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02 Publicação do projeto Homem com h: Articulando Subalternidades Masculinas  , AFRO – Centro de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Candido Mendes (Ceab)    n    o    v     2    0    0    3 Da violência ao cuidado, a história e a poesia para os homens da periferia Cláudio Pedrosa Homossexualidades no plural dos gêneros Luís Felipe Rios

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02

Publicação do projetoHomem com h: Articulando

Subalternidades Masculinas ,AFRO – Centro de EstudosAfro-Brasileiros da Universidade

Candido Mendes (Ceab)

n o v

2 0 0 3

Da violência ao cuidado, a história ea poesia para os homens da periferiaCláudio Pedrosa

Homossexualidades no plural dos gênerosLuís Felipe Rios

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2 CRÍTICA DA MASCULINIDADE| N º 0 2 | NOVEMBRO DE 2003

E D I T O R I A L

O Homem na EstradaNeste segundo número do BoletimCrítica da Masculinidade podemos já contabi li zar alguns avanços em nos so projeto. Colocam os nossasatividades em andamento, conhecemos e conversamos com diversaspessoas e tivemos a oportunidade de iniciar o caminho de nossareflexão sobre os significados do masculino, da subalternidade e sobreas perspectivas políticas de transformação de estruturas e práticassubordinantes e autoritárias.

O “Grupo de Estudos Raça e Gênero” tem se consolidado como umespaço franco e aberto de trocas e reflexões, motivadas pela leitura

dos textos indicados, mas que na verdade tem prazerosamentetransbordado para um sem-número de ramificações políticas esubjetivas. As relações entre as diversas ordens do saber, a construçãode sujeitos raciais e de gênero, o lugar do racismo na construção dashierarquias sociais e nacionais. Tudo isto e muito mais tem sidodiscutido numa assem bléia plural composta de intelectuais,estudantes, ativistas, homens e mulheres, homossexuais eheterossexuais, negros e brancos e muitas outras posições de s ujeitopossíveis em diversas combinações. Pudemos também apresentar ediscutir nosso projeto em diversos fóruns e reuniões, colhendosugestões e experiências, das quais já estamos nos valendo.Realizamos também a primeira de noss as oficinas temáticas, numaparceria com o projeto “Juventude e Diversidade Sexual” da ABIA(Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS), atividade que s e reveloude uma riqueza e radicalidade extraordinárias. Enfim, estamos naestrada e não temos medo de percorrer novos caminhos.

Assim acreditamos que o “ homem novo” , plural, reinventado, diferentede si mesmo, também, está na estrada,in motion . Este homem éaquele que se sente desconfortável nos lugares tradicionais de poder,que não compartilha do sexismo, que se afasta da violência de gênero,que não cabe nos estereótipos e que se rebela contra o racismo que

lhe prescreve roteiros de automistificação e alienação.Enfim, estamos na estrada, ela pode ser longa, provavelmente é ásperae tortuosa, mas fazer esse caminho é um compromisso, uma escolhasem volta, uma tarefa histórica e uma aventura maravilhosa – cheia doinesperado, do inventivo e do novo – da qual não estamos dispostosa abrir mão.

Osmundo Pinho Antropólogo, Coordenador do Projeto

CRÍTICA DAMASCULINIDADE

Uma publicação do projetoHomem com h: Articulando Subalternidades Masculinas,sediado no Afro – Centro de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade CandidoMendes (Ceab) –, e apoiado peloPrograma GRAL (Gênero, Reprodução,Ação e Liderança) da Fundação CarlosChagas/ John D. and Catherine T.MacArthur Foundation.

Praça Pio X, 7/ 7º Andar – CentroRio de Janeiro-RJ - CEP 20040-020Tel: (21 )2516-2916Fax: (21) 2516-3072E-mail: [email protected]: www.ceab.ucam.br

Diretora do AfroRosana Heringer

Coordenador do ProjetoOsmundo Pinho

EstagiárioHerculis Toledo

RevisãoBeth Cobra

Projeto Gráfico e DiagramaçãoMais Programação Visual

CapaJovens participantes do Projeto ATEIA(SOS Corpo/ Pegapacap á-UFPe). Palma res,Pernambuco, 200 3.[arte sobre foto de Osmundo Pinho]

Fotolito

Ace DigitalImpressãoGrafitto Gráfica e Editora

Tiragem1.500

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Falo aqui como pode falar um homem negro, durante muitotempo subtraído não somente de s eu gozo, como de suaprópria negritude. Sujeito masculino adepto do feminismodiante e dent ro de um mund o patriarcal. Um eu negro sub- je tivad o na li ngu age m de uma ra ça outra , por tanto, nãosubjetivado negro, subjetivado outro. Pobre inadimplenteexposto à enganosa liberdade dos ricos recursos capitalistasque me foram impostos.

