cristianismo sem cristo

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SEM CRISTO O EVANGELHO ALTERNATIVO DA IGREJA ATUAL MICHAEL HORTON

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Page 1: Cristianismo Sem Cristo

SEM CRISTO

O EVANGELHO ALTERNATIVO DA IGREJA ATUAL

MICHAEL HORTON

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CRISTIANISMO

SEM CRISTO

O EVANGELHO ALTERNATIVO DA IGREJA ATUAL

MlCHAEL HORTON

s

Page 3: Cristianismo Sem Cristo

Cristianismo sem CristoMichael Horton

O Cristianismo sem Cristo © 2010, Editora Cultura Cristã. © 2008 by Michael Horton.Originalmente publicado em inglês como título Christless Chrístianity pela BakerBooks,umadivisãoda BakerBookHouseCompany, GrandRapids, Michigan, 49516,USA.Todosos direitos são reservados.

Ia edição-20103.000 exemplares

Conselho Editorial

Ageu Cirilo de Magalhães, Jr.Alderi Souza de Matos

André Luis Ramos

Cláudio Marra (Presidente)Fernando Hamilton Costa

Francisco Solano Portela Neto

Mauro Fernando Meister

Tarcízio José Freitas de Carvalho

Valdeci da Silva Santos

Produção EditorialTraduçãoNeuza Batista

Revisão

Bruna Perrella Brito

Eduardo de Assis

FormataçãoOM Designers GráficosCapaMagno Paganelli

Horton, Michael

P359a Cristianismo semCristo/ Michael Horton;[traduçãoNeuza Batista] - São Paulo: Cultura Cristã, 2010.

208p.; 16x23 cm

Tradução de Christless Chrístianity

ISBN 978-85-7622-312-2

1. Igreja 2. Vida Cristã I. Horton, M. II. Título

CDD21ed.-261.5

s«EDITORA CULTURA CRISTÃ

R. Miguel Teles Jr., 394 - Cambuci - SP - 01540-040 - Caixa Postal 15.136Fone (011) 3207-7099 - Fax (011) 3279-1255 - www.editoraculturacrista.com.br

Superintendente: Haveraldo Ferreira VargasEditor: Cláudio Antônio Batista Marra

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Para "nosso Senhor Jesus Cristo,

por intermédio de quem recebemos,

agora, a reconciliação"

(Rm 5.11).

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Sumário

Prefácio

Libertando uma igreja cativa 9

Agradecimentos 11

1Cristianismo sem Cristo

O cativeiro americano da igreja 13

2Denunciando o nosso cativeiro

Deísmo moralista e terapêutico 25

3Palavras suaves e cristianismo sem Cristo 57

4Como transformamos boas-novas em bons conselhos 85

5Seu próprio Jesus pessoal 129

6Pregando CristoA mensagem e o meio 153

7Um chamado à resistência 191

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Prefácio

Libertando uma igreja cativa

Aqui estamos nós, na igreja norte-americana - conservadora ou liberal,evangélica ou tradicional, protestante ou católica, emergente ou não - indomuito bem, obrigado por perguntar. Assim, estamos ocupados em diminuirdimensões, em tornar-nos culturalmente relevantes, em chegar, em atrair,em fazer discípulos, em administrar o maquinário, em utilizar princípiosbíblicos semcomplicações, em comemorar arecuperação, em facilitar parao usuário, em descobrir a vidacom propósito, em praticar paz com justiça,emutilizar as disciplinas espirituais, emcrescer naautoestima, em reinventar a nós mesmos como empresários eclesiásticos eficazes e, em geral, emnos sentirmuito melhores pelas nossas próprias conquistas.

Nota alguma coisa faltando neste beloquadro? Jesus Cristo!Sim, Jesus Cristo. Na novela absurda e de humornegro Wise Blood, de

Flannery 0'Connor, seu antipregador, Hazel Motes, prega uma "igreja semCristo", onde ninguém verte sangue e não há redenção, "porque não hápecado nenhum para redimir" e"o que está morto, morto fica".1 Eu sempreenxerguei o livro de 0'Connor como uma sátira ultrajante e improvável.Daí, aparece Mike Horton e fala na"igreja sem Cristo" como a nossa realidade eclesiástica difusa. Ele nos acusa de conseguir o que nunca foi realizado em toda a história da cristandade. De alguma forma, conseguimospregar Cristo crucificado de tal maneira, que poucos são ofendidos; o quefoi umavez um Deus quenão se deixa controlar, de repente, parece bonzi-nho, e o evangelho faz todo sentido- assim como estamos acostumados afazer sentido. Nós simplesmente não podemos suportar nos submetermosàs maquinações de um Deus vivo, determinado a nos ter em seus termose não nos nossos. Então, inventamos um deus em nossos próprios termos.Um cristianismo contemporâneo frouxo é o resultado.

10'Connor, Flannery. Wise Blood. Nova York: Harcourt, Brace, 1952; reproduzido, NovaYork: Farrar, Straus & Giroux, 2007, pág.101.

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Este é um livro implacável, mas bem escrito, ritmado e maravilhosamente fundamentado na Reforma clássica do cristianismo. Nossa pobre eantiga igreja, conciliatória e transigente, é submetida a uma crítica teológica desmoralizadora. Aqui, as raízes do nosso mal-estar teológico atual sãoexpostas, e vemosos caminhos errados que tomamos quandocomeçamos anos levar mais a sério que a Deus. Otédio e ocostume daigreja contemporânea são atacados. Michael Horton diagnostica nosso problema com umafranqueza inevitável e impressionante. Deísmo terapêutico e utilitário édesnudado ederrotado com a melhor arma que Deus nos deu - oevangelhode Jesus Cristo. O cristianismo evangélico presunçoso é denunciado comoo recruta mais novo para a causa do liberalismo insípido e culturalmente comprometido. Eu soujulgado no processo. A Eclesiologia insossa deRobert Schuller está sobre todos nós. Meus sermões são apenas um poucomenos bobos e transigentes que os de Joel Osteen. Mea culpa. Mea culpa.Mea culpa.

Mas este livro não é só crítica. Horton constrói um maravilhoso argumento de esperança. Seu sermão não é só severidade, mas é também re-vigorante e fortalecedor. No processo de leitura desta polêmica induzidade Jesus, você será chamado a retornar ao poder do evangelho. Deus nosperdoe por vender onosso grande tesouro intelectual - oevangelho de Deusconosco - poruma trivialidade deautoajuda e pragmática, balbuciar psicológico e utilitário.

Horton alegremente nos relembra de que o pensamento teológico émais interessante que todas asdistrações que nos mantêm ocupados, porémdesnutridos. As peculiares boas-novas de Jesus Cristo são melhores quequalquer coisa que William James ouCharles G. Finney e seus numerososherdeiros têm para oferecer. A determinação de Deus em Jesus Cristo deamar os pecadores e de mobilizá-los na invasão que é o seu reino é muitomais relevante para a nossa verdadeira condição que nossa inclinação parasatisfazer as necessidades dos consumidores narcisistas norte-americanos.

Tenha uma maravilhosa aventura ao ler este livro. Aprecie ser atraídopara o novo e singularmundo do cristianismo vibranteda operaçãode resgate do evangelho ousado de Horton. No processo, você será libertado donosso cativeiro cultural, de modo tal que você novamente ficará livre paraadorar, em palavra e em ação, o Cristo ressuscitado.

Vamos colocar Cristo de volta no cristianismo.

William Willimon

Bispo da Igreja Metodista UnidaBirmingham, Alabama

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Agradecimentos

Emboraeu me sintaem débitoparacommuitospor este livro,especialmente para com aqueles que forneceram exemplos maravilhosos de fidelidadeao evangelho ao longo de muitos anos, vou limitar meus agradecimentos àequipe Baker, incluindo Bob Hosack e Mary Wenger, masespecialmente aJack Kuhatschek, cujo incentivo e orientação pacientedeste projeto provouser inestimável. Finalmente, agradeço aos meuscolegase aos estudantesdoSeminário de Westminster, na Califórnia; ao White Horse Inn e aos funcionários da Modem Reformation; à IgrejaUnida Reformada de Cristo, e, sobretudo, a minhaesposa, Lisa, e aos nossos filhos, James,Olivia, Matthewe Adam, porque sãosempre o lembrete para mim da razão da importânciadestas questões.

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O cristianismo sem CristoO cativeiro americano da igreja

Como seriam as coisas se Satanás assumisse por completo o controle deuma cidade? Mais de meio século atrás, o pastor presbiteriano DonaldGrey Barnhouse, em seu sermão semanal, descreveu o que imaginou queseria o cenário, sendo transmitido nacionalmente pela rádio CBS. Barnhouse especulou que, se Satanás assumisse o controle da Filadélfia, todos os bares seriam fechados, a pornografia seriabanida e as ruas imaculadas ficariam cheias de pedestres bem-arrumados que sorririam uns paraos outros. Não haveria xingamentos. As crianças diriam "sim, senhor" e"não, senhora", e as igrejas estariam cheias todos os domingos... OndeCristo não seria pregado.

É fácil desviarmos a atenção de Cristo como a única esperança para ospecadores. Quando tudo é medido pela nossa felicidade e não pela santidade de Deus, o sentimento de sermos pecadores se torna secundário,talvez mesmo ofensivo. Se formos um povo bom que perdeu o caminho,mas com instruções e motivações corretas, podemos nos tornar pessoasmelhores, precisamos apenas de um treinador de vida, não de um redentor. Ainda podemos emitir parecer favorável auma visão elevada de Cristo e à centralidade da sua pessoa e obra, porém, na prática, não estamos"olhando firmemente para o Autor e Consumador da fé" (Hb 12.2). Ummonte de coisas que nos desviam de Cristo nestes dias são, de fato, boasmesmo. A fim de distrair nossa atenção, tudo o que Satanás tem a fazeré lançar diversos modismos espirituais, cruzadas morais e políticas, bemcomo outras operações "relevantes" em nosso campo de visão. Focalizara conversa em nossa pessoa - desejos, necessidades, sentimentos, experiências, atividades e aspirações - nos estimula. Até que enfim, estamosfalando de algo prático e relevante.

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Por mais instigante que a ilustração de Barnhouse pareça, ela é apenas uma elaboração de uma observação, feita ao longo da história da redenção. Onde quer que Cristo for, verdadeira e claramente, proclamado,Satanás estará presente, fazendo oposição máxima. As guerras entre asnações e as inimizades nas famílias e bairros nada é maisque a vigília dacauda da serpente, enquanto busca devorar a igreja. No entanto, mesmonessa busca, eleé mais sutil que imaginamos. Ele nos embala para dormirenquanto aparamos nossa mensagem para caber na banalidade da culturapopular e invocamos o nome de Cristo por qualquer coisa, exceto pelasalvação do juízo vindouro. Embora, sem dúvida, ele instigue seus discípulos na terra a perseguir e a matar os seguidores de Cristo (com maismartírios no mundo todo, com uma média anual maior que em qualquerépoca anterior), Satanás sabe, por experiência, que semear heresia e cisma é muito maiseficaz. Embora o sangue dos mártires sejaa semente daigreja, a assimilação da igrejapelo mundosilencia o testemunho.

Acho que a igreja de hoje está tão obcecada em ser prática, relevante,útil, bem-sucedida e, talvez, até mesmo aceita, que ela quase reflete emsi mesma o mundo. Com exceção da embalagem, praticamente tudo quepodemos encontrar na maioria das igrejas atuais pode ser satisfeito porum sem-número de programas seculares e gruposde autoajuda.

Cristianismo sem Cristo. Soa um pouco duro, não é mesmo? Um pouco superficial, às vezes desatento, até mesmo um pouco centrado no humano em vez de centrado em Cristo de vez em quando, mas sem Cristo?Deixe-me ser um pouco mais preciso sobre o quesuponho ser a dietanormal de muitas igrejas por toda parte hoje: "Faça mais, esforce-se mais".Acho que esta é a mensagem difundida além da ilusão atual. Ela podeser exibida de uma forma mais antiga e conservadora, com ênfase recorrente nos absolutos morais e nas advertências sobre a queda no abismodo mundanismo que, muitas vezes, pode fazer-nos ficar em dúvida se,afinal, somos salvos por causa de nosso medoou pela fé. O céu e o inferno ainda figuram de forma proeminente nesta versão. Especialmente nos"dias santos importantes" do calendário da igreja americana (isto é, Diado Memorial, Dia da Independência, Dia dos Pais, Dia das Mães), muitasvezes com bandeiras norte-americanas gigantes, uma proteção colorida ecanções patrióticas incluídas, esta versão mais inflexível de "faça mais,esforce-semais" ajudou na progressão da cultura das guerras. Ao mesmotempo, os organismos mais liberais podem ser igualmente estridentes comsua lista "faça mais, esforce-se mais" na esquerda e suas chamadas semanais para ação em lugar da clara proclamação de Cristo.

Reagindo contra esta versão extrema de fundamentalistas e de liberaisjulgadores, surgiu outra geração que queria atenuar o rigor, no entanto amensagem "faça mais, esforce-se mais" ainda predominou - desta vez,

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em tom pastel suave de Stuart Smalley,de Al Franken, do que no tom decensura de Church Lady, de Dana Carvey, ambos no programa SaturdayNight Live. Nessa versão, Deus não fica zangado se você não consegueser bem-sucedido. Os riscos não são tão altos assim: sucesso ou fracasso nesta vida, não no céu ou no inferno. Não há mais mandamentos; oconteúdo desses sermões, hinos e livros best-sellers são sugestões úteis.Se você não consegue fazer que as pessoas fiquem melhores com varas,use incentivos.

Cada vez mais, a liderança está sendo assumida por uma geração maisjovem, que foi criada no exagero e na hipocrisia, e está cansada da orientação narcisista (ou seja, eu-centro) da geração de seus pais. Os jovensse sentem atraídos por ideais de salvação muito além do individualismolegalista da salvação como seguro-contra-incêndio. Eles estão fartos também do individualismo consumista da salvação como aperfeiçoamento-pessoal. Em lugar destas coisas, estão ansiando, desesperadamente, pelatransformação autêntica e genuína que produz comunidade verdadeira eatos de amor, que contempla, de forma mais eficaz, as crises social e global dos nossos dias e não as lamúrias limitadas de outrora.

Apesar das diferenças significativas entre as gerações e os tipos deministério das igrejas, semelhanças essenciais permanecem. O foco ainda parece ser nossa pessoa e atividade, em vez de Deus e de sua obraem Jesus Cristo. Em todas essas abordagens, há a tendência de fazer deDeus um personagem coadjuvante no filme da nossa própria vida, em vezde sermos reescritos como novos personagens no drama da redenção deDeus. Assimilando o perturbador, o surpreendente e o poder de desorientação do evangelho das "necessidades sentidas", das crises morais e dasmanchetes sócio-políticas de nosso tempo, acabamos por dizer bem poucacoisa diferente do que o mundo pode escutar ouvindo Dr. Phil, Dra. Lauraou a Oprah.

Além da pregação, nossas práticas revelam que estamos focados em nósmesmos e em nossas atividades mais que em Deus e em sua obra salvadoraentre nós. Em todos os sentidos, do ortodoxo ao liberal, do católico-romanoao anabatista, da nova era ao conservador, a "busca pelo sagrado" é, emgrande medida, orientada para o que acontece dentro de nós, na nossa própria experiência pessoal, e não no que Deus fez por nós, na História. Atémesmo o Batismo e a Ceia são descritos como "meios de compromisso" emvez de "meios da graça", por conservadores e evangélicos progressistas, emuma multidão de teologias sistemáticas contemporâneas. Em lugar de deixar que "habite, ricamente, em vós a palavra de Cristo; instruí-vos e acon-selhai-vos mutuamente em toda a sabedoria, louvando a Deus, com salmos,e hinos, e cânticos espirituais, com gratidão, em vosso coração" (Cl 3.16),o propósito de cantar (a "hora de adoração") parece hoje mais concentrada

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na nossa oportunidade de manifestar nossa devoção individual, experiência e compromisso. Vamos à igreja, ao que parece, mais para celebrarmosnossa própria transformação e para recebermos novas ordens de marchapara transformarmos a nós mesmos e o nosso mundo que sermosmodificados pelo evangelho. Em vez de sermos arrebatados para o novo mundo deDeus, chegamos à igreja para descobrir como podemos tornar Deus relevante para o "mundo real"que o Novo Testamento identifica como aqueleque, na realidade, desaparece.

A maioria das pessoas acredita em Deus, afirma que Jesus Cristo é, emcerto sentido, divino, e acredita queaBíblia é a Palavra de Deus. O pesquisador evangélicoGeorge Barna descobriu que 86% dos adultosnorte-americanos descrevem sua orientação religiosa como cristã, enquanto apenas6% se descrevem como ateus ou agnósticos.2 A julgar pelo seu sucessocomercial, político e nos meios de comunicação, o movimento evangélicoparece estar crescendo. Mas ainda é cristão?

Não estou fazendo a pergunta levianamente ou simplesmente para provocar uma reação. Minha preocupação é que estamos chegando, perigosamente, perto do lugar da vida cotidiana da igreja em que a Bíblia é minada por citações "relevantes", mas é, em grande parte, irrelevante em seuspróprios termos; Deus é usado como um recurso pessoal, em lugar de serconhecido, adorado e confiado; Jesus Cristo é um treinador com um planode jogo bom para nossa vitória, em vez de um Salvador que já alcançou avitória para nós; a salvação é mais uma questão de ter nossa vida melhoragora que ser salvo do julgamento de Deus pelo próprio Deus, e o EspíritoSantoé uma tomadaelétrica que podemos ligar para obtero podernecessário parasermos tudo o que podemos ser.

A medida que este novo evangelho se torna mais evidentemente americano que cristão, todos nós temos de darum passo para trás e perguntarse o movimento evangélico é um movimento cultural e político crescente,que tem uma ligação sentimental com a imagem de Jesus mais que como testemunho de "Jesus Cristo e este crucificado" (ICo 2.2). Não temosdemonstrado, nas últimas décadas, que temos muito estômago para essamensagem que o apóstolo Paulo chamou de "pedra de tropeço e rocha deescândalo" (Rm 9.33) e "loucura para os gentios" (ICo 1.23). Longe deentrar em conflito com a cultura do consumismo, a religião atual parecenão só estar em paz com o narcisismo, mas lhe empresta legitimidadeespiritual.

Antes de lançar este protesto, devo esclarecer, com precisão, o que nãoestou dizendo. Primeiramente, reconheço que há muitas igrejas, pastores,missionários, evangelistas e cristãos de grande valor, ao redor do mundo,

2Barna, George. The Second Corning ofthe Church. Nashville: Word, 1998, pág. 67.

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proclamando Cristo e cumprindo suas vocações com integridade. Peço desculpas, antecipadamente, por não contar esse outro lado da história comsuas exceções verdadeiramente notáveis. No entanto, duvido que eles seimportem, já que muitos deles demonstram preocupações semelhantes sobre o estado do cristianismo nos EUA.

Em segundo lugar, não estou argumentando, neste livro, que já chegamos ao cristianismo sem Cristo, mas sim que estamos a caminho. Não épreciso haver o abandono explícito de qualquer ensino fundamental cristão, apenas uma série de distorções sutis e de distrações não tão sutis.Até mesmo coisas boas podem nos levar a desviar o olhar de Cristo e aconsiderar o evangelho como algo garantido, que precisávamos para aconversão, mas que agora podemos assumir com segurança e colocar emsegundo plano. O centrodo palco, entretanto, é para outro alguém ou paraoutra coisa.

Vou citar estudos recentes que demonstram que, na verdade, o fato dea pessoa ter sido criada em uma família e em uma igreja evangélica nãoimporta mais - a compreensão básica do enredo do drama bíblico e deseu personagem principal é tão improvávelpara os jovens da igreja comopara os que não têm igreja. Deus e Jesus ainda são importantes, porémmais como parte do elenco de apoio do nosso próprio show. Mais interessados em nossas próprias tramassem profundidade, estamos perdendonossa confiança no que a dramaturga inglesa Dorothy Sayers chamou de"a maior história jamais contada". Assim, muito do que estou chamandode "cristianismo sem Cristo" não é profundo o suficiente para constituirheresia. Como a música Muzatf* que é fácil de escutar e que toca ubiqua-mente em segundo plano em estabelecimentos comerciais, a mensagemdo cristianismo atual tornou-se simplesmente trivial, sentimental, aceitada e irrelevante.

Em terceiro lugar, não estou questionando o cristianismo americanoquantoao seu zelo. O apelo feito por líderescristãos de "atos, não credos"é, sem dúvida, motivado por preocupações sérias para serem testemunhasde Cristo em um mundo despedaçado. Não duvido da sinceridade dosque dizem que temos a doutrina correta, contudo não a estamos vivendo.Pelo contrário, simplesmente não concordo com a avaliação deles. Achoque nossa doutrina tem sido esquecida, presumida, ignorada e até mesmodeformada e distorcida pelos hábitos e rituais da vida cotidiana em umacultura narcisista. Estamos igualando as perturbadoras e desorientadoras

3* Muzak: nome de uma empresa norte-americana que cria músicas para ambientes e umtermo utilizado para se referir à música de elevador ou música em ambientes de espera. Nogeral, este termo é usado para músicas mais sofisticadas,desenvolvidas principalmente paraeste fim [N. da R.].

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novas do céu à banalidade de nossas próprias necessidades imediatassentidas, que interpretam Deus como um comprador pessoal para os adereços do nosso filme-vida: felicidade como entretenimento, salvação comobem-estar terapêutico e missão como êxito pragmático unicamente medido em termos de números.

Então, em minha opinião, estamos vivendo nosso credo, mas ele estámais para o sonho americano que para a fé cristã. Meu argumento nestelivroé que a forma maisdominante do cristianismo de hoje reflete "um zelopor Deus" que é, no entanto, sem conhecimento - particularmente, comoo próprio Paulo especifica, o conhecimento da justificação de Deus dosímpiosapenaspela graça,por meioda fé em Cristosomente,independentemente das obras (Rm 10.2, veja vs. 1-15).

Em quarto lugar, há uma série de questões que gostaria de abordar sobre nosso cativeiro americano, as quais não serão estudadasaqui. Já trateida maioria delas em outras ocasiões, especialmente em Made in America,Power Religion e BeyondCulture Wars* Os ídolos que identificama causacristã com ideologia política de esquerda ou de direita são meramente sintomas de que Cristo não está sendo considerado como suficiente para a fé epara a prática da igreja atual. Enquanto a mídia segue a mudançacrescente,entre muitosjovens evangélicos, de políticasmais conservadoras para maisprogressistas, as manchetesreaisdevemser que o movimentoestá voltandoà igreja para crescer na graça e no conhecimento de Jesus Cristo, em vezde tornar-se um bloco demográfico nas guerras culturais. Então, meu foco,neste livro, é se Cristo está, pelo menos, sendo amplamenteproclamado nopaís onde metade da população afirma ser evangélica.

Quando se dá valor para o evangelho, freqüentemente ele é um meiopara um fim, como transformação pessoal ou social, amor e serviço ao nosso próximo e outras coisas que, em si, são os efeitos maravilhosos do evangelho. No entanto, as boas-novas a respeito de Cristo não é um trampolimpara algo maior e mais relevante. Percebendo ou não, no universo não hánada mais relevantepara nós, culpadosportadores da imagemde Deus, quea boa notícia de que ele encontrou uma forma de ser "justo e o justificadordaquele que tem fé em Jesus" (Rm 3.26). Ele é "o poder de Deus para a salvação" (Rm 1.16) não só para o começo, mas para o meio e o fim também- a única coisa que cria o tipo de mundo novo ao qual nossa nova obediência corresponde como uma resposta razoável.

Nos capítulos seguintes, forneço estatísticas que comprovam a notávelconclusão de que aqueles criados em igrejas "que crêem na Bíblia" sabem

4Horton, Michael S. Made in America: The Shaping ofModemAmerican Evangelicalism.GrandRapids: Baker, 1991; Horton (org.), Power Religion: TheSelling Outofthe Evangélica! Church?Chicago: Moody, 1992; Horton, BeyondCulture Wars. Chicago: Moody, 1994.

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tão pouco do conteúdo da Bíblia quanto seus vizinhos incrédulos. Cristo éonipresente nesta subcultura, porém mais como um adjetivo (cristão) quecomo um substantivo. Enquanto nadamos em um mar de coisas cristãs,Cristo é reduzido, cada vez mais, a símbolo de uma subcultura e das indústrias que a alimentam. Assim como você realmente não precisa de JesusCristo a fim de ter camisetas e canecas de café, eu também não consigoentender por que ele é necessário para a maioria das coisas que ouço aosmontes de pastores e de cristãos falando na igreja, nestes dias.

Acredito que não nos demos conta do grau de nossa esquizofrenia:todos os anos, condenamos a comercialização do Natal pela cultura, enquanto assumimos uma abordagem consumidor-produto-venda em nossaspróprias igrejas, todas as semanas. Lamentamos a crescente secularizaçãoda sociedade, enquanto garantimos que as gerações, atualmente sob nossos cuidados, saibam ainda menos que seus pais e sejam menos moldadaspela nutrição pactuai que sustenta a vida em Cristo ao longo de gerações.Ao mesmo tempo em que chamamos nossa rendição de missão e de relevância de cultura narcisista, acusamos os secularistas de esvaziamento dodiscurso público das crenças e dos valores que transcendem nossa gratificação instantânea.

Enquanto tomamos o nome de Cristo em vão para nossas próprias causas e posições, banalizando sua Palavra de todas as maneiras, expressamosindignação quando um filme banaliza Cristo ou retrata os cristãos de formanegativa. Embora os cristãos professos sejam a maioria, freqüentementegostamos de fingir que somos um rebanho perseguido, preparado para umabate iminente por meio das energias combinadas de Hollywood e do Partido Democrata. Entretanto se nós, alguma vez, fomos, de fato, perseguidos,porventura foi por causa de nossa postura ofensiva e autojustiça ou porquenão enfraqueceríamos a ofensa da cruz? Na minha experiência, comprovada por inúmeras histórias de outras pessoas, crentes que desafiam o processo antropocêntrico de banalizar a fé são mais propensos a ser perseguidos- ou, no mínimo, vistos como problemáticos - pela igreja deles. A minhapreocupação não é que Deus seja tratado de forma tão banal na cultura, masque não seja levado a sério em nossa própria fé e prática.

Matando-nos suavemente

Meu argumento neste livro não é que o evangelicalismo5* está se tornando teologicamente liberal, mas que está se tornando teologicamente vazio.Longe de produzir uma complacência presunçosa, núcleos de convicções

5* Tradução para o termo em inglês evangelicalism, que também pode significar "adesão aosprincípios das igrejas evangélicas" [N. da R.].

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evangélicas - centralizados em "Cristo e este crucificado" - conduziramtrês séculos de missões evangélicas. O ministério de John Stott, um dosprincipais líderes desse consenso pós-guerra, incorporou esta integraçãoda proclamação centrada em Cristo com paixão missionária. No entanto,quando questionado sobre como ele avalia esse movimento mundial, emuma edição da revista Chrístianity Today, Stott só pôde responder: "A resposta é crescimentosemprofundidade"?

Certamente, existem sinais de que as fronteiras teológicas do movimento estão se alargando - e eu vou abordar alguns exemplos neste livro. Alémdisso, o vazioe o liberalismo têmtipicamente andado de mãosdadasquando se trata de fé e prática na igreja.O liberalismo começoupor subestimaradoutrinaem favor do moralismo e da experiência interior, perdendo Cristopor hierarquia. No entanto, é mais tolice que heresia que está nos matandosuavemente. Deus não é negado, mas banalizado - usado para nossos programas de vida, e não recebido, adorado e usufruído.

Cristo é uma fonte de capacitação,mas é amplamente reconhecido entrenós, hoje, como fonte de redençãopara o impotente? Ele ajuda o moralmente sensível a se tornar melhor, mas salva o ímpio - incluindo os cristãos?Ele sara as vidas destruídas, mas levanta aqueles que estão "mortos nosvossos delitos e pecados" (Ef 2.1)? Terá Cristo vindo meramente para melhorar nossa existência em Adão ou para terminá-la, arrebatando-nos paraa sua nova criação? Será o cristianismo somente sobre transformações espiritual e moral, ou sobre a morte e a ressurreição - juízo e graça radical?É a Palavra de Deus um recurso para o que já decidimos que queremos eprecisamos, ou é o Deus vivo e crítica ativa da nossa religião, moralidadee experiência piedosa? Em outras palavras, a Bíblia é a história de Deuscentrada na obra redentora de Cristo, que reescreve nossas histórias, ou éalgo que usamos para tornar nossas histórias um pouco mais emocionantese interessantes?

Os conservadores e os liberais moralizam, minimizam e banalizam Cristo de maneiras diferentes, é claro que com as diversas agendas políticas esociais, mostrando sua fidelidade quer à cultura de elite quer à cultura popular, mas ainda é moralismo. Segundo o bispo metodista William Willimon:

Devido à falta de confiança no poder de nossa história paraefetuar aquilo que ela fala, para evocar um novo povo donada, nossa comunicação perde a coragem. Nada é ditoque não possa ser ouvido em outro lugar. (...) Em contextos conservadores, o discurso do evangelho é negociadopara a afirmação dogmática e moralismo, psicologias de

'Entrevista com John R. W. Stott, Chrístianity Today, outubro de 2006, pág. 96.

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autoajuda e mantras-soníferos. No discurso mais liberal,a conversa anda, na ponta dos pés, em tomo do escândalodo discurso cristão e acaba como uma inócua, porém cortês, afirmação da ordem dominante. Incapazes de pregara Cristo e este crucificado, nós pregamos a humanidade eesta melhorada.7

Os liberais podem ter sido pioneiros na teoria de que há salvação emoutros nomes além do nome de Jesus Cristo, mas nenhum grupo na história moderna tem desejado que o público em geral faça orações não sectárias - isto é, com ou sem Jesus Cristo - tanto como os evangélicos conservadores. Quando se trata de colocar Deus de volta em nossas escolas,podemos deixar Jesus para trás.

Jesus tem sido vestido como um CEO,8* treinador de vida, guerreiro decultura, revolucionário político, filósofo, copiloto, companheiro de sofrimento, exemplo moral e parceiro na realização de nossos sonhos pessoaise sociais. Mas, em todas estas formas, estamos reduzindo o personagemcentral no drama da redenção a um apoio para nossa própria peça?

Como os liberais de outrora, um número crescente de líderes evangélicos gostam de colocar o ensinamento de Jesus sobre o reino - especialmente, o Sermão da Montanha - em contraste com a ênfase mais doutrinaiencontrada, sobretudo, nas epístolas de Paulo. Muitos comemoram estaênfase no Cristo-como-exemplo em vez de no Cristo-Redentor como oprenuncio de um novo tipo de cristão, mas é isto realmente um antigotipo de moralista? Indiferente se sabe que a morte de Cristo é consideradaum sacrifício vicário, o discipulado - carregar nossa cruz - torna-se otema mais interessante. Não importa que os discípulos sejam pessoas queaprendem alguma coisa antes de saírem para chamar a atenção por suasatividades zelosas. Novamente, não estou dizendo que estes irmãos sejamliberais, mas que não há diferença perceptível para nosso testemunho seignoramos ou negamos a mensagem de Cristo e sua cruz. Quando o focopassou a ser "o que faria Jesus?" em vez de "o que Jesus fez?", os rótulosnão importam mais. Os conservadores têm sido igualmente propensos ase concentrarem no primeiro e não no segundo, nas últimas décadas.

Religião, espiritualidade e seriedade moral - que, segundo Paulo, têm"forma de piedade, negando-lhe, entretanto, o poder" (2Tm 3.5) - podemcontinuar a prosperar em nosso meio precisamente porque evitam o escân-

7Willimon, William H. Peculiar Speech: Preaching to the Baptized. Grand Rapids: Eerd-mans, 1992, pág. 9.8* ChiefExecutive Officer: designa o mais alto cargo executivo de uma organização, equivalente, em português, ao cargo de diretor geral [N. da R.].

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dalo de Cristo. Ninguémvai criarconfusãose você achar Jesus útil para seubem-estar pessoal e relacionamentos, ou mesmo se você pensar que ele foio maior homem da História - um modelo digno de devoção e de imitação.No entanto comece a falar sobre a crise real - na qual nossos melhoresesforços são como trapos imundos e Jesus veio para carregar sobre si acondenação dos pecadores desamparados, que põem sua confiança nele enão em si mesmos - e as pessoas começam a se mexer em seus lugares, atémesmo nas igrejas.

Discipulado, disciplinas espirituais, mudança de vida, transformaçãocultural, relacionamentos, casamento e família, estresse, dons espirituais,dons financeiros, experiências radicais de conversão, curiosidades do fimdos tempos (que, às vezes, parecem ter menos a ver com o retorno de Cristoque com a correspondência das manchetes de jornais) e relatos de superação de obstáculos significativos por meio do poder da fé - esta é a dietaconstante que estamos recebendo hoje. Corremos o risco de nos consumir inteiramente, porque tudo gira em torno de nós e do nosso trabalho, enão ao redor de Cristo e de sua obra. Até mesmo importantes exortaçõese mandamentos bíblicos se tornam deslocados de seu indicativo ambiente

evangélico. Em vez de o evangelho nos dar novas idéias, experiências emotivação para obediência grata, depositamos o poder de Deus em nossaprópria piedade e em nossos próprios programas.

Não desejo consertar tudo. Algumas de minhas avaliações podem acabar por ser demasiadamente radicais ou mal informadas. Espero que não,porque essas questões são por demais importantes para serem tratadascom descaso. Os leitores certamente vão encontrar um monte de boas

notícias intercaladas com más notícias neste livro, mas admito, desde oinício, que, no todo, não é uma missiva alegre. Estou contando com a indulgência dos leitores para esperarem por uma seqüência deste livro maisconstrutiva. Se este livro pelo menos levantar questões que provoquemuma análise mais profunda de nosso testemunho no mundo de hoje, játerá valido a pena.

Meu alvo não é qualquer ala em especial, movimento, pessoa ou grupo.Todos nós somos vítimas, bem como cúmplices, em nosso cativeiro. Naverdade, meu sentido de urgência é motivado pela minha impressão de que"o cristianismo sem Cristo" é invasivo, atravessa o espectro liberal-conser-vador e todas as linhas denominacionais. Na verdade, quando escrevi algumas das idéias deste livro para um artigo, em uma revista recentemente, umeditor católico exclamou: "Ele está escrevendo sobre nós!".

Na verdade, eu estou escrevendo sobre "nós" - todos os que professamo nome de Cristo, tanto como ministros quanto como testemunhas. Seriamais fácil se pudéssemos identificar um escritor em especial, um círculo de escritores ou movimentos como um inimigo isolado. No entanto,

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nenhuma denominação está livre desse cativeiro, incluindo a minha, eninguém, incluindo eu mesmo. Assim, não existe nenhuma posição depureza antisséptica que eu possa fingir ocupar, da qual possa limpar o restante do chão. O máximo que qualquer um de nós pode fazer é dizer comoIsaías, quando ele teve a visão de Deus em sua santidade: "Ai de mim!Estou perdido! Porque sou homem de lábios impuros, habito no meio deum povo de impuros lábios, e os meus olhos viram o Rei, o Senhor dosExércitos!" (Is 6.5).

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Deísmo moralista e terapêutico

Vários anos atrás, um teólogo tradicional me contou uma experiência queteve em uma megaigreja evangélica. Ele estava visitando seus alhos e netos durante o feriado da primavera. Na igreja, eles assistiram ao Domingode Páscoa, mas nada sugeria, de modo visível, que aquele fosse um cultocristão, porém esse eminente teólogo tentou refrear sua opinião. Não houvesaudação da parte de Deus ou qualquer coisa que mostrasse que aquelafosse uma reunião de Deus. Os cânticos eram quase exclusivamente sobreas pessoas, seus sentimentos e suas intenções de adorar, de obedecer e deamar, mas não era possível saber de quem eles estavam falando ou por quê.Ele concluiu: "Bem, os evangélicos não têm uma liturgia definida. Eles devem ter colocado todo o conteúdo no sermão, então vou esperar".

No entanto, sua paciência não foi recompensada. Apesar de ser Páscoa,a mensagem (sem um texto definido) era sobre como Jesus nos dá forçapara superar nossos obstáculos. Sem pelo menos uma bênção, esse teólogofoi embora desanimado. Ele tinha ido a uma igreja evangélica, na Páscoa,e, em vez de encontrar Deus e o anúncio de uma verdadeira vitória sobre opecado e a morte por Jesus Cristo, encontrou outros cristãos que estavamrecebendo solidariedade e instruções para tornar a Páscoa deles realidadeem suas vidas.

Pressionado pelas insistentes perguntas de seu genro quanto à sua reaçãoao culto (tais como "falou ao seu coração?"), o teólogo rompeu seu silêncio: "Presumo que você esteja tentando 'me evangelizar' neste momento",disse ele. "Mas não houve 'evangelho' em nenhuma parte daquele culto quepudesse me converter se eu já não fosse um convertido... nem mesmo nasigrejas mais liberais em que já estive o culto foi tão desprovido de Cristo edo evangelho. É como se fosse: Deus quem?"

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Depois desta ocasião, um teólogo metodista tradicional me contou umaexperiência quase idêntica - curiosamente, também na Páscoa - em umaigreja presbiteriana conservadora, conhecida ao redor da universidade porseu ministério "crente na Bíblia" e "centrado em Cristo". Ele também saiu

desiludido (o sermão foi algo sobre como Jesus venceu seus reveses e, assim, nós também podemos vencer), fundamentando ainda mais sua avaliação de que os evangélicos são tão propensos quanto os tradicionais de hojea falar em psicologia,política ou moralismo popular em vez do evangelho.

Estes relatos, porém, são anedotas isoladas que poderiam ser encontradas em qualquer período da história da igreja?

Fundamentando a acusaçãoCom base em numerosos estudos conduzidos por seu grupo de pesquisa,George Barna concluiu que "para um número crescente de americanos,Deus - caso pelo menos se acredite em uma divindade sobrenatural - existepara o prazer da humanidade. Ele reside no reino celestial exclusivamentepara proveito e benefício nosso. Embora sejamos espertos demais para confessar isso em voz alta, vivemos pela noção de que o verdadeiro poder nãoé acessado olhando para cima, mas nos voltando para dentro de nós".1

A menos que algo mude, Barna pensa:

Será cada um por si, sem dúvidas ou arrependimentos sobre as implicações pessoais ou sociais deste modo de vidaincrivelmente egoísta, niilista e narcisista. (...) A maioriados americanos tem pelo menos um consenso intelectualquando se trata de Deus, de Jesus Cristo e dos anjos. Elesacreditam que a Bíblia é um bom livro cheio de histórias elições importantes. E acreditam que a religião é muito importante em sua vida. Mas este mesmo grupo de pessoas,incluindo muitos cristãos professos, também acredita queas pessoas são intrinsecamente boas e que nosso principalobjetivo é aproveitar a vida, o melhor possível.2

Oitenta e dois por cento dos americanos (e uma maioria de evangélicos)consideram que a máxima de Benjamin Franklin: "Deus ajuda a quem seajuda", é uma citação bíblica. Uma maioria acredita que "todas as pessoasoram ao mesmo deus ou espírito, não importa o nome que eles usam paraesse ser espiritual" e que "se uma pessoa for boa no geral ou fizer várias

1Barna, Second Corning ofthe Church, pág. 7.llhid., págs. 8,21.

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coisas boas para os outros durante sua vida, ela vai ganhar um lugar nocéu".3 Assim sendo, não deveríamos nos ter surpreendido quando o presidente Bush disse: "Eu acredito que todo o mundo, muçulmanos, cristãos oupessoas de qualquer outra religião, reza para o mesmo Deus. Isso é o queeu acredito".4

Depois de citar uma série de relatórios, Barna concluiu:

Em resumo, a espiritualidade da América é cristã apenas no nome. (...) Queremos experiência mais que conhecimento. Preferimos escolhas a absolutos. Abraçamospreferências em vez de verdades. Buscamos conforto nolugar de crescimento. A fé deve ser de acordo com nossostermos ou não a aceitamos. Nós nos entronizamos como

supremos árbitros da justiça, governantes supremos denossa própria experiência e destino. Somos os fariseusdo novo milênio.5

Dentre os falsos pressupostos que estão "matando o ministério" hoje,estão as convicções de que "os americanos têm uma compreensão sólidados princípios básicos do cristianismo", de que "as pessoas que acreditamem Deus acreditam no Deus de Israel" conhecido na Escritura ou de que osnão cristãos estão interessados na salvação, visto que a maioria dos americanos "está confiando em suas próprias boas ações, em seu bom caráter ouna generosidade de Deus", à parte de Cristo.6

Os estudos de Barna sugerem que a maioria dos americanos valorizao tempo e a eficiência acima de tudo, minimiza compromissos em longoprazo, mantém a "independência e a individualidade a todo o custo", atémesmo a ponto de ser cética em relação às instituições, às pessoas e àsautoridades. Afinal de contas, as pessoas escutam todos os dias "você éúnico", e você não deve submeter-se às expectativas dos outros. Acima detudo, "confie em seus sentimentos para guiá-lo. Basear-se em princípios absolutos impõe limitações irrealistas sobre você. Só você sabe o que é certoou melhor para você, em qualquer momento, nas circunstâncias presentes".Finalmente, ''''estabeleça metas e alcance-as... Divirta-se... Mantenha-se emboa saúde... Descubra e concretize o propósito de sua vida".1 Estes são osprincipais valores de acordo com pesquisas de Barna sobre os americanos

}Ibid., págs. 21-22.4PresidenteGeorge W. Bush em uma entrevistaem 04.10.2007,por Al Arabiya, relatado porMolly Iverson, "Between the Times", Modem Reformation, novembro-dezembro de 2007.5Barna, SecondCorning ofthe Church, pág. 23."Ibid., págs. 25-28.nIbid.,págs. 60-61.

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adultos de hoje. Apesar de seu diagnóstico, as receitas do próprio Barna(que vou retomar em um capítulo posterior) são mais susceptíveis de agravar a doença em vez de curá-la.

Há mais de uma década, tive a oportunidade de entrevistar Robert Schul-ler em nosso programa de rádio. Durante nossa conversa de duas horas, oautor best-seller e tele-evangelista reiterou seus argumentos de Self-Este-em: The New Reformation. Uma igreja, disse ele, pode se dar ao luxo depensar em um Deus como o centro, mas uma missão precisa colocar osseres humanos no centro. "Foi apropriado Calvino e Lutero pensarem teo-centricamente", escreveuSchuller, mas,agora,"a balançadeve penderparao outro lado", na direção da "abordagem das necessidades humanas". Naverdade, "a teologia clássica cometeu um erro em sua insistência na teologia centrada em Deus, e não centrada no homem". Pecado é definido como"qualquer ato ou pensamento que rouba a mim mesmo ou a outro ser humano de sua autoestima. (...) Eoque é inferno? Éaperda do orgulho, que vemnaturalmente depois da separação de Deus - a fonte suprema e infalível dosenso de autorrespeito da nossaalma.(...) Umapessoaestá no infernoquando perdeu sua autoestima". "A cruz santificaa satisfação do ego."8

Perguntei ao Dr. Schuller como ele interpretaria a seguinte exortação dePaulo a Timóteo:

Sabe, porém, isto: nos últimos dias, sobrevirão temposdifíceis, pois os homens serão egoístas, avarentos, jac-tanciosos, arrogantes, blasfemadores, desobedientes aospais, ingratos, irreverentes, desafeiçoados, implacáveis,caluniadores, sem domínio de si, cruéis, inimigos do bem,traidores, atrevidos, enfatuados, mais amigos dos prazeresque amigos de Deus, tendo forma de piedade, negando-lhe,entretanto, o poder. Foge também destes (2Tm 3.1-5).

Antes mesmo de eu terminar de articular minha pergunta, meu distintoconvidado respondeu apressado a estas palavras apostólicas, dizendo: "Euespero que você não pregue isso. Vai magoar um monte de gente bonita".

O desafio diante de nós como testemunhas cristãs é se vamos oferecer

Jesus Cristo como a chave para o cumprimento de nossa preocupação narcisista ou como o Redentor que nos liberta da culpa e do poder do pecado.Será que Cristo veio para impulsionar nosso ego ou para crucificá-lo e noslevantar como novas criaturas, com nossa identidade nele? De acordo como apóstolo Paulo, há glória esperando por nós, com certeza, mas é a glória

8Schuller, Robert. Self-Esteem: The New Reformation. Waco: Word, 1982, págs. 12-15,64, 75.

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que vem a nós por força de nosso ser em Cristo: "Morrestes, e a vossa vidaestá oculta juntamente com Cristo, em Deus. Quando Cristo, que é a nossavida, se manifestar, então, vós também sereis manifestados com ele, emglória" (Cl 3.3-4). Nossa justiça diante de um Deus santo não é inerente; éum dom para aqueles que são injustos em si mesmos.

Falando nisso, não acho que isso signifique que podemos simplesmenteanular o desejo de realização e felicidade. O evangelho não supre nossosobjetivos narcisistas nem nega a verdade de que são uma perversão. As pessoas foram criadas para significado, propósito, alegria e satisfação. ComoC. S. Lewis nos lembra, não é que nossos desejos sejam fortes demais, massim muito fracos.9 Enquanto Deus quer nos dar vida eterna, nós nos contentamos com a satisfação trivial das necessidades superficiais, em grandemedida criadas dentro de nós pela cultura de marketing.

Somente quando a lei de Deus - sua santidade, majestade e vontademoral - cria em nós um sentimento da nossa ofensa moral a ele, o evangelho comunica respostas mais profundas daquilo que nossas necessidadessentidas e nossos desejos baratos apenas mascaram. Meus filhos ficariamencantados se eu lhes dissesse que, em vez das três refeições habituais, hojenós lhes daríamos um pacote grande de doces variados, e dificilmente elesseriam os únicos a reagir dessa forma. Quando minha esposa e eu deixamos de satisfazer suas vontades, é porque sabemos que ficariam doentesse apenas seguissem seus desejos imediatos. Da mesma forma, Deus querencher nossas vidas com alegria, mas, antes de permitir que ele nos conte ahistória, já decidimos, dentro dos estreitos limites de nossa experiência, oque nos dá alegria.

Reagindo contra uma tendência legalista e hipócrita na sua infância,muitos americanos abandonaram completamente a igreja. Aqueles que voltam quase sempre o fazem em seus próprios termos. A mensagem deve sersuperficial e positiva, e a forma em que é apresentada deve ser divertida einspiradora. Eles estão prontos para algo de utilidade e de ajuda, mas nãopara algo chocante e perturbador. Como David Brooks observou sobre a geração do pós-guerra em geral, os Boomers10* são parte do Leave It to Beaver[Foi sem querer], moralistas burgueses com uma vaga sensação de valorese nostalgia pela comunidade e, em parte, revolucionários boêmios dos anos60 e 70 do século 20, que resistem às tradições, aos compromissos, às convicções e às estruturas que uma verdadeira comunidade exige."

"Lewis, C. S., The Weight ofGlory. São Francisco: Harper Collins, 2001, pág. 26.10* Vemda expressão BabyBoom,que se refere à explosão demográfica nos Estados Unidos,no pós Segunda Guerra Mundial. São considerados Boomers norte-americanos que nasceram entre entre 1946 e 1965. Também são conhecidos como "bebês da guerra" [N. da R.]." Brooks, David.BobosinParadise: The New Upper Class and How They Got There. NovaYork: Simon and Schuster, 2000.

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Nestecontexto, conforme descreveu a revistaNewsweek, as igrejas"têmdesenvolvido um sistema de cristianismo pegue e escolha, no qualos indivíduos levam o que querem (...) e largam o quenão se ajusta a seus objetivos espirituais. O que muitos deixaram para trás é uma visão generalizadado pecado".12 Uma década depois, a Newsweek acrescentou, em outra história de capa sobre a busca pelo sagrado, o seguinte:

Disfarçada em linguagem secular de psicoterapia, a busca pelo sagrado virou bruscamente para o interior - umabusca privada. O objetivo, ao longo dos últimos 40 anos,tem sido descrito de forma variada comopaz de espírito,consciência superior, transformação pessoal ou - em suaencamação mais banal - autoestima. (...) Nesse ambiente,muitos americanossaem pulandode uma tradição para outra, provando agora o néctar desta sabedoria tradicional,depois daquela. Mas, comoborboletas, permanecem principalmente suspensos no ar.13

Foi o psicólogo secular Karl Menninger quem denunciou (em um livrointitulado Whatever BecameofSin?) que a supressão crescente da realidadeda culpa nas igrejas estava, na verdade, contribuindo para as neuroses, emvez de evitá-las.14 Pouco tempo atrás, li um artigo no Wall Street Journalcom um relato semelhante, cujo título era "To Hell with Sin: When 'Beinga Good Person' Excuses Everything" [Pro inferno com o pecado: quando'ser uma boa pessoa' desculpa tudo].15 Não é um pouco estranho quando omundo tem de se queixar de que as igrejas pararam de falar sobre pecado?

Mais recentemente, RobertJay Lifton, um pioneiroem neuropsicologia,argumentou que o ego de hoje está incansavelmente empenhado na rein-venção, especialmente a fim de se livrar de uma sensação persistente deculpa, que gera tremenda ansiedade apesar de sua origem desconhecida. Asugestão de seu trabalho é que, quando as pessoas sabem por que se sentemculpadas e são capazes de encontrar uma resposta para isso, se tornam maisestáveis em suas identidades.16Como C. FitzSimons Allison alegou, trocaras categorias bíblicas pecado e graça por tais categorias terapêuticas, como

12 Woodward, Kenneth. Newsweek, 26 de setembro, 1984.,3Woodward, Kenneth. Newsweek, 28 de novembro, 1994,pág. 62.14 Menninger, Karl. Whatever Became ofSin? Nova York: Hawthom Books, 1973.15 Kersten, Katherine A. "To Hell with Sin: When 'Being a Good Person' ExcusesEverything", Wall Street Journal, 17 de setembro de 1999.16 Lifton, Robert Jay. "The Protean Self', em Anderson, Walter Truett (org.), The Truthabout the Truth. Nova York: Putnam, 1995, págs. 130-135.

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disfunção e recuperação, representa "crueldade pastoral".17 Se nos sentimosculpados, talvez seja porque realmente somos culpados. Mudar de assuntoou minimizar a gravidade desta condição, na verdade, acaba por deixar aspessoas sem a boa-nova libertadora que o evangelho traz. Se nosso verdadeiro problema são sentimentos ruins, então a solução é bons sentimentos.A cura só pode ser tão radical quanto a doença. Como qualquer droga recreativa, o cristianismo light pode fazer as pessoas se sentirem melhores porum momento, mas não reconcilia os pecadores com Deus.

Ironicamente, psicólogos seculares como Menninger estão escrevendolivros sobre o pecado, enquanto muitos líderes cristãos estão convertendo opecado - uma condição da qual não podemos nos libertar - em disfunção,e a salvação em recuperação. Em seu best-seller The Triumph ofthe Thera-peutic, Philip Rieff descreve como a psicologia popular transformou nossacosmovisão inteira, incluindo a religião. "O homem cristão nasceu para sersalvo", escreveu ele. "O homem psicológico nasceu para ser feliz."18

Neil McCormick, um colunista do jornal londrino Daily Telegraph, re-conta as aulas de educação religiosa que ele e seu amigo de infância, Bono,do U2, receberam em uma escola não denominacional, mas principalmenteprotestante, em Dublin. As aulas eram "caracterizadas por um tipo de liberalismo cristão confuso, ministradas por uma bem-intencionada, mas - noque me diz respeito - jovem professora chata e ineficaz chamada SophieShirley". McCormick recorda:

Havia leituras bíblicas e discussões de classe, nas quaisJesus assumia o caráter de um hippie beatífico, enquantoDeus parecia ser personificado como um tio velhote quesó queria o melhor para sua extensa família - se as coisasfossem mesmo assim, eu me perguntava, por que eu ficavaacordado à noite me perguntando se os tormentos do inferno me esperavam quando morresse? Eu metralhava esta eoutras questões relacionadas à minha paciente professora,mas nunca recebia respostas satisfatórias, apenas chavõessobre Jesus me amar.19

Outro dia, vi uma cena de E.R.20* na NBC que apoia fortemente a experiência de McCormick. Deitado em sua cama de hospital, morrendo de

17 Allison, C. FitzSimons. "Distractions", ModemReformation, setembro-outubro de 2007.18 Rieff, Philip. The Triumph ofthe Therapeutic: Uses of Faith after Freud. Nova York: Har-per & Row, 1966, págs. x-xii.19 McCormick, Neil. KillingBono. Nova York: Simon & Schuster, 2004, pág.12.20* Seriado de televisão que era transmitido pela emissora Globo com o nome de PlantãoMédico [N. da R.].

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câncer, um policial aposentado confessa a uma capela sua culpa, ocultahá muito tempo, por permitir que um homem inocente fosse incriminado e executado. Ele pergunta: "Como posso ao menos ter esperança deperdão?", e a capela responde: "Às vezes, acho que é mais fácil se sentirculpado que perdoado"."O que isso significa?""Que talvez sua culpa pelamorte dele tenha se tornado o motivo de sua vida. Talvez você precise deuma nova razão para seguir emfrente." "Eu não quero seguir em frente",diz o moribundo. "Você não vê que estou morrendo? A única coisa queestá me segurando aqui é que estou com medo - estou com medo do quevem a seguir." "O que você acha que é?", pergunta a capela delicadamente.Ficando mais impaciente, o homem responde: "Me diga você. Será que háexpiação possível? O que Deus quer de mim?". Depois que a capela responde: "Acho que cabe a cada um de nós interpretarmos, por nós mesmos,o que Deus quer", o homem olha paraela com grande perplexidade. "Então, as pessoas podem fazer qualquer coisa? Elas podem estuprar, matar,roubar- tudo em nome de Deus e está tudo bem?" Cada vez mais intenso,o diálogo chega aa seu clímax. "Não, não é isso o que estou dizendo", acapela responde. "Então, o que você está dizendo? Porque tudo o que estououvindo é alguma coisa de Nova Era, Deus é amor, faça o que bem quiser!...Não, eu não tenho tempo para isso agora." "Você não entende", contesta acapela. '*Não, você não entende!... Eu quero um capelão real, que acrediteem um Deus real e em um inferno reall" Não entendendo o conflito desse

homem, a capela se recompõe e diz, em tom de condescendência familiardisfarçado de compreensão: "Eu ouço você dizer que você está frustrado,mas você precisa perguntar a si mesmo...". "Não", o homem interrompe,"eu não.preciso me perguntarnada. Eu preciso de respostas, e todas as suasperguntase todas as suas incertezas estão somente piorando as coisas". Semmais para avaliardo que o tom dele, ela o incentiva a ter calma. "Eu sei quevocê está chateado", começa e acaba por provocar sua explosão final defrustração: "Deus, eu preciso de alguém que me olhe nos olhos e me digacomo encontrarperdão,porque meutempo está nofim\".

Recentemente entrevistado paraum artigo no USA Today para o fim desemana de Páscoa, fui questionado sobre como a ressurreição de Cristoainda pode ter algum significado quando parece não responder ao tipo deproblema que estamos habituados a pensar estaralém de nós. A história publicada, com o título "Is Sin Dead?", começou por relatar uma preocupaçãocrescente: "Como podem os cristãos celebrar a expiação de Jesus por seuspecados e a promessa de vida eterna em suaressurreição se não se reconhecem como pecadores?".21

21 Grossman, Cathy Lynn. "Is Sin Dead?", USA Today, 19de março de 2008.

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A autora cita vários pesquisadores sociais que concordam que pecadoestá sendo definidopor nossos própriospadrões e metas, e não por qualquermedida objetiva em relação a Deus. Embora concordando que existe algocomo o pecado, eles dizem que a maioria das pessoas o define "'de umaforma muitopessoal e autogratificante' - eu tenho de fazer o que é melhorpara mim; não sou tão pecador como a maioria". Ironicamente, enquantoRobert Schuller, ordenado na Igreja Reformada na América, incentiva aspessoas a trocarem as categorias depecado e justificação pelasde vergonhae autoestima, este artigo cita a preocupação do papa Bento XVI de que omundo hoje "está perdendo a noção de pecado". O papa delibera: "As pessoas queconfiam emsi mesmas e emseus próprios méritos estão, porassimdizer, cegas peloseupróprio eue seucoração estáendurecidos pelopecado.Em contrapartida, aqueles que se reconhecem como fracos e pecadores seentregam a Deus e dele obtêm graça e perdão".

É citado alguém que, apesar de ter sido criado na conservadora IgrejaLuterana do Sínodo de Missouri, se descreve agora como um ateu. "Mas euacho quea Bíblia temum monte de boashistórias. E eu me ligona históriada Páscoa,da redençãoe do renascimento. Ela me diz que você vai cometererros e terá outra chance de fazer o bem no futuro" (algo próximo destainterpretação foi oferecido pelo líder evangélico Rick Warren, no últimoNatal, quando falou a umaaudiência nacional de televisão que Cristo veioao mundo para nos dar um do-over,22* como no golfe).

O artigo inclui umacitação de Barry Kosmin, professor de políticas públicas queestuda o secularismo. "Aspessoas seculares aindaacreditam quehá pecado, julgamento e punição", dizele,mas o secularismo desafia qualquer padrão universal estabelecido por Deus, principalmente culpa moralperante esse Deus. Naturalmente, as pessoas cometem erros e prejudicamos outros, "porém,se forem consideradas culpadas, a punição, é claro, temde ser neste mundo, não no próximo.As pessoas seculares não queimam noinferno, e sim no tribunal da opinião pública".

Independente de ser expresso nos tons mais severos do fundamentalis-mo ou nos tons mais suaves do sentimentalismo, o tipo de religião que estesexemplos apresentam é o quePaulo chamou de"a justiçadecorrente da lei"em oposição a "a justiça decorrente da fé" (Rm 10.5-6). "Dou testemunhode que eles têm zelo por Deus, porém não com entendimento. Porquanto,desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria,não se sujeitaram à que vem de Deus. Porque o fim da lei é Cristo, parajustiça de todo aquele que crê" (Rm 10.2-4).

~* Quandoumjogador de golfe dá uma tacadae fica insatisfeito com o resultado,ele podeoptarpor dar umasegundatacada, que é chamade do-over [N. da R.].

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Eu me dou conta de que um grande número de pessoas que talvez gravitem em torno de uma abordagem maisterapêutica para a vida, incluindoa sua fé, no entantoempacariam na acusação de obras dejustiça.A chaveparaminha crítica, porém, é que, umavezquevocêfaz suapazde espíritoem vez de paz com Deus, que é o principal problema a ser resolvido, todoo evangelho é radicalmente redefinido. Mais do que isso, uma cosmovisão terapêutica distorce gravemente os termos do evangelho, ainda queas mesmas palavras continuem a ser empregadas. Sentir-se bem é maisimportante que ser bom; na verdade, as sentenças normativas externas aoego estão fora de lugar. A pessoa pode sentir-se culpada, mas ninguémrealmente é culpadodiante de Deus. Exatamente o que a lei de Deus veiofazer - a saber, despojar-nos de nossas pretensões de ter tudo sob controle- só pode ser considerada uma agressão violenta contra o valor fundamental da autoestima.

"Como posso eu, um pecador, ser justo diante de um Deus santo?", issosimplesmente estáfora docampo dedetecção emumamentalidade terapêutica. Uma vez que o ego seja entronizado como a fonte, o juiz e a metadetoda a vida, o evangelho não precisa ser negado, porque ele é irrelevante.Mas as pessoas precisam ver - para seu próprio bem - que a autorrealiza-ção,a autossatisfação e a autoajuda sãotodasdistorções contemporâneas deuma heresia antiga, que Paulo identificou comoobrasde justiça.

Diagnosticando a doença: deísmo moralista e terapêuticoO povoamericano sempre foi o povo dopodemosfazer. Ao nos erguermospelo esforço próprio, assumimos que somos pessoas de bem, que poderíamos fazer melhor se unicamente dispuséssemos de métodos e instruçõescorretos. Acrescente a isso o triunfo da cultura popular terapêutica e chegamos ao que o sociólogo Christian Smith chamou de "deísmo moralista eterapêutico".23

Além dos psicólogos, os sociólogos também estão documentando o fatode que o cristianismo - incluindo o evangelicalismo - está menos interessado na verdade que na terapia e mais focado nos consumidores que emfazer discípulos. James Davison Hunter, Robert Bellah, Wade Clark Roofe muitos outros têm feito estas colocações em seus exaustivos estudos dareligiãonos EUA.No entanto,existemdois sociólogosque têm contribuídosignificativamente para a condição espiritual que vou destacar neste capítulo: Christian Smith e Marsha Witten.

23 Smith, Christian; Denton, Melinda Lundquist. Soul Searching: TheReligious andSpiritu-al LivesofAmerican Teenagers. NovaYork: OxfordUniversity Press, 2006,págs. 162-171,258, 262.

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De 2001 a 2005, na Universidade de Carolina do Norte (agora NotreDame) o sociólogo Christian Smith liderou uma equipe em um notávelestudo da espiritualidade dos adolescentes de hoje. De suas exaustivasentrevistas, Smith concluiu que a forma dominante de religião ou de espiritualidade dos jovens americanos da atualidade é o "deísmo moralistaterapêutico". É difícil definir essa espiritualidade um tanto amorfa, especial e ironicamente uma vez que "22% dos deistas adolescentes em nossapesquisa relatou sentir-se muito ou extremamente perto de Deus (contudoo Deus em que acreditam não está envolvido no mundo de hoje)".24 Aparentemente, o envolvimento de Deus é restrito à esfera interna do mundoprivado de cada um.

Smithobservou quea maioria dosadolescentes - incluindo aquelescriados emigrejas evangélicas que dizem que suaféé "muito importante" e quefaz grande diferença emsuas vidas - é "incrivelmente desarticulada" sobreo conteúdo concreto da fé.25 "Quem entrevista os adolescentes", conta ele,"encontra pouca evidência de queos agentes de socialização religiosa neste país" - os pais, os pastores e ao professores - "estão sendo altamenteeficazes e bem-sucedidos com a maioria dos seus jovens".26 Em contrastecom as gerações anteriores, que pelo menos tinham algum conhecimentoresidual da Bíblia e os ensinamentos cristãos básicos, parece que há bempouca capacidade para afirmar, refletir ou examinar suas próprias crenças,quanto mais para relacioná-las à vida diária. Muitos jovens parecem estarvivendo no clima artificial e no círculo familiar de amigos no grupo dejovens, ambos osquais eventualmente vão perder sua influência, especialmente na faculdade.

Smith define deísmo moralista terapêutico como expressão deste tipode teologia em ação:

1. Deus criou o mundo.

2. Deus quer que as pessoas sejam boas, educadas e justas umas paracom as outras, como é ensinado na Bíblia e na maioria das religiõesmundiais.

3. O objetivo central da vidaé ser feliz e se sentir bemconsigo mesmo.4. Deus não precisa estar particularmente envolvido na vida de nin

guém,excetoquando ele é necessário para resolverum problema.5. Boas pessoasvão para o céu quandomorrem.27

24 Ibid., pág. 42.25 Smith examinou suas descobertas conosco no programa de radio White Horse Inn, disponível no site www.whitehorseinn.org.26 Smith; Denton, Soul Searching, pág. 27.27 Ibid., págs. 162-163.

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A sensação que se tem ao ler o estudo de Smith é coerente com minha própria experiência anedótica da religião popular atual. Basicamente,a mensagem é que Deus é bom e nós somos bons, por isso devemos todosser bons.

Será que os jovens criados em lares e em igrejas evangélicas realmenteacreditam nisso? Deacordocomos relatórios de Barna,paranão mencionaros estudos de sociólogos como Smith, James Hunter, Wade Clark Roof eoutros, a resposta trágica é sim.2* Esta abordagem, diz Smith, reflete estudos semelhantes da geração de seus pais. Smith mostra que, na teologia detrabalho daqueles que estudou, "ser religioso é ser bom e nada tem a vercom perdão. (...) E inacreditável a proporção de adolescentes protestantesconservadores que parecem não compreender os conceitos elementares doevangelho com relação à graça e à justificação. (...) Isso ocorre em todas astradições".29 Mesmo as pessoas jovens luteranas que eram ativas na igrejanão conseguiam definir graça oujustificação, diz ele, destacando a disparidade entre o que as igrejas dizem que acreditam e o que estão realmentecomunicando semana após semana.

Seja o que for que as igrejas digam que acreditam, as respostas incoerentes oferecidas por aqueles que são entregues aos cuidados de seuministério fundamentam meuargumento de queumareligião moralista deautossalvação é nossa configuração padrão como criaturas caídas. Se nãoformos ensinados, de forma explícita e regular, o contrário, vamos sempretornar a mensagem de operação de resgate de Deus em uma mensagemde autoajuda.

