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Dossiê: Cristianismo e Política – Artigo original DOI Horizonte, Belo Horizonte, v. 7, n. 15, p. 53-72, dez. 2009 53 Cristianismo e política na Idade Média: as relações entre o papado e o império Christianity and politics in the Middle Ages: the relations between the Papacy and the Empire José D’Assunção Barros * Resumo O principal propósito deste artigo é discutir uma das mais importantes questões relativas à interação entre Cristianismo e Política nos vários períodos da Idade Média: a relação entre Império e Igreja. O tema será abordado com base no exame de alguns dos aspectos políticos e imaginários envolvidos nesta relação que, à partida, contrasta dois projetos de cunho universalista que terminam por se opor no contexto político e religioso do período medieval. Entre as questões examinadas, um ponto importante será constituído por uma reflexão sobre as origens da noção de Império a partir do Império Romano e, posteriormente, do Império Carolíngio, assim como suas projeções subsequentes, inclusive no período que ultrapassa a Idade Média em direção à Modernidade. O relacionamento entre império e papado, conforme veremos, foi constituído no período examinado por uma alternância de momentos de aliança e oposição política, mas durante todo o período também pode ser pensado nos termos de um grande confronto, entre os poderes secular e religioso, que envolve as noções de “igreja”, “império” e “reino”. Palavras-chaves: Império; Igreja; Realeza; Papado; Poder. Abstract The mainly purpose of this article is to discuss one of the most important questions refereed to the interaction between Christianism and Politics in the various periods of the Middle Ages: the relation between Empire and Ecclesia. The theme will be analyzed on basis of the examination of some political and imaginary aspects involved of this relation that, in first place, contrasts two universal projects that falls in opposition in the political and religious context of the Middle Ages. Among the questions examined, an important point will be constituted by the origins of the notion of Empire since the Roman Empire and, later, the Carolingian Empire, as also their subsequent projections, including in the period that exceeds the Middle Ages in direction to Modernity. The relationship between Empire and Papacy, as we shall see, was constituted by the alternation of moments of alliance and political opposition, but throughout the entire period it can be also thought in terms of a great confrontation between secular and religious powers that involves the notions of “ecclesia”, “empire” and “kingdom”. Key words: Empire; Church; Royalty; Papacy; Power. Artigo recebido em 23 de novembro de 2009 e aprovado em 17 de abril de 2010. * Historiador e Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (Brasil). Atua como professor nos cursos de Graduação e Mestrado em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), e como Professor Colaborador no Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ. E-mail: [email protected]

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Cristianismo e política na Idade Média

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  • Dossi: Cristianismo e Poltica Artigo original DOI

    Horizonte, Belo Horizonte, v. 7, n. 15, p. 53-72, dez. 2009 53

    Cristianismo e poltica na Idade Mdia: as relaes entre o

    papado e o imprio

    Christianity and politics in the Middle Ages: the relations between the Papacy

    and the Empire

    Jos DAssuno Barros

    Resumo

    O principal propsito deste artigo discutir uma das mais importantes questes relativas interao entre Cristianismo e Poltica nos vrios perodos da Idade Mdia: a relao entre Imprio e Igreja. O tema ser abordado com base no exame de alguns dos aspectos polticos e imaginrios envolvidos nesta relao que, partida, contrasta dois projetos de cunho universalista que terminam por se opor no contexto poltico e religioso do perodo medieval. Entre as questes examinadas, um ponto importante ser constitudo por uma reflexo sobre as origens da noo de Imprio a partir do Imprio Romano e, posteriormente, do Imprio Carolngio, assim como suas projees subsequentes, inclusive no perodo que ultrapassa a Idade Mdia em direo Modernidade. O relacionamento entre imprio e papado, conforme veremos, foi constitudo no perodo examinado por uma alternncia de momentos de aliana e oposio poltica, mas durante todo o perodo tambm pode ser pensado nos termos de um grande confronto, entre os poderes secular e religioso, que envolve as noes de igreja, imprio e reino.

    Palavras-chaves: Imprio; Igreja; Realeza; Papado; Poder.

    Abstract

    The mainly purpose of this article is to discuss one of the most important questions refereed to the interaction between Christianism and Politics in the various periods of the Middle Ages: the relation between Empire and Ecclesia. The theme will be analyzed on basis of the examination of some political and imaginary aspects involved of this relation that, in first place, contrasts two universal projects that falls in opposition in the political and religious context of the Middle Ages. Among the questions examined, an important point will be constituted by the origins of the notion of Empire since the Roman Empire and, later, the Carolingian Empire, as also their subsequent projections, including in the period that exceeds the Middle Ages in direction to Modernity. The relationship between Empire and Papacy, as we shall see, was constituted by the alternation of moments of alliance and political opposition, but throughout the entire period it can be also thought in terms of a great confrontation between secular and religious powers that involves the notions of ecclesia, empire and kingdom.

    Key words: Empire; Church; Royalty; Papacy; Power.

    Artigo recebido em 23 de novembro de 2009 e aprovado em 17 de abril de 2010. Historiador e Doutor em Histria pela Universidade Federal Fluminense (Brasil). Atua como professor nos

    cursos de Graduao e Mestrado em Histria da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), e como Professor Colaborador no Programa de Ps-graduao em Histria Comparada da UFRJ. E-mail: [email protected]

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    Introduo

    Papado e imprio, na Idade Mdia: eis aqui dois projetos universais para uma mesma cristandade ocidental que comea a se consolidar desde os primrdios medievais.

    Do jogo de avanos e recuos entre os poderes conquistados por cada um desses dois projetos um jogo poltico to intenso e vvido na Idade Mdia, mesmo que algumas vezes apenas ao nvel do Imaginrio j no parecer haver grandes resqucios medida que se adentra a Modernidade. De fato, quanto mais nos afastamos da Idade Mdia, o imprio parece se dissolver mais e mais na Histria, convertendo-se a princpio em mera fico poltica, desaparecendo a seguir, apesar da sua polmica ressurgncia em projetos polticos bem posteriores, tal como ocorreria com o projeto ariano do III Reich, proposto pelos Nazistas j em pleno sculo XX.