Somente at ravés do contato crítico com a dimensão polí-tica do povo negro, que o universo feminista me possibilitou,pude me dar conta des sa diversidade, às vezes contraditó-ria, e tom á-la em mim com o um recurso de mobilidade indivi-dual, trama para o tecido de uma realidade plural, na qual osingular fosse possível. Trama es sa imp regnada e reprodu-tora de diversidades.

Faço aqui uma fala sobre m im mes mo. Melhor, uma falasobre o que eu acredito e sobre o que eu faço pelo que acre-dito, no que concerne a relação dos hom ens com a violênciae a sua po ssível desconstrução pela via do cuidado.

Antes de continuar, faço na minha fala um registro: tenhovários amigos negros, alguns poucos falariam aqui. Menosdeles ainda entenderiam ou seriam entendidos. Mas ist onão é exatamente um problema, este não é o espaço deles.Eles falam onde criaram seus próprios espaços. Eu, que utilizoo espaço do outro, preciso falar como fala o outro. Sou umnegro falando como branco, ou como um grupo minoritário denegros . Desses que trocaram a diversidade colorida das vidasmarginais pela universidade branca do centro.

Nesse registro venho me remeter a uma questão compa-rativa: que fala é mais valiosa? A de um negro nascido noAlto José do Pinho, na p eriferia de Recife, que não concluiu osegundo grau e trocou a vida escolar pela criativa privação detocar e cantar numa banda punk hard core, durante mais d equinze anos? Ou a fala de outro negro, nascido no Córregodo Ouro, na mesm a periferia, e que viveu a privação dessesmesmos tempos para concluir um curso “s uperior”, s er umprofissional diplomado, financiado num empreendimentosocial por uma agência internacional? Qual das falas é m aisimpor tant e? Qual dos dois deve falar ou ser escutado primeiro?São interrogações que eu nem de longe penso em de mover.Estão colocadas. Eu posso falar pelo segundo, este eu s ou;o primeiro eu admiro, ess e eu queria ser.

“Negro não tem direito de se expressar/ mas essa história eu mudei/ e vocês vão me agüentar!” é assim que Cannibal,se coloca na pele negra de Machado de Assis, falando algoque poderia ser dito do próprio Cannibal, vocalista de umabanda punk, e que, eu acredito, poderia ser dito também demim, neste m omento, neste espaço de expressão.

a história e a poesia paros homens da periferiCLÁUDIO PEDROSA

Mas vejam só o que ele herdouMiséria, fome, corrupção, discriminação

Está sem saídaMas se você disser que sim

eu digo que nãoe se você disser que não

eu digo que simContrariar suas estatísticas

minha soluçãoPara mostrar que o meu povo

vai ser muito feliz(“Alto estima” – Cannibal, Devotos)

Da violência ao cuidadoDa violência ao cuidado

Cláudio Pedrosa [na foto, à direita] e um amigo no Alto do Zédo Pinho, Recife, PE. 2003 .

A R Q U I V O

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4 CRÍTICA DA MASCULINIDADE| N º 0 2 | NOVEMBRO DE 2003

Feito este meu registro errante (que tem a pretensão deintroduzir uma reflexão sobre as implicações das diversi-dades instauradas entre nós mesmos, homens e m ulheres,negras(os) e não negras(os), militantes da diversidade, queviemos da universidade), retomo o rumo da m inha própria fala.

Esta fala que se oferece à escuta a p art ir do anúncio dealgumas crenças: sobre o se ntido da vida e sobre a vida doshomens, tomados, não como uma categoria genérica, mascomo uma categoria de gênero; sobre a arte como via depromoção de relações de cuidados e sobre as relações decuidados como form as de erradicação da violência. Uma falasobre o que eu acredito.