Recentemente, me deparei com um artigo no jornal sobre o notável sucesso de um website chamado dailyconfession.com. "Salas de bate-papo esites confessionais estão explodindo em popularidade - o dailyconfession.com recebe diariamente até 1.3 milhões de acessos - os jovens se sentem àvontade, compartilhando segredos íntimos e buscando aconselhamento online". Um usuário do site de 19 anos de idade relatou: "A idéia de confessarnão é necessariamente sobre o certo e o errado. É sobre descarregar umfardo. É quase catártico".30

Reconhecemos,aqui, a confluênciade espiritualidadegnóstica (individualista, desencarnada, privada) e o deísmo moralista terapêutico. De acordocom uma cosmovisão bíblica, a confissão do pecado é sobre certo e errado.Pecados reais são realmente perdoados por um Deus que está intimamente

28 Veja especialmente Hunter, JamesD.Evangelicalism: TheCorning Generation. Chicago:University ofChicago Press, 1987, capítulo 2.29 Entrevista comCromartie, Michael. "WhatAmerican Teenagers Believe: AConversationwith ChristianSmith",em Books & Cultore, janeiro-fevereirode 2005,pág. 10.30 Briggs, David. "More Sinners AreLining Upat the Virtual Confessional", Religion NewsService, SanDiegoUnion-Tribune, domingo, 14de abrilde 2007, seçãoReligion and Ethics.

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envolvido em nossa vida cotidiana. Em uma cosmovisão terapêutica, nãohá pecado nem culpa a ser perdoados por Deus, mas apenas os pesos e ossentimentos de culpa por não corresponder às expectativas de si mesmo oude outros seres humanos. Em outras palavras, para o cristianismo, existeculpa objetiva e justificativa; na terapia moralista, só existe culpa subjetivae uma libertação catártica simplesmente contando alguém sobre isso.

"Kate, uma moça de 23 anos de idade, do Texas, que se descreve comoespiritual, mas não religiosa, temvisitado dailyconfession.com quasetodosos dias, por cinco anos. 'Eu gosto de ler as confissões de pessoas porque ébom saber que não sou mais egoísta, mesquinha, vaidosa, estranha ou macabra do que qualquer outra pessoa nos EUA', ela escreveu em um e-maila um repórter."31 Mas isso significa que confissão não é uma questão decoração quebrantado por ofensas a Deus e de recebimento de seu perdão;pelo contrário, é uma questão de justificar-se como não sendo pior do quea média.

Pormaisque falemos deumrelacionamentopessoalcom Deuspormeiode Jesus Cristo, não parece haver relacionamento algum, exceto com o ego.A confissão é boapara a alma - ou seja, uma forma de terapia. Talvez oresultado de toda essa ênfase sobre meu relacionamento pessoal com Jesussignifique, afinal, que Jesus realmente se torna meu alter ego.

Muito diferente é a confissão de Davi no salmo 51: "Pequei contra ti,contra ti somente, e fiz o que é mau perante os teus olhos, de maneira queserás tido por justo no teu falar e puro no teu julgar. Eu nasci na iniqüidade,e em pecadome concebeuminhamãe. (...) Não me repulsesda tua presença(vs. 4-5, lia). Embora a confissão tenha sido feita após seu adultério comBate-Seba e o assassinato do marido dela, Urias, o fato que torna o pecadotão completamentepecaminosoé que, em última análise, é cometido contraDeus. Essa relação vertical com Deus (lei e evangelho) não nos permitereduzir a confissão ao plano horizontal de nossos vizinhos (moralismo) oude nosso eu interior (terapia).

Um diagnóstico teológicoO termo teológico para esta moléstia é pelagianismo. Um monge britânicodo século 4 d.C, chamado Pelágio, ficou horrorizado com a imoralidadeque viu quando chegou a Roma, o centro da cristandade. Assumindo que aênfase do bispo africano Agostinho sobre o desamparo humano e a graçadivina estava na raiz, Pelágio e seus seguidores negaram o pecado original.O pecado não é uma condição humana universal, mas simplesmente umaescolha que cada um de nós faz. Com nosso livre-arbítrio, podemos optar

"Ibid.

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por seguir o mau exemplo deAdão ou o bom exemplo de Jesus. Apesar deter sido oficialmente condenado pela igreja (até mesmo na sua forma maissuave "semipelagiana"),o pelagianismo sempre foi uma ameaça constante.Afinalde contas, é nossa teologiamais natural.

Conquanto afirmando queestáem nosso próprio poderser bomou ruim- e, assim, merecer a vida eterna ou morte eterna - o semipelagianismo,no entanto, acreditava que algum auxílio da graça divina era necessário. Oarminianismo, assim chamado emhomenagem ao teólogo holandês dofinaldoséculo 16 que rejeitou o calvinismo, entretanto, deu mais um passo paralonge das convicções pelagianas, afirmando a necessidade da graça. Maso arminianismo ainda afirma que a salvação é um esforço de cooperaçãoentre Deus e os seres humanos.

Como vou deixar mais claro emvários pontos ao longo deste livro, desdeo Segundo Grande Avivamento, especialmente evidente namensagem enos métodos do evangelista Charles G. Finney, o protestantismo americanotem sido mais pelagiano que arminiano. Na verdade, o teólogo arminianoRoger Olson recentemente fez uma observação semelhante.32

Negando o pecado original, Finney afirma que só somos culpados e corruptos quando escolhemos pecar.33 Aobra de Cristo na cruznão poderia terpagado nossa dívida, elasópoderia servir como umexemplo e umainfluência moral para nos convencera arrepender-nos. "Se ele tivesseobedecido àlei como nosso substituto, então porque nosso retorno à obediência pessoalé insistido como uma sine qua non de nossa salvação?" A expiação é simplesmente "um incentivo à virtude". Rejeitando a idéia de que "a expiaçãofoi literalmente o pagamento de uma dívida", Finney só pode admitir: "Éverdade que a expiação, porsi só, não assegura a salvação de ninguém".34

A justificação pela imputação da justiça de Cristo não é apenas "umabsurdo", dizFinney, mas prejudica toda a motivação para a santidade pessoal. O novo nascimento não é um dom divino, e sim o resultado de umaescolha racional para deixar o pecado pela obediência. Os cristãos podemperfeitamente obedecer a Deus nesta vida se escolherem, e só desta maneirasãojustificados. Na verdade, ele diz que "a total presenteobediênciaé umacondição dejustificação". Ninguém pode serjustificado "enquanto o pecado,

12 Olson, Roger. Arminian Theology. Downers Grove, IL: Inter Varsity, 2005, pág. 28 (incluindo nota de rodapé 20). Além disso, fiquei impressionado com o fato de que amigosarminianos, como o teólogo metodista Thomas Oden, defenderam o núcleo evangélico (istoé, a Reforma), ensinamentos como justificação, mesmo quando alguns protestantes conservadores pareciam desinteressados na doutrina. Claramente, a divisão teológica de nossosdias é menos denominacionalque teológica.13 Finney, Charles G. Finney's Systematic Theology Minneapolis: Bethany, 1994 (repr.),págs. 31, 179, 180,236."Ibid., págs. 206,209.

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qualquer grau de pecado, permanece nele". Finney declara com relação àfórmula da Reforma, "simultaneamente justificado e pecador": "Este erromatou mais almas, eu temo, que todo o universalismo que sempre amaldiçoou o mundo", pois "sempre que um cristão peca, fica sob condenação edeve arrepender-se e fazer suas primeiras obras, ouficar perdido".35

Como já foi dito, não podehavernenhuma justificação nosentido forense ou judicial, mas em razão da obediênciauniversal, perfeita e ininterrupta a lei. (...) A doutrina deuma justiça imputada ou de que a obediência de Cristo àlei foi reputada como nossa obediência é fundada em umapremissa altamente falsa e absurda, pois ajustiça deCristonão podia fazer mais que justificá-lo. Ela nunca pode serimputada a nós. (...) Era naturalmente impossível, então,para ele, obedecer em nosso favor. Representar a expiaçãocomo base da justificação do pecador tem sido uma tristeocasião de tropeço para muitos.36

Referindo-se "aos autores da Confissão de Fé de Westminster" e à suavisão de uma justiça imputada, Finney pondera: "Se isto não é antinomia-nismo, eu não sei o que é".37

Deve-se observar que estas posições são muito mais radicalmente anti-téticas à teologia da Reforma (com a qual os evangélicos supostamente seidentificam) do que as condenações dos pontos de vista dos reformadorespor Roma, no Concilio de Trento. Amensagem de Finney foi, certamente,moralista. Por vários métodos, o evangelista poderia induzirao arrependimento, por meio de experiências de crises constantes que geram autotrans-formação. Foi realmente uma orientação terapêutica. E, como seus críticosobservaram, eraum sistema de religião quenem sequer parecia precisar deDeus. Salvação e aperfeiçoamento moral estavam inteiramente nas mãos doevangelista e do convertido. As implicações deistas são, também, evidentes. Mesmo que o evangelho seja formalmente confessado, elese torna umaferramenta para a engenharia pessoal e para a vida pública (salvação pelasobras) em vez de um anúncio de que a justa ira de Deus para conosco foisatisfeita e seu favor imerecido foi livremente concedido em Jesus Cristo. Aintervenção direta de Deus, pessoal e milagrosa paranossasalvação, parecedesnecessária, tal como sugerido notítulo deumdossermões mais famosos

35/6/W.,págs.46, 57.36 Ibid., págs. 320-322.37Ibid.

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de Finney, "Sinners Bound to Change Their Own Hearts" [Pecadores compelidosa mudarem seu próprio coração].

Esta preocupação que expressei não é limitada a alguns calvinistas eluteranos mal-humorados. "Aautossalvação é o objetivo de grande partede nossa pregação", segundo o bispo da Igreja Metodista Unida, WilliamWillimon.38 Ele percebeu que grande parte da pregação contemporânea,independente de ser tradicional ou evangélica, assume que a conversão éalgo que nós geramos pormeio denossas próprias palavras e sacramentos."Aeste respeito, somos herdeiros deCharles G. Finney", que pensava quea conversão não era um milagre, mas um "resultado puramente filosófico[isto é, científico] do uso correto de meios da natureza".

Esquecemos que já houve uma época em que os evangelistas eram forçados a defender suas "novas medidas" paraavivamentos, que já houve uma época em que os pregadores tinham dedefender sua preocupação com a respostado ouvinte para seus detratores calvinistas, que achavamque o evangelho era mais importante queseusouvintes. Euestou aqui argumentando que avivamentos sãomilagrosos,que o evangelho é tão singular, tão contra a natureza denossas inclinações naturais e as paixões de nossa cultura que nada menos que um milagre é necessário para quehajaaudiência verdadeira. Minha posição é,portanto, maispróxima à do calvinista Jonathan Edwards queda posiçãode Finney.39

Não obstante, "o futuro homilético, infelizmente, estácom Finney, nãocom Edwards", levando ao tipo de marketing pragmático expresso porGeorge Barna:

Jesus Cristoera um especialista em comunicações. Ele comunicava sua mensagem de maneiras diversas e com resultados que seriam um crédito para a publicidademoderna epara as agências de marketing. (...) Promovia seu produtoda forma maiseficiente possível: pelacomunicação comas"perspectivas quentes". (...)Entendia seuproduto completamente, desenvolveu um sistema de distribuição sem paralelo, promoveu um avançado método de promoção que

38 Willimon, William. The Intrusive Word: Preachingto the Unbaptized. Grand Rapids: Eer-dmans, 1994, pág. 53.39 Ibid., pág.20.

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penetrou em todos os continentes e ofereceu seu produtoa um preço que está ao alcance de todo consumidor (semfazer o produto tão acessível que perdesse seu valor).40

Apergunta que certamente surge em face de tais observações é saber seé possível dizer que Jesus fez alguma coisa nova.

"Infelizmente", acrescentaWillimon, "a maior parte da pregação evan-gelistica que conheço tem a ver com um esforço para arrastar as pessoasainda mais para o fundo em suas subjetividades, e não com a tentativa deresgatá-las delas". Nossa real necessidade, independente de a sentirmos ounão, é distorcer e ignorar a verdade sistematicamente. Por isso, precisamosde "uma palavra externa. (...) Então, em certo sentido, não descobrimos oevangelho, ele nos descobre. 'Não fostes vós que me escolhestes a mim;pelo contrário, eu vos escolhi a vós outros' (Jo 15.16)". Willimon conclui:"Ahistória é euangelion, boas-novas, pois setrata degraça. Contudo, também novidade, porque não é conhecimento comum, não o que nove emcada dez americanos, emmédia, já sabem. O evangelho não chega naturalmente. Ele vem como Jesus".41

Não estou apontando odedo para nenhuma tradição. Esta tendência generalizada ao pelagianismo no cristianismo atual é evidente, mesmo nas igrejas que traçam sua história diretamente à Reforma. Sociólogos da religião,como Christian Smith e James D. Hunter, lembram que leigos luteranos ereformados de hoje compartilham de muitos desses mesmos pressupostos.Vale a pena observar que Norman Vincent Peale foi ordenado na IgrejaReformada naAmérica, como também Robert Schuller. Além disso, tenhoouvido sermões em igrejas presbiterianas e reformadas mais conservadorasque poderiam se encaixar facilmente no perfil do deísmo moralista terapêutico de Smith. Brian Gerrish, um teólogo tradicional da Universidade deChicago, declara acrise: "O testemunho reformado da graça pode ser aindamais necessário hoje que era no século 16, já que, agora, o pelagianismoparece confortavelmente àvontade nas igrejas reformadas".42

Como a pregação revela esta tendência secularizanteAtendência pelagiana do cristianismo popular de nossos dias - que Smithchamou de"deísmo moralista terapêutico" - pode serconfirmada pelo estudo

40Ibid., pág. 21, citando Barna, Marketing the Church: WhatThey Never Taught You aboutChurch Growth. ColoradoSprings: NavPress, 1988,pág. 50.41 Ibid., págs. 38,43, 52.42 Gerrish, B. A. "Sovereign Grace: Is Reformed Theology Obsolete?", Interpretation 57,n°.l (janeiro, 2003), pág. 45.

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da socióloga Marsha Witten. Em Ali Is Forgiven: The Secular Message inAmerican Protestantism [Tudo é perdoado: a mensagem secular do protes-tantismoamericano], Witten revelaseus resultados dos estudosde textosde47 sermões sobre aparábola do filho pródigo (Lc 15.11-32), pregados entre1986-1988 por vários pastores em duas denominações: a Igreja Presbiteriana (EUA) e a Convenção Batista do Sul. Ela começa o livro contandosobre uma tarde de Sexta-Feira Santa de 1990. Enquanto estava ouvindo APaixão Segundo São Mateus, de Bach, "com o coral antifonal chamandotristemente a Jesus do seu túmulo", o correio diário chegou e Witten abriuoprimeiro envelope mais grosso. Era um material promocional para o lançamento de uma nova igreja batista em seu bairro:

Oi Vizinho!

Finalmente! Uma nova igreja para aqueles que desistiram de ir à igreja! Sejamos francos. Muitas pessoas nãosão ativas na igreja nestes dias.

POR QUÊ?Muitas vezes,- Os sermões são chatos e não têm nada a ver com a

vida do dia a dia.

- Várias igrejas parecem mais interessadas em suacarteira que em você.

- Os membros não sãogentis paracomos visitantes.- Você tem dúvida sobre o tipo de cuidados do berçá

rio para seus pequenos.

Você acha que ir à igreja deveria seragradável?

BEM, NÓS TEMOS BOAS-NOVAS PARA VOCÊ!

AValley Church é uma nova igreja, projetada paraatender às suas necessidades na década de 90 [século 20].Na Valley Church, você vai:- Fazer novos amigos e conhecer seus vizinhos.- Apreciar música emocionante com um sabor con

temporâneo.- Ouvir mensagens positivas e práticas quevãoelevá-lo

a cada semana.

• Como se sentir bem consigo mesmo.• Como superar a depressão.

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• Como ter uma vida plena e bem-sucedida.• Como lidar com seu dinheiro, sem que ele manipu

le você.

• Os segredos da vida bem-sucedida em família.• Como superar o estresse.

- Confie seus filhos aos cuidados do berçário realizado por trabalhadores dedicados.

POR QUE NÃO SE ANIMAR EM VEZ DE TERUMA DECEPÇÃO NESTE DOMINGO?43

Witten, que se descreve como uma não cristã, usa esta ilustração - APaixão Segundo São Mateus contrastando com os materiais promocionaisda nova igreja - para enquadrar as conclusões a que ela chega após extensos estudos. Enquanto a primeira é alimentada por um rico sentimento damajestade, da santidade eda misericórdia de Deus, bem como pelo esforçogenuíno da fé, aúltima é"otimista, despreocupada epuramente mundana",como um anúncio de um produto qualquer. Ocristianismo americano, hoje,vive a contradição entre "o espiritual e o psicológico, o transcendente e opragmático".44

De acordo com a conhecida "teoria da secularização" de Max Weber, areligião - nas condições da modernidade - passa por várias fases. Primeiro,a religião éprivatizada, seu domínio foi encolhido para a ilha da subjetividade privada. Afirmações como "Jesus está vivo" e "Jesus é o Senhor"não são mais consideradas como alegações objetivas, públicas e baseadasem eventos históricos, mas se tornam referências a umaexperiência pessoal de alguém. Quanto à afirmação "Jesus está vivo", nas palavras de umafamosa canção gospel: "Você me pergunta como eu sei que ele vive. Elemora dentro do meu coração". E, tipicamente, "Jesus é o Senhor" refere-seà minha decisão pessoal para tornar Jesus meu Senhor e Salvador. Enquanto os apóstolos testemunharam acontecimentos históricos dos quais foramtestemunhas oculares, "darseutestemunho", nocristianismo evangélico dehoje, significa falar sobre a experiência interior de transformação moral dealguém. Uma vez privatizada, a religião torna-se relativizada. Não há maisa verdade, e sim sua verdade. Visto que crenças religiosas não são mais

43 Witten,Marsha. Ali IsForgiven: The Secular Message inAmerican Protestantism. Prince-ton: PrincetonUniversityPress, 1993,págs. 3-4."Ibid., pág. 4.

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reivindicações sobre os eventos públicos, elas só podem ser justificadas emtermos do quecada indivíduo acha significativo, útil e transformador.45

A fé objetiva, histórica e baseada no credo do cristianismo tradicionalnão pode ser traduzida em termos puramente subjetivos. No entanto, precisamente porque a religião atual tem "alimentado" muito sua oposição àsformas mais tradicionais de cristianismo em favor da experiência soberanainterior do indivíduo, ela não apenas sobrevive, mas prospera na atmosferadeste processo de secularização. Um tipo de religião que a maioria doscristãos pré-modernos teria considerado quase herético pode tornar-se, naexperiência contemporânea, o epítome da ortodoxia. Então, esses mesmosprocessos de secularização moderna que levaram à rejeição, por parte doscristãos tradicionais, da fé e da prática na Europa tornam-se o motor dorenascimento religioso perpétuo nosEstados Unidos.

Como resultado, o discurso religioso se torna semelhante à racionalidade pragmática das regras, das etapas, das técnicas e dos programaspara a transformação pessoale bem-estar. Comoo filósofo William Jamestornou explícito, oteste da verdade é"seu dinheiro-valor em termos experimentais".46 No entanto, muito antes deJames, a história do avivamentojá estava assimilando reivindicações cristãs para a eficiência pragmática,mensuráveis não só em números de convertidos, mas em dólares. "O querecebo pelo meu trabalho éapenas cerca de U$ 2por alma", oevangelistaBilly Sunday calculou, "e recebo menos proporcionalmente pelo númeroque eu converter que qualquer outro evangelista vivo".47 Em seu PrêmioPulitzer, ganhando o Anti-Intellectualism in American Life, Richard Ho-fstadter contrastou a cultura altamente letrada dos puritanos da Nova Inglaterra e a cultura de depois do reavivamento. "Tudo o que seriamentediminuiu o papel da racionalidade e da aprendizagem na religião americana inicial viria mais tarde diminuir seu papel na cultura secular", eleobserva. "O sentimento de que as idéias devem, acima de tudo, ser feitaspara funcionar; o desprezo pela doutrina e pelos refinamentos das idéias;a subordinação dos homens de idéias aos homens de poder emocional ou

45 Sobre o argumento de Weber, veja seu trabalho "Science as a Vocation", em From MaxWeber: Essays in Sociology, H. Gerth eC. W. Mills (org.). Nova York: Oxford UniversiryPress, 1946, págs. 129-60. Aliteratura sobre esta questão évasta, mas dois livros são especialmente críticos para se obter uma visão sobre interpretações sociológicas contemporâneasda teoria de Weber: Berger, Peter. The Sacred Canopy. Garden City, NY: Doubleday, 1967;Luckmann, Thomas. The Invisible Religion. Londres: Collier-Macmillan, 1967.46 James, William. Pragmatism. Nova York: Meridian, 1955 (reimpressão), págs. 192-195.47 Citado em Hofstadter, Richard. Anti-Intellectualism in American Life. Nova York* Vin-tage, 1963, pág. 115.

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de habilidades manipulativas dificilmente são inovaçõesdo século 20: sãoheranças do protestantismo americano."48

Se o cristianismo for sobre verdade pública entregue por meio de umaPalavraexterna, então o ministério e o evangelismo exigem líderes instruídos que possam expor e aplicar essa verdade em benefício daqueles queestão sob seus cuidados. Em contrapartida, se o cristianismo for reduzidoà experiência pessoal, então sua liderança consistirá dos empresários maisbem-sucedidos e dos gestores de eventos extraordinários. Em seu recentelivro Head and Heart, o historiador católico Garry Wills observa:

A reunião do acampamento estabeleceu o padrão paracredenciamento de ministros evangélicos. Eles foram validados pela respostada multidão. Credenciamento organizacional, pureza de doutrina e educação pessoal eraminúteis aqui - na verdade, alguns ministros instruídos tiveram de fazer uma simulação de ignorância. O ministrofoi ordenado por baixo, pelo convertido que ele fez. (...)A religião faça-você-mesmo pedia por um ministério fa-brique-você-mesmo.49

Wills repete a conclusão de Hofstadter de que "o sistema de estrelasnão nasceu emHollywood, mas natrilha deserragem dos reavivalistas".50Onde o Transcendentalismo Americano e o Romantismo (o equivalentedo século 19 ao movimento da Nova Era) atraíram intelectuais de Boston,Charles Finney e seu legado reavivalista representam "um romantismoalternativo", uma versão popular da autossuficiência e da experiência interior, "retomando de onde o Transcendentalismo parou". Emerson escreveu: "O auge, a divindade do homem é para ser autossustentada, nãoprecisa de dom, de nenhuma força estranha" - de nenhum Deus externo,com uma Palavra externa e com sacramentos ou ministério formal.51 E oreavivamento, de sua própria maneira, estava popularizando esta religiãodistintamente americana na fronteira. William James estava proclamandoo valor soberano da utilidade pragmática em Harvard, enquanto Finneye seus herdeiros já estavam convertendo protestantes americanos, pelarazão, ao pragmatismo. Aeficiência era a regra parao sucesso na religiãocomo no negócio; desde então, os novos movimentos sãojulgados pelos

48 Hofstadter, Anti-Intellectualismin AmericanLife, pág. 55.49 Wills, Garry. Heade Heart: American Christianities. Nova York: Penguin, 2007,pág. 294.50Ibid., pág. 302.51 Emerson, Ralph Waldo,citado em ibid., pág. 273.

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evangélicos em termos de se"funcionam" ou não em relação à experiência subjetiva e à transformação moral.

O estudo de Witten apoia essa interpretação.52 Primeiro, o Deus transcendente de majestade e santidade sucumbiu a uma familiaridade casual.Apesar de apenas um emcada dez americanos dizer que alguma vez duvidou daexistência deDeus, a maioria dizque vêDeus exclusivamente comoum amigo e não como um Rei, e "apenas uma pequena minoria" relata játer experimentado medo de Deus. Em segundo lugar, como a religião é privatizada setornando uma espécie de utilidade terapêutica, o pecado e a redenção são traduzidos em categorias subjetivas em vez de objetivas. Cristo,então, é uma resposta para sentimentos ruins, não para algum estado real deinimizade ouculpa diante de Deus. Tudo o que costumava serconsideradauma obra soberana de Deus, por meio de seus meios nomeados de pregaçãoe do sacramento, é, agora, atribuído ao ego (ou ao evangelista) trabalhando com etapas mais eficientes e técnicas. Reconhecemos essa orientaçãopragmática na literatura como-fazer, que enche as prateleiras das livrariascristãs e estudos de pastores. Até Billy Graham escreveu um best-sellerintitulado How toBeBomAgain.

Witten assinala que "os livros de autoajuda cristãos (...) surgiram nasdécadas de 40 e 50 do século 20, com a publicação de Norman VincentPeale, The Power ofPositive Thinking [O poder do pensamento positivo] ePeace ofMind [Paz de espírito], de Joshua Loth Liebman". Arevolução terapêutica que estava varrendo os corredores das escolas de teologia liberalfoi associada ao pragmatismo de revivamento.

O foco nos estados interiores também encoraja o discursoorientado, sobretudo, para o presente - para a "vida" natural, a vida naTerra. Apreocupação com o negócio pragmático da vida tem o papel de diminuir a atenção para assuntos do"além". Juntamente com as forças culturais quetiraram a ênfase das noções de castigo divino pelo erro, aorientação do "agora" reduz a força de falar sobre o pecado e suas conseqüências. (...) Uma formulação extrema éo caso do "sheilaísmo", uma religião privada, inventadapor uma das pessoas citadas na entrevista Habits oftheHeart: osdogmas deféde Sheila consistem de mensagensde "sua própria pequena voz".

"Citações neste e nos cinco parágrafos seguintes (exceto as referências da Escritura) são deWitten, Ali Is Forgiven, págs. 5, 6, 15,20-23, 131.

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Não mais mártires - isto é, testemunhas - para a singular intervençãode Deus na História- na encarnação,na vida, na morte e na ressurreição deCristo - nós nos tornamos clientes satisfeitos que oferecem testemunhos dequanto um relacionamento pessoal com Jesus tem melhorado nossa vida.Neste contexto pragmático e terapêutico, faz pouco sentido falar de Jesuscomo "o caminho,a verdadee a vida" (Jo 14.6), fora do qual não há salvação. Preferimos louvar a Cristo como alguém que achamos pessoalmenteútil e significativo quando nos deparamos com os desafios da vida.

Igrejas emcrescimento e empresas em crescimento seguem os mesmosprocedimentos padrão de eficiência pragmática. Não só oevangelismo, masa vida cristã também pode seracomodada à secularização e à rotina moderna. Existem procedimentos padrões que funcionam tanto na produção deconversões e aperfeiçoamento moral como na produção do maior númerode coisinhas pela menor despesa. Ninguém tem de negar explicitamentequalquer artigo do credo cristão a fim de mudar o foco do conteúdo daverdade pública do cristianismo para o assunto pragmático e para as categorias terapêuticas da religião como-fazer. Cristo ainda pode ser chamadode Salvador, mas realmente salvamos a nós mesmos pelo conhecimento,seguindo ospassos do novo nascimento e da"vida vitoriosa".

Witten evidencia estas observações, acrescentando: "Levada ao extremo, esta conversa constitui um guia de faça-você-mesmo para satisfaçãopessoal, com algumas poucas menções a Deus, à fé e à oração jogadas dentro para se marcar como religioso". Como resultado desses processos, dizWitten, "os ensinamentos de umareligião já nãodãosentido à vidade seusadeptos no mundo; a vida deles no mundo determina tanto os significadoscomo a pertinência de seucredo".53

Como podemos ver então, o processo de secularização é muito maispenetrante que asdiferenças teológicas entre conservadores e liberais. Nãosomos humanistas seculares, mas nós mesmos estamos secularizando a fépela transformação de sua mensagem singular em algo menos impressionante para apsique americana. Isso pode significar, porém, que precisamente as versões numericamente mais bem-sucedidas da religião serão menosamarradasao drama bíblico do resgate centralizadoem Cristo.

Os estudos de Witten revelam que houve bem pouca diferença entre ossermões da Igreja Presbiteriana Tradicional e da Igreja Batista do Sul, asquais ela tomou como amostra. "As raízes calvinistas da prática religiosanos EUAColonial",ela escreve,foramgradualmentedesgastadaspor "ideologias populares de voluntarismo, democratismo e pragmatismo", fazendo

53 Citações neste e nos 20 parágrafos seguintes (exceto as referências da Escritura) são deibid., págs. 24, 30, 33-35, 40, 41, 44-47, 50, 53, 63, 76, 80, 81, 84, 85, 92, 95, 101, 104-7,109-115, 117, 119, 120,125, 127.

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que a visão deque osseres humanos não podem "contribuir para a própriasalvação parecesse menos plausível".

Enquanto os pastores e os teólogos confessionais reformados e presbiterianos, em meados de 1800, desafiaram aênfase noego em vez deemDeus, bem como a vontade humana sobre a iniciativa graciosa de Deus,o reavivalismo finalmente ganhou campo. Como resultado, "as principais categorias de discurso evangélico sobre Deus tendem a enfatizara experiência pessoal de alguém de uma divindade imanente". Wittenacrescenta: "Quando Deus é visto em termos transcendentes em tudo,suas qualidades temíveis são minimizadas ou banidas do discurso e substituídas pela figura de um superadministrador de um pensamento claro ebem organizado, cuja função principal é planejar, de forma eficiente, osassuntos do universo".

Este pensamento, sem dúvida, contribui para o fenômeno que Smithcaracterizou como deísmo moralista terapêutico. Deus é basicamente oideal Secretário de Segurança Interna - Interna significando minha própria felicidade pessoal, ouo bem-estar nacional, independente deserdefinida pela política de esquerda oude direita. Claro que, quando osassuntosdo universo são centrados em mim e na minha felicidade, este deísmogenérico torna-se terapêutico, com especial foco em "Deus como papai eDeus como sofredor".

Em um paradigma terapêutico, não só o membro da igreja, mas o próprio Deus é colocado no sofá enquanto nós interpretamos, com empatia,os sentimentos dele. Deus nunca está com raiva oué crítico em relação àspessoas; naverdade, eleé mais angustiado que nós, visto que sabe o quantonossas ações podem nos prejudicar. Ele está simplesmente esperando quenós alcancemos nosso bom-senso, como opai da parábola do filho pródigo.Podemos até nos sentir inclinados a sentir pena desta divindade.

Estas amostras de sermões tratam Deus exclusivamente como o amanteextravagante. Na verdade, o amor supera a lei; Deus põede lado qualquerquestão de mérito, dever ou realização, e simplesmente abraça o filho pródigo. Deus nunca nos surpreende realmente, porque seu comportamento ésempre previsível: nunca faria nada para nosofender. Porconseguinte, nãohánenhuma sugestão de que precisamos deum mediador dealgum modo,de acordo com esses sermões. O amor de Deus não precisa sercorrelacionado com a sua santidade, retidão ejustiça. Está tudo bem - sem qualquermenção ao autossacrificio de Cristo como o único caminho da reconciliação. Uma vez que, em geral, o amor de Deus, aparentemente, supera suajustiça e santidade, as"boas-novas" oferecidas aqui eliminam qualquer necessidade dahistória real registrada nosEvangelhos. Seo amorde Deus tãofacilmente ignora sua justiça, santidade e retidão, então a morte de Cristona cruz parece um desperdício cruel.

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Witten escreve: "A noção relativamente fraca das capacidades de umDeus temívelcom respeitoao julgamentoé reforçadapor uma quase totalausência de construção discursiva de ansiedade em torno de um estadofuturo". São "sentimentos negativos", não um perigo objetivamente negativo, que esses sermões enfatizam como resolvidos pelo evangelho. "Otranscendente, majestoso e impressionante Deus de Lutero e Calvino -cuja imagem instruiu as primeiras visões protestantes do relacionamentoentre o ser humano e o divino - passou por um abrandamento de comportamento em toda a experiência americana do protestantismo, com apenaspequenas interrupções."

Quando adotamos uma abordagem centrada no humano que assimilaDeus para nossa própria experiência e felicidade, o mundo não é mais criação de Deus; também ele, como Deus, existe para nosso próprio bem-estarpessoal. Tudo o que existe está lápara nosso consumo, para nossafelicidade. Assim, por exemplo, drogas e promiscuidade sexual não estão erradasporque ofendem a Deus, de acordo com a maioria desses sermões, masporque não se podem comparar com a alegria e a felicidade de viver dojeitode Deus. Elas não são erradas e insatisfatórias; elas acabam. Toda aênfase está nafesta e nafelicidade, como na afirmação de um sermão: "Ebom ser um cristão". Quando você está tentando vender um produto comotransformação terapêutica, nãopode haver nenhuma ambigüidade, nenhumsentimento de ansiedade, tensão ou luta.

Nesses sermões, outra ênfase recorrente é que os seres humanos sãovítimas e estar perdido já não mais significa maldição, mas carência deorientação na vida. Nos sermões da Igreja Batista do Sul, o mundo é o chiqueiro onde o filho pródigo desperdiçou suaherança, com muitos sermõesentrando emgrandes detalhes deJesus em"coquetéis, observando a vilezade Sodomaem suas salas de estar, enquantoseus habitantes tentam fugir darealidade com cocaína". Enquanto isso, a igreja é a família.

Os sermões da Igreja Batista do Sul focaram muito mais os pecados dofilho pródigo, centrando em sua rebeldia contra o lar e em seus valores,muitasvezes entrandoem grandes detalhes, a fim de tornar o filho desobe-diente tão relevante para os adolescentes contemporâneos quanto possível.O resumo mais comum de sua culpa, nesses sermões, foi o de que ele rejeitou sua própria dignidade e autorrespeito. "Para os pregadores presbiterianos, em contrapartida, o irmãomais velho, o responsável, o religiosamenteobediente, contudo sem alegria, é aquele mais provável de servir como oemblema do pecado."

Quandoos pastoresfornecem exemplos nestes sermõesque falam sobreo pecado, diz Witten, eles os despersonalizam, generalizam e, normalmente, os desviam para os que são de fora. Sem desculpar o pecado deles, dizum pastor batista do Sul: "Nós devemos ir até os pobres, os negros, os

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hispânicos, os bebedores de cerveja e os divorciados". Odesvio do pecadopara osestranhos dificilmente poderia ser mais óbvio. Aprincipal estratégiapresbiteriana, no entanto, foi a de resistir aoferecer avaliações sobre osdoisirmãos, bem como algum tipo de empatia por eles. Nenhum dos sermõesfala dopecado emtermos teológicos, "exemplificado naomissão dadoutrina fundamental do pecadooriginal".

Finalmente, Witten começa a estudar o que parece ser a principal ênfase nesses sermões: "A autotransformação". Antigamente, a pregação davalugar importante para a transformação, diz ela, que era "somente pela graça de Deus": a morte do velho eu e a vida do novo eu em Cristo. "Estevocabulário agostiniano prevaleceu no discurso calvinista durante os primeiros anos do protestantismo americano", mas rapidamente sucumbiu à"modificação que continua até os dias atuais". Nos pontos em que as noçõesanteriores identificavam oamor-próprio como a raiz do pecado original, osreavivalistas apelaram para ele como a motivação para a conversão. Comconfiança crescente na capacidade humana em geral e "ênfase nas doutrinas arminianas do livre-arbítrio", o pecado se transformou "em noções depecado, como erros de comportamento passíveis de correção por educaçãomoral adequada". Tal como todos os comportamentos, opecado poderia seradministrado deacordo com princípios previsíveis.

Onde os pontos de vista antigos consideravam a tentativa de construirautonomamente nossa própria identidade como parte da futilidade do ser,nas palavras de Agostinho, "ao redor de nós mesmos", Witten constatouque muitos dos sermões que ela avaliou assumiram o "ego autocriado" dacultura secular. Deus ajuda neste esforço, mas osentido do ego como criado para os propósitos de Deus, ego que caiu em pecado, mas é redimidoe remodelado por Deus, é, pelo menos, silenciado pela suposição original(autônoma e terapêutica). Cada vez mais, osamericanos passaram a ver asigrejas - com seus nomeados meios degraça como subordinados às "aulasde Bíblia, às reuniões de oração, aos grupos beneficentes - como organizações para-eclesiásticas". Portanto, a fé tornou-se cada vez mais privatizada,com oportunidades para expressar ossentimentos das pessoas, a linguagemda fé "freqüentemente atada ao sentimentalismo".

Os liberais e os reavivalistas enfatizam a transcendência de Deus e tendem a ver a Palavra dele como algo que brota de dentro da pessoa, e nãocomo algo que vem de fora para apessoa. "A chave para a salvação, portanto, encontra-se dentro de si; o custo para o indivíduo éouvir e serreceptivoa essa voz interior. Também, desde que o pecado foi amplamente considerado como erroou ignorância (emconformidade comas crenças liberais nabondade essencial do ser humano), prevaleceu a visão de que a mudançade comportamento pode acontecer por meio da educação sobre asquestõeséticas e morais" (grifos do autor).

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Isso abriu a porta para um entendimento psicologizado da fé em Deus"como uma espécie de terapia que ajuda os homens a lidarem com as demandas do mundo real". Os conservadores e os liberais podem discutir sobre questões específicas relacionadas à integração dateologia com a psicologia, mas ambos assumem interpretações psicologizadas de seu credo. Aconversão é basicamente autorrealização.

A narrativa central dos sermões da Igreja Batistado Sul era "a transformação por meio da conversão", mas ambas expressas em termos terapêuticos. A conversão depende de nós, mas é relativamente fácil de conseguir.Ela requer apenas "autoconsciência emocional, abertura e receptividade",coisas que, evidentemente, todas as pessoas são capazes de realizar. Aconversão traz "ligação com Deus", relacionamentos significativos e triunfosobre os problemas diários da pessoa.

A ênfase na transformação repousa sobre importantes mudanças teológicas: a primeira é a ênfase no livre-arbítrio. Um tema recorrente é o deque nada é mais essencial para o ego que o livre-arbítrio. Como disse umpastor batista do Sul: "Emseugrande amor, Deus nos libertou paranostornarmos e sermos, para tomarmos conta de nosso próprio destino e sermosresponsáveis porele". Asegunda ênfase dessa mudança é "a inata bondadehumana". Um pastor presbiteriano colocou desta maneira: "Quando Jesusdiz que [o filho pródigo] caiu em si, ele nos faz o elogio mais alto, poissugere que há algo dentro do ser humano que, inatamente, querbondade eamor, que querestarem casae em harmonia coma vontade de Deus". Umsermão batista do Sul inclui a seguinte citação:

Quandovocê consegueo que quer na sua luta pela riquezaE o mundo faz de você rei por um dia,Então vá até o espelho e olhe para si mesmoE veja o que esse cara tem a dizer.Pois não é o julgamento de seu pai, mãe ou esposaQue deve contar;A pessoa cujo veredicto mais conta em sua vidaÉ aquela que o está olhando doespelho.

Observe que "a pessoa cujo veredicto mais conta na sua vida" é a própria pessoa e não Deus.

Outro elemento nesta ênfase na transformação é a "psicologia da abertura, da confiança, da autorrevelação e da autenticidade". O foco é quase exclusivamente antropocêntrico em vez de teocêntrico, e a visão dosseres humanos é basicamente pelagiana ou pelo menos semipelagiana."Até agora, o discurso desses sermões reconheceu uma natureza fundamentalmente humana no centro de cada pessoa: inatamente boa, aberta à

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autocompreensão e necessitada de libertar o artifício que esconde sua verdadeira identidade." Emboraesta seja identificada como a doutrina cristãde conversão, o veredicto de Witten é difícil de contestar: não há nadaaqui que não possa serencontrado em alternativas seculares. Amensagempassada ao longo desses sermões é: busque a Deus; torne-se vulnerável.Mas não há nada aqui que daria uma razão quanto ao motivo pelo qual"receber Deus no coração" seja "o único recurso possível para a realização da individualidade verdadeira".

Para este processo transformador deconversão, sempre háprocedimentos eficazes que se tornam rotineiros epadronizados. Witten mostra que, especialmente nos sermões daIgreja Batista doSul, o próprio discurso "perdea forçaem um apêndice técnico, emqueos pregadores inserem a fala sobreos procedimentos dese obter salvação". Um pastor os formaliza a partir daparábola: reconhecimento, realização, responsabilidade e restauração. Estaúltima é basicamente uma conquista da vontade e da ação humanas. Naverdade, quando chega a hora em que eles enumeram os "procedimentoseficazes", que necessitam de "esforço humano em várias frentes", a conversão, finalmente, parece "não ser tão fácil como anunciada". Entre asobservações típicas de conclusão, encontra-se a seguinte: "Abra-se para asalvação que Deus quer trabalhar em sua vida".

Então, em vez de apresentar às pessoas a um Deus majestoso, que, noentanto, condescendeu em misericórdia para salvarquem não pode salvarasi mesmo, esses sermões - mesmo tendo a parábola do filho pródigo comoseu texto - proclamam uma mensagemque pode ser resumida como deísmomoralista terapêutico. Como um produto, a experiência de Deus pode servendida e comprada com a confiança de que o cliente ainda é rei. Declarações que teriam chocadoas geraçõesanteriores de protestantes tradicionaissãorecebidas comoumacoisanatural, mesmo entreos evangélicos de hoje,tais como na defesa de GeorgeBarna de "um princípio fundamental da comunicaçãocristã: o público,não a mensagem, é soberano".54

Nossa heresia natural

Identifiquei o pelagianismo como a configuração padrão do coração humano: a religião da autossalvação. Grande parte do cristianismo nos EUA,como em outros lugares, não chega a ser totalmente pelagiano. Se perguntarem diretamente se podemos salvar a nós mesmos por esforço moral, fora dagraça, suspeito que a maioria dos evangélicos responderia negativamente.No entanto, a graça é vista pelos evangélicos principalmente como era pela

54 Barna, Marketing theChurch, pág. 145.

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igreja medieval: como assistência divina para o processo de transformaçãomoral, não como um processo unilateral de resgate divino.

Se formos apenas retrógrados, só precisamos de orientação; doentes,precisamos de remédios; fracos, precisamos de força. A graça radical, noentanto, responde à pecaminosidade radical - não simplesmente a errosmorais, falta de zelo ou letargia espiritual, mas à condição que a Bíblia define como nada menos que condenados, "filhos da ira", "mortos nos vossosdelitos e pecados" (Ef 2.1, 3).

Na maioria dos casos, eu sugiro, é o semipelagianismo que domina ocristianismo atual, tal como aconteceu na igreja medieval. Enquanto o agos-tinianismo afirma que Deus faz toda a obra de salvação e o pelagianismocoroa nossas conquistas morais com a graça da aceitação, o semipelagianismo diz que a salvação é um processo que depende da cooperação entreDeus e os seres humanos. O termo técnico para esta posição é sinergismo(trabalhando juntos). Donald Bloesch lamenta: "Deve-se reconhecer (...)que, em grande parte do protestantismo popular, o sinergismo (salvação pormeio da graça e do livre-arbítrio) é ainda mais evidente que no catolicismo,e a razão e a experiência humanas figuram mais proeminentes que a Escritura em determinar as normas para a fé".55

Onde aterrissamos nestes assuntos talvez seja o fator mais importante decomo encaramos nossa própria fé e prática, e as comunicamos ao mundo.Se não somente o não regenerado, mas também o regenerado está sempredependente, a todo o momento, da livre graça de Deus revelada no evangelho, então nada pode levantar aqueles que estão espiritualmente mortosou continuamente dar vida ao rebanho de Cristo, a não ser o Espírito trabalhando por intermédio do evangelho. Quando isso acontece (e não apenasuma vez, mas cada vez que encontramos o evangelho de novo), o Espíritonos transforma progressivamente à imagem de Cristo. Comece com Cristo(isto é, com o evangelho) e você ganha a santificação em troca; comece comCristo e passe para outra coisa e você perde os dois.

Isso significa que não importa quais métodos, truques ou estímulos apessoa possa empregar, ou quanta energia seja investida no sentido de tornar a mensagem relevante, nosso testemunho cairá em ouvidos surdos seDeus não agir graciosamente. Em contrapartida, se adotarmos as suposiçõespelagianas ou semipelagianas, vamos carregar o fardo de tentar produzirconversões confiando em nossa própria inteligência e poder de comunicação em vez de confiar na Palavra de Deus e no Espírito.

Se a reforma e o arrependimento do nosso cativeiro da religião tiveremmesmo de ocorrer, o pecado tem de ser redescoberto. O pecado original,

55 Bloesch, Donald. God,Authority, andSalvation, vol. 1 ofEssentials ofEvangélica! Theology. São Francisco: Harper & Row, 1978, pág. 10.

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como G. K. Chesterton observou, "é a única parte da teologia cristã quepode realmente ser provada". Posteriormente, ele disse: "Todo o argumentoreal sobre religião gira em torno da questão de saber se um homem quenasceu de cabeça para baixo pode dizer quando vira. O paradoxo principaldo cristianismo é que a condição normal do homem não é sua sanidade oucondição sensível;que o normal,em si, é uma anomalia".56 Contudo, suprimimos esta verdade com grande sofisticação, colocando um engenho confortável em nossas vidas, apesar de nosso incômodo sentimento de culpa.Tornar o evangelho relevante pode facilmente assumir a forma de adequá-lo à condição anormal que chegamos a considerar como normal.

Jesus lamentou que os líderes religiosos de seu tempo fossem comocrianças brincando de faz de conta de funeral ou de festa, mas eles nãoconseguiam nem chorar por seus pecados quando João Batista veio, nemdançar em comemoração à chegada do Filho do Homem (Mt 11.16-19).Do mesmo modo, hoje a pregação da lei, em todo seu julgamento tenaz,e a pregação do evangelho, em toda sua doçura surpreendente, fundem-seem uma mensagem confusa de exortação suave para uma vida mais satisfatória. Por conseguinte, não sabemos como lamentar nem como fazeruma festa. As más notícias não se contrapõem nitidamente às boas notícias;ficamos contentes com as notícias toleráveis que eventualmente falham emtrazer convicção ou conforto genuíno, mas que nos mantêm na esteira daansiedade,desejandoo próximoreavivamento, técnica ou movimentoparaelevar nosso espírito e nos arremessar para a glória celestial.

Sem o reconhecimento sério do pecado original, acrescenta Chesterton,podemos facilmente nos tornar peões passivos no jogo dos ditadores e dosdemocratas. Foi a doutrina da perfectibilidade humana que trouxe os tiranos para o palco do mundo, com os aplausos de adoração das massas, maso ensino bíblico nos desperta de nosso sono moralista, identificando Deuscomo o único objeto de confiança de nossa fé.57

Obviamente, é uma generalização, no entanto Chesterton está corretoquando diz que o "anel externo" do cristianismo é o desespero - a consciência do sentimento trágico da vida por causa do pecado original, enquanto seu "anel interior" é a "a vida dançando como crianças, e bebendovinho como os homens; pois o cristianismo é o único quadro para liberdadepaga. (...) Mas, na filosofia moderna, o caso é o oposto; seu anel externo éobviamente artístico e emancipado; seu desespero é interior". Porque seuartigo principal é que a vida não tem sentido ou finalidade transcendente,"não se pode esperar encontrar qualquer romance; seus romances não terão

56 Chesterton, G. K. Orthodoxy: The Romance ofFaith. Nova York: Doubleday, 1990, págs.15,158.

51 Ibid., pág. 157.

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enredos. (...) A pessoa não pode encontrar nenhum significadoem uma selva de ceticismo; mas o homem que caminha por uma floresta de doutrinae propósito vai encontrar cada vez mais significado. Aqui, tudo tem umahistória ligada a seu fim, como as ferramentas ou fotos na casa do meu pai,porque é a casa de meu pai. Eu termino onde comecei - na extremidadedireita. Entrei, ao menos, pelo portão de toda boa filosofia. Cheguei à minhasegunda infância".58 O faz de conta do funeral é apenas o aquecimento parao da festa.

7W«/.,págs. 157-158.

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Palavras suaves

e cristianismo sem Cristo

Nós, americanos, não somos conhecidos no mundo como pessoas que seenvergonham. Pelo contrário, somos umpovo muito autoconfiante. A últimacoisaquequeremos ouvirdealguém é quenãopodemos fazernadaparanos salvar do problema mais grave que já tivemos ou que vamos ter - queestamos inteiramente à mercê de Deus. Sem um milagre, o sucesso religioso neste ambientesempre vai para aquelesque podem efetivamente apelarpara este espírito "de isso pode ser feito" e empurrar o mais longe possívelqualquer coisa que possa tirar nosso arrogante ego do equilíbrio. Quandoprocuramos respostas definitivas, voltamo-nos paradentro de nósmesmos,confiando em nossa própria experiência, em vez de olharmos para fora denós, para a externa Palavra de Deus.

Nos dias da infidelidade de Judá, Deus censurou os falsos profetas pordesejarem popularidade. "Curam superficialmente a ferida do meu povo,dizendo: Paz, paz; quando não há paz. Serão envergonhados, porque cometem abominação sem sentir por isso vergonha; nem sabem que coisa éenvergonhar-se" (Jr 6.14-15). Da mesma forma, Pauloteve de defenderseuministério contra aqueles que chamou de superapóstolos, os quais atraíamos discípulos para si por meio de suas habilidades melhores de comunicação e uma mensagem mais agradável para os gregos.

Se, na verdade, vindo alguém, prega outro Jesus que nãotemos pregado, ou se aceitais espírito diferente que nãotendes recebido, ou evangelho diferente que não tendesabraçado, a esse, de boa mente, o tolerais. Porque suponhoem nada ter sido inferior a esses tais apóstolos. E, emboraseja falto no falar, não o sou no conhecimento; mas, em

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tudo e por todos os modos, vos temos feito conhecer isto(2Co 11.4-6).

No encerramento de sua Carta aos Romanos, Paulo apela aos santos:"Rogo-vos,irmãos, que noteis bemaqueles queprovocam divisõese escândalos, emdesacordo com a doutrina que aprendestes; afastai-vos deles, porqueessestaisnãoservem a Cristo, nosso Senhor, e sima seupróprio ventre;e, com suaves palavras e lisonjas, enganam o coração dos incautos" (Rm16.17-18). Pauloadvertiu a Timóteo queas pessoas, por amora si mesmas,vão atrás de mestres que lhesdigam exatamente o que querem ouvir (2Tm3.2-4; 4.3-5). Muito do que chamamos de relevância, Paulo menciona nessapassagem como ateísmo.

"Suaves palavras e lisonjas" fazem parte dadieta básica da religião americana bem-sucedida atualmente. E é quase sempre anunciada como a missão mais eficaz e relevante.

"Fazerjogo rápido e soltocom a Bíblia exigiauma audiência liberal nosdias deNorman Vincent Peale", observa o teólogo deYale, George Lindbeck,"mas, agora, como o caso de Robert Schuller indica, os conservadores professos o engolem".1 Projetado para um lugar degrande destaque pormeio deseu livro best-seller, Power ofPositive Thinking, Peale foi repreendido porprotestantes conservadores por deixar de fora os aspectos mais importantesda proclamação cristã emfavor deuma mensagem otimista de autoajuda.

Robert Schuller, pastor fundador da Catedral de Cristal e o discípulomais proeminente Peale, ajudou a fazer deste evangelho, essencialmenteamericano, o mais bem-sucedido nos círculos evangélicos. Estimulados porseu ministério na televisão, os best-sellers de Schuller incluem Self-Este-em: The New Reformation, Self-Love, Believe in the God Who Believes inYou e Be-Happy Altitudes. Não apenas os evangélicos têm se equiparadoaos seusrivais liberais emacomodar a religião à cultura secular, masagoraestão claramente na liderança. Na autoajuda secular, as vendas dos guruschegam perto dos concorrentes evangélicos.

Dando um passo além do "pensamento positivo" genérico, uma versãodo pentecostalismo conhecida como o movimento Palavra de Fé estáespalhando o evangelho daprosperidade paraos confins da terra. Principalmente por meiode seu império de radiodifusão e de impressão, essa mensagemestá se espalhando rapidamenteem dois terços do mundo, especialmente naÁfrica. Em uma tese sobre missãoe globalização, Wanyeki Mahiainiobserva: "Se você perguntaraos nossostele-evangelistas por que concordamcom

1Lindbeck, George. "TheChurch's Mission", em Burnham, Frederic B. (org.). Postmo-dern Theology: Christian Faith ina Pluralist World. São Francisco: Harper-San Francisco,1989, pág. 45.

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T. D. Jakes, porexemplo, oucom Benny Hinn, e porque discordam deJohnStottou de outros professores verossímeis da Bíblia, vocêvai descobrir queas conclusões a que chegaram não são realmente deles. Estão meramenterepetindo as tendências e os preconceitos que são comuns no Ocidente".2 Acomemoração da expansão muito anunciada do cristianismo emdois terçosdomundo (mais notavelmente nos últimos anos, no The Next Christendom,de Philip Jenkins) deveria ser, pelo menos, atenuada pelo fato de que oevangelho da prosperidade é a versão mais explosiva deste fenômeno.

Numerosos teólogos têm apontado as semelhanças impressionantes entre a mensagem da prosperidade e o antigo gnosticismo.3 Como a antigaheresia, a mensagem da Palavra deFéassume umdualismo acentuado entreespírito e matéria, prometendo domínio sobre as circunstâncias externasda pessoa por intermédio do aprendizado dos princípios secretos do reinoinvisível. Embora a própria criação seja, em si mesma, corrompida (apresentada, freqüentemente, como "o natural"), estes professores afirmam queo eu interior é divino. "Você não tem um Deus vivendo em você", instruiKenneth Copeland. "Você é um; é parte integrante de Deus."4

Talvez não haja maior exemplo do cativeiro da igreja americana queaquele que pode ser identificado nonotável sucesso deJoel Osteen. A medidaque reflete qualquer teologia que seja, sua mensagem representa umaconvergência deautoajuda pelagiana e autodeificação gnóstica. Seummoralismo brando do liberalismo protestante se tornou parte da dieta evangélica por intermédio de Schuller, Osteen alcançou o sucesso questionável aofazer da filosofia "imagine e afirme" de Kenneth Copeland e Benny Hinntendência atual.

Osteen representa uma variedade do deísmo moralista terapêutico que,em versões menos extremas, parece caracterizar grande parte da religiãopopular de hoje. Basicamente, Deus está lápara você e sua felicidade. Eletem algumas regras e princípios para você conseguir o que você quer davidae, se vocêsegui-las, podeter o quequiser. Bastadeclarar issoe a prosperidade virá a você.5 Deus como comprador pessoal.

2Mahiaini, Wanyeki. "A View from África", em Tiplady, Richard (org.). One World orMany? The Impact of Globalization on Mission. Pasadena: William Carey Library, 2003,pág.161.1McConnell, D. R. A Different Gospel: Biblical and Historical Insights into the Word ofFaith Movement. Peabody, MA: Hendrickson, 1995 (edição atualizada). Um pentecostalque fez graduação naOral Roberts University, McConnell oferece ampla citação e avaliaçãodesta alegação.4Copeland, Kenneth. "The Force of Love", Praise the Lord broadcast (TBN), gravado em5 de fevereiro de 1986; áudio tape # 02-0028, 1987.5Esta posição está extensivamente documentada em Horton (org.), The Agony of'Deceit.Chicago: Moody, 1990.

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Embora os defensores explícitos do evangelho da prosperidade possamser em menor número que sua influência sugere, seus grandes nomes e autores de best-sellers (T. D. Jakes, Benny Hinn, Joel Osteen e Joyce Meyer)fornecem uma cosmovisão paga com um sabor tipicamente americano. Ébasicamente o que Lutero chamou de a "teologia da glória": como possoeu, aqui e agora, subir a escada e alcançar a glória que Deus nosprometeuapós uma vida de sofrimento? O contraste é a teologia da cruz: a históriada descida misericordiosa de Deus até nós com grande sacrifício pessoal- uma mensagem que o apóstolo Paulo reconheceu ser ofensiva e insensatapara os gregos.

Aatração dos americanos poresta versão dahistória daglória é evidente no sucesso surpreendente do best-seller de Joel Osteen, Your Best LifeNow: Seven Steps to Living at Your FullPotential [O melhor de sua vidaagora: sete passos para viver o seu potencial completo] e, na seqüência,Become a Better You [Torne-se melhor]. Além de sua personalidade encantadora e simplicidade, a atração fenomenal de Osteen está, sem dúvida,relacionada a seu modelo simples e suave do evangelho americano: umamistura de elementos cristãos e culturais que ele escolheu não por meiode algum treinamento formal, mas como filho e produtor de televisão deum evangelista batista daprosperidade que eraum dos favoritos noTrinityBroadcasting Network6* (TBN).

O pastor da Igreja de Lakewood, em Houston, que agora é o donodo Centro Compaq, não dá a impressão imediata de um evangelista brilhante com jatos e iates, mas a de um vizinho charmoso que tem semprealgo bom para dizer. Não há manchetes televisionadas, lenços de oraçãoabençoados ou outras excentricidades do tele-evangelismo de ontem. Noentanto, os princípios básicos da Palavra da Fé dominam o seu ensino,embora sejam comunicados em termos e ambiência que dificilmente podem ser diferenciados da maioria das megaigrejas e outros ministériosorientados ao-que-busca.

Lei leve: salvação da infelicidade por fazer seu melhorNão há condenação na mensagem de Osteen porque ela falha em cumprira lei da justiça de Deus. Em contrapartida, não há nenhuma justificação.Em vez dessas mensagens, há um moralismo otimista que fica em algumlugar do meio: faça seu melhor, siga as instruções que eu lhe dou e Deusfarásua vida bem-sucedida. "Nãofique sentado passivamente", ele adverte,

6' Considera-se a maior rede religiosa do mundo e o canal relacionado à fé mais assistidonos EUA.Ofereceprogramação livrede comercial 24 horas,voltadapara um públicovariado, como protestantes, católicos e judeus [N. da R.].

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mas, por meio de um apelo suave, ele sugere que a única razão pela qualdevemos seguir seu conselho é porque é útil para obtermos o que queremos.Deusé um amigo ou parceiro que existe principalmente para garantir nossafelicidade. "Você faz sua parte, e Deus vai fazer a parte dele". "Claro quetemos nossas falhas", ele diz, porém "a boa notícia é que Deus nos amamesmo assim". Em vez de apenas aceitar o justo veredicto de Deus sobrenossaprópria justiça e correr para Cristopara ajustificação, Osteen aconselha os leitores simplesmente a rejeitarema culpa e a condenação. No entanto, é difícil fazer isso com sucesso quando o favor e a bênção de Deus sobreminha vida dependem inteiramente de quão bem eu consiga cumprir seusmandamentos. "Se você simplesmenteobedeceraos seus mandamentos, elevai mudar as coisas a seu favor."7 Isso é tudo: simplesmente obedeça aosseus mandamentos.

Tudo depende de nós, mas é fácil. Osteen parece pensar que somos pessoas basicamente boas e que Deus tem um modo muito fácil para nós nossalvarmos - não de seu julgamento, mas de nossa falta de sucesso na vida- com suaajuda. "Deus está fazendo um registro de cada boa ação que vocêfaz", diz ele - como se esta fosse uma boa notícia. "Quando você passarpor tempos difíceis, por causa desuagenerosidade, Deus vai movercéuseterra para garantir que você estejaprotegido."8

Pode ser Lei Leve, mas não se engane: por trás de um evangelicalismosorridente, que evita qualquer conversa sobre a ira de Deus, existe umadeterminação de assemelhar: o evangelho à lei, um anúncio de vitória a umchamado para ser vitorioso, indicativos a imperativos, boas-novas a bonsconselhos. As más notícias podem não ser tão ruins como costumavam ser,contudo as boas-novas são apenas uma versão mais leve das más notícias:faça mais. Mas, desta vez, é fácil. E, se você fracassar, não se preocupe.Deus só quer que você faça seu melhor. Ele vai cuidar do restante.

Então, quem precisa de Cristo? Pelo menos, quem precisa de Cristocomo "o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo" (Jo 1.29)? Oespinho da lei pode ser retirado da mensagem, mas isso significa apenasque o evangelhose tornou menos exigentee mais encorajador da lei, cujasexortações se destinam apenas a nos fazer felizes, não a nos medir pelasantidade de Deus.

Como dizia Marx sobre a cultura orientada pelo mercado: "Tudo o queé sólido desmancha no ar".9 Deus também se torna uma mercadoria - um

produto ou terapia que podemos comprar e usar para nosso bem-estar

7Osteen, Joel. Your BestLifeNow: Seven Steps to Living at Your Full Potential. Nova York:Warner, 2004, págs. 41-42, 57, 66, 119.8Ibid., pág. 262.9Marx, Karl. "Bourgeois and Proletarians", em TheCommunist Manifesto, 1848.

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pessoal. Exemplificando a abordagem moralista e terapêutica paraa religião,a mensagem de Osteen também é um bom exemplo da incapacidade dosadeptos do crescimento rápido de chorarem diante do julgamento de Deusou de comemorarem com a notíciada libertação pela misericórdia salvadorade Deus. Emoutras palavras, toda agravidade estáperdida - tanto a gravidade de nosso problema quanto a damaravilhosa graça de Deus. Segundo estamensagem, não somos pecadores desamparados- ímpios - que necessitamde umavisãounilateral de resgate divino (osamericanos, masespecialmenteos Boomers, não recebem másnotícias tão bem). Pelocontrário, somospessoas de bem, que só precisam de um pouco de instrução e motivação.

Então, enquanto muitos defensores dão testemunho de sua versão maisamável e suavedo cristianismo quea repreensão legalista da suajuventude,a única diferença real é que as regrasou princípiosde Deus são mais fáceisnestes dias, e tudo se refere à felicidade aqui e agora, não ao resgate daira de Deus pela graça dele. Em seuambiente sócio-terapêutico, o pecadoestá nosatrapalhando a levar adiante nosso potencial, e nãoa dar a glória aDeus. É"pecado" não acreditar em nós mesmos, eosalário de tal pecado éestar perdendo o melhor de nossa vida agora. Mas ainda há um fluxo constantede exortação, exigências e encargos: sigaos meuspassos, e eu garantoque sua vida será abençoada.

Uma históriada revista Time, em 2006,observouque o sucessode Osteen atingiu até os círculos protestantes mais tradicionais, citando o exemplode uma igreja luterana que seguiu Your Best Life Nowdurante a Quaresma,o tempo todo,quando, comoobserva o escritor, "Jesusestavapassando pelapior fase de sua vida".10 Mesmo igrejas formalmente mergulhadas em umateologia da cruz sucumbiram à teologia da glória no ambiente da espiritualidade popular. Estamos nadando em um mar de moralismo narcisista: umaversão da salvação fácil de ouvir pela autoajuda.

Isso é o que podemos chamar do falso evangelho "Deus ama você dequalquerjeito". Não há necessidade de CristocomonossomediadorporqueDeus nunca é tão santo e nós não nunca somos tão moralmente perversospara necessitar de nada menos que a morte de Cristo em nosso lugar. Deus énosso amigo. Ele só quer que sejamos felizes, e a Bíblia nos dá o roteiro.

Não tenho nenhuma razão para duvidar da sinceridade da motivaçãopara alcançar os não cristãos com uma mensagem relevante. Minha preocupação, porém, é que a maneira como essa mensagem é dada realmentebanaliza a fé em seu melhor e a contradiz em seu pior. Não ouvimos nadaque pudesse ofender um não cristão, muito menos um crente em Cristo;nada sobre a santidade de Deus, sobre nossa condenação ou sobre Cristo

l0Biema, David Van; Chu, Jeff. "Does God WantYou to Be Rich?", Time, 10 de setembrode 2006.

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suportando nossa condenação em nosso lugar. Não há nada em sua mensagem sobre a Trindade ou a ressurreição dos mortos e a era por vir. Naverdade, há pouca menção de Cristo - um ponto em que os repórteres têmpressionado Osteen nas entrevistas. O tele-evangelista ignora estas preocupações, dizendo que pessoas diferentes têm distintos "dons", sendo suamissão ajudar as pessoas a viverem melhor. Osteen freqüentemente apontapara o fato de que seguidores de outras religiões abraçam sua mensagem(aparentemente, sem sentir qualquer necessidade de conversão) como umsinal de seu sucesso.

Há bem pouco na mensagemde Osteen que não tenhamos ouvido antes,repetidamente, a partir da cultura do otimismo americano, bem expressapor Jiminy Cricket, da Disney: "Se você fizer um pedido para uma estrela, todos seus sonhos irão se realizar". Conquanto a mensagem de Osteenesteja longe de ser única, ela é um dos exemplos mais claros de deísmomoralista terapêutico. É possível ter evangelismo sem o evangelho? Podehaver evangelismo cristão sem uma mensagem cristã?

