cristãos novos negociantes em minas gerais na primeira ... · da economia colonial como um todo....
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Cristãos novos negociantes em Minas Gerais na primeira metade dos setecentos.
Franciany Cordeiro Gomes1
Introdução
Com o objetivo de apreender um pouco mais sobre a atuação dos negociantes
que viveram em Minas Gerais, nas primeiras décadas do século XVIII, a pesquisa aqui
apresentada identifica algumas das principais características comuns encontradas em um
grupo específico que compunha a rede de negociantes mineiros, os cristãos novos.
Valendo das informações constantes nos inventários de quatro indivíduos identificados
em seu estatuto social como cristãos novos, a pesquisa faz um esforço em contribuir
com algumas reflexões sobre o seu comportamento, dentro dos limites que essa fonte
nos restringe.
A pesquisa partiu da análise dos processos inquisitoriais de quatro indivíduos
denominados cristãos novos, que foram presos e processados entre 1728 e 1730. 2
Diante das informações contidas nesses processos, a pesquisa se voltou para os dados
dos inventários. A escolha destes quatro sujeitos partiu de três pré-requisitos
observados: a ligação do indivíduo com as atividades negociantes, estarem inseridos no
recorte temporal e espacial aqui proposto, e apresentarem um inventário mais completo.
Frente aos dados apresentados pelos inventários, inicialmente, tomei como
referência de análise a própria organização do documento, que mesmo sendo
estruturado em uma escrita corrente, sem subdivisões evidentes, a disposição das
informações nos mostra que possuem três áreas principais: os bens móveis e imóveis,
incluindo os escravos; as dívidas que o réu tem a receber; e por fim as dívidas que
confidente tem a cumprir. Dentro dessa perspectiva de organização, vi por bem dividir
1 Mestranda do curso de Pós-graduação em história pela Universidade Federal de Juiz de Fora, orientada
do professor doutor Ângelo Alves Carrara, [email protected]. Este trabalho foi financiado
pela UFJF e APG. 2 Deve-se ressaltar que apesar do objetivo do trabalho ser a análise da atuação de negociantes cristãos
novos, dois dos quatro inventários aqui utilizados são de indivíduos que não foram denominados como
praticantes de atividades negociantes em sua ficha de identificação no processo, mas que apresentam a
prática de uma atividade negociadora subalternas a uma atividade principal. No caso de Francisco
Ferreira Isidoro, tido como mineiro, vamos aqui considerá-lo como negociante de imóveis. E Marcos
Mendes Sanches, denominado lavrador, como negociante de produtos agrícolas.
este trabalho em três grandes áreas, a que trabalha com os bens móveis e imóveis, num
segundo momento com a atividade creditícia3, e num terceiro com as dívidas contraídas
pelo cristão novo.
Dentro da divisão das informações dos inventários em três grandes grupos, cada
sujeito recebeu uma tabela individual para cada uma das três áreas, por considerar que
este tipo de organização das informações deixaria a singularidade de cada caso evidente,
apesar deste trabalho propor sua comparação.
Posteriormente defini os dados para cada grupo da seguinte forma: no que
chamei de “bens gerais” se agrupam os objetos pessoais – como vestuário e mobiliário -
, os imóveis, roças, escravos, animais de cria – como vacas e cavalos -, armamentos, e
fazendas – como milho e feijão. No grupo referente à atividade creditícia dos sujeitos,
agrupei em outra tabela os nomes dos denominados devedores do cristão novo, da
mesma forma foi feito com o setor das dívidas, em que foram listados os seguintes
credores dos mesmos.
Os valores contidos nos inventários, naturalmente, passaram por alguns ajustes
para a melhor compreensão das informações. Estes tiveram que ser convertidos em uma
única tipologia, no caso as oitavas de ouro foram aqui avaliadas em 1$200 réis, os
valores em cruzados também foram convertidos, valendo aqui 400 réis. Alguns bens
trouxeram sua avaliação em moedas de ouro, que foram transformadas em 4$800 réis
cada. Os ajustes aqui apresentados se basearam nos valores considerados pelo autor
Ângelo Carrara. 4
Como já foi dito, um dos principais objetivos desta pesquisa é conhecer melhor a
atividade negociadora e seus agentes, que vem sendo alvo de estudos cada vez mais
complexos e elaborados. A historiografia que trata do assunto negociante busca inserir
estes indivíduos no cenário histórico, já que participaram ativamente da sociedade.
Estudos exaustivos como o de João Luís Fragoso, em seu livro Homens de grossa
aventura, mesmo não se referindo ao contexto mineiro – pois se dedica nos estudos dos
grandes negociantes da praça comercial do Rio de Janeiro, no período de 1790 a 1830 -
vem abordando o tema e identificando o papel que os homens de grosso trato exerceram
na relação colônia-metrópole, bem como a ligação que estabeleciam entre as várias
partes da colônia.
3 Considerei aqui como atividade creditícia todas as menções de empréstimos que o processado alega ter
concedido. 4 CARRARA, Ângelo Alves. Amoedação e oferta monetária em Minas Gerais: as casas de fundição e
moeda de Vila Rica. Belo Horizonte: Varia História, vol. 26, nº 43: p.217-239, jan/jun 2010.
O autor discute os debates historiográficos recentes sobre o lugar da colônia em
relação à metrópole, dialogando com a historiografia considerada tradicional, que tem
Caio Prado Júnior como principal representante. Fragoso vai contra a perspectiva
tradicional de que existe uma transferência de excedentes para Portugal, e que uma
acumulação de capital interna seria improvável por a colônia estar inserida em um
sistema denominado Antigo Sistema Colonial, em que era sujeitada ao monopólio das
transações econômicas e ao total controle pela coroa das diversas instâncias da
economia colonial, além dos diversos instrumentos de arrecadação que a metrópole se
utilizou.
Através de seu estudo sobre a circulação de capital e a atuação dos negociantes,
Fragoso demonstra a possibilidade da acumulação de capital na colônia, que acontecia
por meio de um mercado interno ativo. Fragoso também estabelece outros pontos de
contato com a historiografia que não iremos abordar por fugir de nossos objetivos.
