cristãos novos negociantes em minas gerais na primeira ... · da economia colonial como um todo....

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Cristãos novos negociantes em Minas Gerais na primeira metade dos setecentos. Franciany Cordeiro Gomes 1 Introdução Com o objetivo de apreender um pouco mais sobre a atuação dos negociantes que viveram em Minas Gerais, nas primeiras décadas do século XVIII, a pesquisa aqui apresentada identifica algumas das principais características comuns encontradas em um grupo específico que compunha a rede de negociantes mineiros, os cristãos novos. Valendo das informações constantes nos inventários de quatro indivíduos identificados em seu estatuto social como cristãos novos, a pesquisa faz um esforço em contribuir com algumas reflexões sobre o seu comportamento, dentro dos limites que essa fonte nos restringe. A pesquisa partiu da análise dos processos inquisitoriais de quatro indivíduos denominados cristãos novos, que foram presos e processados entre 1728 e 1730. 2 Diante das informações contidas nesses processos, a pesquisa se voltou para os dados dos inventários. A escolha destes quatro sujeitos partiu de três pré-requisitos observados: a ligação do indivíduo com as atividades negociantes, estarem inseridos no recorte temporal e espacial aqui proposto, e apresentarem um inventário mais completo. Frente aos dados apresentados pelos inventários, inicialmente, tomei como referência de análise a própria organização do documento, que mesmo sendo estruturado em uma escrita corrente, sem subdivisões evidentes, a disposição das informações nos mostra que possuem três áreas principais: os bens móveis e imóveis, incluindo os escravos; as dívidas que o réu tem a receber; e por fim as dívidas que confidente tem a cumprir. Dentro dessa perspectiva de organização, vi por bem dividir 1 Mestranda do curso de Pós-graduação em história pela Universidade Federal de Juiz de Fora, orientada do professor doutor Ângelo Alves Carrara, [email protected]. Este trabalho foi financiado pela UFJF e APG. 2 Deve-se ressaltar que apesar do objetivo do trabalho ser a análise da atuação de negociantes cristãos novos, dois dos quatro inventários aqui utilizados são de indivíduos que não foram denominados como praticantes de atividades negociantes em sua ficha de identificação no processo, mas que apresentam a prática de uma atividade negociadora subalternas a uma atividade principal. No caso de Francisco Ferreira Isidoro, tido como mineiro, vamos aqui considerá-lo como negociante de imóveis. E Marcos Mendes Sanches, denominado lavrador, como negociante de produtos agrícolas.

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Cristãos novos negociantes em Minas Gerais na primeira metade dos setecentos.

Franciany Cordeiro Gomes1

Introdução

Com o objetivo de apreender um pouco mais sobre a atuação dos negociantes

que viveram em Minas Gerais, nas primeiras décadas do século XVIII, a pesquisa aqui

apresentada identifica algumas das principais características comuns encontradas em um

grupo específico que compunha a rede de negociantes mineiros, os cristãos novos.

Valendo das informações constantes nos inventários de quatro indivíduos identificados

em seu estatuto social como cristãos novos, a pesquisa faz um esforço em contribuir

com algumas reflexões sobre o seu comportamento, dentro dos limites que essa fonte

nos restringe.

A pesquisa partiu da análise dos processos inquisitoriais de quatro indivíduos

denominados cristãos novos, que foram presos e processados entre 1728 e 1730. 2

Diante das informações contidas nesses processos, a pesquisa se voltou para os dados

dos inventários. A escolha destes quatro sujeitos partiu de três pré-requisitos

observados: a ligação do indivíduo com as atividades negociantes, estarem inseridos no

recorte temporal e espacial aqui proposto, e apresentarem um inventário mais completo.

Frente aos dados apresentados pelos inventários, inicialmente, tomei como

referência de análise a própria organização do documento, que mesmo sendo

estruturado em uma escrita corrente, sem subdivisões evidentes, a disposição das

informações nos mostra que possuem três áreas principais: os bens móveis e imóveis,

incluindo os escravos; as dívidas que o réu tem a receber; e por fim as dívidas que

confidente tem a cumprir. Dentro dessa perspectiva de organização, vi por bem dividir

1 Mestranda do curso de Pós-graduação em história pela Universidade Federal de Juiz de Fora, orientada

do professor doutor Ângelo Alves Carrara, [email protected]. Este trabalho foi financiado

pela UFJF e APG. 2 Deve-se ressaltar que apesar do objetivo do trabalho ser a análise da atuação de negociantes cristãos

novos, dois dos quatro inventários aqui utilizados são de indivíduos que não foram denominados como

praticantes de atividades negociantes em sua ficha de identificação no processo, mas que apresentam a

prática de uma atividade negociadora subalternas a uma atividade principal. No caso de Francisco

Ferreira Isidoro, tido como mineiro, vamos aqui considerá-lo como negociante de imóveis. E Marcos

Mendes Sanches, denominado lavrador, como negociante de produtos agrícolas.

este trabalho em três grandes áreas, a que trabalha com os bens móveis e imóveis, num

segundo momento com a atividade creditícia3, e num terceiro com as dívidas contraídas

pelo cristão novo.

Dentro da divisão das informações dos inventários em três grandes grupos, cada

sujeito recebeu uma tabela individual para cada uma das três áreas, por considerar que

este tipo de organização das informações deixaria a singularidade de cada caso evidente,

apesar deste trabalho propor sua comparação.

Posteriormente defini os dados para cada grupo da seguinte forma: no que

chamei de “bens gerais” se agrupam os objetos pessoais – como vestuário e mobiliário -

, os imóveis, roças, escravos, animais de cria – como vacas e cavalos -, armamentos, e

fazendas – como milho e feijão. No grupo referente à atividade creditícia dos sujeitos,

agrupei em outra tabela os nomes dos denominados devedores do cristão novo, da

mesma forma foi feito com o setor das dívidas, em que foram listados os seguintes

credores dos mesmos.

Os valores contidos nos inventários, naturalmente, passaram por alguns ajustes

para a melhor compreensão das informações. Estes tiveram que ser convertidos em uma

única tipologia, no caso as oitavas de ouro foram aqui avaliadas em 1$200 réis, os

valores em cruzados também foram convertidos, valendo aqui 400 réis. Alguns bens

trouxeram sua avaliação em moedas de ouro, que foram transformadas em 4$800 réis

cada. Os ajustes aqui apresentados se basearam nos valores considerados pelo autor

Ângelo Carrara. 4

Como já foi dito, um dos principais objetivos desta pesquisa é conhecer melhor a

atividade negociadora e seus agentes, que vem sendo alvo de estudos cada vez mais

complexos e elaborados. A historiografia que trata do assunto negociante busca inserir

estes indivíduos no cenário histórico, já que participaram ativamente da sociedade.