    Falaremos aqui, naturalmente, de uma ideia muito especfica de Imprio ancorada em uma histria que remonta ao Imprio Romano e constituio do Imprio Carolngio

    por Carlos Magno e no dos inmeros imprios ou ideias de imprio que puderam estimular at mesmo o soberano da Etipia contempornea a se conclamar Imperador. parte quantas ideias de imprio surjam e ressurjam no mundo contemporneo, e quantos soberanos almejem ser chamados pelos seus sditos de imperadores, a questo que a ideia de um Imprio universal, disto que aqui se trata, j dificilmente se sustenta em um mundo que parece extrair a sua prpria substncia da diversidade e da explorao, s vezes brutal, desta mesma diversidade. Enquanto isso o papado, por sua vez, prossegue neste mesmo mundo, que j se v dividido em inmeras instituies eclesisticas a partilharem o universo religioso no ocidente cristo. Mais duradoura, eis aqui uma instituio que foi forada a se adaptar, mais consistentemente, compreenso dos limites de suas antigas

    ambies universalistas. O presente artigo prope-se a examinar, em torno das ideias de Imprio e de

    papado, a histria de uma oposio que assinalou uma presena significativa e recorrente no decurso de toda a Idade Mdia. A abordagem empregada, atenta s interrelaes entre poder, discurso e imaginrio, busca combinar a perspectiva da nova Histria Poltica Histria do Imaginrio. O problema examinado, ao situar papado e imprio como dois

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    projetos ao mesmo tempo concorrentes e interdependentes diante de um conjunto de circunstncias e necessidades polticas, corresponder ao estudo da dinmica histrica de

    uma relao que precisou ser construda, de forma complexa, a partir do confronto e da aliana. Principiaremos por uma tentativa de compreender, em suas definies mais irredutveis, em que ideias fundamentais e bases histricas ancorava-se cada um desses dois projetos, at que ambos comeam a entretecer, em um ocidente medieval em constante mutao, uma histria de alianas e conflitos polticos cuja compreenso certamente fundamental para um entendimento mais pleno da prpria Histria Medieval.

    1 Imprio: uma antiga noo e sua especial importncia na Roma Antiga

    A oposio entre imprio e papado no decurso da Idade Mdia, bem como suas interaes vrias, desenvolveu-se de maneira particularmente complexa sob o signo de dois grandes projetos que se postulavam como universais: o de uma Igreja Romana, que passaria a se apresentar na Europa Medieval como o grande fator da unidade da cristandade ocidental, e o de um Imprio do Ocidente, que j no existia mais a partir da deposio de Rmulo Augusto em 476 d.C., mas que, a partir da, nunca deixaria de pairar sobre o imaginrio poltico dos novos reinos que, nessa parte ocidental do antigo Imprio Romano, dava agora origem aos inmeros reinos europeus. Esta histria deve ser recuperada a partir

    de seus primrdios, que remontam Antiguidade Romana. Imprios e domnios imperiais foram frequentes na histria do mundo: do Imprio

    Persa ao domnio dos antigos atenienses sobre inmeras cidades-estados na Grcia Antiga, isso apenas para citar dois exemplos entre tantos. A ideia de imprio, antes de mais nada, quase sempre esteve associada ideia de um poder a ser exercido particularmente de um poder exercido sobre vrios povos e territrios1. Frequentemente, o poder imperial, nas suas

    1 No mundo romano, originalmente o vocbulo imperium estava associado ao poder exercido por um

    indivduo encarregado de governar, e neste sentido se desdobrava em dois aspectos: o poder de controlar a unidade do comando militar (imperium militae) e a unidade de comando jurdico (imperium domi). Imperium era, portanto, um atributo inerente aos reis, que exerciam poder absoluto no interior do territrio sob sua jurisdio e tambm sobre o exrcito sob o seu comando. No mundo romano, com a instituio da Repblica verifica-se a distribuio do Imperium entre cnsules e pretores, de modo a evitar a concentrao do poder em um nico indivduo, esta s ocorrendo em ocasies excepcionais, nas quais fosse necessrio o empossamento de um ditador. De qualquer modo, com o tempo a palavra imperium vai se deslocando de poder exercido por um ou mais indivduos, em nome do Estado, para um sentido mais amplo, de poder que emana do Estado Romano e desdobra-se em magistraturas e poderes vrios, inclusive aqueles encarregados de governar territrios e provncias formados com a expanso das conquistas. Neste sentido, imperium vai incorporando a

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    diversas manifestaes histricas, esteve associado a expanso, domnio absoluto sobre determinado conjunto de territrios, ou um poder que reconhecido por outros poderes da a relao possvel entre imprio e Reino, qual retornaremos oportunamente2.

    Com o desenvolvimento histrico do Imprio Romano, contudo, e particularmente quando este adota o Cristianismo como religio oficial a partir de Constantino aqui se reforando o projeto imperial pelo contraponto de um segundo projeto totalizador, que era o de uma religio que se pretendia a nica capaz de conduzir salvao da alma um novo matiz vinha se juntar a esta ideia: o de universalidade. Em que pese que o Imprio Romano tenha sempre se confrontado, no plano poltico, com outras realidades polticas que tambm se postulavam como imperiais, a verdade que a aliana com o Cristianismo, nos ltimos

    sculos da Antiguidade Romana, reforava a ideia de um imprio universal, que almeja estender, sobre todos, o seu domnio, e sobre os seus eleitos, uma proteo igualmente

    universal3. Contudo, precisamente nesse momento histrico em que a ideia de universalidade crist vem ao encontro da ideia de universalidade imperial, o poder de Roma j no era o mesmo. Uma srie de processos histricos que aqui no podero ser abordados, e dos quais a presso e entrada no Imprio Romano de inmeros povos apenas um dos muitos fatores, terminou por produzir uma ruptura que separou, de um lado, o chamado Imprio Romano do Ocidente e, de outro, o chamado Imprio Romano do Oriente (futuro Imprio Bizantino). Esses eventos trouxeram uma complexidade peculiar: havia agora dois imprios com projetos universais similares, com uma base crist em comum e edificados sobre uma cultura e uma histria comum. Adicionalmente, a diviso entre um Imprio Ocidental e um Imprio Oriental produzira tambm a emergncia de duas Igrejas crists: uma que passava a estar sediada em Roma, outra que passava a estar sediada em Bizncio.

    significao de um poder que abarca outros poderes, ou mesmo que submete outros poderes. Na plenitude de sua expanso, Roma j deve ser vista como o centro integrador/explorador de distintos sistemas regionais, de modo que a palavra Imprio atinge aqui o termo de seu desenvolvimento semntico, expressando a posio cosmopolita de Roma em relao s diversas territorialidades e realidades sociais por ela controladas. Para a questo da Ideia de Imprio. (ver FOLZ, 1953) 2 Para o caso do Imprio Romano, observa Grimal que a expresso passa a designar no perodo do Principado

    no s o espao no interior do qual Roma exercia o seu poder, como este mesmo poder. (Cf. GRIMAL, 1999, p. 9) 3 Na verdade, a ideia de universalidade do Imprio Romano remonta a tempos anteriores. Com o Principado,

    fortalece-se a ideia de que Roma estaria destinada a sujeitar o mundo conhecido, e j nesta poca Imperium relaciona-se no apenas ao territrio submetido lei romana e administrado diretamente, como tambm aos povos que reconheciam a autoridade do Imprio e a ele se submetiam atravs de relaes de Patrocinium.