Ainda sobre a historiografia e sua busca pela inclusão dos negociantes no
cenário colonial, temos a obra primorosa de Júnia Furtado, nomeada como Homens de
Negócio, que vem discutir a participação dos comerciantes mineiros, durante o século
XVIII, na reprodução do poder metropolitano por meio de seu papel social nas diversas
regiões da província. Júnia contribui efetivamente no conhecimento sobre o perfil e
comportamento dos negociantes que atuaram nas minas durante a produção aurífera.
Ao identificar as diversas formas de controle sobre o comércio e os comerciantes
– seja através de tributos ou legislações específicas – que afetavam diretamente o
restante da população, já que estes eram responsáveis pelo abastecimento interno das
minas, a autora identifica os artifícios utilizados pela coroa que se servia dos
comerciantes como veículo de ligação e aproximação social, fazendo sua presença se
tornar efetiva nas mais longínquas áreas sob seu domínio.
Um trabalho anterior ao de Júnia e que também nos esclarece sobre a atuação
dos negociantes na colônia, mais especificamente em Minas Gerais, foi a pesquisa de
Cláudia Maria das Graças Chaves. Em seu livro Perfeitos Negociantes, a autora disserta
sobre os diversos “escalões” de negociantes presentes nas minas, durante o século
XVIII, e suas características para com a atividade econômica, servindo como manual
para elucidações das diversas atividades comerciais do período colonial.
A autora tem o objetivo de analisar a dinâmica do mercado interno mineiro, mas
não foge da compreensão do papel negociante dentro da economia mineira, bem como
da economia colonial como um todo. Outros trabalhos mais recentes também
complementam essa busca da historiografia atual em entender os negociantes frente à
economia colonial, como podemos citar o trabalho de Alexandra Maria Pereira chamado
Lojas e vendas. Ao acompanhar a distribuição dos estabelecimentos comerciais nas
diversas localidades das comarcas de Serro Frio e Vila Rica, nos anos de 1736 e 1746, a
autora contribui significativamente montando um perfil desses negociantes nessa região,
além de constatar as características da atividade comercial na região.
Após este percurso pouco alongado frente às diversas possibilidades que a
historiografia nos oferece, pois esse não é nosso objetivo principal, a abordagem do
tema que trata do perfil dos negociantes como um todo, e seu papel diante da economia
colonial, comunica aqui com os objetivos dessa pesquisa, reconhecendo nestes agentes
sociais traços fundamentais para se compreender o contexto aqui proposto.
Mais do que entender os negociantes na esfera econômica este trabalho busca
também identificá-los e inseri-los como indivíduos pertencentes a uma sociedade
colonial, em suas várias instâncias e características, que a torna peculiar.
Cristãos novos e as minas
Para elucidar um pouco mais sobre os objetivos desta pesquisa, se faz necessário
a compreensão dos personagens aqui trabalhados e o contexto em que estavam
inseridos, a fim de que as possíveis dúvidas que surjam no decorrer desta apresentação
sejam minimizadas.
Os cristãos novos foram os descendentes dos judeus obrigados à conversão ao
cristianismo, em 1497, pelo rei de Portugal Dom Manoel. Espalhados pelas diversas
partes do Império Português, os cristãos novos participaram ativamente de todo o
desenvolvimento social que Portugal apresentou. Inseridos em quase todas as atividades
econômicas desenvolvidas pelos portugueses, como a autora Anita Novinsky enfatiza,
os judeus contribuíram com suas riquezas, seus saberes e suas experiências para a
expansão marítima do século XVI. 5
Disseminado entre a população, este grupo integrava o cotidiano da sociedade
portuguesa, compondo as principais esferas da mesma, exercendo as mais diversas
funções e atividades. Na sociedade colonial não foi diferente, a historiografia que
5 NOVINSKY, Anita W. Marranos e a Inquisição: sobre a Rota do Ouro em Minas Gerais. In:Os Judeus
no Brasil: inquisição, imigração e identidade/Keila Grimberg. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005, p. 164.
trabalha o assunto cristão novo já os identificou nas mais diversas etapas do
desenvolvimento da colônia brasileira. Autoras como Lina Gorenstein e Anita Novinsky
identificam a atuação desses personagens desde os primórdios da história colonial
brasileira, inseridos na expansão territorial com os bandeirantes até a ocupação de
cargos fidedignos nas esferas de poder colonial.
Estes sujeitos ocuparam as terras brasileiras nas mais longínquas localidades,
mas sem dúvida, Minas Gerais foi um dos redutos preferidos dos cristãos novos na
colônia. Após a notícia dos minerais preciosos brasileiros exaltarem os ânimos de todos
os indivíduos - pois ali estava disponível “a fortuna ao alcance de quantos tivessem
coragem e forças físicas para escalar as montanhas que vedavam o acesso ao solo
mineiro” 6 -, milhares de pessoas passaram para a região mineradora, dentre elas vários
cristãos novos, que viram na colônia portuguesa uma chance de ascensão econômica e
social.
O cristão novo foi constantemente o principal objetivo da perseguição
inquisitorial. Mesmo vivendo de acordo com as “regras sociais” e cumprindo
rigorosamente as demandas da religião católica, aquela sociedade dispunha de outros
instrumentos de perseguição, que eram legalmente utilizados – como os estatutos de
pureza de sangue (que rastreavam seu passado para encontrar uma origem herege), as
habilitações de genere, e etc. 7
Estes instrumentos de perseguição e discriminação
foram amplamente usados contra os cristãos novos em terras brasileiras, apesar da
inquisição não ter instaurado um tribunal na colônia portuguesa.
A inquisição atuou no Brasil através das visitações feitas por eclesiásticos da
própria colônia, apoiados por familiares aqui estabelecidos, nas quais aconteciam as
denunciações e posteriormente as devassas, que se comprovada a heresia do indivíduo,
este era encaminhado aos tribunais metropolitanos, onde eram presos e sentenciados.
Apesar das “barreiras” enfrentadas por esses sujeitos, sua influência na vida
colonial foi fundamental em alguns aspectos, dos quais podemos destacar como o
principal deles, o desenvolvimento dos negócios ultramarinos e internos. Podemos
então justificar a escolha desse grupo em especial como objeto de pesquisa, por seu
papel fundamental no mundo dos negócios coloniais.
