crítica à vivissecção- a disparidade entre a moral (mores) científica e ética

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CRÍTICA À VIVISSECÇÃO: A DISPARIDADE ENTRE A MORAL (MORES) CIENTÍFICA E ÉTICA 02 SETEMBRO 2013 RESUMO: Neste artigo, respondo à acusação da cientista que afirmou não estar fundada em argumentos "científicos" a proposta abolicionista de erradicação de todos os experimentos feitos em animais vivos, e apresento os argumentos éticos para esclarecer por que a pesquisa em animais vivos não pode ser justificada eticamente, a não ser seguindo o modelo antropocêntrico da moralidade, justamente o que nos leva a destruir a vida alheia em nome de uma promessa da boa vida para humanos. PALAVRAS-CHAVE: vivissecção, abolicionismo, Lei Arouca, princípios éticos Ciência Por conta da aprovação da Lei Arouca, na semana passada, representantes da comunidade "científica" acusaram os abolicionistas de não serem "científicos" em sua defesa do fim do uso de animais para testes da indústria química, bélica, farmacêutica, de cosméticos e alimentos (todas vinculadas aos interesses da primeira). A defesa da erradicação das pesquisas em animais vivos de quaisquer espécies, para os vivisseccionistas, só teria valor se fosse uma defesa "científica". Em não se tratando de uma tese "científica", a proposta abolicionista não teria valor algum. Ao fazer tal afirmação, a cientista omite de seus leitores ou ouvintes fatos marcantes da história de sua área de atividade,

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Neste artigo, respondo à acusação da cientista que afirmou não estar fundada em argumentos "científicos" a proposta abolicionista de erradicação de todos os experimentos feitos em animais vivos, e apresento os argumentos éticos para esclarecer por que a pesquisa em animais vivos não pode ser justificada eticamente, a não ser seguindo o modelo antropocêntrico da moralidade, justamente o que nos leva a destruir a vida alheia em nome de uma promessa da boa vida para humanos..

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  • CRTICA VIVISSECO: A DISPARIDADE ENTRE A MORAL (MORES) CIENTFICA E TICA02 SETEMBRO 2013

    RESUMO:Neste artigo, respondo acusao da cientista que afirmou no estar fundada em argumentos "cientficos" a proposta abolicionista de erradicao de todos os experimentos feitos em animais vivos, e apresento os argumentos ticos para esclarecer por que a pesquisa em animais vivos no pode ser justificada eticamente, a no ser seguindo o modelo antropocntrico da moralidade, justamente o que nos leva a destruir a vida alheia em nome de uma promessa da boa vida para humanos.

    PALAVRAS-CHAVE:vivisseco, abolicionismo, Lei Arouca, princpios ticos

    Cincia

    Por conta da aprovao da Lei Arouca, na semana passada, representantes da comunidade "cientfica" acusaram os abolicionistas de no serem "cientficos" em sua defesa do fim do uso de animais para testes da indstria qumica, blica, farmacutica, de cosmticos e alimentos (todas vinculadas aos interesses da primeira).

    A defesa da erradicao das pesquisas em animais vivos de quaisquer espcies, para os vivisseccionistas, s teria valor se fosse uma defesa "cientfica". Em no se tratando de uma tese "cientfica", a proposta abolicionista no teria valor algum. Ao fazer tal afirmao, a cientista omite de seus leitores ou ouvintes fatos marcantes da histria de sua rea de atividade,

  • a cincia.

    Com a pretenso de buscar o conhecimento de forma objetiva, a cincia dedicou-se nas ltimas dcadas investigao de drogas para "cura" das doenas humanas. Por serem "cientistas", os vivissectores excluram de sua investigao todos os mtodos que no usam animais. Por terem a certeza de que o mtodo vivisseccionista o "nico" mtodo que leva a cincia descoberta da cura das doenas humanas, esses mesmos cientistas passaram as ltimas sete dcadas a interrogar as entranhas dos organismos de animais de outras espcies, pondo-lhes "questes objetivas" (leia-se, "cientficas") que, assim acham os cientistas, os organismos animais, que possuem anatomia, fisiologia, metabolismo, e bagagem gentica diversa da humana, tm obrigao de responder para livrar os humanos de doenas que eles prprios no investigam, mas dizem comunidade, ansiosa pelos resultados de suas descobertas, querer curar.

