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Capítulo IV Crise e desvio da arte moderna Não se diga que eu nada disse de novo: a maneira de dispor a matéria é nova. [...] Preferiria que me dissessem haver-me eu utilizado palavras antigas. Assim como pensamentos iguais, se dispostos de formas distintas, constituem um corpo de discurso diferente, palavras iguais compõem pensamentos diversos, segundo o arranjo que recebam. Arrumadas de maneira diferente, as palavras ganham um sentido diferente; e os sentidos, arrumados de maneira diferente, provocam efeitos diferentes. Pascal, Pensamentos Pretendendo analisar a experiência da arte moderna como uma totalidade, análise esta baseada no mesmo horizonte de crítica da arte que o dadaísmo e o surrealismo protagonizaram no entreguerras, Debord elabora uma teoria da constituição da arte moderna que é, ao mesmo tempo, uma teoria de sua crise. Em sua reflexão teórica, este movimento único de constituição e definhamento da arte autônoma tem importância. É com base nela que Debord articula um significado prospectivo para a própria experiência histórica pela qual a arte, saída do universo religioso da tradição e produzindo-se a si própria como autônoma, portaria já, ela mesma, um sentido para a autodestruição crítica da linguagem comum, nela ocorrida. É

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Capítulo IV

Crise e desvio da arte moderna

Não se diga que eu nada disse de novo: amaneira de dispor a matéria é nova. [...]Preferiria que me dissessem haver-me euuti l izado palavras antigas. Assim comopensamentos iguais, se dispostos de formasdistintas, constituem um corpo de discursodiferente, pa lavras iguais compõempensamentos diversos, segundo o arranjo querecebam. Arrumadas de maneira diferente, aspalavras ganham um sentido diferente; e ossentidos, arrumados de maneira diferente,provocam efeitos diferentes.

Pascal, Pensamentos

Pretendendo analisar a experiência da arte moderna comouma totalidade, análise esta baseada no mesmo horizonte decrítica da arte que o dadaísmo e o surrealismo protagonizaramno entreguerras, Debord elabora uma teoria da constituição daarte moderna que é, ao mesmo tempo, uma teoria de sua crise.Em sua reflexão teórica, este movimento único de constituiçãoe definhamento da arte autônoma tem importância. É com basenela que Debord articula um significado prospectivo para aprópria experiência histórica pela qual a arte, saída do universoreligioso da tradição e produzindo-se a si própria comoautônoma, portar ia já , e la mesma, um sent ido para aautodestruição crítica da linguagem comum, nela ocorrida. É

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precisamente este sentido que, nas condições de expropriaçãoda comunicação no capitalismo contemporâneo e deesvaziamento ético-existencial dos novos experimentosestéticos, ele busca compreender e afirmar programaticamente.

O que o conceito de crise da arte lhe permite, portanto, éa própria concepção deste sentido, só passível de ser elaboradoe, portanto, recebido numa experiência de acabamento, detransição que aquele mesmo conceito de crise encerra. Sendoinseparável de sua natureza autônoma, independente, a criseda arte moderna constitui a situação presente a partir da qualum sentido histórico da totalidade de sua experiência pode serarticulado e assumido prospectivamente. É por isso que aarticulação deste sentido histórico prospectivo se amparaesteticamente no conceito de crise da arte e é dele inseparável.Na interpretação desta crise, Debord procura justamente, comfundamento na experiência social e estética presente, liberarda ambigüidade que julga existir na arte moderna um sentidoque, dela constitutivo, somente se demonstra enquanto tal paraeste mesmo presente, concebido como de “decomposição” e,portanto, de “transição”. Deste modo, para concluir a exposiçãosobre a perspectiva comunicativa que Debord elaboracriticamente para a experiência expressiva da arte moderna,procede-se neste capítulo a uma apresentação e uma discussãosobre seu conceito de crise da arte.

4.1 O barroco e a invasão da arte pelo histórico

Em A sociedade do espetáculo, a concepção da crise daarte moderna busca fazer convergir uma consideração históricamais ampla sobre a experiência artística, a partir do barroco,com a atual experiência social do capitalismo contemporâneo,na qual Debord observa uma expropriação da comunicação. Oprimeiro termo desta análise é fundamental à sua perspectivaquanto à linguagem comunicativa, tal como ele a compreendebaseada na experiência artística, pois lhe permite pensá-la com

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fundamento na invasão da arte pelo tempo histórico, algo que éfundamental à sua visão da modernidade. Como pretende – poruma exigência posta por sua afiliação às vanguardas doentreguerras e por sua perspectiva de superação da “arteseparada” numa nova comunicação social – afirmar uma tendênciaautodissolutora da arte moderna, inseparável de sua afirmaçãocomo arte autônoma, Debord busca encontrar o princípio destadissolução na entrada da história no domínio especificamenteestético. É aí que ganha importância a experiência do barrocoque, segundo ele, expressaria a emergência da sociedadehistórica, pela sua ruptura com o mundo mítico-religioso, “naprópria esfera da arte”.

“O barroco”, diz Debord, “é a arte de um mundo queperdeu seu centro” (SdS, § 189). Esta perda do seu “centro”pelo mundo, Debord a apresenta já antes, no capítulo V de Asociedade do espetáculo , também como uma “invasão” dasociedade pelo “tempo irreversível”, quando da queda da ordemmítico-religiosa da Idade Média. Este processo, diz ele nestemomento, “é ressentido, pela consciência presa à antiga ordem,sob a forma de uma obsessão de morte. É a melancolia dadissolução de um mundo, o último em que a segurança do mitoequilibrava ainda a história; e para esta melancolia toda coisaterrestre se encaminha unicamente para a corrupção” (SdS, §138). Em contraste com esta melancolia própria ao fim de umdeterminado mundo de sentido, o barroco ter-se-ia constituídoem “arte da mudança”. Assumindo positivamente a perda da“segurança do mito”, o barroco traz “em si o princípio efêmeroque ele descobre no mundo” (SdS, § 189). Citando Eugenio d’Ors,Debord diz ainda que o barroco escolheu “a vida contra aeternidade”.

O livro de d’Ors, com o qual Debord dialoga nestaspassagens de A sociedade do espetáculo, é uma das últimasgrandes obras acadêmicas que, nas primeiras décadas do séculopassado, retomaram a discussão sobre o barroco. Sua tesecentral é a de que o barroco não é um gênero específico na

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história da arte, limitada à arquitetura e aos séculos 17 e 18,mas sim um eon, uma “forma” ou “idéia” permanente e trans-histórica da arte, cujo princípio é a mobilização daquilo que, soba civilização e a cultura, fundando-a e ameaçando-aconstantemente, se pode nomear de “barbárie”. O princípio dobarroco seria o que Goethe chamou de Ewig-weibliche, o “eternofeminino”, ou ainda, a contradição, o a favor e o contra; seriaOsíris, “quando Osíris era apenas uma palavra genérica paradesignar ‘a morte’”.1 Situado nesta instância metafísica, trans-histórica, o eon do barroco tem, contudo, seu desenvolvimentoinscrito no tempo; nele, “o permanente tem uma história, aeternidade conhece vicissitudes”.2 Como eon, o barroco se opõepermanentemente ao classicismo , que seria para d’Ors –reproduzindo um pouco a oposição nietzschena entre o dionisíacoe o apolíneo, ou a freudiana entre Eros e Thânatos – o princípioda civilização, da cultura, da ordem. O que é importante nestaconcepção do barroco como um eon oposto ao classicismo, quetampouco seria uma fase da história da arte, é que, com basenela, d’Ors vê o princípio barroco se manifestar ainda uma vezna arte moderna. É precisamente o conceito de eon – com oqual, numa postura muito próxima da que foi também a deBenjamin, ele se opõe ao método histórico-evolucionista deWölfflin3 – que lhe permite distanciar fenômenos artísticos deuma mesma época e aproximar outros, temporalmente distantes,e, assim, reconhecer uma “analogia entre alguns exemplos debizarria na literatura do passado e os gostos da arte de vanguardae, em geral, da produção ultramoderna”.4

1 . E. d’Ors, Du baroque [1935]. Paris: Gallimard, 2000, p. 30.2 . Idem, pp. 73-74.3 . “[...] a afirmação de que o Barroco é um eon (categoria intemporal que se

desenvolve no tempo) [...] parece corresponder de muito perto à concepçãode Benjamin de que o drama barroco é uma idéia, cuja atualização se dá nahistória” (S. P. Rouanet, “Apresentação” a W. Benjamin, Origem do dramabarroco alemão. Tr. br. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 26,n. 9).

