criminológico su es pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/a miséria...

123
SUES Pensamento Criminológico 12 Alessandro De Giorgi

Upload: phungnhan

Post on 03-Dec-2018

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

SU ES PensamentoCriminológico 12

Alessandro De Giorgi

Page 2: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

Coleção Pensamento Criminológico

Alessandro De Giorgi

A miséria governada através do sistema penal

Tradução Sérgio Lamarão

%Instituto C a r io c a de C rim in o logia

Editora Revan

Page 3: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

323EE PensamentoCriminológico

DireçãoProf. D r. Nilo Batista

© 20 06 Instituto Carioca de Crím inoiogia

Rua Aprazível, 85Rio de Janeiro - RJ 20241-270tel. (21)2221-1663fax (21)[email protected]

Edição e distribuição Editora Revan S.A.Rua Paulo de Frontin, 163 Rio de Janeiro - RJ 20260-010 tel. (21)2502-7495 fax (21)2273-6873 [email protected] www.revan.com.br

Projeto gráficoLuiz Fernando GerhardtRevisãoSylvia Moretzsohn Diagramação lido Nascimento

Giorgi, Alessandro De.A m iséria governada através do sistem a penal. Alessandro De Giorgi. - Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2006. (Pensamento criminológico; v. 12).128 p.Inclui bibliografia ISBN 85-7106-336-2 1~. Direito penal

Page 4: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

Sumário

P re fác io à ed ição b ra s ile ira ..................... ................................................. 5

D iscussão à guisa de p refác ioCárcere, pós-fordismo e ciclo de produção da “canalha”D a iio M elossi ........................................... ............................................ 9

In trodução ....................................................................................................25

Capítulo 1Regime disciplinar e proletariado fo rd is ta ................................... 33Econom ia política do controle social ................... ....................... 33N ascimento da sociedade industriale disciplinamento do proletariado ............................................. 39Pena e subsunção real do trabalho ao capital .............................. 43Encarceramento e desem prego na época fordista ..................... 47O limite da economia política da penalidade fo rd is ta ............... 55

C ap ítu lo 2 ^Excesso pós-fordista e trabalho da m ultidão ..............................63Pós-fordismo: o regim e do excesso ............................................ 63O excesso negativo ........................................................................... 66O excesso positivo ........................................................................... 71M ultidão ............................................................................................... 77

C apítu lo 3. Governo do excesso e controle da m u ltid ã o .............................. 83

Da disciplina da carência ao governo do excesso .................... 83O controle como “não-saber” ........................................................ 89

Page 5: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

O controle da m ultidão . O risco aprisionado A m etrópole pun itivaA rede im bricada .....

N ovas resistências .........

B ibliografia

Page 6: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

Prefácio à edição brasileira

Vera Malaguti Batista

Este livro de Alessandra De Giorgi atualiza o conjunto de reflexões que o Instituto Carioca de Criminologia vem publicando ao longo dos últimos dez anos. A Coleção Pensamento Criminológico tem como elo de articula­ção a produção teórica acerca da questão criminal que se opõe ao grande movimento de criminalizàção da pobreza, gerado pelo processo de acumu­lação de capital ao longo dos séculos.

Na etapa em que nos encontramos, de capitalismo de barbárie, pode­mos observar a expansão do mercado em todas as direções, mas principal­mente no esfacelamento das redes sociais de proteção coletiva do capitalis- ■" mo industrial, do Estado Previdenciário ou Welfare State. No âmbito penal há uma expansão análoga, no sentido de um crescimento sem precedentes da pena de prisão. Como diria Lote Wacquant, o outrora denominado mun­do livre está sendo encarcerado...

A lessandro De G iorgi aprofunda esta reflexão crítica acerca do encarceramento em massa da força de trabalho excedente utilizando a eco­nomia política da pena no desemprego pós-fordista. Uma das principais qualidades deste livro é aproximar o marxismo do pensamento de Michel Foucault. Aqui no Brasil ergueu-se uma parede entre essas duas escolas de pensamento; esta parede é, a meu ver, ilusória. Tenho dito que, sem a militância no Partido Comunista Francês, Foucault não poderia ter efetua­do a reflexão que fez. A partir do marxismo frankfurtiano de Georg Rusche, Foucault m ergulha na in tegração h istó rica do sistem a penal com o disciplinamento do mercado de mão-de-obra.