    Pois bem. Esta cincia que agora acusa os abolicionistas de no serem "cientficos" em sua luta pela libertao dos animais, to "cientfica" em seus estudos usando ratos, camundongos, ces, gatos, primatas, que passou mais de 70 anos produzindo "verdades cientficas" descartveis, seguindo ora os interesses da indstria tabagista, ora os interesses das seguradoras privadas de sade. A cincia produzida com cobaias vivas de outras espcies to "rigorosa" e "objetiva", em seus mtodos de investigao, que por mais de meio sculo levou os leitores dospaperscientficos a lerem, ora um artigo que "provava" cientificamente que o uso de tabaco produz cncer, ora que o uso de tabaco no produz cncer. Uma objetividade sem par! (Ver, Allan M. Brandt,The Cigarette Century: The Rise, Fall, and Deadly Persistence of the Product that Defined America, New York: Basic Books, 2007, 600 p.)

    A objetividade metodolgica da vivisseco to

  • irreprochvel que admite resultados "cientficos" contraditrios, no apenas no exemplo da pesquisa financiada pela indstria tabagista e pelas companhias de seguro de sade. Enfim, segundo a cientista que acusa os abolicionistas de no serem cientficos em sua defesa dos animais, quando a cincia usa um animal vivo para testar qualquer produto qumico, ela chega concluso objetiva que procura. verdade. O cientista monta seu protocolo de pesquisa to "objetivamente" que o resultado de sua investigao j pode ser publicado antes do experimento ser levado a efeito. A cincia to objetiva que "conduz" a investigao de modo a que ela resulte exatamente no que o protocolo de pesquisa promete trazer luz. Portanto, se a pesquisa paga (direta ou indiretamente) pela indstria tabagista, o protocolo do cientista afirma que o cigarro no produz cncer. Todavia, se o projeto recebeu financiamento da indstria de seguro-sade privado, o protocolo de pesquisa formula a hiptese a ser comprovada de que o fumo produz cncer. Bingo! Para os dois protocolos. E, pobres dos cientistas que devem produzir a confirmao "objetiva" de suas hipteses contraditrias! Se no tm animais vivos para levar a efeito seu protocolo de pesquisa, os resultados a que chegam "no podem" ser classificados de cientficos! Podemos concluir ento que quem garante ao cientista vivisseccionista a objetividade dos resultados que ele almeja so os ratos e camundongos que ele extermina em seus experimentos. Raciocnio para encaminhar sua pesquisa usando conhecimentos da fsica, da qumica, e de outras reas que formam juntas o cabedal do conhecimento necessrio para explicar a doena de um humano, isso eles no podem aprender a fazer. A questo que esses mesmos ratos e camundongos que do garantia de objetividade pesquisa vivisseccionista so usados tanto para "provar cientificamente" que o fumo d cncer, quanto para "provar cientificamente" que o fumo no d cncer. O que isto, ento, fazer cincia?

  • Para a cientista que acusa os abolicionistas de no serem "cientficos" ao defenderem o fim do uso de animais vivos em experimentos da indstria qumica em quaisquer de suas ramificaes, a cincia um conhecimento to refinado, to sofisticado, to mais elevado do que a tica, no? Pois : o cientista s pe questes a serem respondidas pelas entranhas de ratos e camundongos, por serem essas o "nico" recurso do qual dispe a inteligncia humana para a obteno do conhecimento que se deseja sobre a etiologia e teraputica das doenas. O cidado que no "sabe" como fazer pesquisa cientfica dispe do seu raciocnio, da capacidade moral de antecipar historicamente a derrocada dos modelos "cientficos" mais arraigados, e da memria de todos os erros que se cometeu ao longo da histria quando se quis fundamentar decises de ordem moral em "conhecimentos cientficos", descartveis. A noo tica de malefcio e benefcio no descartvel, no tem idade. Pode-se dar voltas e voltas, mas sempre se acaba dando meia-volta e reconhecendo que no d para escapar dela.

    preciso lembrar a esta senhora cientista que se hoje ela ocupa o lugar que ocupa na comunidade cientfica, isso se deveu luta de filsofos (John Stuart Mill na Inglaterra, por exemplo) que, de modo "no cientfico" defenderam a abolio do uso e abuso praticado contra os interesses das mulheres num tempo em que elas eram consideradas incapazes de raciocnio, de inteligncia, de cincia, de poltica, de administrao dos prprios negcios, de responder civilmente por seus atos... isso faz menos de dois sculos. No Brasil as mulheres s puderam votar na dcada de 30 do sculo XX, portanto somente h 80 anos. Tambm a erradicao da escravizao dos africanos se deveu a um argumento absolutamente "no-cientfico", o da igual considerao da dor e sofrimento para qualquer ser dotado de sensibilidade e conscincia.