Se Deus tem importância, de acordo com esta perspectiva, é para aspreocupações mais triviais, ou pelo menos para aquelas bastante secundárias em comparação com a crise real que o evangelho enfoca. Uma pessoapodefacilmente desprender-se deste tipode mensagem concluindo que nãosomos salvos por uma obra objetiva de Cristo por nós, mas por nossa subjetivarelação pessoal com Jesus, pormeio de uma série de obras querealizamos paragarantir suagraça e bênção. Deus estabeleceu todas estas leise,agora, cabe a nós segui-las para que possamos ser abençoados.

À medida que perdemos o senso da seriedade de Deus, o pecado perdeseu ponto de referência. Já não há carência da glória de Deus (Rm 3.23), opecado agora está carente da glória do ego. Tudo está sob controle muitobem sem Cristo. Deus ainda está mantendo um registro - mas apenas dascoisas boas que fazemos, e os riscos não são tão elevados: não é mais umaquestão de nosso lugarna vida futura, é apenas umaquestãode conseguiromelhor proveito da vida aqui e agora.

Osteen retrata a hipótese mais ampla entre os evangélicos de que somossalvospor tomarmosa decisãode ter um relacionamento pessoal com Deus.O evangelho dá a impressão de que vocêpode terum relacionamento pessoalcom Jesus. Contudo, dada a falta de qualquer consideração séria da condiçãohumana diante de um Deus santo, não está claro o que essa relação pessoalpode realizar. Cristo não aparece em nenhum lugar nos livros de Osteen(pelo menos até agora) como um mediador entre Deus e os seres humanos.Procura-se, em vão, encontrar um substituto pelos pecadores, o qual tenhacumprido a lei no lugar deles e carregado a culpa deles para que sua justiçapudesse lhes ser imputada. Não fica claro como ou por que um americanomédio hoje sequer deveria se preocuparem ter um relacionamento pessoal

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com um rabino judeu que viveu no Oriente Médio, há dois mil anos. Vivendo no Bible Belt,u* suponho, onde"Jesus"é um ponto de encontro parajogos de futebol e da inauguração de shopping centers, o significado de Jesuspode ser tomado como garantido. O resultado, porém, é um apego vago esentimental por alguémque é mais um amigo invisível que o Salvadordosímpios,encarnado, morto e ressuscitado, que subiu e é Rei.

Neste contexto, Jesus se torna o que você quiser que ele seja em suavida. Se o maior problema de alguém é a solidão, a boa notícia é que Jesusé um amigo confiável. Se o grande problema é a ansiedade, Jesus vai nosacalmar. Jesus é a cola que mantém nossos casamentos e famílias juntas;ele nos dá um propósito peloqual devemos nos esforçarpara alcançar, bemcomo sabedoria paraa vidadiária. Hámeias-verdades emtodas estasalegações, mas elas nuncacolocam os ouvintes diante seu verdadeiro problema:que estão nus e envergonhadosperante um Deus santo, e só podem ser vestidos de forma aceitável na presença dele por estarem vestidos, da cabeçaaos pés, com a justiça de Cristo.

Este evangelho de submissão, compromisso, decisão e vida vitoriosanão é uma boa notícia sobre o que Deus realizou, mas uma demanda parasalvarmos a nósmesmos coma ajuda deDeus. Alémdo fatode quea Escritura nunca faz referência ao evangelho comoter um relacionamento pessoal com Jesus nemdefine a fé como umadecisão depedir a eleparaentrarem nosso coração, esse conceito de salvação falha na compreensão de quetodos já têm uma relaçãopessoal com Deus: ou como um criminoso condenado de pé diantede umjuiz justo ou comoum co-herdeiro justificadocomCristo e filho adotivo do Pai.

"Como posso ser justo diante Deus?" deixou de ser uma questão dequando minha felicidade, em vez da santidade de Deus, é a questão principal. Joel Osteen é simplesmente o mais recente em uma longa linha deevangelistas de autoajuda que apelam para a obsessão inata do americanoem se tornar bem-sucedido pelo próprio esforço. A salvação não é, então,uma questão de resgate divino da sentença do julgamento que está por virao mundo, mas sim uma questão de autoaperfeiçoamento, a fim de ter seumelhor na vida agora.

Osteen no Larry King LiveEm sua entrevista com Larry King (CNN, 20 de junho de 2005), Osteen dissenão ter certeza do que acontece com as pessoas que rejeitam a Cristo. Larry

"*Atradução parao português seriacinturão bíblico. Estaé umaregião dos Estados Unidosonde a prática fervorosada religiãoprotestanteevangélicafaz parte da cultura local. O BibleBelt está localizado na região sudeste dos Estados Unidos [N. da R.].

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King prosseguiu perguntando sobre judeus, muçulmanos e outros não cristãos. "Eles estão errados, não estão?". Osteen respondeu: "Bem, não sei seacredito que eles estão errados. Eu creio no que a Bíblia ensina e, partindoda fé cristã, é nisso que acredito. Mas acho que só Deus julgaráo coraçãode uma pessoa. Passei muito tempo na índia com meu pai. Não sei tudosobre a religião dos indianos, mas sei que amam a Deus. E não sei. Eu vi asinceridade deles. Então, não sei. Eu sei para mim e o que a Bíblia ensina:eu quero ter um relacionamento com Jesus".

Larry King (e um ouvinte) deu-lhe mais algumas chances de responderàpergunta, mas ele sempre voltava para o coração: "Deus tem deolhar paraseu coração". Evidentemente, ojuízo final não será com base nopadrão desantidade e justiçade Deus, masna pureza de nossos corações.

Porcerto, háverdade nessa posição. Deus iráexpor todos os segredos denosso coração, no último dia. Mas no ponto em que Osteen parece pensarque ojulgamento que Deus faz de nosso coração (como sua manutenção deregistros) éuma boa notícia, a Escritura trata como opior relatório possível,pois "enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto; quem o conhecerá?" (Jr 17.9). Jesus acrescenta: "Docoração procedem maus desígnios, homicídios, adultérios, prostituição, furtos,falsos testemunhos, blasfêmias" (Mt 15.19). Meu coração tem concebidoe cometido pecados que minhas mãos nunca concretizaram. Longe de seruma praia relativamente intacta de santidade, o coração é a fortaleza daqual nossa revolta contra Deus e o próximo é lançada. Mesmo quando fiza coisa certa, tanto quanto as outras pessoas possam concordar, se a minhasinceridade fosse pesada, ela, na verdade, penderia contra minha justiça.Por isso, é um erro perigoso pensar que nosso julgamento diante do Deusconhecedor detoda justiça possa, dealguma forma, serfavorável a nós, pormeiodo examede nossocoraçãoou do registrode nossa vida. Fico pensandonagrande resposta de Santo Anselmo àqueles quepensavam quea mortede Cristo não foi uma substituiçãoviçaria: "Você ainda não entendeu quãogrande é seu pecado". Aperspectiva de Osteen pode funcionar com osamericanos imergidos emuma versão sentimentalizada daheresia pelagiana deautossalvação. Mas não é cristianismo.

Quando Larry King lhe perguntou se eleusa a palavra pecadores, Osteenrespondeu: "Não, eunão uso. Nunca nem pensei nisso, mas euprovavelmente não vou usar. A maioria das pessoas já sabe que o que estão fazendoé errado. Quando as levo à igreja, quero é dizer-lhes que podem mudar". Onotável é que ele nem sequer pensou nisso.

A primeira providência de Osteen ao banalizar o pecado é a mudançade seu foco de uma ofensa contra Deus, com conseqüências eternas, paraumaofensacontrasi mesmo, quenos prejudica a saúde, a riquezae a felicidade aqui e agora. Enquanto seus antecessores pregaram o inferno de fogo

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e enxofre para levar as pessoas a pararem de fumar, beber e participar deimoralidade sexual, oobjetivo de Osteen é levar as pessoas a seguirem seusprincípios práticos para que possam ter omelhor de sua vida agora. Não é océunoporvir, mas a felicidade do momento - e sódepende devocê torná-larealidade. Ao fazer certas coisas, você determina se o favor e a bênção deDeus chegarão para você.

A segunda providência nessa banalização do pecado foi reduzi-lo aações (comportamentos negativos) que podem ser facilmente superadaspor instruções, em vez de uma condição da qual somos impotentes paranos libertar. Se eu posso parar de cometer o pecado x, então é logicamentepossível que eu possa parar de cometer o pecado ;>, e assim por diante, atéqueeu,porfim, consiga evitar todos os pecados conhecidos. Se, no entanto,opecado é, antes de tudo, uma condição e, depois, ações, então não importa quantos pecados eu "conquiste", continuo sendo pecador. Não importaquantos avanços penseter conseguido: de acordo com Deus, "não hájusto,nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus" (Rm3.10-11; citando o SI 14.1-3; 53.1-3). "Todas asnossasjustiças" - esqueçaos nossos pecados! - são "como trapo da imundícia" (Is 64.6; grifo do autor). Portanto, agora já não podemos descansar com confiança em nossospróprios comportamentos, normas, ética judaico-cristã, virtudes, discipula-do, atos de amor e bondade, e espiritualidade piedosa. Não podemos continuar a dividir o mundo deforma distinta em decente e repugnante, devemostomar nosso lugar com as prostitutas e os publicanos em vez de com osfariseus a fim de entrarmos no reino de Deus.

Será que a mensagem de Osteen tem muito em comum com o que euacabei de dizer? Em tom, talvez. Em vez de nos considerar cristãos apenascomo desqualificados para o céu em nossos próprios méritos, como ospublicanos e as prostitutas, a mensagem dele assume que, lá no fundo, somostodos - incluindo os publicanos eas prostitutas - pessoas bastante boas, quesó poderiam ser um pouco melhores. Ironicamente, ele compartilha comseus antepassados medievais uma suposição de que o pecado não é umacondição abrangente a partir daqual não podemos nos livrar, mas, emlugardisto, são ações particulares que podemos vencer por meio de instruçõesboas. E ele também tem suas próprias listas. Ele pode incluir alguns dostabus mais velhos, mas os principais pecados são aqueles que envolvemdeixar de colocar em prática princípios de Deus parao sucesso.

Existem diferenças importantes, obviamente. Primeiro de tudo, parecefaltar qualquer dimensão vertical clara aos pecados. Ou seja, na visão deOsteen, não é evidente que o pecado seja uma ofensa contra Deus. Porisso, ele não fala de pecados, mas de erros ou de falhas em sertudo o quepodemos ser. Segundo a Bíblia, é a ofensa deles a Deus que faz que taisatitudese ações sejampecados, em primeiro lugar. Sem essa dimensão ver-

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tical (orientada para Deus), até mesmo atos pecaminosos perdem seu contexto moral. Em vez disso, eles são traduzidos em linguagem terapêutica dedisfunção - comportamentos insalubres que deixam de merecer o favor deDeus sobre nós em nossa busca diária de bons espaços de estacionamento. Mas as ações pecaminosas, nessa visão, não têm também a dimensãohorizontal usual: um crime contra nosso próximo. Até mesmo o evangelho social, que fez do pecado mais um delito contra nossos companheiroshumanos, em vez de, em primeiro lugar e principalmente, contra Deus, reconhece como um fracasso dar a alguém o amor e o serviço que lhe devo.Na mensagem cadavez mais difundida de pregadores comoOsteen, no entanto, os pecados se tornam ofensas queeu cometo contra mim mesmo, osquais me impedem de realizar minhas próprias expectativas. E narcisismoterapêutico: eu fracassei em viver à altura de meu potencial para garantir omelhor de Deus para minha vida ou emseguir as instruções que conduzemà vida boa. Será que, emnosso atual universo de discurso antropocêntrico,podemos, pelo menos, captar a confissão de Davi com orientação centradaem Deus: "Pequeicontra ti, contra ti somente, e fiz o que é mau peranteosteus olhos, de maneira que serás tido por justo no teu falar e puro no teujulgar" (SI 51.4)?

Em segundo lugar, Osteen nem sequer utiliza as palavras pecado oupecadores, como elepróprio observou anteriormente. No lugar delas, aparentemente, ele usa algo como erro. Não mais carente"da glória de Deus"(Rm 3.23), o pecado está aquém da minha vida melhor agora. "É difícillevaruma vida cristã?", perguntou Larry King. "Eu não acho que isso sejatãodifícil", respondeu Osteen. "Para mim, é divertido. Temos alegria e felicidade. (...) Eu não estou tentando seguir um conjunto de regras e outrascoisas. Estou apenas vivendo minha vida".

Novamente, encontramos o pêndulo oscilante: recuando do legalismodecididamente não divertido de sua juventude, Osteen vai para os braçosdo antinomianismo (sem lei). Não me admira que ele não fale de pecados(muito menos da condição pecaminosa que torna todos - até mesmo oscrentes - pecadores) já que, aparentemente, não há um conjunto de regrasdivinamente estabelecido que possa identificá-lo como uma ofensa. A normanão é justiça,masdiversão; não santidade diante de Deus, mas a felicidade diante de si mesmo.

Nãoé evidente que Cristo - pelomenos suaencarnação, vida obediente,morte expiatória, justificação e ressurreição que dá vida- seja necessário,de alguma forma, no esquema de Osteen. "Mas você tem regras,não tem?",Larry King pressionou, ao que Osteen respondeu: "Nós temos regras, sim.Mas a regra principal é honrar a Deus com sua vida. Viver uma vida deintegridade. Não ser egoísta. Você sabe: ajudar aos outros. Mas essa é realmente a essência da fé cristã". Observe como a vida cristã de Osteen,

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feliz, cheia de diversão e sem regras, de repente se torna a religião maisexigente possível. Ele está correto quando dizque Deus ordena uma vidade integridade e de ajuda aos outros, não sendo egoísta. Na verdade, Jesus criticou os fariseus por substituírem os mandamentos de Deus porsuas próprias leis mesquinhas, os quais, na verdade, serviam para o bompropósito em relação ao nosso próximo. Mas isso é precisamente o quea lei de Deus prescreve. Jesus resume "toda a lei": "Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teuentendimento e de toda a tua força. O segundo é: Amarás o teu próximocomo a ti mesmo" (Mc 12.30-31). Osteen, aparentemente, acha issomaisfácilque seguir "um conjunto de regras". Na verdade, como ojovem ricoaprendeu, não é. Eu posso deixar de, literalmente, matar meu próximo,mas se eu não sacrificar tudo para o seu bem, eu não o amei realmente.Osteen pensa que amar nosso próximo é mais fácil que seguir "um montede regras", mas Jesus nos mostrou que éo inverso. Uma pessoa pode parecer sexualmente pura para os amigos, mas Deus sabe se o adultério foicometido no coração dela.

Osteen disse que talvez a conversa dojulgamento de Deus "tenha sidopor um tempo", uma geração atrás. "Não está em mim, em meu coração,condenar osoutros. Estou lápara incentivá-los. Eu me vejo mais como umtreinador, como um motivador para ajudá-los a experimentar a vida queDeus tem para nós."

Aprimeira vista, isso soa humilde - e talvez seja quando comparado aalgumas das lamúrias moralistas ehipócritas do passado, que ameaçavam ojulgamento de Deus por beber um copo de vinho ou por irao cinema. Entretanto a resposta para a má pregação da lei é a boa pregaçãoda lei, não suaeliminação. Dizer "não está em mim, emmeu coração, condenar osoutros"é apontar para abondade própria em vez de apontar para ojulgamento quenos mantémresponsáveis como transgressores diantede Deus.

Apregação correta dalei - da santidade, daretidão, daglória e dajustiça de Deus - não criará uma autojustiça nossa versus a deles, mas vaiexpor as melhores obras, feitas pelos melhores motivos e pelos melhoresentre nós, como trapos de imundícia diante do julgamento perscrutadorde Deus. A má pregação da lei nivela alguns de nós; a omissão da leipor Osteen não nivela nenhum de nós; a pregação bíblica da lei nivelatodos nós.

E, de fato, arrogância dos embaixadores criarem suas próprias políticas, especialmente quando contradizem diretamente a palavra de quem osenviou. Osteen parece admitirqueJesusCristo é, de alguma forma, únicoe importante, mas ele infere ignorância de um ponto que Cristo deixouperfeitamente claro, ou seja, que ele é o único caminho para a salvaçãodo juízo vindouro.

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Teria sido a mensagem de Jesus - embora radicalmente diferente daslamúrias desconexas do fundamentalismo - somente "por um tempo" também? Porventura Jesus achou que as pessoas são basicamente boas quando se olha dentro do coração delas? Será que ele achou que sinceridade eesforço moral bastariam para nos vestir quando comparecermos perante oJuiz de toda a terra?

Se Jesus e os apóstolos claramente proclamaram a total depravação docoração humano e a redenção porCristo somente pela fé, então Osteen nãoestá sendo humilde quando se recusa a mostrar claramente esse anúnciocentral. Foi Jesus quem disse que aquele não crê nele "já está julgado"(Jo 3.18). Isso porque, para Jesus, o julgamento do qual ele veio para nossalvar, suportando-o por nós, tinha Deus e sua glória como ponto de referência, não eu mesmo e a minha felicidade temporal. A vala que havíamoscavado para nós era tão profunda que somente o Deus encarnado poderianos tirar dela, caindo nela e subindo de volta para fora, ele próprio comonosso Substituto Vitorioso. Para Osteen, as boas-novas é, no dia do julgamento, Deus olhando para nosso coração. Segundo as Escrituras, isso érealmente uma má notícia. As boas-novas é que, para todos os que estão emCristo, Deus vêo coração, a vida, a morte e a ressurreição de seuFilho e nosdeclara justos nele. Não é um dom barato, mas é um dom gratuito.

Torne-se melhorMais recentemente, Osteen escreveu Become a Better You: 7 Keys to Im-proving Your Life Every Day [Torne-se melhor: sete maneiras para melhorarsua vida]. Naidentificação daBiblioteca doCongresso dos Estados Unidos,este livro é classificado como: "1. Autorrealização (Psicologia) - Aspectosreligiosos - Cristianismo". Até a Biblioteca do Congresso parece saber quetipo de mensagem ele representa.

"Você pode ser melhor", Osteen encoraja. "A pergunta é: 'Como? Oque devo fazer para me tornar melhor?'. Em meu primeiro livro Your BestLife Now, apresentei sete passos para você viver seu pleno potencial".Mas, comBecome a Better You, ele quer ir um pouco maisalém. "Esperoajudá-lo a olharpara dentro de si mesmo e descobrir assementes da grandeza do valor inestimável que Deus colocou dentro de você. Neste livro,vou lhe revelar sete chavesque você pode usar para desbloquear as sementes da grandeza, permitindo que explodam em uma vida abundantementeabençoada. (...)Lembre-se, Deus colocou emvocê tudo o que precisa paraviveruma vida vitoriosa. Agora, depende de você pôr isto para fora. (...) Oquesignifica tornar-se melhor? Primeiro, você entende que Deusquer quevocê se torne tudo o que ele o criou para ser. Segundo, é imperativo quevocê entenda que Deus fará a parte dele, mas você deve fazer a sua parte

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também" (grifo do autor).12 Portanto, as piores notícias que você poderáouvir de Osteen não é nada que você já não saiba e as melhores notíciassão que, seguindo seu conselho, você pode ter mais.

As sete chaves não são indicativas do evangelho; em outras palavras,anúncios da obra salvadora de Deus em Cristo - como uma antecipaçãoprofética do Messias; a encamação; a obediência ativa de Cristo no lugardos pecadores; sua morte, levando o pecado; a ressurreição vitoriosa comoa cabeça de um corpo; a ascensão de Cristo para nos representar diante doPai eenviar seu Espírito para nossos corações como uma parcela de entradada ressurreição de nossos corpos no final dos tempos, quando ele vai retornaremglória parajulgaros vivos e os mortos. Aocontrário, assetechavessão imperativos (comandos) que poderiam ser gerados a partir de uma sériede fontes, sem qualquer apelo à Bíblia: "Para se tomar melhor, você deve:1) Manter-se forçando para frente. 2) Ser positivo para consigo si mesmo.3) Desenvolver relacionamentos melhores. 4) Desenvolver hábitos melhores. 5)Abraçar o lugar onde você está. 6) Desenvolver sua vida interior. 7)Ficar apaixonado pela vida". Estas são coisas para você fazer, sem qualquermenção da boa-nova doque foi feito para nós, por Deus.

O tema é subir mais, novamente de acordo com a teologia da glória:nossa subida autoconfianteem vez da descida humilde e sacrificial de Deusa nós. Do início ao fim, Osteen se dirige a seu público vasto como se cadapessoa fosse "filho do Deus Altíssimo", sem nenhuma menção a Cristocomo o Mediador dessa relação. Pelo contrário, simplesmente pelo fato deserem criados à imagem de Deus todos têm essas "sementes de grandeza"plantadas dentro de si - esse DNAdivino: "Está tudo em você. Você estácheio de potencial. Mas você tem de fazer sua parte e começar a tocar nele.(...) Você tem asemente do Deus Todo-poderoso dentro de você. (...) Temosque acreditar que possuímos o que é preciso". O ensino extravagante dosevangelistas da prosperidade como Kenneth Copeland e outros notáveisTBN, isto é, somos "pequenos deuses" e temos a essência da divindadedentro de nós, é promovido em menos detalhes, mas em termos explícitos.

E verdade que existem apelos à Bíblia espalhados no livro de Osteen.Em quase todos os casos, no entanto, um versículo ou é retirado de seucontexto e transformado em um tipo de biscoito da sorte de uma promessaque a pessoa pode nomear e reivindicar para si mesma, ou é realmentemal interpretado para servir à colocação de Osteen. Considerando que, emGênesis 3.11, Deus pergunta a Adão: "Quem te fez saber que estavas nu?"

i;As citações neste e nos 36 parágrafos seguintes (exceto as citações da Escritura) são deOsteen, Become a Better You: 7 Keys toImproving Your Life Every Day. Nova York: FreePress, 2007, págs. 5,9, 37, 39-41, 45, 46, 50, 56, 67, 69, 86, 87, 89, 91, 101, 103-105, 129130,218,236,301,302,308,316.

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a fim de convencê-lo de seupecado, Osteen faz parecer como se fosse Satanás que disse aAdão que ele falhou no teste e não tinha o necessário paraser bem-sucedido.

Como em seu livro anterior, Osteen, aqui, nunca fala do pecado comocarência daglória de Deus, mas como estar abaixo de nosso potencial. Naverdade, o apego de Osteen ao evangelho da prosperidade é ainda maisexplícito em Become a Better You. Como sea Queda nunca tivesse acontecido, Osteen escreve: "Ele programou tudo o que você precisa para avitória", embora consegui-la dependa devocê. Isto exige repetir frases diariamente: "Eu tenho o que preciso. Eu sou mais que um conquistador. Eusou inteligente, eusou talentoso. Eu sou bem-sucedido, eusouatraente, souum vencedor".

Considerando que, em Gaiatas 3.29, Paulo argumenta que a herança davida eternavem com a promessa (Cristo) e não pela lei, Osteennovamenteinterpreta um versículo fora de seu contexto como uma promessa de prosperidade temporal. Este éum exemplo claro de como Osteen transforma atémesmoas referênciasmais óbviasa Cristo (comoo cumprimentoda profecia do Antigo Testamento) em exemplos atemporais doque pode acontecera nós se citarmos e reivindicarmos nossas bênçãos. Ele não interpreta aEscritura; ele a usa como um livro de citações para servir à sua própriamensagem de prosperidade.

Em todo o livro, percebe-se a presença constante dalinguagem doevangelho da prosperidade: nós devemos declarar a bênção de Deus, falar deprosperidade eprofetizar saúde, riqueza e felicidade em nossas vidas. Issocria a impressão de que Deus criou tudo para nossa vitória, mas cabe a nósrealmente nos ligarmos à fonte de energia e criarmos nossas bênçãos, seguindo osprincípios e procedimentos adequados.

Assim, apesar da retórica sobrenatural, no final das contas tudo soadeísta: Deus organizou tudo, originalmente, com as leis da prosperidade;agora, é nossa vez de agir. Seguindo o caminho bem pisado pelos mestresda vida vitoriosa, Osteen fala em extrair o que for preciso do reinoeterno.Desta forma, atémesmo a religião se toma uma espécie de tecnologia: peloconhecimento de princípios, fórmulas e passos certos, a prosperidade, asbênçãos e a graça podem sersuas aqui e agora. Mais uma vez, a marca daespiritualidade gnóstica é facilmente perceptível.

Ele quer que tenhamos um pequeno paraíso na terra, exatamente onde estamos. (...) Vocêpode realizar seus sonhosantes de ir para o céu! Como você pode fazer isso?Acessando o poder de Deus dentro de você. (...) Entenda quede todas essas coisas você já foi libertado. Mas aqui estáa pegadinha: se você não apreciar e tirar proveito de sua

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liberdade, se você não dispuser seus pensamentos, suaspalavras, suas atitudes na direção certa, você não terá benefício algum. Você pode sesentar eesperar que Deus façaalgo sobrenatural em sua vida, contudo a verdade é queDeus está esperando por você. Você deve se levantar emsua autoridade, terum pouco dedeterminação e resolução,e dizer: "Eunão vou viver a minha vida namediocridade,preso a vícios, negativo e derrotado" (grifo do autor).

Deus pode ser a fonte dessa bênção em sentido último, uma vez que eledispôs as coisas, mas receber realmente o favor de Deus e as bênçãos deledepende inteiramente da nossa atitude, ação e obediência.

Osteen dedica um capítulo a "Making Your Words Work for You" [Fazendo suas palavras trabalharem para você], fornecendo exemplos de pessoas cujas declaraçõespositivas lhes trouxeram saúde, riqueza e felicidade.Em um capítulo intitulado "Have Confidence in Yourself' [Tenha confiançaem si mesmo], Osteen repete seu mantra, novamente torcendo as palavrasda Bíblia: "A Escritura diz: 'Nossa fé se toma eficaz quando reconhecemostudo de bom em nós'. Pense sobre isso: nossa fé não é eficaz quando consideramos nossas mágoas edores. Não é eficaz quando ficamos focalizadosem nossos defeitos ou em nossas fraquezas. Nossa fé é mais eficaz quandoreconhecemos as coisas boas queestão em nós".

Acoisa mais próxima que eu fui capaz de encontrar do texto citado porOsteen é a declaração de Paulo em 2Coríntios 12.9: "Ele [Jesus] me disse:Aminha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza. De boavontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouseopoder de Cristo". Éclaro que, se este for oversículo que Osteen tinha emmente, ele diz exatamente ooposto de sua paráfrase. Na verdade, ele épartede uma explicação do motivo de Paulo, em contraste com os superapósto-los que estavam liderando os coríntios que andavam perdidos por causa dassuas "suaves palavras e lisonjas" (Rm 16.18), de não segloriar em si mesmo, mas em sua fraqueza. De fato, Paulo diz que Deus lhe pôs "um espinhonacarne" a fim deque elenão seexaltasse (2Co 12.5, 7: veja vs. 5-10). Emmomentos de fraqueza, angústia e dificuldade, diz Paulo, quando perdemosnossa autoconfiança e colocamos nossa situação diante de Deus, estamos namelhor posição para Deus mostrar seupoder.

Na única referência clara para confiar em Cristo que encontrei em seulivro, Osteen ainda se sente obrigado a nos incluir como objeto de fé:"Quando cremos no Filho de Deus, Jesus Cristo, e acreditamos em nósmesmos, aí é que nossa fé se toma viva. Quando acreditamos que «optemos o que é preciso, nós nos concentramos em nossas possibilidades"(grifos do autor).

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Até quando os conceitos de pecado eredenção são empregados, eles sãoredefinidos. Opecado não é um estado de revolta que herdamos de Adão;são doenças, pobreza emás atitudes que herdamos de nossos ancestrais. NaBíblia, uma maldição tem seu lugar no contexto da aliança. Por exemplo,nos antigos tratados do Oriente Próximo, que formam o padrão de pensamento pactuai empregado na Bíblia, um imperador podia trazer juízo sobreuma tribo ou nação rebelde sob seu domínio. Esta sanção era chamada demaldição: a invocação, pelo imperador, das penalidades que eram proferidas paraos violadores do tratado.

No evangelho da prosperidade, entretanto, amaldição encontra-se maisrelacionada ao mundo da mágica - a maneira como costumamos falar demaldições em nossa cultura de hoje. Então, onde as maldições que Deus invoca sobre a humanidade como conseqüência do pecado de Adão no jardimsão uma sentença judicial, Osteen fala de "maldições hereditárias", que nãotêm nenhuma referência óbvia ao julgamento divino. O pecado é transformado em linguagem de duelo de DNA. Você pode ter herdado os genes desua avó, que incluem amaldição da diabete, mas "você precisa estabelecercom autoridade e dizer: 'Minha avó pode tertido isto [diabete]. Minha mãepode ter tido isso. Mas, quanto amim eàminha casa, nós estamos redimidos dadiabete. Eu vou viver sob a bênção e não sob a maldição.' (...) Estetipo de bênção épara os crentes que não duvidam". Não seria estranho, então, se tal ensinamento levar um seguidor sincero aconcluir que o fracassoemnão sercurado ouem tomar-se financeiramente próspero resulte de suaprópria desobediência.

Se for diagnosticado com a diabete da vovó, eu seria um cético em vezde um crente? "A Bíblia chama isso de iniqüidade", Osteen escreve. Assim, o pecado não é uma condição de corrupção e de culpa inerentes quegera pensamentos desejos eações pecaminosas, mas sim doenças epadrõesde comportamento destrutivos transmitidos através da linhagem da pessoa,"até que alguém se levante e ponha um fim nisso". Obviamente, esse "alguém" é você, não Cristo.

O caráter ético do pecado, como condição e ações específicas de transgressão ou inconformidade com alei de Deus, étrocado por uma concepçãomágica. Ao mesmo tempo, nossa vitória sobre as maldições hereditárias étotalmente administrável por meio da tecnologia espiritual que Deus projetou. "Deuslhedeuo livre-arbítrio. Você pode optarpormudar. (...)Graças aDeus, você e eu podemos fazer algo sobre isso." São estas as boas-novas?

Osteen redefine a redenção como libertação da dor, da doença e da pobreza, bem como das más atitudes e dos hábitos negativos que nossos paisou avós passaram para nós. "Pense a respeito disso assim: cada um de nóstem uma conta bancária espiritual. Pela maneira como vivemos, acumulamos capital ou armazenamos iniqüidade. Capital seria qualquer coisa boa:

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nossa integridade, nossa determinação, nossa piedade. Isso éacumular bênçãos. Em contrapartida, a iniqüidade inclui nossos maus hábitos, vícios,egoísmo, falta de disciplina".

Em Filipenses 3, oapóstolo Paulo usa aanalogia da conta bancária espiritual para confessar que, apesar de ter sido um fariseu, respeitando escru-pulosamente alei, depois de seu encontro com Cristo ele coloca sua própriajustiça na coluna de débito (chamando-a de "refugo", v. 8) ese apega exclusivamente àjustiça de Cristo, imputada aele pela fé somente. Para Osteen,noentanto, é exatamente o contrário: "Suafidelidade é notada no céu. Vocêestá acumulando capital tanto para si mesmo quanto para as gerações vindouras". Este tema de acumular capital mediante autoaperfeiçoamento, defato, percorre todo o livro Become a Better You: "Levante-se a cada dia edê-lhe oseu melhor. Se você fizer isso, você não apenas vai subir mais altoe fazer mais, mas Deus prometeu que sua semente, sua linhagem familiaraté mil gerações, vai ter as bênçãos eo favor dele - tudo por causa da vidaque você viveu". Em outro lugar, ele diz: "Deus mantém registros. Ele vêcada ato de bondade que você pratica. Ele vê cada vez que você é bompara alguém. Ele ouve cada palavra de encorajamento que você fala. Deustem visto todas as vezes que você sai do seu caminho para ajudar alguémque nunca disse obrigado. Suas boas ações não passam despercebidas peloDeus Todo-poderoso".

Não se engane, por trás de todos os sorrisos existe uma religião baseada em obras de retidão: "O plano de Deus para cada uma de nossas vidaséque estejamos continuamente subindo para novos níveis. Mas quão altovamos chegar na vida e quanto do favor e das bênçãos de Deus experimentamos está diretamente relacionado ao nosso sucesso em seguir asindicações dele". Deus "está esperando por sua obediência para que elepossa liberar mais de sua graça e bênçãos em sua vida. (...) Minha pergunta é: a que altura você quer chegar? Você quer continuar a crescer?Quer ver mais das bênçãos edo favor de Deus? Se assim for, quanto maisalto subimos, mais disciplinados devemos ser; devemos obedecer o maisrápido possível".

Na verdade, não é simplesmente que Deus dá o primeiro passo e entãodeixa o próximo para nós. Agraça é uma recompensa pelos nossos trabalhos. "Você não recebe a graça a menos que você aja. Você tem de dar oprimeiro passo. (...) Lembre-se: a altura a que você chega em sua vida édiretamente relacionada à sua obediência."

Ese alguém tiver alguma dúvida sobre aviabilidade deste plano, Osteenoferece a simesmo como exemplo: "Sei que não sou perfeito, mas tambémsei isto: tenho a consciência limpa diante de Deus. Sei que estou fazendoo meu melhor para agradar a ele. Épor isso que posso dormir bem à noite.Epor isso que posso me deitar em paz. Épor isso que tenho um sorriso no

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rosto. Amigo, mantenha sua consciência em paz e você vai descobrir que avida fica cada vez melhor".

Ao contrário, Jesus e seus apóstolos ensinaram que a busca do julgamento de Deus por meio de sua lei traz condenação, incomodando minhaconsciência de que careço da glória de Deus. Minha consciência não é umveredicto positivo no tribunal de Deus quando olho para dentro de mimmesmo. Aúnica razão pela qual posso dormir bem à noite é que, emborameu coração ainda esteja cheio de corrupção eeu não esteja fazendo o meumelhor para agradar-lhe, tenho no céu, àdireita do Pai, oFilho amado, quenão só fez o seu melhor para si mesmo, mas cumpriu toda a justiça paramim, em meu lugar.

Assim, vemos, mais uma vez, que Osteen não abandonou o legalismodas gerações anteriores. No mínimo, oque fez foi intensificá-lo. Mas seusseguidores não reconhecem o nó que vai se apertando ou os encargos quevão se amontoando, porque Osteen faz parecer tudo muito fácil. Não é fácil, porém, dizer que nossa saúde, riqueza e felicidade - assim como nossavitória sobre opecado eamorte - dependem do grau de nossa determinaçãoeesforço. Uma visão fraca do pecado nos coloca em situação de desespero;em vez disso, ele nos encoraja a nos esforçarmos um pouco mais para nossalvarmos. É fácil. Realmente.

Enquanto Jeremias diz que ocoração émais enganoso que qualquer outra coisa (Jr 17.9), Osteen diz que sua confiança diante de Deus está na justiça de seu próprio coração: "Posso não ter um desempenho perfeito, massei que meu coração está limpo. (...) Da mesma forma, quando você estáfazendo seu melhor e deseja fazer o que é certo deacordo com a Palavra deDeus, você pode ter certeza de que Deus está contente com você. Eclaroque ele quer que você melhore, mas ele sabe que todos têm fraquezas".O pecado é reduzido a "fraquezas e imperfeições humanas" que "passamatravés de nosso idealismo", em vez de não se conformarem à lei de Deus."Conquanto estejamosfazendo nosso melhor, não temos de viver condenados, mesmo quando cometemos erros ou falhamos" (grifos do autor). Masesse éoproblema: eu não faço omeu melhor - não apenas nos dias ruins,mas nos dias bons também. Se, de acordo com a Escritura, nosso melhornão passa de "trapo da imundícia" (Is 64.6), a condição de Osteen é, naverdade, de condenação.

As boas-novas da Escritura é que Deus não nos julga de acordo comnossos registros, mas de acordo com o registro de Cristo. Mas Osteen repetidamente afirma que Deus nos julga - oumelhor, infalivelmente nos aprova - com baseem nossabondade inerente e melhores esforços. Ele acreditaque Deus "está sorrindo por causa de mim agora" não por causa de Cristo,mas porque, por mais que eu não seja perfeito, "sei que meu coração estálimpo. Dentro de minha melhor capacidade, estou fazendo oque lhe agrada.

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(...) Francamente, não é por causa do que você fez ou não; Deus ama vocêpor quem você é e por quem ele é. Deus é amor".

O Deus de Osteen é simples. Caracterizado por apenas um atributo(amor), operdão de Deus ébarato. Seu amor não exige coerência com suajustiça, santidade eretidão. Portanto, não éamor misericordioso - ou seja,compaixão para com aqueles que merecem julgamento.

Em contraste, o Deus da Bíblia émuito mais interessante e majestoso.Para encontrar uma forma de amar os pecadores sem violar seu caráter sagrado, Deus deu seu Filho para cumprir a lei e suportar nosso julgamentoem nosso lugar. Oenredo do drama bíblico de redenção é rico, enquanto ahistória Osteen é pobre - comigo, em vez de Deus, no centro.

Mais uma vez, amensagem de Osteen - embora, talvez, um pouco maisexplicitamente orientada para o evangelho da prosperidade que a maioria- não é assim tão diferente da tendência geral de um monte de religiões eespiritualidade populares que permeiam até mesmo nossos próprios círculos evangélicos hoje. O foco está em nós, em vez de em Deus, em nossafelicidade sem asantidade de Deus, em nossa ascensão elevada por esforçomoral, e não por sermos receptores da obra salvadora de Deus em JesusCristo. Osteen tranqüiliza seus leitores: "Sei também que, porque estouhonrando a Deus e me esforçando para manter a atitude certa, ele vai merecompensar- até mesmo quando meus planos falham, ou quando ascoisasnão saem do meu jeito".

Tendo trocado oevangelho da obra, da morte eda ressurreição de Cristoporuma conversa estimulante sobre nosso fazer, declarar e elevar-se, Osteen pode declarar: "O mundo não precisa ouvir outro sermão tanto quantoprecisa ver um". Agora nós somos as boas-novas.

Entretanto, uma vez que somos colocados de volta sob a lei da justiça,com base em que Osteen pode afirmar que Deus sóconsidera as boas obras?Porventura, existe uma única passagem na Bíblia que separe o registro deDeus sendo feito desta forma, para que nossas boas obras possam trazer agraça eabênção dele, mas nossos pecados não contem de jeito nenhum? Se formos herdar as promessas de Deus pela "justiça decorrente da lei" (Rm 10.5),então o agradável panorama deOsteen dificilmente parece justificável.

Assim como Joel Osteen decidiu por si mesmo amensagem que vai pregar, eletambém determinou sua própria vocação. Em entrevistas, eledisseque não é chamado para explicar a Escritura ou expor doutrina. No livrode que estamos tratando, ele acrescenta: "Não sou chamado para explicarcada pequena faceta da Escritura ou para expor, em profundidade, doutrinasteológicas oudisputas que não alcançam as pessoas reais onde elas vivem.Meudom é encorajar, desafiar e inspirar".

Embaixadores não escolhem o que dizem. Como ministros do evangelho, nosso dom é anunciar "todo o desígnio de Deus" (At 20.27). Como

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Paulo diz em Romanos 10, não ascendemos a Deus; ele desce até nós emgraça. Ele envia embaixadores que vão pregar as boas-novas que lhe foramdesignadas; eles não enviam si a mesmos, mas são enviados por alguémpara desempenhar amissão de outra pessoa. "Assim, a fé vem pela pregação, ea pregação, pela palavra de Cristo" (Rm 10.17).

A glória e a cruzAgarre toda aglória agora. Sem cruz, sem ira, semjulgamento. Simplesmente seja tudo o que você pode ser. Somos bombardeados constantemente, em nossa cultura, pelos apelos ao nosso narcisismo nativo. Aversão religiosa desta mensagem - difundida, há algum tempo, pelos liberaise por muitos evangélicos de hoje - faz de Deus um meio para um fim, enão a finalidade para a qual fomos criados. Em todas as suas variedades,esta é a teologia da glória. Mas não é a glória que o evangelho prometepara oporvir, para aqueles que, nesta vida, compartilham do sofrimento eda humilhação de Cristo. Éa glória que nós exigimos aqui e agora, pelosnossos próprios esforços, negando a realidade do pecado e da morte.

Evidentemente, Osteen está reagindo contra o legalismo da repreensão de uma geração anterior, que vencia as pessoas em favor das regras.No entanto, a alternativa de Osteen é dizer às pessoas: "Relaxe e dê umtempo", pedindo a Deus para "ajudá-lo a fazer melhor na próxima vez".Contudo a mensagem bíblica é muito mais profunda e rica, tanto nasmás quanto nas boas notícias. As más notícias são muito piores do quecometer erros ou deixar de viver de acordo com as normas do funda-mentalismo legalista. Os melhores esforços dos melhores cristãos, nosmelhores dias, namelhor disposição do coração e mente, com os melhores motivos, carecem da verdadeira justiçae santidade que Deus requer.Nossos melhores esforços não podem satisfazer a justiça de Deus. Noentanto, as boas notícias são que Deus já cumpriu sua própria justiça enos reconciliou consigo mesmo por meio da vida, da morte e da ressurreição de seu Filho. Asanta lei de Deus não pode nos condenar porqueestamos em Cristo.

Em vez denos apontar para Cristo, no qual os registros de Deus foramjustamente satisfeitos e a transcrição judicial deles foi pregada na cruz(Cl 2.14), Osteen descarta a idéia de qualquer registro negativo. Deus estáapenas mantendo registros daquilo "que você está fazendo certo", de sua"decisão consciente para ser melhor, para viver bem e confiar nele. Deusestá satisfeito porque você é gentil e cortês com as pessoas". Portanto,nada pode pesar contra nós (não por causa de Cristo, mas simplesmenteporque Deus não registra falhas), porém o favor de Deus depende de seuregistro de nossas boas ações. Isso não significa que, se eu não obedecer,

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não vou receber abênção de Deus? Eisso não significa que Deus está, defato, mantendo um registro dos pecados?

Longe da luta de Paulo em Romanos 7, Osteen faz parecer possível controlar o problema do pecado por nossa própria perspectiva positiva. "Sevocê quiser pecar, você pode pecar. Eu peco o quanto quiser", diz ele. "Aboa notícia éque eu não quero. (...) Pare de viver em tomo de tudo oquehá de errado com você e de ficar fazendo um inventário do que você nãoé. ABíblia diz, em Hebreus: 'Desvie oolhar de tudo oque odistrai'." Novamente, Osteen distorce a Bíblia para apoiar sua idéia. Hebreus 12.1-2,na verdade, diz: "Também nós, visto que temos a rodear-nos tão grandenuvem de testemunhas, desembaraçando-nos de todo peso edo pecado quetenazmente nos assedia, corramos, com perseverança, a carreira que nosestá proposta, olhandofirmemente para oAutor eConsumador da fé, Jesus,o qual, em troca da alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz, nãofazendo caso da ignomínia, e está assentado à destra do trono de Deus".

Em outras palavras, o conselho em Hebreus é olhar para longe de nósmesmos - tanto de nossos pecados quanto de nossas boas obras - e nãodeixar nada nos desviar de Cristo. No entanto, a mensagem inteira de Osteen representa uma distração de Cristo. Quem precisa de Cristo, se este éo evangelho: "Você não é perfeito, mas você está tentando viver melhor eDeus olha para oseu coração. Ele vê ointerior eestá mudando você poucoa pouco"?

As más notícias são muito piores do que não estarmos experimentandosaúde, riqueza e felicidade agora. Na verdade, estamos morrendo, e nadapode reverter esse fato. Efica pior. Amorte éapenas um sintoma. Nós todosvamos ter uma causa de morte diferente mencionada no laudo médico. Amorte, entretanto, é, em si, o resultado de uma condição que todos partilham: "O salário do pecado éamorte" (Rm 6.23); "o aguilhão da morte éopecado, eaforça do pecado éa lei" (ICo 15.56). Repare que não são pecados (ações específicas), maspecado (uma condição) que exige nossa morte.Mesmo agora, estamos caindo aos pedaços em nosso caminho para amorte- ainda que estejamos tendo nosso melhor da vida agora.

Ao mesmo tempo, as boas-novas são muito maiores do que encontraruma maneira de mascarar nossos sintomas. Em ambas as passagens citadasanteriormente, encontramos o contraponto às más notícias: "O salário dopecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em CristoJesus, nosso Senhor" (Rm 6.23; grifo do autor). "O aguilhão da morte é opecado, eaforça do pecado éa lei. Graças aDeus, que nos dá avitóriaporintermédio de nosso Senhor Jesus Cristo" (ICo 15.56-57; grifo do autor).Avitória prometida é muito maior do que alívio do estresse, da tristeza, dasolidão, da decepção e, até mesmo, da doença que leva à morte: é a vitóriasobre a morte eterna, por meio da ressurreição no último dia, ao compar-

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tilharmos da vitória de Cristo sobre o túmulo. "Quando o corruptível serevestir da incorruptibilidade, e o mortal se revestir da imortalidade, entãose cumprirão as palavras que estão escritas: 'Tragada foi amorte pela vitória. Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?'"(ICo 15.54-55). Cristo não lidou com os sintomas, ele foi direto à fonte: amaldição que a lei impõe, como ajusta penalidade pela nossa participaçãono pecado de Adão. Como oprimeiro Adão trouxe a morte, o último Adãotrouxe a vida eterna (ICo 15.20-24).

Muito maior do que viver mais tempo e se divertir mais, desfrutandoascircunstâncias, é a insondável riqueza de nossa vida com Deus, reconciliados, mesmo quando éramos inimigos; vivificados, mesmo quando estávamos mortos espiritualmente; trazidos para perto, mesmo quando éramosestranhos; adotados como co-herdeiros de toda a herança, mesmo quandoainda éramos hostis para com as coisas de Deus. Ainda agora, começamosa desfrutar uma antecipação desta festa, como aqueles para osquais "agora,pois, já nenhuma condenação há" (Rm 8.1).

Você não precisa de Cristo para as coisas que Osteen e muitos outrospregadores prometem hoje em dia. Não precisa da Bíblia, apenas de TonyRobbins. Não precisa do tipo de redenção que é prometida nos Evangelhos.Tampouco fica claro por que você precisa de Deus simplesmente para teruma visão mais positiva sobre a vida. A mensagem de Joel Osteen representa um fenômeno muito mais amplo de assimilação do evangelho pelacultura. Seja qual for a doutrina à qual uma pessoa possa dar um parecerfavorável, a história em que a religião contemporânea vive, semove e existe faz a mensagem soar basicamente a mesma, independente de setratar deconservadores ou liberais, batistas ou seguidores da NovaEra,pentecostaisou católicos, reformados ou arminianos, unitaristas ou luteranos. Tão herético quanto isso possa parecer hoje, provavelmente vale a pena dizer aosamericanos que não precisam de Jesus para ter famílias, finanças, saúde oumesmo moralidade melhores. Ir até a cruz significa arrependimento - nãoacrescentar Jesus como um personagem de apoio para um script suficiente de outra forma, mas sim jogar fora o próprio script para fazer parte dodrama escrito por Deus. Trata-se da morte e da ressurreição, não de treinoe transformações.

Quando tentamos encaixar Deus no filme da nossa vida, o enredo ficatodo errado - e não apenas errado, mas trivial. Quando somos retiradosde nosso próprio drama e representados como personagens do desenrolardo enredo de Deus, nos tomamos parte da maior história já contada. Pormeio do julgamento (lei) da Palavra de Deus e da salvação (evangelho),somos transferidos de nossos próprios scripts inúteis e inseridos na grandenarrativa que gira em tomo de Jesus Cristo. No processo, como DietrichBonhoeffer nos lembra:

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Somos desarraigados denossa própria existência e levadosdevolta para a história sagrada de Deus naTerra. Ali, Deustratou conosco, com nossas necessidades e nossos pecados,por meio da ira eda graça divinas. Oimportante não é queDeus seja espectador e participante em nossa vida hoje,mas que sejamos ouvintes atentos e participantes na açãode Deus na história sagrada, na história de Cristo na Terra.Deus está conosco hoje, enquanto estivermos aqui. Nossasalvação está "fora de nós mesmos" (extra nos). Eu encontro salvação não na história de minha vida, mas somentena história deJesus Cristo. (...) O que chamamos de nossavida, de nossos problemas e de nossa culpa não é,de jeitonenhum, toda a realidade; nossa vida, nossa necessidade,nossa culpa e nossa libertação estão nas Escrituras.13

Jesus sabia por que veio - e não era para ajudar as pessoas a encontrarem um pouco mais de felicidade e sucesso na vida. Na verdade, sua vidafoi cheia de sofrimento, sob a longa sombra do Calvário. "Precisamentecom este propósito vim para esta hora", ele disse, referindo-se à cmz (Jo12.27). "O Filho do homem veio buscar e salvar o que estava perdido" (Lc19.10; NVI).

Osdiscípulos pensaram que o caminho para Jemsalém levava à vitória.Entrando como vencedores ao lado do Messias, expulsariam os romanos einaugurariam o reino etemo de Deus. Cada vez que Jesus os lembrava dequeestava indoparaJemsalém paramorrer em umacmz e ser ressuscitadono terceiro dia, eles ou não respondiam ou (especialmente no caso de Pedro) o repreendiam por seu pensamento negativo (Mt 16.21-23; Mc 8.31-38; 10.32-45). Desde suatentação porSatanás, Jesus tinha recebido a ofertade glória sem cmz, mas era uma falsa promessa. Por isso, Jesus repreendeuPedro por tentar dissuadi-lo da cmz, dizendo: "Arreda, Satanás! Tu és paramim pedra de tropeço, porque não cogitas das coisas de Deus, e sim das doshomens" (Mt 16.23). Podemos ser gratos por Jesus ter abraçado a cmz e,emseguida, entrado em sua glória, em vez deexigir glória antes.

Paulo regularmente aborda este tema. Familiarizado com o sofrimentopróprio, eleestava sempre alegre não por causa desuas circunstâncias, maspor causa da promessa do evangelho de que, depois de sofrer por um poucodetempo, vamos participar daglória daressurreição deCristo. Ele advertiua igreja sobre os falsos mestres que enganam "com suaves palavras e lisonjas" (Rm 16.18).

Bonhocffcr. Dietrich. Life Together. Minneapolis: Fortress, 1996, pág. 62.

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O evangelho da saúde e da riqueza que Osteen prega não pode lidarcom o sofrimento. É uma teologia da glória: a oferta dos reinos do mundoaqui e agora. Épossível que aqueles que tomarem este caminho tenham suamelhor vida agora. Mas, mesmo hoje, não há lugar para o sofrimento nessareligião essencialmente norte-americana - nem o sofrimento de Cristo pornossos pecados nem nosso sofrimento por estarmos unidos a ele. Em umaentrevista do New York Times, perguntaram a Osteen por que não há sofrimento. Embora ele esteja correto de que não podemos resolver esse dilemafilosoficamente, não ofereceu nenhuma sugestão de que seja resolvido, emtermos históricos, pela ressurreição de Cristo como as primícias da novacriação. "A resposta é que eu não sei", disse o Sr. Osteen. "Tratamos todasas semanas de alguém cujo filho foi morto ou que perdeu seu emprego. Eunão entendo isso. Tudo o que você pode fazer é deixar Deus confortá-lo eseguir em frente. Parte da fé é não entender."14

Como pode Deus confortar os que choram sem o evangelho? Mesmoaqui, Osteen facilmente limita a dimensão trágica de nossa existência, sobrecarregando os crentes, mais uma vez, com seu dever de nomear e afirmar prosperidade em sua vida. Grande coisa a mensagem mais "positiva"de Joel Osteen: não tem nada a dizer às pessoas que estão em situação dedesespero, exceto que "vai melhorar". E se não melhorar, pelo menos nãonesta vida? Poderia a mensagem de Osteen alcançar alguém que está emestágio terminal de AIDS? Ou provocar outra coisa que não cinismo emuma mãe segurando seu filho morto?

No final, o favor de Deus - medido em termos temporais - dependeinteiramente de nossa obediência. Osteen diz: "Acredito que uma das principais formas pelas quais crescemos em favor é declarando. (...) E algunsde vocês estão fazendo o seu melhor para agradar ao Senhor. Você estávivendo uma vida santa e consagrada, mas você não está realmente experimentando o favor sobrenatural de Deus. E é simplesmente porque você nãoo está declarando. Você tem de dar vida à sua fé, declarando-a".15

Assim, a única resposta de Osteen para aqueles que estão se consumindona tentativa de merecer o favor de Deus - embora dita com um sorriso - é

fazer mais. "Acredite mais em seu milagre e Deus irá mudar sua situação."É este um Deus mais amável e gentil ou um tirano sinistro que fica semprelevantando o arco, cada vez mais alto, para a gente saltar antes que ele nosdê o que queremos?

O cristianismo anuncia as boas-novas de que Deus em Cristo já nos salvou da condenação da lei, destronou a tirania do pecado e nos libertou do

14 Citado em "A Church That Packs Them In, 16,000 At a Time", New York Times, 18 dejulho de 2005.15 Audio clip sobre TheBible Answer Man, transmissão de rádio, 26 de abril, 2004.

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regime opressor de Satanás. Mas fica ainda melhor: um dia, essa salvaçãoserá consumada no dom da ressurreição, da glorificação e da vida etemalivre da presença do pecado, da dor, do mal e da violência. De acordo coma religião popular dos EUA, podemos nos salvar, com a ajuda de Deus, denosso sentimento de culpa e de nossa infelicidade. Osteen, pelo menos,nosajudou a ver quão gritante é o contraste entre o evangelho de Cristo e apropaganda motivacional da cultura popular.

C. S. Lewis observou, certavez: "Não fui sempre um cristão. Nãoprocurei a religião parame fazer feliz. Sempre soube queumagarrafa de Portofaria isso. Se quiser uma religião para fazer você se sentir realmente confortável, certamente não recomendo o cristianismo".16 Em outro texto, eleescreveu:

Estamos defendendo o cristianismo; não "a minha religião". (...) A grande dificuldade é conseguir fazer as audiências modernas perceberem que você está pregando ocristianismo, única e exclusivamente, porque você acredita que é a verdade; as pessoas sempre supõem que vocêestá pregandoporquegostadele ou porque acha que é bompara a sociedade,ou algo desse tipo.Agora, uma distinçãoclaramente mantida entre o que a fé, na verdade, diz e oque você gostaria que ela dissesse, ou o que você entende, ou o que você acha pessoalmente útil, ou pensa que éprovável - isso força seu público a entender que você estápreso aos seus dados, assim como o cientista está amar

rado aos resultados dos experimentos; ou seja, que vocênão está apenas dizendo o que gosta. Isso imediatamenteo ajuda a perceber que o que está sendo discutido é umaquestão sobre o fato objetivo - não conversa fiada sobreideais e pontos de vista.17

Tudo depende de começarmos com o que decidimos ser nossa maiornecessidade ou com o Deus em cuja presença descobrimos necessidadesque nunca antes soubemos que tínhamos.

Se começarmos com nós mesmos e com nossas necessidades sentidas,podemos ter espaço para uma espiritualidade que nos auxilia em nossa au-torrealização e sucesso na vida, mas a questão principal será como podemosjustificar Deus em um mundotão obviamenteconfuso. Se começarmos

16 Lewis, C. S. "Answers to Questions on Chrístianity", Godin the Dock. Grand Rapids:Eerdmans, 1970, pág. 58.17 Lewis, "ChristianApologetics", Godin the Dock, pág.91.

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com Deus - com sua santidade, justiça e retidão, bem como com seu amor,misericórdia e graça - então haverá uma questão muito diferente: Comopode eu, um pecador, ser justificado perante este Deus? Descrevendo seupróprio processo de conversão, Lewis explica: "Eu era o objeto, em vez deo sujeito neste negócio. Estava decidido, contente com o modo como ascoisas ocorriam, mas, no momento em que ouvi Deus dizendo: 'Largue suaarma e vamos conversar' (...) escolhi, mas não parecia ser possível fazer ocontrário".18

Não "largamos [nossa] arma" até que tenhamos desistido até mesmoda religião e da espiritualidade como nossa forma de ascensão ao céu. Nãosabemos o que é relevante ou de maior preocupação até que a Palavra deDeusse dirijaa nós. Discursos sobreo homem moderno podemser ocasionalmente interessantes, diz Karl Barth.

Mas quem e que [humanidade] está diante de Deus, comoaquele a quem é dirigidoseu evangelho, é algo que Narciso, como tal, não pode descobrir em qualquer época, mesmo com toda a exatidão amorosa de sua autoanálise, auto-

avaliação e autodescrição, e algo que ele não pode aceitar,mesmo em sua sinceridade mais implacável. Para conhecer a si mesmo como aquele a quem se destina, dirige eé conhecido por Deus no evangelho, ele deve, primeiro,ser radicalmente perturbado e interrompido no trabalho deautoanálise, recebendo o evangelho de Deus.19

Por meio da fé em Cristo, temos a garantia de que o juízo final já foi determinado em nosso favor, apesar de nossa pecaminosidade, mesmo comocristãos. No meio de nosso sofrimento, dor e até mesmo da morte, podemoscom segurança, nos apegar à promessa que Paulo cita de Isaías 64.4, ouseja, que "nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrouem coração humano o que Deus tem preparado para aqueles que o amam"(ICo 2.9).

Onde o evangelho oferece salvação da culpa e da tirania do pecado agora, bem como da presença e dos efeitos do pecado no futuro, a mensagembem americana de Osteen apresenta o evangelho como salvação dos sintomas do pecado agora, sem qualquer proclamação clara da libertação muitomaior da ira de Deus.

Por não enfrentar as más notícias, Osteen realmente não tem nenhumanotícia boa. Parafraseando a descrição que Jesus faz de sua geração em

18 Lewis, "Cross-Examination", God in the Dock, pág. 26119Barth, Karl. Church Dogmatics, IV, 3.2, pág. 803.

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Lucas 7.31-35, a mensagem de Osteen nos ensina a não cantar blues nem ohino triunfal. Émais como um zumbido monótono, constante e sem ritmo,que ouvimos no elevador ou no shopping, mantendo tudo tranqüilo e semperturbação.

As melhores notícias que Osteen tem para nós nesses livros sãoque, aoseguiros setepassos, ele conseguiu boas vagas de estacionamento, o melhor assento em um restaurante e um upgrade inesperado para a primeiraclasse no avião. Mas o evangelho nos diz que Deus deu todos os passosaté nósnão paranossalvar do desconforto ou dos males que sãocomuns àhumanidade nesta era presente, e sim da penalidade do pecado e da morte.Vestidos com a justiça de Cristo, não mais condenados, somos adotados evivificados em Cristo: "Se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo; se com ele sofremos, também comeleseremos glorificados" (Rm 8.17). Escolhidos por Deus antes da criação,redimidos porCristo, justificados, renovados, sendosantificados, e, um dia,ressuscitados corporalmente em glória - quenotícia poderia ser melhor doque esta? Paulo acrescenta:

Para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempopresente não podem ser comparados com a glória a ser revelada em nós. Aardente expectativa da criação aguarda arevelação dos filhos de Deus. Poisa criação está sujeitaàvaidade, não voluntariamente, mas por causa daquele quea sujeitou. (...) Porquesabemosque toda a criação,a um sótempo, geme e suporta angústias até agora. E não somenteela, mas também nós, que temos as primícias do Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando aadoção de filhos, a redenção do nosso corpo. Porque, naesperança, fomos salvos. Ora, esperança que se vê não éesperança; pois o que alguém vê, como o espera? Mas, seesperamos o que não vemos, com paciência o aguardamos(Rm 8.18-20, 22-25).

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Como transformamos

boas-novas em bons conselhos

Criar um filho de seis anos e trigêmeos de quase cinco anos de idade requertodos os conselhos que minha mulher e eu pudermos receber. Os livros deJames Dobson têm sido muito úteis, mas também nos beneficiamos imensamente da sabedoria de não cristãos, especialmente de meu barbeiro e desua mulher, cuja família tem sido de grande ajuda, de várias maneiras. Assim como as pessoas podem não conseguir encontrar a melhor diversão naigreja, elas talvez não obtenham a mesma qualidade de conselhos de seupastor para a vida diária como podem receber do Dr. Phil ou da Dra. Laura.Você simplesmente não necessita da Bíblia para saber que seus filhos precisam de padrões regulares de sono; que o segredo para um bom casamentoé o diálogo; que o divórcio é, normalmente, devastador para as crianças, eque, se você não administrar seus cartões de crédito, eles dominam você. ABíblia nos dá muito mais sabedoria que isso, entretanto existe um númerogrande de famílias não cristãs que realmente obtêm um melhor desempenhoem fazer a coisa certa que algumas famílias cristãs.

Não é de se admirar que, hoje, a pessoa comum assuma que todas asreligiões, basicamente, dizem a mesma coisa e que escolher uma comosendo a única verdadeira é arrogância. Afinal, quem não crê na regra deouro: "Tudo o que quiseres que os homens te façam, faz tu do mesmomodo para com eles"? A lei moral que encontramos na Bíblia (especialmente os Dez Mandamentos) é bastante similar aos códigos de outrasreligiões e pode ser encontrada em civilizações que antecedem a entregada lei no Monte Sinai. Uma parte de sua sabedoria flui do relacionamentoespecial entre Deus e Israel, mas grande parte dela (especialmente Provérbios) é simplesmente uma articulação clara da maneira que Deus ligoutodo mundo na criação.

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Se a religião é basicamente ética - fazer com que as pessoas façam acoisa certa - então, por que ficar incomodado por causa das diferentes formas históricas, das doutrinas, dos rituais e das práticas que distinguem umaversão de moralidade da outra? Deixe mil flores desabrocharem1* desdeque as pessoas estejam sendo ajudadas, certo?

Reduza o cristianismo a um bom conselho e ele se harmoniza perfeitamente à cultura do treinamento de vida. Pode parecer relevante, mas, naverdade, ele acaba perdido no mercado das terapias moralistas. Quandoanunciamos o cristianismo como o melhor método de aprimoramento pessoal, inclusive com depoimentos sobre o quanto estamos cada vez melhoresdesde que "entregamos tudo", os não cristãos podem, com toda razão, nosquestionar: "Que direito você tem de dizer que a sua é a única fonte de felicidade, significado, experiências emocionantes e aperfeiçoamento moral?".Jesus claramente não é a única forma eficaz para uma vida melhor ou paraum eu melhor. Qualquer pessoa pode perder peso, parar de fumar, melhorarum casamento e se tomar mais agradável sem Jesus.

O que distingue o cristianismo, em sua essência, não é seu código moral, e sim sua história - a história de um Criador que, embora rejeitado poraqueles que criou à sua imagem, se inclinou para reconciliá-los consigomesmo por meio de seu Filho. Essa não é uma história sobre o progressodo indivíduo para o céu, e sim a narrativa dos acontecimentos históricos daencamação de Deus, da expiação, da ressurreição, da ascensão e do retomo,bem como da exploração de seu rico significado.Em sua essência, esta história é um evangelho: as boas-novas de que Deus nos reconciliou consigomesmo em Cristo.

Em 1Coríntios, Paulo declara que os gregos (basicamente gentios) nãoentendem o evangelho porque estão à procura de sabedoria. Afilosofiagregaera obcecada com ter uma vida boa, e havia diversas escolas de pensamento sobre como alcançá-la. Assim, é surpreendente que, quando o apóstolodos gentios conseguiu um lugar no fórum dos filósofos em Atenas, ele nãotenha oferecido Cristo como o melhor caminho para "uma vida melhor agora", mas tenha contado a história de como Deus é o Criador, não precisandode nada de nós, no entanto se inclinando para nos salvar por intermédio deseu Filho. Agora, todos devem se arrepender e se voltar para Cristo, poisDeus revelou a iminência do juízo final pela ressurreição de Jesus dentre osmortos (At 17).

Paulo lembra os crentes de Corinto de que, apesar de ser loucura para osgregos e pedra de escândalo para os judeus, "para os que foram chamados,

" Expressão que foi utilizada por Mao Tse-Tung como slogan em uma campanha comunista, na China. Ela tem por significado que se deve encorajar diferentes idéias, de fontesdiversificadas [N. da R.].

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tanto judeus como gregos, pregamos a Cristo, poder de Deus e sabedoriade Deus. Porque a loucura de Deus é mais sábia do que os homens; e afraqueza de Deus é mais forte do que os homens" (1Co 1.24-25). O verdadeiro poder e sabedoria não são encontrados em princípios para nossa vidavitoriosa, mas no anúncio da vitória de Deus em Cristo. Na verdade, Cristonão se limita a nos mostrar a sabedoria, ele "se nos tomou (...) sabedoria,e justiça, e santificação, e redenção" (v. 30). Esta é exatamente a mesmasituação na qual nos encontramos hoje, com o mundo dizendo que aceitanosso conselho prático (claro, comparando-o com outras terapias espirituais e morais), contanto que fiquemos longe do escândalo de Cristo e de suamorte expiatória pelos pecadores.