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    Se o Imprio Oriental teve uma longa vida histrica no decorrer de toda a Idade Mdia, o Imprio Romano do Ocidente no logrou perseverar na manuteno de sua

    unidade, e logo se partiu em uma grande quantidade de reinos, amalgamados a partir da combinao das antigas populaes que habitavam os territrios romanos com novos povos que haviam invadido o mundo romano desde o sculo III d.C, passando, em muitos casos, a integrar o antigo imprio como exrcitos federados ou mesmo reinos sob a tutela imperial. Em 476, Odoacro rei de um povo que havia sido assimilado recentemente pelo imprio no seu circuito de exrcitos de mercenrios, e que eram conhecidos por hrulos deps Rmulo Augusto, o ltimo Imperador Romano do Ocidente. Ao invs de tomar a coroa imperial para si, resolveu envi-la ao Imperador Romano do Oriente, e a partir da no se

    falaria, por algum tempo, em imprio, seno em referncia ao Imperador Bizantino.

    2 A aliana entre imprio e papado na Alta Idade Mdia

    A ascenso do reino Franco no cenrio Europeu veio se combinar a um contexto em que a Igreja Romana, ela mesma detentora de territrios temporais na parte central da Itlia, via-se afrontada por duas grandes ameaas que eram os povos lombardos, recm chegados pennsula, e o Imprio Bizantino, que controlava a chamada Igreja Crist Oriental. A sobrevivncia da Igreja Romana era ameaada, neste contexto, de muitas maneiras tanto territorialmente como doutrinariamente e, por isto, o projeto do papado de se projetar como fora crist universal, no mbito do ocidente, poderia se combinar perfeitamente com o projeto de expanso do povo franco, j cristianizado. A passagem da dinastia Merovngia para a dinastia Carolngia, atravs de Pepino, o Breve, precisamente assinalada por uma aliana entre o reino franco e o papado, que ficou selada, simbolicamente, pela uno, recebida por Pepino, das mos de Estevo II.

    Vinte anos depois, Carlos Magno encetaria uma aliana similar com o Papa Adriano I, a partir de um intrincado contexto de alianas e oposies que esto registrados em diversos anais da poca, como o Liber pontificalis. Fonte singular para uma compreenso dos aspectos polticos e simblicos envolvidos nesses acontecimentos a Carta de doao de Constantino, documento forjado nas oficinas do prprio papado de Adriano I como se fosse uma antiga carta em que o Imperador Constantino havia doado terras da Itlia Central ao papa Silvestre. Este documento e a Carta de Pepino de 754, por ocasio da primeira

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    aliana franca com a Igreja Romana, ancoraram a assinatura de um terceiro documento em que Carlos Magno estabelecia a sua prpria aliana com Adriano I. A partir da andam

    juntos os dois projetos, o de expanso do Reino Franco e o de universalismo espiritual da Igreja Romana sobre as populaes crists do Ocidente, estabelecendo-se uma aliana que ir culminar com a coroao imperial de Carlos Magno, no ano 800. Nesse momento, ainda mais do que antes, Carlos Magno passa a ser visto, simultaneamente, como o depositrio de um poder universal e como o responsvel pelo destino terreno da Igreja, tal como aparece to bem expresso na capitular de Aix-la-Chapelle, divulgada em maro de 802 (FAVIER, 2004, p. 309)

    A coroao de Carlos Magno, em 800, diga-se de passagem, representa apenas um

    momento especial no processo de concretizao de uma poltica carolngia que, a partir de 789, j revela, com a capitular Admonitio generalis, uma clara mudana de rumos em direo ideia de Carlos Magno assumir uma funo imperial. Entre outros aspectos sinalizadores, j se v claramente a ideia de que a autoridade do rei franco se refere aos fiis de Deus e do rei, situando no mesmo plano as duas fidelidades. (FAVIER, 2004, p. 471)

    Assumido o ttulo imperial por Carlos Magno a partir de 800, citaremos como momento fundamental para a evoluo posterior das relaes entre o projeto imperial carolngio e o projeto universal da Igreja Romana a elaborao da Capitular de 817, intitulada Ordinatio Imperii. Neste documento, mandado redigir por Lus o Piedoso, trs anos depois da morte de Carlos Magno e j tendo sido sagrado imperador na prpria vida do primeiro imperador franco, buscou-se delinear, com maior preciso, os mecanismos de

    sucesso imperial no ocidente, associando-os a um nico herdeiro. No ano anterior, Lus o Piedoso j tivera o cuidado de receber a uno pontifcia das mos do Papa Estevo IV, de modo que o documento vinha acrescentar um peso de lei a uma prtica que j trazia uma forte marca simblica. A capitular registra vrios delineamentos importantes: alm de instituir, por escrito, a pressuposio de que o Papa deveria coroar o eleito, fixava uma

    linha nica de sucesso, que dizia que s poderia haver um nico imperador, e ainda sistematizava a possibilidade de um imperador reinar sobre reis j que, ao mesmo tempo em que s haveria um imperador, poderia haver diversos reis sob a sua autoridade imperial.