Estudos exaustivos como o de João Luís Fragoso, em seu livro Homens de grossa

aventura, mesmo não se referindo ao contexto mineiro – pois se dedica nos estudos dos

grandes negociantes da praça comercial do Rio de Janeiro, no período de 1790 a 1830 -

vem abordando o tema e identificando o papel que os homens de grosso trato exerceram

na relação colônia-metrópole, bem como a ligação que estabeleciam entre as várias

partes da colônia.

3 Considerei aqui como atividade creditícia todas as menções de empréstimos que o processado alega ter

concedido. 4 CARRARA, Ângelo Alves. Amoedação e oferta monetária em Minas Gerais: as casas de fundição e

moeda de Vila Rica. Belo Horizonte: Varia História, vol. 26, nº 43: p.217-239, jan/jun 2010.

O autor discute os debates historiográficos recentes sobre o lugar da colônia em

relação à metrópole, dialogando com a historiografia considerada tradicional, que tem

Caio Prado Júnior como principal representante. Fragoso vai contra a perspectiva

tradicional de que existe uma transferência de excedentes para Portugal, e que uma

acumulação de capital interna seria improvável por a colônia estar inserida em um

sistema denominado Antigo Sistema Colonial, em que era sujeitada ao monopólio das

transações econômicas e ao total controle pela coroa das diversas instâncias da

economia colonial, além dos diversos instrumentos de arrecadação que a metrópole se

utilizou.

Através de seu estudo sobre a circulação de capital e a atuação dos negociantes,

Fragoso demonstra a possibilidade da acumulação de capital na colônia, que acontecia

por meio de um mercado interno ativo. Fragoso também estabelece outros pontos de

contato com a historiografia que não iremos abordar por fugir de nossos objetivos.

Ainda sobre a historiografia e sua busca pela inclusão dos negociantes no

cenário colonial, temos a obra primorosa de Júnia Furtado, nomeada como Homens de

Negócio, que vem discutir a participação dos comerciantes mineiros, durante o século

XVIII, na reprodução do poder metropolitano por meio de seu papel social nas diversas

regiões da província. Júnia contribui efetivamente no conhecimento sobre o perfil e

comportamento dos negociantes que atuaram nas minas durante a produção aurífera.

Ao identificar as diversas formas de controle sobre o comércio e os comerciantes

– seja através de tributos ou legislações específicas – que afetavam diretamente o

restante da população, já que estes eram responsáveis pelo abastecimento interno das

minas, a autora identifica os artifícios utilizados pela coroa que se servia dos

comerciantes como veículo de ligação e aproximação social, fazendo sua presença se

tornar efetiva nas mais longínquas áreas sob seu domínio.

Um trabalho anterior ao de Júnia e que também nos esclarece sobre a atuação

dos negociantes na colônia, mais especificamente em Minas Gerais, foi a pesquisa de

Cláudia Maria das Graças Chaves. Em seu livro Perfeitos Negociantes, a autora disserta

sobre os diversos “escalões” de negociantes presentes nas minas, durante o século

XVIII, e suas características para com a atividade econômica, servindo como manual

para elucidações das diversas atividades comerciais do período colonial.

A autora tem o objetivo de analisar a dinâmica do mercado interno mineiro, mas

não foge da compreensão do papel negociante dentro da economia mineira, bem como

da economia colonial como um todo. Outros trabalhos mais recentes também

complementam essa busca da historiografia atual em entender os negociantes frente à

economia colonial, como podemos citar o trabalho de Alexandra Maria Pereira chamado

Lojas e vendas. Ao acompanhar a distribuição dos estabelecimentos comerciais nas

diversas localidades das comarcas de Serro Frio e Vila Rica, nos anos de 1736 e 1746, a

autora contribui significativamente montando um perfil desses negociantes nessa região,

além de constatar as características da atividade comercial na região.

Após este percurso pouco alongado frente às diversas possibilidades que a

historiografia nos oferece, pois esse não é nosso objetivo principal, a abordagem do

tema que trata do perfil dos negociantes como um todo, e seu papel diante da economia

colonial, comunica aqui com os objetivos dessa pesquisa, reconhecendo nestes agentes

sociais traços fundamentais para se compreender o contexto aqui proposto.

Mais do que entender os negociantes na esfera econômica este trabalho busca

também identificá-los e inseri-los como indivíduos pertencentes a uma sociedade

colonial, em suas várias instâncias e características, que a torna peculiar.

Cristãos novos e as minas

Para elucidar um pouco mais sobre os objetivos desta pesquisa, se faz necessário

a compreensão dos personagens aqui trabalhados e o contexto em que estavam

inseridos, a fim de que as possíveis dúvidas que surjam no decorrer desta apresentação

sejam minimizadas.

Os cristãos novos foram os descendentes dos judeus obrigados à conversão ao

cristianismo, em 1497, pelo rei de Portugal Dom Manoel. Espalhados pelas diversas

partes do Império Português, os cristãos novos participaram ativamente de todo o

desenvolvimento social que Portugal apresentou. Inseridos em quase todas as atividades

econômicas desenvolvidas pelos portugueses, como a autora Anita Novinsky enfatiza,

os judeus contribuíram com suas riquezas, seus saberes e suas experiências para a

expansão marítima do século XVI. 5

Disseminado entre a população, este grupo integrava o cotidiano da sociedade

portuguesa, compondo as principais esferas da mesma, exercendo as mais diversas

funções e atividades. Na sociedade colonial não foi diferente, a historiografia que

5 NOVINSKY, Anita W. Marranos e a Inquisição: sobre a Rota do Ouro em Minas Gerais. In:Os Judeus

no Brasil: inquisição, imigração e identidade/Keila Grimberg. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2005, p. 164.

trabalha o assunto cristão novo já os identificou nas mais diversas etapas do

desenvolvimento da colônia brasileira. Autoras como Lina Gorenstein e Anita Novinsky

identificam a atuação desses personagens desde os primórdios da história colonial

brasileira, inseridos na expansão territorial com os bandeirantes até a ocupação de

cargos fidedignos nas esferas de poder colonial.