Claro que há sabedoria divina nas Escrituras. O Deus que nos justificapor meio da fé à parte da lei também nos santifica e nos conduz por sualei. No entanto, a sabedoria principal da Bíblia é a pessoa e obra de Cristo, prometidas na lei e nos profetas e cumpridas na nova aliança. Nada secompara à sabedoria que Deus tem mostrado na salvação dos pecadores. Oalerta de J. Gresham Machen dirigido ao liberalismo protestante pode serfacilmente dirigido aos evangélicos de hoje: "O que eu preciso, antes detudo, não é de exortação, mas de um evangelho; não de instruções para mesalvar, mas do conhecimento de como Deus me salvou. Você tem algumaboa-nova? Esta é a pergunta que faço a você. Sei que suas exortações nãome ajudarão. Contudo, se alguma coisa foi feita para me salvar, você vai ounão me contar os fatos?".2

No ano passado, tive de retirar minha família do Sul da Califórnia porcausa de incêndios devastadores que assolaram o local. Enquanto escreviao primeiro esboço deste capítulo, não tinha certeza se nossa casa ou o seminário onde leciono ainda estavam de pé. A noite, no domingo anterior,tínhamos ido dormir preocupados; eu acordei às quatro da manhã da segunda-feira e liguei a televisão no noticiário. Poucas horas depois, estávamosempacotando uns poucos objetos de valor e levando a família para um lugarseguro. Minha esposa e eu precisamos de uma mudança de paradigma. Émuito difícil mudar de "posso resolver isto" para "corra para as colinas!".

Uma mudança semelhante de paradigma é exatamente do que precisamos se quisermos escapar "do furor da sua [de Deus] ira" que está chegandosobre o mundo (Ap 16.19). Temos de ser despojados de nossas folhas de figueira a fim de sermos vestidos com a justiça de Cristo, para que possamosestar de pé no julgamento de um Deus santo. A questão é saber se o objetivodo ministério, hoje, é tirar nossas folhas de figueira para que possamos servestidos com Cristo ou nos ajudar a acrescentar mais algumas folhas.

: Machen, J. Gresham. Christian Faith in the Modem World. Nova York: Macmillan, 1936,pág. 57.

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Notícias é um tipo particular de comunicação. Elas vêm até nós de fora,tirando-nos de nossas atividades para ouvir sobre alguma coisa que aconteceu. Se for uma notícia bastante importante, pode nos mudar para sempre. Alguns leitores vão se lembrar do lugar onde estavam quando leram amanchete "Vitória na Europa!". Na qualidade de beneficiários do trabalhosacrificial de outras pessoas no campo de batalha, aqueles que receberama notícia foram mudados por ela. Em vez de simplesmente irem para otrabalho ou voltarem para casa da escola com uma sensação inquietante deguerra, elas começaram a dançar com estranhos na ma. Há as más notíciastambém. Muitos se lembram de onde estavam quando souberam que JohnF. Kennedy tinha sido assassinado ou quando viram, pela primeira vez, asimagens da destruição das Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001.Aqueles que receberam o comunicado da morte de seus queridos ou de umadoença incurável sua nunca mais foram os mesmos depois. Notícias organizam, desorganizam e reorganizam não só nosso sentido de mundo que nosrodeia, mas o mundo dentro de nós.

A mensagem central do cristianismo não é uma cosmovisão, um modode vida ou um programa de mudança pessoal e social: é um evangelho. Apartir da palavra grega para "boa-nova", normalmente usada no contextode anunciar uma vitória militar, o evangelho é o relato de um mensageironomeado que chega do campo de batalha. Por isso, o Novo Testamento fazreferência aos ofícios de apóstolo (representante oficial), pregador e evangelista, descrevendo os ministros como arautos, embaixadores e testemunhas. O trabalho deles é entender corretamente a história e depois relatá-la,garantindo que a mensagem seja entregue pela palavra (pregação) e peloserviço (sacramento). O resultado é uma igreja, uma embaixada do DeusTrino, no meio dessa era de infortúnios, com todo o povo de Deus dandotestemunho dos atos poderosos da redenção de Deus.

Não é por acaso, então, que essa história da redenção é chamada deboas-novas. Se fosse apenas uma informação ou um programa de autoaper-feiçoamento, seria chamada de outra coisa, algo como bom conselho, boaidéia ou boa inspiração. Mas é boa-nova porque é um anúncio de algo quealguém já conseguiu para nós.

Quando nos desviamos desta comissão, começamos a pensar em nós nãocomo embaixadores de um grande Rei e testemunhas daquilo que alguémfez por nós, mas como as estrelas do show. Em vez de relatar as notícias,nos tornamos as notícias. Na verdade, atualmente ouvimos os cristãos, muitas vezes, falarem de "viver o evangelho" e de "ser o evangelho" como setudo o que fazemos e somos pudesse ser considerado um complemento paraa vitória de Deus em Cristo Jesus. Em vez de embaixadores, arautos, repórteres e testemunhas, os pastores se tomam empresários, gestores, técnicos,terapeutas, gurus do marketing e especialistas em comunicação.

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Com esta transição, o foco necessariamente recai sobre o que fazemose o papel de Jesus é reduzido a um exemplo. Livros e sermões que oferecem bons conselhos são mais bem classificados na escala de relevânciaque aqueles que oferecem as boas-novas. Basta visitar a livraria cristãlocal e comparar o número de livros sobre a pessoa e obra de Cristo comos corredores de literatura de autoajuda cristã. Contudo, a Bíblia forneceum foco muito diferente. Com a exceção de umas poucas passagens importantes que nos dizem para seguir o exemplo de Cristo de amor sofredorem favor de outros, o Novo Testamento deixa claro que Jesus é ímpar emtodos os sentidos: em quem foi, no que fez e no que disse. Somente elepodia ser Deus encarnado; somente ele poderia produzir milagres queeram sinais de sua divindade e missão messiânica; somente ele poderiainaugurar o reino com suas bênçãos e maldições; somente ele poderiamorrer como um sacrifício expiatório pelos pecadores e ser ressuscitadocomo as primícias dos que dormem.

Quando se espera que os pastores sejam treinadores mandando nos jogos e que os seus fiéis sejam "somente estrelas" para levar o time de Jesusà vitória nas guerras culturais, o foco necessariamente recai sobre o quefazemos e não sobre o que Deus fez, assim como em nossas histórias eestratégias, e não nas histórias e estratégias de Deus. Mas isso significa quegrande parte de nosso ministério, hoje, é lei sem evangelho, exortação semnotícias, instmções sem anúncio, obras sem credos, com a ênfase em "oque teria feito Jesus?" em lugar de "o que Jesus fez?". Nenhum de nós estáimune a esta acusação de que estamos perdendo nosso foco sobre a maiorhistória jamais contada, a confiança nela e até mesmo, cada vez mais, nossoconhecimento dela.

Outra maneira de falar sobre a diferença entre lei e evangelho é a distinção, no próprio idioma grego, entre o modo imperativo e o indicativo.Um indicativo nos diz o que é, de fato, o caso: por exemplo, o gato estáno tapete. Um imperativo nos diz para fazer alguma coisa: ponha o gatono tapete. "Esforce-se mais" é um imperativo, não um indicativo. O modoem si (facilmente percebido no idioma grego) nos diz que isto é lei e nãoevangelho.

Eu realmente preciso me esforçar mais, isso não está em discussão. Aquestão é se exortações para me esforçar mais, e até mesmo dicas específicas sobre como fazer isso, garantem alguma possibilidade de me levar aqualquer coisa que não seja morte espiritual à parte do evangelho.

Ao nos voltarmos para a Palavra de Deus com a distinção entre lei eevangelho em mente, podemos aceitar a força total de sua vontade moral,sem tentar enfraquecê-la. Não amamos a Deus e o nosso próximo comoDeus espera. Portanto, estamos falhando em ser tudo o que podemos sere perdendo o melhor de Deus para nossa vida, e somos condenados como

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transgressores da vontade santa de Deus. Nossajustiça é "trapo da imundícia" (Is 64.6). Por meio do evangelho, entretanto, o Espírito nos vestecoma justiça de Cristo(justificação) e nos renova (regeneração), conformando-nos diariamente à imagem de Cristo (santificação). Durante todo o tempo,a lei me diz o que Deus requer, mas somente o evangelho traz a salvaçãotanto da sentença justa da lei como do domínio do pecado e da morte.

Confundindo lei e evangelho: legalismo fácil de ouvirAbrandar a seriedade da lei de Deus e o fato de que permanecemos diantedo juízo dele como transgressores pode parecer mais tolerante, mas não é.Na verdade, é cruel. Em vez de acabar com todas as tentativas de se levantar até Deus em autoconfiança, dandoàs pessoasum Salvadorque cumpriutudo para nosso resgate, este legalismofácil de ouvir perpetua uma vida deconstante ansiedade. Houve um tempo em que identificávamos o legalismoquando o víamos: o evangelista do estilo antigo, pregando fogo e enxofrecomo forma de pôr as pessoas no caminho certo. Hoje, porém, a acusaçãode legalismo dificilmente parece razoável.

Tal comoas regras dos fariseus, o antigo legalismo substituiu seus próprios regulamentos por questões mais pesadas do que, na verdade, as ordenadas por Deus. O pecado não era um incidente que corrompeu nossasmelhores obras, mas a violação de certos tabus. Não tínhamos, necessariamente, de amar perfeitamente a Deus e o próximo, mas tínhamos de ficarfora da cadeia e dos salões de bilhar. Alémdisso, tais infrações podem nosfazer perder jóias em nossa coroa ou provocar o juízo de Deus em nossa vida. Se enfrentássemos algum tipo de infortúnio, um irmão ou irmãbem-intencionada poderia perguntar: "Qual pecado oculto você traz em suavida?". Em versões mais graves, poderíamosperder nossa salvação.

Graças à geração Boomer, que alcançou a idade adulta (tanto quantopossível) nos anos 60 e 70 do século 20, parece ter havido uma reação nosentido do antinomianismo, isto é, rebelião contra as doutrinas e as normasfixas. A culpa está/ora; o otimismo e o incentivo motivacional estão dentro.Em vez de perder recompensas ou salvação, perdemos o melhor de Deuspara nossas vidas aqui e agora. Francis Schaeffer costumava chamar estareligião de religião dapaz e da riquezapessoal. A mudança do conservadorismo rígido da geração de nossos pais não foi da culpa para graça ou da leipara o evangelho, mas de varas para incentivo, da ameaça agourenta paraum resmungo constante para fazer melhor - sempre com um sorriso (afinal,o símbolo da geração Boomer é o rosto sorridente).

Independente de expresso na política mais radical de esquerda ou napolítica mais conservadora de direita, o objetivo do evangelismo, do dis-cipulado e da vida corporativa da igreja se tomou uma versão mais branda

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do legalismo - um fluxo constante de exortações para seguir o exemplode Jesus, presumindo, ao mesmo tempo, familiaridade com o evangelhodele. Mais recentemente, o movimento da Igreja Emergente, se é que sepode dizer isso, intensifica o chamado para o discipulado, enquanto, emcertos casos, até mesmo modifica o evangelho. Embora a política, o vocabulário, o estilo e a ambientação possam sugerir o contrário, ele representa o mesmo papel que muitos de nós recordamos da educação evangélicaconservadora: faça mais. Seja um líder, não um seguidor. Realize grandescoisaspara Deus. Discipulado, não doutrina (como se discípulo, que significa "estudante", e doutrina, que significa "ensino", fossem, de algumaforma, antitéticos).

É importante ressaltar que a lei e o evangelho não se referem simplesmente aos Dez Mandamentos e a João 3.16, respectivamente. Tudo na Bíblia que revela as expectativas morais de Deus é lei; tudo na Bíblia querevela os propósitos salvadores e os atos de Deus é evangelho. Nem tudona Palavra de Deus é evangelho; há uma série de exortações, mandamentose ordens. Eles devem ser obedecidos; contudo, não é evangelho. Nem tudodo que precisamos é evangelho. Também precisamos de direção. Necessitamos saber os mandamentos de Deus para reconhecer e confessar nossospecados, e correrpara Cristo,assimcomoparaque eles possamnos orientarem grata obediência. Quando se trata de fazer algo, estamos respondendo àlei (obras); quando se trata de acreditar no que Cristo fez por nós, estamosrespondendo ao evangelho (fé). Confundindo a fé como meio de herdar odom de Deus, nossas "boas obras" se tomam os pecados mais ofensivoscontra Deus. Mas, quando a fé somente recebe o dom, ela imediatamentecomeça a produzir o fruto da justiça. Mesmo quando coisas boas, santase apropriadas se confundem com o evangelho, é apenas uma questão detempo antes de chegarmos ao cristianismo sem Cristo: uma história sobrenós em vez de uma história sobre o Deus Trino que nos transporta para odrama em andamento.

O Deus do fundamentalismo pode ter sido muito sem graça, mas oDeus da religião norte-americana contemporânea è trivial demais paravaler o nosso tempo. A religião dos velhos tempos pode ter sido legalista,acrescentando suas próprias regras e regulamentos à lei de Deus, mas, pelomenos, ela reconhecia que Deus ordenava certas coisas. Hoje, a questão émenos sobre medir-nos pela santa vontade de Deus do que ajudar as pessoas a se tomarem melhores por meio de um bom conselho. Independentedo ponto em que os modos e os motivos mudaram, todavia, a ênfase aindarecai sobre o imperativo - coisas para fazer. A Igreja Central da Bíblia, aIgreja da Comunidade Bubbling Brook e a Igreja Episcopal de São Mateuspodem dar-lhe coisas muito diferentes para fazer, mas fazer é tudo o queestá em foco. É impressionante o que vários cristãos (incluindo muitos

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pastores) parecem considerar absolutamente certo e o que eles consideram como incerto. Embora não haja uma única passagem na Bíblia quenos diga o que Jesus faria em uma série de questões pessoais e sociais demoralidade, economia, política e direito, muitas vezes ouvimos ousadaslamentações e afirmações feitas pelas mesmas pessoas que expressam ambigüidade(disfarçada de humildade)sobreassuntos claramente abordadose tratados como questões de grande importância na Escritura.

Buscando encontrar o caminho de volta às suas raízes, atualmente muitos evangélicos mais jovens são atraídos para o legado anabatista. BrianMcLaren explica: "Os anabatistas vêem a fé cristã principalmente comouma forma de vida", interpretando Paulo pelas lentes do Sermão da Montanha de Jesus, em vez de o contrário.3 A ênfase recai sobre o discipulado, enão sobre a doutrina, como se seguir o exemplo de Jesus pudesse sercontrário a seguir seus ensinamentos.

O queacontece quando o Sermão daMontanha é equiparado aumaéticageral do amor e a doutrina é jogada para um plano secundário? O próprioCristo se toma um mero exemplo para ajudar até mesmo seguidores deoutras religiões a se tomarem melhores. Na verdade, indo além da maioriados anabatistas queconheço, McLaren escreve: "Devo acrescentar, porém,que nãocreio que fazer discípulos deva serigual a fazer adeptos dareligiãocristã. Pode ser aconselhável em muitas (não em todas!) circunstâncias ajudar as pessoas a se tomarem seguidoras de Jesus e permanecerem dentro deseus contextos budista, hinduou judaico".4 Isso só faz sentido se o significado de Cristo sebaseia principalmente noexemplo moral queelenoschama a imitar. "Não espero que todos os judeus ou hindus se tomem membrosdareligião cristã", escreve McLaren. "Mas espero que todosque se sintamchamados se tomem judeus ou hindus seguidores de Jesus."5

Não é de admirar, então, que McLaren possa dizer sobreos protestantesliberais: "Aplaudo a vontade deles de viver o significado das histórias demilagres, mesmo quando não acreditam que as histórias realmente aconteceram como está escrito".6 Afinal, trata-se de obras, não de credos. Pode-seseguir Jesus com ou sem fé explícita nele.

Não há nada especialmente pós-moderno sobre nada disso, é claro.Escritores como McLaren defendem muito pouco que não possa ser encontrado, com maior sofisticação, nas faculdades de teologia alemãs eamericanas, na virada do século 20. Se nos for permitido escolher e pegaro que quer que gostemos do Novo Testamento (mais uma vez, não se trata

3McLaren, Brian. A Generous Orthodoxy. Grand Rapids: Zondervan, 2004, pág. 206.4Ibid, pág. 260.5/M*,pág.264.6Ibid., pág. 61.

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apenas de tendência singularmente pós-moderna), vamos sempre gravitar em torno do contraste estabelecido pelo mais moderno de todos ospensadores modernos, Immanuel Kant: a religião pura (moralidade) emoposição kfé eclesiástica (doutrina). A única diferença é que, no tempodeles, isso era chamado de Modernismo. Relacionando nossa causa aoespírito da época,1* seja lá como chamemos isso, sempre somos levadosa uma forma ou outra de cultura-cristianismo - em outras palavras, aonosso pelagianismo nativo.

Percebo que o movimento da Igreja Emergente é doutrinariamente fluido;algunslíderesqueapreciam a abordagem pós-moderna e que aindaestãosendo identificados, desconfortavelmente, com McLaren e outros preferem,muitas vezes, o rótulo mais geral de "emergente". Além disso, muitas vezeseu me encontro me identificando com diversas críticas de certos aspectosda fé e da prática evangélicamoderna. No entanto, muitos desses escritores(especialmente McLaren) parecemestar reagindocontra as caricaturas, reais ou imaginárias, das formas mais completas do cristianismo evangélicopelo menos.

McLaren, sem dúvida, concordaria com as críticas deste livro à influência, sobre a igreja, da modernidade programática, técnico-orientada, dirigida ao consumo e individualista. Tendo sido criado em ambientes similares,partilhamosde uma reação comumcontra meras afirmações e slogans, bemcomo contra o dogmatismo freqüentemente irrefletido e cego que assumeque temos todas as respostas e todas as outras pessoas estão erradas. Compartilho de seu interesse no horizonte mais amplo do reino de Deus para anossa teologia e de sua preocupação de que o evangelho seja, com freqüência, reduzido a uma promessa quase gnóstica de salvar a alma (ou seja, "irpara o céu quando morrer"), em vez de, em última instância, nas palavrasdo Credo dos Apóstolos, à "ressurreição do corpo" e à "vida eterna", que inclui toda a criação. Isto leva a um tipo de cristianismo que afirma o mundoe o abrangente, em vez de a uma piedade puramente negativa, reacionáriae reducionista.

No entanto, encontrei este "novo" paradigma ao tropeçar no cristianismo reformado. Foi dessa tradição que eu aprendi que perguntas eram boase que, às vezes, não sei é a resposta certa; que a Bíblia não é simplesmentesobre "eu e minha relação pessoal com Jesus" ou meramente um livro-textode doutrina ou de moral, mas uma história na qual nos encontramos - e toda

7* O autor usa a expressão "Hitching our wagon to the spirit of the age", derivada do provérbio "Hitch your wagon to a star" de Ralph Waldo Emerson, que, em sua origem, tem osignificado de "aspire sempre a grandes coisas". Mas, no uso popular, "Hitching your wagonto..." significa aproveite algo que esteja acontecendo e que esteja em destaque para promover uma coisa de seu interesse [N. da R.].

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a criação da qual somos parte. Além de ficar extasiado pela maravilhosagraça de Deus, também recebi um novo sentido de serchamado para umacomunhão dos santos e um novo fundamento para a responsabilidade nomundo - não para salvá-lo, mas para amar e servir o meu próximo, e serumadministrador de uma criação que será renovada, em vez de ser, simplesmente, um consumidorde uma criaçãoque será destruída.

McLaren, entretanto, parece nunca terencontrado umtipo alternativo defé evangélica para o panorama mais pietista e legalista no qual foi criado.Quando elefoge dadoutrina damorte expiatória deCristo como suportandoojustojuízode Deus emnosso lugar (ou seja, substituição penal), conheçobem a distorção que está renegando. No entanto, foi um teólogo deteologiasistemática, sábio e idoso, doseminário onde agora ensino, que nos alertoupara nunca apresentar essa preciosaverdade como se um Pai vingativo estivesse jogando sua ira sobre seu Filho. Ao contrário, ele nos instruiu, pormeio das passagens relevantes, que o Pai entregou seu Filho por causa deseuamor, e o Filho não foi uma vítima, mas umsubstituto voluntário queseentregou em amor também.

Independentemente das razões, McLaren -juntamente com outros pastores e escritores, como o britânico evangélico Steve Chalke - vai de umacaricatura popular do cristianismo evangélico para um tipo diferente demoralismo que, muitas vezes, é indistinguível dos movimentos feitos, hámuito tempo, pelo liberalismo protestante e de versões mais radicais devárias teologias da libertação. Chalke descreve a substituição penal como"abusoda criançadivina" e McLaren manifesta a mesma opinião na voz deum de seus personagens de ficção.8 Depois de oferecer uma caricatura da"visão convencional" da expiação de Cristo, McLaren mostra sua alternativa da "visão emergente": "Deus graciosamente convida todos a voltar-sede seu caminho atual e a seguir um novo caminho. Isto", diz ele, "é a boanotícia".9 Enquanto, na visão convencional, o "pecado original" é a raizdo problema e Deus fornece salvação de sua ira como "um domgratuito",o evangelho, segundo a visão emergente, é que Jesus "inseriu, na históriahumana, uma semente da graça, da verdade e da esperança que nuncapodeser derrotada. (...) Todos os que encontrarem em Jesus a esperança e a verdade de Deus descobrem o privilégio de participar de sua obra em curso detransformação pessoal e global e da libertação do mal e da injustiça".10

8Chalke, Steve. The Losi Message of Jesus. Grand Rapids: Zondervan, 2003, págs. 182,183; McLaren, Brian. "The Story We Find Ourselves" em Further Adventitres ofa NewKind of Christian. São Francisco: Jossey-Bass, 2003,pág. 102.9McLaren, Brian. Everything Must Change: Jesus, Global Crises, and a Revolution ofHope. Nashville: Thomas Nelson, 2007, pág. 79.wIbid., págs. 79-80.

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Assim, nossas obras não são apenas fruto da salvação, mas fazem parteda "obra em curso" de Cristo. Perdida nesta visão, encontra-se a singularidade da obra definitiva de Cristo por nós, à parte de nós, fora de nós, nopassado, e a obra que só ele pode fazer quando voltar em glória. Jesus e acomunidade, a obra dele e a nossa, misturam-se em um evento de salvação.

Radicalmente diferente do narcisismo e do individualismo do evangelhoda prosperidade de Joel Osteen, a mensagem de McLaren, no entanto, compartilha de importantes semelhanças. Ele traduz o pecado e o julgamentoem ações e atitudes que podemos conquistarcom a agenda certa, a fim detransformar a nós mesmos e o mundo. Enquanto, para Osteen, o ponto dereferência para pecado e salvação mudade Deus para felicidade e melhoriado ego por meio da melhoriamoral, para McLaren o quadro de referênciaé o aquecimento global, a pobreza, a AIDS e a ganância capitalista. Emmuitos aspectos espelhando a confusão da Direita Religiosa do reino dagraça de Cristo com sua vinda em glória e esta última com o triunfo de umaagenda especial já definida por um partido político, a Esquerda Religiosaemergente parece muito propensa a recrutar Jesus como mascote para nossos próprios programas de redenção nacional e global.

Osteen fala de salvação inteiramente em termos de prosperidade aqui eagora, enquanto McLaren fala de salvação principalmente em termos de paze justiça aqui e agora. Em ambos os casos, cabe a nós realizar esta salvação,que, em certo sentido, Cristo tornou possível ao plantar uma semente emtodos nós. Independente de definirmos o evangelho como convite de Deusa todos "para voltar-se de seu caminho atual e seguir um novo caminho"(com McLaren) ou "tornar-se melhor" (com Osteen), estamos confundindoa lei e o evangelho - o mandamento para seguir a Cristo com o anúncio vindo do céu de que ele venceu a morte, a condenação e a tirania do pecado, evirá novamente em poder e glória, primeiro para julgar e, em seguida, parafazer todas as coisas novas.

Mesmo do lado mais conservador do movimento da Igreja Emergente(ou "Emergindo"), Dan Kimball, pastor da Igreja da Bíblia Santa Cruz,anuncia seu objetivo: "Voltar a uma forma bruta de cristianismo vinta-ge,11* que, sem se desculpar, centra-se na vida do reino pelos discípulos deJesus".12 Outro líder do movimento, Mark Oestreicher, acrescenta: "Sim,ainda acredito que a salvação vem somente por meio de Jesus Cristo. Masserá que uma dose pequena de budismo, jogada em um sistema de crenças,de algum modo mata a parte cristã, o Jesus básico?". Naturalmente, a resposta é não, se o cristianismo for essencialmente lei em vez de evangelho.

"*Por vintage, entende-se algo raro, genuíno, de qualidade [N. da T.].12 Kimball, Dan. TheEmerging Chwch: Vintage Chrislianityfor New Generations. GrandRapids: Zondervan, 2003, pág. 26

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"Minha prima budista, exceto por sua incapacidade infeliz de aceitar Jesus, é uma cristã melhor (com base na descrição de Jesus que um cristãofaz) do que quase todos os cristãos que conheço. Se estivéssemos usandoMateus 25 como um guia, ela seria uma ovelha, e quase todos os cristãosque conheço pessoalmente seriam bodes."13

Ao contrário de McLaren, Kimball não está interessado em desafiar asdoutrinas evangélicas tradicionais. Noentanto, ele reflete a suposição generalizada de queos cristãos atualmente já compreendem e crêem no evangelho, mas precisam de mais chamadasao discipulado sério. Quando o focoda missão e do ministério está em nossa vida do reino, em vez de na pessoa que trouxe e traz seu próprio reino, conduzindo nós mesmos e nossosouvintes para ele por meio de seu evangelho, Cristo-como-exemplo podeefetivamente substituirCristo-como-Salvador, pelo menos na prática.

E uma tragédia quando dizemos uma coisa e depois vivemos de ummodo que traz vergonha para esse evangelho. Houve cristãos cuja doutrina de Cristo era magnífica, mas que apoiaram a escravidão, o racismo, omaterialismo e uma série de outros estilos de vida que são incompatíveiscom a Palavra de Deus. Evangélicos mais jovens estão em alerta para asincoerências e hipocrisias de um movimento que professa compromissocom Jesus Cristo enquanto exibe seu caso de amor profundo com o consu-mismo, a ganância, o militarismo e a apatia para com a mordomia da criação de Deus. Os comentários de Kimball soam familiares quando ele citaMahatma Gandhi: "Gosto de seu Cristo, mas não gosto de seus cristãos. Oscristãos são tão diferentes de seu Cristo", ou quando ele nos lembra de NedFlanders e sua família de Os Simpsons: "Quase toda vez que os cristãos sãoretratados na televisão ou no cinema, são mostrados como sendo um tantoquanto ignorantes, estúpidos, mesmo sectários, geralmente se engajandoem inflamadas cruzadas para acabar com os males da sociedade e converteras pessoas ao ponto de vista deles. Acrescente a tudo isso a prisão públicade um pastor ou padre por algum crime sexual".14

Kimball põe seu dedo sobre um assunto sério. Assim como grande partedos EUA, suspeitamos de líderes que parecem ter todas as respostas - compouco autoquestionamento - mas que nos desviam do caminho e deixama desilusão no rastro deles. Muitos de nós crescemos vendo nossos líderes

religiosos atacarem a pornografia e os direitos dos homossexuais enquantotinham encontros com prostitutas e garotos de programa. Mas a resposta a"estúpidos, mesmo sectários... cruzadas para acabar com os males da sociedade" não seria simplesmente outra cruzada com uma agenda diferente?A pregação correta da lei e do evangelho é o verdadeiro antídoto para a

13 Oestreicher, Mark. Citado em ibid.,pág. 35.14 Kimball, TheEmergingChurch, págs. 79, 81.

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autojustificação de todos os matizes. É interessante notar que, quando oapóstolo Paulo teve de escrever uma carta disciplinar à igreja de Corintopor causa de sua imoralidade sexual, hipocrisia, contenda e orgulho, começou por ensinar-lhe o evangelho novamente. Ele não tomou como certoque seus membros já osoubessem. Na verdade, ele assumiu que, se aigrejase encontra em uma bagunça ética, o mais provável é queainda não tenhaentendido a mensagem. Só depois de pregar mais uma vez a Cristo e estecrucificado, é que Paulo voltou àexortação prática de viver em função daalta vocação deles em Cristo.

Além disso, os líderes mais jovens da igreja parecem ignorar a amplitude de seus movimentos que também apresentam um apego desmedido àcultura de sua própria geração, em vez de refletir a sabedoria das geraçõesda igreja, em todos os tempos e lugares. Para muitos de nós que fomoscriados na ilusão da "América Cristã" da direita religiosa, movimentos deigreja "emergente" podem parecer uma grande mudança, mas não é apenasuma mudança de partidos? A sociologia também é diferente: Starbucks eguitarra acústica em salas escuras iluminadas com velas, em vez do Wal-mart e bandas de louvor em cinemas iluminados. No entanto, em ambos oscasos, o moralismo continua a empurrar o Cristo crucificado para as margens. Estamos totalmente desatentos, àdireita, àesquerda e nomeio.

Enquanto escrevo, estes desafios estão sendo reconhecidos por escritores como Dan Kimball e Mark Driscoll. Ilusões eventualmente levam àexaustão, independentemente da ideologia; sósepode desejar que ahonestidade, a vitalidade e o entusiasmo por algo mais profundo queoutros SetePassos para algo banal levem auma redescoberta dos múltiplos passos queDeus deu e continua a dar na nossa direção, em Jesus Cristo.

A pergunta para todos nós é se acreditamos que a igreja é o lugaronde o evangelho é regularmente proclamado e confirmado tanto paraos cristãos quanto para os não cristãos. Como muitos líderes da IgrejaEmergente, Kimball invoca um famoso verso de Francisco de Assis queeu também ouvi enquanto crescia em meio ao evangelicalismo conservador: "Pregue o evangelho em todo tempo. Se necessário, use palavras".Kimball continua dizendo: "Nossa vida prega melhor do que qualquercoisa que possamos dizer"15 (encontramos uma declaração quase idênticade Osteen no capítulo anterior). Se for assim, então esta é apenas maisuma má notícia, não apenas por causa das estatísticas que já vimos queprovam não haver nenhuma diferença real entre cristãos e não cristãos,mas porque, apesar de minhas melhores intenções, não souuma criaturaexemplar. Os melhores exemplos e as melhores instruções - até mesmoas melhores doutrinas - não me aliviarão da batalha com o pecado que

15/6/í/.,págs. 185, 194.

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habita em mim até eu dar meu último suspiro. Encontre-me em meu melhor dia - especialmente se você tiver acesso aos meus motivos ocultos,pensamentos eatitudes - e vou sempre fornecer combustível para a acusação de hipocrisia evou desapontar aqueles que se tornam cristãos porquepensam que meuscompanheiros cristãos e eu somos o evangelho. Souumcristão não porque penso que posso seguir os passos de Jesus, mas porqueele é o único que pode me carregar. Não sou o evangelho, somente JesusCristo é o evangelho. Ahistória dele me salva não apenas por trazer-mejustificação, mas por batizar-me em sua vida de ressurreição.

Conformidade à imagem de Cristo (santificação) é o processo de morrer para simesmo (mortificação) eviver para Deus (vivificação) que resulta de serregularmente imerso na história do evangelho da vida, da mortee da ressurreição de Cristo. Outra forma de dizer isso é deslocamento(de Adão e do reino do pecado e da morte) e relocação (em Cristo). Queminha vida não é o evangelho é uma boa notícia tanto para mim quantopara meupróximo. Porque Cristo é as boas-novas, os cristãos, bemcomoos não cristãos, podem ser salvos. Para aqueles que sabem que tambémcarecem da glória que a lei de Deus requer - mesmo como cristãos quetêm, agora, um novo coração que ama a lei de Deus - as boas-novas nãosão apenas suficientes para criar fé, mas para nos colocar de pé de novo,garantindo nossa posição emCristo, prontos para mais umdia de sucessoe de fracasso em nosso discipulado.

Não pregamos a nós mesmos, mas aCristo. As boas-novas - não apenaspara nós, mas para um mundo (e igreja) em desesperada necessidade deboas-novas - é que o que dizemos prega melhor do que nossas vidas, pelomenos se o que estamos dizendo é a pessoa e a obra de Cristo em vez denossa própria. Quanto mais falamos de Cristo como o mistério em revelação na Bíblia e menos sobre nossa própria transformação, mais chancetemos de serrealmente transformados do que de nos tornarmos hipócritasou desesperados. Por mais que isso vá contra nossa natureza, o evangelho éo poder de Deus para a salvação, para ajustificação e para a santificação. Ofruto da fé é real - e não é o mesmo que o fruto de obras de justiça.

Existe hipocrisia. Porque oscristãos serão sempre santos e pecadores aomesmo tempo, haverá sempre hipocrisia em cada cristão e emcada igreja.Aboa notícia é que Cristo nos salva da hipocrisia também. Ela é gerada,em especial, quando a igreja aponta para si mesma e para nossa própriavida mudada nos materiais promocionais. Talvez os não cristãos tivessemmenos prazer em apontar nossas falhas se testemunhássemos, em palavrae ação, nossa necessidade e o dom de Deus para pecadores como nós. Seidentificássemos a visibilidade da igreja com a cena de pecadores reunidospela graça, para confessar seus pecados e sua fé em Cristo, recebendo-ocomas mãos abertas, emvezde com nossos ativos esforços parasermos o

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evangelho, poderíamos, pelo menos, vencer ascríticas dos não cristãos comenergia. Sabemos que somos pecadores e que carecemos daglória deDeus.É exatamente por isso que precisamos de Cristo. Sei que muitos destesirmãos afirmariam que ainda somos pecadores e que ainda precisamos deCristo, mas isso parece serabafado porum foco humano centrado emnossocaráter e em nossas ações.

Kimball escreve que o "objetivo final do discipulado... deve sermedidopor aquilo que Jesus ensinou em Mateus 22.37-40: 'Amarás o Senhor, teuDeus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento'. Nós o estamos amando mais? Ame os outros como a si mesmo.Estamos amando mais as pessoas?".16 Fui criado no evangelicalismo conservador nessa mesma dieta de sermões que terminava com uma questãocomo esta. Uma mudança verdadeiramente radical em nossa abordagemseria a de proclamar Cristo como o único que cumpriu a lei em nosso lugar,suportou sua sentença e,agora, livremente nos dá sua absolvição. Só entãosomos verdadeiramente livres para amar de novo. Para todas as críticasincisivas do movimento da Igreja Emergente ao modelo de megaigreja, aênfase ainda recai sobre o medir o nível de nosso zelo e de atividade, e nãosobre a imersão das pessoas na maior história já contada. Pode ser maisséria, mais autêntica e menos consumista, mas quão diferente é essa mensagem básica daquela de Joel Osteen, por exemplo? Em todo ocristianismocontemporâneo, essa mensagem básica parece ser algum tipo de lei (façaisso) sem o evangelho (o que foi feito).

Da opulência para os trapos: perdendo o evangelhopor não valorizá-loA maior ameaça ao testemunho centrado em Cristo, mesmo em igrejasque, formalmente, confessam a sãdoutrina evangélica, é o que obritânicoDavid Gibson chama de "o evangelho assumido".17 A idéia é que o evangelho é necessário para sersalvo, mas, depois de assinarmos o"contrato",o restante da vida cristã é a letra miúda das cláusulas contratuais: o perdãocondicional. Geralmente, vem na forma de "bem, é claro, mas...". Depoisde um mês de domingos com exortações à parte das boas-novas, a pessoapode perguntar: "Mas e o que dizer da parte de Deus perseverar, apesardo pecado humano, e superá-lo por nós na cruz?". "Bem, é claro! Mastodo mundo aqui já acredita nisso. Só precisamos começar a viver isso

16 Ibid., pág. 214.17 Gibson, David. "Assumed Evangelicalism: Some Reflections En Route to Denying theGospel", Reformed University Fellowship at Lehigh University, http://www.ruf-lu.org/arti-cles/Assumed%20 Evangelicalism.htm.

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na prática." Conseguimos pela graça, mas agora precisamos permanecernas boas-novas (ou, pelo menos, nos tornar cristãos de primeira-classe,completos, vitoriosos, totalmente rendidos) pela obediência àsvárias etapas, listas e práticas. Houve este breve e brilhante momento de graça,mas agora o restante da vida cristã diz respeito às nossas experiências,sentimentos, compromisso e obediência. Sempre gravitamos de volta anós mesmos: "Propenso avagar, Senhor, eu sinto isso; propenso adeixaro Deus que amo".18 Vagamos devolta para aautoconfiança tão facilmentequanto para pecados mais óbvios. Não é de admirar que muitos cristãosse encontrem no equivalente espiritual da crise de meia-idade, perdendoseu primeiro amor, até mesmo pensando, talvez, lá no fundo, se tudo nãoé apenas um jogo.

Tragicamente, minha geração provavelmente não vai passar melhor doque a anterior no teste de hipocrisia. Também vamos ficar muito aquémdo mandato de amar aDeus enosso próximo. Oque precisamos, portanto,é de um evangelho que seja suficiente para salvar até mesmo os cristãosinfiéis. Não podemos deixar de valorizar o evangelho. Ele é sempre umanúncio surpreendente que infla nossas velas com fé para uma vida ativade boas obras.

Este não é um convite à apatia moral, mas à sanidade piedosa. As másnotícias são muito piores do que ocasionalmente não fazer jus ao meu potencial. Omenor pecado que percebo - não só o que eu fiz, mas o que nãoconsegui fazer; não só o que minhas mãos fizeram, mas o que concebi emmeu coração - é suficiente para me banir da presença santa e jubilosa deDeus para sempre. Mas as boas-novas são muito maiores do que as másnotícias. Elas são muito maiores do que "apenas seesforce mais da próximavez". Na verdade, essa não é uma boa notícia de jeito nenhum, porque seique Deus não faz aclassificação em uma curva e que ele não mepediu paraesforçar-me mais. Ele exige a perfeita justiça, não boas intenções. Quantomais eutento encobrir minha nudez na presença de Deus, mais o odeio, fugindo em autoengano de sua presença aterradora. Entregue amimmesmo,vou sempre acusar Deus e me desculpar- mesmo queseja usando areligiãoparaesconder minha culpa inerradicável.

A boa notícia é que ajustiça deCristo é maior do que meupecado. Totalmente absolvido em Cristo, sou livre para confessar meus pecados, recebera certeza do perdão e prosseguir em minha obediência imperfeita, contudoconduzida pelo Espírito.

Do conservador ao liberal, estão nos dizendo que precisamos nos concentrar em ações, não em credos. Claro que a pessoa e a obra de Cristo são

18 Robinson, Robert. "Come, Thou Fount ofEvery Blessing", Hymnsfor the Living Church.Carol Stream, IL: Hope Publishing, 1974.

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importantes, mas nós já cremos nisto, certo? Isso é doutrina, que já fomosinformados, e nãoajuda as pessoas onde elas vivem. Agora temos de salvaro mundo por meio de nossas ações santas. Nós todos entendemos a doutrina, só não a estamos vivendo. Estes são os pressupostos que ouço em todoo espectro teológico e confessional. Mas será que realmente entendemos?Não de acordo com as estatísticas que já encontramos. O evangelho é tãoestranho, até mesmo para nós cristãos, que temos de começar de novo enovamente. Por isso, Deus tem graciosamente criado diferentes caminhospara fazê-lo chegar a nós: ele o proclama pela boca de outro em nome deCristo, banha-me nele com água e coloca-o em minha mão, por meio dopão e do vinho.

Por todas suas rivalidades, o liberalismo protestante, na verdade, cresceu a partir do pietismo e, especialmente nos Estados Unidos, o modernismo protestante cresceu, emparte, pelo reavivalismo. Machen escreve:"Aqui se encontra a diferença fundamental entre o liberalismo e o cristianismo - o liberalismo está totalmente no modo imperativo, enquantoo cristianismo começa comumtriunfante indicativo. O liberalismo apelapara a vontade do homem, enquanto o cristianismo anuncia, em primeirolugar, um ato gracioso de Deus. (...) O liberalismo considera Cristo comoum Exemplo e Guia; o cristianismo, como um Salvador. O liberalismofaz dele um exemplo de fé; o cristianismo, o objeto da fé". O liberalismo age com base na experiência religiosa, enquanto o cristianismo estáatento à Palavra de Deus, que nos vem de fora.19 Em cada geração, nossatendência natural de colocar o foco de volta em nós mesmos - nossa vidainterior, piedade, comunidade e ações - seca a exata raiz da fé que geraamor e serviço.

Apior coisa que pode acontecer com a igreja é confundir a leie o evangelho. Quando suavizamos a lei, não desistimos de nossas próprias tentativas de oferecer os nossos trapos de "justiça" a Deus. Quando tornamos oevangelho emexigências, ele deixa desera Palavra salvadora de redençãode Jesus Cristo.

Segundo as Escrituras, existem duas maneiras de herdar as bênçãosde Deus. Após a Queda, as bênçãos eternas de Deus só podem ser asseguradas por intermédio do perdão dos pecados em JesusCristo.Essapromessa de providenciar um Salvador foi umapromessa unilateral aAdãoeEva após a queda, a Abraão e Sara, e a Davi; ela também aparece na novaaliança profetizada em Jeremias 31 e em outros lugares. Depois, houveas promessas temporais de terra que Deusfez a Israel, com base no compromisso da nação: "Tudo o que falou faremos". Como Paulo diz: "São

19 Machen, J. Gresham. Christianity and Liberalism. Grand Rapids: Eerdmans, 1923,pág. 47.

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duas alianças" - um pacto de graça que conduz àvida eterna e um pactoda lei que leva àescravidão (Gl 4.24-25). Oproblema com os judeus daépoca de Paulo era que tinham confundido a herança condicional de umterreno na Terra com aeleição incondicional e aredenção dos pecadorespor meio da fé em Cristo. Confundir a lei e o evangelho é a tendêncianatural do coração caído. Todas as religiões - incluindo o cristianismosem Cristo, que não écristianismo de jeito nenhum - pressupõem algumaforma de redenção por esforço próprio. Ésempre surpreendente, irracional e até mesmo ofensivo para os seres humanos ouvir que a salvaçãonão depende da decisão ou do esforço humano, mas de Deus, que mostra misericórdia (Rm 9.16). Naturalmente, achamos que, se você quiserque as pessoas façam a coisa certa, só precisa dizer a elas o que fazer eexortá-las a fazê-lo com paixão suficiente e métodos eficazes. Isso, noentanto, evita tanto a lei quanto o evangelho. Se nos desentendermoscom ajustiça de Deus, estamos perdidos. A lei desmascara nossas pretensões, mostrando-nos que merecemos o julgamento de Deus por nosagarrarmos ao orgulho comnossas melhores obras e intenções - não importa os pecados óbvios (Is 64.6). A lei ordena, mas não nos dá nenhumpoder para cumprir suas condições. Por si só, mais conselhos (lei, mandamentos, exortações) só vão nos levar àautorretidão ou ao desespero.No entanto, quanto mais Cristo é exposto diante de nós como suficientepara nossa justificação e santificação, mais começamos amorrer para nósmesmos e a viver para Deus.

Não mais ameaçados com o inferno ou confortados com o céu, o le-galismo novo é o murmúrio otimista e alegre tocando como música defundo. E ainda uma forma de obras de justiça, com seus incentivos e varas. Siga meu conselhoe você vai realmente se "conectar" com o melhorde Deus para sua vida. Se você não está feliz, talvez tenha decaído dofavor e da bênção de Deus. Somente aqueles que estão "completamenterendidos" podem ter certeza de que estão no plano A de Deus. Aqui estãoospassos para viver avida cristã vitoriosa. Você está seguindo os passos?Tem fé suficiente? Está orando, lendo a Bíblia, testemunhando, servindona igreja e amando o suficiente? Esta dieta de imperativos se torna tãocomplexa e antropocêntrica quanto o antigo legalismo; é apenas legalis-mo leve. Equando queimamos um programa, há sempre outro best-seller,movimentoou plano ao virar da esquina.

Mesmo que as gerações mais recentes estejam recuperando algumasdas questões mais importantes da lei, tais como amar e servir nosso próximo, alei não é o evangelho. Quando percebemos adiferença, podemosfinalmente dar acada um seu valor. Deixe a lei ser lei e o evangelho serevangelho.

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Distinguindo lei e evangelhoPrecisamos da leie doevangelho, mas cada umfazcoisas diferentes. Quando os confundimos, evitamos tanto a ferida da santidade de Deus quanto opoder libertador de sua graça. Começamos a falar de viver o evangelho, defazer o evangelho e até mesmo de ser oevangelho, como se as boas-novasfossem uma mensagem sobre nós e nossas obras, em vez de sobre Cristo esua obra. Aresposta adequada não éprescindir da lei nem suavizar suas exigências, tornando-a um conselho útil. Antes, a resposta certa é reconhecer adiferença entre lei e evangelho. Não somos chamados para viver o evangelho, mas para crer no evangelho e para seguir a lei mediante a misericórdiade Deus. Tornar o evangelho em lei é uma coisa muito fácil para nós: issoacontece naturalmente. Por isso, nunca podemos deixar de dar valor paraas boas-novas.

Qualquer forma de fazer o evangelho é uma confusão de categorias.A leinos diz o que fazer; o evangelho nos diz o que Deus fez por nós emCristo. Quando se chega à questão de como nos relacionamos com Deus,fazer é a resposta errada. Paulo explica: "Ao que trabalha, o salário não éconsiderado como favor, e sim como dívida. Mas, ao que não trabalha, porém crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é atribuída como justiça"(Rm 4.4-5). Não setrata apenas de algumas ações da nossa parte que estãoexcluídas aqui, mas de todo tipo de obras. "Se é pela graça, já não é pelasobras; do contrário, a graçajá não é graça" (Rm 11.6).

Princípios para a vida, conselhos práticos, segredos de vida vitoriosa,chamados para odiscipulado e instrução, tudo cai sob acategoria de lei, independente de serem oferecidos com severidade ou delicadeza, ou de seremmandamentos de Deus ou nossos. Aquestão nãoé descartar estas palavras,mas: (a) nos certificarmos de que são as palavras de Deus e não nossas, e(b) reconhecermos que, mesmo quando são de Deus, elas são diferentes dapalavra de Deus do evangelho - as boas-novas que, embora não tenhamosfeito nenhuma das coisas que dissemos que iríamos fazer, Cristo foi feitonossa "justiça, e santificação, e redenção" (ICo 1.30). Alei nos diz o queDeus espera de nós; o evangelho nos diz o que Deus fez pornós.

Assim, lei e evangelho não são inerentemente opostos, porém, quandose trata de como somos salvos, estes dois princípiosnão poderiam ser maiscontraditórios. E como nossa fé, a cada momento, é ameaçada por nossatendêncianatural de nos desviarmosde seu objeto - Cristo - precisamos doevangelho afixado diante de nós não apenas no começo, mas durante todaa vida cristã. O evangelho é para os cristãos também. Necessitamos serevangelizados todas assemanas. Não é por seguirmos o exemplo de Cristo,mas pelo fato de sermos inseridos em Cristo, vestidos com Cristo e unidosa Cristo - enquanto o Espírito criaa fé pormeio do evangelho - que somosnãoapenas justificados, massantificados também.

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Por que a lei faz sentido e o evangelho parece estranhoO argumento de Paulo em Romanos 1-3 é que os pagãos são culpadosdiante de Deus com base na lei, visto que ela está escrita em suas consciências. Aexistência eos atributos de Deus "claramente se reconhecem, desdeo princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foramcriadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis" (Rm 1.20). Criado àimagem de Deus, emperfeita santidade e retidão, Adão devia conduzir todaacriação ao descanso do sábado eterno. Assim como Deus completou suaobra e, em seguida, entrou em sua entronização sobre acriação, era paraseu auxiliar seguir em sua formação como chefe representativo da humanidade. Dotados de glória, beleza, bondade ejustiça, estávamos devidamenteequipados para a tarefa que estava diante de nós. Então, Adão abusou desua liberdade, conduziu asi próprio, sua esposa esua posteridade - de fato,toda acriação - para debaixo da maldição da lei de Deus.

Paulo diz que este senso moral - a consciência da existência de Deuse a nossa responsabilidade perante a sua lei - é inato em cada um de nós(Rm 1.32; 2.12-16). Eu me deparei com uma entrevista do príncipe Hassan bin Talai, da Jordânia (irmão do falecido rei Hussein), que está tentando iniciar as conversações entre as várias religiões no Oriente Médio."Continuo dizendo que, se todos nós observássemos os Dez Mandamentos, não teríamos sucumbido atanta dor em primeiro lugar", diz o príncipe Hassan. "Independente de sera Lei Áurea, o Caminho Retoou os DezMandamentos, reconhecemos que não temos necessidade de reinventar ocódigo de conduta."20

Existe um monte de consenso sobre a lei: "Tudo o que quiseres que oshomens te façam, faz tu do mesmo modo para com eles" não éum preceitoúnico do cristianismo. Eaqui deveríamos estar ansiosos para encontrar harmonia em nossa conduta emummundo repleto de conflitos. Em uma história recente no Los Angeles Times, o escritor Steve Padilla assinalou quemesmo obem conhecido ateu Sam Harris certa vezescreveu que "há claramente uma dimensão sagrada para nossa existência, e chegar aum acordocom ela poderia muito bem ser o maior objetivo da vida humana". Harrisacrescentou que está "interessado na experiência espiritual. (...) Existe talcoisa como uma experiência significativa, profundamente transformadora,que pode ser muito duramente alcançada. Você pode ter de entrar em umacaverna por um mês ou por um ano para tercertas experiências. Toda a literatura contemplativa é algo que leio e levo muito asério. O problema é quetambém é cheia de superstição e dogma religioso, [então] você tem de ser

20 Cornelis Hulsman com o príncipe Hassan, "The Peacebuilding Prince", ChrístianityToday, fevereiro de 2008, pág. 64.

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um consumidor seletivo da literatura".21 Referindo-se aos colegas cristãosnas ciências, o biólogo e ateu zeloso Richard Dawkins se diz "perplexo,não tanto pela crença deles em um legislador cósmico de algum tipo quantopela crença deles nos detalhes da religião cristã: aressurreição, o perdãodos pecados e tudo".22 Ofilósofo iluminista Immanuel Kant confessou que,quanto mais velho ficava, mais convencido estava do "céu estrelado acima e a lei moral dentro". Por isso, a "religião pura" (moral) é universal eútil, enquanto as "fés eclesiásticas" são supersticiosas e divisoras. Trate areligião como terapia privada para melhorar nossas vidas e nos tornar pessoas melhores e ela terá seu importante lugar; trate-a como verdade pública- boas-novas para todo o mundo - e ela provocará enorme ofensa. Iluminação moral eespiritual éuma coisa; redenção por uma operação unilateralde resgate divino é outra.

Ainda assim, como umassassino foge da cena do crime, fugimos da vozque clama "Adão, onde estás?". Nós nos cobrimos como o fizeram Adão eEva, com folhas de figueira. Gostamos de moralidade eespiritualidade, masnão de dogmas sobre pecado, julgamento, expiação e graça. Conquantoestejamos no controle (ou, pelo menos, pensemos que estamos), usando "adimensão do sagrado" para nossos próprios fins, até mesmo umateu podemanifestar algum interesse. Entretanto, no momento em que somos colocados de volta na posição de comparecermos perante Deus, em seu tribunal,nossa fábrica de distorcer os fatos opera em plena capacidade. "A ira deDeus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens quedetêm a verdade pela injustiça" (Rm 1.18).

Embora Deus tenha tomado o povo judeu sob seu cuidado especial e lhedado uma versão escrita desta lei, ele também demonstrou que era transgressor, como orestante de nós, descendentes de Adão (Rm 5). "Eles transgrediram aaliança, como Adão" (Os 6.7). Após aQueda, ninguém pode sersalvo por sua própria justiça. Pelo contrário, a lei acusa toda humanidade,tanto gentios quanto os judeus, "para que se cale toda boca, etodo omundoseja culpável perante Deus, visto que ninguém será justificado diante delepor obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento dopecado" (Rm 3.19-20). Assim como um espelho expõe nossos rostos sujos,mas não os pode limpar, a lei revela avontade moral de Deus, mas não dánenhum poder para cumpri-la.

Somente quando outra palavra foi falada, Adão e Eva foram detidos emseus caminhos e surpreendidos pelas boas-novas da vinda deum redentor.Despojados de suas folhas de figo, eles foram vestidos por Deus com

21 Padilla, Steve. "Rabbi, Atheist Debate with Passion, Humor", Los AngelesTimes, 29dedezembro de 2007, pág. B2.-Dawkins, Richard. The GodDelusion. Nova York: Houghton Mifflin, 2006, pág. 99.

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peles deanimais (Gn 3.15-16,20-21), prefigurando o Cordeiro de Deus (Jo1.29). E para estas boas-novas que Paulo se volta nos versículos seguintes:"Agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei epelos profetas; justiça deDeus mediante a féemJesus Cristo, para todos [esobre todos] os que crêem" (Rm 3.21-22). Portanto, a lei revela a retidãoque é Deus, pela qual somos julgados (e, por conseguinte, condenados); oevangelho revela a justiça que Deus livremente dáaos pecadores pormeioda fé emJesusCristo. Nospróximos trêscapítulos, Paulorevela a boa-novasurpreendente de queDeus justifica o ímpio. Asalvação, do começo ao fim,é sua obra por nós, e não uma questão de nós nos salvarmos ou mesmo decooperarmos com ele. Éuma operação de resgate divino. Até mesmo nossasantificação é baseada naobra deDeus denos justificar e nos unir, pelo seuEspírito, à morte e à vida de Cristo (Rm 6).

Então, há realmente apenas duasreligiões no mundo: a religião do esforço humano para ascendera Deus por meio de obras, sentimentos, atitudese experiências piedosas, e a religião das boas-novas da descida misericordiosa de Deus até nós em seu Filho. As religiões, filosofias, ideologias eespiritualidades do mundo diferem apenas nos detalhes. Independente deestarmos falando do Dalai Lama ou do Dr. Phil, do Islã ou da Oprah, deliberais ou de conservadores, a convicção mais intuitiva é a de que somosboas pessoas que precisam de bons conselhos, não pecadores impotentesque precisam das boas-novas.

A pregação correta da leiA lei é boa, mas eu não sou, Paulo nos relembra (Rm 7.7-24). Ela é o padrão permanente da perfeita santidade de Deus e a revelação de sua santavontade para nossas vidas. Primeiramente, ela vem para nos matar - nãoparanosmelhorar, masparaacabar com nossa vidaem Adão, expondo-nospelo que realmente somos. "O mandamento que me fora para vida, verifiquei que este mesmo se me tornou para morte" (Rm 7.10, cf. 2Co 3). Emsegundolugar, a lei guia aqueles que sãojustificados à parte dela. Uma vezque já não pode condenar o crente e, na verdade, deve reconhecê-lo comojusto por causa de sua justificação em Cristo, a lei é, agora, uma amiga.Como Paulo diz em Romanos 7, agora ele ama a lei, mesmo quando lhedesobedece. Os não cristãos não se reconhecem na luta de Paulo. Preocupados com os maus hábitos que podem levar à obesidade, ao alcoolismo,aos relacionamentos destruídos, à perdado emprego ou à decepçãodevidoao fracasso em alcançar seus objetivos pessoais, os incrédulos, contudo,não lutam com o paradoxodo amor deles por Deus e a vontade moral dele,de um lado, e os pecados deles em andamento, do outro. Discussões sobresalvar a família ou salvar a Terra de uma catástrofe ambiental são ouvidas

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pelos não cristãos. Mas discursos eações dos quais a igreja testemunha - ojulgamento de Deus eajustificação dos pecadores por meio de Cristo - sãoestranhos aos ouvidos deles.

Assim, a lei funciona, antes de tudo, para me matar, acabar com minhaautocriação - todas as tentativas de escrever o filme de minha vida e reinventar meu caráter. O evangelho me insere emum novo enredo: "Vivo emCristo". Eagora a lei me dá sentido concreto quanto ao que significa viveressa vida em amor para com meus irmãos, bem como para com vizinhos ecolegas de trabalho. Alei não pode santificar e não pode justificar. Emborajánão possa me condenar, a lei também não pode produzir em mim odesejode guardá-la; ela sópode me dizer o que Deus exige.

Mesmo como cristão, minha fé vai, na verdade, ser enfraquecida se euassumir que já conheço o evangelho e agora só preciso de uma dieta constante de instruções. Vou, naturalmente, recair em meu impulso moralista econcluir que ou estou completamente rendido ou que não posso ser bem-sucedido e é melhor parar de tentar. Quando minha consciência me leva aodesespero, aexortação para me esforçar com mais afinco somente aprofunda a minha autorretidão ou minha depressão espiritual. Emoutras palavras,elame afasta de minha posição em Cristo e, aos poucos, me traz de voltaàquele lugar onde estou centrado em mim. Para aconsciência encontrar pazcom Deus, não pode haver nenhuma ajuda da lei; na verdade, é a lei quedesperta minha consciência para minha total pecaminosidade.

Logo, é fundamental ter em mente que a lei é inata e intuitiva, enquantoo evangelho é uma proclamação externa. Omandamento para amar não ésurpreendente, desorientador ou estranho; é familiar para nós. Sabemos,por natureza, oque devemos fazer. Da mesma maneira que os "gregos", que"procuram sabedoria", como Paulo explicou, a maioria de nossos colegasamericanos não está à procura desalvação dojulgamento iminente deDeus,mas de ajuda para seus dilemas morais. Ninguém ficará ofendido se lhe dissermos que é uma boa pessoa e que poderia ser um pouco melhor. Aofensavem quando dizemos às pessoas que elas (e nós) são ímpias que não podemimpressionar a Deus ou escapar de seu tribunal. Até que nossa pregação dalei tenha exposto nossos corações easantidade de Deus aesse nível profundo, nossos ouvintes jamais irãopara Cristo em buscade segurança, mesmoque venhamaté nós para conselho.

Como as boas-novas sobre a decisão de Deus de salvar os seres humanosdepois que pecaram e, portanto, não tinham razões para esperar qualquercoisa a não ser o julgamento, o evangelho não está apenas fora de nossaconsciência, mas contraria o espírito de nossa maneira comum de pensar.Gostamos de separar o certo do errado, mesmo que nunca tenhamos lido aBíblia. O que Paulo chama de "ajustiça decorrente dalei", pelas obras (emcontraste com "a justiça decorrente da fé" em Cristo), é natural para nós

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(Rm 10.5-6). Até mesmo pessoas que são cristãs há bastante tempo gravitam em torno de fazer algo para se salvar em vez de receber asalvação quejá foi cumprida poroutra pessoa.

Nosso padrão éa lei, e não oevangelho, imperativos (coisas para fazerou sentir) no lugar de indicativos (coisas para acreditar). É a lei, e não oevangelho, que é um "bem, é claro, mas...". Todo mundo assume a lei. É oevangelho, uma notícia surpreendente, que nenhum de nós tinha o direitode esperar. Como tal, a notícia tem de ser contada - novamente, de novo esempre. Eas únicas pessoas que podem contá-la são aquelas que ouviram ahistória, cantaram-na e podem anunciá-la aosoutros.

Para aqueles que pensavam em si mesmos como pessoas muito boas,Jesus ergueu oespelho do amor verdadeiro aDeus e ao próximo, deixandoseus ouvintes rejeitarem a ele ou à sua própria justiça para serem vestidoscom a obediência de Cristo. Paulo, o fariseu, percebeu esta bifurcação naestrada e, apesar de sua obediência externa ao código mosaico ser impecável pelos padrões humanos, disse que, então, considerava como "refugo"todo este acúmulo de realizações "para ganhar a Cristo e ser achado nele,não tendo uma justiça própria, que procede de lei, senão a que é mediante afé em Cristo, ajustiça que procede de Deus, baseada na fé" (Fp 3.8-9). Eletomou o seulugar com o publicano naparábola deJesus, em vezde com ofariseu, e foi para casa justificado (Lc 18.13-14).

Longe de ser um Moisés mais amável e gentil, Jesus expôs o impulsointerior da lei. As pessoas poderiam talvez deixar de dormir com o cônjuge do outro, mas tornar o desejo equivalente ao adultério foi, como secostuma dizer, "o fim da picada". Mais uma vez, somos lembrados doargumento de Jesus de que, quando João Batista veio com a gravidade dalei edo julgamento, os líderes religiosos não lamentaram sua condição deperdidos e, quando o Filho do Homem veio com a alegria do evangelho,não dançaram (Mt 11.17).

Em minha experiência, este é o lugar onde vários cristãos estão vivendo hoje: não se sentindo muito ameaçados pela sentença de morte da lei,também não estão regularmente ouvindo a notícia libertadora das boas-novas do evangelho. Nossa intuição nos diz que, se apenas ouvirmos apregação mais prática (isto é, exortações tocantes para seguir a Jesus),vamos melhorar. Quando essa se torna a principal dieta, no entanto, descobrimos que não estamos melhorando. Nem choramos nem dançamos.Mas nos leve para dentro do átrio de um Deus santo, onde somos completamente desnudados, e nos fale sobre o que Deus fez em Cristo para nossalvar; conte-nos sobre os maravilhosos indicativos do evangelho - dasintervenções surpreendentes de salvação de Deus no palco da História,apesar da rebelião humana - e a vela tremulante da fé se inflamará, dandoluz aos outros.

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Alei guia, mas não dá. Para todos os que procuram seragradável aDeuspor meio da obediência, do amor, da santidade edo serviço, ochamado paraa obediência só condena. A lei nos mostrao que não fizemos e, quanto maisa ouvimos corretamente, mais realmente perdemos nossa autoconfiançamoral e nos apegamos a Cristo. Ela para nossa máquina interior que distorce os fatos, criando uma falsa visão de Deus e de nós mesmos.

Nesta pregação dalei, opecado é reconhecido como um estado que produz certos atos, e não o contrário. Oobjetivo detalpregação é nos conduzirao tipo de confissão que encontramos no Catecismo de Heidelberg:

Mesmo que minha consciência me acuse de ter pecadogravemente contra todos osmandamentos deDeus, denãoter guardado nenhum deles e de ser ainda inclinado a todomal, todavia Deus me dá, sem nenhum mérito meu, porpura graça, a perfeita satisfação, ajustiça e a santidade deCristo. Deus me trata como se eu nunca tivesse cometido pecado algum oujamais tivesse sido pecador e comose, pessoalmente, tivesse cumprido toda a obediência queCristo cumpriu por mim.23

Apregação apropriada dalei vai nos levar ao desespero denós mesmos,mas apenas para que possamos, finalmente, olhar para fora de nós, paraCristo.

Paulo contrapõe "ajustiça decorrente da fé" à"justiça decorrente da lei".Quando se trata da forma como a pessoa é justificada - aceita como justadiante deDeus - nada poderia sermais contrário do que a leie o evangelho.A lei não oferece ajuda às almas desobedientes, mas garante certa e justacondenação. Ela não veio para encorajar e edificar ou como uma estratégiapara a vitória, do tipo "mantenha a cabeça erguida", mas para matar - paraacabar com o domínio do pecado em sua essência, ou seja, o orgulho doautogoverno e daautoconfiança. Uma vez desiludida dequalquer esperança de bons conselhos e aperfeiçoamento moral, a pessoa, então, corre paraCristo, para obter segurança.

Fico sempre irritado com meu check-up médico anual, principalmenteporque a enfermeira me pesa e, a cada vez, o resultado é cerca de 4 kg amais do que quando peso a mim mesmo. Em casa, posso mexer um poucona balança, mas a enfermeira, no consultório do médico, não deixa nemmesmo eu esvaziar meus bolsos. Quando ela me pesa, o resultado vai para

23 The Heidelberg Catechism, Lord's Day 23, Pergunta 60, em Psalter Hymnal: DoctrinalStandards and Liturgy of the Christian Reformed Church. Grand Rapids: CRC Board ofPublications, 1976, pág. 30.

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o gráfico. Ofereço uma racionalização; ela sorri, como sejá tivesse ouvidoisso milhares de vezes antes, mas não faz ajustes em seu cálculo.