6 ZEMELLA, Mafalda P. O abastecimento da capitania das Minas Gerais no século XVIII. São Paulo:
HUCITEC: Editora da Universidade de São Paulo, 1990, p. 40. 7 Salvo a exceção de alguns casos que mesmo cumprindo as obrigações do catolicismo, secretamente
praticavam as cerimônias judaicas.
A grande participação dos cristãos novos nas atividades negociadoras provocou
sua identificação com essa área econômica, “os termos ‘cristão novo’, ‘mercador’ e
‘homem de negócio’ eram praticamente sinônimos, tanto na terminologia popular como
nos documentos oficiais”. 8 Sua efetiva ligação com o mundo dos negócios
proporcionou a eles uma ascensão econômica e social na colônia, em que usufruíam de
suas posses como elos para se conectarem aos contextos sociais em que conviviam.
O tema cristão novo vem ganhando cada vez mais espaço na historiografia, tanto
brasileira como mundial. Autores de reconhecimento inegável discutem, mesmo que de
forma subordinada ao seu tema principal, a participação e o papel dos cristãos novos na
sociedade colonial. Autores como Júnia Furtado, Charles Boxer, Arnold Wiznitzer, Lina
Gorenstein, Anita Novinsky e etc., demonstram em suas obras a efetiva inserção destes
indivíduos nos diversos setores do mundo colonial brasileiro.
Grande parte das obras hoje relacionadas ao assunto cristão novo procura
analisá-los em decorrência de sua ligação com a Inquisição portuguesa. De fato, não há
como desligá-los desse contexto, por serem, na maioria das vezes, reconhecidos como
tal através dos registros dessa instituição. Neste trabalho, a noção religiosa da
designação “cristão novo” será levado em conta, já que a fonte principal aqui utilizada
consiste em processos inquisitoriais, mas o olhar aqui dedicado os considerará como
agentes sociais inseridos numa sociedade em que convivem, grande parte das vezes,
normalmente. A escolha dessa delimitação sócio-religiosa derivou de sua grande
participação no mundo dos negócios, como já foi falado anteriormente.
Nas primeiras décadas dos setecentos, minas vivia uma grande expansão
econômica devido à extração aurífera. De acordo com a idéia de que o ouro é, em sua
essência, uma moeda circulante e amplamente aceita, 9 a implantação de trocas
comerciais nesse ambiente se torna favorável em todas as suas escalas, pois neste
contexto os obstáculos do câmbio de valores e variações de inflação são quase inúteis
por ser o ouro uma moeda universal. Não podemos desconsiderar as variações dos
valores do metal durante o período em questão, mas ao analisarmos amplamente o
8 BOXER, C. R. O Império Colonial Português (1415-1825). Lisboa, 1981, p. 314. apud PEDREIRA,
Jorge Miguel. Os negociantes de Lisboa na segunda metade do século XVIII: padrões de recrutamento e
percursos sociais. Análise Social, vol. XXVII (116-117), 1992 ( 2.°-3.°), 407-440. 9 A noção de que o ouro é essencialmente uma moeda de troca, e circula em Minas Gerais como tal é
discutida e defendida pelo autor Ângelo Alves Carrara em seu artigo nomeado “À vista ou a prazo:
comércio e crédito nas Minas Setecentistas”, publicado no livro que leva o mesmo nome, que o teve
como organizador. Neste artigo o autor discute a relação entre a produção do ouro com o
desenvolvimento mercantil nas minas ao apresentar as propostas de Ruggiero Romano e Carlos Sempat
Assadourian.
contexto, temos a noção da estabilidade do preço do ouro diante de outros instrumentos
monetários. 10
Esse contexto favorável às trocas comerciais possibilitou a estabilização de uma
rede comercial que atravessava desde os homens de negócios até os tendeiros, a fim de
abastecer uma sociedade que aumentava a cada ano e dependia do abastecimento
externo para se manter. Desde viveres básicos, presentes na alimentação dos escravos,
até os artigos de grande luxo eram consumidos por uma população afoita por gastar o
dinheiro volumoso que a cada dia brotava da terra a baixo custo de produção.
De acordo com Mafalda Zemella, os principais mercados abastecedores das
minas foram os de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, a região onde hoje é o Uruguai, a
Europa e a África. Pelo menos os três primeiros mercados podemos perceber a ligação
deles com os comerciantes mineiros. Os cristãos novos aqui citados, por sua vez
apresentam passagem por estes lugares durante seus relatos nos cárceres da inquisição
que foram registrados nos processos. Para fazermos mais algumas ligações com esses
indivíduos, vamos fazer um breve panorama sobre suas trajetórias.
David Mendes da Silva foi um homem de negócio, mas também se declarou
tratante. Filho de Gregório da Silva nascido em vila Nova de Fôscoa, bispado de
Lamego, que ainda em tenra idade passou para o Brasil, com uma breve estadia na
Bahia, e posteriormente se fixou nas Minas do Serro Frio, era solteiro. Preso em doze de
outubro de 1730, em Lisboa, com seqüestro de bens, foi condenado ao cárcere, hábito
penitencial perpétuo, penitências espirituais e excomunhão, foi levado ao auto de fé do
dia dezessete de junho de 1731.
Francisco Ferreira Isidoro foi um mineiro, filho de Luiz Vaz de Oliveira,
tratante, era natural da vila de Freixo de Nemão bispado de Lamego, e passou para o
Brasil, inicialmente se estabelecendo na Bahia e passando para as Minas na Vila do
Carmo num momento seguinte. Foi preso no dia seis de outubro de 1726, em Lisboa,
com seqüestro de bens, foi condenado ao cárcere, hábito penitencial perpétuo,
penitências espirituais e excomunhão, sendo levado a auto de fé em vinte e cinco de
julho de 1728.