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    Essa ideia de um imperador acima dos reis era j antiga j que no Imprio Romano foram feitos vrios reis sob a gide do imperador, e alis, a prpria origem do

    reino Franco, no sculo VI, pairava sob a noo de que este era um reino que pertencia ao imprio. Contudo, agora esta ideia assumia novas conotaes que buscavam delimitar mais claramente a separao do imperium em relao aos regna. Singularmente, a estrutura imaginada por Lus, o Piedoso, degradou-se na concretude poltica a partir do desmembramento do Imprio Carolngio entre seus trs filhos. Lotrio, que ficou sendo o detentor do ttulo imperial e que deu origem dinastia dos otonianos, no iria exercer uma autoridade propriamente imperial sobre seus dois irmos, e cada um dos trs herdeiros passaria a governar um tero do antigo imprio. De qualquer modo, esta fico de imprio,

    que retomava a antiga tradio do Imprio Romano do Ocidente, estava, daqui para diante, fixada atravs de uma honra que pertenceria aos futuros herdeiros dos reis carolngios. Em

    que pese que a honra imperial tenha, a partir da, oscilado hesitantemente entre sucessores de um ou outro dos antigos territrios carolngios, j desmembrados, e que apenas sob Carlos, o Gordo, tenha havido um breve momento de reunificao territorial, a ideia de imprio mesmo que mais fictcia do que correspondente a uma realidade poltica efetiva seria a base das futuras pretenses do Imprio Teutnico.

    A coroao, em 962, do primeiro imperador Otnida, Oto I, conserva suas referncias em relao coroao de Carlos Magno. Para comear, Oto I firmara suas pretenses aps uma srie de campanhas de extenso de seu poder: sucessivamente,

    reunificara parte do antigo Imprio Franco atravs da anexao da Francia Oriental, conquistara a coroa de ferro dos lombardos em 952 e impusera-se aos hngaros em 955. Obtendo a aliana do Papa Joo XII, recebia deste, finalmente, a sagrao imperial, dando incio ao Imprio Otnida. A ele se seguiu Oto II, que foi sagrado em 976 e que autodenominando-se Romanorum imperatur augustus completou o seu ttulo com uma

    expresso solene que era mais uma referncia direta ao antigo Imprio Romano. Oto III, em 962, imprime novos avanos na utilizao da ideia de imprio, assumindo todo um simbolismo e uma imagstica que buscavam reforar ainda mais a sua filiao imaginria em relao ao antigo Imprio Romano. A partir dele, novos imperadores sucedem-se, embora o ttulo tenha oscilado por dinastias distintas, conforme a aclamao dos prncipes

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    eleitores, que nessa poca passaram a constituir a base de consulta para a escolha dos novos imperadores

    Documento mpar para a sistematizao do imaginrio imperial surge no Imprio de Henrique III, quando se pe por escrito, em 1030, um Livro de cerimnias da corte imperial, que buscava estabelecer uma minuciosa ritualstica com claras referncias na pompa imperial de Bizncio. De igual maneira, no sculo seguinte iria ser recuperado um Ordo de consagrao imperial do incio do sculo X, multiplicando ainda mais a ritualstica e os objetos simblicos a estarem presentes na sagrao.

    3 As tenses entre imprio e papado na Baixa Idade Mdia

    Em que pese toda uma ritualstica que procurava reunir o imaginrio imperial e o simbolismo cristo atravs de uma aliana entre o imprio e o papado, a verdade que a questo da sagrao imperial oferecia um profcuo terreno para que comeassem a surgir conflitos entre o poder espiritual e o poder temporal. Era o Imperador que fazia o Papa como ocorrera com Oto III, ao impor a Roma o Papa Clemente II, que logo depois o consagraria ou era o Papa que deveria fazer o Imperador, como declararia Gregrio VII, j em 1076, em um documento denominado Dictatus Papae? A Reforma da Igreja Medieval, alis, j tinha produzido, em 1059, o decreto que institua a eleio do papa pelos cardeais, assinado pelo Papa Nicolau II, e que, para a sua elaborao, tivera precisamente a

    influncia do reformador Hidelbrando, futuro Gregrio VII, ligado abadia de Cluny. Mas pode-se imaginar como a questo era complexa, j que, nos diversos reinos da cristandade, os reis e tambm o imperador tentavam impor o direito de indicar autoridades eclesisticas nos territrios que governavam. Para entender este ponto, ser til tentar compreender a seguir as relaes concretas da Igreja com o mundo feudal que a cercava por todos os lados.

    De fato, o complexo panorama das relaes entre a Igreja e os diversos poderes temporais, nos vrios territrios europeus, mostravam, desde os primrdios do sculo XI, uma situao pouco cmoda para a Igreja. Na Frana, os primeiros reis Capetos de modo a angariar proventos importantes para as tesourarias rgias tinham adquirido o hbito de vender, pelos melhores preos, os cargos eclesisticos reais que estavam sob seu controle, e com frequncia impunham, pela fora, os candidatos episcopais de sua preferncia. Na

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    Inglaterra, as aristocracias locais da primeira metade do sculo XI haviam praticamente se assenhorado das dignidades eclesisticas. Aps a conquista de Guilherme I, em 1066, o controle da situao passa ao poder rgio, que distribura os assentos episcopais aos clrigos normandos, mas assegurara a sua sujeio coroa. No imprio, era j uma tradio que remontava a perodos anteriores designao imperial de bispos, aos quais eram concedidas, frequentemente, alis, funes condais que se misturavam s funes pastorais. Nesse contexto, os bispos estavam inteiramente sujeitos ao imperador ou a outros governantes temporais, que lhes concediam a investidura atravs de dois instrumentos simblicos importantes, o bculo e o anel, imagens em torno das quais, em breve, iria se desenvolver uma verdadeira guerra de representaes entre o papado e o imprio. O

    bculo era o smbolo da jurisdio; o anel o smbolo da unio mstica com a Igreja. Vazando transversalmente a sociedade eclesistica de alto a baixo, a interferncia

    dos poderes temporais na Igreja era manifestada, e mesmo as parquias rurais estavam integradas aos poderes senhoriais atravs do controle dos grandes proprietrios que eram herdeiros dos fundadores dessas igrejas. Muito habitualmente eram eles quem designavam os ministrantes das parquias que orbitavam em torno de seus senhorios, exigindo juramentos de fidelidade e participando das rendas e dzimas por elas recolhidas, configurando desta maneira uma estrutura tipicamente feudal. O quadro geral, portanto, era em todos os nveis o de uma intrincada confuso entre a funo eclesistica propriamente dita e o benefcio temporal, fosse este concedido pelo imperador, pelo rei, ou mesmo pelo

    grande senhor. Naturalmente que a investidura que procedia dos senhores temporais conflitava

    diretamente com a antiga noo cannica, segundo a qual o ministrio episcopal deveria ser concedido pelo clero e pelo povo da diocese correspondente. Embora essa noo j no correspondesse a uma realidade no Ocidente Medieval, ela vinha acompanhada de uma

    forte carga imaginria. Dois conceitos importantes que surgem da situao de confuso entre os interesses

    temporais e a funo religiosa, no mbito de uma moral eclesistica, referem-se s ideias de simonia e nicolasmo. O conceito de simonia, que no seu sentido mais estendido referia-se tanto ao trfico de coisas santas e seu desvio para finalidades profanas como compra de funes eclesisticas, adaptava-se situao dos clrigos, ou mesmo de leigos, que haviam