Eu acredito que a religião e a filosofia foram derrotadas

pela ciência. Eu acredito que a ciência fracassou. E que o misti-cismo não conseguiu se desligar de nenhuma das dua s paraser algo em si mes mo, para dar sent ido à vida. E eu acreditona história, na minha história e na história das pes soas comquem eu encontro. Eu acredito na ética, esta dimensão da vidaque nos permite não somente escolher, como construir asopçõe s. Eu acredito na poesia, mas não essa poesia em letrasescritas para quem a diversidade é, no máximo, a permiss ãodos versos brancos. Eu acredito na poesia para quem cons i-dera q ue alé m d o ét ico e do poético, é preciso incluir o étnico.Permitindo mais do que versos brancos, versos de toda cor,cores de todo tom, fonemas de todo som. Eu acredito nahistória que se pode fazer com os corpos, na poesia que sepode fazer nos muro s. Na poesia que se pode fazer da história.Eu acredito na ar te, na poesia que p odeser feita e na poesiaque podese fazer.

Esse conjunto de crenças me faz ser quem eu so u e fazero que faço. Pois, quando se é da periferia só duas coisasparece m f azer sentido: a hist ória e a poesia. Não a História e aPoesia, com letras maiúsculas, matronas recolhidas nosaposentos luxuosos da erudição e da burguesia. Essas, eudesconheço. Na periferia, a história é outra e a poesia éviolenta. E a violência é real. Ela permeia t odas as relações.Se não como um fato atual, como algo virtual preste a seatualizar. A violência é u ma linguagem. Por meio dela muito ssujeitos são constituídos e se constituem. É por meio delatambém que muitos sujeitos se relacionam com o mundo,alguns de modo mais drástico que outros.

A perspectiva de gênero me mos trou que os homens s ãoproduzidos assim, atravessados pela violência. No recortepor s exo, os homens lideram os números de óbitos por causasextern as , homicídio, suicídio e acidentes de trânsito, os homensrepresentam quase o total da população carcerária emPernambu co, e no Brasil. Os homens es tão na frente tambémnos núm eros de violência praticada contra a mulher e contraoutr os homens . Os homens como sujeitos masculinos, mascu-linizados pela linguagem da violência, não têm se const ituídocomo sujeit o do afeto, do cuidado; são, quando muito, o sujeito

da proteção. Mas, de uma proteção quase sempre exercidacomo forma de opressão para os protegidos. Os homenspersonagens de fi lmes comoCidade de Deus e Carandiru ilustram es sa condição masculina de uma forma assustadora,desde as crianças até os adultos.

Essa relação tem se reproduzido numa espiral descen-dente, de um s ujeito para o outro, através de varias ar ticula-ções possíveis para as dicotomias: masculino/ feminina; rico/pobre; branco/ não-branco; adulto/ jovem; heterossexual/homossexual. Numa relação em que os mesmos sujeitosempíricos podem ocupar posições diferentes e simultâneas,de poder ou opressão, em função do contexto que os ponhaem interação.

A única saída que eu encontrei para essa situação deviolência e op ress ão distribuídas está na história e na poesia.Na história da gente, na poesia concreta de nossas vidas.Através diss o, acredito ser possível colocar no lugar da violência – que é uma lingua gem – ou tra lin guagem . A linguagemdo cuidado, que também é poesia; que também é uma viade constituição de sujeito e um a forma de se relacionar como mundo.

Eu acredito no cuidado – essa dimen são do fazer humanopass ível de ser vivenciad a e teorizada por homens e mulheresem diferentes situ ações e s aberes – como um fazer diversi-ficado q ue m anté m em comum a condição de ser uma relaçãointers ubjetiva a se desenrolar sempre em função da passagemde uma condição de vulnerabilidade para out ra, de desem -baraço , implicando relações desiguais de poder, entre o sercuidado e o ser cuidador.

No exercício do cuidado, trata-se de uma questão queenvolve pos ições relacionais: o lugar do ser cuidado e o lugar doser cuidador. Com base ness a complexidade, procuro sem preatentar para o fato de que essas posições também podemser experimentadas simultaneamente, se considerarmos

Rapaz na festa de Yemanjá, no bairro do Rio Vermelho em Salvador, BA.

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que a relação de cuidado pode ser mutuamente gratificante e restau -radora em um a condição de vulnerabilidade.Por isso acredito que os homens devem ser pensados tam bém

como um sujeito do cuidado. Assim como mais facilmente o sãoas mulheres. Dizendo isto não estou sim plesment e propondo queos hom ens, no lugar do masculino, ocupem o que seja o lugar dof e m i n i n o . E s t o u q u e r e n d o d e s m i s t i f i c a r e s s e s l u g a r e s ,desess encializá-los. Pensando sobre a s várias possibilidades dedeslocamentos, espero que os homens possam encontrar, e/ oucriar, nos universos masculinos todas as dimensões virtuais e at uaisdo cuidado necessárias ao desmon te da linguagem da violência.