Somos brilhantes na racionalização e namanipulação de evidências. Aspessoas "detêm a verdade" (Rm 1.18). Somos "doutores da distorção dosfatos". Ao contrário do conselho piedoso de outras pessoas ou dos padrõesque estabelecemos para nós mesmos, a lei de Deus éa balança fiel que nãopodemos adulterar, pesando-nos em comparação com a santidade de Deus,não com a do vizinho do lado. Mas quantas vezes somos pesados na balança de Deus, nus em sua presença e desprovidos de desculpas?

O evangelho do amor

Partimos da caricatura do personagem de Dana Carvey, do Saturday NightLive, Church Lady, com seu ar de superioridade moral e palavras de desaprovação, para a caricatura sentimental e terapêutica de Al Franken, deStuart Smalley, no mesmo programa. Cada monólogo de "psicobaboseira"é encerrado com Smalley fazendo o público repetir depois dele "eu soubom o suficiente, eu sou inteligente o suficiente e ora, dane-se, as pessoasgostam de mim". Muitas pessoas pensam que isso representa uma mudançarefrescante do legalismo para uma forma mais positiva de espiritualidade.Mas não é esta apenas outra versão da religião no imperativo, uma versãodiluída da lei? E se o mundo ridiculariza esse moralismo terapêutico, aquem estamos tentando impressionar?

Durante uma viagem recente, enquanto passava pelos canais de televisãoà procura de noticiários, aconteceu de parar no programa de Joyce Meyer,uma evangelista da prosperidade popular. Bem como Joel Osteen, Meyerreflete a antipatia dos Boomers por sua educação rigorosa. Após insultar areligião de regras de seu passado, Meyer disse: "Finalmente, percebi que oevangelho nãotemnada a vercom regras, tema vercomamara Deus e unsaos outros. Então, o que você fez esta semana para ajudar alguém que vocêconhece?". Já encontramos um tema semelhante em Joel Osteen: o cristianismo não é um monte de regras; sua essência é amar a Deus e o próximo.Como vimos, esse sentimento é expresso por todo o espectro, do conservador ao liberal, da tradicional à megaigreja e desta à Igreja Emergente.

Não muito tempo atrás, também me deparei com um trecho da obra deJoão Calvino na qual ele observou que muitos de seus amigos católico-ro-manos estavam também reagindo contra as regras e regulamentos de suajuventude, dizendo que só precisamos amar uns aos outros. "Como se istofosse fácilV\ exclama Calvino.

Como Meyer, o que os contemporâneos de Calvino não perceberam éque o amor é, na verdade, o resumo da lei. Os mandamentos de Deus estipulam o que o amor a Deus e ao próximo significa. Na Bíblia, a lei sim-

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plesmente expõe o que significa amar a Deus e ao próximo. Muito antesde Jesus resumir a lei desta forma (Mt 22.39), ela foi entregue pela mão deMoisés (Lv 19.18,34) e Paulo reiterou a questão (Rm 13.8-10). Posso muito bem sercapaz de meconter para não roubar a mulher e o carro de meuvizinho, mas douao meu vizinho o quelhedevo? Porventura, já vendi tudoo que tenho e dei aos pobres? Foi assim que Jesus definiu a lei e constrangeu aspessoas (como ojovem rico) a perceberem que elas não guardavamtodas estas coisas desde as suas juventudes (Mt 19.20).

Sempre fico surpreso ao ouvir as pessoas sugerirem que o Deus do Antigo Testamento (e, talvez, a educação fundamentalista delas) é mais orientado pela lei e julgador, enquanto o Deus do Novo Testamento é amável etolerante. Ficoaindamaissurpreso quando elasrecorrem a Jesusno Sermãoda Montanha. Não só dormir com a mulher de teu próximo, mas cobiçá-laemseucoração; não apenas não matar alguém, mas odiar seuvizinho; nãosó roubar, mas privar seu vizinho de seus recursos materiais: isso é o queJesus diz que a lei verdadeiramente exige de nós. Por isso, dificilmentese pode dizer que seja notícia boa quando as pessoas informam que Deusexigia um monte de regras, mas, agora, nos diz apenas para amá-lo e unsaos outros.

Definido desta forma, amar a Deus e o próximo é muito mais difícil doque seguir algumas regras. Quando Jesus define a lei do amor - até mesmomais que isso, incorpora-a em sua própria pessoa e ações - euestou perdido. Antes de cantar "Que amigo temos em Jesus", me encontrojunto comPedro, dizendo: "Senhor, retira-te de mim,porque sou pecador" (Lc 5.8). EPedro nãosentiu isso apenas umavez, quando conheceu Jesus. Suajornadacom o Mestre oscilou de pontos altos, como sua confissão de Jesus comoo Cristo, ao ponto mais baixo de negar Cristo por três vezes, e de volta aoponto mais alto, sendo martirizado por seu testemunho de seu Salvador.Como a de Pedro, nossa vida cristã é uma montanha-russa de fidelidadee infidelidade. Visto que sempre voltamos ao triunfalismo autoconfiante(lembre-se do protesto de Pedro, "eu nunca vounegá-lo!", um pouco antesde fazê-lo), precisamos ouvir o veredicto de Deus sobre nossa justiça pormeio da lei e sua garantia de perdão no evangelho. O exemplo de Jesusnãoé uma boa notícia, contudo um fardo terrível, a menos que ele seja, antes detudo,o que me salvade minhaincapacidade de segui-lo.

Aqueles que pensam que podem se enrolar nas folhas de figueira dassuas intenções e ações de amora Deus e ao próximo terãouma grande surpresa. "Apenas ame a Deus e as pessoas" não é o evangelho; é justamenteessa santa exigência da lei que tristemente falhamos em cumprir. No pontoem que grande parte da pregação de hoje (ilustrada pelo comentário deJoyce Meyer, acima) oferece uma falsa distinção entre lei e amor, a distinção bíblica é entre lei e evangelho. Nosso amor a Deus e ao próximo é a

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essência da lei; o amor de Deus para conosco em Jesus Cristo é a essênciado evangelho. "Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amadoa Deus, mas em que ele nos amou e enviou o seu Filho como propiciaçãopelos nossos pecados" (Uo 4.10).

Mandamentos, não sugestõesO que todosnós precisamos hojeé de um novo encontro com a lei de Deusem sua força total. Quando os israelitas ouviram Deus comunicar sua lei noMonte Sinai, até Moisés tremia de medo (Hb 12.21). O povo estava aterrorizado e disse aMoisés: "Fala-nos tu, e teouviremos; porém não fale Deusconosco, para que não morramos" (Êx 20.19). Por que esta reação? É-nosdito que eles "já não suportavam o que lhes era ordenado" (Hb 12.20).

A lei de Deus não é uma lista de sugestões. Nem tampouco a principalrazão para ela é nossa felicidade, embora tenhamos sido criados à imagemde Deus e, portanto, projetados para encontrar nossa profunda satisfaçãoem glorificar e desfrutar a Deus. A lei é uma expressão da própria glóriade Deus - seu caráter moral. Além disso, o pacto da lei jurado por Israelno Monte Sinai não foi "vamos tentar realmente ter o melhor de nossa vidaagora", e sim"tudo o que falou faremos". Para confirmar ojuramento deles,Moisés aspergiu sangue sobre o povo, confirmando visualmente o compromisso deles com o cumprimento pessoal e perfeito dos termos do pacto.Não é de admirar que os israelitas, aterrorizados pela voz de comando deDeus, pedissem a Moisés para ser o mediador deles. No entanto, quandoMoisés estava ausente da congregação, recebendo a lei de Deus namontanha, o povo decidiu construir uma representação de Deus mais agradável- o bezerro de ouro - o qual, em vezde inspirar temor e medo, encorajava-osauma forma mais leve de culto: "O povo assentou-se para comer e bebere levantou-se para divertir-se" (Êx 32.6).

Seavozda lei de Deus não nos descentralizar, nos desequilibrar ejulgarnossos melhores esforços comocarentes da glória de Deus, nunca correremos para Cristo como nosso Mediador, superior a Moisés. Em vez disso,vamos inventar nossas próprias representações de Deus - nossos bezerrosde ouro atuais - sugestões gentis para avida e conselhos úteis que nos embalam a pensar que finalmente temos um Deus amigo que não provoca ogrito "ó Deus, sê propício a mim, pecador!" (Lc 18.13).

Não háequilíbrio entre a lei e o evangelho. A leinosdiz o quedevemosfazer; o evangelho nos diz o que Deus fez por nós. Estas são duas palavrasdistintas; cada uma deve ser ouvida em seus próprios termos, com toda aintensidade de sua sentença e absolvição. Ao justificar os pecadores, Deusnão abranda sua retidão que é revelada em sua lei, mas imputa a justiçade Cristo a cada crente. Desta forma, a justiça de Deus não é sacrificada

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por seu amor; mas sim seu amor e sua justiça são mutuamente satisfeitos.Somos salvos pelas obras - na verdade, por perfeito amor e obediência.No entanto,a obraé de Cristo e não nossa, a qual serve de base para nossaconfiança: "Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão emCristo Jesus" (Rm 8.1). A boa notícia é: "Agora, sem lei, se manifestou ajustiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas; justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos [e sobre todos] os que crêem"; vistoque os pecadores são "justificados gratuitamente, por sua graça, mediantea redenção que há em Cristo Jesus, a quem Deus propôs, no seu sangue,como propiciação, mediante a fé" (Rm 3.21-25).

Quando questões secundárias se tornam primáriasPor que Jesus veio? Qual era sua missão? O próprio Jesus responde: "Talcomo o Filho do Homem, que nãoveio para ser servido, mas para servir edar a sua vida em resgate por muitos" (Mt 20.28). Quando foi repreendidopelos seus discípulos por atrapalhar o plano deles falando sobre cruz, Jesusdisse: "Precisamente com estepropósito vim para esta hora" (Jo 12.27; grifo do autor). Quando Filipe pediu a Jesus para mostrar-lhes o caminho parao Pai, Jesus disse que ele é o Caminho (Jo 14.8-14).

Da mesma forma, Paulo disse aos coríntios que não só estava, única eexclusivamente, determinado a pregar somente Cristo, mas "Cristo crucificado", embora fosse "escândalo para osjudeus, loucura para os gentios",uma vez que é a única boa notícia capaz de salvar ambos (ICo 1.23; vejaICo 1.18-2.1-2). Paulo sabia que os pregadores até usariam o nome deJesus, porém, muitas vezes, ele foi usado como algo ou alguém que não osacrifício vicário para os pecadores (2Co 11.4-6).

Os fariseus questionaram Jesus sobre casamento e divórcio, adultérioe impostos, e o criticaram por colher grãos no sábado e por comer e bebercom publicanos e pecadores (Mt 11.19). Focados em prenunciar o reinode Deus, observando estritamente as regras dos mais velhos - e tentandopegar Jesus em armadilhas sobre questões jurídicas - eles se desviaram daverdadeira missão do Messias. Olhando para si mesmos quando deveriamestar olhando para Cristo como "o Cordeiro de Deus, que tira o pecado domundo" (Jo 1.29), se desviaram. O mesmo ocorreu com os próprios discípulos, quemudavam de assunto quando Jesus falava da cruz, enquanto elesse aproximavam de Jerusalém. Os discípulos estavam pensando no dia daentrada nacidade,com o julgamento final e a consumação do reinoem todasua glória. Jesus sabia, entretanto, que o único caminho para a glória erapelo caminho da cruz.

Jesuscontrasta a falsa piedadedo fariseu com a fé verdadeirae o arrependimento do cidadão de seu reino em sua famosa parábola em Lucas 18:

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Dois homens subiram ao templo com o propósito de orar:um, fariseu, e o outro, publicano. O fariseu, posto em pé,orava de si para simesmo, desta forma: ÓDeus, graças tedou porque não sou comoos demais homens, roubadores,injustos e adúlteros, nem ainda como este publicano; jejuoduas vezes porsemana e dou o dízimo de tudo quanto ganho. O publicano, estando em pé, longe, não ousava nemainda levantar os olhos ao céu, mas batiano peito, dizendo: O Deus, sê propício a mim, pecador! Digo-vos queestedesceu justificado para suacasa, e nãoaquele; porquetodoo quese exalta seráhumilhado; mas o quese humilhaserá exaltado (Lc 18.10-14).

Jesus disse aos fariseus: "Vós sois os que vosjustificais a vós mesmosdiante dos homens, mas Deus conhece o vosso coração; pois aquilo que éelevado entre homens é abominação diante de Deus" (Lc 16.15). EnquantoJesus basicamente parecia ignorar os saduceus, uma vez que eles provavelmente viam-se como irrelevantes, ele advertiu repetidamente contra "ofermento dos fariseus", queé "a hipocrisia" (Lc 12.1).

Na parábola que Jesus conta, o fariseu até mesmo ora: "Ó Deus, graçaste dou porque não sou como (...) este publicano". A única coisa pior doque a autojustiça dele é que elefinge dara Deus um pouco de crédito porisso. Todos nós já assistimos a alguma cerimônia de premiação em que osbeneficiários reconhecem as pessoas semas quais tal sucesso nãoteria sidopossível. Isso é completamente diferente, entretanto, de ser o beneficiárioda herança dealguém que, noexato momento da elaboração do testamento,foi tratado como um inimigo pelo herdeiro. Assim, todas as perguntas queos líderes religiosos faziam para Jesus eram questões legais: o que fazer nasituação x ouyl Qual é a única coisa que preciso fazer para obter a vidaeterna - alémde todosos mandamentos da lei,que tenho guardado?

Jesus força estes questionadores (como o jovem rico) a reconhecer quenãotêmrealmente guardado a lei. Damesma forma, Paulo desafiou os gaiatas: "Todos quantos, pois, são das obras da lei estão debaixo de maldição;porque está escrito: Maldito todo aquele que não permanece em todas ascoisas escritas no livro da lei, para praticá-las. E é evidente que, pela lei,ninguém é justificado diante de Deus, porque o justo viverá pela fé (Gl3.10-11; grifo do autor). Estes são os termos. Não há avaliação em curva;não há férias por bom comportamento ou boas intenções. Isso deveria noscolocar de joelhos, confessando nossa impotência absoluta, mas, em vezdisso, muitas vezes, desperta nossa autojustiça. Neste último caso, evitamos a nobre obra da lei de nos conduzir para fora de nós mesmos a Cristo.Os bons princípios ordenados por Deus, na verdade, se tornam um desvio

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em vez de um mestre para nos conduzir a Cristo. As boas-novas, Pauloacrescenta, é que "Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se elepróprio maldição em nosso lugar" (Gl 3.13). Os judeus, diz Paulo, tropeçam em Cristo. Ele é a rocha de escândalo que está no caminho de nossoativismo "transformacional".

Os gentios amam a sabedoria, então lhes mostre um Jesus que é maisinteligente em resolver os enigmas da vida diária e a igreja vai ter umamultidão de adeptos. Paulo diz que seus contemporâneos judeus amamsinais e prodígios. Então diga às pessoas que Jesus pode ajudá-las a teruma vida melhoragora, ou trazer o reino da glória, ou expulsar os romanos e provar a sua integridade perante os pagãos, e Jesus será laureadocom louvor. Dê-lhes alguma sabedoria moral de sua própria tradição defé que possa ajudá-las a ser melhores pais e cônjuges, e talvez ouçam- contanto que você não forneça sugestões e ordens que Deus usará comobase para julgar no último dia. Mas proclame Cristo como o Servo Sofredor, que morreu e ressuscitou, e todo mundo se pergunta quem mudouo assunto.

Aigreja existe para mudar o assunto denós e denossos atos para Deus eseus atosde salvação, e de nossas várias missões de salvaro mundo paraamissão deCristo, que já realizou a redenção. Ele nos envia aomundo, isso écerto, mas não para salvá-lo. Ao contrário, elenos envia aomundo para dartestemunho de Cristo como único Salvador, assim como para amar e servirnosso próximo em nossa vocação secular. Omal está em nosso interior, nãofora de nós; a salvação é que vem de fora de nós mesmos.

Nada que a igreja faz amplia, completa ou cumpre a total e suficienteobrade Cristo, feita umavez por todas, de viver, morrere ressuscitar pelospecadores. Assim, chega de nós. Somos os pecadores que elesalva, não osredentores queele inspira. Esse é o conteúdo de nosso testemunho, a razãopela qual somos arautos das boas-novas em vez de meros fornecedores debons conselhos. E mesmo em termos de impacto evangelístico, estou confiante deque esta orientação é mais eficaz com os não cristãos. Eles podemnão gostar de nossa mensagem de qualquer maneira, mas, pelo menos, podemficaraliviados ao verem que paramos de nos colocarcomo o caminho,a verdade e a vida.

Se a mensagem que a igreja proclama faz sentido sem a conversão; seela não ofende os crentes de longo tempo de vez em quando, de modo quetambém precisem morrer mais para si mesmos e viver mais para Cristo, então isso não é o evangelho. Quando se fala de Cristo, muitascoisas podemacontecer, nenhuma delas, necessariamente, terá um impacto duradouro.Quando Cristoé proclamado em seuofíciode Salvador, a igrejase tornaumteatro de morte e ressurreição.

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Perdendo o significado: transformando a Bíblia em Manualde instruções para a vidaEpossível serumfundamentalista crente naBíblia e não entender que Cristo é a totalidade, assim como a substância de suamensagem?

Osfariseus eram osguardiões daEscritura, tão preocupados emsegui-larigorosamente que até mesmo planejaram diversas restrições para proteger seus mandamentos. Se a lei mandava que se descansasse dos trabalhosnormais no sábado, os líderes religiosos insistiam que uma pessoa pobredeixasse de colher grãos no sábado, mesmo para a sobrevivência. Na verdade, logo depois de Jesus ser repreendido pelos fariseus por deixar seusdiscípulos fazerem exatamente isso, ele lhes disse: "Examinais as Escrituras, porque julgais ternelas a vida eterna, e são elas mesmas que testificamde mim. Contudo, não quereis vir a mim para terdes vida" (Jo 5.39-40).As Escrituras que ele tinha em mente era o que chamamos deAntigo Testamento. Eles eram zelosamente comprometidos com a Bíblia, mas não acompreenderam.

Depois de sua ressurreição, Jesus encontrou alguns de seus discípulosao longo da estrada de Emaús que se sentiam deprimidos e os animou, fazendo-os recordar as Escrituras, dizendo: "Porventura, não convinha queo Cristo padecesse e entrasse na sua glória? E, começando por Moisés,discorrendo portodos os Profetas, expunha-lhes o que a seu respeito constavaem todas as Escrituras" (Lc 24.26-27). Não admira que seus coraçõesardessem dentro deles enquanto Jesus lhes expunha as Escrituras (v. 32).

A parte de Cristo,a Bíbliaé um livrofechado. Leia-acom ele no centro,e é a maior história já contada. A Bíblia é banalizada quando é reduzida aummanual de instruções devida. Qualé o sentido dos livros históricos, dossalmos, da literatura de sabedoria e dos profetas? De acordo com os apóstolos - e o próprio Jesus - a Bíblia é um drama sendo desenrolado, que temJesus Cristo como seu personagem central. Como as próprias narrativasdeixam bastante claro, os santos doAntigo Testamento não foram heróisdefé e obediência, mas pecadores que, apesar de suaprópria hesitação, receberamfé para se apegarem à promessa de Deus. De acordo com o apóstoloPaulo, o próprio Antigo Testamento proclamou esteevangelho da livre justificação em Cristo pormeioda fé somente: "Agora, sem lei, se manifestoua justiçade Deus testemunhada pela lei e pelos profetas" (Rm3.21).

Em sua primeira carta, o apóstolo Pedro recorda os crentes da "alegriaindizível e cheia de glória" resultante do fato de que estavam "obtendo ofim da vossa fé: a salvação da vossa alma". Então, ele acrescenta:

Foi a respeito desta salvação que os profetas indagaram einquiriram, os quais profetizaram acerca da graçaa vósoutros destinada, investigando, atentamente, qual a ocasião

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ou quais as circunstâncias oportunas, indicadaspelo Espírito de Cristo, que neles estava, ao dar de antemão testemunho sobre os sofrimentos referentes a Cristo e sobre as

glórias que os seguiriam.A eles foi revelado que, não parasi mesmos, mas para vós outros, ministravam as coisas que,agora, vos foram anunciadas por aqueles que, pelo EspíritoSanto enviado do céu, vos pregaram o evangelho, coisasessas que anjos anelam perscrutar (lPe 1.8-12).

Não é de surpreenderque, de acordo com Jesus, a Bíblia inteira é sobreele e que Pedrodiga que os anjos anseiam por entender as boas-novas quesão (ou deveriam ser) trazidas semanalmente por arautos, mas resolvemosque outro alguém ou algo deveria ser o foco de nossapregaçãoe adoraçãoesta semana? "Sim, mas já entendemos tudo isso", ouço alguém dizer. Entendemos? Não, a menos que, por natureza, sejamos justos em nós mesmose autoconfiantes, respondendo a lei com o juramento dos israelitas no Monte Sinai: "Tudo o que falou faremos".

É tão fácil perder Cristo por falta de atenção quanto é fácil perdê-lopor meio da negação. Continuamos esperando os liberais "perderem abola", quando as igrejas conservadoras são, com freqüência, igualmentepassíveis de se interessarem por alguém ou algo diferente do Cristo crucificado nesta semana. Uma mulher que estava com problemas em seucasamento disse a um pastor amigo meu que ela decidiu visitar a igrejadele porque a igreja dela estava passando por uma fase de "como ter umcasamento melhor". "O que eu mais preciso ouvir neste momento é quemDeus é e o que Cristo fez por mim, por mais que eu esteja agoniada. Meucasamento precisa de um monte de coisas, mas disso mais do que qualquer outra coisa." Ela estava certa.

Cristianismo sem Cristo não significa religião ou espiritualidade desprovida das palavras Jesus, Cristo, Senhor ou até mesmo Salvador. Significa que a forma como esses nomes e títulos são empregados os deslocaráde seu local específico no desdobramento histórico da trama da rebeliãohumana e do resgate divino, e de práticas como o Batismo e a Ceia. Jesuscomo treinador de vida, terapeuta, amigo, outro significativo, fundador dacivilização ocidental, messias político, exemplo de vida radical e outrasinúmeras imagenspodem nos distrair do escândaloe da loucura de "Cristoe este crucificado". Este evangelho pode até ser acrescentado ao final desermões. A questão, porém, é se estamos pregando a Palavra de Gênesisao Apocalipse como um testemunho de Cristo ou como um recurso paraescrever nossa própria história.

Em outras palavras, deixar-se levar em direção ao cristianismo semCristo pode acontecer por meio da adição, bem como da subtração. Em

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Screwtape Letters de C. S. Lewis, o diabo instrui seu comparsa, Cupim, amanter os cristãos distraídos de Cristo como o Redentor da ira de Deus. Emvez de, incomodamente, anunciar suapresença porataques diretos, Cupimdeveria tentar fazer as igrejas seinteressarem pelo cristianismo ealgo mais:o cristianismo e a guerra,o cristianismo e a pobreza, o cristianismo e a moralidade, e assim por diante.

Ouvi alguém dizendo: "Mas temos de tornar Jesus e o evangelho relevantes para as pessoas de nosso tempo e lugar". Porém que é dito sobreJesus Cristo se a relevância de suapessoa e obra nãopodem se garantir porconta própria? Claro, Cristo veio como "o Cordeiro de Deus, quetira o pecado do mundo" (Jo 1.29), mas elepode me ajudar a conseguir aquela promoção no trabalho ou aliviar meuestresse? Pode fazer meus filhos espertospara que fiquem longe das drogas? "Cristianismo e..." já pressupõe que ocristianismo, emsi, não é interessante. Mas como um adjetivo para outrascoisas (aeróbica cristã, valores cristãos, música cristã, etc), énada mais queuma marca valiosa. Tão contra o senso comum quanto possa parecer, estarfundamentado noevangelho deCristo alivia o estresse emlocais profundosque nem sequer sabíamos que tínhamosdentro de nós mesmos; tenho testemunhado inúmeros casos dejovens liberados do tédio induzido porvíciose padrões pecaminosos, tornando-se fascinados com a maravilhosa graçade Deus em seu Filho. Ninguém precisava lhes dizer que as drogas eramerradas; eles sabiam disso. E todas as palestras banais sobre autoestima echamados emotivos de acampamentos para "entregar tudo" só os deixarammais cínico. Apregação genuína da lei diagnostica a condição pecaminosa- a raiz, e não apenas o fruto - e o evangelho é sua solução radical.

Muitas vezes, na pregação popular de hoje, parece que o objetivo éseguir pela interpretação da passagem a fim de chegar à aplicação contemporânea que,normalmente, evidencia as fixações do próprio pregadore sua dieta recente de leitura ou filmes. Normalmente, aplicação iguala-se à lei - listas para fazer - em vez de usar a passagem para realmenteabsolver os pecadores de sua culpabilidade e reescrevê-los em seus novospapéis como aqueles que foram transferidos da autoridade da aliança deAdão para a de Cristo.

Claroque não estounegando, não mais do que C. S. Lewis, que os cristãos devem ter um interesse em questões urgentes da atualidade ou queexiste um lugar importantepara a aplicação do ensino bíblico à nossa condutano mundo. Mas, da mesma maneira que Lewis, estoupreocupado porque, quando a mensagem básica da igreja é menos sobre quem é Cristo e oqueele fez de umavezpor todas paranóse mais sobrequemsomos e o quetemosde fazer para tornara vidadele (e a nossa)relevante para a cultura, areligião que é feita "relevante" nãoé mais o cristianismo. Independente dequanto seu nome seja invocado, umareligião que se transforma em "o que

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faria Jesus?" não é a fé cristã. Não pensar que o "Cristo crucificado" é tãorelevante quanto"Cristo e valoresda família", ou "Cristo e a América", ou"Cristo e a fome no mundo", faz-nos assemelhar o evangelho à lei.

Quando as pessoas pedem uma pregação maisprática, ou uma mensagem mais relevante que Cristo e este crucificado, estão recuando para a leiem vez de ir para o evangelho.Outra maneirade dizer isso é que preferimosdar a Deus um papel de coadjuvanteno filme de nossa vida - a história danossa própria glória - em vez de sermos reformulados em seu drama daredençãoem progresso.Como Deus pode consertar meu casamento? Comoele pode me tornar um líder mais eficaz? Como posso superar o estresse egerir meu tempo e minhasfinanças melhor? Essas perguntasnão são ruins.Na verdade, as Escrituras trazem sabedoria sólida sobre essas questões.Mas não são as questões mais importantes, nem mesmo para os cristãos detoda uma vida.

A menosque Cristosejapublicamente exibido como crucificado - afixado diante de nós, semana após semana, na Palavra e nos Sacramentos - nós,como os gaiatas, deixamo-nos levar em direção à visão de que começamoscom Cristo e seu Espírito e, depois, acabamos lutando por nossa própriajustiça diante de Deus (Gl 3.1-3). Uma vez que até mesmo os cristãos permanecem, ao mesmo tempo, pecadores e justificados, sempre gravitamosde volta a nós mesmos: o que acontece dentro de nós, o que podemos medire controlar, o que podemos ver e sentir.

Onde quer que a Palavra de Deus enfoque nosso mundo, temos de testemunhar tanto de sua lei quanto de sua promessa. No entanto, os ministrosnão são instruídos para serem especialistas em economia, negócios, direitoe política.As pessoas podem obter conselhos financeiros, conjugais e paracriação de filhos muito melhores de parentes ou mesmo de vizinhos nãocristãos do que de seu pastor. Em vez disso, os ministros são instruídospara serem sábios nas Escrituras, que estão centradas no drama da redenção. Eles não são enviados em sua própria missão, mas são embaixadores earautos enviados por Deus a um mundo de pecado e morte. São chamadospara proclamar a mensagem mais importante e relevante, que não pode serouvida em qualquer outro lugar.

Uma vez liberados pelo evangelho da condenação da lei, nossos corações ficam cheios de gratidão. A lei não só nos leva a Cristo, ela diz à fécriada pelo evangelho o que fazer. No início de meu casamento, achavamuito importante comprar para minha esposa presentes de Natal e de aniversário que queria que ela tivesse. Assim, fiquei chateado quando ela estragou a surpresa ao me dizer o que realmente queria. "Por que não posso serespontâneo?", perguntei a ela. "Então, este é realmente um presente /wew?"Levou um tempo para eu perceber que estava, na verdade, sendo egoísta.Da mesma forma, a lei de Deus nos diz o que Deus aprova - com o que

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seu coração se deleita. Ele nãonos pede para sermosespontâneos, criativosou teimosos, mas para fazermos as coisas que ele considera como justas,santas, verdadeiras e boas.

Mesmo quando grande parte da pregação e da literatura cristã popularde atualidade centra-se em imperativos, são, muitas vezes, nossas sugestõesinteligentes (disfarçadas de"aplicações") emvez deimplicações clarasde uma determinada passagem. Por isso, precisamos de atenção renovadapara a Palavra de Deus não apenas para proclamarmos adequadamente erecebermos o evangelho, mas para dirigirmos nossa obediência aos seusmandamentos corretamente.

Nem mesmo esta pregação da lei como regra de gratidão cristã pode,contudo, ter a última palavra. Provavelmente, todos nós ouvimos sermõesque, depois de expor as expectativas de Deus ou o exemplo de alguém naBíblia, conclui: "Será queisso descreve você?". Se vocêmejulgar pela justiçaque Deus exige, não posso verdadeiramente responder sim nesses momentos. A boa notíciaé que, porcausadajustiça de Cristo ter sido creditadaa mim, elame descreve. Embora também esteja sendo renovado conformea semelhança de Cristo, esta santificação (ao contrário de justificação) permanece inacabada, parcial e, muitas vezes,ambígua para mim e para os outros. Issosignifica quevou terdedecidir issobaseado napromessa de Deus,e nãona minha experiência. Não me vejo como um vencedor,mas Deus dizque, apesar de nosso sofrimento e das lutas contínuas com o pecado quehabita em nós,"em todas estas coisas, porém, somos maisquevencedores,pormeio daquele que nos amou" (Rm 8.37). Sou um beneficiárioda vitóriade Cristo sobre a culpa e a tirania do pecado. Diga-me quem eu sou emCristo (o indicativo) e agora, de repente, tendo em conta "as misericórdiasde Deus", os mandamentos (imperativos) tornam-se meu sacrifício "agradável" (Rm 12.1). Por que deveria querer sujeitar-me, pormais tempo, aopadrão de pensamento deste mundo quando fui escrito no enredo de Deuscomo um co-herdeiro, com Cristo, do reino do céu (vs. 2-21)?

Quando o evangelho de Cristo comoSalvador é deixado de lado, já nãosomos constantemente convertidos - não só de nossa imoralidade, ganância e egoísmo, mas de nosso orgulho espiritual, hipocrisia e autoconfiança- para aquela fé em Cristo a qual unicamente pode produzir o fruto do Espírito, que abençoa a comunhão dos santos e parte em serviço amoroso aonosso próximo.

Atreva-se a ser um Daniel!

A Bíblia não é um manual de instruções para a vida diária. Naturalmente,ela revela a vontade moral de Deus para nossas vidas, mas é a história deredenção que é central.

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Quantas vezes ouvimoso AntigoTestamento serinterpretado como umacoleção dehistórias piedosas quepodemos usar para nossa vidadiária? EmGênesis, podemos terum sem-número de heróis para imitare de vilões parafugir. Nunca soube, aocrescer no evangelicalismo, queo AntigoTestamento era a respeito de Cristo. Pensava que era sobre os heróis da Bíblia, cujocaráter devia ser imitado. Seja fiel como Abraão, consagrado como Moisés,e assim por diante. A vidade Josué pode serexplorada à procura de princípios de liderança, e todos nós devemos nos atrever a ser um Daniel. Quaiseram as cinco pedras lisas que eu poderia encontrar em meu alforje paramatar os Golias de minha vida, assim como Davi fez?

A Bíblia não é parecida com as fábulas de Esopo: uma coleção de histórias curtas que terminam com um princípio moral. Abraão foi, de muitasmaneiras, um fracasso moral: dormiu com sua serva, quando Deus haviaprometido um herdeiro por meio de sua esposa, Sara; mentiu a um rei, dizendo-lhe que Sara era sua irmã, a fim de safar-se de uma situação difícil- e assim por diante. Nem mesmo sua disposição de sacrificar Isaque é umexemplo para nós, mas uma ocasião para Deus prenunciar Cristo como ocordeiro preso no mato para que Isaque - e o restante de nós- pudesse sairlivre. Jacó eraum trapaceiro, mas Deuso havia escolhido; apesar de ele tercontinuadoa cometer pecadosterríveis ao longo de suavida, Deus mantevesua promessa graciosa. Josué não é uma fonte para princípios de liderança,a menos que estejamos pensando em liderar uma campanha de destruiçãocontra nações idolatras, para estabelecer ajustiçanaterra santa de Deus.Noentanto, à luz da história da redenção, Josué e seu ministério apontam parafrente, para a pessoae para a obrade Cristo.

Davi pode serapresentado comoum exemplo heróico somente de modoambíguo. Seu papel principal naHistória é prenunciar seuFilho maior, queassumiu o trono eterno e o qual Deus prometeu incondicionalmente aosherdeiros de Davi. Embora descrito como "um homem segundo o coraçãode Deus", Davi cometeu adultério e encobriu seu crime enviando o maridoda vítima - um dos soldados leais de Davi - para morte certana batalha. Elenão foi autorizadoa construiro templo por causada violência do seu reinado, e sua família produziu um rei horrível após o outro. No entanto, Deusmanteve sua promessa unilateral de preservar um rei davídico no trono deJudá, para sempre. Deus, e não Davi, foi o herói; Cristo, como o Filho realde Davi, e não minha imitação de Davi, é o ponto essencial.

Inúmeros outros exemplos podem ser apresentados. Até mesmo a "Galeria dos Heróis da Fé", em Hebreus 11, é equivocada. O escritor sempremencionaque venceram pela fé em Cristo,não por suas obras. Na verdade,Deus superou os pecados deles para continuar seus propósitos redentores,trabalhando por meio da loucurae da fidelidade deles. A questão é demonstrar que a loucurade Deus é mais sábiaque a sabedoria humana e a fraqueza

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dele é maiordo que a força humana. Além disso, os exemplos selecionadosnesse capítulo de Hebreus são exatamente como Davi: em cada caso, santoe pecadorsimultaneamente. Na verdade, Paulo apela a Abraão e Davi, emRomanos 4, como exemplos para nós, mas como pecadores que foram justificados pela fé em Cristo somente.

Pelas expectativas moralistas muitas vezes assumidas, não é de se admirar que as pessoas achem o Antigo Testamento muito chato e muito doNovo Testamento misterioso. Compare esta abordagem com a interpretaçãode Lutero da história de Davi e Golias, porexemplo:

Quando Davi venceu o grande Golias, a boa e encoraja-dora notícia chegou aos judeus: seu inimigo terrível havia sido abatido, eles haviam sido resgatados e tinhamobtido alegria e paz; eles cantaram, dançaram e foram felizes por isso (1 Sm 18.6). Assim,este evangelho de Deusou do Novo Testamento é uma boa história e um relato

enviado a todo o mundo pelos apóstolos, falando de umverdadeiro Davi que lutou contra o pecado, a morte e odiabo, e os venceu e, desta maneira, resgatou todos osque estavam cativos pelo pecado, aflitos com a morte edominados pelo diabo.24

Como comenta Graeme Goldsworthy:

O ponto importante a salientar é que Lutero fez a ligaçãoentre os atos salvíficos de Deus por meio de Davi e osatos de salvação de Deus por meio de Cristo. Uma vezque vemos esta conexão, é impossível usar Davi como ummero modelo para a vida cristã, visto que a vitória delefoi viçaria e os israelitas só podiam se alegrar com o quefoi conquistado paraeles. Em termos de nossos princípiosinterpretativos, vemos a vitória de Davi como um eventode salvação no qual a existência do povo de Deus na terraprometida estava em jogo.25

Em vez de desenhar uma linha reta da aplicação da narrativa para nós,que normalmente moraliza ou alegoriza a história, somos ensinados, pelo

24 Lutero, Martinho. Word andSacrament, vol. 35 de Luther's Works (edição americana).Filadélfia: Muhlenberg Press, 1960, pág. 358, citadopor Goldsworthy, Graeme. The Goldsworthy Trílogy. Carlisle,UK:Paternoster Press, 2000,pág. 129.25 Goldsworthy, The Goldsworthy Trilogy, págs. 128-129.

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próprio Jesus, a compreender estaspassagens à luzdo lugardelasno dramada redenção que conduz a Cristo.

Não obstante a teologia oficial grafada em papel, a pregação moralista(a bandeira dos conservadores e igualmente a dos liberais) assume que nãosomos realmente pecadores impotentes que precisam ser resgatados, masgente decente que precisa de bons exemplos, exortações e instruções. Osincrédulos, por certo, precisam ser salvos, mas os crentes precisam ser incentivados com bons exemplos. No entanto, continua Goldsworthy:

Não somos salvos por nossas vidas mudadas. A vida mudada é o resultado de ser salvo, e não a base disso. A baseda salvação é a perfeição na vida e na morte de Cristoapresentada em nosso lugar. (...) Pela volta à interpretação alegórica, de um lado, ou ao literalismo profético,do outro, alguns evangélicos têm jogado fora os ganhoshermenêuticos dos reformadores em favor de uma abor

dagem medieval à Bíblia. (...) Os evangélicos tinham areputação de levar a Bíblia a sério. Mas até mesmo elestêm tradicionalmente propagado a idéia da leitura devocional breve a partir da qual uma "bênção do Senhor"pode ser arrancada.26

Mais uma vez, tudo depende de se usamos a Bíblia para corrigir nossospróprios problemas interiores ouparaouvirDeus falando conosco pormeioda sua Palavra, chamando-nos para fora de nós mesmos para nosso Redentor na História.

Independente do que tenhamos no papel como a sã doutrina evangélica,uma dieta regular de pregação moralista, ministério de jovens, escola dominical, literatura devocional e ajuda aos necessitados sempre produzirãoigrejas cheiasde pelagianos praticantes. Goldsworthy chamaa atençãoparaessa diferença:

O ponto central de virada no pensamento evangélico queexige atenção especial é a mudança que ocorreu a partirda ênfase protestante sobre os fatos objetivos do evangelho na História, para a ênfase medieval na vida interior.O evangélico que vê a obra transformadora interior doEspírito como o elemento fundamental do cristianismo,em breve, perde o contato com a fé histórica e com oevangelho histórico. (...) O cristianismo direcionado para

'//>«/., págs. 131,136-137.

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o interior, que reduz o evangelho ao nível de qualqueroutra religião do homem interior, poderia muito bem usarum texto dos apócrifos para servir comoseu epitáfio pessoal para os reformadores: "Há outros que são lembrados; pois eles estão mortos, e é como se nunca tivessemexistido" (Ben Sirah 44.9).27

Serásempre contra nossa natureza sermos conduzidos para fora de nóspela Palavra de Deus, mas é só por meio desta interferência graciosa deum Deus soberano que vamos receber e, então, expressar a verdadeira fé,esperança e amor.

Nãosó em seuconteúdo, masem suaforma o evangelho não é sobrenóse o que temos feito, entretantosobre Deus e sua história de sucesso.Afinal,ele é notícia. Recentemente assisti a uma conversa na PBS entre apresentadores aposentados denotícias datelevisão. Uma questão interessante quetodos os três participantes colocaram foi que o jornalismo (em especial natelevisão) tinha mudado de um slogan antigo do tipo "todas asnotícias quevocê precisa saber" para"todas as notícias que você podeusar". Até notícias foram transformadas em terapia e entretenimento. Por definição, noentanto, notícia é algo que você ainda não sabe e pode nãoachar que seja látão útil. Alguém tem de lhe contar o que aconteceu. Além disso, você ouveas notícias. Em outras palavras, é um destinatário. Você não fez a notícia,mas, se a notícia for significativa o suficiente, ela pode fazer você.

Credos e ações: doutrina, doxologia e deveresO livro de Romanos é a apresentaçãomais sistemáticada fé cristã da Bíblia.Paulo nos contou a má notícia: todo mundo, judeus e gentios igualmente,estáem Adão e soba condenação da lei. No entanto, isso apenas prepara oterreno para a boa notícia de que todo mundo que tem fé em Cristo é justificado. Depois de revelar esta cintilante jóia para nossos olhos curiosos,Paulo refuta a objeção queesteevangelho degraça gratuita sempre refutou:a saber, que ele conduzirá à licença moral. No entanto, mesmo aqui, a resposta não é reinar em graça, como se fosse uma abundância de uma coisaboa,e sima explicação de como Cristo é a resposta parao poder, bemcomoa penalidade do pecado.

Aos que predestinou, a esses também chamou; e aos quechamou, a esses tambémjustificou; e aos que justificou, aesses também glorificou.Que diremos, pois, à vista destas

21Ibid.,pág. 137.

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coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós? Aqueleque não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos nós oentregou, porventura, não nos dará graciosamentecom eletodas as coisas? Quem intentará acusação contra os eleitosde Deus? É Deus quem osjustifica. Quem os condenará?É Cristo Jesus quem morreu ou, antes, quem ressuscitou,o qual está à direita de Deus e também intercede por nós.Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ouangústia,ou perseguição, ou fome, ou nudez,ou perigo, ouespada? (Rm 8.30-35).

O que pode nos separardo amorde Cristo? Nada. Absolutamente nada.Cada subida leva-nos a vistas cada vez mais altas, por todo o caminho através dos propósitos da graça eletiva de Deus, o que vemos nos capítulos9-11, até que Paulo chega ao ápice:

Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como doconhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! Quem, pois,conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? Ou quem primeiro deu a ele para que lhe venha aser restituído? Porque dele, e por meio dele, e para ele sãotodas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente.Amém!"(Rm 11.33-36).

Passamos da doutrinapara doxologia e só depois encontramosa transição de Paulo para aplicação.

Observe como o chamado de Paulo para o discipulado se alimenta deum foco explícito e constante na doutrina que ele explicou nos últimos11 capítulos: "Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, queapresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus,que é o vosso culto racional" (Rm 12.1; grifo do autor). Além disso, nafrase seguinte, ele nos impulsiona a mais profunda transformação não simplesmente por uma vontade moral maior, mas por primeiro mudar nossopensamento: "Não vos conformeis com este século, mas transformai-vospela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa,agradável e perfeita vontadede Deus" (v. 2). O credo leva às ações; a doutrina alimenta a doxologia, gerando amor e serviço aos santos, bem comoaos nossos vizinhos incrédulos (vs. 6-15).

Paulo usa o mesmo argumento em 2Coríntios 9, onde diz que a generosidade dos que servem ao corpo de Cristo, tanto material quanto espiritualmente, "redunda em muitas graças a Deus". Tais ajudas "glorificam a

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Deuspela obediência da vossa confissão quanto ao evangelho de Cristo".Isso vai testemunhar "em virtude da superabundante graça de Deus", e oapóstolo só podeconcluir coma exclamação: "Graças a Deuspeloseudominefável!" (vs. 11-15; grifos do autor). Osdons vêm deDeus para nós e,pormeiode nós,paraos outros, enquanto as ações de graças sobem a Deus.

Não é de admirar que o Catecismo de Heidelberg se desenvolva pormeio de três vertentes: culpa, graça e gratidão. Esse é o movimento queencontramosnos salmos e nas cartas de Paulo.Aqueles que são muito perdoados amam mais (Lc7.47). Não hánada deerrado emserprofundamentetocado pela verdade. Na realidade, as boas-novas geram doxologia; portanto, se não formos afetadospela doutrina ou motivados por ela a amar onosso próximo, então provavelmente teremos entendido malalguma coisa.O salmo 45 começa assim: "De boas palavras transborda o meu coração"(v. 1) e, em seguida, recita o tema: o triunfo do Messias de Deus na Terra.

Os salmos tipicamenteseguemeste padrão: contam a história dos triun-fos de Deusapesarda infidelidade de seupovo, elevamlouvores ao caráterde Deuse, finalmente, passam à resposta de grataobediência. Tenho observado que, muitas vezes, em locais onde cânticos de louvores são extraídosdos salmos, eles são trechos quase sempre tirados da segunda ou terceiraseção, sem a primeira. Em vez de começar com as boas-novas dos atospoderosos de Deus, começamos com nossa resposta: "Eu te louvo"; "eute amo, Senhor"; "eu vou te servir"; "eu vou me prostrar e te adorar", etc.Mas isso significa que estamos incentivando fé em fé, confiança em nossaprópria experiência e louvor, emvezde féemCristo como o amém às promessas de Deus. Em outras palavras, a parte do salmo que tais exemplosilustramé o serviço razoável sem a esperança das misericórdias de Deus.Os atos de Deus são deixados em segundo plano na expressão de nossozelo e empenho. Isso é ter a lei sem o evangelho, tirar o serviço razoávelpara fora de seu ambiente original da história da redenção. Para Paulo, noentanto, a adoração agora é razoável, porque é a resposta sensata para asnotícias que ouvimos.

Sevocêfor submetido, semanaapóssemana, a umadietado "faça mais","seja mais autêntico", "viva de forma mais transparente" e "sinta mais",acabará por tornar-se um prisioneiro forçado a trabalhar arduamente, massem alimentação adequada. Se vocêdesfrutar regularmente o banquete dasobras de Deus e do zelo que consumiu nosso Salvadorno serviço de nossaredenção, as exortações não serão mais umacarga excessiva, mas um guiapara as expressões de agradecimento nas quais nosso Deus tem prazer.

E um alívio quando somos libertos do pensamento de que fomos chamados para ser o evangelho. Agorapodemossimplesmente recebê-loe nosapoiarmos nele, diariamente, para ter confiança de buscar a Deus em fé eolhar para nosso próximo em amor. Então, a lei pode nos guiar e orientar,

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não mais por causa do medo dojulgamento, e sim como uma verdadeiraação de graças pela graça de Deus.

O evangelho muda vidas; ele não é a nossa vidamudada. "Nãonospregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus como Senhor" (2Co 4.5).

Como tem sido freqüentemente mostrado, Paulo muitas vezes vai dadoutrina para a aplicação em suas epístolas. Naverdade, eleé bastante claro sobre isso. Em ICoríntios, ele se move de uma direção a outra entre odiagnóstico e a cura - da divisão, das contendas, da imoralidade sexual,dasações judiciais e dosmaus-tratos aospobres paraa fidelidade de Deus,a justificação, a santificação e a unidade dos santos em união com Cristo,especialmente como gerada pela Ceia do Senhor. Gaiatas, Efésios, Colos-senses e Romanos exibem um padrão ainda mais claro. Em cada caso, aprimeira metade ou mais da carta expõe as riquezas de nossa herança emCristo somente pela graça, por meio da fé somente; em seguida, exortaçõesespecíficas sãociadas paraque se perceba o impacto dessasverdades nas relações concretas dos fiéis entre si, em suas casas e em suas relações com osnão cristãos, como vizinhos, colegas de trabalho, cidadãos, etc. As epístolasde Pedro também seguem um padrão semelhante.

Os apóstolos teriam considerado inconcebível que uma igreja pudesseter sua doutrina correta, mas não apresentasse interesse por missões, evan-gelismo, oração, obras de caridade e serviço para os necessitados, ou, inversamente, que uma igreja pudesse ser fiel na vida à parte da sã doutrina.Ortodoxia (doutrina correta) e ortopraxia (prática correta) eram inseparáveis e elementos interdependentes na mensagem deles. Portanto, ações semcredos significam lei sem evangelho; mas temos visto que o padrão bíblicoé passar da doutrina para a doxologia, para o serviço, "frutificando em todaboa obra e crescendo no pleno conhecimento de Deus" (Cl 1.10).

As pessoas estão à procura de autenticidade, no entanto isso inclui o reconhecimento de nosso pecado e da autorretidão, e a nossa necessidade deCristo. O que poderia ser menos autêntico e honesto que supor que nossasvidas podem pregar melhor do que o evangelho? Segundo George Barna,nosso testemunho aponta aos incrédulos nosso próprio estilo de vida. "Oque eles estão procurando é uma vida melhor." Barna admite, porém, queos sem-igreja já sabem do que realmente precisam: de um bom exemplo, debons recursos e de bom conselho. Ele continua: "Você pode levá-los a umlocal ou a um grupo de pessoas que vão lhes fornecer os tijolos para a construção de uma vida melhor? Não proponha o cristianismo como um sistema de regras, mas como um relacionamento com aquele que conduz pormeio de exemplo. Em seguida, procure formas comprovadas para alcançarsignificado e sucesso".28 Barna não só confunde o evangelho (a obra de

28 Barna, George. Grow Your Churchfrom the Outside In. Ventura: Regai, 2002, pág. 161.

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Cristo) com a lei (nossa obra), ele também assume queo aperfeiçoamentomoralpode serdefinidosem a lei que Deusmesmo estabeleceu. Claramentedeixando de afirmar tanto a lei de Deus quanto o evangelho, tal conselhosubstitui nossos próprios princípios para uma vida melhor.

Na parábola do semeador, Jesus menciona quatro tipos de ouvintes doevangelho: o primeiro o rejeita; o segundo "recebe-o com alegria" no início, mas a semente "não tem raiz" e, quando o sofrimento vem, não podesuportar; o terceiro é sufocado por prazer e prosperidade. Somente o quarto prospera e produz uma colheita abundante. Jesus conclui: "Vede, pois,como ouvis" (Lc 8. 11-15, 18). Devemos ser ouvintes do evangelho antesde sermos cumpridores da lei. Caso contrário, quando a emoção inicial e ozelo se desgastarem, seremos como palha soprada para todos os lados - eparalonge do jardim da graçade Deus.

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Seu próprio Jesus pessoal

Citando exemplos da televisão, da música pop e de best-sellers, um artigoda revista Entertainment Weekly observou:

A cultura popular está ficando louca por espiritualidade.(...) [Entretanto], os buscadores do dia são hábeis em descartaro material teológico pesado e em rejeitar os elementos mais doces dafé, produzindo ummosaico calmante defiguras judaico-cristãs (...), meditação oriental, jargão deautoajuda, um desejo vagamente conservador por "virtude" e uma busca maluca de"paz"daNova Era. Estaespiritualidade grátis para todos, atraente para batistas e lunáticos igualmente, está mais para sempre presente caixa dechocolates de Forrest Gump do que paraqualquer sistemade crença de fato. Você nunca sabe o que vai ganhar.1

Abusca pelo sagrado se tornou uma reportagem recorrente de capa derevistas nacionais denotícias há algum tempo. Embora essa busca sejafreqüentemente identificada como um sinal encorajador de interesse em Deus,ela pode ser mais perigosa do que o ateísmo. Pelo menos o ateísmo apresenta argumentos emostra interesse em um mundo externo aos sentimentosdoeu interior. Além disso, após cada rodada dessa busca pelo Santo Graal,opróprio evangelicalismo fica cada vez mais indistinguível da lama da espiritualidade popular em geral.

Não só historiadorese sociólogos,mas tambémromancistas estão escrevendo sobre o caráter gnóstico da sopa que chamamos de espiritualidade

1Gordinier, Jeff. "On a Ka-Ching and a Prayer", Entertainment Weekly, 7 de outubro de1994.

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nos Estados Unidos atual. Em um artigo daHarpers, Curtis White descreve nossa situação muito bem. Quando afirmamos: "Esta é a minha crença",diz White, estamos invocando nosso direito de ter nossa própria convicção privada (não importa o quanto ela seja ridícula) não apenas toleradapoliticamente, mas respeitada pelos outros. "Essa afirmação diz: 'Tenhoinvestido muita energia emocional nesta crença e, de certa forma, aposteia credibilidade da minha vida nela. Então, se você a ridicularizar, pode esperar uma briga'." Neste tipo de cultura, "Jeová e Baal - meu Deus e o seu- passeiam de braços dados, como se fazer isso fosse o modelo da virtudeem si mesmo".

O que exigimos da crença não é que ela faça sentido,mas que seja sincera. Isso se aplica mesmo às nossasconvicções mais seculares. (...) Claramente, esta não éa espiritualidade de uma ortodoxia centralizada. É umaespécie deoficina deespiritualidade que você pode conseguir com uma tampa de uma caixa de cereais e cincodólares. E, no entanto, em nossa cultura, sugerir que talcrença não é merecedora de respeito faz as pessoas ficarem ansiosas, uma ansiedade que se manifesta na sinceridade desesperada com a qual damos aspequenas liçõesde vida. (...) Existe um problema óbvio com esta formade espiritualidade: ela se passa em isolamento. Cada umde nós sesenta em seu terminal de computador digitandosuas convicções. (...) Por conseguinte, é difícil evitar aconclusão de que nossa crença mais verdadeira é o credode heresia emsi. É heresia sem uma ortodoxia. É heresiacomo uma ortodoxia.2

Quando a liberdade política da religião foi ampliada para o dogmade que "todos são livres para acreditar no que quiser", White disse, "nãohá uma verdadeira convicção compartilhada de modo algum, e, portanto,nenhuma igreja e certamente nenhuma comunidade. Estranhamente, nossa liberdade de acreditar alcançou a condição que Nietzsche chamou deniilismo, mas por uma rota que ele nunca imaginou". Enquanto o niilismoeuropeu apenas negou a Deus, "o niilismo americano é algo diferente.Nosso niilismo é a capacidade de acreditar em toda e qualquer coisa deuma vez só. É tudo de bom!".3

2White, Curtis. "HotAirGods", Harpers, 13 dedezembro de 2007.

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Combinando esta visão da verdade pessoal com o capitalismo de livremercado, até nossas crenças se tornam mercadorias - "conteúdo", exatamente como os livros são agora "unidadesde venda".

Nossoconteúdo religioso se torna indistinguível de nossoconteúdofinanceiro, de nosso conteúdo de entretenimentoe de nosso conteúdo desportivo, exatamente como as seçõesde seujornal local atestam. Emsuma, a crençatorna-se uma mercadoria da cultura. Fazemos compras entre asopções que competem por nossa crença. Uma vez reduzidaao status de uma mercadoria, nossa espiritualidade "vale-tudo" e "faça-você-mesmo" não pode ter muito a dizersobre a convicção mais diretamente niilista de que todosdeveriam ser livres para fazer o quebem quiser, cada umbuscando o direito à sua felicidade isolada.4

Como opróprio Nietzsche, que disse que a verdade é feita e não descoberta e foi descrito por Karl Barth como "o homem de isolamento azul",os americanos só querem ter sossego para criar seu próprio Idaho privado.Enquanto os evangélicos falam muito sobre averdade, seu testemunho, suaadoração e sua espiritualidade se parecem, em muitos aspectos, mais semelhantes às nêmesis dos mórmons, da Nova Erae dos liberais que a algocomo o cristianismo histórico.

White conclui o seu artigo incisivamente:

Preferiríamos que nos deixassem sossegados, aquecidospor nossas crenças sem sentido, quer se trate das banalidades do cotidiano dos americanos comuns, do pensamentomágico dos evangélicos, do pensamento místico da NovaEra gnóstica, dos olhos marejados depatriotismo dos conservadores sociais quer da lealdade apaixonada dos ricosao seu livre mercado Mamom. Somos, portanto, a congregação da Igreja do Infinitamente Fraturado, esplendidamente a sós, juntos. E, aparentemente, é assim que gostamos.Nossopluralismo de opinião diz, tantoa nós mesmosquanto aos outros, "mantenha distância". Porventura não étudo isso estranhamente familiar? Não são estes todos osfalsosdeusesconfrontados por Isaíase Jeremias,os cultosdos "deuses ocos"? Os ídolos que não poderiam assustarnem aves de um pepineiro? Crença de cada tipo e ritual,

l/6/í/.,págs. 13-14.

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autoindulgência eautoengrandecimento de todos os graus,todasflorescem. E, aindaassim, Deus é abandonado.5

Assim, a busca pelo sagrado é realmente outra rodada de heresia comoortodoxia americana - ovoo da alma solitária do nada para lugar nenhum.Somos prisioneiros de nossa própria subjetividade, confinados à minúsculacélula de nossas próprias experiências, expectativas e necessidades sentidaslimitadas.

Já no início do século 18, ocomentarista francês Alexis de Tocquevilleobservou o desejo distintamente americano de "escapar dos sistemas impostos" ede "procurar por si mesmos eem si mesmos aúnica razão para ascoisas, olhando para os resultados sem ficarem presos nos meios voltadosparaeles. (...)Detalmodo, cada homem é estritamente fechado emsi mesmo, e, dessa base, tem a pretensão dejulgar o mundo". Osamericanos nãoprecisam de livros oudequalquer outra autoridade externa a fim de encontrarem a verdade, "eles a encontraram em si mesmos".6 Em seu famosoendereço da Harvard Divinity School, o transcendentalista Ralph WaldoEmerson (1803-1882) anunciou que "seja oque for que mantenha aadoração pública firme em nós já foi ou está indo", profetizando odia em que osnorte-americanos iriam reconhecer que são "parte integrante de Deus", nãoprecisando de nenhum Mediador ou meio eclesiástico de graça. "Song ofMyself' de Walt Whitman capturou o narcisismo ousado do Romantismoamericano, que arruina nossa cultura desde os programas de entrevista atéa igreja.

Durante este mesmo período, amensagem eos métodos das igrejas americanas também sentiram o impacto deste narcisismo romântico. Ele podeser reconhecido em uma série de sermões ehinos do período, como no hinode C. Austin Miles, "In the Garden":

Eu vim para o jardim a sós, quando ainda havia orvalhonas rosas;

E a voz que ouço, em meu ouvido,o Filho de Deus revela.E ele anda comigo, e ele fala comigo, e ele me diz que eusou dele,

E a alegria que compartilhamos enquanto ficamos ali,ninguém jamais conheceu.7

5Ibid.,pág. 14.6Tocqueville, Alexis de. Democracy in America (tradução de Henry Reeve; org. FrancisBowen) vol. 1. Nova York: Century, 1898, pág. 66.7Miles, C. Austin. "In the Garden". Hymnsfor the Living Church. Carol Stream, IL: HopePublishing, 1974,pág. 398.

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O foco de tal piedade encontra-se em um relacionamento pessoal comJesus que é individualista, interior e imediato. Apessoa caminha sozinhae experimenta uma alegria que "ninguém jamais conheceu". Como podequalquer ortodoxia externa me dizer que estou errado? Meu relacionamentopessoal com Jesus émeu. Não ocompartilho com a igreja. Credos, confissões, pastores eprofessores (talvez nem mesmo aBíblia) não podem abalarminha confiança nas experiências singulares que tenho a sós com Jesus.

Uma tempestade perfeitaSe o moralismo representa um desvio em direção à heresia pelagiana (ou,pelo menos, semipelagiana), o entusiasmo é uma expressão da heresia conhecida como gnosticismo. Um movimento do século 2o que ameaçou seriamente asigrejas antigas, o gnosticismo tentou misturar afilosofia grega eo cristianismo. Oresultado foi uma espiritualidade eclética queconsideravao mundo material como a prisão dos espíritos divinos e da criação de umdeus do mal (Yahweh). O objetivo dos gnósticos era voltar para a unidadeespiritual, celestial e divina da qual o eu interior era uma faísca, longe dodomínio do tempo, do espaço e dos corpos terrestres (eles teriam aprovadomuitas colocações de Joel Osteen, particularmente a tese dos mestres daféde que temos DNA divino).

Identificando a pecaminosidade com a criação como tal, algumas seitasgnósticas eram extremamente ascéticas e orientadas por regras, enquantooutras eram orgias livres para todos e êxtase mística. Com pouco interesseem questões históricas ou doutrinárias, os gnósticos partiram em uma jornadade subira escadado misticismo. Todos elesconcordavam que a igrejainstitucional, com seu ministério ordenado, credos, pregação, sacramentose disciplina, era alienadora - como o corpo, ela era a prisão da alma individual.

Opelagianismo e o gnosticismo são versões diferentes do que GerhardForde chamou de "história da glória". Na seqüência do Debate de Hei-delberg, que se baseou em Romanos 10 e ICoríntios 1, Lutero contrasta ateologia daglória com a teologia dacruz. Como explica Forde:

A história mais comum e abrangente que contamos sobrenós mesmos é o que chamamos de história da glória. Viemosda glória e somos destinados à glória. Claroque,entreestes dois destinos, parecemos, de alguma forma, ter saído do caminho de propósito ou por acidente, não sabemosbem- masestaé apenas uma inconveniência temporária asercorrigida pelo esforço religioso certo. Oqueprecisamosfazer é voltar à "estrada de glória".A históriaé contada em

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inúmeras variações. Normalmente, o assunto da história é"a alma". (...) Oesquema básico é o que Paul Ricoeur chamou de "o mito da alma exilada".8

Em nenhuma das duas versões alguém precisa ser resgatado. Assistido,instruído, esclarecido, talvez, mas não resgatado - pelo menos não por meiode uma cruz sangrenta.

Ambas as versões da história da glória nos levam mais fundo em nósmesmos, identificando Deus com o eu interior em vez de nos chamar defora de nós mesmos. Na década de 30 (século 20), H. Richard Niebuhr,de Yale, ofereceu uma descrição repreensiva da mensagem do liberalismoprotestante: "Um Deus sem ira levou homens sem pecado para um mundosem julgamento pormeio deum Cristo sem uma cruz".9 Ahistória dacruze a história da glória não representam apenas abordagens diferentes, masreligiões totalmente distintas, como J. Gresham Machen observa em seulivro polêmico, Christianity andLiberalism.

Ahistória da glória énossa religião natural, tecida em todas as religiões,filosofias, espiritualidades e moralidades do mundo. Ela faz sentido paranós. Como somos destinados para a lei, somos também destinados paraglória. Deus colocou Adão diante de um pacto de vida por intermédio doqual ele atingiria a vida eterna para si e para sua posteridade. Todos nósainda somos criados à imagem de Deus, reconhecendo naturalmente essesenso de uma missão divina. Chegamos ao mundo prontos para ação. Aúnica diferença, desde a Queda, é que desertamos e agora utilizamos todos estes dons de nossa criação contra o Criador, fazendo uma confusãodas coisas. Precisamos da cruz, mas achamos que só precisamos encontrarnosso caminho devolta para a estrada da glória, para retomar nossa marchapara cima.

Desde a Queda, nossa ligação natural para o cumprimento de uma tarefa a fim de atingir a bem-aventurança eterna com Deus corrompeu-se emuma marcha tirânica ao longo da paisagem da criação, uma construção deimpérios de opressão, de injustiça e de orgulho. Areligião é apenas outramaneira de transformar nossa consciência nativa de Deus em nossa própriatentativa de tomar o céu por assalto e colocá-lo sob nosso controle. Ope-lagianismo faz isso por meio de trabalhos práticos e o gnosticismo sobe aescada da espiritualidade mística. Não mais um Deus soberano que reinasobre nós e é completamente diferente de nós, o Deus do gnosticismo é

8Forde, Gerhard. On Being aTheologian ofthe Cross: Reflectiom on Luther's HeidelbergDisputation, 1518. Grand Rapids: Eerdmans, 1997, pág. 5.9Niebuhr, H. Richard. The Kingdom ofGod in America. Chicago: Willett, Clark, 1937;reimpressão, Middletown, CT: Wesleyan University Press, 1988, pág. 193.

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sempre amigável e familiar, precisamente porque nosso próprio eu interioré, em si mesmo, divino.

Opelagianismo leva ao cristianismo sem Cristo porque, nele, não precisamos deum Salvador, mas sim de um bom exemplo. Arota dognosticismopara ocristianismo sem Cristo encontra-se na transformação da história deum Criador bom, uma queda no pecado eredenção por meio da encarnação,da morte sangrenta e da ressurreição corporal do Filho em um mito de umcriador do mal, uma queda na matéria e redenção pela iluminação interior.Enquanto o evangelho nos convida a olhar para fora de nós mesmos paraobter salvação, opelagianismo eognosticismo se combinam para nos manter olhando para nós mesmos e para dentro de nós. Juntos, eles criaram atempestade perfeita: a religião americana. Ninguém tem de nos ensinar oevangelho da salvação pela iluminação interior epelo autoaperfeiçoamentomoral; antes, aPalavra de Deus tem de quebrar nosso apego aesta históriada glória nos contando averdade sobre oque a lei de Deus realmente demanda e sobre o que seu evangelho realmente dá.

Em sua descrição da teologia da glória, Lutero fala das diferentes escadas que vamos tentar escalar em vão para ascender a Deus: especulaçãoracional, experiência mística e luta moral. Todas as três são tão evidenteshoje, como parte do cativeiro da igreja americana, como eram nos dias deLutero. Estas acusações são bastante abrangentes, por isso vou tentar defender o fato de que estamos presos nas agonias desta tempestade perfeitaaté hoje.