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    comprado suas dignidades eclesisticas queles que controlavam o direito de investidura. Na contrapartida, os clrigos investidos desta maneira tambm procuravam obter vantagens

    a partir da venda de cargos menores, que passavam a estar sob sua jurisdio, alm de obter pagamentos pelos sacramentos que deviam administrar em razo de sua funo eclesistica.

    O nicolasmo representava outro ponto importante de interferncia entre o sagrado e o temporal, pois se referia aos padres que viviam amancebados e que, frequentemente, geravam filhos que poderiam postular direitos diversos. Alguns cargos, inclusive, eram transferidos hereditariamente. Na segunda metade do sculo XI, tanto a simonia como o nicolasmo movimentavam polmicas que clamavam por uma soluo nos

    meios eclesisticos, e a reforma gregoriana, j em curso, iria centrar-se diretamente nestes pontos.

    Em 1073, quando Gregrio VII ascende a papa, a Igreja estava em pleno desenrolar de uma reforma religiosa que comeara a tomar forma a partir de 1050. Seu perodo de pontificado, entre 1073 e 1085, particularmente intenso em termos de novas propostas que visavam discutir a posio da Igreja no mundo. A atuao de Gregrio VII, neste contexto, seria especialmente importante em trs pontos centrais: o esforo de definir com clareza os direitos e responsabilidades do papado, a substituio do direito da Igreja Germnica pelo Direito Cannico, e a conquista da garantia de liberdade de eleio para o cargo de Papa. (BOLTON, 1985, p. 21)

    Como grande reformador e homem consciente das transformaes de seu tempo,

    Gregrio VII percebeu que a sobrevivncia e as possibilidades de desenvolvimento da igreja, enquanto instituio, dependeriam seriamente de resolver algumas questes cruciais, e a primeira delas relacionava-se, precisamente, necessidade de fixar sua autonomia em relao ao imprio ou a qualquer outro poder temporal o que implicava em que todos os cargos eclesisticos, e no apenas o Sumo Pontificado, fossem escolhidos na prpria alada

    da igreja, e no impostos por interesses polticos ligados aos poderes temporais. Ao mesmo tempo, percebia que era preciso que o papado retomasse claramente a noo de que era o

    sumo pontfice o lder mximo da Cristandade, acima de imperadores e reis. Em funo disso deve ser entendida a sua preocupao em reformular toda a imagstica do papado, apropriando-se inclusive de smbolos e imagens do poder imperial. Com a utilizao do gorro branco, que simbolizava o regnum, afirmava-se agora inclusive como um senhor

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    temporal, percorrendo o caminho inverso de imperadores que, desde Carlos Magno, procuravam afirmar sua imagem tambm de senhores espirituais da cristandade. Da mesma

    forma, defendeu que o poder espiritual do Imperador estava mesmo abaixo de clrigos no muito elevados na hierarquia eclesistica. O exame de um trecho da correspondncia de Gregrio VII ser eficaz para verificarmos, de forma concentrada, os diversos aspectos relacionados ao projeto de assegurar igreja autonomia e soberania perante os poderes temporais:

    O Papa no pode ser julgado por ningum; a Igreja Romana nunca errou e nunca errar at o final dos tempos; A Igreja Romana foi fundada apenas por Cristo; s o Papa pode depor e empossar bispos; s ele pode convocar assembleias eclesisticas e autorizar a Lei Cannica; s ele pode revisar seus julgamentos; s ele pode usar a insgnia imperial; pode depor imperadores, pode absolver vassalos de seus deveres de obedincia; todos os prncipes devem beijar seus ps. (SOUTHERN, 1970, p. 102)

    Compreende-se, dentro desse programa, que uma das primeiras preocupaes de Gregrio VII tenha sido a de proibir enfaticamente a investidura leiga, isto , a escolha de bispos e abades por prncipes e imperadores. O Dictatus Papae de 1076, que consubstancia a proposta, causou imediata reao do Imperador Henrique IV, que deu o Papa como deposto. Este, reciprocamente, declarou o Imperador como deposto e excomungado, e assim concretizava-se, na prtica, a prpria questo de que tratava o Dictatus Papae: quem

    teria o direito de nomear ou depor o outro: o Imperador ou o Papa? O gesto de Gregrio VII ao depor Henrique IV era ainda mais contundente, pois proibia os vassalos de lhe prestar

    servio, ameaando-os com a mesma excomunho que j destinara ao Imperador. A conselho de seus assessores, Henrique IV capitulou e foi ao Castelo de Canossa em 1077, pedindo ao Papa um perdo que foi prontamente concedido, resolvendo momentaneamente a questo em favor da igreja.

    O conflito entre o papa Gregrio VII e Henrique VII foi, contudo, apenas um dos diversos confrontos da poca entre o papado e o imprio, que esto na base da chamada Querela das Investiduras (FLICHE, 1964). Depois de novos acontecimentos conturbados, em que o Imperador Henrique IV teve de enfrentar militarmente um concorrente ao seu

    ttulo chamado Rodolfo, e em que Roma fora saqueada por normandos at que, por fim,

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    Gregrio VII faleceu em seu exlio em Salermo, um novo papa terminou por ser empossado pelo Imperador, com o nome de Clemente III o que vem a mostrar que a Querela das Investiduras estava longe de ser resolvida.

    A questo das Investiduras s estaria definitivamente resolvida em 1122, com a Concordata de worms, que foi assinada entre o imperador Henrique V e o papa Calixto II, estabelecendo-se que ao papa caberia a investidura espiritual (anel e cruz) e ao imperador a investidura temporal (o bculo). Na prtica, ficava definido que os bispos atuantes nos territrios do Imprio Teutnico no seriam mais funcionrios do Estado, e sim vassalos do imprio. O episdio assinala de certo modo uma vitria do projeto de supremacia do poder papal sobre os poderes polticos, mas na verdade novos confrontos surgiriam no futuro.