    Imaginemos que, para abolir a escravido humana, houvesse

  • sido exigida uma "prova cientfica" de que os "negros" mereciam igual considerao e direitos. poca, os cientistas que estudavam a "natureza" dos negros chegavam a escrever coisas tais quais esta, em suas enciclopdias "cientficas" de psiquiatria: os negros sofrem de uma patologia que os leva sndrome de fuga. No podem ser deixados sem vigilncia ou correntes, pois tm genes que os levam a fugir impulsivamente do lugar onde se encontram! Mas a cincia no produz disparates apenas em relao aos negros, no. Tem mais uma: as mulheres no podem dedicar-se aos estudos e seguir uma vida de "cientistas", ou de "filsofas", porque sua circulao sangnea se altera, tornando-as estreis! Isso era cientificamente comprovado, por seus pares "cientficos", colega! (Ver, Tom Regan,Defending Animal Rights, Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 2001).

    Assim, a levar-se em considerao que uma luta tica de abolio de todas as prticas cruis e tormentosas de escravizao de seres capazes de sentir dor e de sofrer tem que ser precedida por uma "comprovao cientfica" dos argumentos, a colega cientista estaria condenada ainda a parir bebs e ter suas contas pagas pelo marido. E, caso fosse rica, teria amas de leite afrodescendentes para cuidar de nutrir seu beb! Tudo em nome de concluses cientficas objetivas!

    Mas, o que traduz a "objetividade" da vivisseco? o fato de ela pr uma questo s entranhas de ratos e camundongos, e tirar da sua resposta mais sbia? Mas, se so "igualmente sabedores", os cientistas que concluem, ao investigar entranhas de ratos, camundongos, ces, gatos, smios e aves, que cigarro no d cncer, e os que concluem que d, como pode a colega cientista acusar os defensores dos animais de no serem "cientficos" em seus argumentos? Presumo que a colega esteja a entender por "cientfico" um mtodo que traz resultados objetivos seguros e irretocveis, que possam ser confiveis para que os humanos tomem outras decises

  • relevantes baseando-se neles, por exemplo, erradicar toda propaganda de cigarro na TV, ou parar de fumar. para isso que a sociedade paga salrios aos cientistas, para que produzam conhecimentos que permitam s pessoas e aos governos tomarem medidas de precauo para no serem afetados por doenas evitveis. Ou no bem essa a histria a ser desvelada? (Ver, Snia T. Felipe, Vivisseco, um negcio indispensvel aos "interesses" da cincia?, Pensata Animal, Tribuna, 2007).

    Bem, se a cincia deve produzir um conhecimento objetivo e digno de ser usado pelas pessoas para orientar suas prprias decises em relao sua prpria sade e sade de sua famlia, como que emprega mtodos to "cientificamente objetivos" que levam a resultados disparatados, tanto quanto o so os testes feitos em animais para "provar" que cigarro no produz cncer, e, que produz? E os filsofos defensores dos animais que no so "cientficos"? Talvez eles tenham horror contradio, ao embotamento da inteligncia humana e at mesmo a falcias na produo do conhecimento.

    A cientista ainda acusa os abolicionistas de estarem propondo que os testes ora feitos em animais vivos de outras espcies sejam feitos em humanos vivos! S uma pessoa desinformada dos argumentos abolicionistas pode afirmar tal coisa. Exatamente por considerarem os mtodos atuais vivisseccionistas indignos da moralidade humana, at mesmo da moralidade de um "positivista", que os abolicionistas lutam pela erradicao desses mtodos na busca do conhecimento necessrio para a preservao da sade humana e a preveno de males evitveis. Bem, esse projeto no passa pelo uso de animais vivos, nem no-humanos, nem humanos.