João Rodrigues da Costa era mercador, solteiro, filho de João Rodrigues da
Costa, homem de negócio, nasceu na cidade de Leiria, e morava naquele tempo nas
Minas do Rio das Mortes. Preso em vinte e dois de novembro de 1728, em Lisboa, com
10
CARRARA, Ângelo Alves. op. cit.
seqüestro de bens, foi condenado ao cárcere e hábito penitencial perpétuo, penitências
espirituais e excomunhão maior. Foi levado a auto de fé dia oito de outubro de 1729.
Marcos Mendes Sanches foi um lavrador de roça, solteiro, filho de Manoel
Nunes Sanches, médico. Natural da Vila de Idanha, a nova, veio ao Brasil e se fixou nas
Minas do Rio das Mortes, bispado do Rio de Janeiro. Foi preso em doze de outubro de
1730 com seqüestro de bens, pela inquisição de Lisboa, foi condenado ao cárcere,
hábito penitencial perpétuo, penitências espirituais e excomunhão maior. Levado ao
auto de fé no dia seis de junho de 1732, onde esteve presente o rei D. João V.
Sob uma primeira impressão tirada da leitura dessa pequena trajetória, podemos
fazer um perfil inicial desses indivíduos. Os quatro personagens apresentaram origem na
Europa, sendo ela no reino de Portugal ou no da Espanha, passando lá a maior parte de
sua infância. Vieram para o Brasil durante a adolescência, dos quais, dois deles
passaram por outras regiões da colônia antes de se fixarem na província mineira. Foram
levados aos cárceres secretos da inquisição e passaram em média um ano e meio presos.
Todos tiveram seus bens seqüestrados pela inquisição, e estando presente durante a
narrativa dos seus inventários a distribuição desses bens entre autoridades locais,
membros da inquisição, pessoas de convívio do réu, e a própria instituição – como
podemos observar no relato de João Rodrigues da Costa que diz o seguinte: “... e que os
demais devedores estavam constando em seu livro de controle que estava de posse do
juiz do fisco, como também algumas dívidas que tinha feito.”
Bens e individualidades: o perfil cristão novo
Ao observarmos inicialmente os bens móveis e imóveis desses sujeitos, podemos
formular algumas perguntas. Como era a vida destes indivíduos? Usufruíam de grandes
confortos? Quais os objetos de preferência? Estes objetos podiam demonstrar suas
intenções sociais? Os objetos de luxo estavam entre suas escolhas?
Jean Delumeau, em seu livro A civilização do Renascimento, discute no capítulo
nove a mobilidade social existente na Europa pós-renascimento, mostrando a constante
busca da distinção social. 11
Dentre as diversas formas de se diferenciar dos pobres, a
classe média urbana passou a utilizar artifícios característicos da nobreza.
11
DELUMEAU, Jean. A civilização do Renascimento.v.1. Lisboa: Estampa, 1994.
A migração para outras regiões do mundo, como é o caso da América
portuguesa, gerou a ascensão de parcelas da sociedade, que utilizando principalmente
das atividades comerciais para enriquecimento, passou a buscar outras formas de
destaque social, já que as verdadeiras insígnias de enobrecimento não estavam
disponíveis a todos.
Dentro dessa perspectiva, Delumeau cita algumas das formas de diferenciação
social, que essa classe média ascendente se valeu para alcançar um lugar de destaque na
sociedade em que vivia. As vestimentas, as festividades, e a alimentação foram alguns
pontos trabalhados pelo autor demonstrando essa busca por distinção social.
Trazendo essa noção para a realidade colonial portuguesa, cada vez mais essa
sociedade adquire novos detentores de fortunas que demandam de produtos de luxos
importados para adquirir status. A autora Alexandra Pereira ilustra essa situação com a
análise dos artigos mais vendidos em uma loja de Vila Rica. Em seu trabalho a autora
constata a grande demanda por panos finos, chapéus, brincos e outros acessórios, estes
“gastos aplicados em artigos voltados para o ‘bom tratamento’ denunciam a importância
da boa aparência dentro da estrutura hierárquica daquela sociedade”. 12
Júnia Furtado, por sua vez, também trata dessa mentalidade social de Antigo
Regime, que tinha como premissa o valor pessoal exteriorizado pelos cargos que
ocupavam, privilégios que tinham e ornamentos que usavam. A autora aborda o assunto
da seguinte forma:
Numa sociedade hierarquizada, todos os sinais exteriores enunciavam o
papel que cada um ocupava nela. Havia uma preocupação com o tipo de
roupa, tecidos e adereços que cada estamento podia portar e, de tempos em
tempos, o Rei editava novas regulamentações a este respeito. 13
Ao observarmos e compararmos os inventários, dentre os bens móveis e imóveis
citados durante a documentação (tabelas 1, 2, 3 e 4), podemos fazer algumas relações
com os argumentos expostos à cima. Dentre os quatro sujeitos aqui analisados,
encontramos em pelo menos três deles alguns artigos de luxo, como cabeleiras, roupas
luxuosas – como a de Francisco Ferreira Isidoro que possuía uma véstia em seda, com
ramos de ouro (olhar tabela 4) – e etc.
12
PEREIRA, Alexandra Maria. Uma Loja em Vila Rica. In: À vista ou a prazo: comércio e crédito nas
Minas setecentistas/ Ângelo Alves Carrara (org.). Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2010, p. 47. 13
FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e o comércio das minas
setecentistas/ 2. ed.. São Paulo: Hucitec, 2006, p. 31.
A presença desses artigos dentre os pertences dos sujeitos nos leva a levantar a
hipótese que faziam parte dessa sociedade ávida por distinção pessoal, compartilhando
de sua mentalidade e hábitos, apesar de viverem em um contexto diferente – devido aos
costumes da religião judaica que, de certa forma, ainda os influenciava, e os obstáculos
que essa herança os proporcionava, devido à perseguição e preconceito que alguns
enfrentaram. 14
Por serem indivíduos incluídos em um meio que os influencia - meio este que
possui características próprias socialmente compartilhadas - mesmo que se servisse de
pontos singulares advindos de sua personalidade, estes sujeitos partilhariam dos
mesmos costumes e pensamentos que norteiam a “cultura” daquele povo. Seguindo essa
perspectiva de análise, nos confrontamos com a “história das mentalidades”, que nos
auxilia no entendimento dos comportamentos sociais destas personagens, mas que nos
desviaria do objetivo do trabalho, por isso não vamos nos aprofundar nessa questão.