4 . E. d’Ors, Du baroque, p. 80.

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Em Debord, o que se preserva de d’Ors é a concepção deuma fundamental continuidade histórica entre o barroco,compreendido sob o princípio dissolutivo das formas, expressãomesma de seu elemento “bárbaro”, “carnavalesco”,“desordenado”, e a experiência da arte moderna, na qual seencontra um processo constante de dissolução formal, até mesmoatravés de transições e conexões dos diversos gêneros entresi. Voltando a situar historicamente o barroco no início da eramoderna, Debord não o toma como um eon trans-histórico, talcomo o faz d’Ors, mas mantém da sua postura antievolucionistaa concepção de permanência, historicamente determinada, deuma tendência barroca na totalidade da experiência artísticamoderna. Para isso, contudo, pensa a experiência barroca e oprincípio que dele permanece na experiência artística que osegue – algo ausente no texto de d’Ors – como constituídos noe pelo movimento histórico de emergência do mundo moderno.

É verdade que d’Ors recorre à discussão sobre aimportância do luteranismo e da contra-reforma na constituiçãodo espírito barroco moderno e, deste modo, considera-o emsua especificidade histórica. Mas, neste recurso, o que ele buscaé identificar a manifestação do próprio princípio supratemporaldo barroco no que diz respeito ao seu compromisso com a“natureza”: “A natureza é vida, é atividade, mudança, fluência.A natureza traz em si o movimento, é, ela mesma, movimento”.5

Com o franciscanismo e o luteranismo, o barroco histórico teriaadotado, segundo d’Ors, uma postura de “reconciliação” com anatureza, de “absolvição” dela. É precisamente nesta mesmalinha de “reconciliação” e “abolvição” da “natureza”, enquantoassunção do seu princípio autocontraditório, de deperecimentoe morte, que se encontrariam o romantismo do século 19, apintura impressionista (por seu “panteísmo metodológico”), todoo espírito epocal do primeiro pós-guerra de relativização dosvalores, da verdade etc. Como eon trans-histórico, o barroco

5 . Idem, p. 103.

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não deixa de se associar precisamente a esta experiênciamoderna tão própria aos séculos 19 e 20, pois, segundo d’Ors,“o espírito que o dirige é um espírito em estado de rupturainterior, um espírito partido que encerra uma oposição [...] [um]espírito [que] imita os procedimentos da natureza [...] adualidade, a multiplicidade de intenções coexistentes, a rupturainterior do espírito traduzida pelo antagonismo das formas [...]”.6

Apesar de seu recurso à experiência histórica do inícioda era moderna (luteranismo e contra-reforma) e de seu olharpara a experiência presente nas primeiras décadas do século20 (arte moderna e espírito pós-guerra), entre as quais enxergaa continuidade do mesmo eon barroco, d’Ors não faz delas umaanálise histórica concreta, não as situa num mesmo e contínuoprocesso de ruptura com um determinado mundo histórico desentido, ruptura a partir do qual a própria cultura moderna emergeconsubstanciada pelo “princípio” permanente de “inovação”. Aocontrário, para Debord, o “espírito” barroco de que fala d’Orsnada mais é do que expressão, que lhe é, todavia, essencial,desta experiência moderna de perda da “segurança do mito”,própria à “invasão” do tempo histórico e irreversível tanto naexperiência social quanto na artística; expressãopermanentemente ínsita, não a qualquer momento da civilização,mas à cultura moderna mesma como um todo, da qual a lutaentre a “tradição”, constantemente resposta, e a “inovação”constitui o próprio movimento interno, pois é uma determinaçãoessencial de tudo o que é “histórico”.

Neste sentido, a conclusão que Debord tira da análise ded’Ors, determinando-a historicamente, está mais próximadaquela de Benjamin, quando este descobre “conexões”(Zusammenhänge) e “analogias” (Analogien) entre o barrocoalemão do século 17 e a literatura expressionista alemã do iníciodo século 20: ambos “não se desenvolvem a partir de uma

6 . Idem, p. 111.

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existência comunitária [Gemeinschaftsdasein]”, sendo estaúltima experiência literária antecedida precisamente pelo“colapso da cultura classicista alemã” (deustche klassizistischeKultur).7 Como Debord, Benjamin concebe como o “núcleo”, o“teor” e o “objeto mais autêntico” do barroco “a própria vidahistórica [geschichtliches Leben] como aquela época se aapresentava”.8 Esta “vida histórica”, tal como concebida pelobarroco alemão, rompe precisamente com a representaçãoestética do “mito”, da “época pré-histórica”, do “passadoimemorial”, que eram a base da tragédia grega; e rompe porque,voltado para os “acontecimentos atuais”, “aderindo ao mundo”e à sensação de que ele marcha para a “catástrofe”, o barroco“junta e exalta tudo o que é terreno, antes que ele se entregueà consumação”.9 Se o barroco é, como Debord assinala, acontraface daquela consciência epocal para a qual “tudo seencaminha para a corrupção” (ou para a “catástrofe”, no dizerde Benjamin), é porque, precisamente como diz este último, obarroco afirma positivamente a “tensão entre o mundo e atranscendência”; rejeitando todo “emanatismo”, ele se assegurana “imanência” terrena e histórica.

O que está no centro da concepção de mundo do barrocoé, para Benjamin, justamente a assunção do “acontecimentohistórico instável, precário” (schwankendes historischesGeschehen), o reconhecimento da “manifestação da história”(Offenbarung der Geschichte) e a consciência de que compõemo destino de todas as criaturas a morte, o sofrimento, odeperecimento. Por isto mesmo, na doutrina de soberania políticaque lhe era essencial como concepção de mundo, impunha-se abusca puramente mundana e imanente de constituição de uma

7 . W. Benjamin, Origem do drama barroco alemão, p. 77, tr. levemente mod.;Ursprung des deutchen Trauerspiels.Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag,1978, p. 37.

8 . Idem, p. 86; ed. alemã, p. 44.9 . Idem, p. 90; ed. alemã, p. 48.

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“instância que coíbe as suas [da história] vicissitudes”.10

Encontra-se aí, conforme Benjamin, uma experiência histórico-espiritual mais ampla, aquela da saída da civilização européiada Idade Média cristã, cuja concepção de mundo é marcada pela“história da redenção”, para uma outra, assentada na “históriaempírica”. “Onde a Idade Média expõe a fragilidade, ainstabilidade dos acontecimentos do mundo e a fugacidade, aperecibilidade da criatura como estações do caminho sagrado”,diz ele, “o drama barroco alemão enfronha-se inteiramente nodesconsolo da condição terrena, mortal. [...] A renúncia àescatologia do [anterior] teatro religioso [espiritual, geistlich]distingue o novo drama na Europa inteira”.11

Em sua análise, Debord não leva em conta a nova teoriada soberania elaborada no século 17, como o faz Benjamin, mas,como este, tem também em vista, na concepção de mundo dobarroco, a dupla face de um olhar para o mundo que o vê numadinâmica perecedoura e que, aí mesmo, busca inscrever umainstância de estabilidade sabida como essencialmente instável.

A central idade da “paisagem” no barroco, gênero de

10. Idem, pp. 94 e 97; ed. alemã, pp. 52 e 55.11. Idem, p. 104, tr. lev. mod.; ed. alemã, p. 62. É uma das teses centrais de

Benjamin acerca do drama barroco do século 17 a afirmação de que, neste,há a manifestação de uma concepção histórica do mundo. Consubstanciar-se pela vida histórica é o que dá ao barroco sua característica “imanente”e “mundana”. Tratar-se-ia, contudo, de uma concepção em que a existênciahistórica equipara-se à existência natural, o acontecimento histórico aoacontecimento natural, pois a concepção histórica do barroco basear-se-ia na “condição humana”, na “fragilidade da criatura” situada numa naturezadesprovida de Graça, donde justamente a representação da efemeridadede todas as coisas do mundo na idéia barroca da catástrofe. Em outraspalavras, a vida histórica é concebida pelo barroco alemão do século 17com base na mortalidade e na fragilidade corpórea da criatura, em suacondição natural. Por isto mesmo, Benjamin vê aí uma concepção de históriabaseada na história natural. É a figura do príncipe, precisamente porqueele expressa a efêmera condição humana e o esforço humano contra aefemeridade do mundo humano, o que melhor manifestaria uma concepçãohistórica baseada na condição natural do homem. O monarca, “primeiroexpoente da história”, é aquele que, como qualquer homem, não escapa àmorte e, contudo, deve manter o mundo humano a salvo da catástrofe: eleexpressa a história, pensada como natureza, e, ao mesmo tempo, a

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representação que remete sempre à natureza, expressa aquelaabsolvição, aquela assunção positiva da mudança, do movimento,da fluência naturais, de que fala d’Ors. Mas é precisamente aprópria paisagem barroca que, na análise de Debord, se expressacomo um “centro de unificação” que é “a passagem que estáinscrita como um equilíbrio ameaçado na desordem dinâmica dotodo” (SdS, § 189). Como passagem, a paisagem barroca buscaunificar, fragilmente equilibrar o que é vivido e concebido comodinâmico, fluido, perecível. O barroco teria sido uma “festateatral” constituída como paisagem e passagem em “décor deum lugar construído”, no qual a descoberta da passagemirreversível do tempo, despossuído da anterior segurança mítico-religiosa, é figurada e festejada. E, assim, articulada ludicamentecom sentido.