Estes sujeitos ocuparam as terras brasileiras nas mais longínquas localidades,

mas sem dúvida, Minas Gerais foi um dos redutos preferidos dos cristãos novos na

colônia. Após a notícia dos minerais preciosos brasileiros exaltarem os ânimos de todos

os indivíduos - pois ali estava disponível “a fortuna ao alcance de quantos tivessem

coragem e forças físicas para escalar as montanhas que vedavam o acesso ao solo

mineiro” 6 -, milhares de pessoas passaram para a região mineradora, dentre elas vários

cristãos novos, que viram na colônia portuguesa uma chance de ascensão econômica e

social.

O cristão novo foi constantemente o principal objetivo da perseguição

inquisitorial. Mesmo vivendo de acordo com as “regras sociais” e cumprindo

rigorosamente as demandas da religião católica, aquela sociedade dispunha de outros

instrumentos de perseguição, que eram legalmente utilizados – como os estatutos de

pureza de sangue (que rastreavam seu passado para encontrar uma origem herege), as

habilitações de genere, e etc. 7

Estes instrumentos de perseguição e discriminação

foram amplamente usados contra os cristãos novos em terras brasileiras, apesar da

inquisição não ter instaurado um tribunal na colônia portuguesa.

A inquisição atuou no Brasil através das visitações feitas por eclesiásticos da

própria colônia, apoiados por familiares aqui estabelecidos, nas quais aconteciam as

denunciações e posteriormente as devassas, que se comprovada a heresia do indivíduo,

este era encaminhado aos tribunais metropolitanos, onde eram presos e sentenciados.

Apesar das “barreiras” enfrentadas por esses sujeitos, sua influência na vida

colonial foi fundamental em alguns aspectos, dos quais podemos destacar como o

principal deles, o desenvolvimento dos negócios ultramarinos e internos. Podemos

então justificar a escolha desse grupo em especial como objeto de pesquisa, por seu

papel fundamental no mundo dos negócios coloniais.

6 ZEMELLA, Mafalda P. O abastecimento da capitania das Minas Gerais no século XVIII. São Paulo:

HUCITEC: Editora da Universidade de São Paulo, 1990, p. 40. 7 Salvo a exceção de alguns casos que mesmo cumprindo as obrigações do catolicismo, secretamente

praticavam as cerimônias judaicas.

A grande participação dos cristãos novos nas atividades negociadoras provocou

sua identificação com essa área econômica, “os termos ‘cristão novo’, ‘mercador’ e

‘homem de negócio’ eram praticamente sinônimos, tanto na terminologia popular como

nos documentos oficiais”. 8 Sua efetiva ligação com o mundo dos negócios

proporcionou a eles uma ascensão econômica e social na colônia, em que usufruíam de

suas posses como elos para se conectarem aos contextos sociais em que conviviam.

O tema cristão novo vem ganhando cada vez mais espaço na historiografia, tanto

brasileira como mundial. Autores de reconhecimento inegável discutem, mesmo que de

forma subordinada ao seu tema principal, a participação e o papel dos cristãos novos na

sociedade colonial. Autores como Júnia Furtado, Charles Boxer, Arnold Wiznitzer, Lina

Gorenstein, Anita Novinsky e etc., demonstram em suas obras a efetiva inserção destes

indivíduos nos diversos setores do mundo colonial brasileiro.

Grande parte das obras hoje relacionadas ao assunto cristão novo procura

analisá-los em decorrência de sua ligação com a Inquisição portuguesa. De fato, não há

como desligá-los desse contexto, por serem, na maioria das vezes, reconhecidos como

tal através dos registros dessa instituição. Neste trabalho, a noção religiosa da

designação “cristão novo” será levado em conta, já que a fonte principal aqui utilizada

consiste em processos inquisitoriais, mas o olhar aqui dedicado os considerará como

agentes sociais inseridos numa sociedade em que convivem, grande parte das vezes,

normalmente. A escolha dessa delimitação sócio-religiosa derivou de sua grande

participação no mundo dos negócios, como já foi falado anteriormente.

Nas primeiras décadas dos setecentos, minas vivia uma grande expansão

econômica devido à extração aurífera. De acordo com a idéia de que o ouro é, em sua

essência, uma moeda circulante e amplamente aceita, 9 a implantação de trocas

comerciais nesse ambiente se torna favorável em todas as suas escalas, pois neste

contexto os obstáculos do câmbio de valores e variações de inflação são quase inúteis

por ser o ouro uma moeda universal. Não podemos desconsiderar as variações dos

valores do metal durante o período em questão, mas ao analisarmos amplamente o

8 BOXER, C. R. O Império Colonial Português (1415-1825). Lisboa, 1981, p. 314. apud PEDREIRA,

Jorge Miguel. Os negociantes de Lisboa na segunda metade do século XVIII: padrões de recrutamento e

percursos sociais. Análise Social, vol. XXVII (116-117), 1992 ( 2.°-3.°), 407-440. 9 A noção de que o ouro é essencialmente uma moeda de troca, e circula em Minas Gerais como tal é

discutida e defendida pelo autor Ângelo Alves Carrara em seu artigo nomeado “À vista ou a prazo:

comércio e crédito nas Minas Setecentistas”, publicado no livro que leva o mesmo nome, que o teve

como organizador. Neste artigo o autor discute a relação entre a produção do ouro com o

desenvolvimento mercantil nas minas ao apresentar as propostas de Ruggiero Romano e Carlos Sempat

Assadourian.

contexto, temos a noção da estabilidade do preço do ouro diante de outros instrumentos

monetários. 10

Esse contexto favorável às trocas comerciais possibilitou a estabilização de uma

rede comercial que atravessava desde os homens de negócios até os tendeiros, a fim de

abastecer uma sociedade que aumentava a cada ano e dependia do abastecimento

externo para se manter. Desde viveres básicos, presentes na alimentação dos escravos,

até os artigos de grande luxo eram consumidos por uma população afoita por gastar o

dinheiro volumoso que a cada dia brotava da terra a baixo custo de produção.

De acordo com Mafalda Zemella, os principais mercados abastecedores das

minas foram os de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, a região onde hoje é o Uruguai, a

Europa e a África. Pelo menos os três primeiros mercados podemos perceber a ligação

deles com os comerciantes mineiros. Os cristãos novos aqui citados, por sua vez

apresentam passagem por estes lugares durante seus relatos nos cárceres da inquisição

que foram registrados nos processos. Para fazermos mais algumas ligações com esses

indivíduos, vamos fazer um breve panorama sobre suas trajetórias.