    O que os abolicionistas propem que sejam substitudos os mtodos tradicionais vivisseccionistas por mtodos de investigao no vivisseccionistas. Por isso no defendemos

  • "alternativas", exatamente para no deixar margem para a "escolha subjetiva" do mtodo. Os novos mtodos devem substituir o usado at hoje.

    claro que para fazer cincia "limpa" (sem dor, sofrimento e sangramento alheios) os mtodos apropriados ainda precisam ser inventados e aprimorados. Alguns, por exemplo, os estudos clnicos e epidemiolgicos, j existem, mas no recebem financiamentos em larga escala, pelo menos no em escala to larga quanto recebem os vivisseccionistas. Outros mtodos, por exemplo, simulaes complexas em computador, j so empregues no estudo de algumas interaes bioqumico-fsicas, mas precisam ser aprimorados para estudo de outras, o que j est sendo feito no caso debiochips(o biochip da sndrome de Golgi, por exemplo, que permite estudos do diabetes e coagulao, inventado por um jovem numa universidade norte-americana). Isso pouco? Obviamente! Se todo dinheiro do planeta est escoando pelo ralo dos laboratrios vivisseccionistas, como se pode esperar que sem dinheiro os jovens cientistas possam construir modelos substitutivos s entranhas de ratos e camundongos? Mas s uma questo de financiamento. Em duas dcadas as simulaes por computador, osbiochips, as pesquisas com clulas-tronco-prprias, os modelos matemticos, a fsica quntica, e os estudos transdisciplinares aposentaro a massa de cientistas que hoje insiste em manter ao mais alto custo para os animais, a sade humana e a eticidade cientfica um nico modelo de investigao, o que emprega seres vivos em testes de todo tipo para fabricao de drogas de toda ordem que combatem sintomas mas no produzem a sade do organismo humano.

    Ainda uma palavra sobre experimentos macabros levados a efeito em animais vivos, humanos e no-humanos. tempo de cultivar a inteligncia da juventude, e de livrar as universidades de todas as prticas que recendem a crueldade contra seres sencientes, tenham esses o formato que tiverem,

  • sejam eles capazes ou no de raciocinar em termos lgicos tpicos da inteligncia humana. uma incoerncia argumentar que a incapacidade lgica dos animais a razo pela qual os usamos em experimentos tormentosos. Mesmo a comunidade cientfica tem membros incapazes de agirem de modo lgico, ainda que saibam seguir um raciocnio instrumental. Nem por isso se defende que sejam usados nesses experimentos cruis. O que importa a capacidade de sofrer, no a de raciocinar!

    Alm do mais, preciso no mentir quando se fala de vivisseco. Os cientistas afirmam namdiaque a lei aprovada para regulamentar a vivisseco os obriga a aplicarem analgesia ou anestesia nos animais. Isso no verdade para os experimentos mais dolorosos, justamente os inflamatrios, neurolgicos e psicolgicos. Se o animal for analgesiado o resultado do experimento no conduzir ao fim almejado. Se preciso produzir a inflamao para estudo de anti-inflamatrio, como se pode afirmar para o pblico que o animal receber analgesia, se nela h substncias anti-inflamatrias? Afirmar tais coisas mais do que errar por falcias!

    Quanto acusao de que os defensores dos animais no adotam argumentos cientficos para embasar sua argumentao, gostaria de dizer que isso no uma ofensa, o reconhecimento lcido de que a perspectiva da defesa dos animais no sofre os revezes das "grandes verdades cientficas", que tanto podem ser afirmadas quanto negadas, dependendo do bicho que foi empregue na investigao, e da fonte que financiou a pesquisa. Sempre foi verdadeiro que maltratar animais ato de imoralidade humana. Ao longo da histria tal argumento tico foi sufocado, mas jamais deposto. Continua a ser verdade que maltratar animais, seja para pseudo-benefcio humano, ou simplesmente para obter divertimento algo que no pode ser justificado eticamente. O argumento abolicionista no "cientfico", tico. Explico

  • a seguir o que quero dizer com isso.1

    O argumento conservador em favor da vivisseco

    O filsofo norte-americano Carl Cohen, representando a comunidade cientfica responsvel pela investigao em animais vivos, reconhece que o uso de animais para alimentao, lazer, testes cosmticos e moda deve ser questionado, mas no o uso de animais vivos em experimentos biomdicos. Cohen lista uma srie de descobertas feitas com experimentos em modelo animal vivo, que ajudaram a minimizar dores e doenas humanas. Esta a linha de argumentao em defesa da continuidade dos experimentos em animais vivos: os benefcios que tais experimentos representam para o bem-estar humano.