Na concepção de Debord, a festa teatral barroca seriacomo o “trabalho de luto” de que nos fala Freud, um trabalho deluto histórico pelo qual toda melancolia é evitada e a sensaçãode morte e deperecimento é transformada em princípio de vida,“contra a eternidade”.12 Ao contrário do milenarismo camponês,preso à melancolia, em virtude de uma concepção de mundoque pensa a vida presente em função de uma restauraçãoqualquer (a “realização terrena do paraíso”), o barrocoaristocrático do século 17 responde positivamente, no seutrabalho de luto, à emergência do tempo histórico e,diferentemente daquele, expressa a consciência de se saber

necessidade de coibi-la. Esta visão benjaminiana do barroco – justamentena medida em que o barroco alemão do século 17 pertence ao nascimentoda modernidade – diz respeito a uma ambigüidade e a uma contradiçãocentral à modernidade capitalista: a de que nela a vida histórica estáaprisionada pelas “forças naturais”, “míticas” do capital (cf. meu já referidoartigo, “Imagem onírica e imagem dialética em Walter Benjamin”). Éevidente a aproximação desta concepção benjaminiana da modernidadedaquela desenvolvida por Debord em A sociedade do espetáculo, tal comoa expus no primeiro capítulo.

12. A expressão alemã Trauerspiel (Trauer, “luto”, Spiel, “jogo, brincadeira,representação teatral”) guarda bem este sentido do barroco que Benjamin,também ele, manteve e desenvolveu em sua análise.

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histórico.13 A arte do barroco expressa, pois, a experiênciamoderna do tempo histórico, irreversível, a experiência temporalassinalada pela “destruição de Deus” (destruction de Dieu, SdS,§ 182), pela qual precisamente a moderna cultura separadaemerge, tendo em seu âmago a história. Por causa disso, o eonbarroco, princípio de mudança e efemeridade, mas determinadohistoricamente nos termos acima assinalados, por-se-ia, paraDebord, como o próprio princípio da cultura e da arte modernas.“Do romantismo ao cubismo”, diz ele, “é finalmente uma artesempre mais individualizada da negação, se renovandoperpetuamente até o despedaçamento e a negação acabados daesfera artística, que seguiu o curso geral do barroco” (SdS, §189).

A experiência do barroco, marcada pelo mundano ehistórico e, por isso mesmo, constituída em eon da totalidadeda experiência artística moderna, é mais decisiva para a análisedebordiana da cultura e da arte modernas do que aquela do“classicismo”, compreendido por Debord numa grandeproximidade do eon de d’Ors e ao qual se ligam, segundo diz,“construções artificiais falando a linguagem exterior do Estado”.O “classicismo artístico” – seja aquele do início do século 19,oposto ao romantismo, seja a exigência realista em oposiçãoaos experimentos dissolutores das formas nas vanguardas e naarte moderna – é, em sua natureza normativa, vista por Debordcomo expressões de uma mesma tendência de aprisionamentodo princípio histórico celebrado pelo barroco e por toda a artemoderna que, através do romantismo, lhe dá prosseguimento. Aarte moderna, ao contrário de todas as tentativas “classicistas”,se caracteriza essencialmente por esta tendência “barroca” deafirmação da história, enquanto existência vivida e concebidacomo precária, transitória, passageira, vivência e concepção que

13. O milenarismo camponês é, para Debord, uma “luta de classe revolucionáriafalando pela última vez a língua da religião, que é já uma tendênciarevolucionária moderna à qual falta ainda a consciência de somente serhistórica” (SdS, § 138).

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se mani festam até mesmo em suas exper iênc ias deautodestruição formal.

Nas condições do capitalismo contemporâneo, seriamainda estes dois princípios – “classicista”, um, “barroco”, outro– que mais uma vez se defrontariam, no interior da própriaexperiência artística, mas numa situação em que esta teriachegado a um certo limite, a uma certa zona de acabamento etransição. Vista através do antagonismo entre o “classicismo”,reposto na manutenção artificial da arte e da cultura separada,e o “barroco”, presente na tendência de superação de ambas, aexperiência de crise da arte moderna é pensada por Debordnuma contraposição entre aquela situação histórica deconstituição da arte barroca, compreendida como eon dastendências determinantes da arte moderna, e a atual situaçãohistórica do capitalismo espetacular. O barroco artístico foi um“arte histórica que estava ligada à comunicação interna de umaelite, que tinha sua base social semi-independente nas condiçõesparcialmente lúdicas ainda vividas pelos últimos aristocratas”(SdS, § 189). Ao contrário, o capitalismo contemporâneo é aqueleem que “nenhuma comunicação artística não pode mais existir”,pois é marcado pela “perda presente das condições decomunicação em geral” (idem).

É precisamente com base nesta linha de continuidade eantagonismo entre estes dois momentos histórico-sociais daexperiência artística social que Debord reconhece, no capitalismocontemporâneo, a atualidade acabada da tendência da artemoderna à autodissolução. Partindo da experiência histórica dobarroco, ele articula uma teoria da crise da arte moderna comfundamento em um processo – verificado também no interior daprópria esfera da arte – no qual se encontra a emergência dotempo histórico na sociedade e se constitui a moderna culturaseparada. Neste mesmo processo, concebe uma linha decontinuidade do barroco, através do romantismo, nasexperiências artísticas posteriores, indo até as de vanguarda.Por fim, situa historicamente esta crise na presente experiência

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social do capitalismo contemporâneo, no qual se dissolveramaquelas condições de comunicação artística vivenciada pelaaristocracia no barroco, pois se encontram agora dissolvidas ascondições da comunicação em geral. Entre a comunicaçãoartística vivida pela arte histórica do barroco e a atual dissoluçãoda comunicação, tanto artística quanto social, é que se localizaa experiência da arte moderna em sua posição afirmativa dadissolução da antiga “linguagem comum”.

Nesta formulação, Debord apresenta apenas as linhas-força do processo histórico de emergência da arte autônoma,sua crítica nas experiências de vanguarda e, tendo como panode fundo a presente experiência social, um sentido históricopara este processo de dissolução da arte, precisamente, o deque “uma nova linguagem comum deve ser reencontrada”. Pormais questionável, pois abstrata, que seja a validade desta teoriada crise da arte, tal como articulada por Debord, ela tem, contudo,dois momentos fortes: o primeiro, a articulação entre aexperiência social da linguagem e a experiência artística (obarroco, a arte moderna e as vanguardas); o segundo, aconcepção de um sentido histórico para a destruição crítica, nae pela arte moderna, da antiga “linguagem comum”, sentidoeste concebido a partir de uma certa compreensão de crise daarte moderna nas condições do capitalismo contemporâneo,marcadamente anticomunicativo. Esta concepção exposta em Asociedade do espetáculo se apóia, contudo, em análises sobre aexperiência artística do pós-guerra que, ausentes na exposiçãoconcisa do livro, foram desenvolvidas, durante os anos que oantecederam, na revista Internationale Situationnniste. Em taisanálises, a crise da arte moderna é, em conexão com a própriaexperiência social do capitalismo tardio pensada com base nacrise da expressão, compreendida como categoria fundamentalda arte moderna presente na “autodestruição crítica” dalinguagem, por ela protagonizada.