David Mendes da Silva foi um homem de negócio, mas também se declarou

tratante. Filho de Gregório da Silva nascido em vila Nova de Fôscoa, bispado de

Lamego, que ainda em tenra idade passou para o Brasil, com uma breve estadia na

Bahia, e posteriormente se fixou nas Minas do Serro Frio, era solteiro. Preso em doze de

outubro de 1730, em Lisboa, com seqüestro de bens, foi condenado ao cárcere, hábito

penitencial perpétuo, penitências espirituais e excomunhão, foi levado ao auto de fé do

dia dezessete de junho de 1731.

Francisco Ferreira Isidoro foi um mineiro, filho de Luiz Vaz de Oliveira,

tratante, era natural da vila de Freixo de Nemão bispado de Lamego, e passou para o

Brasil, inicialmente se estabelecendo na Bahia e passando para as Minas na Vila do

Carmo num momento seguinte. Foi preso no dia seis de outubro de 1726, em Lisboa,

com seqüestro de bens, foi condenado ao cárcere, hábito penitencial perpétuo,

penitências espirituais e excomunhão, sendo levado a auto de fé em vinte e cinco de

julho de 1728.

João Rodrigues da Costa era mercador, solteiro, filho de João Rodrigues da

Costa, homem de negócio, nasceu na cidade de Leiria, e morava naquele tempo nas

Minas do Rio das Mortes. Preso em vinte e dois de novembro de 1728, em Lisboa, com

10

CARRARA, Ângelo Alves. op. cit.

seqüestro de bens, foi condenado ao cárcere e hábito penitencial perpétuo, penitências

espirituais e excomunhão maior. Foi levado a auto de fé dia oito de outubro de 1729.

Marcos Mendes Sanches foi um lavrador de roça, solteiro, filho de Manoel

Nunes Sanches, médico. Natural da Vila de Idanha, a nova, veio ao Brasil e se fixou nas

Minas do Rio das Mortes, bispado do Rio de Janeiro. Foi preso em doze de outubro de

1730 com seqüestro de bens, pela inquisição de Lisboa, foi condenado ao cárcere,

hábito penitencial perpétuo, penitências espirituais e excomunhão maior. Levado ao

auto de fé no dia seis de junho de 1732, onde esteve presente o rei D. João V.

Sob uma primeira impressão tirada da leitura dessa pequena trajetória, podemos

fazer um perfil inicial desses indivíduos. Os quatro personagens apresentaram origem na

Europa, sendo ela no reino de Portugal ou no da Espanha, passando lá a maior parte de

sua infância. Vieram para o Brasil durante a adolescência, dos quais, dois deles

passaram por outras regiões da colônia antes de se fixarem na província mineira. Foram

levados aos cárceres secretos da inquisição e passaram em média um ano e meio presos.

Todos tiveram seus bens seqüestrados pela inquisição, e estando presente durante a

narrativa dos seus inventários a distribuição desses bens entre autoridades locais,

membros da inquisição, pessoas de convívio do réu, e a própria instituição – como

podemos observar no relato de João Rodrigues da Costa que diz o seguinte: “... e que os

demais devedores estavam constando em seu livro de controle que estava de posse do

juiz do fisco, como também algumas dívidas que tinha feito.”

Bens e individualidades: o perfil cristão novo

Ao observarmos inicialmente os bens móveis e imóveis desses sujeitos, podemos

formular algumas perguntas. Como era a vida destes indivíduos? Usufruíam de grandes

confortos? Quais os objetos de preferência? Estes objetos podiam demonstrar suas

intenções sociais? Os objetos de luxo estavam entre suas escolhas?

Jean Delumeau, em seu livro A civilização do Renascimento, discute no capítulo

nove a mobilidade social existente na Europa pós-renascimento, mostrando a constante

busca da distinção social. 11

Dentre as diversas formas de se diferenciar dos pobres, a

classe média urbana passou a utilizar artifícios característicos da nobreza.

11

DELUMEAU, Jean. A civilização do Renascimento.v.1. Lisboa: Estampa, 1994.

A migração para outras regiões do mundo, como é o caso da América

portuguesa, gerou a ascensão de parcelas da sociedade, que utilizando principalmente

das atividades comerciais para enriquecimento, passou a buscar outras formas de

destaque social, já que as verdadeiras insígnias de enobrecimento não estavam

disponíveis a todos.

Dentro dessa perspectiva, Delumeau cita algumas das formas de diferenciação

social, que essa classe média ascendente se valeu para alcançar um lugar de destaque na

sociedade em que vivia. As vestimentas, as festividades, e a alimentação foram alguns

pontos trabalhados pelo autor demonstrando essa busca por distinção social.

Trazendo essa noção para a realidade colonial portuguesa, cada vez mais essa

sociedade adquire novos detentores de fortunas que demandam de produtos de luxos

importados para adquirir status. A autora Alexandra Pereira ilustra essa situação com a

análise dos artigos mais vendidos em uma loja de Vila Rica. Em seu trabalho a autora

constata a grande demanda por panos finos, chapéus, brincos e outros acessórios, estes

“gastos aplicados em artigos voltados para o ‘bom tratamento’ denunciam a importância

da boa aparência dentro da estrutura hierárquica daquela sociedade”. 12

Júnia Furtado, por sua vez, também trata dessa mentalidade social de Antigo

Regime, que tinha como premissa o valor pessoal exteriorizado pelos cargos que

ocupavam, privilégios que tinham e ornamentos que usavam. A autora aborda o assunto

da seguinte forma:

Numa sociedade hierarquizada, todos os sinais exteriores enunciavam o

papel que cada um ocupava nela. Havia uma preocupação com o tipo de

roupa, tecidos e adereços que cada estamento podia portar e, de tempos em

tempos, o Rei editava novas regulamentações a este respeito. 13

Ao observarmos e compararmos os inventários, dentre os bens móveis e imóveis

citados durante a documentação (tabelas 1, 2, 3 e 4), podemos fazer algumas relações

com os argumentos expostos à cima. Dentre os quatro sujeitos aqui analisados,

encontramos em pelo menos três deles alguns artigos de luxo, como cabeleiras, roupas

luxuosas – como a de Francisco Ferreira Isidoro que possuía uma véstia em seda, com

ramos de ouro (olhar tabela 4) – e etc.