Continuando na observação dos bens móveis e imóveis dos cristãos novos,
identificamos outros instrumentos que proporcionavam essa diferenciação social: um
deles são os escravos, que, recorrendo novamente a Delumeau, às atividades mecânicas
eram desprezadas por serem relacionadas com pessoas menos favorecidas. Os cristãos
novos, então, partindo de uma mesma mentalidade social que valoriza sinais de
distinção, se utilizavam de seu patrimônio, que muitas vezes se mostrava restrito, para
valorizar esse tipo de utensílio dignificante.
Mas não podemos classificar o investimento desses sujeitos em escravos
somente pelo víeis do artefato de distinção. O principal objetivo da compra de negros
neste período era usufruir da mão de obra que estes proporcionavam. Nos casos aqui
estudados, podemos identificar pelo menos dois objetivos para o uso desses escravos.
João Rodrigues da Costa possuía uma loja que comercializava azeite, açúcares, e outros
gêneros alimentícios que era cuidada por uma de suas escravas - essa mesma loja
posteriormente seria presa pelo fisco.
Um segundo tipo de uso da mão de obra escrava por estes sujeitos foi o de
Francisco Ferreira Isidoro, que empenhava em suas roças 25 escravos, possivelmente
nos trabalhos de extração aurífera, já que Francisco era mineiro. Nos dois casos, os
14
Quando nos referimos ao contexto vivido pelo cristão novo de obstáculos e preconceitos, juntamente
com as crenças judaicas que poderiam afetar seu tipo de comportamento, relativizamos estes efeitos, pois
como já é de conhecimento da historiografia referente aos cristãos novos, muitos dos que poderiam ter
sido denominados assim, passaram despercebidos, convivendo naturalmente com os costumes sociais
católicos, não reconhecendo em si distinção frente aquela sociedade que os levasse a um comportamento
diferenciado.
escravos eram dirigidos para sua razão de existência, geração de capital excedente.
Mesmo assim, não podemos deixar de levantar a hipótese de serem também usados
como instrumentos de distinção.
Dentre os itens encontrados descritos na documentação, a mobília nos chama a
atenção para algumas reflexões. Ao analisarmos os itens de mobília verificamos uma
média aproximada de 11 objetos para cada cristão novo, o que consideramos um
número baixo frente ao total de bens listados. A posse de poucos artigos de mobília
pode nos levar a duas hipóteses: primeiramente podemos relacionar o pequeno número
desses itens com as trajetórias de constante migração desses sujeitos, que é
exemplificada durante a leitura das confissões e na própria trajetória de vida presentes
no processo inquisitorial, em que os cristãos novos aqui trabalhados relatam o seu
constante deslocamento entre diversas províncias da colônia em curtos espaços de
tempo.
Frente a essa informação, os cristãos novos mineiros negociantes, então, podem
ser caracterizados por sua migração, que favorecia suas trocas comerciais por manterem
contatos com as áreas produtoras, estabelecerem relação direta com outros “amigos da
mesma nação”, que praticavam as mesmas atividades econômicas ou que possuíam
alguma ligação.
Uma segunda hipótese para essa escassez de mobiliário pode se referir a pouca
importância dada ao investimento nestes objetos, que mesmo sendo considerados de
valor – já que são listados em um inventário – não era o foco das intenções de compra
desses indivíduos. Mesmo existindo mobílias valorosas, como camas de madeira nobre,
louças e utensílios de prata, enxovais de panos finos e etc., observam-se a pouca atenção
dada a este tipo de bem, levando em conta que dois dos quatro indivíduos apresentam
um ou nenhum desses artigos.
Os dados, na verdade, nos indicam que os cristãos novos possuem alguns
investimentos em artigos de luxo, mas seus bens se focam em itens de utilidade para
com suas atividades econômicas, que produzem algum retorno financeiro, como é o
caso dos instrumentos de trabalho, os escravos, os animais de criação, imóveis, gêneros
alimentícios, e etc., bens estes que denominei como bens produtivos. Os bens distintos
deste perfil, foram denominados como bens improdutivos, como nos mostra a tabela 5.
Prosseguindo com as observações, um item em específico presente na maior
parte dos inventários aqui analisados foram os armamentos. Pistolas, espingardas e
escopetas estão entre os itens avaliados na documentação. A necessidade de portar um
item letal como a arma nos leva a pensar em algumas possibilidades. Inicialmente,
como desencadeamento lógico da posse deste tipo de bem, pensamos na violência que
esta sociedade era sujeita em um contexto que levava os indivíduos a uma busca por
instrumentos de proteção. Num segundo momento podemos pensar no uso das armas
como meio de manter os indivíduos circundantes sob domínio, utilizando a força como
agente de sujeição. A utilização destas armas pelos cristãos novos também pode ter sido
motivada pela necessidade durante as constantes migrações que faziam devido aos
perigos (como animais e roubos) a que estes eram expostos.
Fora desse contexto de violência que as armas estão relacionadas, podemos
pensá-las como instrumentos de distinção pessoal. De acordo com José Eudes Gomes,
“além de serem utilizadas como instrumentos de prestígio e distinção, as armas
marcavam e reproduziam as diferenças sociais existentes.” 15
Os cristãos novos também são conhecidos pela diversificação de atividades
econômicas que exerciam. Anita Novinsky coloca que os cristãos novos, em geral,
estavam envolvidos com as mais diversas áreas da economia colonial, mas se
destacaram economicamente aqueles que se envolveram com mais de uma área
produtiva.16
Podemos verificar esse tipo de comportamento em dois casos dos cristãos
novos aqui trabalhados.
Francisco Ferreira Isidoro, em seu processo, aparece como mineiro, mas dentro
de seu inventário consta a negociação de “moradas de casas”, além de ter um sobrinho
chamado Luis, que é identificado como seu caixeiro durante suas confissões, dando a
idéia de que vendia casas e algum produto mais, e que seu sobrinho fazia a
comercialização.
