas e preparados pelos

espanhóis sobreviventes. Nota-se ainda que as linhas compostas pela escada e as tendas

convergem todas para o centro da imagem, levando o leitor da obra a concentrar sua

atenção no espanhol que carrega uma perna do cadáver de um de seus companheiros.

As outras duas imagens feitas por de Bry para a edição da crônica de Schmidl

também apresentam fortes críticas aos espanhóis e católicos:

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A primeira imagem dividi-se em dois momentos: a parte superior, que mostra o

combate entre nativos e europeus, e a inferior, que aponta para o castigo aos indígenas que

são queimados em uma grande fogueira. A segunda imagem também se compõe de dois

momentos diferentes: o primeiro contato dos Jerús com os espanhóis e, abaixo, a recepção

pacífica e festiva realizada pelo “rei” para os conquistadores (nessa imagem a idéia de

ingenuidade indígena está fortemente presente). É interessante observar que um tema

recorrente – o fogo sendo atiçado para matar os prisioneiros – usado normalmente para

retratar a bestialidade e a voracidade antropofágica do índio, é utilizado na primeira

ilustração para apontar a violência dos espanhóis.

Por outro lado, a antropofagia indígena que é, repetidas vezes, retratada em outras

crônicas editadas pelo próprio de Bry, não aparece no volume de Schmidl19: “... atenuar o

canibalismo índio servia como arma contra os católicos espanhóis”20. É importante

observar que na edição da crônica de Las Casas, de Bry acabou incluindo uma imagem de

canibalismo indígena não descrita pelo frei, possivelmente por influência das obras de Jean

de Léry e Hans Staden ou como estratégia comercial, uma vez que a antropofagia chamava

muita atenção. Segundo Deolinda Jesus Freire essa edição solidificou a imagem do paraíso,

da inocência indígena e da crueldade espanhola na conquista e colonização do Novo

Mundo21.

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O ano da edição de Las Casas (1598 – um ano após a edição em língua alemã da

obra de Schmidl e um ano anterior à edição latina) e o fato de que na Viaje al Río de la

Plata o canibalismo indígena foi diminuído, em detrimento da mesma prática realizada

pelos espanhóis, reforça a idéia de que nas imagens da crônica de Schmidl não há uma

demonização dos indígenas nem de seus costumes. Haveria sim um ataque aos espanhóis,

que agiram com extrema violência e praticaram ações tão ou mais bárbaras que as dos

indígenas (uma vez que para autores como Montaigne e Jean de Léry o canibalismo por

fome é mais condenável do que o que possui motivos rituais).

Esses ataques aos espanhóis através de imagens feitas por protestantes não eram

algo incomum. Ronald Raminelli, em sua obra Imagens da Colonização, afirma que os

protestantes “enfatizavam a inocência dos nativos para denunciar as atrocidades perpetradas

pelos ibéricos no Novo Mundo”22. A esse respeito, Manuela Carneiro da Cunha aponta: “...

republicado alguns anos mais tarde por Bry, provavelmente por atestar os péssimos hábitos

dos conquistadores espanhóis, que chegam, entre outras coisas, a devorar enforcados

quando a fome os aperta em Buenos Aires, está o mercenário alemão Ulrico Schmidel (...)

que fornece uma espécie de roteiro gastronômico das múltiplas etnias por que passou.”23

Por fim, nota-se que as imagens de canibalismo, que, segundo Belluzzo eram “um

símbolo privilegiado, capaz de promover contraposição entre americanos e europeus”24, foi

utilizado nas edições de Schmidl (principalmente na de de Bry) de forma diversa. Ao

retratar os espanhóis como assassinos cruéis (imagem da fogueira com os dois indígenas) e

pouco tementes a Deus (praticam o canibalismo25), percebe-se que, para além do enfático

ataque aos espanhóis e católicos, existe um segundo aspecto: o incentivo à colonização

protestante no Novo Mundo. Para esses editores, caberia aos reformados a tarefa de

converter os ingênuos indígenas, que receberam os europeus com grande festa – como visto

na imagem de de Bry – mas, dessa vez, não seriam queimados e mortos como quando se

encontraram com os espanhóis.