12

PEREIRA, Alexandra Maria. Uma Loja em Vila Rica. In: À vista ou a prazo: comércio e crédito nas

Minas setecentistas/ Ângelo Alves Carrara (org.). Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2010, p. 47. 13

FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e o comércio das minas

setecentistas/ 2. ed.. São Paulo: Hucitec, 2006, p. 31.

A presença desses artigos dentre os pertences dos sujeitos nos leva a levantar a

hipótese que faziam parte dessa sociedade ávida por distinção pessoal, compartilhando

de sua mentalidade e hábitos, apesar de viverem em um contexto diferente – devido aos

costumes da religião judaica que, de certa forma, ainda os influenciava, e os obstáculos

que essa herança os proporcionava, devido à perseguição e preconceito que alguns

enfrentaram. 14

Por serem indivíduos incluídos em um meio que os influencia - meio este que

possui características próprias socialmente compartilhadas - mesmo que se servisse de

pontos singulares advindos de sua personalidade, estes sujeitos partilhariam dos

mesmos costumes e pensamentos que norteiam a “cultura” daquele povo. Seguindo essa

perspectiva de análise, nos confrontamos com a “história das mentalidades”, que nos

auxilia no entendimento dos comportamentos sociais destas personagens, mas que nos

desviaria do objetivo do trabalho, por isso não vamos nos aprofundar nessa questão.

Continuando na observação dos bens móveis e imóveis dos cristãos novos,

identificamos outros instrumentos que proporcionavam essa diferenciação social: um

deles são os escravos, que, recorrendo novamente a Delumeau, às atividades mecânicas

eram desprezadas por serem relacionadas com pessoas menos favorecidas. Os cristãos

novos, então, partindo de uma mesma mentalidade social que valoriza sinais de

distinção, se utilizavam de seu patrimônio, que muitas vezes se mostrava restrito, para

valorizar esse tipo de utensílio dignificante.

Mas não podemos classificar o investimento desses sujeitos em escravos

somente pelo víeis do artefato de distinção. O principal objetivo da compra de negros

neste período era usufruir da mão de obra que estes proporcionavam. Nos casos aqui

estudados, podemos identificar pelo menos dois objetivos para o uso desses escravos.

João Rodrigues da Costa possuía uma loja que comercializava azeite, açúcares, e outros

gêneros alimentícios que era cuidada por uma de suas escravas - essa mesma loja

posteriormente seria presa pelo fisco.

Um segundo tipo de uso da mão de obra escrava por estes sujeitos foi o de

Francisco Ferreira Isidoro, que empenhava em suas roças 25 escravos, possivelmente

nos trabalhos de extração aurífera, já que Francisco era mineiro. Nos dois casos, os

14

Quando nos referimos ao contexto vivido pelo cristão novo de obstáculos e preconceitos, juntamente

com as crenças judaicas que poderiam afetar seu tipo de comportamento, relativizamos estes efeitos, pois

como já é de conhecimento da historiografia referente aos cristãos novos, muitos dos que poderiam ter

sido denominados assim, passaram despercebidos, convivendo naturalmente com os costumes sociais

católicos, não reconhecendo em si distinção frente aquela sociedade que os levasse a um comportamento

diferenciado.

escravos eram dirigidos para sua razão de existência, geração de capital excedente.

Mesmo assim, não podemos deixar de levantar a hipótese de serem também usados

como instrumentos de distinção.

Dentre os itens encontrados descritos na documentação, a mobília nos chama a

atenção para algumas reflexões. Ao analisarmos os itens de mobília verificamos uma

média aproximada de 11 objetos para cada cristão novo, o que consideramos um

número baixo frente ao total de bens listados. A posse de poucos artigos de mobília

pode nos levar a duas hipóteses: primeiramente podemos relacionar o pequeno número

desses itens com as trajetórias de constante migração desses sujeitos, que é

exemplificada durante a leitura das confissões e na própria trajetória de vida presentes

no processo inquisitorial, em que os cristãos novos aqui trabalhados relatam o seu

constante deslocamento entre diversas províncias da colônia em curtos espaços de

tempo.

Frente a essa informação, os cristãos novos mineiros negociantes, então, podem

ser caracterizados por sua migração, que favorecia suas trocas comerciais por manterem

contatos com as áreas produtoras, estabelecerem relação direta com outros “amigos da

mesma nação”, que praticavam as mesmas atividades econômicas ou que possuíam

alguma ligação.

Uma segunda hipótese para essa escassez de mobiliário pode se referir a pouca

importância dada ao investimento nestes objetos, que mesmo sendo considerados de

valor – já que são listados em um inventário – não era o foco das intenções de compra

desses indivíduos. Mesmo existindo mobílias valorosas, como camas de madeira nobre,

louças e utensílios de prata, enxovais de panos finos e etc., observam-se a pouca atenção

dada a este tipo de bem, levando em conta que dois dos quatro indivíduos apresentam

um ou nenhum desses artigos.

Os dados, na verdade, nos indicam que os cristãos novos possuem alguns

investimentos em artigos de luxo, mas seus bens se focam em itens de utilidade para

com suas atividades econômicas, que produzem algum retorno financeiro, como é o

caso dos instrumentos de trabalho, os escravos, os animais de criação, imóveis, gêneros

alimentícios, e etc., bens estes que denominei como bens produtivos. Os bens distintos

deste perfil, foram denominados como bens improdutivos, como nos mostra a tabela 5.

Prosseguindo com as observações, um item em específico presente na maior

parte dos inventários aqui analisados foram os armamentos. Pistolas, espingardas e

escopetas estão entre os itens avaliados na documentação. A necessidade de portar um

item letal como a arma nos leva a pensar em algumas possibilidades. Inicialmente,

como desencadeamento lógico da posse deste tipo de bem, pensamos na violência que

esta sociedade era sujeita em um contexto que levava os indivíduos a uma busca por

instrumentos de proteção. Num segundo momento podemos pensar no uso das armas

como meio de manter os indivíduos circundantes sob domínio, utilizando a força como

agente de sujeição. A utilização destas armas pelos cristãos novos também pode ter sido

motivada pela necessidade durante as constantes migrações que faziam devido aos

perigos (como animais e roubos) a que estes eram expostos.