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4.2 A crise da expressão, enquanto crise da arte moderna

Na dissolução dos meios artísticos tradicionais pelomodernismo, Debord encontra expressos tanto um radicalquestionamento da cultura burguesa quanto o desenvolvimentodas forças produtivas da sociedade moderna, base histórica maisampla desse questionamento. A relação entre o desenvolvimentodas forças produtivas e a emergência da arte moderna –considerando que os “sintomas modernos da arte” são,precisamente, a aparição de “certas obras destrutivas”,mormente nos anos 20 e 3014 – oferece uma determinaçãohistórica mais concreta à sua discussão sobre a destruição daantiga linguagem comum e, por isso mesmo, uma maioraproximação das experiências sociais e artísticas que lhe sãocontemporâneas.

O caráter objetivamente “destrutivo” do desenvolvimentodas forças produtivas modernas também já tinha sido observadopor Benjamin, no que diz respeito à Erfahrung comunicável, queconstituía o conteúdo material da narrativa tradicional; e tambémà própria arte já liberada da tradição: no século 19, essedesenvolvimento na arquitetura e nas técnicas de construçãocivil “emancipou, da arte, as formas figurativas” (hat [...] dieGestaltungsformen von der Kunst emanzipiert);15 no século 20,a emergência da informação “leva o romance a uma crise” (den[Roman] einer Krise zuführt ).16 Neste mesmo horizontematerialista de reflexão e numa mesma perspectiva da críticadas vanguardas à “arte”, Debord considera que odesenvolvimento das forças produtivas configura historicamentea pergunta pelo seu uso social, sendo precisamente esta a

14. “Avec et contre le cinéma”, em Internationale Situationniste nº 1, p. 8.15. W. Benjamin, “Paris, Capitale du XIXe Siècle (Exposé de 1935)”, em Capitale

du XIXe. Siècle. Le livre des passages, p. 46; “Paris, die Hauptstadt desXIX. Jahrhunderts”, Passagen-Werk, p. 59.

16. W. Benjamin, O narrador. Tr. br. S. P. Rouanet. Obras escolhidas, t. I, ed.cit., p. 202; Der Erzähler, Gesammelte Schriften, B. II/1. Frankfurt amMain: Suhrkamp Verlag, 1991, p. 444.

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pergunta que a arte moderna tematizou tanto em sua dimensãoperformativa (estilos, técnicas, enfim, na destruição da linguageme das formas) quanto no conteúdo socialmente crítico de seustemas. O próprio desenvolvimento da arte moderna, colocandoo problema do “sentido da vida” (sens de la vie), se fezradicalmente contemporâneo da experiência histórica e socialmais ampla, fundada no desenvolvimento das forças produtivasno capitalismo, pois “a questão do uso da vida é efetivamenteposta na margem da liberdade já atingida e, crescentemente, denossa apropriação da natureza”.17 Ao tematizar o sentido davida, a arte moderna, em seus momentos mais ricos, teria sido“a reivindicação de outros ofícios”. Em outras palavras, a artemoderna tanto articula de modo consciente uma questão socialque, segundo Debord, se funda no desenvolvimento das forçasprodutivas, quanto inscreve, precisamente deste modo, aperspectiva de uma ultrapassagem da forma artística separada,perspectiva que se constitui num princípio ético-estético dasexperiências dissolutoras das formas que caracterizam todo omodernismo.

Do ponto de vista formal, isto se teria realizado atravésda representação poética, que é própria à arte moderna, daexperiência temporal no capitalismo: o “esmigalhamento”, o“despedaçamento do tempo” (l’émiettement du temps) que, comoobserva Debord, “adveio [...] da narrativa romanesca, comProust e Joyce”.18 A centração temática na memória, quebrandoa unidade imediata do tempo, despedaçando-o, esmigalhando-o, constitui-se no próprio fundamento das transformaçõestécnico-estilísticas altamente destrutivas que a Recherche e oUlysses introduziram na escrita e na narrativa do século 20.Nestas experiências, tema e forma compõem inseparavelmenteuma dissolução formal do romance que, segundo Debord, se

17. “Le sens du dépérissement de l’art”, loc. cit., p. 4.18. “Le cinéma après Alain Resnais”, Internationale Situationniste nº 3, p. 8.

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anuncia precisamente ali. Deste modo, esses autores teriamrealizado na escrita “o movimento de autodestruição que dominatoda a arte moderna”. Por que? Porque, explicaria Debord, “amemória é forçosamente o tema significativo da aparição dafase de crítica interna de uma arte, de seu questionamento, suacontestação dissolvente [...] [pois] a questão do sentido damemória está sempre ligada à questão do sentido de umapermanência transmitida pela arte”.19

Em outras palavras, Proust e Joyce teriam expressado osignificado do desenvolvimento social das forças produtivas nointerior da própria arte ao introduzir, na escrita, elementostécnico-estilísticos destrutivos da forma romanesca, apontandoa tendência mais geral da arte moderna à dissolução e à transiçãodas formas; e o teriam ao se centrarem tematicamente na questãofundamental da experiência do tempo, essencialmente histórica,moderna: a memória. É esta experiência moderna do tempo,com tudo o que ela traz consigo de destrutivo, que determina acentralidade temática da memória, inseparável e reafirmadoradesta mesma experiência de dissolução; e reafirmadorajustamente porque, testemunha do processo dissolutor-destrutivo da modernidade, busca não um qualquer resgate dealgo findado, mas sim construir um significado para este mesmodefinhamento. Em outras palavras, a centralidade da memória,na escrita moderna, tem como pressuposto justamente adissolução do que lembra. Neste sentido, a escrita moderna, aocentrar-se tematicamente na memória, traz consigo os elementosdissolutores-destrutivos dos quais é testemunha, apresentando-os nos próprios elementos estilísticos-formais como experiênciada destruição das formas.

Na Teoria do romance, o jovem Lukács já expunha aimportância da passagem do tempo para a literatura moderna,apresentando-a fundada na “discrepância entre a realidade e a

19. Idem, p. 9.

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idéia”: “[S]ó o romance, a forma do desterro transcendental daidéia, assimila o tempo real, a durée de Bergson, à fileira deseus princípios constitutivos”.20 E o faz porque, ao contrário daepopéia e das formas do drama, nas quais o tempo nada modificado destino ou do caráter do herói, a agora ausência de sentidoexperimentada socialmente (e que, como busca de sentido, ganhaforma no romance) se manifesta também, e essencialmente, naexperiência do “decurso contínuo e indolente do tempo”. Estedecurso se apresenta, ele mesmo, como alheamento à e dasubjetividade e, contudo, como condição para a – e lugar da –busca de sentido que caracteriza o romance; por isso mesmo, otempo se apresenta não apenas como matéria do esforço éticoda escrita romanesca, mas também como constitutivo da própriaforma. “No romance, separam-se sentido e vida e, portanto,[o] essencial e [o] temporal”, diz Lukács; “quase se pode dizerque toda a ação interna do romance não passa de uma luta contrao tempo”.21

Tirando conclusões diferentes daquelas com as quaisLukács termina a Teoria do romance, Debord também concebecomo central, à escrita moderna, a figuração da passagem dotempo. Para ele, a representação inseparavelmente temática eformal da experiência do tempo constituiria precisamente oproblema-limite da arte moderna quanto ao “sentido de umapermanência transmitida”. O significado desta enigmáticaproposição pode ser aproximativamente esclarecido nadiscussão, que encontramos em A sociedade do espetáculo, sobrea expressão artística que “fala para outros o que foi vivido semdiálogo real”, que representa, justamente deste modo, um “jogocom o tempo”. Expressando uma concepção dialética dacaducidade temporal das coisas, própria ao tempo histórico dasociedade moderna em sua radical distinção do tempo cíclicodas sociedades pré-capitalistas, Debord considera que a

20. G. Lukács, Teoria do romance, p. 127.21. Idem, p. 129.

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produção artística moderna é sempre a expressão “[de] ummomento da vida [que] envelheceu e [que] não se deixarejuvenecer com cores resplandescentes, [que] se deixa evocarunicamente na lembrança [em que] a grandeza da arte apenascomeça a aparecer no ocaso/na reconsideração [à la retombée]da vida” (SdS, § 188). Que a arte moderna demonstre suagrandeza, segundo estas palavras de Debord, somente comoocaso e reconsideração da vida, tal é o modo sob o qual ela seconstitui formal e tematicamente numa denúncia da “insuficiênciada vida” presente; e se constitui nisso porque – como memória,lembrança e expressão, “falando a outros o que foi vivido semcomunidade”, “evocando na lembrança um momento envelhecidoda vida” – a arte moderna suscita o problema, que é um e omesmo, da experiência do tempo e da comunicação.