Acredito que é pos sível aos hom ens exercer o cuidado com amesma facilidade cotidiana com que eles, nós! exercemos o

descuido. Com a mesma disposição com que somos a gressivos eviolentos, poderemos ser afetuosos e cuidadosos. É o que euacredito ser pos sível.

O projeto “ homens jovens: desconstruindo a violência de gênero”desenvolvido no âmbito do p rograma GRAL, é um produto des sacrença. Nele, fazendo uso de técnicas de teatro e grafitagemcomo recursos de expressão e reflexão, estamos desenvolvendo apossibilidade de os homens falarem um a outra linguagem. Menosdestrutiva, mais próxima de suas próprias histórias e poesias.Mas, ao mesmo tempo, mais próxima de uma poesia menosviolenta, de uma his tória mais cuidadosa. Uma história com a qualos homens jovens das periferias, nas escolas e nas instituiçõesde reeducação social, ainda não est ão familiarizados.

O grafite e o teatro são instrumentos estéticos, aos quaisdevemos at ribuir o devido valor. O valor de ferrament as de trans-form ação. O valor de recursos de valorização dos s ujeitos. São lin-guagens. Assim como a história e a poesia, por isso é possíveltomá-los como vias de redefinição das relações entre os sujeitos eseus m undos; como vias de redefinição dos próprios sujeitos.

Através dos encontros, entre as histórias que se pode fazercom os corpos de cada um e a poesia que se pode fazer nosmur os, é possível promover transformações na relação dos s ujeitoscom o mundo ao seu redor e com outros sujeitos .

Assim, como Cannibal, um homem negro da periferia, soubeutilizar a poesia de suas letras para encontrar, na saída estética,uma form a de contrariar as estatísticas que o direcionavam parauma história diferente da sua, igual às histórias da maioria doshomens negros de sua comunidade. Deslocando-se através deuma poesia violenta e destrutiva, para uma poesia instigante erestauradora. Assim, eu também espero que os homens jovens,participantes do projeto “desconstruindo a violência de gênero”encontrem na estética do grafite e do teatro uma forma de aproxima-rem suas hist órias da poesia do cuidado. Espero que eles tambémcontrariem as est atísticas , superem algum as de suas herançase construam his tórias diferentes. Pautadas mais pelo cuidado, desi e dos outros , do que pela agressão e pelo descuido.

Cláudio Henrique Pedrosa Psicólogo. Inst itut o PAPAI.Bolsista do programa GRAL (Gênero, Reprodução, Ação

e Liderança) da Fundação Carlos Chagas/ MacArthu r Foudation.Coordenador do projeto Homens jovens: desconstruindo

a violência de gênero.

J Á L E U?Um Século

de FavelaZALUAR, Alba e ALVITO, Marcos (orgs.). Rio de Janeiro. Fundação Getulio Vargas Editora. 2003 .

Este livro reúne um e xce-lente conjunto de artigossobre diversos aspect osdas favelas car iocas .Desde sua história, pas-sando por suas repre-sentações na música po-pular brasileira, até as

complexas relações queatualmente expõem osseus m oradores à violência policiale do tráfico de drogas, sem descui-dar de considerar as formas ar tísti-cas e culturais associadas a essesterritórios, como o funk e o samba.Aliás, a coletânea se encerra comuma seleção m uito significativa depoesias produzidas por autores decomunidades faveladas.

Interfaces. Gênero,Sexualidade eSaúde ReprodutivaBARBOSA, Regina Maria; AQUINO,Estela M. de Leão; HEILBORN,Maria Luiza e BERQUÓ, Elza (orgs).Campinas. Editora da UNICAMP. 2002.

As diversas faces poss í-veis da relação entregênero, sexualidade esaúde reprodutiva apa-recem bem con textuali-zadas nesta série deestudos que retratampesquisas empí r icasconsis tentes , real iza-d a s c o m u m a g a m aampla de sujeitos sociais, como jo ve ns de co munida de s po pu la re se “ institucionalizados(as)”, profissi-onais do sexo, idosos(as) e mulhe-res mães ou vítimas de violência.A diversidade de situações e con-

textos dão pistas valiosas para osinteressados(as) nesta problemáti-ca de modo prático ou t eórico.