    A leitura do texto da Concordata de worms mostra como a questo entre a Igreja e o papado para alm de questes concretas e embates que podiam chegar at confrontos

    violentos entre os partidrios de um ou outro lado dava-se tambm ao nvel de uma autntica guerra de representaes. Assim, as eleies episcopais e abaciais seriam livres, envolvendo apenas o clero, mas por outro lado deveriam se desenrolar na presena de um delegado do imperador o que, naturalmente, apenas uma contrapartida simblica para um poder institucional que fora inteiramente restitudo a Igreja. De igual maneira, o metropolita deveria outorgar a investidura eclesistica ao novo eleito, o que novamente estabelecia um acerto simblico. As decises relativas aos objetos de investidura, partilhadas entre o poder imperial e o poder eclesistico, por fim, conformam um gestual

    simblico importante nesta guerra de representaes. Antes de prosseguirmos com a questo do confronto entre os poderes temporal e

    espiritual, examinemos mais rapidamente um campo de tenses que, em contraponto questo da oposio entre papado e imprio, dava-se no prprio mbito dos poderes temporais. O imprio deve enfrentar, na sua realidade interna de fora poltica e, por vezes,

    de concretizao territorial mais ou menos extensa, as diversidades. A entidade poltica do reino, por exemplo, surgir como um ponto importante. Mas antes de falar nesta questo

    mais complexa, lembremos tambm a diversidade interna dos que disputam ou se opem ao imprio. H por exemplo verdadeiras oposies familiares que podem ser lembradas.

    Nesse mbito, por exemplo, poderemos incluir o conflito entre Guelfos e Guibelinos. Os guelfos constituam originariamente uma famlia descendente do conde

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    bvaro Welf I, do incio do sculo IX, que manteve uma irredutvel rivalidade com os Hohenstaufen pela hegemonia na Alemanha de princpios do sculo XII s primeiras

    dcadas do sculo XIII. Na medida em que os Hohenstaufen conseguiram se projetar ao nvel de famlia imperial, os conflitos se produziram nesta oposio em relao aos guelfos, s vezes de forma violenta. Por outro lado, a famlia Welf alcanou o mbito imperial em 1201, com a eleio de Oto de Brunswick dignidade imperial com o nome de Oto IV, tendo, para tal, contado com o apoio de Inocncio III. Mais tarde, os guelfos seriam novamente suplantados pelos hohenstaufen.

    A partir de 1240, essas rivalidades familiares cristalizam-se em conflito partidrio na Itlia, surgindo o partido dos guelfos (de Welf) e guibelinos (de Waiblingen, que era simultaneamente o nome do Castelo dos hohenstaufen como o seu grito de guerra). Nesse contexto, os guelfos pelo menos no princpio tenderam a apoiar o papado na sua

    oposio aos imperadores. Num perodo posterior, estas origens ligadas a rivalidades familiares e a posies relacionadas ao conflito entre imprio e papado, tenderam a serem esquecidas em favor da cristalizao de uma irredutvel hostilidade que passou a contrapor guelfos e guibelinos como faces rivais nas comunas italianas. Mas aqui j nos afastamos da questo Imperial propriamente dita.

    4 A relao imprio-papado e o contraponto da noo de reino

    H ainda outra questo de mxima importncia a ser problematizada para a compreenso dos problemas que deviam ser enfrentados pela ideia de imprio no ocidente medieval: a sua relao com uma terceira entidade a ser considerada: o reino. Na Antiguidade Romana, quando comeam a afluir para o imprio os diversos reinos brbaros que comeam a se confrontar com o mundo romano e, em muitos casos, a serem absorvidos por este, ganha fora a ideia j antiga de que o imprio contm reinos dentro de si, ou a ideia de que o imperador poderia fazer reis. O imprio, no quadro das abstraes temporais

    desenvolvidas a partir do ocidente medieval com base na referncia Antiguidade Romana, deveria ser uma categoria superior de Reino. Contudo, o imprio Teutnico, em fins do

    sculo XII, j estava limitado a um territrio especfico, a Germnia, e isso trazia um ponto de tenso para a ideia de imprio, j que o imperador na prtica reinava sobre um espao

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    limitado. Dito de outra forma, a ideia de imprio encontrava resistncias tambm na rede dos demais governantes temporais da Europa Medieval, j que na prtica o Imperador Teutnico no era mais poderoso do que muitos dos reis europeus.

    Outro aspecto que favorece o crescente sucesso e a projeo da ideia de realeza, por oposio ideia de imprio, particularmente no perodo da Idade Mdia Central, foi certamente a adaptao da realeza ao imaginrio feudal. bastante singular a posio do rei no esquema tripartido que concretiza a teoria da trifuncionalidade este esquema imaginrio mas fortemente influente em algumas regies do feudalismo europeu, segundo o qual o mundo estaria distribudo entre as ordens oratore, bellatore e laboratore. O rei conseguia na verdade congregar todas as dimenses funcionais. Rei dos oratores, ele no

    deixa de participar ao seu modo da natureza e dos privilgios eclesisticos e religiosos (LE GOFF, 1980, p. 80). Rei dos bellatores, ele o primeiro dos guerreiros, e nesta funo concretiza certas ambivalncias que dele fazem tanto um rei feudal um primus inter pares que se apresenta como a cabea da aristocracia militar como tambm algum que colocado fora e acima dela (LE GOFF, 1980, p. 80). Uma avaliao mais completa do esquema poderia ainda situ-lo como o ponto de confluncia das trs ordens, e o aspecto de rei dos laboratores apresenta-se como a funo rgia de garantir a ordem econmica e assegurar a prosperidade material. (LE GOFF, 1980, p. 82)

    A imagem do rei como aquele que participa simultaneamente das trs ordens ajuda a compreender, particularmente, que o principal objetivo do esquema tripartido seria representar a harmonia entre as ordens, a interdependncia, a solidariedade entre as ordens. E explica tambm, conforme prope Le Goff, o sucesso crescente que apresentaria

    a imagem do rei rbitro que harmoniza todas as ordens em relao imagem de imperador, condenada por uma dualidade imprio versus papado que se fundava na irrealizvel distino entre espiritual e temporal (LE GOFF, 1980, p. 83)