Este aspecto formal, que traz em si seu próprio conteúdosocial, é inseparável da representação do “despedaçamento dotempo” pela qual a arte moderna introduz como tema o próprioprincípio histórico da cultura moderna (a passagem irreversíveldo tempo, a caducidade de todas as coisas) e, deste modo,expressa o princípio que a funda e que a liga à vida social. ARecherche e o Ulysses manifestariam esta experiênciafundamental da arte moderna de consciência da passagemirreversível do tempo ao tematizar a memória (com todas asrepercusões desta matéria temática nos aspectos técnico-estilísticos, formais) e, por conseguinte, ao realizar este princípiohistórico-dissolutor na própria dissolução-transição da forma;princípio este constituído, no âmbito da própria arte, pelodesenvolvimento das forças produtivas modernas.

Em “Le sens du dépérissement de l’art”, Debord toma emconsideração essas condições sociais do surgimento da artemoderna, bem como a elaboração de um seu significado histórico,com vistas menos na tematização retrospectiva da experiênciamodernista do que na reflexão sobre a experiência estética quelhe é contemporânea. “A libertação das formas artísticas

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significou em todo lugar sua redução a nada”,22 ele constatacom relação às experiências estéticas dos anos 50-60.Recusando qualquer solidariedade aos “críticos reacionários”da arte moderna e ao “seu sonho de um retorno às belas maneirasdo passado”, Debord busca discutir neste texto principalmentea situação do que julga ser um “naufrágio da expressão comoesfera autônoma, como objetivo absoluto”, tendo como pano defundo, nas condições materiais de existência do capitalismoavançado, “a lenta aparição de outras dimensões da atividade”.Em outras palavras, Debord busca pensar justamente a crise daprópria arte moderna, crise que, condicionada pelo mesmodesenvolvimento das forças produtivas que provocaram seusurgimento, que ela assumiu performática e tematicamente nadestruição da linguagem tradicional, das formas artísticas e naaspiração a uma nova experiência vital, se manifesta agora naprópria categoria que mais fundamentalmente a constitui: aexpressão. Desde Baudelaire, de Mallarmé ao surrealismo, aexpressão poética – testemunhando nisso as condições sociaisque “concernem a todos os outros meios de expressõesartísticas” – teria manifestado, segundo Debord, “a sensaçãoprofunda da vida e as contradições dos homens avançados deseu tempo”. “Essa sensação e essas contradições”, diz ele,“foram já expressas por toda a arte moderna – e justamente atéà destruição da própria expressão”.23

Na análise de Debord, esta destruição da expressãoaperece constituída por duas determinações. Em primeiro lugar,pelas possibilidades outras de atividade sociais que, tematizadasna arte moderna, são constituídas pelo desenvolvimento dasforças produtivas, o qual determina nas condições do capitalismocontemporâneo, no interior da própria arte, a crise da expressãoartística. Em segundo lugar, pela ausência, nas “neovanguardas”,adjetivadas ironicamente de “neodadaístas”, do sentido crítico

22. “Le sens du dépérissement de l’art”, loc. cit., p. 3.23. Idem, p. 6.

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que a expressão refratária à pseudocomunicação teria portadona arte moderna. No que diz respeito a esta segundadeterminação, a avaliação de que a categoria estética daexpressão está em crise, dando acabamento a uma tendênciaimanente à sua própria constituição histórica na poesia moderna,é menos um fato a ser “objetivamente” demonstrado do que amanifestação de uma posição – até mesmo valorativa, mas jamais“normativa” – diante da experiência estética do capitalismo dosegundo pós-guerra. Mas trata-se de uma valoração que seampara precisamente numa anterior concepção histórica da artemoderna como um todo, cujo conteúdo crítico Debord opõe ao“neodadaísmo” contemporâneo. Este “neodadaísmo”, ele overifica não apenas nos diversos pequenos grupos de“neovanguarda”, mas também na “alta cultura”, na qual apersistência de uma linguagem não-comunicativa – com SamuelBecket, Eugène Ionesco, John Cage, Alain Robbe-Grillet – seriaadmitida, consentida e até mesmo requerida pelo próprio sistema.Repetindo sem cessar o gesto profundamente crítico ehistoricamente fundado de destruição da linguagem pelodadaísmo, pelo surrealismo e por toda a arte moderna, porémsem o sentido histórico e crítico destes, as experiências“neodadaístas” afirmariam, segundo Debord, o “nada” (néant) eo “vazio” (vide).24

A natureza acrít ica e apologética dessas novasexperiências modernistas é explicitada de diversos modos. Oprincipal deles é a constatação de que a feição negativa ,destrutiva e até mesmo experimental do gesto dadaísta éreconvertida positivamente num novo cânone estético. O“neodadaísmo”, diz Debord, “redescobre a importância domovimento Dadá como uma positividade formal ainda aexplorar”.25 Os “dadaístas ressuscitados” “exploram com a

24. “L’absence et ses habilleurs”, em Internationale Situationniste nº 2, p. 6.25. “Communication prioritaire”, em Internationale Situationniste nº 7, abril

de 1962, p. 22.

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parcimônia de pequenos rentistas a rejeição da literatura, aprópria destruição da escrita, [que] foi a primeira tendênciados vinte ou trinta anos de pesquisa de vanguarda na Europa”.26

Noutro passo, Debord amplia suas considerações críticas sobreo “neodadaísmo”, opondo-lhe não apenas o dadaísmo doentreguerras, mas o conjunto do que denomina “movimento daarte moderna”, que “exprimia e combatia a incomunicação quese estabeleceu efetivamente em todo lugar na sociedade”.27

O problema da positivadora reconversão estética, pelo“neodadaísmo” tardio, da crítica negativa das formas pelodadaísmo histórico é que, para Debord, a “anticomunicaçãoemprestada ao dadaísmo” não porta mais qualquer traço crítico,negativo, pois ocorre justo numa época em que o própriocapitalismo se demonstra completamente anticomunicativo e naqual, por isto mesmo, “a urgência é de criar, no nível mais simplescomo no mais complexo da prática, uma nova comunicação”.28

Esta afirmação da necessidade de uma nova comunicação éfundamental à sua crítica das “neovanguradas”, pois é o própriohorizonte de toda a sua valoração negativa delas, inseparávelda valoração positiva da arte moderna e das vanguardas doentreguerras. E o é porque a temática da comunicação seconstitui no próprio centro de sua reflexão não apenas estética,mas social. Ao contrário de determinadas correntes da sociologiafrancesa do período, que tratava a “questão da comunicação”centralmente como concernente aos mass-media e à“informação”, Debord a compreende – o que se demonstrariaprecisamente pelos próprios meios massivos de informação –como uma relação social , uma relação “de mão única, os

26. “L’avant-garde de la présence”, loc. cit., p. 14. Note-se: eles não“exploram” (explorent), como numa pesquisa estética, científica ou numaviagem a um país desconhecido, mas “exploram” (exploitent), como oscapitalistas aos proletários, um mineiro a uma mina ou um rentista ao seucapital de crédito.

27. “L’absence et ses habilleurs (suite)”, em Internationale Situationniste nº9, agosto de 1964, p. 9.

28. “Communication prioritaire”, loc. cit., p. 23.

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consumidores de comunicação não tendo nada a responder”.29

Entendidos nestes termos, a informação e os masss media apenascompõem e reproduzem uma divisão hierárquica mais geral,radicalmente anticomunicativa e essencialmente constitutiva docapitalismo moderno, entre dirigentes e dirigidos, “entreorganizadores e consumidores do tempo da sociedade industrial(o qual integra e dá forma ao conjunto do trabalho e doslazeres)”.30 Neste contexto, a informação, à qual foi reduzida acomunicação social, não deve ser entendida numa dependênciaestrita aos mass media, mas sim como parte integrante docompleto sistema da passividade e da não-comunicaçãomercantil.