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o âmbito de promover saúde e cidadania parahomens com práticas homossexuais é impor-tante refletir sobre os vários vetores opressi-vos que atingem esta categoria populacional esustentam a vulnerabilidade destes a algunsagravos sociais, como é o caso do HIV/ AIDS.Neste contexto é fundamental entender as cate-gorias de gênero como realm ente des locadas das d ife-

renças sexuais que comumente são concebidas comoseus referentes, virar o esquema de ponta cabeça,percebendo que são as categorizações sociais quesignificam os corpos, e não o contrário.

Assim, num cenário em quebichas (“efeminados” )e bofes (“machões” ) interagem, se desdobram multi-plicidades de performances corporais públicas que,vale ressaltar, mais escamoteiam que acenam paraas práticas eróticas que efetivamente acontecem entre

quat ro paredes – me refiro às inserções e recepções depênis, dedos, dildos ou outros brinquedinhos pontia-gudos! Atividades e passividades que são entendidascomo sinalizações de masculinidades e feminilidades,e que se desdobram num a perversa hierarquização deacessos a bens sociais de diversas ordens.

Homossexualidadeno plural dos gêneroLUÍS FELIPE RIOS

Se fora das comunidades gay o uso de sinais con-cebidos com o do âm bito da feminilidade pelos homensé, muitas vezes, o estigma que os remete à “ anorma-lidade”, dentro das comunidades gay a estigmatizaçãodos “efeminados” não é menor ou menos opressora.

“Mas o meu primo, ele dizia várias coisas pra...Que me afundaram. [Tipo?] Como dizer pra mim que eu devia entrar numa academia e ganhar corpo; que com essa voz ninguém ia me querer.Enfim... [E por que, tu acha que ele dizia isso?] Que ele dizia, que homem gosta de homem.[Aham!] E acho que pra ele eu ainda não era um homem, era quase uma mulherzinha.Mas o que ele chama de mulherzinha é o meu jeito de ser e é assim que eu me sinto bem! [Uhum!] Que mais eu posso dizer?

Não obstante, o que muitas vezes parece soar

como contradição faz parte da própria vida social.Refiro-me ao fato de que, se, por um lado, há estatendência para desvalorizar as feminilidades quandoutilizadas pelos homens, por outro, há determinaçõessociais que os fazem continuar a se repartir entre‘mais femininos’ e ‘ mais masculinos’; repartição que

em muitos dos contextos da vidasocial brasileira, serve de roteiropara os fazerem interagir sexual-mente – assim, lembro que o meuinterlocutor, no diálogo acima trans -crito, não deixa de encontrar preten-dentes por “ser mais feminino”.Não obstante, osbofes , ainda quereceptivos na cama, guardam, da-das as suas performances públi-cas, as prerrogativas de machõese continuam a dominar fora dasquatro paredes .

O fato é que vivemos numa so-ciedadebofecêntrica , que impõeàs bichas mil restrições e desvalo-rizações. Acontece no meio gay

algo muito parecido com o queacontece na hegemonia , ondeembora homens e mulheres convi-vam no mesmo “mundo” – não há

N

Cartão postal da ABIA (200 2).

A R Q U I V O

A B I A

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VA M O S N E S S A!Grupo de estudosRaça e gêneroReuniões abertas, quinzenais, sediadas no Centro de Estudos Afro-Brasileiros, nas quais serão discutidos textos clásicos e fundamentais sobre raça, gênero, sexualidade, polícas de identidade e suas várias articulações poss íveis emsessões coordenadas em formato de sem inários.

Oficinas t emáticasMasculinidadesafrodescendentesOficinas de trabalho desenvolvidas através de dinâmica

de grupo, rodas de discussão e seminários nos quais sediscutirão vivências, projetos políticos e as pectos da idendade e dos desafios contemporâneos de homens afrodescendentes.

Oficinas t emáticasParceiros juvenisOficinas de trabalho voltadas para homens jovens e desevolvidas através de dinâmicas de grupo, rodas de discusão e atividades orientadas nas quais serão discutidos temas relevantes para a experiência da mas culinidade juven

em m eios sociais populares.