Gnosticismo como a religião americana?Descrições contemporâneas em jornais de notícias edados de pesquisa con-sistentemente revelam que a sempre popular busca pelo sagrado na culturaamericana partilha de muitas semelhanças com o gnosticismo. Claro que,nas versões mais populares, pode não haver consciência explícita dessa conexão oude qualquer dependência direta de tais fontes.

Há um ressurgimento explícito do gnosticismo em nossos dias, tanto naacademia quanto na cultura popular, desde seminários na Harvard Divini-ty School aOCódigo da Vinci de Dan Brown. Ocorredor do gnosticismona cadeia de livrarias típicas (ao lado da religião e da espiritualidade) éevidência do renovado interesse nas espiritualidades pagas. A partir deuma perspectiva cristã, talvez a maior motivação para esse interesse generalizado seja que o gnosticismo desvia a responsabilidade pelo pecadoepelo mal da criatura para oCriador, permitindo-nos suprimir averdade,olhando para dentro de nós mesmos para criar, de nossa própria imaginação, um ídolo que podemos manipular e controlar - um ídolo que, comoo bezerro de ouro de Israel, não irá mais nos amedrontar com palavras

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perturbadoras. Matthew Fox, repetindo aadvertência do autoidentificadopsicólogo gnóstico Carl Jung, expressa bem esse sentimento: "Uma forma de matar aalma é adorar um Deus fora de você".10 Esta era também amensagem dos americanos transcendentalistas como Henry David Thore-au, Ralph Waldo Emerson e Walt Whitman.

Alguns estudiosos e líderes religiosos se sentem atraídos para ognosticismo hoje porque ele oferece espiritualidade sem qualquer credo particular - certamente, sem estar preso à particularidade de Jesus Cristo eàs suas alegações exclusivas. Embora os chamados evangelhos gnósticostenham sido escritos muito mais tarde do que os evangelhos canônicos doNovo Testamento, eles são freqüentemente celebrados como aexpressãode um cristianismo alternativo que era mais tolerante e aberto ao paganismo que a igreja oficial, a qual tentou silenciá-los. Em alguns textosgnósticos, há uma celebração da deusa, que éhermafrodita ese engaja empráticas lésbicas." Outros textos vêem o gnosticismo como uma forma demesclar diferentes tradições místicas do Oriente e do Ocidente: judaica,cristã, islâmica, budista, hindu enovas religiões. Além desses motivos,'o gnosticismo é visto como uma forma de misturar ciência e magia. "Aointegrar amagia eaciência, aarte eatecnologia", escreve Marilyn Fergu-son, "elevai tersucesso onde todos oscavalos doreie todos oscavaleirosdo rei12* falharam".13

A medida que participamos de uma cultura cada vez mais diversificada, oscristãos mais jovens ficam especialmente vulneráveis ao sincretismo(isto é, mistura de crenças e práticas cristãs e não cristãs) se tiverem sidomenos imersos nas Escrituras que no pluralismo religioso da cultura. Damesma forma que seus pais, capazes de defender afé pessoal no espírito de-ísta moralista terapêutico, como Christian Smith documenta, esta geraçãosesente ainda menos confortável com reivindicações de verdade exclusivase é ainda mais improvável o seu conhecimento dos princípios básicos dadoutrina cristã.

10 Citado em Roof, Wade Clark. AGeneration ofSeekers: The Spiritual Journeys oftheBabyBoom Generation. São Francisco: HarperCollins, 1993, pág. 75.11 Como em OApocalipse de Adão ou o conceito Trimorphic Protennoia, encontrado entreas descobertasde Nag Hammadi.I2> Referência a dois versos de um curto poema presente no livro de Lewis Carrol Aliceatravés do espelho e o que Alice encontrou lá. Atradução feita por Sebastião Uchoa Leite(1980, Editora Summus) do poema éa seguinte: "Humpty Dumpty em um muro se sentou /Humpty Dumpty láde cima despencou / Erguê-lo não podem oscavalos do rei, nem IMesmo todos os cavaleiros dorei, também" [N. da R.].13 Ferguson, Marilyn. The Aquarian Conspiracy: Personal and Social Transformation inthe 1980s. Nova York: J. P. Tarcher/Putnam, 1980, pág. 18.

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Outros escritores cristãos têm seconcentrado noressurgimento do gnosticismo em suas formas explícitas.14 Estou mais preocupado aqui, no entanto, com o gnosticismo leve, mais geral e frouxo, que tem permeado aespiritualidade há algum tempo, incluindo oevangelicalismo. Esta versãonão requer qualquer conhecimento explícito do mito esotérico gnóstico dacriação e da redenção pela iluminação, muito menos o apego aele. Mas aoposição entre adivindade interior, ailuminação earedenção eum Deusexterno, aPalavra externa, uma redenção externa em Cristo e uma igrejainstitucional oferece um paralelo impressionante àbusca dos Estados Unidos pelo sagrado.

Na religião contemporânea, assim como no gnosticismo antigo, não háquase nenhum senso de diferença entre Deus e nós - em outras palavras,sua majestade, soberania, autoexistência e santidade. Deus é meu amigo,minha experiência mais profunda ou afonte de energia para eu viver omeumelhor da vida agora. Deus não é estranho (isto é, santo) e certamente nãoéum juiz. Ele não desperta medo, temor ou um senso de beleza aterradorae desorientadora. Além disso, todo o foco em fazer expiação por meio deum sangrento sacrifício parece brutal e não espiritual para os gnósticos,quando, afinal, aquestão da salvação éescapar do reino físico. Tudo issoé demasiado "judeu" - segundo os gnósticos de Marcião aScheiermacher- para aRe-Imagining Conference dos principais líderes protestantes (especialmente as feministas radicais), que expressamente apelam para o gnosticismo em seus discursos contra o sacrifício expiatório de Cristo. O Deusdo gnosticismo não éaquele perante oqual Isaías disse: "Ai de mim! Estouperdido!" (Is 6.5), ou ao qual Pedro disse: "Senhor, retira-te de mim, porquesou pecador" (Lc 5.8). Em suas expressões explícitas ou implícitas, ognosticismo troca o estranho e,muitas vezes, perturbador Deus de Israel por umídolo que nunca julga realmente e, portanto, nunca perdoa de fato.

Em vez da livre decisão de Deus de fazer seu lar conosco no mundoque ele criou, os gnósticos acreditam que estamos em casa com Deus,no silêncio de nosso eu interior e longe de qualquer envolvimento noespaço e no tempo. Como salientou o Pai da Igreja do século 2o, Irineu,os gnósticos não se importam com o desenrolar do plano de resgate naHistória porque, simplesmente, não se importam com aHistória. Tempo eespaço são estranhos ao eu divino mais profundo. Que Deus nos ama nãoé nenhuma novidade. Afinal, Deus é sempre nosso amigo, nunca nosso

14 Sobre o interesse crescente no gnosticismo e nas espiritualidades pagas, veja especialmente Jones, Peter. The Gnostic Empire Strikes Back. Phillipsburg, NJ: Presbyterian andReformed, 1994 - publicado no Brasil pela Editora Cultura Cristã com o título Oimpériognóstico contra-ataca. Além de seus livros sobre assunto, Jones lançou oChristian Witnesstoa Pagan Planet, www.cwipp.org.

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inimigo. Deus não pode ajudar, mas nos ama - tanto por causa de quemele é(Amor) quanto por causa de quem somos (amáveis). Lutero e Calvi-no disseram que esta era aessência do "entusiasmo" (literalmente, Deus-dentro-ismo). Como Lutero coloca, esta é a tentativa de subir a escada damatéria e da História para o espírito e para a visão eterna do Deus nu. Noentanto, à parte do Verbo encarnado, este deslumbrante deus que encontramos no topo da escada é, na verdade, o diabo, que "se transforma emanjo de luz" (2Co 11.14).

Esta abordagem à religião caracteristicamente americana, em que a relação direta da alma com Deus gera um encontro quase romântico com osagrado, torna a experiência interior a medida da realidade espiritual. Emvez de estarmos preocupado que nossos líderes espirituais fielmente interpretem as Escrituras e sejam enviados por Cristo, por meio da ordenaçãooficial de sua igreja, estamos mais preocupados que exalem vulnerabilidade, autenticidade e espontaneidade familiar que nos diz que têm um relacionamento pessoal com Jesus. Tudo oque évisto como externo ao ego - aigreja, oevangelho, aPalavra, os sacramentos, omundo e, até mesmo, Deus- deve ser marginalizado ou, em versões mais radicais, rejeitado como oque alienaria a almade sua proximidade como divino.

Quando os cristãos são confrontados, muitos deles justificam suas crenças epráticas com base em suas experiências próprias. Não obstante oquea igreja ensine - ou, talvez, até mesmo o que seja ensinado nas Escrituras- uma autoridade incontestável da religião atual é a experiência do eu interior. Isso significa, no entanto, que o relacionamento da pessoa com Jesuse também o próprio Jesus se tornam uma figura de cera a serem moldadosde acordo com seja láquais forem as experiências, os sentimentos e as necessidades sentidas que a pessoa decidiu serem mais decisivas. Jánão maislimitado por credos econfissões, sermões ecatecismo, oBatismo ea Eucaristia na assembléia da aliança, oego romântico aspira a uma experiênciaúnica eespontânea. Como ohino citado anteriormente diz: "Eu vim para ojardim sozinho... Eaalegria que nós compartilhamos enquanto ficamos ali,ninguémjamais conheceu" (grifo do autor).

Não é de seestranhar, então, que hoje a busca pelo sagrado continue agerar uma proliferação de seitas. Na verdade, o sociólogo Robert Bellahcunhou o termo sheilaísmo para descrever a espiritualidade americana,com base em uma entrevista na qual uma mulher chamada Sheila disseque apenas seguia sua própria voz interior.15 Seu próprio "Jesus pessoal",

15 Bellah, Robert N. (et ai.). Habits ofthe Heart: lndividualism and Commitment in American Life (ed. rev). Berkeley: University ofCalifórnia Press, 1996, págs. 221, 235.

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como o título da de uma canção-paródia da banda Depeche Mode,16 parece ser a espiritualidade informal, mas muito intensa, de vários cristãosamericanos também.

Philip Lee, em seu livro Against the Protestam Gnostics (Oxford, 1987),e Harold Bloom, em The American Religion (Simon e Schuster, 1992),apontam as conexões entre esta espiritualidade popular e o gnosticismocom grande discernimento. Vale a pena, em especial, ponderar sobre asmeditações de Harold Bloom aqui porque, como ele próprio observa, Philip Lee lamenta o gnosticismo da religião americana, enquanto Bloom ocomemora}1

Aclamado como o crítico literário mais destacado dos EUA, Bloom (acujo seminário fascinante sobre Shakespeare tive oprazer de assistir) exibeuma compreensão sofisticada das variedades de gnosticismo antigo, bemcomo de suas erupções sucessivas, no Ocidente, por meio de: formas radicais de misticismo judaico e cristão (especialmente a Cabala), Joachim deFiore e Mestre Eckhart, anabatistas, entusiastas milenares, seitas da luz interior - de todo o espectro até o transcendentalismo americano (Whitman,Thoreau e Emerson), mormonismo e movimento Nova Era.

Primeiro de tudo, diz Bloom, "liberdade, no contexto da religião americana, significa estar a sós com Deus ou com Jesus, o Deus americano ouo Cristo americano". Este credo não escrito é tão evidente na história doevangelicalismo americano quanto oéem Emerson. "Como um crítico religioso", Bloom diz, "continuo surpreso pelo elemento reavivalista em nossa experiência religiosa, bem como obcecado com ele. Reavivalismo, nosEstados Unidos, tende a ser o choque perpétuo da descoberta individual,novamente, do que eles sempre souberam: que Deus os ama em uma baseabsolutamente pessoal e íntima de fato".18

Em segundo lugar, tão extremo quanto possa parecer inicialmente,Bloom sugere que, qualquer que seja as posições doutrinárias declaradasque oevangelicalismo partilhe com ocristianismo histórico:

Os mórmons e os batistas do Sul se dizem cristãos, mas,como a maioriados americanos, estão mais próximos dosgnósticos antigos que dos cristãos primitivos. (...) A religião norte-americana é difundida e opressiva, porém émascarada; até nossos secularistas, ou mesmo nossos ateus

16 Depeche Mode, "Personal Jesus", de Martin L. Gore, Violator álbum, Grabbing HandsMusic/EMI Music, 1989.17 Bloom, Harold. The American Religion: The Emergence of the Post-Christian Nation.Nova York: Simon and Schuster, 1992, págs. 26-2718/6/í/.,págs. 15,17.

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professos, são mais gnósticos que humanistas em suas premissas definitivas. Somos uma cultura feita religiosamente, furiosamente buscando pelo espírito, mas cada um denós é sujeito e objeto de sua busca pessoal, que deve serpelo ego original, uma faísca ou sopro em nós, que estamos convencidos que remonta a antes dacriação.19

"O Cristo do século 21" jánão érealmente nem mesmo uma pessoa histórica distinta, mas "tornou-se uma experiência pessoal para ocristão americano, muito claramente para os evangélicos".20 Neste esquema, aHistórianão émais odomínio do cristianismo. Ofoco da fé eda prática não étanto apessoa objetiva eaobra de Cristo por nós efora de nós, pois éuma relaçãopessoal que édefinida, principalmente, em termos de experiência interior.

Embora, às vezes, possa exagerar sua tese, Bloom recorre a numerosas fontes primárias e secundárias da história de determinados movimentos para montar seu caso. Em um capítulo, por exemplo, intitulado "DeCane Ridge até Billy Graham", Bloom explora o reavivalismo entusiásticode Barton Stone, que rompeu com opresbiterianismo para fundar o queele considerava ser a igreja apostólica definitiva e totalmente restaurada: aIgreja de Cristo (Discípulos). Em suas Memórias, Stone escreveu: "Ocalvi-nismo está entre os mais pesados obstáculos colocados sobre ocristianismono mundo", mesmo a partir do início de suas premissas, "seu primeiro eloé a depravação total".21

Posteriormente, Bloom afirma:

Uma geração antes de Emerson chegar à sua maturidadeespiritual, o povo da fronteira experimentou sua epifaniagigante de gnose em Cane Ridge. O êxtase deles não eramais comum do que oarrebatamento em Woodstock; cadakentuckiano22* que latia ouhippie que curveteava, latia oucurveteava para si mesmo somente. (...) O êxtase americano é solitário, mesmo quando se requer a presença deoutros para a glória do ego.23

E acrescenta:

l9lbid., pág. 22.20 Ibid., pág. 25.21 Citado em ibid., pág.260.22* Quem nasce no Estado americano de Kentucky [N. da R.].23 Ibid., pág. 264.

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O que estava faltando em toda esta luminosidade bastante privada era simplesmente a maior parte do cristianismohistórico. (...) Apresso-me a acrescentar que estou comemorando, não lamentando, quando faço essa observação.(...) Jesus não é tanto um evento na História para o americano religioso quanto é um conhecedor dos segredos deDeus, que, em troca, pode ser conhecido pelo indivíduo.Oculta nesse processo está a sensação deque a depravaçãoé apenas uma falta de conhecimento salvador.24

Esse conhecimento intuitivo, direto e imediato é colocado contra as formas historicamente mediadas doconhecimento. O que umamericano sabeem seu coração é mais certo doque a lei dagravidade.

Assim, a direção ações, não credos do reavivalismo americano é movida não apenas por uma preferência por obras sobre a fé (pelagianismo),mas pela preferência dos gnósticos por aperfeiçoamento do relacionamentopessoal interior com Jesus, privado emístico, em oposição a tudo oque épúblico, doutrinai eexterno àalma individual. Areligião é formal, ordenada, empresarial e visível; a espiritualidade é informal, espontânea, individual e invisível.

Tão amplas quanto possam parecer a princípio, existem semelhançasevidentes entre o fundamentalismo e o pentecostalismo, de um lado, e oliberalismo protestante, do outro. Na verdade, uma razão destas formasde religião terem sobrevivido à modernidade, contra todas as expectativascontrárias, é que elas não apenas podem acomodar a privatização da fé damodernidade como uma experiência interior, como também podem prosperar neste ambiente. Como já observado, especialmente em relação àscolocações pelagianas de Finney eao seu legado, as sementes do liberalismo jáforam semeadas por uma herança reavivalista que é partilhada por muitosevangélicos conservadores. Repetidamente, nos últimos séculos, temos visto a facilidade com que um sentimento de pietismo, com orientação interna,se transforma no vinagre do liberalismo. Um exemplo éuma declaração feita por Wilhelm Herrmann, um pietista liberal cuja afirmação, no início doséculo 20, podia ser ouvida em muitos círculos evangélicos daquele tempocomo também pode ser nos de hoje: "Converter doutrinas... em um sistemaé a última coisa que a igreja cristã deve empreender. (...) Mas se,poroutrolado, mantemos nossa atenção fixa no que Deus está produzindo na vidainterior do cristão, então a multiplicidade dos pensamentos que brotam dafé não vai nos confundir, mas nos dar motivo de alegria".25

* Ibid., pág. 65.25 Herrmann, Wilhelm. Communion with God. Nova York: Putnam's Sons, 1913, pág. 16.

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Para os liberais, amoralidade, apiedade eaexperiência cristãs poderiamsobreviver ao abandono da doutrina cristã e, até mesmo, ao culto formal,público ecorporativo da Palavra edo sacramento. Aluz interior não foi extinta pelo abandono do cristianismo do credo porque apessoa ainda podiater um relacionamento pessoal comovente com Jesus dentro do coração,mesmo que ele não tivesse ressuscitado na História. Os evangélicos nãosão, obviamente, liberais, contudo a orientação dominante parece colocá-los nessa trajetória perpetuamente.

Não é de estranhar, então, que os fundamentalistas de hoje possam setornar os liberais de amanhã, em ciclos recorrentes que passam por fasesde intensa controvérsia. Bloom segue uma narrativa semelhante em relação ao gnosticismo. Por exemplo, embora superestime a influência de E. Y.Mullins como se ele, sozinho, tivesse moldado a denominação Batista doSul, Bloom mostra que os pressupostos centrais de Mullins eram basicamente os mesmos que os de Ralph Waldo Emerson eWilliam James. Oimpulsognóstico éevidente, por exemplo, na doutrina da competência da alma, quese tornou proeminente especialmente por intermédio de Mullins.

Enquanto Lutero, Calvino eseus herdeiros buscaram reformar a igreja,os movimentos protestantes mais radicais têm procurado uma gnose interior]imediata. Quando os reformadores apontaram para o ministério externo daigreja, centrado na Palavra eno sacramento, como olugar onde Deus prometeu encontrar seu povo, oentusiasmo (termo dos reformadores para os grupos radicais protestantes) desconfiava de tudo o que era externo. Da mesmaforma, Emerson renunciou ao seu púlpito unitarista, pelo menos em parte,porque não estava disposto a celebrar a Ceia do Senhor (embora não estejaclaro para mim por que unitaristas conservam oritual de qualquer maneira).Arazão era que ele não podia suportar nada externo, pertencente àcriatura ouviolação física do imediatismo de sua alma divina com oEspírito Divino. Osargumentos dele não foram muito longe daquele dos quacres em sua rejeiçãoao Batismo e à Ceia do Senhor, apelando para a doutrina da luz interior.

Embora os evangélicos geralmente retenham os sacramentos, eles sãotransformados em um veículo da experiência individual - um relacionamento pessoal - que não depende de tais práticas. Tudo gira em torno daautossuficiência da alma do indivíduo de experimentar uma relação direta eimediata com Jesus. Se oBatismo ou aCeia do Senhor podem facilitar umaexperiência direta com o Deus nu, vamos adicioná-los à lista de degrausúteis em nossa escada. Eles podem ser aceitáveis, desde que sejam nossosmeios de ascensão, mas chamá-los de "meios da graça" (isto é, uma escadade Deus para nós, e não de nós para Deus) provoca polêmica. Na históriado evangelicalismo americano (e, até certo ponto, do britânico), o medodos sacramentos (ao contrário do das ordenanças) foi expresso como umaresposta legítimaà ameaçapermanente do romanismo.

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Com toda probabilidade, entretanto, a verdadeira fonte de inquietaçãoera o que o evangelicalismo tinha registrado com relação ao gnosticismo:nada pode entrar no caminho da minha relação pessoal etotalmente originalcom Jesus. Mullins não estava dizendo nada que já não tivesse sido elaborado por transcendentalistas americanos quando escreveu: "Aquilo queconhecemos mais indubitavelmente são os fatos daexperiência interior".26"Pragmatista meticuloso, profundamente influenciado por William James,Mullins fundamentou sua fé sobre 'experiência' no sentido de James."27 Ocrente individual, sozinho com sua Bíblia, era todo o necessário para umaexperiênciavital cristã.

Bloom citao axioma de Mullins: "A religião é umaquestão pessoal entre a alma e Deus".28 Este talvez seja o dogma mais aceito hoje nos EstadosUnidos.

Com grande perspicácia (e asserção), Bloom assinala como escritorescomo Mullins simplesmente traduziram a Bíblia em uma linguagem exclusivamente americana. Segundo Mullins, William James "explica o fatoda regeneração em termos que estão completamente em harmonia com asepístolas paulinas". Então, Bloom conclui: "Pragmático, empírico eamericano como era, Mullins quase involuntariamente traduziu Paulo emtermosjamesianos. Aprimazia do sentimento humano não éa dinâmica do trabalho de Paulo, mas de James e de Mullins".29 Além disso, observa Bloom,o triunfalismo - a incapacidade de enfrentar a depravação do eu interior,mesmoem seu melhor- marcao espírito gnóstico.30

Exceto pelo Oriente epelas seitas esotéricas do Ocidente, só mesmo nosEstados Unidos poderia surgir uma religião inteira, no século 19, que negaa realidade do corpo, da doença e da morte. Segundo Mary Baker Eddy,fundadora da Ciência Cristã: "Pecado, doença e morte... tinham vindo aomundo por causa da 'crença de que o Espírito sematerializou em um corpo,o infinito tornou-se finito, ouhomem, eo eterno entrou notemporal'".31 Observe que sua descrição da fonte de nossa queda éadescrição cristã da fontede nossa redenção: a saber, a encarnação, a vida, a morte e a ressurreição

26 Mullins, Edgar Young. The Christian Religion in its Doctrinal Expression. Filadélfia:Roger Williams Press, 1917, pág. 73; citado por Bloom, The American Religion, pág. 204.21 Ibid, pág. 199.28 Mullins, Edgar Young. The Axioms ofReligion: ANew Interpretation ofthe Baptist Faith.Filadélfia: American Baptist Publication Society, 1908, págs. 53-54; citado por Bloom, TheAmericanReligion, pág. 213.29 Ibid., pág. 214.,0"O triunfalismo é o único modo noqual Mullins e os batistas lêem Romanos", passando-se rapidamente pela encarnação e pela cruz até Romanos 8: "Em todas estas coisas, somosmais que vencedores por aquele que nos amou" (v. 37) (Bloom, The American Religion.pág. 213).''Ibid., pág. 133.

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do Filho de Deus. Os gnósticos são alérgicos aqualquer conversa sobre arealidade do pecado e da morte. Substituindo aidéia de morte por passarpara fora da existência, Eddy fez uma considerável - e, do ponto de vistacristão, muito infeliz - contribuição para o idioma inglês.

Para Bloom, duas notáveis exceções aesta trajetória gnóstica são KarlBarth e J. Gresham Machen. "Barth sabe adiferença entre a fé reformada eagnose", diz Bloom, apontando adivergência fundamental: aexperiênciasubjetiva do eusobre apalavra e obra objetiva de Deus. Onde Barth estavaconfiante em um Deus transcendente, bem como profundamente desconfiado da experiência, da moralidade ou da religião humana como uma formade escalar omuro que separava oCriador da criatura, o pietismo eo liberalismo foram entrelaçados em modo de vitória.32

Outra figura antignóstica, um americano, é J. Gresham Machen. Oquechamamos de fundamentalistas, diz Bloom, são, na verdade, gnósticos deuma variedade anti-intelectual. Se houvesse uma possibilidade de umaversão antignóstica do fundamentalismo, diz Bloom, tais proponentes "encontrariam o seu arquétipo no formidável J. Gresham Machen, um notávelestudioso do Novo Testamento, presbiteriano de Princeton, que publicouuma defesa veemente do cristianismo tradicional em 1923, com oagressivotítulo Christianity andLiberalism". Bloom acrescenta: "Acabo de lerestelivro do começo ao fim, com desgosto e desconforto, mas com admiraçãorelutante e crescente pela mente de Machen. Nunca vi uma defesa maisconsistente do argumento de queo cristianismo institucional deveconsiderar o liberalismo cultural como um inimigo da fé". Em contraste com estadefesa do cristianismo tradicional, aqueles que vieram a ser chamados defundamentalistas são mais como "o fascismo espanhol de Franco... herdeiros dacruzada de Franco contra a mente, não os sucessores de Machen".33

Em resumo: "O Deus calvinista, primeiramente trazido para aAméricapelos puritanos, tem bem pouco em comum com as versões do Deus agoraentendido pelo queseautointitula protestantismo nosEstados Unidos". Novamente, como o próprio Bloomenfatiza, oAgainst theProtestam Gnosticsde Philip Lee, usa praticamente os mesmos argumentos, com muitos dosmesmos exemplos históricos. O que faz o relato de Bloom um pouco maisinteressante é que ele defende a religião americana e espera por ganhosainda maiores para o gnosticismo no futuro. Um "renascimento do protestantismo continental reformado é precisamente o que não precisamos",segundo Bloom.34

i2Ibid., pág.2U.33 Ibid., págs. 228-229.34 Ibid., pág.259.

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Análises sociológicas da espiritualidade contemporânea, especialmenteas de Wade Clark Roof, Robert Wuthnow, Robert Bellah, Marsha Witten,Anne Douglas e D. James Hunter, documentam as características dominantes que parecem justificar as comparações que Bloom destacou.

Embora Roof não mencione a heresia antiga, sua descrição da espiritualidade contemporânea utiliza as principais características do gnosticismo:uma religiãoque "celebra a experiência, em vez da doutrina; o pessoal, emvez do institucional; o mítico e o onírico, em vez do cognitivo; a religiãodas pessoas, em vez da religião oficial; imagens suaves e afetivas da divindade", que podem até mesmo ser descritacomo "feminina e andrógina", emvez de imagens de Deus como Criador, Redentor, Senhor e Juiz.35

Segundo Hunter: "Os aspectos espirituais da vida evangélica são cadavez mais abordados e interpretados em termos de 'princípios', 'normas','passos', 'leis', 'códigos', 'orientações', e assim por diante".36 Roof acrescenta que "a salvação como uma doutrina teológica... é reduzida a simplespassos, procedimentos fáceis e fórmulas para recompensas psicológicas.A abordagem à verdade religiosamuda - longe de qualquer razão objetivasobre a qual deve ser julgada, para uma compreensão mais subjetiva, maisinstrumental do que ela faz para o crente e de como pode fazer o que faz deforma mais eficiente".37

Assim como o gnosticismo antigo, as abordagenscontemporâneas à espiritualidade - por mais diferentes que as versões conservadoras e liberaispossam parecer na superfície - normalmente, sublinham o espírito internocomo o local de uma relação pessoal. Como o fundador conservador doCalvary Chapei Chuck Smith manifesta: "Encontramos Deus no reino denosso espírito".38 Este ponto de vista é tão lugar-comum que parece estranho ouvi-lo sendo desafiado.

O contraste que Philip Lee traça entre o gnosticismo e o calvinismopode ser documentado, com precisão, por meio de uma grande variedadede cristãos através dos séculos: "Enquanto o calvinismo clássico sustentava que a segurança cristã da salvação era garantida somente por meio deCristo e de sua igreja, com seus meios da graça, agora a garantia só poderiaser encontrada na experiência pessoal de ter nascido de novo. Esta foi umamudança radical, pois Calvino considerou que qualquer tentativa de colocar

"Roof, A Generation ofSeekers,pág. 195.36 Hunter, James Davison. American Evangelicalism: Conservative Religion and the Quan-dary ofModernity. NewBrunswick: Rutgers University Press, 1983, pág. 75."Roof, A Generation ofSeekers, pág. 195.38 Smith, Chuck. New Testament Study Guide. Costa Mesa, CA: Word for Today, 1982,pág. 113.

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'a conversão em poder do próprio homem' era papismo grosseiro".39 Defato, para os reformadores, acrescenta Lee, o novo nascimento era o opostode "renascimento em um eu novo e mais aceitável", era a morte do velhohomem e seu renascimento em Cristo.40

Como no antigo gnosticismo, a espiritualidade americana usa Deus ouo divino como algo semelhante a uma fonte de energia. Por meio de váriasfórmulas, medidas, procedimentos ou técnicas, é possível acessar essa fonte por conta própria. Tal tecnologia espiritual poderia ser empregada semnenhuma necessidade do ofício de pregação, da ministração do Batismo ouda Ceia do Senhor, ou da filiação a uma igreja visível e da submissão a seusapelos públicos, incentivos, ensinamentos e práticas.

De acordo com estudos de Roof, "a distinção entre 'espírito' e 'instituição' é da maior importância" para aqueles que procuram espiritualidadehoje. "O Espírito é o aspecto interior e empírico da religião; a instituiçãoé a forma exterior da religião estabelecida." E acrescenta: "A experiênciadireta é sempre mais confiável, por causa de sua 'interioridade' e 'solidão'- duas qualidades que têm chegado a ser muito apreciadas em uma culturaaltamente expressiva e narcisista".41

Novamente, estes estudos apontam para o fato de que o pietismo evangélico e o reavivalismo estão singularmente equipados para prosperar nacultura americana. Até mesmo o popular movimento "Higher Life" deKeswick, (na Inglaterra) de evangélicos americanos e britânicos, que moldou profundamente a piedade evangélica no século 19, foi criticado no início por B. B. Warfield e, mais recentemente, por J. I. Packer como oferecendo uma visão quase mágica da fé, usando Deus como eletricidade paraos próprios fins e vontade da pessoa.42 Como um rio poderoso, o Espíritopode ser aproveitadopor nossa tecnologia espiritual. A maneira como muitos evangélicos, atualmente, falam de acessarDeus e se conectar com eleressalta este ponto.

Assim como existiam as versões legalista e antinomiana do antigo gnosticismo, a espiritualidade contemporânea pode assumir formas fundamentalistas e liberais. No entanto, todas elas dão prioridade à experiência interna sobre normas externas; ao indivíduo sobre a comunhão dos santos; aoimaterial sobre o material; às experiências pessoais imediatas, espontâneas,sempre novas e únicas sobre os meios ordinários de graça que Deus temprovido para nossa maturidade no corpo de Cristo, juntos. Profundamen-

39 Lee, Philip. Against the Protestant Gnostics. Nova York: Oxford University Press, 1987,pág. 144.M) Ibid., pág. 255.41 Roof, A Generation ofSeekers, págs. 23, 30, 67.42 J. I. Packer cita as críticas de Warfield e concorda com elas em "The Reformed Doctrineof Sanctification",Evangélica! Quarterly 27, no. 3 (julho de 1955),págs.153-167.

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te consciente de nossa diferença de Deus não apenas como criaturas, mastambém como pecadores, a fé bíblica enfatiza a necessidade de mediação.Deus nos encontra usando sua própria criação como sua máscara por trásda qual ele se esconde para que possa nos servir. O gnóstico, pelo contrário,não necessita de mediação. Deus não é externo ao eu; na verdade, o espíritohumano e o Espírito divino já são uma unidade.

O efeito líquido dessa espiritualidade universal foi assimilar Deus à nossa própria experiência, às necessidades sentidas e às aspirações. Como osarquitetos do ateísmo moderno, como Feuerbach, Marx, Nietzsche e Freud,viram com uma compreensão extraordinária, a religião é facilmente reduzida à antropologia - ou mesmo à psicologia. Não é uma questão realmentede ser surpreendido pela voz de um estranho, chamando-nos para fora denós à medida que somos despojados de nossas pretensões, ficando nus diante de um Deus santo. Pelo contrário, é uma projeção dos anseios do próprioeu por conforto perante um universo vasto e agourento, repleto de perigos ecatástrofes. A linha entre religião e magia, fé em Deus e uso de Deus, torna-se praticamente indistinguível.

Até o ponto em que as igrejas hoje se sentem obrigadas a acomodarsua mensagem e métodos a essas formas dominantes de espiritualidade,elas deram crédito à tese de que o cristianismo não é uma notícia baseada em eventos históricos, e sim apenas outra forma de terapia. Se estefosse o único caminho da verdadeira religião, o argumento do ateísmomoderno ofereceria a melhor explicação do fenômeno completo. Nuncaencontramos Deus realmente - alguém que é diferente de nós, que se levanta contra nós em juízo e graça - mas apenas nós mesmos no espelho denossa própria experiência, totalmente exclusiva, privada e extraordinária.Medido por este sentimento gnóstico, o liberalismo protestante na linhade Schleiermacher e o evangelicalismo protestante na linha do pietismoe do reavivalismo talvez difiram em grau, porém não em sua perspectivareligiosa básica.

O Novo Testamento e o gnosticismoOs estudiosos ainda estão debatendo a relação exata entre o Novo Testamento e o gnosticismo. Enquanto o gnosticismo tornou-se um movimentovagamente organizado com várias seitas apenas no segundo século, formas incipientes dele já estavam surgindo em círculos judeus e cristãos naera apostólica. O apóstolo Paulo falou dos superapóstolos como alguémque é "enfatuado" e "cuja mente é pervertida e privados da verdade, supondo que a piedade é fonte de lucro" (ITm 6.4-5). Essa pessoa "ensinaoutra doutrina e não concorda com as sãs palavras de nosso Senhor JesusCristo e com o ensino segundo a piedade" (v. 3). Paulo adverte Timóteo

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para "fugir dessas coisas", ensinando os crentes a se contentarem com asdisposições de Deus.

Combate o bom combate da fé. Toma posse da vida eterna,para a qual também foste chamado e de que fizeste a boaconfissão perante muitas testemunhas. (...) Tu, ó Timóteo,guarda o que te foi confiado, evitando os falatórios inúteise profanose as contradições do saber [gnosis], como falsamente lhe chamam, pois alguns, professando-o, se desviaram da fé. A graça seja convosco (lTm 6.12, 20-21).

O conselho de Paulo em Romanos 16 é igualmente pertinente:

Rogo-vos, irmãos, que noteis bem aqueles que provocamdivisões e escândalos, em desacordo com a doutrina queaprendesíes; afastai-vos deles, porque esses tais não servem a Cristo, nosso Senhor, e sim a seu próprio ventre; e,com suavespalavras e lisonjas, enganam o coração dosincautos. Pois a vossa obediência é conhecida por todos;por isso, me alegro a vosso respeito; e quero que sejaissábios para o bem e símplicespara o mal. E o Deus da paz,em breve, esmagará debaixo dos vossos pés a Satanás. Agraçade nosso SenhorJesusseja convosco (Rm 16.17-20;grifos do autor).

Atormentada por disputas sectárias, a igreja de Corinto aparentementetinha sido contaminada com o ensinamento de que o corpo ou é mau ouinsignificante, levando aos extremos tanto das proibições legalistas contraas relações sexuais quanto da licenciosidade antinomiana- já que os atospraticados no corpo não poderiam manchar a pureza do espírito interior(ICo 5; 6.12-7.40).Pauloresponde ambos ao declarar: "O corponãoé paraa impureza, mas, parao Senhor, e o Senhor, parao corpo. Deus ressuscitouo Senhor e também nos ressuscitará a nós pelo seu poder. Não sabeis que osvossos corpos são membros de Cristo?" (ICo 6.13-15). A ênfase de Paulona Ceia do Senhor e na defesa da ressurreição do corpo contra os falsosmestres (cap. 15) atesta, ainda, a existência deste círculo proto-gnóstico esua influência. Ele também combate uma forma ascética desta heresia emColossenses 2. João desafia diretamente "o espírito do anticristo", a negação de que Jesus veio na carne (Uo 4.1-3, 6).

Não é de admirar queo Evangelho de João enfatize não só a divindadede Cristo, mas a maravilhosa - e escandalosa - verdade de que "o Verbo sefez carne" (Jo 1.14). Não foi uma idéiaespiritual universal ou moral, e sim

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uma determinada pessoa humana que viveu, sofreu, morreu, ressuscitou evirá novamente na carne.

Os evangélicos, naturalmente, têm corajosamente defendido a histori-cidade da ressurreição corporal de Cristo e do regresso em glória contra odogmáticoantisobrenaturalismodo liberalismo.Ao mesmo tempo, quandose trata de religiosidade popular, tanto evangélicos quanto liberais (à medida que compartilhamuma herança comum de pietismo) freqüentementeenfatizama proximidadede Jesus com nossa experiência mais do que coma realidade de sua ressurreição corpórea, ascensão e retorno. Sempre queissoacontece, independente de quão importantes esses dogmaspossamserpara defender a divindade de Cristo, sua humanidadeparece desempenharum papel menor. Por exemplo, por que deveríamos ansiar por Jesus Cristoaparecer em carne e osso quando ele já vive em nosso coração? Comouma canção gospel coloca: "Você me pergunta como eu sei que ele vive?Ele mora dentro de meu coração". Mas este é um sentimento que poderia,muito facilmente, aquecer o coração de qualquer protestante liberal. Nãofaz diferença se Jesus ressuscitou dos mortos em seu corpo há dois milanos, contanto que ele, de alguma forma, continue conosco em nossa experiência pessoal hoje.

Em nítido contraste, Paulo defende a ressurreição de Cristo em seu corpo como um evento datável, com testemunhas oculares. João começa suacarta de advertência sobre os "anticristos" que negam que Cristo veio emcorpo, imediatamente dizendo: "O que era desde o princípio, o que temosouvido, o que temosvistocom os nossos próprios olhos, o que contemplamos, e as nossas mãos apalparam, com respeito ao Verbo da vida (e a vidase manifestou, e nósa temosvisto, e deladamos testemunho..." (Uo 1.1-2).Da mesma forma, Pedro testifica: "Não vos demos a conhecer o poder e avinda de nosso Senhor Jesus Cristo seguindo fábulas engenhosamente inventadas, mas nós mesmos fomos testemunhas oculares da sua majestade"(2Pe 1.16). É expressivo que, para os apóstolos, oferecer seu testemunhosignificava testemunharda pessoa concreta e da obra de Cristo na História,onde, paranós, hoje, geralmente significa testemunhar de nossa experiênciapessoal e aperfeiçoamento moral.

Porque o Espírito foi enviado para testemunhar de Cristo, nos dar fénele, nos unir a ele e nos manternele, a habitação do Espíritoem cada crente como uma primeira parcelade nossa salvação final estabelece a ligaçãomais vital e íntima entre a Cabeça e os membros. No entanto, é o Espírito,e não Jesus, que vive dentro de nós. Jesus está nos céus, exaltado em seucorpo, à mão direita do Pai, paravoltar corporalmente, no final dos tempos,levantando-nos, em carne e osso, para a vida eterna, como seus co-herdei-ros. Quando o Espírito é transformado em um princípio abstrato em vezde uma pessoaconcreta da Santíssima Trindade, ou sua pessoa e obra são

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consideradas como uma distração em vez de mediação da pessoa e obrade Cristo, nossa fé - independentemente de quaisquer dogmas oficiais aosquais damos nosso parecer favorável - perde sua ligação com o Jesus daHistória, que veio e virá novamente em seu corpo.

O Espírito nos convence interiormente de nosso pecado e nos leva parafora de nós mesmos a Cristo, não apenas na mensagem do evangelho sobrea qual ele testemunha, mas no testemunho público e nos meios externos queemprega para fazer isso. Desta forma, Cristo e sua obra salvadora não sópermanecem fora de nós, mas penetram em nossos corações tão profundamente que somos, verdadeira e continuamente, transformados por sua graça. Portanto, a intimidade e a comunhão pessoal com Cristo pelo seu Espírito, por meio dos meios de graça, não são eliminadas, no entanto garantidas- mas sem simplesmente fechar Jesus dentro de nossa experiência interior.Não andamos e falamos com Jesus em um jardim interior particular, noqual ele nos diz que somos dele, porém em um jardim público, com meiosvisíveis de graça. Lá ele dá forma a um povo, e não apenas a uma pessoa,ao consagrar o discurso humano comum como sua Palavra, a água ordináriacomo seu Batismo e pão e vinho comuns como sua comunhão. O único queassumiu nossa carne pelo poder do Espírito continua a trabalhar em nós a fée o arrependimento por meios físicos, no poder do mesmo Espírito.

Mesmo agora, o novo nascimento não é a libertação de um eu interior,supostamente mais verdadeiro, da realidade externa da História e do corpo,mas a promessa (arrobõn) da consumação pela qual toda a criação esperaansiosamente (Rm 8.18-25). Incapaz de trazer libertação definitiva para ahumanidade, sem deixar para trás tudo o que é das criaturas, o gnosticismoperde a alegria do evangelho cristão, que não deixa nada para trás, a não sero pecado e a morte.

O sucesso do gnosticismo na igreja antiga ocorreu, em grande parte,devido à sua tentativa de misturar a sabedoria grega com os conceitos vagamentecristãos; entretanto, o resultado foi um sistemaque era, de fato, ooposto do cristianismo. Em vez de acomodar a história bíblica à filosofiapaga, como os superapóstolos estavam fazendo, Paulo disse aos coríntios:

Certamente, a palavra da cruz é loucura para os que seperdem, mas para nós, que somos salvos, poder de Deus.Pois está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios e ani

quilarei a inteligência dos instruídos. Onde está o sábio?Onde, o escriba? Onde, o inquiridor deste século? Porventura, não tornou Deus louca a sabedoria do mundo? Vistocomo, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu porsua própria sabedoria, aprouve a Deus salvar os que crêempela loucura da pregação. Porque tanto os judeus pedem

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sinais, como os gregos buscam sabedoria; mas nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios; mas para os que foram chamados, tantojudeus como gregos, pregamos a Cristo, poder de Deus esabedoria de Deus. (...) Eu, irmãos, quando fui ter convosco, anunciando-vos o testemunho de Deus, não o fiz comostentação de linguagem ou de sabedoria. Porque decidinada saber entre vós, senão a Jesus Cristo e este crucificado (ICo 1.18-24; 2.1-2).

O voo da alma solitária

Ansiando pela volta de Cristo, o cristão está cansado da vida porque estaera está sob o poder do pecado e da morte. Mas, mesmo agora, há um novopoder presenteno mundo- a entrada, no presenteséculo mau, dos poderesdo mundo vindouro. Assim, o cristão está ansioso para a liberação final decriação, não da criação. Precisamente porque o crente está enraizado naera por vir, da qual a presença interior do Espírito é o sinal, há um gemidosimultâneo diante do status quo e da confiança na promessa de Deus parafazer novas todas as coisas.

Em comparação, o ego gnóstico é desenraizado, inquieto e cansado domundo não por causa de sua escravidãoao pecado, mas porque é mundano,ansiando não por sua participação na libertação dos filhos de Deus, porémpor sua liberdade da companhia da criação afinal. Não a transformação denosso tempo e lugar, mas a transcendência de todos os tempos e lugaresé o objetivo do voo gnóstico. "Não tendo nenhuma raiz", escreveu o romancista norte-americano Nathaniel Hawthorne, do século 19, "logo ficocansado de todo o soloem que eu possaser depositado temporariamente. Amesma impaciênciaque eu sinto, ou concebo,quanto a esta vida terrena".43Acrescente a estaorientação filosófica a transitoriedade da vida práticacontemporânea que ficanos soprando comopalhapelo deserto,e o gnosticismopode ser facilmente visto como que zombando de nossa experiência cotidiana. Desenraizados, raramente vivemos emqualquer lugar por tempo suficiente até mesmo para sermos transplantados. Mudando constantementede identidadereligiosa, espiritual, moral, psíquica e, até mesmo, familiar esexual, nossageração efetivamente achaplausível que possahavercomunidades autênticas na internet.

4Í Hawthorne, Nathaniel; citado em Parrington, Vernon L. The Romantic Revolntion inAmerica, vol.2 de Main Currents inAmerican Thought. NovaYork: Harcourt Brace, 1959,págs. 441-442.

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O gnosticismo identificou Deus com o eu interior, mas o cristianismotem concentrado todos seus recursos em Deus fora de nós, o qual cria, regula, julga e nos salva em nossa existência individual e corporativa. Acabasendo lógico, no sistema gnóstico, o eu interior poder estar acima (mesmodefronte) não só da igreja externa, mas de seu ministério externo da pregação e dos sacramentos, da ordem e da disciplina, da doutrinação e dacomunhão. Afinal, não é o mundo público, histórico, visível e desordenadoque interessa aos gnósticos, e sim o mundo privado, espiritual, invisível egerenciável do espírito interior.

Com o Bispo C. FitzSimons Allison, confesso a minha própria atraçãonatural para a história da glória sobre a história da cruz:

Como um exemplo de uma visão pecaminosa da doutrina,eu mesmo sinto um grande puxão gravitacional em direçãoàs distorções gnósticas. Não gosto de sofrimento. Gostariade uma religião que me salvasse do sofrimento, meu próprio e de outras pessoas. Todo o tema da encarnação nocristianismo me abre para a vulnerabilidade do sofrimento.No entanto, apesar das minhas inclinações naturais, muitoda graça que conheci foi exatamente no sofrimento que oevangelho me conduziu, a comunhão da paixão de Cristo.(...) Também tenho simpatia por este aspecto do arianismoque não precisa de nenhum salvador e pelo nestorianis-mo que condescende com a minha autorretidão pelagiananatural, esse aspecto venenoso do meu autocentramentoinato que se opõe a qualquer compaixão para com os pecadores e faz de mim qualquer coisa, exceto um exemplocativante de um discípulo de Cristo.44

Mas a história da glória não é assim tão "excelente". Jean-Paul Sartrereconheceu que "estamos condenados a ser livres", vivendo como Atlas,com o mundo sobre nossos ombros. Esta é a história da glória, qualquerque seja sua versão. No entanto, Jesus promete: "Conhecereisa verdade, ea verdade vos libertará" (Jo 8.32). Isso porque a verdade que Jesus proclama - e a Verdade que Jesus é - permanece por todas as eras, mesmo paraos americanos,como "o poder de Deus para a salvação de todo aquele quecrê" (Rm 1.16).

44 Allison, C. FitzSimons. "Reflections on Modem Reformation", Modem Reformation 16,no. 1 (janeiro-fevereito, 2007), pág. 13.

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Pregando CristoA mensagem e o meio

Imagine dois cenários da vida da igreja. No primeiro, Deus reúne seupovo em um evento pactuai para julgar e para justificar, para matar e paravivificar. A ênfase recai na obra de Deus por nós - o plano misericordiosodo Pai; a vida, a morte e a ressurreição salvadora do Filho, e a obra doEspírito de levar vida ao vale de ossos secos por intermédio da proclama-ção de Cristo. A pregação centra-se na obra de Deus na história da redenção de Gênesis a Apocalipse, e os pecadores são transportados para estedrama que está sendo desenrolado. Instruídos e ordenados para extrairas riquezas das Escrituras em benefício do povo de Deus, os ministrostentam deixar de lado suas próprias agendas, opiniões e personalidadespara que a Palavra de Deus seja claramente proclamada. Nesta pregação,o povo é, mais uma vez, simples destinatário - receptores da graça. Damesma forma, no Batismo, as pessoas não se batizam a si mesmas; elassão batizadas. Na Ceia do Senhor, não preparam e cozinham a refeição;não contribuem para a mesa, mas são os convidados que simplesmentedesfrutam o pão do céu. A medida que este evangelho cria, aprofunda einflama fé, um profundo sentimento de louvor e de agradecimento encheos corações, conduz às boas obras entre os santos e no mundo, ao longoda semana. Depois de teremsidoservidas por Deusna assembléia pública,as pessoas são, então, servas umas das outras e de seus próximos na sociedade. Exercendo sua vocação em todoo mundo com vigore dedicação,ganham o respeito dos de fora. E como elas mesmas foram bem servidas- principalmente por pastores, professores, presbíteros e diáconos - sãocapazes de partilhar as boas-novas de Cristo de maneira bem informada enatural. Por terem sido aliviadas dos encargos numerosos nos ministériosrelacionados à igreja ao longo da semana, o queconsumiria todaa energia

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delas, têm mais tempo para servir as suas famílias, os próximos e os colegas de trabalho no mundo.

No segundo cenário, a igreja é sua própria subcultura, uma comunidade alternativa não só para a morte e ressurreição semanal em Cristo, mastambém para todo o círculo de amigos, colegas de trabalho e vizinhos.Neste cenário, as pessoas assumem que vão à igreja primariamente parafazer algo. A ênfase encontra-se em seu trabalho para Deus. A pregaçãoconcentra-se em princípios e passos para viver uma vida melhor, com umfluxo constante de exortações: seja mais comprometido; leia mais a Bíblia; ore mais; testemunhe mais; dê mais; envolva-se com esta causa oucom aquele movimento para salvar o mundo. O chamado de Deus para asvocações seculares torna-se secundário a encontrar o ministério delas naigreja. Muitas vezes subnutridas por causa de um ministério definido maispor carisma pessoal e habilidades motivacionais que por conhecimento epiedade, espera-se dessas ovelhas que sejam pastores. Sempre servindo,raramente são servidas. Mal informadas sobre a grande narrativa da obra deDeus na história da redenção, não sabem o que dizer realmente para um nãocristão, exceto contar suas próprias experiências e talvez repetir algumasfrases ou fórmulas, as quais podem ser duramente pressionadas a explicar.Além disso, como se espera que sejam fortemente envolvidas em atividades relacionadas à igreja (com freqüência, consideradas mais importantesaté que as reuniões públicasde domingo), não têm o tempo, a energia ou aoportunidadede desenvolverrelacionamentos significativos fora da igreja.E se for para elas trazerem um amigo para a igreja, não podem ter certezade que ele vai ouvir o evangelho.

O segundo cenário tem cativado muitas igrejas. O rótulo denominacio-nal ou conservador-liberal pouco importa neste caso. Todo mundo parecepensar que vamos à igreja muito mais para dar que para receber. Para oscatólicos-romanos, o Concilio Vaticano II definiu a missa como "o trabalho do povo", e esta suposição parece prevalecer em todo o ambienteeclesiástico hoje. Para muitos de nós, criados em contexto evangélico-conservador onde a pregação era principalmente uma exortação para fazer mais, o Batismo foi nosso ato de compromisso em vez de ser o ato decompromissode Deus, a Ceia do Senhorera um meio de nossa lembrançaem vez de um meio da graça de Deus e muitos hinos eram expressõesde nossa piedade mais que um relato das misericórdias maravilhosas deDeus na história da redenção. A expectativa de que Deus estava realmentevisitando seu povo para aplicar os benefícios da vitória de Cristo aos pecadores - tanto aos crentes quanto aos não crentes - era menos óbvia quea sensação de que estávamos, em primeiro lugar, nos reagrupando paraobter as nossas ordens de marcha. Claro que recebemos exortações nasEscrituras; portanto, isso deve ser parte do culto público. Lei sem evan-

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gelho, no entanto, é morte (2Co 3.5-18). Apelos para ação sem o anúncioda ação de Deus - incluindo sua entrega regular e confirmação por meioda Ceia do Senhor - gradualmente desevangeliza a igreja. O bem conhecido pastor de megaigreja Rick Warren vem repetindo um apelo ao longodos últimos anos para uma segunda Reforma: desta vez, uma reforma de"atos, não de credos".1 Contudo, segundo a experiência de muitos de nós,"atos, não credos", "vida, não doutrina" e mais empenho que ministériocentrado em Cristo é a ênfase. E, falando nisso, meus amigos criados emambientes protestantes e católicos-romanos contam a mesma história. Alista de ações pode ser diferente, mas o paradigma é o mesmo.

Quando se trata de movimentos mais recentes que têm procurado distanciar-se das abordagens evangélicas mais tradicionais, a situação não difere muito. Apesar das óbvias diferenças "cosméticas", a ênfase é a mesma.Poucos exemplos bastarão para demonstrar isso.

Em 2007, a Igreja Willow Creek Community chamou a atenção damídia quando publicou os resultados de sua análise de marketing, a quallevou seus líderes à conclusão de que seu modelo de ampla influência decrescimento de igreja era defeituoso. O pastor sênior Bill Hybels respondeu à pesquisa dizendo que "não deu certo em nossa igreja". "Dentre osresultados", escreveu ele, "uma em cada quatro pessoas no Willow Creekfica paralisada em seu crescimento espiritual ou insatisfeita com a igreja- e muitas delas estavam pensando em sair". A porcentagem mais elevada dos insatisfeitos era a dos cristãos mais altamente comprometidos. Orelatório "revolucionou a forma como olho para o papel da igreja local...fazendo-me ver claramente que a igreja e sua grande quantidade de programas têm assumido em demasia a responsabilidade pelo crescimentoespiritual das pessoas".2

Então, por que os participantes mais ativos ("centrados em Cristo")eram os mais insatisfeitos com a igreja e seu progresso espiritual? Essaera a pergunta que intrigava a liderança da igreja. "A resposta foi rápida:Porque Deus nos 'ligou', primeiro e principalmente, para estar em crescente relação com ele - não com a igreja". A conclusão deles foi que oplano de Deus para seu povo é se deslocar da dependência do ministérioda igreja para "práticas espirituais pessoais", que incluem "oração, au-toanálise (diário pessoal), solidão, estudo das Escrituras - coisas que aspessoas fazem por conta própria para crescer em seu relacionamento com

1Veja, por exemplo: Boorstein, Michelle. "Megachurch Pastor Warren Calls for a SecondReformation", Washington Post,5 de fevereiro de 2008,pág. 1.2As citações neste e nos trêsparágrafos seguintes sãode Hawkins, Greg L.; Parkinson,Cally. Reveal: WhereAre You? Northbrook, IL: Willow, 2007, págs. 4, 39,42-44,47,49,53, 65.

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Cristo". Como crentes maduros, devem mudar seu interesse da igrejapara suas próprias atividades privadas. "A pesquisa sugere fortementeque a igreja declina em influência à medida que as pessoas crescem espiritualmente." Aqueles que estão totalmente rendidos são comparáveisaos adultos jovens, que não precisam mais dos pais da igreja e agora podem se defender sozinhos. "Nosso povo precisa aprender a se alimentarsozinho por meio de práticas espirituais pessoais que lhe permita aprofundar o seu relacionamento com Cristo. (...) Queremos fazer a transiçãodo papel da igreja 'pai espiritual' para 'instrutor espiritual'." Os autoressugerem a analogia de um instrutor na academia que oferece um "planode treino personalizado".

O que acho extraordinário é que aqueles que se identificaram como "paralisados" dizem: "Creio em Cristo, mas não tenho crescido muito ultimamente", e os insatisfeitos afirmaram: "Minha fé é central para minhavida e estou tentando crescer, mas a minha igreja está me desamparando".Esses entrevistados altamente comprometidos disseram ainda que desejam"muito mais desafio e profundidade dos serviços", e "60% gostaria de ter'ensino da Bíblia em mais profundidade'". A resposta-pronta dos autores,no entanto, não foi que a Willow Creek devia fornecer um ministério maisrico, mas que as ovelhas deviam aprender a se virar sozinhas - isto é, tornar-se autoalimentadoras que precisam estar mais envolvidas em práticasespirituais particulares.

É significativo que, neste relatório, a espiritualidade seja medida peloquanto as pessoas fazem. A missão da igreja é oferecer "oportunidades paraconectar-se com os outros", "oportunidades de pequenos grupos" e "práticas espirituaispessoaisbásicas".Aquelesque estão"perto de Cristo" (nível3) necessitam de "práticas espirituais pessoais avançadas" e membros "centrados em Cristo" (nível 4) precisam de "uma ampla gama de oportunidadesde atendimento e orientação". Embora Cristo seja o referente, todas as formas de medida são compromissos que poderiam ser facilmente aplicados aqualquer organização ou causaque estejainteressada em atividades espirituais. Não há menção de qualquer pessoa necessitando ouvir a Palavra deCristo, ser batizada ou receber Cristo na Ceia do Senhor. Conquanto cadanível seja identificado em relação a Cristo, toda a ênfase é sobre as práticas e serviço dos membros em vez da atividade de Deus no serviço de seupovo. Obviamente,se a igreja se restringea forneceroportunidadespara asovelhas fazerem algo, elas podem fazer isso sozinhas.

Apesarde ter definido a si mesma, primariamente, comoantítesedo movimento da megaigreja, o movimento da Igreja Emergenteestá se tornandomais amigo de seus rivais, como a recenteparticipação de Brian McLarenem uma conferência em Willow Creek atesta. Como McLaren e outros líderes emergentes, Doug Pagitt nos encoraja a pensar em nós mesmos e na

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vida que levamos como o evangelho.3 A Bíblia, diz McLaren, é "parte deuma conversa, não um livro morto do qual extraio a verdade".4 A Palavrade Deus não vem a nós do lado de fora; os crentes "têm a verdade de Deusdentro de si", escreve Pagitt. Na verdade, "cada pessoa tem experiência,compreensão e perspectiva; não existe ninguém que seja totalmente desprovido de verdade".5

Ameaçados nesta perda de sola Scriptura estão os corolários: solo Chris-to (somente Cristo), sola gratia (somente a graça), solafide (somente a fé)e soli Deo gloria (glória somente a Deus). Estes riscos não são demasiadoelevados para Brian McLaren, por exemplo, que repreende os cristãos reformados por "seu caso de amor com a palavra latina sola".6

De acordo com Dan Kimball,a igrejanão é um lugar. "A igreja é o povode Deus, que se reúnecomum sentido de missão(At 14.27). Não podemosir à igreja porque somosa igreja."7 A partir disso, Kimball traça o contraste familiar entre evangelismo (missão) e marcas da igreja (meio de graça).Apelando para The Missional Church de Darrell Guder, Kimball consideraque as coisas deram errado na Reforma.

Os reformadores, em seus esforços para aumentar a autoridade da Bíblia e assegurar a sã doutrina, definiram asmarcas de uma igreja verdadeira como: um lugar onde oevangelho é pregado corretamente, os sacramentos são administrados corretamentee a disciplina da igreja é exercida. No entanto, ao longo do tempo, essas marcas estreitaram a definição da própria igreja como um "lugar onde",em vez de um "povo que é" a realidade. A palavra igreja tornou-se definida como "um lugar onde certas coisasacontecem", como pregação e comunhão.8

Desta maneira, no entanto, o trabalho das pessoas toma o lugar da obrade Deus.

O evangelho é boa-nova. A mensagem determina o meio. Há uma lógica clara para o argumento de Paulo em Romanos 10, onde ele contrasta "ajustiça decorrente da lei" e "a justiça decorrente da fé" (Rm 10.5-6). Fomosresgatados pelas ações de Cristo, não pelas nossas; o Espírito aplica estaredenção a nós aqui e agora, de modo que somos justificados pela fé sem as

3Pagitt, Doug. Preaching Re-Imagined. Grand Rapids: Zondervan, 2005, pág. 31.4McLaren,/í Generous Orthodoxy, pág. 185.'Pagitt, Preaching Re-Imagined, pág. 139.6McLaren, A Generous Orthodoxy, pág. 23.7Kimball, The Emerging Church, pág. 91.*Ibid.,pàg.93.

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obras; mesmo essa fé nos é dada por intermédio da proclamação de Cristo.Uma vez que este evangelho é um relato a ser crido em vez de uma tarefapara cumprirmos, ele precisa de mensageiros, embaixadorese testemunhas.

O método de entrega é adequado ao seu conteúdo. Se a mensagem central do cristianismo for como ter uma vida melhor agora ou tornar-se melhor, então, em vez de arautos precisaríamosde treinadores de vida, diretores espirituais e palestrantes motivacionais. Um bom conselho requer umapessoa com um plano; as boas-novas exigem uma pessoa com uma mensagem. Isso não quer dizer que também não precisamosde bons conselhos oude planos, mas que a fonte da existência e da missão da igrejaneste mundoé o anúncio da vitória de Deus em Jesus Cristo.

Treinadores podem enviar a si mesmos com suas próprias sugestões,contudo um embaixador tem de ser enviado com uma mensagem autorizada. Se o objetivo for o de fazer as pessoas irem a Cristo e encontrarem-no,então os métodos serão quaisquer que acharmos pragmaticamente bem-su-cedidos, e se for tudo sobre Cristo encontrar pecadores, então os métodosjá estão determinados. A citação de Romanos 10.13-15 revela a cadeia lógica do argumento de Paulo: "Todo aquele que invocar o nome do Senhorserá salvo. Como, porém, invocarão aquele em quem não creram? E comocrerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quempregue? E como pregarão, se não forem enviados?". O evangelho define oevangelismo; o conteúdo determina os métodos de entrega; as marcas daigreja (pregação e sacramento) definem sua missão (evangelizar, batizar,ensinar e a comunhão).

Para ajudara identificar essa conexão entre a mensagem (abordada noscapítulos anteriores) e a missão e os métodos de entrega de Cristo, forneçoo seguinte quadro:

Lei leve 0 evangelho

Deus como treinador de vida Deus como Juiz e Justificador

Bom conselho (fazendo) Boas-novas (feito)

Cristo como exemplo Cristo como Salvador

A Bíblia como manual de instruçãoA Bíblia como mistério de Cristo

sendo revelado

Sacramentos como meios de compromissoSacramentos como

meios de graça

A igreja como recurso de autoajuda(foco no nosso serviço/ministério)

A igreja como embaixadada graça (foco no serviço/

ministério de Deus)

Nós subimos até Deus Deus desce até nós

Nós enviamos a nós mesmos Deus nos envia

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Revertendo o fluxo: transformando a obra de Deus em obra nossa

Essas marcas da igreja focalizam o que Deus faz por nós, e não aquilo quefazemos para Deus. Ele não foi apenas o Salvador uma vez, no passado (dotipo era uma vez...); é o Salvador aqui e agora enquanto entrega Cristo etodos seus benefícios para nós, semana após semana. A missão da igreja éexibir essas marcas.

Esta orientação desafia não só a tendência dos movimentos de reaviva-lismo por zelo sem conhecimento, mas a tentação das igrejas confessionais em direção à confiança no conhecimento sem zelo. No seu sermão doPentecostes, Pedro anunciou: "Para vós outros é a promessa, para vossosfilhos e para todos os que ainda estão longe, isto é, para quantos o Senhor,nosso Deus, chamar" (At 2.39). Negligenciando uma Eclesiologia pactuai, o evangelicalismo exibe um zelo por missão fora dos eixos das marcasda igreja. Afinal, se o evangelho é sobre nossa experiência e atividade natransformação pessoal e social, em vez de sobre como podemos ser beneficiários regulares dos dons de Deus, os meios da graça são irrelevantes. Oque realmente precisamos é de meios de compromisso e ação. No entanto,este ativismo missionário fora dos eixos dos métodos que Deus prescreveunão apenas falhou em levar a uma retomada na profissão de fé entre "todosos que ainda estão longe", mas levou ao esgotamento, à instabilidade e aodesvio dos crentes e de seus filhos.

Nossa tentação, como cristãos reformados, no entanto, é nos orgulharmos de ostentar as marcas de uma igreja verdadeira, independente de pessoas estarem, de fato, sendo acrescentadas à igreja. Afinal, pensamos, temos a confissão correta, administramos os sacramentos de acordo com ainstituição de Cristo e temos ordem na igreja.Mas podemos facilmente nosesquecer de que tudo isso existe para o propósito da missão, não para quepossamos comemorar nossa pureza. "A promessa é para você e seus filhos",corretamente enfatizamos, mas e o que dizer de "todos os que ainda estãolonge"?A dicotomia entre as marcas e a missão da igreja ou entre o ensinodos alcançados e alcançar os perdidos teria sido completamente estranhapara os apóstolos.

A melhor maneira de reintegrar as marcas e a missão é começar como próprio evangelho. Devo dizer que, pelo menos em minha experiência,tanto os tradicionalistas quanto os radicais enfatizam nossa atividade emdetrimento da atividade de Deus. Vamos à igrejaprincipalmente para fazeralguma coisa; vamos para servir em vez de para sermos servidos. Muitostradicionalistas se opõem às abordagens de busca orientadas para missões,insistindo que o que importa no serviço não é o que sai dele, mas o que colocamos nele. Deus é o público (que recebe nossa adoração) e nós somos osatores, de acordo com muitos defensores do culto tradicional. Igrejas bus-cadorasnormalmente se vêem como recursos para a melhoriapessoal, e os

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movimentos da Igreja Emergente consideram a igreja como uma comunidade de transformação do mundo em discípulos. Por todas as suas diferenças,cada umdestes modelospraticamente ignora o ponto central que a missãode Deus é nos servirpor meio das marcas de pregação e sacramento, bemcomo que o corpo será construídoem Cristoconjuntamente e leva seu testemunho e boas obraspara seus próximos no mundo.