“A expropriação sistemática da comunicaçãointersubjetiva, a colonização da vida cotidiana por uma mediaçãoautoritária”, escreve Debord em outra situação, “não é umproduto necessário do desenvolvimento técnico. É, ao contrário,esta autonomização da potência social que necessita que todatécnica possível seja dobrada a seus fins particulares de auto-regulação do existente”.31 Neste mesmo texto, ele explica areferida autonomização da potência social pelo desenvolvimentodas relações mercantis: “o que se chama vagamente ‘crise dacomunicação’ na sociedade, e que é ao mesmo tempo aconcentração monopolizada da comunicação unilateral (da qualos mass media são apenas uma expressão técnica) e a dissoluçãode todos os valores comuns e comunicáveis [...] é produzidapela vitória da aniquilação que, no terreno da economia, o valorde troca alcançou sobre o valor de uso”.32 Em A sociedade doespetáculo, esta reflexão é retomada: a natureza espetaculardo capitalismo avançado não se constitui de seus meios técnicos,mas, ao contrário, o espetáculo dá forma social ao

29. Idem, p. 20.30. Idem, p. 23.31. “De l’aliénation: examen de plusiers aspects concrets”, loc. cit., p. 56.32. Idem, p. 59.

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desenvolvimento técnico da sociedade moderna. Os chamadosmeios de comunicação são apenas a “manifestação superficial”do espetáculo. São a “instrumentação” que mais propriamentelhe convém, que se lhe impõe como mediação social, como meiode administração e forma de contato entre os homens, apenasporque a experiência comunicativa viabilizada por eles é, comoocorre no conjunto da sociedade, “essencialmente unilateral”(SdS, § 24).

Compreendendo deste modo a chamada “crise dacomunicação”, parece-lhe inteiramente falsa – em“Communication prioritaire” – a universalmente afirmadaoposição entre os chamados mass media e outras esferas davida social, as quais também tendem, em conjunto, a “modelartodas as atitudes da vida cotidiana”. Nesta compreensão docaráter universalmente anticomunicativo da sociabilidadetardoburguesa, não haveria para Debord – e aqui reencontramo-nos com sua crítica das “neovanguardas” – por que se opor àalienação dos chamados mass media recorrendo, como a umcontraponto, à “alienação artística” (aliénation artistique). Estaé uma oposição que certamente pareceria justa para quemcompreendesse a chamada “crise da comunicação” com baseno poder adquirido pelos mass media, produtores da chamada“cultura de massas”, em distinção e até mesmo em contraposiçãoà “alta cultura”, na qual se situam os experimentos estéticos,pretensamente críticos, do “neodadaísmo”. Porém, a existênciade uma “cultura de massas”, na qual a “informação” apenasreproduz a passividade da totalidade da experiência social, temcomo face complementar a “massificação” da própria “altacultura”. Também nesta se expressam tanto o fenômeno maisamplo de exclusão das “massas” de toda “ação livre”, exclusãoque constitui a própria essência do trabalho assalariado e dapassividade mercantil constituidores da chamada “crise dacomunicação”, quanto uma repetição sem fim e sem sentidodaquela destruição das formas inaugurada pela arte moderna epelas vanguardas. Sem senso histórico nem feição crítica (pois

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reiteradora da não-comunicação do próprio sistema), estarepetição leva os diversos produtos da “alta cultura” a seimitarem mutuamente, reproduzindo o mesmo fenômeno que,desde o século 19, ocorre na produção de massas dos objetosde consumo: a “falsa novidade” (fausse nouveauté), a repetiçãodegradada e sem sentido do mesmo. Ao contrário da artemoderna do entreguerras, que soube se tornar historicamentecontemporânea e crítica de seu próprio tempo, o “neodadaísmo”se faz artificialmente contemporâneo de uma época que não é asua e, por isso, se torna acrítico diante de sua própria época. Édeste modo que cultura moderna (“alta” e “de massa”) desteperíodo se apresenta a Debord como o acabamento, a conclusãoda cultura iniciada no barroco; mas uma conclusão e umacabamento cujo sentido histórico lhe permanece inconsciente.

Não é novidade que uma posição crítica em face das“neovanguardas” seria comum a outros autores críticos docapitalismo tardio, como Lukács e Adorno; contudo, além dadiferença já assinalada, quanto a este último, no que diz respeitoà categoria da expressão, há também a diferença maior comrelação a ambos, já indicada na introdução, no que diz respeitoao próprio problema da forma. Diferentemente de Lukács eAdorno, Debord critica as “neovanguardas” (ou os“neodadaístas”), não em defesa da forma estética, mas simporque, ao positivarem esteticamente o movimento antes críticode destruição das formas pelas vanguardas históricas, os“neodadaístas” abandonariam o elemento socialmente críticoque os experimentos modernistas e de vanguardas afirmaramno entreguerras. Trata-se, assim, de afirmar, na perspectivade Debord, uma relação inseparável entre posição formal (noâmbito estético) e posição temática (no âmbito social). Destemodo justamente, não seria um exagero afirmar que, em suaanálise, os “neodadaístas” – ao transformarem em “cânoneestético” a anterior destruição das formas – afirmariam umaposição “classiscista”, ou seja, suas obras seriam também“construções artificiais falando a linguagem exterior do Estado”.

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Isto porque, ao reintroduzirem a “classicista” positivaçãoestética, as “neovanguardas” se afastariam da tendência históricafundamental do modernismo e das vanguardas, tanto em termosformais quanto em termos de crítica social. A “expressão” quenão nega, mas somente afirma a anticomunicação espetacular,que não nega, mas apenas reafirma uma positividade estética,já não tem mais qualquer relação com a poesia expressivamoderna que, em seu desenvolvimento, manteve inseparáveis acrítica das formas e a da pseudocomunicação na sociedade.33

Na medida em que esta tendência esteticamente positivadora esocialmente conformista se exclui daquele desenvolvimentocrítico da expressão poética moderna, resta concluir, comDebord, a crise da arte moderna manifesta na própria crise dacategoria da expressão; crise cujo sentido, na elaboraçãodebordiana, é a busca da práxis comunicativa.

4.3 Détournement e comunicação histórica

Na elaboração de uma perspectiva comunicativa para asuperação das experiências expressivas do dadaísmo, dosurrealismo e da arte moderna, experiências que considera teremchegado a um certo limite histórico, encontram-se mobilizadosdois aspectos do pensamento de Debord, relacionados àlinguagem e à história e que, em sua juntura, constituem umaconcepção da dialética. Em A sociedade do espetáculo, estaconcepção é apresentada na explicação da linguagem empregadano livro, no qual aparecem modificadas e recontextualizadaspalavras, frases e idéias de diversos outros autores. De imediato,observa-se que – nesta linguagem, assim como nas imagens de

33. Não é demais lembrar, mais uma vez, que a obra de P. Bürger – que, noprefácio à segunda edição, se manifesta teoricamente solidária à teoria da“ação comunicativa” de J. Habermas – busca justamente concluir, “após1968” (!), as categorias estéticas positivas que, passada a ilusãovanguardista de “superação da arte”, se demonstrariam categoriaspermanentes da arte na sociedade burguesa.

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seus filmes – se reapresenta a prática da colagem, da montagem,do dépaysement tão comum em toda a arte moderna, pelo menosdesde Lautréamont. Em suas Poésies, este traz ao texto diversosautores, os quais não cita, num jogo de palavras e temas queem muito antecede as colagens dadaístas e surrealistas e aprópria exposição de Debord. Lautréamont explica esteprocedimento do seguinte modo: “As palavras que expressam omal estão destinadas a vir a ter uma significação de utilidade.As idéias melhoram. O sentido das palavras participa disso. // Oplágio é necessário. O progresso implica. Segue de perto a frasede um autor, serve-se de suas expressões, apaga uma idéiafalsa, substitui-a por uma idéia justa. // Uma máxima, para serbem feita, não precisa ser corrigida. Precisa ser desenvolvida”.34

Debord, que se apropria de modo desviado de uma partedesta passagem no § 207 de A sociedade do espetáculo ,considera que este método é o mesmo que, de formas distintas,foi empregado por Hegel, Feuerbach, Marx e Kierkegaard; e,com base nestes autores, priorizando a ação e a compreensãoconscientes da sociedade presente, Debord concebe o métododo dépaysement como um duplo movimento de détournement,“desvio”, e de renversement, “desarrajamento”, “reviravolta”,colocação no “reverso” das produções da cultura moderna,incluídas a poesia, a crítica teórica, a psicanálise e, simplesmente,a linguagem cotidiana; détournement e renversement operadossegundo uma compreensão crítica das condições e contradiçõespresentes na sociedade.35 Ora, este método – que, seguindoDebord, se nomeará aqui simplesmente de détournement – podeser pensado também como central à própria concepção