    Cohen indica estes benefcios, e, em nome deles, ignora absolutamente o malefcio que tais experimentos produzem ao bem-estar e vida de animais das mais diferentes espcies, usados vivos, sem analgesia e anestesia nos experimentos mais macabros, que vo desde congelamento a queimaduras, isolamento fsico e psquico, a, tormentos causados por drogas ou produtos qumicos que lhes so injetados, inalados, ingeridos, e assim por diante (Ver o documentrioEarthlings, eNo Matars!, Instituto Nina Rosa, So Paulo, 2006).

    A defesa do uso de animais vivos em experimentos dolorosos ou atormentadores elaborada por Cohen no se constitui sobre um argumento tico. Ela tem natureza estritamenteeconmica, o que no quer dizer somente vantagens monetrias para quem faz uso de animal vivo para desenvolver a cincia.

    Exigncias formais e substancial de um princpio genuinamente tico:

    1. Universalizabilidade (qualquer sujeito capaz de raciocnio

  • esclarecido deve poder reconhecer que tal princpio vlido, obrigando-se com esse reconhecimento a obedec-lo);

    2. Generalidade (o princpio deve servir para orientar decises em casos que no so da mesma natureza);

    3. Imparcialidade (o princpio deve ser seguido pelo sujeito moral agente em todos os casos, ainda que seus interesses possam ser prejudicados em certos casos);

    e, uma exigncia substancial:

    4. Orientar decises e aes humanas com vistas abeneficiar os afetadospor elas.

    Tomemos o caso dos experimentos em animais vivos para verificar de que modo tal prtica poderia ser considerada tica, considerando-se as exigncias formais e a exigncia substancial acima apontadas.

    O princpio tico substancial e fundamental para julgar as aes humanas leva em conta, exatamente, que tais aes podem ser responsveis pelo benefcio ou pelo malefcio daqueles que sero afetados por elas. No importa, neste caso, a natureza biolgica daqueles que sero afetados pela atividade que est sendo julgada. O que importa, da perspectiva tica, se tal atividade beneficia ou prejudica os seres afetados por ela. No caso de experimentos em animais, vimos no primeiro pargrafo que a justificativa de tais procedimentos sempre o presumido benefcio que a atividade de investigao em modelo animal vivo traz para os seres humanos.

    O argumento tradicional que defende tal prtica investigadora no leva em consideraotodosos seres afetados por esta metodologia, apenas os interesses presumidos dos seres humanos, em nome dos quais se justifica a prtica dolorosa e atormentadora levada a efeito

  • nesses animais. Pode-se concluir, ento, que o uso de animais vivos em experimentos que lhes causam dor, sofrimento e morte, em nome do benefcio que tais experimentos trazem para a sade humana fere a quarta exigncia que a filosofia faz a qualquer princpio moral que tenha a pretenso de validade: a de que deve orientar as decises humanas para obenefcio daqueles que so afetadospor ela. No caso dos animais usados em experimentos de laboratrio esta exigncia absolutamente ignorada, pois no se tem conhecimento de um experimento doloroso e letal que sirva para atender ou beneficiar o animal usado vivo nele. A cincia est sedimentada sobre uma perspectiva tica antropocntrico-hierrquica, razo pela qual os interesses mais genunos dos animais no contam, ainda que confrontados com os mais triviais interesses humanos, por exemplo, adquirir um batom com novo aroma ou colorao. Isso basta para cegar coelhos nos testes dos elementos que entraro na nova colorao e aroma.

    Mas, seria tal procedimento tico, pelo menos no que diz respeito terceira exigncia formal de um princpio tico, qual seja, a daimparcialidadena tomada de deciso quando esta pode afetar interesses moralmente relevantes de outros seres? Tambm neste caso, o uso de animais vivos em experimentos no pode ser justificvel do ponto de vista tico, pois viola o princpio da imparcialidade.