Mesmo antes de virmos para adorar a Deus, somos, primeiramente, servidos por Deus, à medida que ele distribui seus dons, que causam nossolouvor e alegria. Aqui, Cristo lava nossos pés. Como Pedro, podemos nosindignar com esta estranha inversão de papéis, mas Jesus disse que "nãoveio para ser servido, mas para servir e dar sua vida em resgate por muitos"(Mt 20.28). Claro que o serviço de Cristo para nós desperta nosso louvore nos torna frutíferos em boas obras, mas os meios da graça vêm antes dosmeios de serviço. Oficiais - pastores, presbíteros e diáconos - servem aorestante do corpo em nome de Cristo. O teatro principal para o serviço dopovo é o mundo, e não os ministériosde serviço dentro da igreja.

Lutero transmite muito bem o que estou afirmando aqui, dizendo que"Deus não precisa de suas boas obras, seu próximo, sim". Deus nos servepor intermédio de seus meios de graça, criando a fé e o arrependimento queproduzem o fruto do Espírito, para que Deus possa, então, servir a nossospróximos por intermédio de nossas diversas vocações em todo o mundo.Em contrapartida, "o homem que praticar a justiça decorrente da lei" (Rm10.5) se esforça para subir a Deus, oferecendo suas obras de serviço a elepara nós sermosabençoados. Mas,comoos reformadores salientaram,isso,na verdade, não ajuda ninguém, já que não comove a Deus, não nos salva enão serve ao nosso próximo.

Dons não sobem para Deus, mas provêm de Deus, que de nada precisa e nada pode receber que o obrigue à reciprocidade (At 17.24-25;Rm 11.35-36). Deus nos dá a salvação por meio do evangelho e dá benstemporais para nossos próximos por meio de nossas vocações, enquantonos faz testemunhas de Cristo em nossos relacionamentos comuns - quepodemos ter agora, visto que não estamos gastando todo nosso tempoem atividades relacionadas à igreja. Todo mundo tem o que é necessário:Deus é servido pela satisfação perfeita de Cristo, nós somos servidos porseu evangelho e nosso próximo é servido por nosso testemunho, amor ediligência em nossas vocações.

A tendência do evangelicalismo contemporâneo, todavia, é invertereste fluxo de dons. Examinei uma série de recentes teologias sistemáticasescritas por evangélicos conservadores e progressistas, e todos eles sereferem ao Batismo e à Ceia do Senhor como "meios de compromisso"em vez de "meios de graça", acrescentando que não há razão para limitaros meios de compromisso a essas duas ordenanças. Será isto de alguma

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maneira diferente da definição do Concilio Vaticano II da missa como "otrabalho do povo"?

Como Paulo deixa claro, é nossa tendência natural, mesmo como cristãos, preferir ser atores a ser receptores da salvação. Até sem levarmos amensagem para uma direção pelagiana, podemos transformar os métodosem uma forma de autossalvação. Pelo menos Charles Finney foi coerentea este respeito.

Uma vez que o evangelho seja uma chamada para o aperfeiçoamentomoral, o único critério para os métodos utilizados é o sucesso pragmático.No ponto emque o Catecismo deHeidelberg nos lembra de que "o EspíritoSanto cria a fé em nossos corações pela pregação do santo evangelho e aconfirmação pela utilização dos santos sacramentos", Finney estava convencido de quea fé e o arrependimento podem ser "induzidos" por"meiosmais eficientes" que nossas mentes pragmáticas podem conceber. As "novas medidas" de Finney substituíram os meios da graça. Os cristãos, disseele, devem ser "freqüentemente convertidos", o que significa que deve haver sempre "novos estímulos" para mover as pessoas para níveis cada vezmais elevados de compromisso e ativismo.9

"Agora, o grande empreendimento da igreja é reformar o mundo - paraaniquilar toda espécie de pecado", Finney insistiu. "A igreja de Cristo foioriginalmente organizada para ser um corpo de reformadores... para reformar indivíduos, comunidades e governos."10 Tanto a conversão pessoalquanto a social dependem de "persuasão moral". "Recompensas, leis e punições - estas coisase outrascomo elas são exatamente o centro da persuasão moral." Se igrejas, colégios e seminários não assumirem esta tarefa,serão deixados para trás, ele argumenta."

No entanto, os "estímulos" e as "novas medidas" de Finney levarama ciclos de entusiasmo e exaustão, como o historiador Whitney R. Crossobserva:

Os engenheiros do reavivamento tiveram de exercer criatividade cada vez maior para encontrar meios ainda maissensacionais para substituir aqueles desgastados pelo usoexcessivo. Em todas estas modalidades, a reunião prolongada, embora apenas uma forma na qual as medidas operaram, ajudou as próprias medidas a crescerem ainda mais

9Finney, Charles. Systematic Theoiogy. Minneapolis: Bethany, 1976,pág. 31; cf. Hardman,Keith J. CharlesGrandison Finney: Revivalist and Reformer. Grand Rapids: Baker, 1987.10 Finney, Charles. Letters on Revivais. 2a ed. Nova York: Wright, 1845, pág. 142."Ibid., pág. 204.

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em intensidade, até que o zelo crescente ferveu dentro daortodoxia e transbordou em heresia.12

Esgotados na ânsia perpétua por experiências sempre novas, por intermédio de métodos sempre novos, muitos dos que foram convertidos nosreavivamentos de Finney simplesmente abandonaram de vez a igreja. Durante esse tempo, um ministro, AlbertDodd, reclamou: "Agora se entende,de modo geral, que os numerosos convertidos das novas medidas foram,na maioria doscasos, como a nuvem da manhã e o orvalho da madrugada.Em alguns lugares, não a metade, nem um quinto, ou mesmo partede umdécimo deles permanece".13

Esta é precisamente a lógica da "justiça decorrente da lei [obras]", aque Paulose refere em Romanos 10.5 - se esforçando para trazerCristodocéu ou dos mortos, como se ele não estivesse tão perto como o evangelhonos proclama. Se a salvação está em nossas mãos, então os meios tambémestão. Finney diz que a Grande Comissão apenas disse: "Vá". "Ela nãoprescreve quaisquerformas. Ela não admite qualquer forma. (...) E o objetivo [dos discípulos] era fazer o evangelho conhecido da maneira maiseficaz... de modo a obter atenção e garantir obediência do maior númeropossível. Ninguém pode encontrar nenhuma forma de fazer isso previstana Bíblia" (grifo do autor).14 Definindo a igreja como "uma sociedade detransformadores morais", Finney consistentemente relacionou o queconsiderou como a marca da verdadeira igreja à sua missão. No ponto em queo cristianismo reformado identifica a verdadeira igreja com a atividade deDeus por intermédio de seusmeios de graça, Finney identifica a igreja verdadeira com nossa agência, cujos métodos foram determinados por aquiloque consideramos mais eficaz.

Muitos evangélicos - e certamente pessoas reformadas - nãovãoquererser tão consistentesquantoFinney. Emsua época,os presbiterianosficaramdivididos sobre se podiam sercalvinistas na teoria e semipelagianos na prática. Eventualmente, os presbiterianos da Nova Escola aliviaram essa ansiedade simplesmente se tornando arminianos em ambosos casos. O apóstoloPaulo e Charles Finney oferecem um contraste gritante, mas ambos foramconsistentes. Simplesmente, não podemos adotar uma visão bíblica dasmarcas da igreja e uma visão semipelagiana (ou pelagiana) dos métodos eda missão da igreja.

12 Cross, Whitney R. The Burned-Over District: The Social and Intellectual History ofEnthusiastic Religion in Western Nova York, 1800-1850. Ithaca: Cornell University Press,1982, págs.182-184; cf. pág. 179.13 Citadoem Hardman, Charles Grandison Finney, pág.380.14 Finney, citado em ibid.

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Autoalimentação: quem precisa da igreja quandotem um iPod?Tal como o recente estudo de Willow Creek, George Barna conclui que oque crentes individuais fazem por conta própria é mais importante do queaquilo que a igreja faz por eles. Mas Barna assume o legado de Finneypara o próximo passo lógico. Um dos mais bem-sucedidos consultores demarketing demegaigrejas, bem como daDisney Corporation, recentementechegou aponto de sugerir que os dias da igreja institucional estão contados.Barna comemora um aumento demográfico do que ele chama de "revolucionários": "Milhões de crentes" que"foram além da igreja estabelecida eescolheram sera igreja em seu lugar".15 Jáque sera igreja é uma questão deescolha e de esforço individual, tudo de queas pessoas precisam são recursos para seu próprio trabalho de transformação pessoal e social. "Com baseem nossa pesquisa", diz Barna, "tenho projetado que, por volta do ano de2010, de 10% a 20% dos norte-americanos vãoreceber toda suainformaçãoespiritual (bem como mandá-la para fora) pela internet".16 Quem precisa deigreja quandodispõe de um iPod?

Como qualquer outro prestador de serviços, a igreja precisa descobrirqual é seu negócio, diz Barna. "O nosso não é o negócio da religião organizada, do culto congregacional oudoensino da Bíblia. Senosdedicarmosa tal negócio, vamos serdeixados de lado à medida que a cultura se movepara frente. Esses são fragmentos de um propósito maior para o qual fomoschamados pela Palavra de Deus. Estamos no negócio de transformação devidas."17

Claro que Barna não acha que os cristãos deveriam abandonar todas aspráticas religiosas, mas as únicas que ele pensa serem ainda essenciais sãoaquelas que podem ser feitas por indivíduos em particular ou, no máximo,em famílias ou reuniões públicas informais. Ao eliminar os meios da graçapúblicos, no entanto, Barna (como Willow Creek) nos direciona para umbuffet self-service, longe da festapródiga de Deus.

Dirigindo-se aosseus leitores emtermos semelhantes àqueles dasconclusões do estudo de Willow Creek citado anteriormente, Barna escreve:"Se você optar por continuar a participar do molde congregacional oupor se aventurar no desconhecido espiritual, para provar das dinâmicasconcorrentes de independência e responsabilidade, vá para frente corajosamente. A perspectiva de Deus é que as estruturas e as rotinas nas quaisvocê se envolve importam menos que o caráter e os compromissos quedefinem você". Os crentes não precisam encontrar uma boa igreja, mas

15 Barna, George. Revolution: Finding Vibrant Faith beyond the Walls of the Sanctuary.Carol Stream, IL: Tyndale, 2005, texto da contracapa."•//>/</., pág. 180.17 Barna, Second Corning ofthe Church, pág. 96.

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devem "encontrar um bom treinador". Se o evangelho é bom conselho emvez de boas-novas, obviamente aigreja é simplesmente "um recurso" paranosso desenvolvimento pessoal, como Barna sugere.18

Se a igreja local quiser sobreviver, diz Barna, a autoridade deve deixarde ser centralizada para ser descentralizada; a liderança deve deixar de sercentrada no pastor para ser centrada em todos os cristãos, o que significaque as ovelhas são principalmente servidoras em vez de servidas pelo ministério. Mais ainda, o ministério deve passar de "resistência" à mudançapara "aceitação" dela, de"tradição e ordem" para "missão e visão", deumaabordagem de ministério "multiuso" para um "especializado", de "ligado àtradição" para "ligado àrelevância", de uma visão do papel do povo comoreceptor para ator, de"conhecimento" para "transformação".19

"Em apenas alguns anos", prevê Barna, "veremos que milhões de pessoas não vão se dirigir fisicamente para uma igreja, mas, em vez disso, vãonavegar pela internet embusca de experiências espirituais significativas".20Afinal, ele acrescenta, o coração do ministério de Jesus era "o desenvolvimento do caráter das pessoas". "Se estivermos à altura do desafio", dizBarna, osamericanos vão testemunhar o"ressurgimento moral" e uma novaliderança, e amensagem cristã "vai recuperar o respeito" emnossa cultura.Oculto íntimo, Barna declara, não "exige um culto congregacionaT\ apenas um compromisso pessoal com a Bíblia, com a oração e com o discipu-lado. Seu livro termina com aadvertência do juízo final. "Qual relatório deseu compromisso com o serviço prático e santo de transformação da vidavocê será capaz de dar aele?" Os revolucionários descobriram que, afim deexercer uma fé autêntica, têm de abandonar a igreja.21

Esta é a situação na qual a espiritualidade contemporânea nos deixa finalmente: sozinhos, navegando na internet, tentando achar treinadores ecompanheiros de equipe, tentando nos salvar do cativeiro desta época presente pela descoberta de estímulos que induzirão uma vida transformada.Cada vez mais, os exemplos aos quais me referi são o que as pessoas querem dizer com o adjetivo missionário.

Como Finney, George Barna afirma que aBíblia não oferece "quase nenhuma restrição sobre estruturas e métodos" para a igreja.22 De fato, comovimos, ele nem sequer acha que a igreja visível seja em si divinamenteestabelecida. Assim como espaços vazios na natureza são preenchidos rapidamente pelo ar, onde Barna imagina que a Bíblia não prescreve nenhuma

l*Ibid., págs. 68, 138-140."Ibid., pág. 177.20Ibid., pág. 65.21 Barna, Revolution, págs. 17,22, 203,208,210.22/ô/c/., pág. 175.

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estrutura particular ou métodos, a mão invisível do mercado preenche ovazio. Ele próprio reconhece que a mudança da igreja institucional para"comunidades alternativas de fé" é, em grande parte, devida às forças demercado: "Quandovocêanalisa as mudanças na radiodifusão, no vestuário,na música, nos investimentos ou nos automóveis, vê que os produtores debensdeconsumo percebem queos americanos querem o controlesobresuasvidas. O resultado tem sido os nichos dos EUA - a criação de categoriasaltamente refinadas que atendemum número menorde pessoas,mas podemalcançar maiorfidelidade (e lucros)". Amesma coisa está acontecendo coma igreja, observa Barna, como se fosse um destino a ser abraçado em vezde uma apostasia a ser combatida.23 A lógica do individualismo e do mo-ralismo chegou finalmente à sua consumaçãona teoria de que pessoas quese autoalimentam e se transformam não precisam da igreja e dos meios dagraça. Adescida de Deus emgraça para nós revertida por nossa subida ementusiasmo pragmático faz que nos tornemos, cada vez mais, ovelhas semum Pastor - e tudo em nome da missão. Em vez de dar igreja aos sem-igre-ja, estamos a caminho de tirara igreja dosque têmigreja. Vale a penanotarque Barna temestatísticas a seufavor. De acordo com um recente relatórioquelista ações queos americanos ainda consideram pecados, não"ir à igreja oua serviços religiosos regularmente" veio próximo doúltimo (18%).24

Emborasem profundidade, existeuma teologiapor trás da interpretaçãoque Barna fazde Jesus como o revolucionário paradigmático, e esta teologia é basicamente a do reavivalista Charles Finney, do século 19. "Então,se você é um revolucionário", diz Barna, "é porque sentiu e respondeu aochamado de Deus para ser um imitador de Cristo. Não é responsabilidade de uma igreja colocá-lo neste molde. (...) A escolha de se tornar umarevolucionário - e é uma escolha - é um pacto que você faz com Deussomente".25

Missão orientada pelo evangelhoA aliançabíblica tem origemna decisão graciosade Deus,na obra redentora e na vocaçãoeficazpor meiodo evangelho, colocando-nos em uma família de irmãos que não escolhemos com base em nossas próprias afinidades,hobbies, preferências musicais ou opiniões políticas. A aliança americanadá origem à escolha do indivíduo, à transformação moral e ao contrato comDeus para ser um imitador de Cristo.

23//>/</., págs. 62-63.24 Reportagem do USA Today, Ellison Research, agostode 2007.25Ibid.,pág. 70.

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Onde Cristo não é rei, ele tampouco é profeta ou sacerdote. Cristo governa sua igreja - instituiu suaestrutura e métodos -justamentepara quepossa, efetivamente, entregar suas boas dádivas para o mundo.

Ao mesmo tempo, comojá indiquei, em meu próprio círculo confessional a pessoapodedistinguirumapreocupação constantecomas marcassem uma orientação missionária correspondente. O ministério fiel de Palavra, sacramento e disciplina é a missão (Mt 28.18-20). Uma igreja quenão olha para o exterior, ansiosa para levar as boas-novas até os confinsda terra, não está realmente trazendo-as para aqueles que já se reuniramno rebanho de Cristo. Uma igreja verdadeiramente evangélica será umaigrejaevangelista', um lugaronde o evangelho é pregado por meio da Palavra e do sacramento e um povo que dá testemunhodisso no mundo. Seráum lugar onde crentes e não crentes são igualmente os destinatários dasboas-novas de Deus. Vamos lá para recebermos a Palavra de Deus, tantoa lei quanto o evangelho, e para sermos sepultados e ressuscitados comCristo. Renunciamos a nossos enredos triviais a fim de sermos inscritosno drama de Deus que está sendo desenrolado. E, depois, saímos para omundo para viver nosso papel neste drama.

Aqueles que são muito perdoados muito amam (Lc 7.47). Apenascomo recebedores de Cristo e de todas as suas dádivas podemos nostornar parte da nova criação de Deus: testemunhas de Cristo e servosde nossos próximos. Sem as marcas, a missão é cega; sem a missão, asmarcas estão mortas. Como Lesslie Newbigin tem enfatizado, a igrejanão se engaja na missão; ela é uma missão - mas a missão de Deus,não nossa. Este tema está presente na maioria dos escritos de Newbigin,especialmente em The Gospel in a Pluralistic Society (Grand Rapids:Eerdmans, 1989).

"Glória, glória, aleluia": Cristo como mascote nasguerras da culturaNo culto na CatedralNacional de Washington, após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, seguido pelo desfile da guarda de honradas forças armadas ao som de "O Hino de Batalha da República", o presidente George W. Bush declarou que "livrar o mundo do mal" era a causa dos Estados Unidos. Um senador anunciou que os acontecimentos de11/09/01 reforçarama visão de que os EUAsão uma "nação sagrada". Emcontrapartida, precisamente por causa de sua aliança sagrada, de acordocom Jerry Falwell e Pat Robertson, a tragédia horrível foi juízo de Deussobre seu povo por tolerar o aborto e a homossexualidade.

Maisrecentemente, emum livro intitulado GodsJudgments: Interpre-ting History and the Christian Faith, outro evangélico, Steven J. Keillor,explica por que acha que 11/09 foi julgamentode Deus sobre a ganância

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dos Estados Unidos, as políticas de livre comércio e o militarismo.26 Nãoé aabordagem ações, não credos que é novidade noevangelicalismo, masos feitos particulares que apessoa tem em mente. Da mesma forma, GodsPolitics, de Jim Wallis, simplesmente reflete como em um espelho na esquerda religiosa a confusão do evangelho com um programa partidárioque dominou a direita religiosa.

Durante o último ano ou por volta disso, a mídia tem se concentrado na ampliação do movimento evangélico em suas lealdades políticas.Não mais estereotipado como o Partido Republicano em oração, o evangelicalismo reflete um interesse maior em questões como pobreza, meioambiente e AIDS. A questão mais profunda, porém, é saber se a missãoda igreja é servir aos interesses de qualquer partido ou ideologia política.Será que realmente faz diferença seadiscussão é por causa do aborto, docasamento gay ou do aquecimento global e da fome se nossos programase atividades sutilmente(e nãotão sutilmente) substituem Cristo? Será queimporta se umdemocrata ou umrepublicano faz umdiscurso político emum púlpito cristão? Ou será queos exemplos revelam onde pensamos queo verdadeiro poder reside?

Há, até mesmo agora, uma conversa sobre um "centro evangélico",reminiscência do centro-esquerda/centro-direita dos partidos da Europa(especialmente os Democratas Cristãos, um partido forte na Alemanha).Correndo o risco de ofender, tenho de dizer que, para o bem da igrejae o bem comum, estou mais que um pouco preocupado com um centroevangélico, uma esquerda evangélica e uma direita evangélica. Carreiraspolíticas (desde a eleição até o mandato) são honestas, servem ao próximo e são vocações piedosas. Mas evangélico significa "aquele que é doevangelho", e este é uma mensagem que temos para oferecer, não umaagenda que temos de negociar com nossos concidadãos. Nem tudo o queé importante neste tempo entre as duas vindas de Cristo está relacionadocom a entrega deste evangelho. Os cristãos têm outras vocações além deserem membros do corpo visível de Cristo. Entretanto, precisamos pararde usar evangelho e evangélico para tudo o que pensamos ser o melhorpara alcançar o bem comum.

Mesmo quando a Escritura aborda estas importantes questões e responsabilidades, o faz de uma perspectiva completamente diferente (a daera por vir) e com meios inteiramente diferentes (o poder libertador doEspírito por meio do evangelho, e não o braço coercivo do Estado). Precisamos de boas igrejas e de um governo bom, mas eles fazem coisasdiferentes, com mandatos e meios diversos, e com distintos cânones ou

26KeilIor, Steven J. Gods Judgments: Interpreting History and the Christian Faith.Downers Grove, IL: InterVarsity, 2007.

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constituições. A Bíblia é a constituição para o povo da aliança de Deus,e não um livro de princípios gerais. Não obstante pensarmos, como cidadãos americanos, que políticas democratas são melhores ou não paranossos vizinhos, não é contracultural defender tais políticas no lugar dagrande narrativa de redenção de Cristo. É apenas um lado diferente dacultura das guerras.

Tenho argumentado há algum tempo, em livros e artigos, que deveríamos ser mais pró-vida - não apenas sobre o aborto e a eutanásia, mas emnossa preocupação com a mordomia da criação e com os cuidados paraaqueles que ficam para trás em nosso culto individual da saúde, riqueza efelicidade. AEscritura nos dá permissão para inculcar tal perspectiva. Masa igreja, como instituição, não pode prescrever qualquer agenda política específica para a concretização dessas metas. Crentes que se preocupam comestas questões irão diferir tanto entre si como dos não cristãos quanto à melhor forma de abordar obem social. Ao contrário das diversas vocações doscristãos no mundo, a igreja institucional não existe para resolver problemastemporais domundo (oque, inevitavelmente, divide o corpo deCristo sobreagendas políticas), mas para administrar o serviço de Cristo de reconciliaros pecadores consigo mesmo e cuidar de seu rebanho no corpo (por meiodos diáconos), bem como na alma (por meio dos ministros e presbíteros).Depois de terem sido primeiro servidos dessa forma, os membros amam eservem uns aos outros de acordo com suas necessidades específicas e, emseguida, levam esse serviço para fora, para seus próximos não cristãos. AEscritura somente é a constituição da igreja, e a igreja não tem autoridadelegítima oupoder para falar ou agir além dessa Palavra divina. Independente de quão convencidos estejamos em nossas próprias mentes de em quemvotar, ministros são embaixadores de Cristo, totalmente limitados porsuaspalavras. Eles abusam da sua autoridade quando usam este gabinete paraapoiarcandidatos, partidos e políticas.

Não é discipulado radical mudar de um partido para outro ouampliar alista política de afazeres da igreja. Discipulado radical significa levar para omundo - inclusive para os cristãos - a maravilhosa, surpreendente e ofensiva notícia doevangelho. Nada doque fizemos, estamos fazendo oupodemos fazer é radical. Éamesma velha história do esforço humano. Contudo,na reunião pública de seu povo, Deus está trabalhando, ressuscitando osmortos. Por meio da Palavra e dos sacramentos, o reino de Cristo está irrompendo nesta era presente pelo poder do Espírito. Esse irromper não éapoiar a atual era do mal, mas semear as sementes da era por vir. Ele nãovem para melhoraras pessoasou as sociedades, mas para matar e dar vidaemCristo. Seja o que forque precisemos nasociedade, a igreja não necessita de uma mudança cultural; ela precisa de uma mudança de paradigma- de nossa agenda para a agenda de Deus.

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A providência ordinária de Deus impede que a presente era seja tão ruimquanto poderia ser, dando-nos confiança em nossa vocação secular paraamar e servir nosso próximo, mesmo em formas que não são, em últimainstância, redentoras. Posso trabalhar, votar e dialogar, lado a lado, compróximos não cristãos sobre uma série de questões relacionadas à melhoriade nosso bairro, da sociedade e do mundo. Não precisamos de mais organizações cristãs de serviço, mas de mais igrejas que servem às ovelhas e asenviam para amar e servir seu próximo não cristão como empregado, empregador, voluntário, amigo e familiar. Uma vez que nós todos partilhamosda consciência da lei de Deus (embora possamos suprimi-la) e o Espíritotrabalha por meio da graça comum, assim como da graça salvadora, a igrejacomo instituição não tem de fazer, prescrever ou ditar tudo o que fazemoscomo cidadãos na cultura. Não precisamos de mais arte, filosofia, política enegócios cristãos; precisamos de mais proclamação cristã de pensamento ede vida genuinamente transformados, que surgem a partir dela.

A igreja como povo - espalhada como sal e luz durante toda a semana- tem muitas vocações diferentes, mas a igreja como local (reunida publicamente, pelo apelo de Deus, a cada Dia do Senhor) tem uma vocação: entregar (e receber) Cristo por meio da pregação e do sacramento. Neste dia,não somos republicanos ou democratas com uma agenda, mas pecadoresem comunhão ao redor de um Salvador comum. Não somos Builders21*,Boomers, Busters1*' ou emergentes, mas uma comunhão dos santos. "Hásomente um corpo e um Espírito, como também fostes chamados numa sóesperança da vossa vocação; há um só Senhor, uma só fé, um só batismo;um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, age por meio de todos eestá em todos" (Ef 4.4-6). Neste dia, as ovelhas não são chamadas paratornar o mundo uma pastagem mais verde, mas são levadas para as pastagens exuberantes - planejadas, compradas e preparadas por Deus. Este é odia da semana que participa do domingo eterno que vai caracterizar todosos dias na era por vir. E para este dia que ansiámos levar nossa família,amigos e colegas de trabalho. Neste dia, não vamos para criar uma históriapara nós mesmos ou para construir um reino; vamos como aqueles que sãomuito gratos, "recebendo nós um reino inabalável" e, portanto, servindo "aDeus de modo agradável, com reverência e santo temor" (Hb 12.28; grifodo autor). Como já mencionamos, este movimento da doutrina (ações de

2> Builders: pessoas que nasceram antes de 1945, isto é, antes da Segunda Guerra Mundialterminar. Nesta época, o objetivo dos americanos era construir um estilo de vida confortávele desenvolver uma nação americana poderosa, econômica e militarmente [N. da R.].28* Busters: pessoas que nasceram entre 1965 e 1984 e são os filhos dos Boomers. Foramchamadosde busters (que vem da palavra inglesa bust, que pode significas crise, desastre,fracasso) porque havia poucos deles, que cresceram em um mundo bem diferente do dasgerações anteriores e durante o período da Guerra do Vietnã (1959-1975) [N. da R.].

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Deus) para a doxologia (nossa grata adoração) e depois para funções (nossoserviço agradável) é a direção que a Palavra de Deus normalmente toma."Como recebestes Cristo Jesus, o Senhor, assim andai nele, nele radicados,e edificados, e confirmados na fé, tal como fostes instruídos, crescendo emações de graças" (Cl 2.6-7).

Recentemente, ouvi um sermão que terminou com o apelo: "Você vairealizar grandes coisas para Deus?". E fácil, para os crentes com uma consciência sensível, sair da dieta espiritual média na igreja pensando que devem ser um Paulo no evangelismo, um Wilberforce na cultura e um Thomasà Kempis em disciplinas espirituais. O discipulado radical, nesse sentidotriunfalista, parece um tanto quanto distante do convite de Jesus: "Vinde amim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humildede coração; e achareis descanso para a vossa alma. Porque o meu jugo ésuave, e o meu fardo é leve" (Mt 11.28-30).

Fazer apelos para que realizemos grandes coisas para Deus é parte dacampanha publicitária que constantemente exaure milhões de cristãos professos. Contar-nos sobre as grandes coisas que Deus tem feito - e, mais doque isso, pregar sua realização para os pecadores - é a verdadeira missão daigreja. E pode até mesmo animar e impulsionar aqueles entre nós a quemDeus chamou para conquistas extraordinárias. Mas será suficiente animaras pessoas a quem Deus chamou para vidas comuns e frutíferas? Na segunda-feira, uma congregação, outra vez mais segura da maravilhosa graça deDeus para os pecadores, será espalhada em todo o mundo como sal e luz.Se pensamos que a missão principal da igreja é melhorar a vida emAdão eadicionar um pouco de força moral a esta era do mal e passageira, ainda nãoentendemos a condição radical para a qual Cristo é uma solução radical.

Se o Deus Triúno é o único agente da salvação, a igreja será, em primeiro lugar, uma sociedade de receptores - aqueles que recebem a salvação.Porém, se a salvação está em nossas mãos, precisamos encontrar o melhormeio para alcançá-la. Finney, pelo menos, foi coerente em sua teologia,quando disse que a igreja foi originalmente criada para ser um corpo dereformadores morais.

Embora a agenda social de Finney reflita posições que poderiam seridentificadas com os políticos conservadores e liberais de hoje, mais recentemente ela se dividiu em facções republicanas e democratas. Por todas assuas diferenças ideológicas, no entanto, a visão fundamental da igreja comoum movimento sócio-político - ativista mais do que recebedora - permanece uma constante. Jerry Falwell e Jim Wallis identificaram Charles Finneycomo um de seus heróis.

Embora seja possível encontrar exemplos semelhantes em outras denominações, seguindo o exemplo da amostragem de Marsha Witten citado

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em um capítulo anterior, examinei as resoluções recentes sobre questões depolítica pública por uma denominação tradicional e predominante, a IgrejaPresbiteriana (EUA), e pela mais conservadora Convenção Batista do Sul.O Livrode Ordem da presbiteriana (EUA) esclarece que o mandato da igrejapara "fazer justiça" exige "trabalho por leis justas e a administração justa dalei".29 Como conseqüência, nos últimos dois anos há inúmeras resoluçõesda Assembléia Geral sobre tudo, desde o conflito entre Israel e Palestinaaté a política agrícola. Em 2004, a Assembléia Geral criou uma "ResoluçãoPedindo um Amplo Programa de Legalização para Imigrantes que Vivem eTrabalham nos EUA" e, dois anos depois, adotou uma política de imigraçãocom letras miúdas que obrigou a consciência de milhões de presbiterianos aregistrar detalhes relacionados a esta questão complicada. De fato, o relatório apela à denominação para "encorajar os legisladores presbiterianos queservem na Câmara e no Senado a trabalharem ativamente pelas linhas dopartido para derrotar a legislação proposta, enquanto trabalham ativamente,em todas as linhas partidárias, para conseguir legislação mais amigável queresolva os conflitos sobre questões de política de imigração".30

Conquanto exista uma nobre história de leigos presbiterianos exercendocargos públicos, a denominação esteve historicamente comprometida a limitar sua autoridade à Comissão de Cristo. Na verdade, o presbiterianismosurgiu na Igreja da Inglaterra, primariamente em protesto contra a opiniãode que a igreja ou o Estado deveriam comandar a consciência, à parte daEscritura. Se seu Rei não falou, a igreja não fala - seus membros são livrespara exercer sua própria sabedoria para chegar a conclusões sobre condutae tendências políticas.

Tudo isso mudou - em ambos os lados das guerras culturais. Os órgãos presbiterianos conservadores também têm se pronunciado sobre questões como mulheres em combate. A linha principal da Igreja Presbiteriana(EUA) também opinou sobre o NAFTA e o CAFTA, opondo-se ao livrecomércio, em princípio, e apelou por políticas específicas sobre legislaçãorelativa a fazendas. A teologicamente ampla Aliança Mundial das IgrejasReformadas, da qual a Igreja Presbiteriana (EUA) é um membro, decidiurecentemente "que trabalhar para criar uma economia mais justa é essencialpara a integridade da fé cristã. Acreditamos que a integridade de nossa féestá em jogo, se permanecermos em silêncio ou nos recusarmos a agir diante do sistema atual de globalização econômica neoliberal".31

29The Constitution of the Presbyterian Church (USA), Book ofOrder, W-7.4002d.30http://les-pcusa.org/Business/Business.aspx?iid=297.31 "Covenanting forJustice in the Economy and the Earth Project", PC(USA) resoluções, Twen-ty-Fourth General Council, http://warc.jalb.de/warcajsp/sidejsp?news_id=1154&navi=45;(grifo do autor).

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Nesta perspectiva, não só é tolerável os órgãos das igrejas emitirem veredictos em nome de seus membros sobre política interna e externa, masdeixar de fazê-lo põe a integridade da fé cristã emperigo. É notável que aIgreja Presbiteriana (EUA), como muitas outras denominações protestantes que rapidamente estão perdendo seus membros, se recusa a cumprir oscredos ecumênicos ou sua confissão de fé quando os ministros transgridemseus votos de ordenação, mas obriga todo o corpo a endossar políticas específicas, nacionais e estrangeiras, para os Estados Unidos com o risco desacrificar a integridade de sua fé.

Para não ser superada pelas denominações esquerdistas, a ConvençãoBatista do Sul tem oferecido resoluções deste tipo, bem como do outrolado do corredor político. Em "Na Libertação do Iraque" (junho de 2003),lemos:

Considerando que acreditamos que a Operação Liberdade para o Iraque foi uma ação justificada, com base nosprincípios históricos de guerra justa, agora, portanto, ficaresolvido que os porta-vozes para a reunião da Convenção Batista do Sul em Phoenix, Arizona, em 17-18 dejunho de 2003, apoiem o presidente George W. Bush, oCongresso dos Estados Unidos e nossas forças armadaspara sua liderança na execução bem-sucedida da Operação Liberdade para o Iraque. (...) Exortamos o governodos Estados Unidos e a comunidade internacional a asse

gurarem que o povo iraquiano desfrute todas as bênçãosda liberdade, incluindo a liberdade econômica, política ereligiosa.32

Em 1988, a Convenção incluiu uma resolução condenando o apoio dogoverno dos EUA aos mercados internacionais do álcool e do tabaco: "Ficaresolvido que encorajamos o governo dos Estados Unidos a deixarem deapoiar estas indústrias por meio de negociações comerciais; e... Batistas doSul... declaram sua oposição a estas práticas hipócritas pelo governo dosEstados Unidos em favor das indústrias de álcool e de tabaco".33

Em 2007, o mesmo órgão emitiu uma resolução sobre o aquecimentoglobal: "Sobre o aquecimento global". Depois de enumerar 19 razõespara contestar a advertência de que o aquecimento global constitui um

32 "On the Liberation of Iraq", http://www.sbc.net/resolutions/amResolutionasp?lD=1126,junho de 2003.33 "Resolution on Exportation of Alcohol and Tobacco", http://www.sbc.net/resolutions/amResolution.asp?ID=95, junho de 1988.

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desafio "catastrófico induzido pelo ser humano", os porta-vozes passarama seguinte resolução:

Resolveu-se que consideramos as propostas para regulamentar as emissões de CO, e outros gases de efeito estufacom base em uma meta máxima aceitável para a temperatura global como muito perigosas. (...) Instamos oCongresso e o presidente a que apenas apoiem medidascom custo-efetividade para reduzir emissões de CO, eoutros gases de efeito estufa e rejeitem reduções obrigatórias governamentais de emissões de gases que causamo efeito estufa.34

Já que, atualmente, existem numerosas Organizações Não Governamentais (ONGs) seculares que fazem lobby precisamente pelas mesmas políticas, por que as igrejas acreditam que está dentro de sua área de competência, ou de seu mandato oficial, oferecer pronunciamentos em nome de Deussobre estas questões? Por que não permitir aos seus membros o exercício davocação humana geral para a justiça pública por meio destas instituições degraça comum junto com os não cristãos? Por que as denominações precisam comprometer seus membros com políticas muito específicas, enquanto,geralmente, deixam questões de doutrina e de culto ambíguas e abertas?

Sem dúvida, a abolição do comércio de escravos foi um trabalho nobre,contudo é interessante notar que, na Grã-Bretanha, não foi a igreja comouma instituição que o aboliu, mas os cristãos que haviam sido moldadospelo ministério da igreja e exerciam cargos públicos no Estado. QuandoWilliam Wilberforce veio a John Newton para aconselhamento sobre seele deveria entrar no ministério, Newton incentivou seu amigo a entrar, depreferência, para a política. Era comoum membro do Parlamento que Wilberforce amava e servia seu próximo, beneficiando-se dos meios ordináriosde graça que Newton lhe ministrava. A igreja pregava a lei transcendente eo evangelho de Deus, e seus filhos desempenhavam seu mandato culturalem sua vocação secular. Graças a Deus que Newton era um pastor e Wilberforce não.

Muitas vezes, me pergunto como a história americana poderia ter sidodiferente seas igrejas do Sultivessem disciplinado os membros quepossuíam escravos. Em outras palavras, se as igrejas tivessem simplesmente exercido seu próprio mandato de pregar a Palavra, administrar os sacramentose exercer a disciplina e os cuidados para o bem-estar de seu rebanho. Não

34 "On Global Warming", http://www.sbc.net/resolutions/amResolution.asp?ID=1171,junho de 2007.

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seria o caso de a instituição ter perdido sua credibilidade moral, mesmofora da igreja? As igrejas do Norte e do Sul haviam reduzido a escravidãoapenas a uma questão política, quando deveriam ter feito o que somente asigrejas podem fazer: proclamar o juízo de Deus sobre o seqüestro e o trabalho forçado de seres humanos, excomungando os membros que se recusassem a se arrepender desta prática. Ao mesmo tempo, os membros da igrejapoderiam ter exercido sua consciência moral e decidido por si mesmos amelhor forma de abolir a instituição em tribunais e órgãos legislativos.

Estas questões são particularmente pertinentes levando-se em consideração o comparativamente rápido desmantelamento do aparteide naÁfricado Sul. De acordo com Allen Boesak, John de Gruchy, F. W. de Klerk e Nelson Mandela, o momento de decisão não foram as sanções impostas ao governo do aparteide, mas o anúncio, no final de 1980, pela Igreja ReformadaHolandesa, que "aparteide é uma heresia". Invocando a máxima, agora popular, de que as igrejas crescem mais rapidamente quando são constituídasdos mesmos grupos raciais e sócio-econômicos, de acordo com John deGruchy, os pietistas e reavivalistas derrubaram a política das igrejas mistasque tinham estado em vigor desde o Sínodo de Dort (1618-1619).35 Somente quando a igreja de brancosmais influente, expulsa pela comunidademundial das Igrejas Reformadas, veio a perceber que havia interpretadoerroneamente a Escritura para justificar o aparteide, foi que a instituiçãoperdeu sua legitimidade moral.

A igreja, como uma instituição designada por Cristo, tem um mandatorestrito com implicação mundial. Cristãos individuais, porém, têm tantosmandatos quanto suas vocações: como pais, filhos, parentes afastados, vizinhos, colegas de trabalho, e assim por diante. Além de amar e servir unsaos outros na comunhão dos santos, os crentes são intimados "para ter umavida tranqüila, cuidar de seus própriosnegócioscom as próprias mãos (...);a afim de que andem decentemente aos olhos dos que são de fora e nãodependam de ninguém" (lTs 4.11-12; NVI). Pode não parecer tão grandecomo criar uma política global de comércio ou irromper com o reino pelaexpulsão dos "romanos" (independente de serem democratas ou republicanos) na próxima eleição, mas é o tipo adequado de discipulado para estafase do governode Cristo: o reinode graçaque, somentena volta de Cristo,será um reino de glória.

Então, fazer a igreja se limitar aos seus próprios assuntos e pôr sua própria casa em ordem não é um convite à passividade em face da injustiça,da maldade e da opressão. Especialmente quando as igrejas dominantessucumbemà religiãocivil, seu arrependimento tem enormesignificância na

35 Gruchy, John de. Liberating Reformed Theology: A South African Contribution to anEcumenicalDebate. Grand Rapids: Eerdmans, 1991, págs. 21-46, 216-217.

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sociedade mais ampla. Mesmo quando não causa esse tipo de efeito, porém,o arrependimento da igreja é sempre um chamado de Deus. Os cristãospodem ter um impacto mais amplo por meio de suas vocações que a igrejacomo uma instituição, com seu mandato restrito. Ainda assim, uma igrejaem pleno exercício de sua comissão é uma poderosa fonte de verdadeira transformação, formando uma nova sociedade dentro da cidade secularque, no entanto, é completamente distinta dela.

A igreja precisa desesperadamente de uma segunda Reforma, com certeza, mas de uma Reforma que - como a primeira - retome o foco da igrejaem Cristo e sua obra. Nem o partido republicano nem o democrata receberam esta comissão. Se a moralidade cristã está se tornando uma lembrançadistante na cultura, é porque, cada vez mais, a própria igreja está em caosmoral. E, debaixo destes sintomas, encontra-se a verdadeira doença: "Outrageração após eles se levantou, que não conhecia o Senhor, nem tampouco asobras que fizera a Israel" (Jz 2.10). Os EUA nunca foram uma nação cristã,mas a verdadeira crise que está sempre diante da igreja é se irá descristiani-zar sua própria mensagem, ministério e missão. Em uma entrevista à revistaDecision, de Billy Graham, C. S. Lewis foi questionado: "Você sente, então,que a cultura moderna está sendo descristianizada?". Lewis respondeu:

Não posso falar dos aspectos políticos da questão, mas tenho algumas idéias definidas sobre a descristianização daigreja. Acredito que há muitos pregadores aceitando tudo edemasiados praticantes na igreja que não são crentes. JesusCristo não disse: "Ide por todo o mundo e diga ao mundoque está tudo certo". O evangelho é algo completamente diferente. Na verdade, ele se opõe diretamente ao mundo.36

ComoAtanásio percebeu,a igreja deve estar contra o mundopelo mundo, e isso inclui as nações supostamentecristãs.

Evangelho lógico e a missão da igrejaEm contraste com as tentativas pelagiana e gnóstica de escalar as alturas celestes, o evangelho de Cristo cria seu próprio sistema de entrega. Como jávimos, Paulo confirma isso em Romanos 10, lamentando que seus contemporâneos tentassem se salvar por seus esforços."Porque lhes dou testemunhode que eles têm zelo por Deus", afirmou, "porém não com entendimento"(v. 2). E não era de conhecimento geral que eram fatalmente ignorantes, mas

36 A entrevista com Sherwood Wirt na revista Decision está inclusa em Lewis, Godin theDock, pág. 265.

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do conhecimento de uma verdade específica: "Desconhecendo a justiça deDeus e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à que vemde Deus. Porque o fim da lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê"(vs. 3-4). Paulo continua: obras de justiça requerem perfeita obediência. "Ajustiça decorrente da fé assim diz: Não perguntes em teu coração: Quemsubirá ao céu?, isto é, para trazer do alto a Cristo; ou: Quem descerá aoabismo?, isto é, para levantar Cristo dentre os mortos" (vs. 6-7).

Em outras palavras, as obras de justiça clamam por ascensão moral,subida zelosa da escada para o céu, degrau por degrau. E como se Cristoestivesse longe e coubesse a nós encontrá-lo, ou talvez ainda esteja deitado na sepultura esperando por nós para ressuscitá-lo por meio de nossozelo. Mas "a justiça decorrente da fé" reconhece que Deus desceu aténós, em misericórdia, não apenas muito tempo atrás, quando o Verbo sefez carne, mas ainda hoje, quando "a palavra da fé que pregamos" é trazida até nós (Rm 10.6, 8). Não podemos subir até Deus, mas ele desceuaté nós; está tão próximo quanto o evangelho de Cristo, que é pregadoa nós. "Assim, a fé vem pela pregação, e a pregação, pela palavra deCristo" (v. 17).

A pregação é central não porque valorizamos o intelecto e excluímos asemoções e a vontade, mas porque é ação de Deus e não nossa. O Deus querealizou nossa salvação agora a entrega para nós. Portanto, o argumentode que a ênfase na pregação se inclina em direção ao intelectualismo estálonge de ser correta. A verdadeira questão não é se devemos dar prioridadea uma faculdade humana em particular (intelecto, vontade ou emoção), masse damos prioridade à ação de Deus sobre nós. Na pregação, recebemos amensagem - não somos os encarregados, mas estamos sentados para sermosjulgados e justificados. No Batismo, também somos receptores passivos- não batizamos a nós mesmos, mas somos batizados. Na Ceia do Senhor,Cristo se dá a nós como a nossa comida e bebida para a vida eterna; é umbanquete servido a nós - a refeição já foi preparada, e Cristo a serve paranós por intermédio de seus ministros. Somos alimentados; nossos traposimundos removidos; somos banhados e vestidos com Cristo e alimentadospara nossa peregrinação para a Cidade de Deus.

Em The Lion, the Witch, and the Wardrobe, C. S. Lewis cria uma cenamaravilhosa em que três das quatro crianças são apresentadas a Aslan, quedeclara: "Que a festa seja preparada!". Ordenando a seus servos para "levarem estas filhas de Eva para o pavilhão e ministrar a elas", Aslan diz a Pedro(o primogênito): "Vem, filho de Adão, e vou mostrar-lhe a vista do casteloonde você vai ser rei".37 Nesta cena, Lewis vividamente capta o caráter da

37 Lewis, C. S. The Lion, the Witch, and the Wardrobe. Nova York: Harper-Collins, 2005,págs. 132-133.

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relação que Cristo estabelece com seu povo, por meio do banquete que eledá. Os ministros são simplesmente garçons na festa de Deus.

Em Romanos 10, Paulo está nosdizendo não apenas que a obra de Cristo no passado é suficiente para nossa redenção, mas o próprio Cristo diz,de fato: "Apenas fique quieto. Eu vou lhe dar a mim mesmo e todas asminhas riquezas. Eu fiz aviagem antes e vou continuar trazendo-lhe o dompor meio dos meus embaixadores, aquem eu envio". Cristo se dá anós pormeio da pregação do evangelho (Rm 10.6-8), do Batismo (At 2.38; 22.16;Rm 6.3-4; ICo 12.13; Cl 2.12; lPe 3.21) e da Ceia do Senhor. "O cálice dabênção que abençoamos", Paulo pergunta, "não éacomunhão nosangue deCristo? O pão que partimos não é a comunhão no corpo de Cristo?" (ICo10.16). Nós nãonos lembramos de Cristo simplesmente ou nos reconsagra-mosa elenesta refeição, mas Cristo se nos dá como o Pão da Vida. Muitoalém de nossa capacidade de compreender, o Espírito nos comunica Cristopor meio desses meios humanos de pregação e sacramento, de modo que oCabeça que subiu não esteja semo seu corpo. "Nós, embora muitos, somosunicamente um pão, um sócorpo; porque todos participamos doúnico pão"(ICo 10.17). Esses são osmeios que transmitem agraça salvadora de Deusem vez de métodos de nosso próprio esforço. Antes de servir, somosservidos. Antes de fazermos qualquer coisa, algo é feito para nós e pornós.

Contudo, até mesmo esses meios da graça de Deus são transformadosem nossos meios de ascensão até Deus; então, é fácil concluir que existem muitos outros meios além desses para nossa realização desta façanha.Quando isso acontece, vemos aigreja visível e seu ministério público comoalgo que podemos pegar ou deixar. Se conseguirmos encontrar um bomconselho na internet, com um grupo de amigos cristãos tomando café, natelevisão, em conferências, ouvindo música cristã ou por meio de leituraparticular e de disciplinas espirituais, quem precisa da igreja? Isso define aigreja exclusivamente como asoma total de ativistas convertidos emvez decomo o lugar onde Deus está trabalhando, entregando seu Filho, pelo seuEspírito, para os ímpios.

Existe uma correlação direta, em tal caso, entre uma teologia de autos-salvação e a igreja vista principalmente como um centro derecursos humanos,e nãocomo um centro de atividade divina. Já não precisamos mais deministros da Palavra formalmente instruídos, mas de líderes carismáticos eempresariais que podem inspirar movimentos ativistas.

Segundo as Escrituras, no entanto, a igreja é criação da Palavra. Comoa primeira criação, a nova criação surge da atividade de Deus, não de suaspróprias possibilidades inerentes. Além disso, o evangelho é um tipo particular de Palavra: as boas-novas. E ele cria sua própria comunidade, transformando estranhos em uma família. Muito maior do que qualquer afinidade natural, o evento de Cristo - e a comunicação desse evento - molda

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uma nova comunidade no Espírito, queé diferente de qualquer círculo deamigos, quenósnaturalmente escolheríamos paranós mesmos.

Os reformadores enfatizaram que, quando alguém se atreve a sentarem um canto por si mesmo, não se pode dizer que espíritos ele irá receber, mas Deus prometeu a presença de seu Espírito onde quer que aPalavra seja proclamada. Quando Lutero disse que "a igreja não é umacasa-caneta, mas uma casa-boca"38 e os teólogos de Westminster confessaram que o Espírito abençoa "a leitura, mas especialmente a pregaçãoda Palavra" como um meio de graça,39 estavam afirmando que a leiturafiel, meditativa e em oração da Escritura nas devoções individuais oufamiliares era subordinada ao ministério público da Palavra na vida comum daigreja. Assim como a Palavra cria a comunidade, elasópode serrealmente ouvida, recebida e seguida na troca pactuai concreta dentrodessa comunidade.

Escrevendo como um autoconfesso judeu-gnóstico, Harold Bloom temcaracterizado, com aprovação, a religião americana em geral como gnós-tica: uma palavra interior, espírito e igreja colocados contra uma Palavraexterna, Espírito e igreja.40 O pietismo evangélico começou como um movimento de renovação nas igrejas daReforma, contudo, cadavezmais, tendeu a reduzir a fé a uma experiência subjetiva interna. A verdadeira açãoacontecia emdevoções particulares, em reuniões religiosas secretas ouclubes santos (o que hoje chamaríamos depequenos grupos). O reavivalismoamericano foi mais radical ainda, esperando a verdadeira ação deformaçãocristã ocorrer completamente fora do ministério comum da igreja. Os cristãosainda devem se reunir semanalmente, mas o Espírito realmente desceuquando o evangelista veio para a cidade e os métodos extraordinários queempregou produziram a agitação.

Em contraste com a lógica que temos seguido em Romanos 10, o teólogo evangélico Stanley Grenz argumenta que o evangelicalismo é maisuma espiritualidade que uma teologia, está mais interessado na piedadeindividual que em credos, confissões e liturgias. A experiência dá origem- na verdade, ele diz "determina" - à doutrina, em vez do contrário. Osevangélicos seguem seu coração - seus instintos convertidos - "para aceitarem as histórias bíblicas, como lhes são contadas, como de algum modo

38 Lutero, Martinho. Church Postil of 1522, citado em Webb, Stephen H. The DivineVoice: Christian Proclamation andthe Theology ofSound. Grand Rapids: Brazos Press,2004, pág. 143.39 Westminster Shorter Catechism em The Book ofConfessions, General Assembly of the PC(USA), 1991, Pergunta 89.40 Bloom, The American Religion.

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verdadeiras".41 Oponto principal, entretanto, é como essas histórias podemserutilizadas navida diária - portanto, a ênfase está nas devoções diárias.

Essaênfase na vida interior do indivíduo tem implicações eclesiológicas, Grenz reconhece. "Apesar de alguns evangélicos pertencerem a tradições eclesiológicas que entendem a igreja, em certo sentido, como umadispenseira da graça, geralmente vemos nossas congregações mais comouma comunhão de crentes." Partilhamos nossas viagens (nosso "testemunho") de transformação pessoal. Logo, Grenz celebra a "mudança fundamental (...) de uma espiritualidade baseada no credo para uma espiritualidade baseada em identidade", mais parecida com o misticismo medievalque com a ortodoxia protestante. "Consequentemente, a espiritualidadeé interior e quietista", empenhada em combater "a natureza inferior e omundo" em "um compromisso pessoal que se torna o foco principal dasafeições do crente".

Em nenhum lugar desse relato, Grenz coloca aorigem daféemumevangelho externo, mas diz que a fé surge de uma experiência interior. "Porque aespiritualidade égerada dentro do indivíduo, amotivação interna écrucial"- mais importante, de fato, que "grandes declarações teológicas".

A vida espiritual é, acima de tudo, a imitação de Cristo.(...) Em geral, evitamos rituais religiosos. Não uma adesãoservil aos rituais, mas fazer o que Jesus faria é o nossoconceito de verdadeiro discipulado. Consequentemente, amaioria dos evangélicos não aceitao sacramentalismo demuitas igrejas históricas, nem sejunta aos quacres na eliminação completa dos sacramentos. Praticamos o Batismoe a Ceia do Senhor, mas entendemos o significado dessesritos de uma forma reservada.

Emtodo caso, dizele,esses rituais sãopraticados comoaguilhões paraaexperiência pessoal e em obediência ao mandamento divino.

Essa visão marca uma mudança radical na relação entre So-teriologia e Eclesiologia, pois muda a prioridade da igrejapara a prioridade do crente. (...) "Faça a tarefa; ponha suavidaem ordem praticando as ajudas parao crescimento, eveja se você não amadurece espiritualmente", exortamos.

41 As citações neste e nos seguintes seis parágrafos são de Grenz, Stanley. RevisioningEvangélica! Theology: AFresh Agendafor the 21st Century. Downers Grove, IL: Inter-Varsity, 1993, págs. 17, 30-34, 38,41-42,44-46,48, 51-52, 55, 62, 77, 80, 88, 122 (grifosdo autor).

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Na verdade, se um crente chega ao ponto em que se sente estagnado, os conselhos evangélicos são para a pessoaredobrar seus esforços na tarefa de exercer as disciplinas."Faça uma avaliação de si mesmo", adverteo conselheiroespiritual evangélico.

Aênfase no crente individual é evidente, diz ele, na expectativa de "encontrar um ministério" dentro da comunhão local.

Tudo isso está em desacordo com aênfase em doutrina eespecialmente,Grenz acrescenta, em "um princípio material e formal" - referindo-se aoslogan da Reforma, solafide (justificação por Cristo somente, por meio dafé) e sola Scriptura (as Escrituras somente). Apesar do fato de que as Escrituras declaram que "afé vem pelo ouvir eouvir pela palavra de Cristo",Grenzafirma: "A fé é, por natureza, imediata".

Na verdade, Grenz vai tão longe com a ênfase em uma experiência interior sobre a Palavra externa, que coloca a origem da inspiração da Bíbliana experiência de indivíduos eda comunidade (passado, presente e futuro),e não em Deus. Obviamente, isso requer "uma revisão da compreensão danatureza da autoridade da Bíblia". Nossa própria experiência religiosa dehoje precisa ser incluída no processo de inspiração. Segundo Grenz, isso irá"traçar ocaminho para além da tendência evangélica de equiparar, de formasimples, a revelação de Deus com a Bíblia - isto é, fazer correspondência,uma a uma,entreas palavras da Bíblia e a própria Palavra de Deus".

Em tudo isso, reconhecemos claramente que a mensagem não pode serseparada dos métodos eque aSoteriologia (doutrina da salvação) não podeser separada da Eclesiologia (a doutrina da igreja). Devemos distinguir, masnunca separar a pessoa e a obra de Cristo (a mensagem) da maneira que orecebemos (o meio).

Uma vez que sua fé está focada no que acontece dentro de você e nãono que aconteceu fora, na História, é fácil dizer que o que você realmenteprecisa é de bons recursos para a experiência individual e aperfeiçoamentomoral, em vez de qualquer Palavra externa. Independente de quão fracos einsensatos aos olhos do mundo, os métodos e asestruturas de Deus, claramente estabelecidos nas Escrituras, são coerentes com a mensagem. Apregação não é um púlpito tirânico para nossas ameaças pessoais ou sugestõesúteis, é um advento salvífico de Cristo pelo seu Espírito, por meio da suaPalavra. O Batismo não é nosso ato de compromisso, com base em nossadecisão, é o atodecompromisso deDeus para nós, baseado emsuadecisão.A reivindicação de Deus sempre provoca nosso compromisso, em vez depressupô-lo. ACeia do Senhor não é nossa lembrança e reconsagração, masse centra na promessa de Deus de nos dar seu Filho como nosso alimento ebebida - certificando e ratificando nossa inclusão no pacto da graça.

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No culto do Dia do Senhor, Deus dá uma festa na qual ele é chefanfitrião e provedor. Ele supre o banho e providencia roupas, comida ebebida, atémesmo para nossos companheiros-hóspedes - tudo sem custopara nós. E Cristo chama seus ministros como servos para representá-lo,servindo aos convidados, fornecendo-lhes todas as delícias da mesa. Nofinal de seu ministério terreno, Jesus perguntou a Pedro: "Tu me amas?".Ao que Pedro respondeu: "Tu sabes que eu te amo". Jesus replicou:"Apascenta as minhas ovelhas" (Jo 21.17). Essa é atarefa que Deus deu aseus ministros: não tornaras ovelhas pessoas que se autoalimentam, masdar-lhes todo o necessário para sua peregrinação à Cidade Santa. Deuspreparou uma mesa no deserto. Um dia, ele não será apenas arefeição, esim um convidado junto conosco que aprecia nossa comunhão com ele,em alegria eterna (Mt 26.29).

Escrevendo contra as "medidas novas" empregadas por seu contemporâneo Charles Finney, John Williamson Nevin aponta o contraste entre"o sistema do banco" (precursor do que chamamos de altar) e "o sistemado catecismo. (...) A antiga fé presbiteriana, na qual nasci, foi baseada,por inteiro, na idéia da religião de família do pacto, membros da igrejapor um ato santo de Deus no Batismo, após o qual há uma instrução ca-tequética regular, com referência direta a ida deles àmesa do Senhor. Emuma palavra, tudo partia da teoria da religião sacramentai e educacional".Esses dois sistemas, Nevin conclui, "envolvem, no fundo, duas teoriasdiferentes da religião".42 A conclusão de Nevin foi justificada pela história subsequente. Levadas para todos os lados, por todo tipo de doutrina,e, muitas vezes, sem doutrina, as pessoas criadas no evangelicalismo seacostumaram aos eventos publicitários e cataclísmicos de experiência espiritual intensa que, não obstante, se desgasta. Quando os crentes se desgastam, muitas vezes hápouco o que fazer para impedi-los de tentar umaforma diferente de terapia espiritual ou o abandono completo da religiãode corrida de ratos.43*

No fim de seuministério, enquanto considerava acondição de muitosdosque tinham experimentado o avivamento, Finney questionou se esta ânsiainfinita por experiências cada vez maiores poderia levar ao esgotamento espiritual.44 De fato, suas preocupações eram justificadas. A área onde os avi-vamentos de Finney foram especialmente dominantes agora é mencionada,

42 Nevin, John Williamson. The Anxious Bench. Londres: Taylor & Francis, 1987,págs. 2-5.43' Em inglês, rat race: expressão utilizada para descrever uma busca contínua, autodestru-tiva ou inútil. É também usadapara descrever trabalho excessivo (one is in theratrace)[N. da R.].44 Veja Hardman, Charles Grandison Finney, págs. 380-394.

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pelos historiadores como uma "região totalmente queimada",45* na qual hádesilusão e proliferação de seitas esotéricas.46 Este foi o ciclo vicioso doreavivalismo evangélico desde então: um pêndulo que oscila entre o entusiasmo e a desilusão, em vez de maturidade firme em Cristo, por meio daparticipação navida comum dacomunidade daaliança.

Citando vários herdeiros contemporâneos, Michael Pasquarello sugereque a abordagem de Finney, em si, representa um "ateísmo prático", segundo aqual osucesso da missão cristã depende de técnica, estilo, planejamento e carisma humanos, "sem ter de renunciar a nós mesmos e às nossaspalavras emfavor da obra daPalavra e do Espírito".47 Não é dese admirarque a expectativa da atividade do Espírito tenha desviado da igreja para apara-igreja, dos meios ordinários dagraça para os métodos extraordináriosde induzir conversões, conforme oentendimento de Finney.

Com a salvação colocada nas ásperas mãos do indivíduo americano, oúnico desafio eraobter adequada tecnologia espiritual, moral e emocionalpara resultados imediatos, radicais e visíveis. Assim como os reaviva-mentos de Finney e de seus sucessores, as novas medidas de movimentode crescimento da igreja têm sido tratadas, pormuitos, como ciência - damesma maneira como a lei da gravidade é tratada. Aqueles que não adotarem esses novos modelos de ministério vão ser deixados para trás nomercado espiritual.

Após suarevisão radical dopecado edasalvação, o reavivalismo ofereceum entendimento substancialmente diferente da identidade e da missão daigreja. Para oprotestantismo confessional (reformado e luterano), a igreja éuma comunidade pactuai que abrange os pecadores (de todas as gerações)reunidos pelo Espírito, pormeio do evangelho pregado e dos sacramentosadministrados, os quais devem alcançar os perdidos com as boas-novas ecom o amor ao próximo.

Isso significa que a igreja não é um clube para pessoas com gostos culturais, opiniões políticas, origem étnica e orientação moral semelhantes.Elas não se reúnem porque compartilham um hobby chamado de espiritualidade ou porque têm a mesma visão para transformar a cultura. Oscrentes se reúnem, regularmente, para serem reconstituídos como o corpode Cristo, recebendo Cristo como seu Cabeça vivo. Eles não se reúnem

45* Aqui há a referência a expressão "bumed-over district" usada por Finney para sereferira áreas totalmente evangelizadas por ele e seu grupo. Mais tarde, ela foi usada por WhiteyCross, maspodendo ter o significado de "queimada total" também, talvez umareferência adestruição no campo reliogioso deixada pelo trabalho deFinney [N. daR.].46 Veja, por exemplo, Cross, The Burned-Over District.47 Pasquarello III, Michael. Christian Preaching: A Trinitarian Theology ofProclamaiion.GrandRapids: BakerAcademic, 2007,pág. 24.

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por iniciativa própria, mas são reunidos pelo Espírito, por meio de seusmeios de graça ordenados.

Diferentemente das associações voluntárias (clubes do livro, partidospolíticos ou fas de ópera ou de bandas de garagem), aigreja não écomposta de pessoas que eu escolhi para serem meus amigos. Deus os escolheupara mim e me escolheu para eles. Éminha família por causa da eleiçãode Deus, não da minha. Reunidos para sermos redefinidos pelo reino deCristo, em vez de para os reinos deste mundo, somos depois espalhadosno mundo como sal- nãoamontoados juntos,nas sociedades cristãs, paraatransformação moral epara as causas políticas eclesiasticamente sancionadas, mas dispersos, em todo o mundo, como médicos, donas de casa,encanadores, advogados, motoristas de caminhão, cidadãos e vizinhos.

Se o objetivo da instrução para crianças e adultos for principalmente adivulgação para os sem-igreja, o serviço para o bairro ou mesmo a construção de um senso de comunidade e companheirismo, vamos ter igrejascheias de pessoas que não sabem no que acreditam ou por que acreditam,mas que, no entanto, sentem uma incumbência pesada de fazer mais coisasdo que se sentem preparadas para fazer. Contudo, se nos reunimos regularmente para a"doutrina dos apóstolos ena comunhão, no partir do pão enasorações" (At 2.42), oevangelho cria uma comunidade em torno de Cristo,emvezde emtorno de si mesmo, e fornece exatamente o que é necessáriopara o testemunho bem informado e motivado, e para o serviço ao nossopróximo forada igreja, durante a semana.

Claro que todos nós temos diferentes localizações: étnicas, sociais, econômicas, educacionais, culturais e de geração. Mas, quando Deus é o ator,dirigindo a execução da peça de seu púlpito, mesa epia batismal, a localização mais decisiva está em Adão ou em Cristo. Embora o movimento decrescimento da igreja (ou de buscadores) defenda suas perpétuas inovaçõescomo mais missionárias, não houvecrescimentona taxa de conversões professas durante este período. Na verdade, houve um declínio.48 Não é de seadmirar, jáque mesmo aqueles criados na igreja são vítimas de uma "fomesobre a terra, não de pão, nem sede de água, mas de ouvir as palavras doSenhor" (Am 8.11).

Até que reavaliemos nosso compromisso com o paradigma reavivalistaem si, vamos ver a igreja como consumidores que assinaram um contratode serviços espirituais, enão como pecadores que foram incorporados, pelagraça de Deus, emuma comunidade pactuai.

48 "A proporção dos sem-igreja tem crescido vagarosamente desde ofinal da década de 80",de acordo com Barna, George. The Index ofLeading Spiritual Indicators. Dallas: Word,1996, pág. 34.

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Por quetantos cristãos estão esgotados com a igrejaUma das principais razões pelas quais muitos crentes, atualmente, acabampor viver ocristianismo sem Cristo, mesmo nas igrejas que se identificamcomo centradas emCristo, é que a ênfase dominante estános meios deserviço em vez de nos meios da graça. Muitos cristãos, hoje, estão esgotadose não sabem ao certo a razão. Em muitos casos que encontrei, o motivo éque eles têm sido vítimas de constantes exigências, enquanto oevangelhopermanece em segundo plano.