34. Lautréamont, Poesias [1870], Parte II. Obra completa. Tr. br. C. Willer.São Paulo: Iluminuras, 1997, p. 277.

35. Referindo-se ao desvio das noções oriundas da experiência artísticamoderna para uma crítica teórica do capitalismo desenvolvido, Debordamplia o seu uso do termo “arte moderna” para o de “cultura” (moderna):“Com a ‘arte moderna’, a gente quer dizer a cultura – da poesia à psicanálise,por exemplo. Mas o conjunto das experiências culturais da época deduz já

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debordiana de um certo acabamento, uma certa conclusão dacultura moderna nas condições sociais e culturais do capitalismomais desenvolvido. Ao ser observado com mais cuidado, odétournement revela-se não apenas uma técnica estética. Aorecusar a mera repetição acrítica das mesmas coisas, tal comofeita pelo “neodadaísmo”, o détournement oferece ao mesmotempo a resposta à pergunta pelo que se deve fazer dos produtosda cultura no momento de sua crise, bem como a racionalidadeimanente a esta mesma resposta. Deste modo, o desvio e areversão do significado dos produtos da cultura passada e mesmocontemporânea buscam fundamentalmente a crítica conscientedo presente, crítica que é inseparável da centralidade teórico-prática deste mesmo presente em face do passado. Numaperspectiva mais ampla, pode-se dizer finalmente que odétournement junta uma concepção histórica do passado combase na crítica do presente a uma concepção histórica da próprialinguagem, já que no contexto em que é apresentado em Asociedade do espetáculo este método busca justamente explicare justificar a “linguagem”, o “estilo” e o “modo de exposição”do livro. Precisamente neste sentido, o détournement apareceem Debord como uma concepção dialética por excelência.

Na medida em que contém uma reflexão sobre a linguagemdialética, a concepção do détournement dá seqüência às reflexõesde Debord sobre a experiência “lingüística” no capitalismocontemporâneo. “A teoria da informação ignora, logo de cara, oprincipal poder da linguagem, que é o de se combater e de seultrapassar, em seu nível poético”, diz ele em “Communicationprioritaire”.36 Em “All the King’s men”, Debord observa que,

tarefas políticas (‘política’, tanto quanto‘artística’, sendo finalmente termosde especializações criticáveis)” (cf. carta a Branko Vucicovic, 05.01.1966).Nesta ótica, trata-se de desviar também não apenas a psicanálise, mas opróprio Marx e outros autores “marxistas”, como pode ser observado naprópria escrita de A sociedade do espetáculo e na tematização explícitaque este livro apresenta sobre o pensamento do autor de O capital nos §§79-91.

36. “Communication prioritaire”, loc. cit., p. 21.

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embora as palavras “trabalhem” para a organização dominanteda vida e a gente viva na linguagem como no “ar viciado”, aspalavras não estão, contudo, “robotizadas”. Usadas pelo poder,“elas [lhe] permanecem por algum lado radicalmenteestrangeiras”. A “insubmissão das palavras” manifestada portoda a escrita moderna e até mesmo a possibilidade de uma“contestação completa” em e a partir da linguagem devem-seprecisamente à sua dominação pelo poder instituído; mastambém, inseparavelmente, ao fato de que as palavras lheescapam permanentemente. A rigor, o poder não cria o sentidodas palavras, mas vive de “receptação” e “furto”: em outraspalavras, ele somente o “recupera”. Na constante recuperação,pelo poder, da criação de sentidos pela linguagem, Debordconcebe uma potencialidade que a esta é permanentemente ínsitade recriação de sentidos, o que faz dela um campo de batalhaentre o poder e a criação histórica (neste texto, nomeada de“poesia”).

Contudo, a linguagem é criativa, é “poesia”, não ao sercitada, mas ao “ser desviada, recolocada em jogo”. A recolocaçãoem jogo da poesia, da linguagem, das palavras se deve justamenteà sua potencialidade criativa e à sua natureza histórica,testemunhadas em negativo pelos “pensadores daautomatização” justamente quando estes visam à fixação e àeliminação “das variáveis na vida como na linguagem” e de “todaacepção nova de uma palavra, tanto quanto suas ambivalênciasdialéticas passadas”. 37 Já nestas reflexões de Debord, aconcepção histórica do passado com base na crítica do presenteestá radicalmente ligada à própria concepção histórica dalinguagem: “O momento da poesia real, que ‘tem todo o tempodiante dela’, quer sempre reorientar, conforme seus própriosfins, o conjunto do mundo e todo o futuro. [...] Recoloca emjogo as dívidas não quitadas da história. Fourier e Pancho Villa,

37. “All the King’s men”, em Internationale Situationiste, nº 8, janeiro de1963, p. 33.

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Lautréamont et os dinamiteiros das Astúrias – cujos sucessoresinventam agora novas formas de greves –, os marinheiros deKronstadt ou de Kiel e todos aqueles que, no mundo, com e semnós, se preparam para lutar pela longa revolução, são tambémos emissários da nova poesia”.38 Que personagens e movimentossociais do passado, como Fourier e a rebelião de Kronstadt,sejam mensageiros da “nova poesia”, isto se deve justamente àrecolocação em jogo, no presente (e com base nas condições devida e de luta do presente), de uma “poesia real”. Umarecolocação em jogo que reapresenta, em função e em face dopresente, as dívidas não quitadas da história justamente porque,nesta assunção das lutas presentes, a “poesia real” tudo“reorienta segundo seus próprios fins”. Nesta recolocação emjogo, as “ambivalências dialéticas” das palavras ditas, dos gestosrealizados e dos desejos expressos no passado são submetidasà relação negativa com o presente, relação esta que unicamentepode retirar da sua anterior ambigüidade um sentido dialético eatual.

Ora, o capitalismo espetacular se constituiu historicamente– a partir das derrotas das primeiras tentativas de revoluçãosocial no início do século 20, das quais a arte moderna e asvanguardas estéticas foram contemporâneas e solidárias – aoneutralizar e recuperar para o interior de sua própria lógica asdemandas críticas que antes se lhe opunham. Ele mantém, demodo invertido, pois incluso em sua própria lógica, o negativoque antes o negava e que, ao ser recuperado, perde suanegatividade. Do mesmo modo, as próprias potencialidadespresentes no desenvolvimento das forças produtivas docapitalismo contemporâneo são realizadas de modo distorcido,invertido, segundo a própria lógica inversora da alienação que éessencial ao espetáculo. “No mundo realmente invertido”, dizDebord, mais uma vez desviando uma fórmula hegeliana, “averdade é um momento do falso” (SdS, § 9). Nestas condições,

38. Idem, p. 32.

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a crítica dialética deve buscar renverser (desarranjar, revirar,reverter) a inversão aí realizada e recolocar em jogo a críticaque as revoluções sociais e, junto a estas, a poesia modernafizeram à sociedade produtora de mercadorias.39 Mas estaretomada não pode ser feita às custas da pergunta pela suapersistência, não pode seguir aquele movimento rebuscado esutil do “marxismo ocidental” que buscou e busca o “pensamentogenuíno” de Marx; pode apenas, como dito acerca da poesia,ser “desviada, recolocada em jogo”.

Antes de tudo, esta retomada da crítica é, em Debord,inseparável do reconhecimento do seu passado como algodeperecido, pertencente a uma outra época e a um outro contextosocial; inseparável, portanto, da reflexão sobre suas anterioresderrotas e das necessidades das lutas atuais. A persistência dacrítica social deve fazer a pergunta pela sua própria história,pela concepção de sua própria trajetória e, na forma“lingüístico”-teórica de sua apresentação, deve “exprimir adominação da crítica presente sobre todo seu passado” (SdS, §206). Em outras palavras, a retomada da crítica anterior guardaa “distância” (distance) histórica, própria à passagem do tempoe ao devir que nele se move; e, assumindo seu caráter ambíguo,a submete a um “desvio”, condição de sua “recolocação emjogo” que é, ipso facto, a “recolocação em jogo das dívidas nãoquitadas da história”. Na recepção presente da crítica anterior,impõe-se o desvio graças à própria imutabilidade do passado,ao seu caráter de “passado da crítica”. Se ela pode e deve serretomada no presente, é-o somente com base nas própriaspossibilidades presentes do mundo e , portanto, das necessidadesatuais da crítica social.