Oficinas t emáticasHomossexualidades,poder e diferençaOficinas de trabalho propostas como um espaço de reflxão e proposição crítica construtiva sobre a inter-relaçãdas dime nsões de gênero, raça e classe na política gay, naexperiência da identidade homossexual masculina e nformação das comunidades homossexuais.

SemináriosArticulando masculinidadesEspaços de discussão, análise aprofundada e proposiçãocrítica em torno das divergências e convergências percebdas entre as posicionalidades masculinas debatidas nasoficinas temáticas.

SeminárioAvaliação finalApresentação de reflexões e avaliações sobre o projeto par

discussão com todos os envolvidos e dema is interes sados

As datas e horários das atividades programadas serãodivulgados oportunamente no site <www.ceab.ucam.br>

apartações explícitas –, o lugar ocupado pelas m ulhe-res está marcado por desigualdades e opressões.

G. Rubin, no seminal artigo “ O Tráfico das Mulheres” , já observava como, transcultura lmente, as ca tegori-zações de gênero tendem a se reproduzir, mesmo

entre casais do mesmo sexo; e não apenas em termosde diferenças de performance, mas também de poder.Esta seria uma forma para a diferença erótica poderse expressar sem por em causa a estrutura opressorado sistema de sexo-gênero. Indo mais adiante, elaconstata uma inutilidade de tais categorizações nassociedades contemporâneas, que não necessitam dealinhamentos rígidos entre sexo-gênero para garantira reprodução biológica e/ ou social. Um aparato culturalobsoleto, mas que permanece servindo de substratopara reproduzir as desigualdades sociais.

No entanto, quando nos deslocamos do m undo dasidéias em direção às ações em prol de uma sociedademais eqüitativa, vê-se que a organização dos gênerosé profundamente arraigada na vida cotidiana. O relatoacima transcrito mostra que, para o bem – constituirum “jeito de ser” adequado à imagem que o própriosujei to t em de si – ou para o mal – quando esse “ jeito deser” é valorado negativamente e “afunda” a pessoa –,os gêneros, suas per formances e seus valores conti-nuam profundamente operantes.

Penso que um caminho promissor rumo a tais redes-crições e pos itivações (de raça, de gênero, do erótico,

da sexualidade, etc.) do que aparece como contra-hegemônico parece ser aquele do confronto entre dife-rentes e diferenças, mediado pela ironia e pela blas-fêmia. Por exemplo, o resgate dafechação das bichas ,que como lem bra E. MacRae, assus tava na década de80 o Movimento Gay brasileiro nascente por, além decolocar em causa o instituído hegemônico, não deixarem paz, na crítica blasfêmica e irônica, na acidez dafechação , algumas propostascaretas que eram apre-sentadas como o novo e o revolucionário.

Fazer com que a sociedade da hegemonia (em paró-

dias especulares estrategicamente armadas pelas“identidades em oposição”) se reconheça como –também – formada por seres que organizam suassubjetividades/ identidades em múltiplos e contradi-tórios posicionamentos e afinidades, por “espúriosfragmentos” de origens taxonômicas muitas vezespensados como não-conciliáveis; porque, e já diziaD. Haraway, quando olhados bem de pertinho, somostodosCyborgs !

Luís Felipe Rios Antropólogo. Coordenador dos projetos Juventude e Diversidade Sexual (ABIA) e Fara Logun: Saúde

e Cidadania para Jovens Hom ossexuais Adeptos do Candomblé (GRAL/ FCC)

e doutorando em Sa úde Coletiva no IMS/ UERJ.

CRÍTICA DA MASCULINIDADE| N º 0 2 | NOVEMBRO DE 2003 7

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8 CRÍTICA DA MASCULINIDADE| N º 0 2 | NOVEMBRO DE 2003

Lei: Nº 3.786 DE 26 DE MARÇO DE 20 02 .Art. 1º– Fica acrescentado o § 7º ao artigo 29 da Lei 285 / 79 , com o seguinte teor:“ § 7 º – Equipara-se à condição de Companheira ou Companheiro de que trata o inciso Ideste ar tigo, os parceiros do m esmo sexo, que mantenham relacionamento de uniãoestável, aplicando-se para configuração da união estável, no que couber, os preceitoslegais incidentes sobre a união estável entre parceiros de diferentes sexos.”Art. 2º– Fica garantida aos ser vidores públicos esta duais para fins de benefícios previ-denciários, a averbação da condição de parceiros do mesmo sexo, junto à autoridadecompetente, com o objetivo de ass egurar os direitos e evitar o desamparo e a discrimi-nação em virtude da orientação sexual já proibidos e penalizados pela Lei 340 6/ 20 00 .

Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, em 2 6 de março de 2 00 2.

Lei:DECRETO Nº 29.7 74 de 11 de novembro de 2001 .REGULAMENTA A LEI 3406, DE 15 DE MAIO DE 2000.

O GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, no us o de s uas atribuiçõe s cons tit u-cionais e legais, tendo em vista o que consta do Proc. Nº E-12 / 44 47 / 20 01 .Considerando a necessidade de regulamentar a Lei nº 3.406 de 15 de maio de 20 00 .

DECRETA:Art. 1º– Os estabelecimentos comerciais e industriais, as entidades civis, com ou semfins lucrativos, representações, associações e as sociedades civis que, por at os deseus proprietários ou prepostos, discriminem pessoas em função de s ua orientaçãosexual, ou contra elas adotem atos de coação ou violência, serão punidos na formaprevista na Lei nº 3.406, de 15 de maio de 2000.Art. 2º– Entendem-se por discriminatórias e ofensivas ao objetivo da Lei nº 3.406 de15 de maio de 2000, além das previstas na Lei e no artigo as seguintes condutas,sempre que exercidas em razão da orientação sexual da pessoa (por exemplo):I – recusar ou impedir o acesso ou a permanência ou negar atendimento nos locais

previstos no art. 1º deste Decreto bem como impedir a hospedagem em hotel,motel, pensão es talagem ou qualquer estabelecimento s imilar;

IV – recusar, negar, impedir ou dificultar a inscrição ou ingresso de aluno em est abeleci-mento de ensino público ou privado de qualquer nível;

V – impedir, obstar ou dificultar o acesso de pessoas , devidamente habilitadas a qual-quer cargo ou emprego da Adminis tração direta ou indireta, bem com o das conces-sionárias e permiss ionárias de serviços públicos;

IX – praticar, induzir ou incitar pelos m eios de com unicação social ou de publicação dequalquer natureza, discriminação, preconceito ou prática de atos de violência oucoação contra qualquer pessoa em virtude de sua orientação sexual;

Rio de Janeiro, 11 de novembro de 20 01 .

F I Q U E S A B E N D O . . .Apesar de t oda a opressão e violência que historicamente t êm c onstituído sujeitos sociais subalternos no Brasil, emesmos sujeitos têm procurado, através de diversas formas de articulação, mobilização e rebeldia, constituir-se c

sujeitos de direitos. Na verdade, sujeitos de resistência. Esta dialética entre emancipação e subalternização atravessarelações sociais e as lutas políticas em todo o mundo e também em nosso país. Nesta edição do “Fique Sabendescolhemos por em destaque algumas formas concretas e objetivas de consolidação de direitos. A maior parte das c onquaqui apresentadas representam demandas sociais incorporadas pelo Estado na forma de leis ou iniciativas institucionM as é important e ressaltar que o Estado e os legisladores reagiram à pressão e à mobilização de sujeit os sociais polit izSem a luta, não há conquistas.

EM 198 4 o Governo do Estadode São Paulo cria o Conselho deParticipação e Desenvolvimentoda Comunidade Negra. Nos anosseguintes foram criadosconselhos s emelhantes naBahia, Rio Grande do Sul, M inasGerais e em muitos outrosestados da Federação.

Em novembro de 199 5 ogoverno Federal cria o Grupo deTrabalho Interm inisterial deValorização da Popula ção Negra.

Em 20 02 o Superior TribunalFederal (STF) inst itui a çõesafirmativas para o contrato deser viços terceirizados queimplicam em cota de 2 0% paraafrodescendentes.

Lei no. 7.71 6, 5 de janeiro de19 89 – “O Presidente daRepública, faço sab er que oCongresso Nacional decreta eeu sanciono a se guinte Lei: Art .1o. Serão punidos, na formadesta Lei, os crimes resultan tesde preconceitos de raça ou cor”.

Em julho de 19 86 foram criadasas primeiras DelegaciasEspecializadas de Atendiment oà Mulh er (DEAMs). Hoje em diasão mais de trezentas em todoo país e o número continuacrescendo.

Constit uição Federal, 1988, artigo 5o

“ Todos são iguais perante a lei, sem dis tinção de qualquer nature