    O Imprio Teutnico, contudo, ainda conheceria um novo momento de fortalecimento da ideia de imprio frente ao papado. Frederico Barba-Roxa (1123-1190) seria o protagonista imperial de um dos momentos mais efervescentes da disputa entre imprio e papado, uma vez que nesta poca o conflito terminou por gerar uma srie de textos e documentos importantes de um lado e de outro. Assim, Oto de Freising, tio do Imperador, elaborou em favor das pretenses imperiais um texto denominado Duas

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    Cidades, onde o povo franco era retratado como aquele que Deus escolhera para dar continuidade ao Imprio Romano. Atravs do Imprio Franco, passava-se ao Imprio

    Teutnico com um reforo da ideia de que o Imperador seria um representante de Cristo e chefe da Igreja, no mesmo nvel do Papa. Esta ideia j havia sido consolidada sculos antes por Carlos Magno em uma srie de capitulares posteriores sua sagrao imperial em 800, na qual abundam imagens como a de que o imperador franco havia recebido de Cristo a misso de ser o leme da Igreja. Esta imagem aparece explicitada no Libri carolini uma longa capitular de 228 pginas in-quarto que foi elaborada por telogos do porte de Teodulfo e Alcuno entre 791 e 794. A exemplo do primeiro imperador franco, Frederico Barba-Roxa procurou ancorar-se em textos que defendessem a sua posio, e da o papel

    das Duas Cidades de Oto de Freising. A utilizao da expresso sacro imperium, alis, surge precisamente em 1157, de modo a chamar ateno para o carter sagrado do imprio, e sintomtico tambm que em 1165 tenha ocorrido a canonizao de Carlos Magno, o que vinha ao encontro dos interesses de Frederico Barba-Roxa descendente em linha direta de Carlos Magno em reforar o aspecto sagrado do imprio ao mesmo tempo em que realava a sua continuidade em relao ao antigo Imprio Franco.

    Os desenvolvimentos do Imprio Teutnico, sob a dinastia dos Staufen, iniciada por Frederico Barba-Roxa, tambm revelam a preocupao em fixar muito claramente os mecanismos de escolha do Imperador. Este deveria ser escolhido pelos prncipes dos diversos territrios do Imprio Teutnico, bem de acordo com a antiga tradio dos povos

    germnicos que costumavam aclamar os seus reis. O Papa apenas ratificaria uma escolha que se dava inteiramente dentro do mbito temporal, cumprindo notar que em 1200 j aparecem claramente especificados os elementos bsicos de um colgio eleitoral germnico cuja funo seria a de designar o Imperador. Percebe-se, assim, que, ao mesmo tempo em que um papado diretamente empenhado na Reforma da Igreja tinha uma preocupao muito clara em assegurar que os papas fossem selecionados pelos altos representantes do quadro eclesistico, tambm o Imperador preocupava-se em que a escolha da dignidade imperial se

    desse nos limites do poder principescos. Em suma, ambos os poderes temporal e religioso tinham pretenses de interferir um no outro, mas empenhavam-se a todo o custo em conservar sua prpria autonomia.

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    Enquanto os imperadores da dinastia Staufen se sucedem, com Henrique VI e Frederico II, o papado continuaria a sustentar uma teoria das relaes entre igreja e imprio que desse mais autonomia aos clrigos e, sobretudo, que trouxesse a posio do papado para uma posio mais relevante na conduo dos destinos da Cristandade. Com Inocncio III, que assume o pontificado em 1198, a Igreja conseguiria novos avanos. O ponto de vista defendido pela Igreja, embora tambm se referenciando no antigo carolngio tal como o fazia o papado, sustentava que de fato o imprio havia sido delegado a Carlos Magno, mas o papa seria na verdade o seu verdadeiro depositrio. Assim a ideia que a Igreja era quem devia entregar ao Imperador a espada, para que este desempenhasse o servio de defender o mundo cristo. A posio de Inocncio III confirmada por Gregrio IX e

    Inocncio IV, e pela altura de meados do sculo XIII est completa a Reforma institucional da Igreja na Idade Mdia, que avanara tambm em diversos outros aspectos de seu domnio sobre o espao da cristandade ao impor a violenta represso de heresias como o catarismo e ao assimilar a seus quadros as novas propostas de religiosidade trazidas pelas ordens menores dos franciscanos e dominicanos.

    Enquanto a Igreja sai fortalecida, nestes mesmos meados do sculo XIII o imprio j no consegue prosseguir para alm de Frederico II com seus planos de fazer prevalecer o seu prprio projeto universal para a cristandade. Apesar de assegurar uma ampliao espacial do imprio e aventurar-se em uma Cruzada que lhe permitira entrar em Jerusalm, o projeto imperial de Frederico II no se tornou representativo da cristandade tanto porque o papado conseguira sucesso com a reforma institucional da Igreja, como porque a terceira ideia-fora a ser considerada nesta questo, e da qual atrs falamos, passa a adquirir

    destaque a partir deste mesmo sculo XIII. A ideia de reino adquire precisamente uma projeo especial neste momento tanto com a Frana de Felipe Augusto e So Lus, como com os reinos ibricos que rapidamente comeam a progredir no mbito da centralizao

    monrquica e da consolidao das instituies monrquicas, e tambm com a Inglaterra do mesmo perodo. Ainda estava-se longe da centralizao monrquica que mais tarde

    prepararia o advento dos tempos modernos, mas de qualquer modo a autonomia temporal de cada reino era inquestionvel e j permitia que circulasse no incio do sculo XIII o dito de que o rei imperador em seu reino. Com isto, confrontado pelo projeto universal da Igreja, e tendo sua autoridade renegada pelos projetos particularistas de cada reino, a ideia

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    de imprio aps Frederico II era pouco mais do que um ttulo vazio e uma fico poltica. No impedia, naturalmente, que a ideia de imprio ainda estivesse presente em um

    imaginrio que produziu textos como o Speculum historiale, de Vicente de Beauvais, preocupado em construir uma narrativa acerca da sucesso de diversos imprios no decorrer da histria do mundo. A esta poca entre 1250 e 1273 se seguiria um interregno onde a ideia de imprio no se viu concretizada, o que atesta a sua vacuidade.