Outro caso de que consta uma diversificação nas atividades econômicas é o de
Marcos Mendes Sanches. Apesar de aparecer descrito em seu processo como roceiro,
Marcos cita em seu inventário a venda de produtos de suas roças, e um “estoque” desses
produtos avaliado em 600$000 réis (tabela 3), o que nos leva a pensar a comercialização
desses artigos como atividade corriqueira, subalterna a de roceiro.
Diante das informações acima expostas, podemos concluir que os cristãos novos
mineiros eram indivíduos totalmente integrados a sociedade em que viviam,
compartilhando de seus costumes e hábitos. Possuem a característica comum ao grupo
15
GOMES, José Eudes. Na mira da lei: no Brasil a legislação que regulamenta o porte de armas remete
ao período colonial. Revista de História, 23/05/2011,
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/na-mira-da-lei 16
NOVINSKY, Anita, op. cit., p. 169.
cristão novo de migrações constantes, que influenciavam diretamente sobre seu modo
de vida e bens que adquiriam. Também identificamos sua diversificação econômica,
como fator de enriquecimento, em que praticavam a atividade negociadora como uma
segunda opção em renda para sua atividade principal.
Os cristãos novos e a prática creditícia
Na sociedade colonial, a prática creditícia é vista como uma atividade
amplamente difundida em todas as esferas sociais. Desde os mais abastados aos menos
favorecidos, se endividar era fato corriqueiro e promovia certa liquidez monetária.
Comprar fiado era quase lei entre as trocas comerciais neste contexto, que apesar de
lidar com uma moeda universalmente aceita, o ouro, o uso de empréstimos ou compras
fiadas com longo prazo para pagamento se tornava peça fundamental para os
indivíduos.
Júnia Furtado explora até mesmo a utilização desta prática creditícia pelas
instituições de poder instauradas na colônia. Em suas palavras: “O sistema de
endividamento tornava-se útil para a própria administração, que muitas vezes buscava
financiamento com os grandes comerciantes.” 17
Para qualquer tipo de transação, a utilização do “crédito” estava presente. Desde
a venda de terras, até mesmo a compra de meios de subsistência no comércio local, o
uso do nome como moeda de troca era predominante, essa situação demonstra o tipo de
relação entre vendedores e clientes. Raphael Freitas Santos identifica nessa atividade
creditícia um valor moral embutido na transação, pois “Esta confiança na capacidade do
devedor vir a pagar sua dívida era acompanhada, é claro, por constrangimentos de
ordem social que pesavam sobre os devedores.” 18
Entre os cristãos novos, as práticas creditícias também existiam. Podemos dizer
que a vinculação de cristãos novos com créditos e dívidas era mais intensa do que em
meio ao restante da sociedade por estarem envolvidos diretamente com os negócios, que
eram os veículos mais comuns para essa atividade.
Para visualizarmos a inserção das quatro personagens trabalhadas nesta
pesquisa, dividimos as informações de seus inventários referentes aos empréstimos
17
FURTADO, Júnia Ferreira. Op. cit. P. 120. 18
SANTOS, Raphael Freitas. O ouro e a palavra: endividamento e práticas creditícias na economia
mineira setecentista. In: À vista ou a prazo: comércio e crédito nas Minas setecentistas/ Ângelo Alves
Carrara (org.). Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2010.
concedidos e as dívidas contraídas em tabelas diferentes, uma para cada sujeito,
permitindo assim a melhor compreensão das proporções que cada um possuía. Então, ao
analisarmos as tabelas 6 à 14, chegamos á algumas hipóteses.
Os quatro indivíduos aqui estudados apresentam no decorrer de seu inventário
diversas dívidas que contraiu e empréstimos que concedeu. Como nos mostra a tabela 6,
ser ao mesmo tempo credor e devedor era normal, até mesmo em casos extremos como
o de David Mendes da Silva, que apresenta uma dívida três vezes maior que o seu
patrimônio – no caso sua dívida é 303,44% maior que a junção dos empréstimos e seus
bens –, emprestar dinheiro a terceiros também era uma área favorável para
investimentos, já que destinou 51, 91% de seu patrimônio para essa finalidade.
Outro ponto observado durante a leitura dos inventários foi a utilização das
dívidas como moeda de troca para a compra e venda de outros bens. Encontramos esse
tipo de troca comercial em um caso citado no inventário de Francisco Ferreira Isidoro,
que diz: “E tinha o Capitão João Lourenço Ramalhosa, morador no bairro de São
Sebastião na Vila do Ribeirão, lhe é devedor de cem mil réis, a conta do qual lhe
mandou ele declarante dar 50 mil a Domingos Carvalho.”
Apesar de contarem com grandes somas investidas em bens adquiridos, estes
sujeitos contraiam dívidas de grande valor, como podemos observar nas tabelas
referentes às dividas dos cristãos novos ( tabelas 7 a 14). Francisco Ferreira Isidoro, por
várias vezes cita entre seus devedores a venda de casas que mandava construir, mas
dentre suas dívidas encontramos a que ele contraiu com Manoel Martins, um
carpinteiro, procedente das ditas casas que mandara construir. Podemos observar que
mesmo antes de pagar as custas das casas que mandou construir, já havia vendido
algumas delas, transformando um débito inicial em lucros posteriores.
As dívidas desses sujeitos também estavam ligadas aos impostos reais. João
Rodrigues da Costa, por exemplo, perdeu uma loja em que sua escrava trabalhava, por
não pagar os impostos devidos, por esse motivo à loja foi tomada pelo fisco por
aproximadamente 50 oitavas de ouro. Francisco Ferreira Isidoro também teve alguns
problemas com os impostos cobrados para a Coroa, devia 450 oitavas de ouro à
Sebastião Barbosa do Prado e Diogo Nunes, que também era um cristão novo,
procedido da cobrança dos dízimos reais, já que estes foram os contratadores na Região
da Vila do Carmo. 19
Os empréstimos concedidos por esses cristãos novos alcançavam as diversas
esferas dessa sociedade. Por serem indivíduos conhecidos, ou por suas posses, ou pelo
comércio, homens de toda sorte recorriam ao dinheiro que destinavam aos empréstimos.