    Quando se trata de seres sencientes, isto , capazes de sofrer dor, tormento psquico e qualquer outro desconforto, mal-estar, prejuzo ou morte por conta de aes empreendidas por sujeitos morais agentes, julgamos antiticas tais aes pelo fato de que elas s deveriam ser empreendidas com pleno consentimento dos afetados por elas. Por isso, para fazer experimentos em animais-humanos vivos preciso que eles concordem com o experimento e, para que concordem com ele, preciso que recebam esclarecimento sobre os

  • riscos inerentes a ele.

    No caso de animais da espcieHomo sapiens, no se pode realizar qualquer experimento naqueles que no podem dar consentimento esclarecido: bebs, crianas, adolescentes, dementes, comatosos, pobres, adictos, marginalizados de qualquer natureza.

    O princpio da imparcialidade, terceira exigncia formal de um princpio tico, no admite o uso de seres sencientes humanos em experimentos que lhes possam causam dor, sofrimento ou privao que resultem em dano e morte. Se um experimento tem que ser realizado, o pesquisador tem que encontrar um paciente que atenda exigncia doconsentimento esclarecido, isto quer dizer, que seja capaz de pensar com clareza e tenha sua vontade livre de toda e qualquer forma de dominao, que pode ser material ou mental.

    Sem liberdade de escolha no pode haver pesquisa de seja l qual for o problema que afeta humanos. Quando se faz pesquisa em animal vivo esta exigncia ignorada absolutamente. claro, poderamos replicar: "animais no podem manifestar-se nem dar consentimento, nem ser esclarecidos sobre os riscos inerentes a este ou aquele experimento!". Justamente. Por no serem capazes de nada disso, esto no mesmo patamar dos bebs humanos, das crianas e adolescentes, dos senis, dos dementes, dos miserveis, dos adictos que no podem raciocinar com clareza sobre os assuntos que lhes dizem respeito. Sua vontade no livre, pois sua condio os torna dependentes das decises tomadas por seus cuidadores. Ainda aqui poder-se-ia achar a sada para justificar o uso deles, exatamente por seremdependentesdas decises que outros tm de tomar em seu nome. Mas, neste ponto, a quarta exigncia que constitui a natureza de um princpio tico o limite imposto aos quecuidamdesses humanos incapazes: suas decises devem

  • estar orientadas para proteger e preservar o bem-estar prprio daquele que se encontra na condio devulnerabilidade.

    Onde est a imparcialidade dos sujeitos morais agentes que usam animais vivos em experimentos que destruem o bem-estar prprio do animal e acabam com sua vida? No caso humano, a imparcialidade ordena que no se faa a eles o que no se admitiria que fizessem contra ns. Mas, assim que passamos a barreira da espcie biolgica e nos encontramos diante de um animal no-humano, especialmente quando sua configurao no se assemelha da espcieHomo sapiens, abandonamos imediatamente a exigncia de imparcialidade e o dever que ela impe, de proteger e preservar o bem-estar dos seres em situao de vulnerabilidade aos interesses humanos.

    A segunda exigncia formal de um princpio tico a de que seja capaz de iluminar juzos e decises morais em casos distintos. Tomemos, pois, o princpio moral mais conhecido, o da no-maleficncia. Este um princpio muito antigo, conhecido nos textos judaicos, no humanismo grego, e nas concepes ticas budista e jainista. Baseada no princpio da no-maleficncia, qualquer deciso, ao ou atividade de um sujeito moral agente deve ser guiada pela finalidade de no causar mal a qualquer ser senciente, e promover seu bem-estar, abstendo-se de aes que possam privar outros seres das condies de estar bem em vida a seu prprio modo, isto quer dizer, de acordo com o bem-estar de sua espcie de vida.

    Quando animais vivos sencientes so usados em experimentos cientficos aquela exigncia ignorada. Poderamos aqui pensar que a tica bem-estarista, a que defende condies de maior conforto para os animais usados em laboratrio seria a sada para tornar ticas essas pesquisas. Isto uma iluso. O princpio da no-maleficncia e sua contraface, o da

  • beneficncia, no ordenam que se d aos animais sencientes o tipo de confortonecessrioesuficientepara que o experimento seja bem sucedido. Ele ordena que em quaisquer casos, o bem-estar prprio daquele indivduo seja protegido e preservado. Tal exigncia torna anti-tico qualquer experimento em animais vivos, pois o bem-estar prprio do animal usado nesses experimentos j foi danificado pelo fato mesmo de o animal ser privado das condies ambientais nas quais seu psiquismo e sua fisiologia poderiam encontrar o equilbrio homeosttico tpico de sua espcie. Assim, tambm em relao segunda exigncia formal de um princpio tico, experimentos em animais vivos sencientes no podem ser considerados ticos.