Sem dúvida, aigreja local envolve acomunhão entre os santos, que inclui obras de serviço à família da fé. Mas temos confundido o sacerdóciode todos os crentes com o ministério de todos os crentes, como se Cristonunca tivesse instituído os ofícios que encontramos nas epístolas. Nestaabordagem, cada ovelha deve ser um pastor. Oapelo para as ovelhas seautoalimentarem éa conseqüência natural desta linha de pensamento empobrecida.

Aigreja tem uma comissão muito restrita. Não é chamada para ser umbairro alternativo, um círculo de amigos, um comitê de ação política, umclube social ou uma agência de serviço público; ela échamada para pregarCristo de forma tão clara e plena, que os crentes sejam preparados paraser sal e luz nas posições seculares para as quais Deus os chamou. Por queuma pessoa deve se dar ao trabalho de pertencer auma igreja ecomparecertodo domingo, se Deus for o receptor passivo e nós os doadores ativos? Écomo esperar que uma pessoa anseie pelo Natal quando estásempre dandopresentes, mas nunca recebe nada. Ao responder a queixa de Simão contraamulher que ungiu seus pés com um perfume caro, Jesus disse: "Aquele aquem pouco seperdoa, pouco seama". Então, ele sevirou para a mulher edisse: "Perdoados são os teus pecados" (Lc 7.47-48). Quando regularmenteouvimos e recebemos operdão de Cristo, ficamos cheios de amor por ele epelos outros.

Quando Jesus começou a lavar os pés dos discípulos, Pedro se sentiuconfuso e perguntou: "Senhor, tu me lavas os pés a mim? Respondeu-lheJesus: Oque eu faço não osabes agora; compreendê-lo-ás depois" (Jo 13.6-7; grifos do autor). Depois? Depois do quê? Jesus estava se referindo aoseu ato final de serviço no Gólgota, pelo qual Pedro o repreendeu diversasvezes ao falar nisso, quando estavam se aproximando de Jerusalém. Pedroestava pronto para a ação: uma coroação ou uma revolução, mas não paraa crucificação de Jesus. Como era de se esperar, Pedro protestou: "Nuncame lavarás os pés. Respondeu-lhe Jesus: Se eu não te lavar, não tens partecomigo" (v. 8).

Não é no "era umavez, numa colina distante", mas toda semana o Filho de Deus vem nos servir. Podemos protestar. Podemos pensar que nósé que precisamos servir a Deus, e não vice-versa. No entanto, Jesus nos

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diz, como disse a Pedro, que isso é, na verdade, um insulto, uma formade orgulho. Nós somos aqueles que precisam ser banhados, vestidos ealimentados, não Deus.

Jesus nos serve usando anós mesmos, eespecialmente osoficiais que elechama por intermédio da igreja. Tanto os líderes quanto os membros precisam ser lembrados de que o ministério público de pastores e professoresnão é um obstáculo autoritário para o trabalho vocacionado detodo ocorpo,mas dom do Cristo que ascendeu, que prepara os santos para viverem juntosem amor epara viverem suas vocações no mundo (Ef4.8-15). Os ministrospregam Cristo por meio de seu ministério da Palavra, não só nos sermõesbem preparados, mas em todo oserviço. Na verdade, oprincipal objetivo decantar na igreja não éexpressar nossa experiência interior, devoção ezelo,mas servir uns aos outros: "Habite, ricamente, em vós a palavra de Cristo;instruí-vos e aconselhai-vos mutuamente em toda a sabedoria, louvando aDeus, com salmos, e hinos, e cânticos espirituais, com gratidão, em vossocoração" (Cl 3.16). Ouvimos a Palavra, cantamos a Palavra e meditamossobre ela na comunhão dos santos. Ensinamos esta Palavra diariamentepara nossos filhos na instrução familiar e quando expressamos nossa confiança em Cristo diante deles. Tudo isso étão vital porque confiar em Cristosomenteé nadar contra a correnteza da naturezahumana.

Pastores e professores não são guias de viagem que oferecem espaçospara que todos possam canalizar seus dons e energias para a igreja, massão pregadores da mensagem de Cristo. "O qual nós anunciamos", escrevePaulo, "advertindo a todo homem e ensinando a todo homem em toda asabedoria, a fim de que apresentemos todo homem perfeito em Cristo; paraisso éque eu também me afadigo, esforçando-me omais possível, segundoa sua eficácia que opera eficientemente em mim" (Cl 1.28-29).

Se as pessoas estão murchando na videira com exortações perpétuas semboas-novas, louvam sem serem lembradas de que estão louvando a Deus,exortam à imitação ativa de Cristo antes de serem primeiramente chamadasa recebera Cristoe suasboas dádivas - então,não é nenhumasurpresaquelhes falte motivação piedosa para amar e servir o próximo no mundo. E seelas não estiverem sendo regularmente imersas no ensino das Escrituras,será que devemos nos surpreender que nosso testemunho de Cristo entrenossos vizinhos seja superficial, confuso e confundido? Aqueles que sãoricamente alimentados no banquete do Senhor vão querer alimentar outroscom o pão de cada dia de suas vocações seculares normais e com o Pãoda Vida do seu testemunho de Cristo (e estarão preparados para isso). Noentanto, crentes que seautoalimentam vão sempre acabar seesgotando - senão vagarem por caminhos estranhos primeiro. Antes de alimentar outros,devem ser alimentados; antes de servir, devem ser servidos - e não apenasuma vez, mas toda semana.

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Aigreja não é o evangelho. Quer embalada em altas formas de igreja (com a igreja como um lugar institucional) quer em versões baixas deigreja (a igreja como indivíduos transformados), a idéia corrente entre nóshoje é que a igreja está engajada em uma missão redentora, estendendo avida salvadora e a missão de Cristo no mundo. Mas, se quisermos tirar ofoco de nós ecolocá-lo de volta em Cristo (para acorreta interpretação dasEscrituras), vamos ter de parar de nos dar tanto crédito. Não redimimos;fomos redimidos. Aencarnação (o Filho de Deus se tornando carne) não éum protótipo para nós epara nossa vida eministério encarnados no mundo;é um evento único de uma pessoa única, da qual temos sido testemunhas,em vez de coagentes. Nem como a soma total dos cristãos nascidos denovo nem como uma instituição histórica com um endereço postal a igrejaé salvadora; ela é sempre ocorpo pecador que é salvo. Aigreja não dá testemunho de sua própria santidade ou zelo, mas de Cristo, que "justifica oímpio" (Rm 4.5).

No entanto, como uma instituição fundada por Cristo, que lhe deu osdons dos pregadores, mestres, presbíteros e diáconos, a igreja é, de fato,nossa mãe ao longo de nossa peregrinação. Longe de colocar aigreja contraa experiência individual de Cristo, o protestantismo confessional reconheceu que toda nossa experiência com Cristo é comum, histórica e mediadapor meio de agência normalmente criada. Ecoando opai da igreja Cipriano,Calvino diz: "Seja quem for que tem Deus como o Pai, tem a igreja comosua mãe". O entusiasmo (Deus-dentro-ismo) contrapõe o testemunho interior do Espírito Santo ao ministério exterior. Todavia, é um "privilégiosingular", Calvino escreve, que Deus tenha condescendido "consagrar parasi mesmo as bocas e as línguas" dos pecadores para que "sua própria vozpossa ressoar neles".

Embora o poder de Deus não seja limitado pormeios exteriores, ele, entretanto, nos ligou a esta forma comum deensino. Fanáticos, recusando-se apegar a ela, enredam-seem muitas armadilhas mortais. Muitos são levados, por orgulho, desgosto ou rivalidade, à convicção de que podemlucrar o suficiente com a leitura e a meditação privada;daí, desprezam as reuniões públicas e consideram a pregação supérflua. Mas (...) ninguém escapa da penalidadejusta desta separação profana sem encantar-se com errospestilentos e desilusões torpes.49

49 Calvino, João. Institutos 4.1.5.

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Miroslav Volf salienta que o líder separatista John Smyth aconselhouque aqueles que são "nascidos de novo (...) não devem necessitar mais demeios de graça", já que as pessoas da Trindade "são melhores do que todasas escrituras ou criaturas de qualquer tipo". Pelo contrário, como observaVolf, os reformadores taxativamente afirmaram a atividade salvadora deDeus por intermédio de meios humanos - até mesmo aponto de chamar aigreja de mãe dos fiéis.50

O entusiasmo assumiu todos os tipos de formas na Idade Moderna:desde o racionalismo sofisticado do Iluminismo até o sentimentalismoanti-intelectual da fronteira americana. Oefeito do pietismo (especialmente culminando no Segundo Grande Avivamento), como observa WilliamMcLoughlin, foi mudar aênfase da "crença coletiva, adesão aum credo eobservância das formas tradicionais, para aênfase na experiência religiosaindividual".51 Se o Iluminismo passou "a autoridade final na religião" daigreja para "a mente do indivíduo", opietismo eoromantismo colocarama autoridade final na experiência do indivíduo.52 Tudo isso sugere que, háalgum tempo, oevangelicalismo tem sido tanto ofacilitador como avítimado secularismo moderno.

Éinteressante que, no estudo de Willow Creek, citado anteriormente,aanalogia da igreja-como-pais foi, na verdade, utilizada para sugerir que,quando os crentes atingem a maturidade, acham a igreja menos importante. Isto é uma grande distância entre a imagem do Novo Testamentode encontros regulares para a pregação, ensino, sacramento, comunhãoe orações.

Crescer, nesta concepção, é um processo sem fim nesta vida. Crescemos em Cristo e em seu corpo. Crescer fora da igreja é perder nossaligação com aseu Cabeça (Ef 4.12-15). Nossa fé nunca ésuficientemente forte, nossa esperança nunca é brilhante o suficiente e nosso amornunca é quente o suficiente para alimentarmos a nós mesmos. Apessoamadura não acha a igreja menos importante porque sabe que a fonte desua fé e maturidade é sempre o ministério de Cristo por meio de seusembaixadores. Como um pai cauteloso, a igreja nunca vai fazer seusfilhos cuidarem de si mesmos, jogados para frente e para trás com todoo vento de doutrina, mas vai conduzir o rebanho de Cristo durante todasua peregrinação terrena.

50 Volf, Miroslav. After Our Likeness. Grand Rapids: Eerdmans, 1993, págs. 161-162.51 McLoughlin, William. Revivais. Awakenings, and Reform. Chicago: University ofChicago Press, 1980, pág. 25 (agradeço aToby Kurth por fornecer esta eareferência seguinte).52 Landsman, Ned C. From Coloniais to Provinciais: American Thought and Culture,1680-1760. Ithaca, NY: Cornell University Press, 2000, pág. 66.

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Ochamado ao discipulado: há alguma coisa para fazermos?Oministério da igreja éoserviço de Deus para nós por intermédio de pastores, mestres, presbíteros e diáconos, oqual gera uma comunidade agradecida com o dom genuíno de dar, que transborda para o mundo. Oreinode Deus éalgo que estamos recebendo, não que estamos construindo (Hb12.28). OSenhor da igreja não disse "edifiquem minha igreja", esim que,sobre a "rocha" da confissão de que Jesus é o Cristo, "edificarei a minhaigreja, eas portas do inferno não prevalecerão contra ela" (Mt 16.18).

Em sua Grande Comissão, o Cristo ressuscitado não disse "estou saindo agora, mas vocês vão tomar meu lugar e dar seguimento à minha obraredentora, seguindo meu exemplo". Pelo contrário, ele disse: "Toda a autoridade me foi dada no céu ena terra. Ide, portanto,jlZizei discípulos de todasas nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo;ensinando-os aguardar todas as coisas que vos tenho ordenado. Eeis queestou convosco todos os dias até a consumação do século" (Mt 28.18-20;grifos do autor). Oindicativo vem em primeiro lugar edá origem ao imperativo - e, mesmo assim, Deus sempre termina com outro indicativo. Oevangelho vai atrás de nós, antes de nóse à nossafrente.

Aigreja é, antes de tudo, criada pelo evangelho edepois levada de voltaao mundo como povo justificado erenovado para amar eservir seu próximo, oferecendo testemunho de Jesus Cristo. Portanto, a igreja éum lugaronde Deus age em juízo e graça e um povo que éjulgado e justificado,vivendo sua vocação no mundo.53 É uma organização histórica, fundadapor Cristo, na qual ele se dá aos pecadores no Batismo, na pregação e naCeia do Senhor, eum organismo espiritual que está unido, por meio da fé, àsua Cabeça viva. Isso significa que oevangelho tem prioridade sobre todasas ações humanas, e qualquer igreja particular só é verdadeiramente umaigreja se Cristo aestiver dirigindo por sua Palavra eEspírito.

Não obstante, omovimento da Igreja Emergente nos fez lembrar de quehá um sério chamado para o discipulado no Novo Testamento. Seus dirigentes estão certos ao desafiarem o individualismo consumista de grandeparte do evangelicalismo contemporâneo. Contudo, será que este nobreobjetivo pode ser alcançado oferecendo-se várias situações no espaço deculto para os indivíduos experimentarem sua própria experiência religiosaprivada? Uma pessoa encontra um ícone atraente, outra escolhe um labirinto, uma terceira prefere sentar eouvir algum ensinamento, enquanto umamigo sai para tomar a comunhão. Como isso reflete a comunidade maiscompletamente que toda acongregação de jovens e idosos, ricos epobres,profissionais cultos e pessoas que abandonaram a escola - todos sendo cha-

53 Veja Veith, Gene Edward. The Spirituality ofthe Cross: The Way ofthe First Evangeli-cals. St. Louis: Concórdia, 1999.

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mados para deixar suas ocupações e se sentarem à mesa comum, receberdons comuns, por intermédio de meios comuns?

Jesus tinha discípulos, o que significa alunos. Um estudante no séculoIo, em Israel, era diferente de um aluno em uma universidade atualmente.Um mestre (rabino) chamava os seguidores, que se encontravam regularmente para instrução e comunhão pessoal. Ao contrário do professor distante de hoje, que dá aaula e sai da classe (como os pastores fazem muitasvezes), tais professores passavam tempo com os alunos para que eles não sófossem informados, mas também formados pela sabedoria e pelo exemplodo rabino. Sempre fiquei impressionado com o fato de que, quando Luterose sentiu chocado com a ignorância do povo comum, até mesmo do Credodos Apóstolos, dos Dez Mandamentos eda Oração do Senhor, não passou atarefa aos subordinados, mas escreveu e pessoalmente ensinou às criançaso catecismo durante a semana. Esta perspectiva do pastor como o principalcatequista foi preenchida por Calvino e por outros reformadores - o queligou os jovens à comunidade da qual eram parte e na qual cresciam. Emcontrapartida, as pessoas de hoje estão clamando por guias espirituais, treinadores e mentores, como se fossem órfãs em vez de herdeiras do pacto.Se como pastores, professores epresbíteros cumpríssemos nosso ministériomais fielmente, este desejo compreensível por orientação na vida cristã seriasatisfeito pelo ministério ordinário da igreja.

O filósofo de ciência Michael Polanyi explicou como as ciências físicas evoluíram de forma semelhante. Embora seja menos uma questão deacumular dados que aprender um ofício, os cientistas bem-sucedidos sesubmetem à autoridade de seus superiores mais velhos. Tornar-se umbomcientista sempre foi um pouco parecido com se tornar um bom violinista ouum bom produtor de vinho. Você tem de passar tempo aprendendo ooficio.Em nossos tempos, em que se valoriza eficiência e volume sobre maturidade e qualidade, preferimos ter um especialista que escreve as regras decomo tocar violino ou decomofazer vinho em quatro passosfáceis. O queprecisamos, no entanto, são práticas que valorizam compromissos de longoprazopara com um ofício.

O discipulado cristão é um processo permanente de ser edificado no"corpo de Cristo, até que todos cheguem àunidade da fé edo pleno conhecimento do Filho de Deus", e isso pormeio do domde pastores e professores(Ef4.11-13; veja também vs. 14-16). Este ministério molda pais, amigos dafamília, avós e treinadores de liga mirim para serem servos daPalavra paraas crianças enquanto estão crescendo na igreja. Também somos chamadospara crescer "na graça eno conhecimento de nosso Senhor eSalvador JesusCristo", para, assim, não perdermos nossa firmeza (2Pe 3.17-18). O domnecessário para o ministério, diz Paulo, foi dado por Deus, mas reconhecido e confirmado pela igreja, por meio do exame e da ordenação (2Co 5.18;

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2Tm 2.14-25; 4.1-5; Tt 1.5-2.2; cf. At 6.4-6). Um evangelho autorizadovem com um ministério autorizado. São os ministros da Palavra de Deus- não as pessoas que gostam de construir seus próprios nichos, partilharsuas próprias experiências e determinar suas ênfases - que Deus qualificapelo treinamento, pela provação epela aprovação, eque nos trazem os donsde Deus em seu nome. Nosso objetivo não édeixar nosso próprio legado,mas distribuir a herança de Cristo.

Se a igreja é criação de Deus, o resultado de sua eleição, redenção egraça renovadora, então por que devemos permitir que dados demográficosde nossa cultura de marketing enfraqueçam sua catolicidade ou unidadeem Cristo?

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Um chamado à resistência

Ao encerrar suas palestras nos Estados Unidos, antes de retornar àAlemanha nazista, onde acabaria por ser enviado para um campo de concentraçãoe executado, Dietrich Bonhoeffer resumiu a religião norte-americana como"protestantismo sem Reforma". Embora ainfluência da Reforma na históriareligiosa dos EUA tenha sido profunda (especialmente antes de meados doséculo 19) e continue a ser um contrapeso para o domínio do patrimônioreavivalista, o diagnóstico de Bonhoeffer parece ser justificado:

Deus não concedeu ao cristianismo americano Reformaalguma. Ele lhe deu vigorosos reavivalistas, clérigos e teólogos, mas nenhuma Reforma da igreja de Jesus Cristopor meio da Palavra de Deus. (...) Ateologia americana e aigreja norte-americana como um todo nunca foram capazesde compreender o significado da "censura" pela Palavra deDeus e tudo oque isso significa. Do primeiro ao último, elesnão entendem que a "censura" de Deus toca até mesmo areligião, o cristianismo da igreja e a santificação dos cristãos, bem como que Deus fundou sua igreja para muito alémda religião e da ética. (...) Na teologia norte-americana, ocristianismo ainda é essencialmente religião e ética. (...) Porcausa disso, a pessoa e a obra de Cristo, na teologia, vãopermanecer em segundo plano e, por longo prazo, ficar incompreendidas, porque não são reconhecidas como o únicofundamento dejulgamento e deperdão radical.1

1Bonhoeffer, Dietrich. "Protestantism without the Reformation", em No Rusty Swords:Letters. Lectures and Notes, 1928-1936 (Edwin H. Robertson org.; Edwin H. Robertson eJohn Bowden trad.). Londres: Collins, 1965, págs.92-118.

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Repetidamente, a igreja tem se revelado como cúmplice voluntária doseu próprio cativeiro, na nova aliança, bem como na antiga. Observandoessa tendência em sua época, Martinho Lutero escreveu On the BabylonianCaptivity ofthe Church, onde argumenta que a igreja precisa desesperada-mente ser liberta, pelo seu Senhor, da escravidão às coisas que consideracomobenignas ou mesmo auspiciosas.

Será que a palavra cativeiro é forte demais? Afinal, não existe nadacomo um Gabinete de Assuntos Religiosos controlando a expressão verbalda igreja nos EUA. Em seu livro Amusing Ourselves to Death, o escritor judeu Neil Postman (um professor de comunicação naUniversidade deNova York) aponta a diferença entre dois cenários apocalípticos. Em seulivro 1984, George Orwell prevê uma sociedade dominada pelo "GrandeIrmão", um regime totalitário. Congratulando-nos por ter evitado aprofeciade Orwell, pelo menos nos EUA, nos esquecemos do Brave New World,de Aldous Huxley, um pouco mais antigo, com um cenário completamente diferente. Enquanto Orwell prevê uma opressão imposta externamente,Huxley imagina umcativeiro autoimposto:

Na imaginação dele, as pessoas viriam a amar sua opressão, aadorar astecnologias que destruiriam sua capacidadede pensar. Oque Orwell temia era aqueles que proibiriamos livros. O que Huxley temia era que não haveria razãopara proibir os livros, pois não haveria ninguém querendolê-los. Orwell temia aqueles que nos privariam de informações. Huxley temia aqueles que nos dariam tantas queseriamos reduzidos à passividade e ao egoísmo. Orwelltemia que a verdade fosse ocultada de nós. Huxley temiaque a verdade fosse afogada em um mar de irrelevância.Orwell temia que nos tornássemosuma cultura cativa. Huxley temia que nos tornássemos uma cultura insignificante, preocupados com coisas como feelies2*, orgy porgy ecentrifugai bumblepuppy?

2' Feelies: filmes populares, com tramas simples; nas sessões, as pessoas sentariam empoltronas especiais, que permitiram sentir ofilme e interagir com ele. Orgyporgy: seria umtipo de encontro em grupo, onde homens emulheres se reuniriam para beber, usar uma drogapermitida pelo Estado (Soma) eter relações sexuais. Centrifugai bumblepuppy: jogo infantilfictício, que envolveria um anel de aço euma bola. Todas estas definições sereferem adiversões fictícias, criadas por Huxley para completar adescrição de uma sociedade futurística,egocêntrica e voltada para prazeres rápidos [N. daR.].3Postman, Neil. Amusing Ourselves to Death: Public Discourse in the Age ofShow Business. NovaYork: Penguin, 1985, pág.vii.

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Se formos escravos, não será de um opressor externo, mas de nossosdesejos triviais. Somos cativos voluntários - até que Deus entre em cenae pronuncie o seu comando solene para os principados e potestades quetemos entronizado: "Deixa meu povo ir!".

Um discurso de resistência

Um discurso de resistência é apropriado nestas situações, mas temos deser cuidadosos quanto a sua razão. Existe, naturalmente, um espírito anti-modernista cuja estratégia de resistência é tão perigosa quanto simplista.O inimigo é facilmente identificado: o humanismo secular, as escolas públicas, os democratas, os liberais e os gays; ou, de outro ponto de vista, ofundamentalismo, as escolas cristãs, os republicanos, os conservadores eos patriarcalistas. E já que a cultura - nossavida públicacompartilhada - éreduzida a um espetáculo de política, a única maneira de resistir é venceras guerras culturais.

O discurso de resistência que estou sugerindo, porém, diz respeito à recuperação da fé e das práticas cristãs dentro da própria igreja. Ele começapor desafiarnão só as exibições fracas de Deus, do pecado e da graça, masas estruturas de aparência, os paradigmas ou as cosmovisões que tornam opanorama bíblico cada vez menos compreensível, mesmo para a maioriados cristãos. No discurso de resistência cristã, Deus é o orador. É hora decomeçar a ouvir a voz de Deus na Bíblia novamente, de levar nosso Senhordo pacto mais a sério que a nós mesmos, bem como ao amplo público secular que precisa ser salvo de sua autofala.

Pode ser simplesmente que a estratégia mais relevante, especialmenteem nosso contexto, seja destacar esses pontos nos quais a verdade de Deusdesafia nossas própriasmeias-verdades e mentiras, em vez de minimizá-los."Em uma cultura onde a religião é, social e psicologicamente, funcional",argumenta o sociólogo Peter Berger, "a pregação cristã em si devia chamaro povo para um confronto com o Deus que se posiciona contra as necessidades da sociedade e contra as aspirações do coração humano".4

Como o próprio evangelho, esta estratégia parece ir contra o senso comum - principalmente depois de ser completamente doutrinada nas estratégias de compromisso mascarado como missão. Não mais tradução do evangelho. Este é uma ofensa, precisamente nos mesmos pontos e pelas mesmasrazões, como sempre. Os esforços para traduzir o evangelho em linguagemcontemporânea, na verdade, visam a torná-lo não apenas mais compreensível, mas mais crível. O problema é que o evangelho é tão sem sentido ao

4Berger, Peter. TheNoise ofSolemn Assemblies: Christian Commitment and the ReligiousEstablishment in America. Garden City, NY: Doubleday, 1961, págs. 125-126.

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nosso orgulhodecaídoque não pode ser cridoà parte de um milagreda graça divina. E como é por meio do próprio evangelho que o Espírito realizaesta proeza, eliminamos a única possibilidade de uma conversão genuínaque temos em nosso arsenal. Perdido na tradução está o próprio evangelho- e, portanto, a única esperança de transformação real e de perdão.

Precisamosrecuperareste sentimento tão difundidoem outros períodos,a saber, que mesmo os cristãos não sabem do que realmente precisam ouo que querem, e que atender às suas necessidades sentidas imediatas podeabafar a única proclamação capaz de satisfazer, de fato, as necessidadesreais. Berger julga que "a conseqüência pessoal mais geral do abandonodos critérios teológicos para a vida cristã é o culto da experiência. (...) Opragmatismo emocional, agora, toma o lugar do confronto honesto coma mensagem cristã".5 Isso significa que as pessoas permanecem presasdentro de sua própria psique e de seus recursos internos irremediavelmente,suprimindo a verdade sobre si mesmas, a qual pode levá-las a Cristo. Nãomais objetivamente culpadas diante de um Deus santo, somente sentemuma sensação de culpa ou vergonha que negam, alterando o assunto paraalgo mais leve e mais otimista. Não mais salvas da condenação - que é afonte de seu mais profundo sentimento de ansiedade - elas estão agora asalvo do desgosto.

Somos os mortos-vivos, esquecidos de que nossa roupa de designer demoda da religião e da moralidade é, realmente, uma mortalha. Parafraseando Jesus, passamos pela vida como cadáveres maquiados, nem mesmoconscientes de que todas nossas transformações e autoaperfeiçoamento sãoapenas cosméticas (Mt 23.25-28).

Nossas folhas de figueira podem ter se tornado mais sofisticadas (e caras), mas não são melhores para cobrir nossa nudez na presença de Deus doque o guarda-roupa feito em casa por nossos primeiros pais. Não só os nossos pecados, mas "todas as nossas justiças, [são] como trapo da imundícia"(Is 64.6). Isaías 59 registra o julgamento no tribunal: o Senhor contra Israel.Embora as pessoas se queixassem de que muitas calamidades vinham injustamente caindo sobre elas, o profeta, como o advogado de Deus, expõeos que fazem a denúncia como autores, em vez de vítimas: "As suas teiasnão se prestam para vestes, os homens não poderão cobrir-se com o que elesfazem, as obras deles são obras de iniqüidade, obra de violência há nas suasmãos" (v. 6). Somente após a apresentação da evidência é que as pessoasconfessam seus pecados e reconhecem que trouxeram o juízo de Deus sobresi (vs. 9-15). Nesta situação, o Juiz, vendo "que não havia ajudador", assume para si a tarefa de colocar a vestimenta de batalha e ganhar a salvação deseu povo pagando ele próprio o preço. "Virá o Redentor a Sião e aos de Jacó

'Ibid.

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que se converterem" de seus pecados, "dizo Senhor" (vs. 16, 20). A igrejanão só nos permitiu mudarde assunto, comomudou o assunto para nós.

São os falsos profetas que "curam superficialmente a ferida do meupovo, dizendo: Paz, paz; quando não há paz" (Jr 8.11). Eles "vos enchemde vãs esperanças", acrescenta. "Falam as visões do seu coração, não o quevem da boca do Senhor. Dizem continuamente aos que me desprezam: OSenhor disse: Paz tereis" (Jr 23.16-17). Não é compaixão para com o povoou zelo pela casa de Deus, mas sua própriasede de popularidadeque tornaos falsos profetas constitucionalmente incapazes de dizer a verdade sobrea crise.

Encerrados em nosso estreito mundo de manipulação pessoal, nuncafomos apresentados ao mundo realcriado pelaPalavra de Deus. Em vez dealgo novo e surpreendente que possa realmente trazerverdadeira transformação em nossas raízes, somente ouvimos mais e mais o fundo musical deMuzak, suavemente afirmando o statusquo. Em vez de sermos levados atéo fim de nossos recursos, de modo que abandonemos todos os outros títulose caiamos nos braços misericordiosos de Deus, somos encorajados a novamente tentar salvar a nós mesmos (embora limitado) com a ajuda de Deus.O pecado e a redenção são banalizados quando escrevemos o roteiro.

Em suas mensagens às igrejasemApocalipse 3, Cristo se dirige à igrejade Laodiceia. Ao contráriodas igrejas de Pérgamo e de Tiatira, essa igrejanão é um porto de heresia e imoralidade; nem é morta, como a igreja deSardes. Semelhante à igreja de Éfeso, oscrentes deLaodiceia tinham perdido seu primeiro amor, Cristo; assim, tornaram-se mornos - nem frios nemquentese, portanto, inúteis tanto para aquecerquanto para refrescar.

Dizes: Estou rico e abastado e não preciso de coisa alguma,e nem sabes que tu és infeliz, sim, miserável, pobre, cego enu. Aconselho-te que de mim compres ouro refinado pelofogo para te enriqueceres, vestiduras brancas para te ves-tires, a fim de que não seja manifesta a vergonha da tuanudez, e colírio para ungires os olhos, a fim de que vejas.Eu repreendo e disciplino a quantos amo (Ap 3.17-19).

Uma igreja que seja profundamente consciente de sua miséria e de suanudez diante de um Deus santo se apegará tenazmente a um Salvador todo-suficiente, enquanto aquela que é autoconfiante e relativamente inconsciente de sua pecaminosidade inerente se inclinará para a religião e para a moralidade sempre que lhe parecer conveniente.

Os fariseus pensavam que se apenas pudessem fazer que todos seguissem as regras corretas, poderiam introduzir o reino messiânico. No entanto,quando o próprio Messias realmente apareceu, foram confrontados com sua

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própria injustiça e impotência. Cristo não veio paraajudar as pessoas boasa se tornarem melhores, mas "veio buscare salvaro perdido" (Lc 19.10).Se este for um golpe terrível para nosso orgulho, também será a notíciamais esperançosa e mais maravilhosa quenósjamaispoderíamos ouvir. Asalvação nãoé algo para se conseguir ("procurando estabelecer a suaprópria [justiça]"), porém algoa receber: "AjustiçadeDeus"pela fé emCristo(Rm 10.3; vejavs. 1-4). Embora Paulo levasse a disciplina apostólica paratratar da imoralidade, da divisão e da imaturidade dos crentes de Corinto,nãopôs em dúvida o status deles como uma igreja, como fez com a igrejada Galácia, por estarà margem da negação do evangelho.

Confiando em nós mesmos, naturalmente nos inclinaremos para o rao-ralismo, perguntando a Jesus, junto com o jovemrico: "BomMestre, quefarei para herdar a vida eterna?". Até que sejamos como aquele administrador, colocadosdiante da verdadeira intenção da lei, vamos naturalmentesupor, comoele, que "tudo isso tenhoobservado desde a minhajuventude"(cf. Lc 18.18-21). Não assumimos facilmente que somos miseráveis, pobres, cegos e nus, pois não gostamos de assumir que estamos em situaçãode desespero, não mais que o administrador jovem e rico. Até mesmo osdiscípulos perguntaram: "Sendoassim, quempode ser salvo?". Mas Jesusolhou para eles e disse: "Os impossíveis dos homens são possíveis paraDeus" (vs. 25-26).

O secularismo nãopodeseratribuído aossecularistas - muitos dosquaisforam criados na igreja. Somos o problema. Se a maioriadosfiéisnãopodedizernadaespecífico sobreo Deusqueconsideram significativo ou explicaras doutrinas básicas da criação à imagem de Deus, do pecado original, daexpiação, da justificação, da santificação, dos meios da graça ou da esperança da glória, então a culpa dificilmente pode ser colocada nos humanistas seculares. Se, por exemplo, a privatização envolve "a transferência deafirmações verdadeiras do mundo objetivo para a subjetividade do indivíduo",6 entãoos protestantes americanos não só se adaptaram a uma culturasecular,mas fazem parte de uma herançareavivalistaque ajudou a criá-la.

Tudo o que é necessário para nos tornarmos pelagianos inconscientesé menos pregação e ensino da lei e do evangelho - minimizando os meiosde graça (Palavra e sacramento) em favor de nossos meios de transformara nós mesmos e nosso mundo. Como a autoconfiança é nossa configuraçãopadrão, nunca podemos supor que realmente temos o evangelho e agorapodemos passar às nossas próprias obras. Mesmo quando falamos de nossas obrigações para com Deus e para com o próximo, elas devem ser fundamentadas, em primeiro lugar, no evangelho da salvação pela graça, semobras. Assim, quando a igreja perde seu interesse na doutrina (uma palavra

6Ibid., pág. 131.

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que simplesmente significa ensino), não é nenhuma surpresa que vaguemosde volta aos nossos pressupostos morais e religiosos mais familiares.

Se o pietismo enfatizou a importância de ações sobre os credos, o liberalismo finalmente dispensou o último completamente. Como Barth, J.Gresham Machen foi despertado do encanto de seu professor, WilhelmHerrmann. Ele fala de um "ceticismo pragmático, esta religião otimista deuma humanidade autossuficiente", que tomou o lugar, no protestantismo,da "religião redentora até então conhecida como o cristianismo".7 Eleacrescenta:

Essas perguntas nos levam ao cerne da situação; o aumento da ignorância na igreja, o aumento da indiferençacom relação aos fatos simples, registrados na Bíblia, tudoisso pode ser atribuído a um grande movimento espiritual,muito céptico em sua tendência, que vem ocorrendo nosúltimos cem anos - um movimento que aparece não só nosfilósofos e teólogos como Kant, Schleiermacher e Ritschl,mas também em uma atitude generalizada de homens emulheres simples, em todo o mundo. A depreciação dointelecto, com a exaltação dos sentimentos ou da vontade, é, pensamos, um fato básico da vida moderna que estálevando rapidamente a uma condição na qual os homensnão sabem nada de nada nem se importam com o conteúdodoutrinário da religião cristã, no qual há um declínio intelectual geral lamentável.8

Os americanos, como já vimos, têm um traço anti-intelectual bastantepronunciado. São fazedores, não crentes; pragmáticos, não pensadores. Impacientes com o estudo e a reflexão entediantes, preferem a superação deobstáculos, a conquista da natureza e a colocação de tudo em uso mais quecompreender e gostar do que faz.

Contudo, se o moralismo - salvação de autoajuda - é nossa configuraçãopadrão, precisamos regularmente ouvir pregação e ensino para desistir dele.Batismo, comunhão e pregação nos chamam para fora de nós mesmos e denossa autoconfiança, e nos guiam para nos apegarmos a Cristo em fé e paraservirmos o nosso próximo em amor. Machen observa que "o movimentocristão, em seu início, não era apenas uma forma de vida no sentido moderno, mas um modo de vida fundado sobre uma mensagem. Era baseado não

7Machen, J. Gresham. What Is Faith? NovaYork: Macmillan, 1925, pág. 282.sIbid., pág. 23.

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em um mero programa de trabalho, mas em um relato de fatos. Em outraspalavras, ele era baseado em doutrina".9

Quando examinamos os credos ecumênicos, as confissões e os cate-cismos das tradições reformadas, uma coisa fica evidente: Cristo é o centro, o Alfa e o Ômega de fé e prática. O ensino da fé a cada geração pormeio de tais padrões, no entanto, tornou-se cada vez mais suspeito deformalismo e intelectualismo em uma cultura que valoriza a autonomiae a expressão autorreferencial. Ann Douglas observa: "Nada pode mostrar melhor a identidade alterada da Igreja Protestante do final do século19 como participante ávida na sociedade de consumo emergente do quesua obsessão pela popularidade e seu desprezo crescente pelas questõesintelectuais".10 De um extremo a outro de toda nossa paisagem cultural,a única lei deixada parece ser "pega leve". Se esperamos evangelizar osdescrentes (em outras palavras, vender nosso produto para um mercadomais amplo), vamos ter de nos livrar de tudo o que tenha arestas, tudo oque ofenda e desanime as pessoas.

Por mais que goste de imaginar o contrário, sou o meu tema que maisconheço e mais gosto, e o meu bem-estar pessoal é a minha necessidadesentida mais urgente. Gostaria de ir à igreja principalmente para falar sobreminhas necessidades sentidas e manifestar minha experiência piedosa. E,como um pregador com uma veia empresarial, seria muito mais fácil criarmeu próprio paradigma de ministério que me sentar em um escritório e preparar uma refeição para as ovelhas a partir da Sagrada Escritura. Seria muito mais fácil se pudesse partilhar minha experiência e alguns dos princípiosde vida que têm funcionado na minha vida e família jogando uns poucosversículos no meio. Mudar o foco para Deus e a história de sua fidelidadeinabalável para me salvar, apesar de mim mesmo, inserindo-me no contextomais vasto da história de seu povo do pacto, sempre me deixará irritado.Por causa da minha tendência natural de me voltar para dentro, preciso demuita paciência e trabalho para entender e aceitar esse enredo. Se for paraeu sempre dizer amém para a história de Deus e ser conduzido a ela, nadamenos que um milagre será necessário. Só o Espírito, me rescrevendo deacordo com o evangelho, para realizar esta façanha.

Ir a Deus como consumidores salvos por seguir as instruções no rótulodo produto em vez de como pecadores salvos pela graça não é apenas aessência do pecado humano, como nem ao menos enuncia sua promessa delibertação. Em lugar disso, nos leva mais fundo para dentro de nós mesmos,para o confinamento solitário das convicções, dos anseios, das necessidadessentidas, das experiências e dos pressupostos que já temos. Mantém-nos

' Machen, Christianity and Liberalism, pág. 21.0Douglas, Ann. TheFeminizationofAmerican Culture. Nova York: Knopf, 1977, pág. 7.

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sempre livres de sermos interrompidos por alguém superior a nós mesmosou por alguma coisa mais maravilhosa que nossas realizações insípidas.

Lembro, então, a maravilhosa cena do filme A Festa de Babette, quandoà sombria turma de aldeões pietistas é oferecida uma refeição muito alémdos seus sonhos mais impossíveis. Inicialmente temendo ser indulgentes, setornam companheiros deslumbrados e gratos, em uma troca de alegria. Seo mundo não sabe chorar ou festejar direito, nosso único curso de ação realmente amoroso é fazer essas coisas na frente dele, pregando e praticandoo que significa ser pecadores que foram justificados. Nossas igrejas e nósprecisamos recuperar o pressuposto fundamental de que Deus se importademais conosco para nos deixar por conta própria ou nos aprovar em nossaignorância, mentiras, manipulação e aceitação casual de interpretação darealidade pelo mundo. Em seu quarto volume da Church Dogmatics, KarlBarth brilhantemente observa que a preguiça é tanto o centro do pecadoquanto o orgulho. Não precisamos ser hereges para sermos infiéis;podemosser preguiçosos demais para ir contra o estabelecidopela sociedade. ComoC. S. Lewis memoravelmente afirmou: "Somos como uma criança ignorante que quer continuar a fazer tortas de lama em uma favela porque não podeimaginar o que significa a oferta de férias na praia"."

Quando nossas igrejas usurpam o evangelho, o reduzem a slogans ou oconfundem com moralismo e propaganda, não é de se estranhar que o tipode espiritualidadeà qual voltamos seja o deísmo moralista terapêutico. Emuma cosmovisão terapêutica, o eu é sempre soberano. Acomodar esta religião falsa não é amor - a Deus ou ao próximo- mas preguiça, privando osseres humanos da verdadeira libertação, assim como Deus da glória que lheé devida. O ego deve ser destronado. Essa é a única saída.

Uma política de resistênciaEsta era passageira tem seus regimes de poder, gerados por suas própriaspalavras e sacramentos. Por meio de seu constante bombardeio de publicidade, marketing, política e entretenimento - tudo girando junto no turbilhãoda Feira da Vaidade - seu discurso de acomodação se destina a nos tornarconsumidores passivos de suas paródias de vida abundante. Com seus sacramentos de realidade virtual e rituais de gratificação instantânea, esta erade pecado e morte nos seduz a pensar que este é o mundoreal.

Então, de onde tiramos a idéia de que a melhor maneira de garantir a relevância da fé e da prática cristã é acomodar, nesta era corrente, o discursoe as práticas da era por vir? Como poderíamos ter alguma vez imaginadoque a melhor maneira de ganhar o mundo para Cristo seria depor os únicos

11 Lewis, Weight ofGlory, pág. 26.

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instrumentos legítimos que Deus nos deu para o avanço do reino de Cristojustamente no coração da história de vaidade deste mundo?

Essa era do mal não tem apenas seu discurso de acomodação, mas também sua política de acomodação. Combinados, eles são poderosos - contudo não suficientemente fortes. Não só a mensagem do evangelho, maso método de entrega em si é a boa-nova. Deus não se limitou a falar daencarnação. Muito menos falou da encarnação como um princípio geralpara tudo que Deus faz no mundo. Não, Deus realmente se fez carne, cumpriu toda a justiça, conquistou o pecado e a morte e, em sua ressurreição,inaugurou a nova criação, como as primícias de toda a colheita. Um novoregime de poder está em marcha nesta era que está passando: o poder davida sobre a morte, a justificação sobre a condenação, a justiça sobre todo odomínio do pecado. Apolítica de Deus é a sua obra: a cruz e a ressurreição- e a expectativa confiante do retorno de Cristo em glória, para fazer novastodas as coisas.

E agora, conforme somos lembrados por Efésios 4.8-16, o Rei quesubiu faz descer seus dons dessa revolução subversiva até nós. Não temosde subir até ele. Neste texto, o apóstolo Paulo ensina que o mesmo quedesceu até as profundezas mais remotas por nós e subiu "acima de todosos céus, para encher todas as coisas" (v. 10), não guarda os tesouros desua conquista para si mesmo, mas liberalmente os distribui aos seus cativos libertos que continuam na terra. O original grego enfatiza: "Os donsque ele mesmo deu...". Eles se originaram com Cristo, não com membros individuais ou com o corpo como um todo. "Ele mesmo concedeuuns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e outrospara pastores e mestres" (v. 11). Os dons não são dados como uma hierarquia de controle, como "os governadores dos povos", que "dominam"sobre seus súditos em vez de servi-los (Mt 20.25; veja vs. 25-28). Pelocontrário, Paulo diz que eles são dados:

Com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo,até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo, para que não maissejamos como meninos, agitados de um lado para outro elevados ao redor por todo vento de doutrina, pela artimanha dos homens, pela astúcia com que induzem ao erro.Mas, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo (Ef 4.12-15).

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As traduções mais recentes tipicamente traduzem a sentença no versículo 12 como "para equipar os santos para a obra do ministério" (por exemplo,ESV, NRSV e RSV12*), que tem sido utilizada como a principal prova detexto por cada membro do ministério. Por várias razões, estou convencidode que as traduções mais antigas (especialmente do versículo 12) são maisprecisas e também captam melhor a lógica do argumento.13

Isso não significa, evidentemente, que o ministério oficial da Palavra(agora exercido por pastores e professores) seja o único dom ou que os ministros tenham a classificação mais elevada no reino de Cristo que qualqueroutra pessoa. Pelo contrário, esse dom do ministério da Palavra é dado paraque todo o corpo possa ser dotado: reunidos na unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus. Só então cada membro pode receber os dons adicionais que os fazem trabalhar juntos como um corpo maduro, com Cristocomo sua Cabeça vivente (Ef4.15-16). Os dons fluem para baixo vindos deCristo; o Grande Pastor serve ao seu rebanho por intermédio de subpasto-res, que ministram seu evangelho pela pregação e pelo sacramento.

Em outros lugares, Paulo expande a lista dos dons que são exercidospelo corpo maior (cf. Rm 12.3-8; ICo 12). Uma igreja pobre em generosidade, em hospitalidade e em outros dons de edificação mútua é doente;uma igreja que não tem a Palavra não é uma igreja. Portanto, vamos àigreja, em primeiro lugar, para receber esses dons, realizando nossa comunhão com Cristo cada vez mais e, por conseguinte, uns com os outroscomo seu corpo.

Pense nisso em termos de um jantar luxuoso, onde presentes (dons) sãotrocados. Primeiro, somos convidados, degustando a refeição que nos foigenerosamente fornecida pelo hospedeiro (Cristo), por meio de seus servos(ministros). Depois, os convidados gratos se tornam participantes ativos natroca de presentes. Tendo recebido muito, eles dão muito; o dar e o receberpresentes mútuos continuam durante toda a semana, como o cuidado dosfiéis uns pelos outros em todos os tipos de situações informais; em seguida, compartilham esses presentes com seus próximos incrédulos, em suasvocações seculares. Podemos inverter esse fluxo de presentes, não apenastransformando a mensagem do evangelho em apelos para subir as escadasdas experiências e do ativismo moral, como também os meios da graça emmeios de obras, apropriando-nos do serviço gracioso de Deus por nós, con-centrando-nos, quase exclusivamente, em nosso serviço.

n'ESV: English Standard Version Bible; NRSV: New Revised Standard Version Bible; RSV:Revised Standard Version Bible [N. da R.].13 Para uma discussão do versículo de Efésios 4.12, veja Lincoln, Andrew. Word BiblicalCommentary,vol. 42, Ephesians. Waco: Word, 1990.

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Já destaquei como nossa mensagem tem sido transformada de uma boa-nova em um bom conselho. Os efeitos de uma lei confusa e um evangelho confuso em conteúdo têm vastas conseqüências na prática da igrejatambém. Se a mensagem é ação, não credos, focalizando em "o que fariaJesus?", enquanto se assume que todo mundo já sabe o que Jesus fez (e estáfazendo e vai fazer), não é de se admirar que o fluxo de dons de Cristo paranós seja invertido no modo que vivemos nossa vida pessoal e corporativacomo povo de Deus.

Cristo não apenas designou a mensagem, mas também os métodos queconsidera coerentes com o evangelho. Paulo diz que nossa salvação "nãodepende de quem quer ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia" (Rm 9.16). Se nossa salvação é inteiramente devida à eleição, à redenção, à regeneração, à santificação e à preservação da graça de Deus, entãoos métodos que ele escolheu para entregar Cristo e todos os seus benefíciosserão meios da graça (Deus nos servindo), em vez de meio de obras (nossoserviço para Deus). Mais uma vez, isso não é excluir as obras ou nossoserviço - e sim é dizer que só quando somos salvos e servidos por Deuspodemos ser instrumentos por meio dos quais ele leva sua notícia salvadorae serviço amoroso aos outros.

Combinando a ênfase pelagiana na autossalvação com a ênfase gnós-tica na experiência interior e na iluminação externa sobre o ministério depregação, sacramento e disciplina, grande parte da prática contemporâneaem todo o espectro eclesiástico parece supor que a missão é uma coisa eas marcas da igreja (pregação e sacramento) são outras. Se a mensagemde muitas pregações já mudou de Deus e seu trabalho para nós e nossaatividade, não é de se admirar que muitos, hoje, finalmente se perguntempor que a pregação é ainda necessária no culto público. Ser missionáriofreqüentemente significa não apenas a busca de métodos adequados de testemunho e de serviço informal, além da reunião oficial do povo da aliança,mas também prescindir de todos os elementos formais do culto públicoem si. Novamente, isso não é nada novo ou especialmente pós-moderno.Aqueles de nós que foram criados no evangelicalismo conservador estãofamiliarizados com o contraste muitas vezes feito entre ser salvo e reunido

a uma igreja, como se o evangelismo pudesse ser separado do Batismo e dodiscipulado, e como se a união com Cristo pudesse ser separada da uniãocom o corpo visível.

Tal dicotomia não é encontrada no livro de Atos, onde lemos: "Acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos" (At 2.47). Osconvertidos eram imediatamente batizados e incorporados à vida cotidianada reunião pública da igreja, na qual "perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações" (At 2.42). Na verdade, aexpressão "a Palavra de Deus era anunciada" é repetida ao longo do livro de

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Atos.Amissãoe as marcasda igrejanuncaeram separadas.Com base nessahistóriado testemunhoapostólico, a igrejaé bem-sucedidaem sua missão àmedida que proclama Cristo, batiza, ensina e se reúneem torno da mesadoSenhore, depois, é espalhada pelo mundo comosua testemunha.

Porque os crentes permanecem simultaneamente santos e pecadores,nunca ficam livres de sua necessidade de serem alimentados pelo evangelho divinamente instituído por esses meios de graça. Não só em suaconversão, mas ao longo da sua peregrinação, somente o evangelho "é opoder de Deus para a salvação" (Rm 1.16). Se Cristo for claramente proclamado todo Dia do Senhor, desde o Gênesis ao Apocalipse, os crentesserão fortalecidos na fé e nas boas obras e os incrédulos serão apresentados à sua Palavra regeneradora.

Se o Batismo e a Ceia do Senhor forem acontecimentos comuns no cultopúblico, em vez de serem empurrados para os cultos dos dias da semana,para evitar a alienação dos sem-igreja com ritos estranhos, não apenas oscrentes serão renovados regularmente, mas os visitantes incrédulos testemunharãoo banho e o banquetepara o qual eles também foram convidados.Ao se depararem com esta visitação divina entre seu povo, eles podem serlevadosà convicçãodo pecado e da fé em Cristo, sendo conduzidos,pelosmembros, aos presbíteros; depois, fazem sua profissão de fé, são batizadose instruídos e, então, se juntam à companhia dos santos em comunhão. Osde fora se tornam de dentro por meio da Palavra e do Espírito; não eliminandoa estranhezaque os torna pessoasde fora, mas, em oração, aguardando pelaobrapoderosa de Deus por intermédio da mensagem estranha e dosmétodos que ele designou, vemos a missão ser bem-sucedida pelas marcasda pregação e do sacramento.

Além do mais, em nome da missão, parecemos estar tirando a igreja dosque têm igreja (comprovado por estudos que revelam que mais da metadedaqueles criados em igrejas evangélicas se tornam descrentes em seu segundo ano na faculdade). Portanto, a disciplina da igreja por meio de seusoficiais é essencial para a verdadeira missão. Pastores pregam, ensinam eministram os sacramentos; os presbíteros cuidam das necessidades espirituais do rebanho, incluindo a correção de fé e prática; os diáconos distribuemas dádivas materiais coletivas do corpo para as pessoas com necessidadestemporais. As igrejas que portam essas marcas e se esforçam para crescerem sua fidelidade a elas são missionárias.

Em nenhum momento de nossa peregrinação, qualquer cristão amadurece para além deste ministério, de maneira que fique capacitado a se autoa-limentar. Cristo não nos livra de um tirano apenas para nos deixar fracos eisolados, tornando-nos presas para o tempo, para os lobos e para as nossaspróprias andanças. "Obedecei aos vossos guias e sede submissos para comeles; pois velam por vossa alma, como quem deve prestar contas, para que

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façam istocomalegria e nãogemendo; porque istonãoaproveita a vósoutros" (Hb 13.17). Mesmonossa submissão aos presbíteros,então, é baseadano serviço amoroso de Deus e no cuidado dele para conosco. "Guardemosfirme a confissão da esperança, sem vacilar, pois quem fez a promessa éfiel. Consideremo-nos também uns aos outros, para nos estimularmos aoamor e às boas obras. Não deixemos de congregar-nos, como é costume dealguns; antes, façamos admoestações e tanto mais quanto vedes que o Diase aproxima" (Hb 10.23-25).

A Palavra se espalhou: uma igreja missionáriaNão apenas o ministério de Cristo pelo seu Espírito, por meio da Palavrae do sacramento, é suficiente para a edificação do corpo de Cristo, comotambém é suficiente para nossa missão no mundo. Os mesmos meios instituídos pelo nosso Rei, que subiu aos céus, para tornar crentes recebedoresdo reino trabalham em círculos cada vez maiores para atrair aqueles queestão longe.

Após advertir Timóteo sobre a orientação autocentralizada dos últimosdias, a incumbência de Paulonão foi conformar o evangelho às necessidades sentidasde seus ouvintes, nem substituir açõespor credos. Pelo contrário, ela foi: "Pregaa palavra, insta, quer sejaoportuno, quer não"- isto é,quando for aceita ou não.

Corrige, repreende, exorta com toda a longanimidade edoutrina. Pois haverá tempo em que não suportarão a sãdoutrina; pelo contrário, cercar-se-ão de mestres segundoas suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nosouvidos; e se recusarão a dar ouvidos à verdade, entregando-se às fábulas. Tu, porém, sê sóbrio em todas as coisas, suporta as aflições, faze o trabalho de um evangelista,cumpre cabalmente o teu ministério (2Tm 4.2-5).

A resposta ao narcisismo é não falar mais sobre nós, mas levar a Palavrade Deus para o mundo.

Se o foco de nosso testemunho for nossa vida mudada, nós, assim comonossos ouvintes, estamos condenados ao desapontamento. Os apóstolospoderiam ter nos contado mais sobre si mesmos e suas vidas mudadas: Pedro, o pescador,para Pedro, a rocha, para Pedro, o negador de Cristo, paraPedro, o apóstolo; Saulo, o perseguidor da igreja, para Paulo, o apóstolo,e assim por diante. No entanto, além destes detalhes pessoais, sabemos relativamente pouco. Não temos nem mesmo certeza do que Paulo tinha emmente quando falou sobre seu "espinho na carne" (2Co 12.7). A certeza

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que temos é o fato de que os apóstolos sabiam que também precisavam doevangelho - a absolvição pessoal de Cristo - ao longo de toda a estradapoeirenta, cheia de dúvidas, medos, sofrimento e fracasso moral.

Os apóstolos estavam maravilhados demais com Jesus Cristo e os acontecimentos que tinham se passado na História para se preocuparem em seconcentrar em suas autobiografias espirituais. Eles sabiam que era o testemunho deles da vida, da morte e da ressurreição de Cristo que tinha opoder de converter as pessoas da morte para a vida. Sem negar, de nenhummodo, a transformação interior ou a experiência deles, até mesmo isso erao resultado do evangelho. Não foi por seguir uma seqüência de passos queforam regenerados, mas "mediante a palavra de Deus. (...) Ora, esta é apalavra que vos foi evangelizada" (lPe 1.23, 25). O testemunho deles erapara Cristo, não para eles mesmos.

Ao longo do livro de Atos, mesmo em um momento em que todosos cristãos podem concordar que havia apóstolos vivos e um ministérioextraordinário de sinais e maravilhas, o sucesso da missão da igreja foisempre atribuído ao fato de que "muitos... dos que ouviram a palavra aaceitaram" (At 4.4) e "crescia a palavra de Deus" (At 6.7). A igreja ia"edificando-se" na palavra e "crescia em número", e "a palavra do Senhorcrescia e se multiplicava... e creram todos os que haviam sido destinadospara a vida eterna. E divulgava-se a palavra do Senhor por toda aquelaregião" (At 9.31; 12.24; 13.48-49). A missão e as marcas - a conversão eo ministério oficial - andavam juntas:

Tendo anunciado o evangelho naquela cidade e feito muitos discípulos, voltaram para Listra, e Icônio, e Antioquia,fortalecendo a alma dos discípulos, exortando-os a permanecer firmes na fé; e mostrando que, através de muitas tribulações, nos importa entrar no reino de Deus. E,promovendo-lhes, em cada igreja, a eleição de presbíteros,depois de orar com jejuns, os encomendaram ao Senhorem quem haviam crido. (...) Assim, as igrejas eram fortalecidas na fé e, dia a dia, aumentavam em número. (...)[Paulo] dissertava na sinagoga entre os judeus e os gentiospiedosos; também na praça, todos os dias, entre os que seencontravam ali (At 14.21-23; 16.5; 17.17).

Também muitos dos coríntios, ouvindo [Paulo], criam eeram batizados. (...) Durou isto por espaço de dois anos,dando ensejo a que todos oshabitantes da Ásia ouvissem apalavra do Senhor. (...) Assim, a palavra do Senhor cresciae prevalecia poderosamente (At 18.8; 19.10, 20).

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Deus cria mundos ao falar. A Palavra de Deus nunca é morta, à esperade ser completada por nossa própria atividade moral ou feita subordinada aela. Pelo contrário, ela é "viva e eficaz" (Hb 4.12), sempre prosperando naquilo para que é designada (Is 55.11). Na verdade, o cristianismo é uma fémissionária precisamente porque é uma doutrina, um anúncio proclamadopor embaixadores.

Deus sabe o que está fazendo. Nem a mensagem nem os métodos deentrega são criação nossa. Se Cristo não é o Rei da igreja, então, em pouco tempo, também não será seu Profeta ou Sacerdote. Precisamos olharparaele paradefinir não só a mensagem da igreja, mas também a natureza,a missão e os métodos com os quais é entregue. Enquanto o reavivalismo de Finney para o movimento de crescimento da igreja contemporâneatem encontrado novas medidas em técnicas pragmáticas, uma nova geração - compreensivelmente, sedenta de uma orientação mais transcendente- procura por novos meios de graça em práticas mais místicas.14 Uma vezque você fique preso em seus próprios meios de ascensão, estará sempre àprocura de uma nova droga.

As igrejas que se concentram apenas em cuidar de seus membros, semuma paixão para evangelizar os que estão fora, infielmente estreitam amissão que lhes foi confiada. Em contrapartida, as igrejas que se concentram principalmente nos sem-igreja muitas vezes esquecem o mandamento de Cristo a Pedro: "Apascenta as minhas ovelhas" (Jo 21.17).O equilíbrio é encontrado no sermão de Pedro no Pentecostes: "Para vósoutros é a promessa, para vossos filhos e para todos os que ainda estãolonge, isto é, para quantos o Senhor, nosso Deus, chamar" (At 2.39). Secom todo nosso zelo missionário estivermos perdendo filhos e falhandoem verdadeiramente alcançar aqueles que estão longe, talvez seja hora derepensar nosso ministério.

O que é preciso nestes dias, como em qualquer outro momento, é umaigrejaque seja uma verdadeira comunidadeda aliança definida pelo evangelho em vez de um prestador de serviço definido por leis do mercado,ideologias políticas, distinções étnicas, ou alternativas para a comunidadecatólica que o Pai está criando pelo seu Espírito, em seu Filho. Para isso,precisamos de nada menos que uma nova criação, onde o único dado demográfico que importa está em Cristo. Quando nossas igrejas estiveremoutra vez localizadas aí, tanto os convertidos quanto os que ainda temosde alcançar vão se tornar beneficiários da graça, que podem, por sua vez,amar e servir os seus próximos no mundo. Quando isso acontecer, também devemos esperar ouvir relatos novos, mesmo nos Estados Unidos,

14 McLaren, A Generous Orthodoxy, págs. 225-226.

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que "crescia a palavra de Deus, e, em Jerusalém, se multiplicava o número dos discípulos" (At 6.7).

Por que a Reforma mudou as coisasMartinho Lutero assinalou que havia muitos reformadores em seu tempo,porémtodoseles estavamtentando limparo exterior do copo.Alguns, comoos Irmãos da Vida Comum (onde Erasmo e Lutero foram educados), queriam voltar à simplicidade inicial da igreja primitiva, enfatizando o amormútuo e o serviço uns para os outros, o companheirismo e o exemplo deJesus - com um papel mais ativo para os leigos. Eles desafiaram a hipocrisia de Roma (como nas obras sarcásticas de Erasmo, In Praise ofFolly eThe Colloquies).

No entanto, a Reforma foi única - e exclusivamente eficaz - porque,como disse Lutero, foi ao cerne do problema: a doutrina. Ela chamou aspessoas para fora de si, longe de suas boas obras e dos seus pecados, paradependerem de Cristo somente, pela fé somente. O culto todo foi transformado para dar clara prioridade ao evangelho de Cristo. Já não era para servisto como um sacrifício da igreja para Deus, mas como o serviço redentorde Deus para o povo, que, em seguida, saía do culto para amar e servir o seupróximo por meio de suas vocações normais. Havia, ainda, os sacrifícios delouvor e de agradecimento, mas não havia mais sacrifícios pelo pecado, eaté mesmo os primeiros eram simplesmente o amém de fé nas boas-novasde Deus.

A Reforma iniciada por Lutero foi ao centro do que ele chamou de "ocativeiro babilônico da igreja". Assim como Paulo observou que Israel nãoencontrou a justiça que estava procurando porque foi procurá-la pelas obrase não pela fé em Cristo, os reformadores sabiam que uma verdadeira transformação - isto é, a santificação em Cristo - só podia resultar do abandonoda justiça própria para ser encontrada em Cristo.

Após dar detalhes sobre o tratamento de Calvino da Palavra pregadacomo a voz viva de Deus por meio de um mensageiro fraco, ElizabethAchtemeier acrescenta:

Ninguém acredita que Deus fale por meio de sua Palavra,até ouvi-lo. E nenhum argumento pode convencer o incrédulo sem a obra do Espírito. "Assim, a fé vem pela pregação", escreve Paulo, "e a pregação, pela palavra de Cristo"(Rm 10.17). E é a pregação de Cristo - o testemunho de féque existe além de nossas palavras humanas, uma Palavratranscendente - é somente isto que pode despertar e renovar a igreja.

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Ela também disse, no entanto, que, "devido ao fato de quegrande parteda igreja neste país não mais acredita ou espera ouvir Deus falando pormeio de suas Escrituras, ela não é mais cristã".15

Vivemos em uma época que é, simultaneamente, cínica e crédula - incapaz de acreditar em alguma coisa em particular, enquanto se abre paratudoemgeral. Conflitos têmdeaumentar inevitavelmente dentro daprópriaigreja, quando os cristãos e as igrejas negam a religião civil e abraçam oescândalo de um evangelho particular,o qual surge da narração da intrusãoperturbadora e desorientadora de Deus em nosso mundo e em nossas vidas.Mas isso precisa acontecer.

E interessante que Jesus, em seu ministério, sempre atraiu multidõespor seus sinais miraculosos, mas espantou a maioria quando começou apregar. Vemos isso especialmenteem João 6, onde Jesus anuncia que o queas pessoas não estão procurando é do que precisam: o eterno "pão do céu"(v. 31), que é o próprio Jesus. Quando as pessoas começaram a ir embora,desapontadas porque Jesus não ia satisfazer sua necessidade sentida de outra refeição,Jesus acrescentou: "Ninguémpode vir a mim se o Pai, que meenviou, não o trouxer" (v. 44). Até mesmo os discípulos disseram: "Duro éeste discurso;quem o pode ouvir?" (v.60). Naquele dia, Jesus forçou os 12a escolherem entre serem consumidores ou discípulos, e Pedro respondeu:"Senhor, para quem iremos? Tu tens as palavras da vida eterna; e nós temoscrido e conhecido que tu és o Santo de Deus" (vs. 68-69).

A igreja atual terá de aprendero que significachorar antes de poder festejar. Ser fiel à História, fixar os olhos em Cristo- mesmo se isso significar nosdesviar do que temos diagnosticadocomo nossos problemas reais - é a coisamais amorosa que um pastor pode fazer por uma congregação, o dom maisprecioso que podemos receber e repassar aos nossos próximos, bem como amissão mais relevante sobre a terra. Nas palavrasde Dorothy Sayers:

O dogma é o drama - não frases bonitas, não sentimentosconfortadores, nem vagas aspirações de bondade e elevação moral, nem a promessa de algo agradável após a morte- mas a afirmação aterradora de que o mesmo Deus quefez o mundo viveu no mundo e passou pelo túmulo e peloportão da morte. Mostre isso aos gentios e eles poderãonão acreditar; mas, pelo menos, poderão perceber que háaqui algo que a pessoa pode ficar feliz em acreditar.16

15 Achtemeier, Elizabeth. "The Canon as the Voice ofthe Living God", em Braaten, CarlE.; Jenson, Robert W.(orgs). ReclaimingtheBiblefor the Church. Edimburgo: T & T Clark,1995, págs. 120,122-123.16 Sayers, Dorothy. CreedorChãos? NovaYork: Harcourt, Brace, 1949,pág. 25.

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CRISTIANISMSEM CRISTO

EVANGELHO ALTERNATIVO DA IGREJA ATUAL

Deixamos Cristo fora do cristianismo? Nossa fé e prática são

culturais ou cristãs de fato?

O autor denuncia o cristianismo que menciona Cristo, mas o deixa

de lado, apresentando uma mensagem trivial, sentimental,

irrelevante, um evangelho moralista, de auto-ajuda e bem-estar

pessoal, egoísta.Leia com atenção para identificar os vícios da igreja atual e a

apresentação da resposta para voltarmos ao caminho do Senhor.

O Dr. Michael Horton (PhD) é o professor de apologética eteologia no Westminster Seminary, Califórnia, pastor da ChristUnited Reformed Church em Santee, Califórnia, editor-chefeda revista Modem Reformation e autor de vários livros,incluindo O Cristão e a Cultura, Creio, Cristo o Senhor, AsDoutrinas da Maravilhosa Graça, A Face de Deus, A Lei daperfeita liberdade, Um Caminho Melhor e O Deus daPromessa, todos da Cultura Cristã.

(EDITORR CULTURA CRISTR