Alferes, capitães, médicos, padres, alfaiates, e tantos outros tipos viam neles uma fonte
quase inesgotável de dinheiro, sendo este usado para o pagamento de outras dívidas ou
para novos investimentos.
Os indivíduos de profissão mais destacada aparecem nos inventários ou como
devedores de grandes somas ou como credores dos cristãos novos. Já os vinculados à
profissões mais humildes aparecem ou como devedores, ou como credores procedido na
maioria das vezes de serviços prestados que não foram pagos.
De modo geral, reconhecemos nos indivíduos aqui trabalhados a constante busca
pelo enriquecimento, seja através dos empréstimos à juros, seja ao contrair dívidas para
o re-investimento. As praticas creditícias são instrumentos fundamentais tanto para o
progresso econômico como para a inserção social destas personagens, que buscam fugir
de suas “limitações religiosas” para integrar realmente o meio em que vivia.
Conclusão
Diante das informações dos inventários aqui trabalhados, podemos retirar
algumas conclusões sobre as práticas desses indivíduos, tomando-as como amostragem
do contexto geral dos cristãos novos negociantes da primeira metade do século XVIII.
Os dados aqui apresentados apresentaram várias hipóteses importantes para o
entendimento mais refinado desse grupo em questão.
Os resultados obtidos nos mostram que os cristãos novos, no geral, possuem
comportamentos tanto em sua atividade econômica, como em sua vida privada,
condizentes aos hábitos comuns identificados na sociedade colonial de Antigo Regime.
Com a constante busca por destaque social, seus bens se tornaram um reflexo dessa
mentalidade que despreza as atividades mecânicas e procura adquirir cada vez mais
instrumentos que proporcionem distinção pessoal frente a população em geral.
19
Consta no Arquivo Histórico Ultramarino um parecer sobre os contratadores Sebastião Barbosa Prado,
Diogo Nunes e seu sócio Silvério Marques da Cunha, de 1723, período anterior da prisão de Francisco
Ferreira Isidoro. AHU/MG – Cx.: 4, Doc.: 22.
Como os cristãos novos, normalmente pertencem a famílias que não possuem
insígnias de nobreza, quando estes sujeitos se deparam com o contexto social colonial,
que valoriza os nativos do reino, sejam eles de origem humilde ou abastada, estes
sujeitos buscam no destaque econômico um meio de alcançar status diferenciado do
restante da população desfavorecida.
Destacando-se nas atividades comerciais, os cristãos novos fazem parte do
circuito negociante que abastece e sustenta a região mineradora. Favorecidos por sua
aptidão para as atividades negociantes, muitos enriqueceram e buscavam multiplicar
cada vez mais esse patrimônio, com a execução de mais de uma atividade econômica ao
mesmo tempo.
Como as atividades negociadoras, normalmente, proporcionavam grandes
lucros, estes indivíduos acumulavam consideráveis somas que normalmente eram
reinvestidas nas atividades que praticavam, bem como em bens que poderiam ser
vendidos com altos lucros posteriores, como terras, imóveis, escravos e etc.
Ao mesmo tempo em que investiam em suas atividades econômicas principais,
estes cristãos novos dirigiam parte de suas posses para as práticas creditícias, destinando
grandes somas aos empréstimos tomados em espécie, ou a partir da venda à credito de
algum bem. Apesar de terem investimentos significativos tanto em posses rentáveis
quanto em créditos sob juros, estes indivíduos contraíam dívidas de grandes vultos na
compra de novos itens com longos prazos para pagamento e em valores reais, mas que
os inventários não deixam claro as áreas em que reinvestiam esse dinheiro.
Os cristãos novos mineiros apresentam um histórico de constantes migrações
pelas várias regiões da colônia, principalmente entre os dois eixos econômicos
existentes no período, Rio de Janeiro e Bahia. Suas confissões relatam essa trajetória,
desde a vinda da Europa para o Brasil, até as diversas viagens que fazia nas diversas
vilas e caminhos que a região das minas abarcava.
A relação desses sujeitos com indivíduos possuidores de certo destaque social,
fora do grupo dos também cristãos novos, aparece durante os empréstimos concedidos e
contraídos por eles. Essa “troca de favores” entre os indivíduos demonstra a inserção
social que eles alcançavam. Mas não só com os mais abastados os cristãos novos
travaram trocas econômicas, os menos favorecidos, aparecem, na maior parte das vezes,
como prestadores de serviços que não foram pagos.
Apesar de serem vistos sempre sob o determinante religioso, aspecto que gerou a
formação desse grupo social diferenciado, os cristãos novos permeiam a sociedade
colonial da mesma forma que qualquer outro cristão velho. A diferença que estes
negociante possuíam eram as limitações à que foram sujeitos, e a própria prisão pela
inquisição, que retirou estes negociantes precocemente dos mercados que formaram,
mas, apesar do contexto desfavorável, alguns não alcançados pelas pesadas mãos dos
tribunais inquisitoriais alçaram grande valor na sociedade mineira da primeira metade
do século XVIII, o que não foi o caso das personagens aqui trabalhadas.