    Diga-se de passagem, no faltaram candidatos neste perodo mesmo fora da dinastia reinante a este que sempre fora um prestigioso ttulo. Guilherme de Holanda, um primeiro candidato, ainda podia postular o ttulo imperial dentro de alguma lgica territorial, j que era ligado a uma regio inserida no antigo Imprio Teutnico. Contudo, surgem pretenses de estrangeiros como Ricardo da Cornualha, o que j vem mostrar que neste perodo o ttulo de imperador era talvez pouco mais do que uma fico extremamente

    honrosa. Tambm Afonso X, evocando aspectos genealgicos j que era filho de uma Hohenstaufen requisitou por esta poca o pomposo ttulo ao papa, j que pela tradio a Igreja detinha o privilgio de sancion-lo. O papa recusou-se a outorgar-lhe o ttulo, dando origem s hostilizaes mais diretas que comeam a ocorrer nesta poca entre o clero e o rei de Castela, gerando inclusive canes trovadorescas produzidas pelo prprio rei contra o papado que lhe renegara o ttulo (Afonso X, Cantiga da Biblioteca Nacional n 463). Isto demonstra adicionalmente a emergncia do fortalecimento de interesses rgios vrios em todo o ocidente europeu, e que j no podia haver mais naquele perodo um consenso em torno da ideia de dar uma base concreta ao imaginrio do imprio, que s seria retomado novamente em 1273. Neste ano, pondo fim ao interregno que j se estendia por demasiado tempo, Gregrio X resolveu apoiar a eleio de Rodolfo de Habsburgo (1218-1291).

    5 Os ltimos tempos medievais e as crises do imprio e do papado

    Depois dos imperadores Habsburgos, que pouco acrescentaram em termos de fatos novos ideia imperial ou sua receptividade dentro ou fora do antigo territrio teutnico, a

    Alemanha da poca de Lus IV da Baviera (1314-1347) j assiste combinao de uma intensificao do sentimento de pertencimento germnico com a ideia de que o ttulo imperial era prerrogativa do povo alemo. A ideia de um Reich alemo, que seria retomada no futuro em contextos bem distintos, aqui se mostra nos seus primrdios. Neste novo

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    circuito de ideias, a imagem de Carlos Magno projetada para o passado como a de um imperador alemo. Surgem os matizes tericos. Marclio de Pdua procura dar um lugar

    especial ao povo alemo no seu iderio de imprio. Guilherme de Ockham conserva a ideia de uma natureza romana do imprio. Em meio a estes desenvolvimentos, abala-se a ideia de que o Papa deveria ter um papel mais direto na escolha ou no sancionamento do Imperador, e em 1338 os prncipes alemes j deporiam o Imperador sem dar nenhuma satisfao ao Pontfice. Carlos de Luxemburgo, o eleito, publica a Bula de Ouro, que entre seus princpios estabelece que a partir dali sete prncipes alemes seriam sempre os responsveis pela escolha do Imperador.

    Enquanto o imprio enfrenta dificuldades para se manter como realidade poltica

    efetiva, para alm do fato de ser para muitos de seus contemporneos apenas uma fico poltica tambm a Igreja iria enfrentar no sculo XIV as ameaas unidade, as cises e questionamentos em relao a seus aspectos institucionais ou autoridade papal. O sculo XIV ser um sculo marcado pelo exlio de Avinho (o deslocamento da Cria Papal para a cidade de Avinho, para fugir ao clima poltico desfavorvel na Itlia) e pelo grande Cisma, entre 1378 e 1382. Os novos tempos anunciam, portanto, tanto a falncia do projeto universal do imprio como do projeto universal do papado.

    Assim, em que pese que, a partir de meados do sculo XIV, a eleio do Imperador se tivesse tornado um assunto popular e inflamador de um orgulho de ser alemo na populao, a verdade que ser Imperador j pouco representava em termos de foras polticas ou de recursos econmicos, pois neste ltimo aspecto os recursos fiscais de que o Imperador um dia dispusera foram minguando, transferindo-se para as realidades locais.

    Paradoxalmente, apesar do imaginrio do imprio, o territrio que correspondia ao que em 1474 seria chamado Sacro-Imprio Romano Germnico era politicamente fragmentado, cada regio sendo sujeita ao controle dos prncipes locais. Esta Alemanha que ainda abrigaria to ciosamente por algum tempo o imaginrio do imprio, seria precisamente vtima de uma unificao tardia, quando a comparamos aos demais estados europeus que

    atingem o sculo XIX perfeitamente centralizados, exceo da Itlia. Mas j nesta poca, a ideia de imprio j no possuiria nenhum vigor enquanto um projeto universal que pudesse se referir a toda a Cristandade, mesmo como fico poltica.

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    Concluso

    Papado e imprio, como pudemos ver atravs deste artigo, constituram dois projetos universalistas cuja compreenso se mostra essencial para apreender a especificidade do perodo medieval. O paradoxo que parece se constituir da simultnea interdependncia e concorrncia entre estes dois projetos universalistas ir se dissolver a partir do perodo moderno por algumas razes. De um lado, a noo de Imprio perder cada vez mais a sua importncia para uma realidade poltica europeia que ter como noo estruturante mais importante a dimenso do reino. J o papado seguir, at os dias de

    hoje, como importante fora poltica e cultural que continua a interferir de alguma maneira nas realidades nacionais que se desdobram no mundo moderno, particularmente no mbito das naes catlicas. Contudo, j teremos aqui uma capacidade de interferir nos destinos das naes ocidentais que estar muito longe do extraordinrio poder do papado no perodo medieval, uma vez que agora o catolicismo j se achar inserido em um quadro poltico-cultural no qual a prpria Cristandade j se encontra dividida entre a Igreja catlica e as diversas alternativas religiosas que emergem da Reforma, sem contar os abalos provocados

    pelos cismas do final da Idade Mdia e do incio do perodo moderno. De resto, j no se evocar mais no mundo moderno, e menos ainda nos tempos contemporneos, a tensa relao entre a ideia de Imprio, cuja importncia recua para o imaginrio, e a ideia de papado, uma realidade ainda forte mas j no mais capaz de almejar o monoplio da religiosidade crist no ocidente moderno. Desde ento, a relao entre papado e imprio tornou-se apenas um tema de indiscutvel importncia para a Histria.

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    Referncias

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