Fora desse contexto de violência que as armas estão relacionadas, podemos

pensá-las como instrumentos de distinção pessoal. De acordo com José Eudes Gomes,

“além de serem utilizadas como instrumentos de prestígio e distinção, as armas

marcavam e reproduziam as diferenças sociais existentes.” 15

Os cristãos novos também são conhecidos pela diversificação de atividades

econômicas que exerciam. Anita Novinsky coloca que os cristãos novos, em geral,

estavam envolvidos com as mais diversas áreas da economia colonial, mas se

destacaram economicamente aqueles que se envolveram com mais de uma área

produtiva.16

Podemos verificar esse tipo de comportamento em dois casos dos cristãos

novos aqui trabalhados.

Francisco Ferreira Isidoro, em seu processo, aparece como mineiro, mas dentro

de seu inventário consta a negociação de “moradas de casas”, além de ter um sobrinho

chamado Luis, que é identificado como seu caixeiro durante suas confissões, dando a

idéia de que vendia casas e algum produto mais, e que seu sobrinho fazia a

comercialização.

Outro caso de que consta uma diversificação nas atividades econômicas é o de

Marcos Mendes Sanches. Apesar de aparecer descrito em seu processo como roceiro,

Marcos cita em seu inventário a venda de produtos de suas roças, e um “estoque” desses

produtos avaliado em 600$000 réis (tabela 3), o que nos leva a pensar a comercialização

desses artigos como atividade corriqueira, subalterna a de roceiro.

Diante das informações acima expostas, podemos concluir que os cristãos novos

mineiros eram indivíduos totalmente integrados a sociedade em que viviam,

compartilhando de seus costumes e hábitos. Possuem a característica comum ao grupo

15

GOMES, José Eudes. Na mira da lei: no Brasil a legislação que regulamenta o porte de armas remete

ao período colonial. Revista de História, 23/05/2011,

http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/na-mira-da-lei 16

NOVINSKY, Anita, op. cit., p. 169.

cristão novo de migrações constantes, que influenciavam diretamente sobre seu modo

de vida e bens que adquiriam. Também identificamos sua diversificação econômica,

como fator de enriquecimento, em que praticavam a atividade negociadora como uma

segunda opção em renda para sua atividade principal.

Os cristãos novos e a prática creditícia

Na sociedade colonial, a prática creditícia é vista como uma atividade

amplamente difundida em todas as esferas sociais. Desde os mais abastados aos menos

favorecidos, se endividar era fato corriqueiro e promovia certa liquidez monetária.

Comprar fiado era quase lei entre as trocas comerciais neste contexto, que apesar de

lidar com uma moeda universalmente aceita, o ouro, o uso de empréstimos ou compras

fiadas com longo prazo para pagamento se tornava peça fundamental para os

indivíduos.

Júnia Furtado explora até mesmo a utilização desta prática creditícia pelas

instituições de poder instauradas na colônia. Em suas palavras: “O sistema de

endividamento tornava-se útil para a própria administração, que muitas vezes buscava

financiamento com os grandes comerciantes.” 17

Para qualquer tipo de transação, a utilização do “crédito” estava presente. Desde

a venda de terras, até mesmo a compra de meios de subsistência no comércio local, o

uso do nome como moeda de troca era predominante, essa situação demonstra o tipo de

relação entre vendedores e clientes. Raphael Freitas Santos identifica nessa atividade

creditícia um valor moral embutido na transação, pois “Esta confiança na capacidade do

devedor vir a pagar sua dívida era acompanhada, é claro, por constrangimentos de

ordem social que pesavam sobre os devedores.” 18

Entre os cristãos novos, as práticas creditícias também existiam. Podemos dizer

que a vinculação de cristãos novos com créditos e dívidas era mais intensa do que em

meio ao restante da sociedade por estarem envolvidos diretamente com os negócios, que

eram os veículos mais comuns para essa atividade.

Para visualizarmos a inserção das quatro personagens trabalhadas nesta

pesquisa, dividimos as informações de seus inventários referentes aos empréstimos

17

FURTADO, Júnia Ferreira. Op. cit. P. 120. 18

SANTOS, Raphael Freitas. O ouro e a palavra: endividamento e práticas creditícias na economia

mineira setecentista. In: À vista ou a prazo: comércio e crédito nas Minas setecentistas/ Ângelo Alves

Carrara (org.). Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2010.

concedidos e as dívidas contraídas em tabelas diferentes, uma para cada sujeito,

permitindo assim a melhor compreensão das proporções que cada um possuía. Então, ao

analisarmos as tabelas 6 à 14, chegamos á algumas hipóteses.

Os quatro indivíduos aqui estudados apresentam no decorrer de seu inventário

diversas dívidas que contraiu e empréstimos que concedeu. Como nos mostra a tabela 6,

ser ao mesmo tempo credor e devedor era normal, até mesmo em casos extremos como

o de David Mendes da Silva, que apresenta uma dívida três vezes maior que o seu

patrimônio – no caso sua dívida é 303,44% maior que a junção dos empréstimos e seus

bens –, emprestar dinheiro a terceiros também era uma área favorável para

investimentos, já que destinou 51, 91% de seu patrimônio para essa finalidade.

Outro ponto observado durante a leitura dos inventários foi a utilização das

dívidas como moeda de troca para a compra e venda de outros bens. Encontramos esse

tipo de troca comercial em um caso citado no inventário de Francisco Ferreira Isidoro,

que diz: “E tinha o Capitão João Lourenço Ramalhosa, morador no bairro de São

Sebastião na Vila do Ribeirão, lhe é devedor de cem mil réis, a conta do qual lhe

mandou ele declarante dar 50 mil a Domingos Carvalho.”

Apesar de contarem com grandes somas investidas em bens adquiridos, estes

sujeitos contraiam dívidas de grande valor, como podemos observar nas tabelas

referentes às dividas dos cristãos novos ( tabelas 7 a 14). Francisco Ferreira Isidoro, por

várias vezes cita entre seus devedores a venda de casas que mandava construir, mas

dentre suas dívidas encontramos a que ele contraiu com Manoel Martins, um

carpinteiro, procedente das ditas casas que mandara construir. Podemos observar que

mesmo antes de pagar as custas das casas que mandou construir, já havia vendido

algumas delas, transformando um débito inicial em lucros posteriores.