    A primeira exigncia, a da universalidade do princpio, obriga todos os sujeitos morais agentes, quer dizer, todos os seres humanos capazes de raciocinarem sobre os desdobramentos de suas aes e os malefcios que elas podem representar para os interesses de outros seres sencientes que forem afetados por elas, a tomarem decises e empreenderem aes apenas nos limites do princpio tico, se quiserem que suas aes sejam aprovadas da perspectiva moral.

    Via de regra, no caso de experimentos cientficos em animais vivos, o cientista no est minimamente interessado em saber se o que ele faz tem ou no aprovao tica, bastando que seu protocolo de pesquisa tenha aprovao de seus pares e dos rgos que o financiam. De tica, este conjunto de crenas no tem nada. So crenas fomentadas pelo cientista para assegurar financiamento de seus projetos. Se o protocolo de pesquisa for aprovado, isto quer dizer, se ele receber financiamento, basta. Consideraes ticas tornam-se dispensveis. Menos nos casos em que procedimentos experimentais possam levantar suspeitas relativamente ao prejuzo, para o experimento, de submeter os animais vivos sencientes a procedimentos que acabem por atrapalhar o

  • resultado da pesquisa.

    Pode-se ver que o princpio da universalizabilidade, que deveria levar os cientistas a realizarem investigaes dentro dos limites do princpio da no-maleficncia, completamente ignorado no caso de experimentos em animais vivos. A nica preocupao do cientista a de no perder o financiamento de seu projeto. Os rgos financiadores no tm princpios ticos para decidir quais pesquisas so maleficentes para os animais submetidos a elas. O bem-estarismo no defende os animais frente liberdade do cientista de us-los em experimentos dolorosos e letais.

    Animais, humanos e no-humanos, so seres capazes de ter um bem-prprio, isto , especfico, e, ao mesmo tempo, seres cuja manuteno deste bem se d em condies ambientais e emocionais frgeis. Qualquer interferncia que represente limitao a este bem, necessariamente malfica ao indivduo que a sofre.

    Nos termos nos quais se faz investigao, hoje, no h possibilidade de reconhecer vestgios de tica na perspectiva do respeito pelos interesses dos animais. Poderamos nos agarrar hiptese de uma tica antropocntrica, quer dizer, uma tica indiferente dor e ao sofrimento animal, realmente voltada apenas para alcanar o benefcio humano. Se consegussemos justificar a pesquisa sob esta perspectiva, poderamos ento reconhecer que se poderia aprovar tudo o que se pratica hoje contra os animais. A questo, porm, que o tal do benefcio humano no alcanado. H trs dcadas atrs, era raro conhecer algum que sofresse de cncer, ou depresso profunda (refiro-me cidade onde moro, Florianpolis). Hoje, passados trinta anos nos quais a indstria qumica produziu drogas para tratar de quaisquer sintomas humanos, o cncer, os AVC's e a depresso esto espalhados na comunidade da UFSC, que agrega mais de trinta mil pessoas. Os trilhes de animais que foram mortos em

  • pesquisas contra o cncer no levaram a cincia a descobrir acurado cncer. Os cientistas continuam a crer que outros tantos trilhes de vidas animais sero necessrias at que eles cheguem s descobertas que prometem fazer. Eles continuam a procurar as chaves perdidas na madrugada debaixo do poste iluminado, mesmo j sabendo que ela foi perdida l atrs, na esquina escura (para poste iluminado leia-se: financiamentos).

    NOTA

    1Palestra proferida pela autora na IX Semana de Biologia da UFSC. Auditrio do Forum, CCJ/UFSC, 23/10/07, a convite dos estudantes que organizaram a mesa-redonda: tica e Experimentao Animal, da qual participaram os pesquisadores, Dra. Paula Brgger (UFSC), o presidente da CEUA, Dr. Tonussi (UFSC), o presidente do COBEA, Dr. Freyblatt (UNIVALI).