Tabelas
Tabela 1
Bens inventariados de David Mendes da Silva
Descrição dos bens Quantidade Valor de compra Valor atual estimado
Bancos, mesa e rede 1 13$200 9$600
Colheres e garfos de prata 4 7$000 Pratos e caldeirinha de estanho 1 3$000
Espingardas 2 24$000
Pistolas 2 14$400
Bichas engajadas(?) 3$600
Véstea e calção 3
Cabeleira 1 14$400 8$000
Negros 2 480$000 440$000
Negra 1 264$000 264$000
Cavalos 3 108$000 108$000
Total 881$600
Tabela 2
Bens inventariados de João Rodrigues da Costa
Descrição dos Bens Quantidade Valor de compra Valor atual estimado
Casas 280$000
Negro 1 44$000
Negra 1 240$000
Negro(criança) 1 210$000
Loja 1 60$000 Louças e colheres de prata
Negra 1 96$000 96$000
Baú 1 4$800
Cabeleira 1 12$000
Cobertor 1 2$000
Colchão 1 4$800
Total 953$600
Tabela 3
Bens inventariados de Marcos Mendes Sanches
Descrição dos Bens Quantidade Valor de compra
Valor atual estimado
Roça 3 1:618$000
Negro 4 1:200$000
Milho, feijão e mamona 600$000
Vacas prenha e touro 4 75$000
Porcos 20 70$000
Espingarda 1 10$000
Cavalo 3 75$000
Pistola 2 15$000
Ferramentas de roça 30$000 Tachos de cobre, espadas, cabana, milho e feijão 4 (?) 50$000
Total 3:743$000
Tabela 4
Bens inventariados de Francisco Ferreira Isidoro
Descrição dos Bens Quantidade Valor de Compra
Valor atual estimado
Casas 160:000$000
Roça, com 2 casas de telha 1 160:000$000
Escravos 25 7:600$000
Salva de prata 1 8$000
Caldeira de prata 1 8$000
Mesa de jacarandá inglesa 1 16$000
Mesa de jacarandá 1 7$000
Espelho de moldura dourada 1 12$000 Guarda roupa de jacarandá com molduras de pau branco 1 40$000
Cadeiras e tamboretes 9 10$000
Catre de jacarandá 2 8$000
Cortinado de cama, de linho 1 6$000
Cortinado de lã com fita de seda amarela 1 18$000
Colheres e garfos de prata 8 7$000
Cavalo selado 1 70$000
Cavalo velho 1 8$000
Vaca com cria 1 25$000
Boi de Carro 2 60$000
Escopeta 3 24$000
Côvado de pano inglês 25 30$000
Véstea de seda, com ramos de ouro 1 25$000
Total 327:982$000
Tabela 5 20
Porcentagens dos bens produtivos dos cristãos novos
Bens Produtivos Bens improdutivos Bens totais
David Mendes da Silva 92,10% 7, 9% 100%
João Rodrigues da Costa 97,52% 2,48% 100%
Marcos Mendes Sanches 97,99% 2,01% 100%
Francisco Ferreira Isidoro 99,93% 0,07% 100%
Tabela 6
Porcentagens referente aos créditos e dívidas dos cristãos novos
David Mendes
da Silva João Rodrigues
da Costa Marcos Mendes
Sanches Francisco Ferreira
Isidoro
Bens/Total 48,08% 87,55% 82,79% 97,11%
Crédito/Total 51,91% 12,44% 17,20% 2,88%
Dívidas/Total 303,44% 19,28% 7,22% 0,56%
Tabela 7
Relação da atividade creditícia de David Mendes da Silva
Devedor Valor
Manoel da Fonseca (?) 192$000
Antônio Rois Garcia 400$000
Antônio (?) 360$000
Total 952$000
20
O que foi denominado como bem produtivo, foram as posses vinculadas de alguma forma com as
atividades econômicas desenvolvidas pelos cristãos novos, bem como os artigos que pudessem
proporcionar algum lucro posterior, como é o caso dos animais domesticados, escravos, roças, imóveis e
etc. Os bens denominados improdutivos são os objetos que não se vinculavam as atividades econômicas
dos indivíduos e, mesmo possuindo valor de revenda, não eram adquiridos com esse intuito, como é o
caso dos mobiliários e artigos de luxo. Os bens totais são todas as posses constantes no inventário, exceto
as dívidas e os créditos concedidos pelo cristão novo.
Tabela 8
Relação das dívidas de David Mendes da Silva
Credor Valor
Manoel Guedes dos Santos 264$000
José Cardoso de Almeida 3:200$000
João Rois da Silva 700$000
Bernardo Vieira 600$000
Manoel Barbosa 600$000
Pedro de Miranda 200$000
Total 5:564$000
Tabela 9
Relação da atividade creditícia de João Rodrigues da Costa
Devedor Valor
Guilherme Rodrigues 14$400
Diogo D'Àvila 96$000
João Antunes Torres 18$000
João Nunes de Viseu 7$200
Total 135$600
Tabela 10
Relação de dívidas de João Rodrigues da Costa
Credor Valor
Estevão Rodrigues de Carvalho 210$000
Total 210$000
Tabela 11
Relação da atividade creditícia de Marcos Mendes Sanches
Devedor Valor
João Alves 400$000
Manoel Carvalho Lima 200$000
Atanásio Pereira 78$000
Jerônimo Martins dos Santos 100$000
Total 778$000
Tabela 12
Relação de dívidas de Marcos Mendes Sanches
Credor Valor
Pedro Bernardes Caminha 118$000
Manoel Bernardes dos Santos 33$000
Francisco (?) da Cunha 19$200
Manoel da Silva 4$800
Manoel de Oliveira de Magalhães 26$800
Antônio da Silva 8$400
Manoel Albuquerque de Aguilar 116$400
Total 326$600
Tabela 13
Relação da atividade creditícia de Francisco Ferreira Isidoro
Devedor Valor
Antônio Lobato da Silva 525$000
João Lourenço Ramalhosa 100$000
Lourenço da Costa 60$000
Paulista (?) 12$000
Geraldo de Castro 60$000
João Loureiro Ramalho 4:200$000
Padre Manoel Pires de Carvalho 4:800$000
total 9:757$000
Tabela 14
Relação das dívidas de Francisco Ferreira Isidoro
Credor Valor
Manoel Martins 270$000 Sebastião Barbosa do Prado e Diogo Nunes 720$000
Ignácio Cardoso e Rodrigo Nunes 480$000
Manoel Gonçalves 35$000
Manoel Alves 80$000
Francisco Moutinho 320$000
Total 1:905$000
Fontes primárias
Arquivo Nacional da Torre do Tombo:
PT-TT-TSO/IL/28/2134 – David Mendes da Silva
PT-TT-TSO/IL/28/6846 – João Rodrigues da Costa
PT-TT-TSO/IL/28/2141 – Marcos Mendes Sanches
PT-TT-TSO/IL/28/11965 – Francisco Ferreira Isidoro
Arquivo Histórico Ultramarino
AHU/MG – Cx.: 4, Doc.: 22. – Diogo Nunes Henriques e Sebastião Barbosa Prado.
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