Bibliografia:

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BELLUZZO , Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes. Museu de Arte de São

Paulo – 20/10 a 18/12 de 1994. São Paulo: Editora Metalivros, 1994.

COSTA, Maria de Fátima. A história de um país inexistente: Pantanal entre os

séculos XVI e XVIII. São Paulo: Estação Liberdade/ Kosmos, 1999.

CUNHA , Manuela Carneiro da. Imagens de Índios do Brasil: o século XVI IN USP

– Estudos Avançados 4/10 – setembro/dezembro, 1990.

FREIRE , Deolinda de Jesus. A eficácia narrativa da “Brevíssima relación de

destruición de las Índias” na propagação da “leyenda negra” anti-hispânica. Dissertação

de Mestrado, Universidade de São Paulo, 2004.

HARTOG , François. O Espelho de Heródoto – ensaio sobre a representação do

outro. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.

LÉRY , Jean de. Viagem à terra do Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São

Paulo: Edusp, 1980.

MANGUEL , Alberto. Lendo Imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo:

Companhia das Letras, 2001.

RAMINELLI , Ronald. Imagens da Colonização: a representação do índio de

Caminha a Vieira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editora, 1996.

SCHMIDEL, Ulrich. Derrotero y viaje a España y las Indias. Traducido del

alemán según el manuscrito original de Stuttgart y comentado por Edmundo Wernicke.

Santa Fé: Editora Universidad Nacional del Litoral, 1938.

SCHMIDL , Ulrico. Viaje al Río de la Plata. notas biograficas y bibliograficas por

Bartolomé Mitre – traducción por Samuel A. Lafone Quevedo. Buenos Aires: Editora

Cabaut, 1903.

SOMMER , F. Quem foi o impressor e quem o ilustrador da edição primitiva do

livro de Hans Staden? IN Revista do Arquivo Municipal, Ano VIII – Volume 88 –

janeiro/fevereiro de 1943. São Paulo. pp. 209 – 216.

VAINFAS , Ronaldo (direção) Dicionário do Brasil Colonial (1500 – 1808). Rio de

Janeiro: Editora Objetiva, 2000.

Notas:

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1 Mestrando em História Cultural pela Unicamp. 2 Existem muitas grafias diferentes do nome do cronista, utilizarei Ulrico Schmidl por ser a forma como ele foi conhecido no Brasil. Grafias diferentes serão mantidas apenas em citações. 3 SCHMIDEL, Ulrich. Derrotero y viaje a España y las Indias. Traducido del alemán según el manuscrito original de Stuttgart y comentado por Edmundo Wernicke. Santa Fé: Editora Universidad Nacional del Litoral, 1938. p. 19. 4 SCHMIDL , Ulrico. Viaje al Río de la Plata. Notas biograficas y bibliograficas por Bartolomé Mitre – traducción por Samuel A. Lafone Quevedo. Buenos Aires: Editora Cabaut, 1903. pp. 17 – 18., 5 A obra de Schmidl recebeu diversos títulos nas diversas línguas em que foi publicada, entretanto, a forma por que ficou mais conhecida é em língua espanhola: “Viaje al Río de la Plata”. 6 BELLUZZO , Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes. Museu de Arte de São Paulo – 20/10 a 18/12 de 1994. São Paulo: Editora Metalivros, 1994. p. 40. 7 CUNHA , Manuela Carneiro da. Imagens de Índios do Brasil: o século XVI IN USP – Estudos Avançados 4/10 – setembro/dezembro, 1990. p. 96. 8 BELLUZZO , A. Op. cit. 1994. p. 13 9 “... los Tupís, estos comen sus enemigos, los unos a los otros (...) cuando vencen a su enemigo, entonces lo traen a su lugar, donde ellos están avecindados, como aquí en esta tierra se acompaña un casorio. (También) cuando se le quiere matar a él, al prisionero o esclavo, se le hace también lo mismo y se ofrece un gran festival, como se indico arriba. Y mientras este prisionero yace preso, se le da cuanto él pide mientras está prisionero, sea una mujer, para que tenga que hacer con ellas, esa se le da o cualquier comida, la que su corazón desea, hasta que llegue la hora en que él debe morir.” “También los Carios han comido carne humana cuando nosotros vinimos a ellos; como la comen lo sabréis en lo que sigue. Cuando estos susodichos Carios hacen la guerra contra sus enemigos, entonces a quien de estos enemigos agarran o logran, sea hombre o mujer; sea joven o vieja, sean niños, los ceban como aquí en esta tierra se ceba un cerdo, pero si la mujer es algo linda, la conserva un año o tres. Cuando entonces esta mujer en un poco no vive a gusto de él, entonces la mata y la come. (también) él hace una fiesta o gran función al igual como se hace allá afuera pero si es un hombre anciano o mujer vieja se la hace trabajar a éste en las rozas, ella debe hacer la comida para su amo.” SCHMIDEL, Ulrich. Op. cit. 1938 pp. 169 - 170, e pp. 70 - 71. É importante notar que Schmidl não ressalta a prática do canibalismo em si: o ritual de morte, o modo de esquartejamento e preparo do corpo, a divisão dos pedaços de carne, etc... 10 SCHMIDEL, Ulrich. Op. cit. 1938 p. 55. 11 “Essas cerimônias e os genésia gregos não são a mesma coisa, mas, de um ponto de vista funcional, desempenham o mesmo papel: uma é, na sociedade dos issedons, o que a outra é na sociedade grega.” HARTOG , François. O Espelho de Heródoto – ensaio sobre a representação do outro. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999. p. 242. 12 SCHMIDEL, Ulrich. Op. cit. 1938 pp. 48 – 50. 13 MANGUEL , Alberto. Lendo Imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. pp. 24 – 25. 14 SOMMER , F. Quem foi o impressor e quem o ilustrador da edição primitiva do livro de Hans Staden? IN Revista do Arquivo Municipal, Ano VIII – Volume 88 – janeiro/fevereiro de 1943. São Paulo. pp. 209 – 216. 15 COSTA, Maria de Fátima. A história de um país inexistente: Pantanal entre os séculos XVI e XVIII. São Paulo: Estação Liberdade/ Kosmos, 1999. p. 68. 16 A edição da crônica de Hans Staden corresponde ao terceiro volume da coleção, que incluía também a obra de Jean de Léry. É importante ressaltar que a utilização de uma mesma imagem para mais de uma obra era um procedimento corriqueiro no período. 17 VAINFAS , Ronaldo (direção) Dicionário do Brasil Colonial (1500 – 1808). Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2000. p. 546. 18 FREIRE , Deolinda de Jesus. A eficácia narrativa da “Brevíssima relación de destruición de las Índias” na propagação da “leyenda negra” anti-hispânica. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, 2004. 19 Também nas imagens de Hulsius esse canibalismo não é incluído. 20 RAMINELLI , Ronald. Imagens da Colonização: a representação do índio de Caminha a Vieira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editora, 1996. p. 49. 21 FREIRE , D. Op. cit. 2004. p. 89. 22 RAMINELLI , R. Op. cit. 1996. p. 17.

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23 CUNHA , M. Op. cit. 1990. p. 96. A autora também aponta em seu artigo o modo como o canibalismo foi usado por católicos e protestantes nas guerras de religião na França: “tema quase obsessivo e que servirá de operador para as grandes cisões do século (...) os casos de antropofagia alimentar e de crueldades inauditas (...) são rememorados acusatoriamente por católicos e protestantes. De um lado como de outro, publicam-se cenas de suplícios atribuídos ora a calvinistas ora a católicos. Dentro da selvageria em que a França se encontra imersa, é como se a antropofagia Tupinambá figurasse como a forma mais civilizada dentro do gênero”. Idem p. 108. 24 BELLUZZO , A. Op. cit. 1994. p. 18. 25 É importante ressaltar que de Bry já tinha editado a obra de Jean de Léry, que afirma no capítulo XXI: “Posso garantir que na nossa viagem só nos reteve o amor a Deus, pois mal podíamos falar uns com os outros sem nos agastarmos e o que era pior (perdoe-me Deus) sem nos lançarmos olhares denunciadores da nossa disposição antropofágica.” IN LÉRY , Jean de. Viagem à terra do Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1980. p. 265.

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