39. Insiste-se nestes múltiplos significados do renversement porque não setrata, para Debord, de uma negação da reificação em vista de uma reposiçãode uma qualquer situação “natural” e “verdadeira” do homem ou darealidade; não se trata, portanto, de “reinverter” como se houvesse paraonde – histórica, ontológica ou antropologicamente – retornar. O mesmoocorre com a “recolocação em jogo” das lutas do passado: faz-senecessário seu desvio, inseparável de seu renversement.

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O conceito de détournement traz consigo, deste modo,uma concepção da história em que assumem um lugar central apossibilidade, presente na concepção surrealista da história, eo envelhecimento, o deperecimento da existência, essencial àconcepção barroca, segundo a interpreta Debord. 40 Em Asociedade do espetáculo, como já dito, o détournement s eapresenta antes de tudo como resposta à busca da linguagemcrítica e dialética, da qual a teoria mesma se constitui: umacrítica “lingüístico”-teórica que deve expressar em seu própriomodo de exposição a negatividade em face dos conceitosexistentes, incluindo “a inteligência de sua fluidez reencontrada”e sua “destruição necessária” (SdS, § 205). Em outras palavras,“dialética em sua forma como é em seu conteúdo [...] o modode exposição da teoria dialética testemunha o espírito negativoque está nela” (SdS, §§ 204/206). Com base nisto, o détournementse articula em duas dimensões indissociáveis. Como crítica dopresente, ele expõe, em sua própria linguagem détournée, a“reversão do genitivo” e a “substituição do sujeito pelopredicado”, apresentando “lingüístico”-criticamente o momentoverdadeiro que se encontra subsumido na totalidade do falso e,nisto mesmo, a inteligência da possibilidade de sua reversão

40. E poder-se-ia dizer ainda que esta concepção barroca situa-se já nopróprio método ducassiano das Poésies: como busca mostrar L. Perrone-Moisés, há “fios subterrâneos” que ligam, na obra de Lautréamont, obarroco espanhol, o romantismo e o surrealismo (“Lautréamont e ossurrealistas” [1996], em Inútil poesia. São Paulo: Companhia das Letras,2000, pp. 85 ss.). Trata-se, porém, não apenas das “ousadias retóricas dobarroco espanhol, verdadeiras prefigurações dos achados surrealistas [eque] poderiam explicar boa parte do pré-surrealismo de Ducasse”(Perrone-Moisés), os quais poderíamos se estender a Debord, mas tambémda concepção histórica do barroco que se apresenta, em sua recepção porDebord, no próprio método do détournement. Neste sentido é que, como ofaz G. Marelli, se pode dizer que “a estética situacionista ... [era] ... barrocae, enquanto tal, enganosa, fugaz, ilimitada e provisória: o ser estático erígido se transforma em um devir harmônico e plástico entre o sujeito e oobjeto” (G. Marelli, La dernière internationale: les situationnistes au-delàde l’art et de la politique. Tr. fr. D. Bosc. Arles: Éditions Sulliver, 2000, p.56).

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prática.41 Perseguindo uma consciência histórica que falta àlinguagem tornada “espetáculo”, ele busca também “o desviode todas as aquisições da crítica anterior” (SdS, § 206).

Neste gesto, a anterior produção cultural, em seusmomentos de verdade (os que, nela, se demonstram verdadeirospara a crítica atual), faz-se presente como “vestígio” (trace)histórico na e da própria crítica do presente. Envelhecido pelapassagem do tempo e pela transformação das condições sociais,um aspecto qualquer da cultura e da crítica se transforma em“fragmento arrancado de seu contexto, de seu movimento e,finalmente, de sua época, como referência global, e da opçãoprecisa que era no interior dessa referência, exatamentereconhecida ou errônea” (SdS, § 208). Como fragmento desviado,a crítica passada se apresenta imediatamente, em sua próprialinguagem, na linguagem crítica do presente; e a crítica presentecontém em seu próprio modo de exposição a persistência e amodificação da crítica passada, mantendo em sua próprialinguagem crítica um vestígio histórico de que ela se apropria etorna seu.

“O détournement”, diz Debord, “conduz à subversão asconclusões críticas passadas que foram fixadas em verdadesrespeitáveis, isto é, em mentiras” (SdS, § 206). Ele apanha aprópria crítica passada em seu deperecimento, imprimindo-lhefluidez e a tornando atual . Ao tomar o passado comopossibilidade, como ambigüidade e como deperecimento, odétournement busca a persistência modificada da crítica anteriorsubmetendo-a ao presente e, assim, tanto mantém a memória

41. É porque, sob o espetáculo, a aparência social não é inteiramente falsa,mas nela também se apresentam momentos de verdade, como discutidono primeiro capítulo, que Debord pode estender – em seus filmes, empanfletos e cartazes da I.S. por volta de 68 – seu método de détournementaté mesmo a frases da publicidade, a imagens de histórias em quadrinhos,revistas pornográficas e a cenas de filmes comerciais. Também elas sãoambivalentes e, se bem desviadas, permitem à crítica revelar “atos falhos”na presente consciência social reificada.

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histórica da crítica atual e o domínio sobre o seu próprio passado,em virtude de sua central referência no presente, quanto recusaa fixidez, a coagulação e a manutenção de algo que supostamentenão sofreria o deperecimento, a passagem destruidora do tempoe que, por isto mesmo, se tornaria somente numa “mentira”caso usado como “citação” à qual se deveria reconhecer“autoridade”.

Para Debord, a crítica social, sendo histórica, pois atadaao presente, deve manter como essencial à sua elaboração e àsua exposição a história da crítica. Ela certamente comete aquelainjustiça com o passado que, segundo Nietzsche, é própria atoda ação no presente e ao esquecimento que esta ação exige,pois o método do desvio é “a linguagem que nenhuma referênciaantiga e supracrítica pode confirmar, [ele] não fundou sua causaem nada de exterior à sua própria verdade como crítica presente”(SdS, § 208). Mas também é somente este desvio que, impedindoque a crítica e os produtos culturais do passado se tornem uma“mentira respeitável”, “pode confirmar o antigo núcleo deverdade que ele restitui [renova, volta a trazer, ramène]”. Acrítica passada é desviada em seu conteúdo, para fazer-sepresente – num outro contexto e noutro significado histórico –através de suas palavras, suas imagens, seus gestos que,ambíguos para este presente, podem nele e em função deleobter “a ação histórica, e a correção histórica que é a suaverdadeira fidelidade” (SdS, § 209).

Ao conceber uma perspectiva comunicativa para aexperiência expressiva da arte moderna, diante da crítica docapitalismo contemporâneo e da expropriação das possibilidadesda comunicação que lhe é essencial, Debord propõe na verdadeum détournement da arte e da cultura modernas. Busca umaação no presente que significa, duplamente, uma confirmaçãodo “núcleo de verdade” e uma “correção histórica” de todo seuconteúdo social crítico. Voltada para o presente, a concepçãohistórica que funda esta busca é centrada numa visão dapermanente possibilidade de recolocação em jogo da poesia e

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das dívidas históricas e, ao mesmo tempo, numa visão domovimento de deperecimento de tudo que é histórico,característica essencial à própria cultura moderna em suanatureza barroca. Para Debord, somente o desvio é a “negaçãoreal da cultura”, pois “é a única a conservar seu sentido” (SdS,§ 210). Por isso, a reversão do horizonte expressivo em horizontecomunicativo significa a reversão e o desvio para a práxisrevolucionária da busca poético-expressiva pela “comunidade”que ele julga existir en négatif em toda a experiência da artemoderna.

Este modo de superação da arte moderna a “corrige”historicamente e, nisto mesmo, se lhe mantém “fiel”. É umaforma de correção e fidelidade que, concebidametodologicamente como “modo de exposição” da crítica teóricado capitalismo mais desenvolvido, faz presente em sua própriaelaboração e escrita a perspectiva comunicativa: Pascal ao ladode Marx, os niveladores ao lado do Cardeal de Retz, Lautréamonte Nietzsche ao lado de Hegel e Baltazar Gracián. Pode-se dizerque, desta maneira, Debord experimenta em sua própria escritauma forma de comunicação histórica que, como aquela registradapor Heródoto, deseja estar indissociada de uma comunicaçãoprática no presente. Nesta comunicação histórica ínsita ao modode exposição da teoria crítica, a dialética se torna, ela mesma,um método por excelência comunicativo.

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