As dívidas desses sujeitos também estavam ligadas aos impostos reais. João

Rodrigues da Costa, por exemplo, perdeu uma loja em que sua escrava trabalhava, por

não pagar os impostos devidos, por esse motivo à loja foi tomada pelo fisco por

aproximadamente 50 oitavas de ouro. Francisco Ferreira Isidoro também teve alguns

problemas com os impostos cobrados para a Coroa, devia 450 oitavas de ouro à

Sebastião Barbosa do Prado e Diogo Nunes, que também era um cristão novo,

procedido da cobrança dos dízimos reais, já que estes foram os contratadores na Região

da Vila do Carmo. 19

Os empréstimos concedidos por esses cristãos novos alcançavam as diversas

esferas dessa sociedade. Por serem indivíduos conhecidos, ou por suas posses, ou pelo

comércio, homens de toda sorte recorriam ao dinheiro que destinavam aos empréstimos.

Alferes, capitães, médicos, padres, alfaiates, e tantos outros tipos viam neles uma fonte

quase inesgotável de dinheiro, sendo este usado para o pagamento de outras dívidas ou

para novos investimentos.

Os indivíduos de profissão mais destacada aparecem nos inventários ou como

devedores de grandes somas ou como credores dos cristãos novos. Já os vinculados à

profissões mais humildes aparecem ou como devedores, ou como credores procedido na

maioria das vezes de serviços prestados que não foram pagos.

De modo geral, reconhecemos nos indivíduos aqui trabalhados a constante busca

pelo enriquecimento, seja através dos empréstimos à juros, seja ao contrair dívidas para

o re-investimento. As praticas creditícias são instrumentos fundamentais tanto para o

progresso econômico como para a inserção social destas personagens, que buscam fugir

de suas “limitações religiosas” para integrar realmente o meio em que vivia.

Conclusão

Diante das informações dos inventários aqui trabalhados, podemos retirar

algumas conclusões sobre as práticas desses indivíduos, tomando-as como amostragem

do contexto geral dos cristãos novos negociantes da primeira metade do século XVIII.

Os dados aqui apresentados apresentaram várias hipóteses importantes para o

entendimento mais refinado desse grupo em questão.

Os resultados obtidos nos mostram que os cristãos novos, no geral, possuem

comportamentos tanto em sua atividade econômica, como em sua vida privada,

condizentes aos hábitos comuns identificados na sociedade colonial de Antigo Regime.

Com a constante busca por destaque social, seus bens se tornaram um reflexo dessa

mentalidade que despreza as atividades mecânicas e procura adquirir cada vez mais

instrumentos que proporcionem distinção pessoal frente a população em geral.

19

Consta no Arquivo Histórico Ultramarino um parecer sobre os contratadores Sebastião Barbosa Prado,

Diogo Nunes e seu sócio Silvério Marques da Cunha, de 1723, período anterior da prisão de Francisco

Ferreira Isidoro. AHU/MG – Cx.: 4, Doc.: 22.

Como os cristãos novos, normalmente pertencem a famílias que não possuem

insígnias de nobreza, quando estes sujeitos se deparam com o contexto social colonial,

que valoriza os nativos do reino, sejam eles de origem humilde ou abastada, estes

sujeitos buscam no destaque econômico um meio de alcançar status diferenciado do

restante da população desfavorecida.

Destacando-se nas atividades comerciais, os cristãos novos fazem parte do

circuito negociante que abastece e sustenta a região mineradora. Favorecidos por sua

aptidão para as atividades negociantes, muitos enriqueceram e buscavam multiplicar

cada vez mais esse patrimônio, com a execução de mais de uma atividade econômica ao

mesmo tempo.

Como as atividades negociadoras, normalmente, proporcionavam grandes

lucros, estes indivíduos acumulavam consideráveis somas que normalmente eram

reinvestidas nas atividades que praticavam, bem como em bens que poderiam ser

vendidos com altos lucros posteriores, como terras, imóveis, escravos e etc.

Ao mesmo tempo em que investiam em suas atividades econômicas principais,

estes cristãos novos dirigiam parte de suas posses para as práticas creditícias, destinando

grandes somas aos empréstimos tomados em espécie, ou a partir da venda à credito de

algum bem. Apesar de terem investimentos significativos tanto em posses rentáveis

quanto em créditos sob juros, estes indivíduos contraíam dívidas de grandes vultos na

compra de novos itens com longos prazos para pagamento e em valores reais, mas que

os inventários não deixam claro as áreas em que reinvestiam esse dinheiro.

Os cristãos novos mineiros apresentam um histórico de constantes migrações

pelas várias regiões da colônia, principalmente entre os dois eixos econômicos

existentes no período, Rio de Janeiro e Bahia. Suas confissões relatam essa trajetória,

desde a vinda da Europa para o Brasil, até as diversas viagens que fazia nas diversas

vilas e caminhos que a região das minas abarcava.

A relação desses sujeitos com indivíduos possuidores de certo destaque social,

fora do grupo dos também cristãos novos, aparece durante os empréstimos concedidos e

contraídos por eles. Essa “troca de favores” entre os indivíduos demonstra a inserção

social que eles alcançavam. Mas não só com os mais abastados os cristãos novos

travaram trocas econômicas, os menos favorecidos, aparecem, na maior parte das vezes,

como prestadores de serviços que não foram pagos.

Apesar de serem vistos sempre sob o determinante religioso, aspecto que gerou a

formação desse grupo social diferenciado, os cristãos novos permeiam a sociedade

colonial da mesma forma que qualquer outro cristão velho. A diferença que estes

negociante possuíam eram as limitações à que foram sujeitos, e a própria prisão pela

inquisição, que retirou estes negociantes precocemente dos mercados que formaram,

mas, apesar do contexto desfavorável, alguns não alcançados pelas pesadas mãos dos

tribunais inquisitoriais alçaram grande valor na sociedade mineira da primeira metade

do século XVIII, o que não foi o caso das personagens aqui trabalhadas.

Tabelas

Tabela 1

Bens inventariados de David Mendes da Silva

Descrição dos bens Quantidade Valor de compra Valor atual estimado

Bancos, mesa e rede 1 13$200 9$600

Colheres e garfos de prata 4 7$000 Pratos e caldeirinha de estanho 1 3$000

Espingardas 2 24$000

Pistolas 2 14$400

Bichas engajadas(?) 3$600

Véstea e calção 3

Cabeleira 1 14$400 8$000

Negros 2 480$000 440$000

Negra 1 264$000 264$000

Cavalos 3 108$000 108$000

Total 881$600

Tabela 2

Bens inventariados de João Rodrigues da Costa

Descrição dos Bens Quantidade Valor de compra Valor atual estimado

Casas 280$000

Negro 1 44$000

Negra 1 240$000

Negro(criança) 1 210$000

Loja 1 60$000 Louças e colheres de prata

Negra 1 96$000 96$000

Baú 1 4$800

Cabeleira 1 12$000

Cobertor 1 2$000

Colchão 1 4$800

Total 953$600

Tabela 3

Bens inventariados de Marcos Mendes Sanches

Descrição dos Bens Quantidade Valor de compra

Valor atual estimado

Roça 3 1:618$000

Negro 4 1:200$000

Milho, feijão e mamona 600$000

Vacas prenha e touro 4 75$000

Porcos 20 70$000

Espingarda 1 10$000

Cavalo 3 75$000

Pistola 2 15$000

Ferramentas de roça 30$000 Tachos de cobre, espadas, cabana, milho e feijão 4 (?) 50$000

Total 3:743$000

Tabela 4

Bens inventariados de Francisco Ferreira Isidoro

Descrição dos Bens Quantidade Valor de Compra

Valor atual estimado

Casas 160:000$000

Roça, com 2 casas de telha 1 160:000$000

Escravos 25 7:600$000

Salva de prata 1 8$000

Caldeira de prata 1 8$000

Mesa de jacarandá inglesa 1 16$000

Mesa de jacarandá 1 7$000

Espelho de moldura dourada 1 12$000 Guarda roupa de jacarandá com molduras de pau branco 1 40$000

Cadeiras e tamboretes 9 10$000

Catre de jacarandá 2 8$000

Cortinado de cama, de linho 1 6$000

Cortinado de lã com fita de seda amarela 1 18$000

Colheres e garfos de prata 8 7$000

Cavalo selado 1 70$000

Cavalo velho 1 8$000

Vaca com cria 1 25$000

Boi de Carro 2 60$000

Escopeta 3 24$000

Côvado de pano inglês 25 30$000

Véstea de seda, com ramos de ouro 1 25$000

Total 327:982$000

Tabela 5 20

Porcentagens dos bens produtivos dos cristãos novos

Bens Produtivos Bens improdutivos Bens totais

David Mendes da Silva 92,10% 7, 9% 100%

João Rodrigues da Costa 97,52% 2,48% 100%

Marcos Mendes Sanches 97,99% 2,01% 100%

Francisco Ferreira Isidoro 99,93% 0,07% 100%

Tabela 6

Porcentagens referente aos créditos e dívidas dos cristãos novos

David Mendes

da Silva João Rodrigues

da Costa Marcos Mendes

Sanches Francisco Ferreira

Isidoro

Bens/Total 48,08% 87,55% 82,79% 97,11%

Crédito/Total 51,91% 12,44% 17,20% 2,88%

Dívidas/Total 303,44% 19,28% 7,22% 0,56%

Tabela 7

Relação da atividade creditícia de David Mendes da Silva

Devedor Valor

Manoel da Fonseca (?) 192$000

Antônio Rois Garcia 400$000

Antônio (?) 360$000

Total 952$000

20

O que foi denominado como bem produtivo, foram as posses vinculadas de alguma forma com as

atividades econômicas desenvolvidas pelos cristãos novos, bem como os artigos que pudessem

proporcionar algum lucro posterior, como é o caso dos animais domesticados, escravos, roças, imóveis e

etc. Os bens denominados improdutivos são os objetos que não se vinculavam as atividades econômicas

dos indivíduos e, mesmo possuindo valor de revenda, não eram adquiridos com esse intuito, como é o

caso dos mobiliários e artigos de luxo. Os bens totais são todas as posses constantes no inventário, exceto

as dívidas e os créditos concedidos pelo cristão novo.

Tabela 8

Relação das dívidas de David Mendes da Silva

Credor Valor

Manoel Guedes dos Santos 264$000

José Cardoso de Almeida 3:200$000

João Rois da Silva 700$000

Bernardo Vieira 600$000

Manoel Barbosa 600$000

Pedro de Miranda 200$000

Total 5:564$000

Tabela 9

Relação da atividade creditícia de João Rodrigues da Costa

Devedor Valor

Guilherme Rodrigues 14$400

Diogo D'Àvila 96$000

João Antunes Torres 18$000

João Nunes de Viseu 7$200

Total 135$600

Tabela 10

Relação de dívidas de João Rodrigues da Costa

Credor Valor

Estevão Rodrigues de Carvalho 210$000

Total 210$000

Tabela 11

Relação da atividade creditícia de Marcos Mendes Sanches

Devedor Valor

João Alves 400$000

Manoel Carvalho Lima 200$000

Atanásio Pereira 78$000

Jerônimo Martins dos Santos 100$000

Total 778$000

Tabela 12

Relação de dívidas de Marcos Mendes Sanches

Credor Valor

Pedro Bernardes Caminha 118$000

Manoel Bernardes dos Santos 33$000

Francisco (?) da Cunha 19$200

Manoel da Silva 4$800

Manoel de Oliveira de Magalhães 26$800

Antônio da Silva 8$400

Manoel Albuquerque de Aguilar 116$400

Total 326$600

Tabela 13

Relação da atividade creditícia de Francisco Ferreira Isidoro

Devedor Valor

Antônio Lobato da Silva 525$000

João Lourenço Ramalhosa 100$000

Lourenço da Costa 60$000

Paulista (?) 12$000

Geraldo de Castro 60$000

João Loureiro Ramalho 4:200$000

Padre Manoel Pires de Carvalho 4:800$000

total 9:757$000

Tabela 14

Relação das dívidas de Francisco Ferreira Isidoro

Credor Valor

Manoel Martins 270$000 Sebastião Barbosa do Prado e Diogo Nunes 720$000

Ignácio Cardoso e Rodrigo Nunes 480$000

Manoel Gonçalves 35$000

Manoel Alves 80$000

Francisco Moutinho 320$000

Total 1:905$000

Fontes primárias

Arquivo Nacional da Torre do Tombo:

PT-TT-TSO/IL/28/2134 – David Mendes da Silva

PT-TT-TSO/IL/28/6846 – João Rodrigues da Costa

PT-TT-TSO/IL/28/2141 – Marcos Mendes Sanches

PT-TT-TSO/IL/28/11965 – Francisco Ferreira Isidoro

Arquivo Histórico Ultramarino

AHU/MG – Cx.: 4, Doc.: 22. – Diogo Nunes Henriques e Sebastião Barbosa Prado.

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