Foucault investe no corpo como centro nevrálgico do poder, e também do podér punitivo. Percebe-se em Vigiar e punir a apropriação da descrição de Rusche acerca dos mecanismos de disciplinamento dos cárceres, suas normas para a regulamentação do cotidiano na direção da constituição dos corpos dóceis. Mais adiante, Foucault vai trabalhar com a idéia de biopoder, este colossal dispositivo de apropriação e disciplinamento dos corpos, que caminha junto ao assujeitamento massivo das almas.

5

Page 7: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

De Giorgi aposta nessa crítica materialista da pena: “o fio condutor da I economia política da pena é construído pela hipótese geral segundo a qual a '■ evolução das formas de repressão só pode ser entendida se as legitimaçoes | ideológicas historicamente atribuídas à pena forem deixadas de lado”. Seu j trabalho cumpre, então, a função fundamental de desativar o dispositivo do dogma da pena. Existe nos dias de hoje uma polissemia de discursos, uma j saturação de informações que conduzem à transformação de toda a con- 3 flitividade social em problema penal. A discursividade vai acompanhando j então a pauta da reprodução deste capital de barbárie: a imigração é crimina- I lizada, bem como as estratégias de sobrevivência da pobreza em todas as ; partes do mundo. As políticas criminais de droga, as operações “anti-cor­rupção”, as cruzadas contra o crime organizado e a lavagem de dinheiro são nada mais nada menos do que expansão dos territórios de ocupação física e ; virtual pelo capital financeiro soberano.

O autor avança também na crítica à contradição estrutural da sociedade capitalista, a partir de Marx: o paradoxo entre a idéia da igualdade formal em relação a uma desigualdade fundamental: “o objetivo, coerentemente, é o de reproduzir um proletariado que considere ü^safátio Como justa retribuição do próprio trabalho e a pena como justa medida dos seus próprios crimes”, diz ele acerca da ideologia retributiva-legalista do fordismo.

O trabalho de De Giorgi ultrapassa os limites da economia política da penalidade fordista, quando a pós-industrialização se apresenta como uma explicitação do excesso de mão-de-obra, o regime do excesso. Isto quer dizer que temos que nos livrar das permanências subjetivas, da maneira de pensar o mercado de trabalho e o sistema penal e encarar as transformações a que 0 capital submete a mão-de-obra, o trabalho da multidão1. O demônio que o capital vídeo-financeiro persegue é o tempo livre da força de trabalho, num modo de produção que já descartou completamente as ilusões do pleno emprego. É aí que o dogma da pena e a criminalização da pobreza e dos conflitos sociais, da luta de classes, são discursos estratégicos à reprodu­ção desse capital.

Nessa direção, a análise de De Giorgi aponta para os novos dispositivos dirigidos “à contenção de uma população excedente e de um surplus de

1 O conceito de multidão aqui utilizado, na trilha de Negri, abre espaço para uma longa discussão a ser tomada no campo marxista. Pessoalmente, acredito que o conceito não consegue dissociar-se da carga histórico-ideológica positivista da expressão, tal como definido por Gustave Le Bon.

Page 8: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

força de trabalho desqualificada; elas prescindem explicitamente da consu­mação de um delito, das características individuais de quem está envolvido nele e de qualquer finalidade reeducativa ou correcional, para orientar-se no sentido da ‘estocagem’ de categorias inteiras de indivíduos considerados de risco” . Ele se vale então da idéia do cárcere atuarial, a partir das “represen­tações probabilístieas baseadas na produção estatística de classe, simula­cros do real: imigrantes clandestinos, afro-americanos do gueto, toxico- dependentes, desempregados” , É o atuarialismo penal que vai produzir as metrópoles punitivas.

Esta obra é de uma riqueza impressionante para nós que pensamos aquestão criminal na periferia do capitalismo, na nossa gigantesca instituição de seqüestro, como vaticinou Raúl Zaffaroni, na sua busca das penas perdi­das. Nós, os indignados, os resistentes a esse gigantesco projeto de assujeitamento aos desígnios do capital, podemos contar com a munição proposta pela presente reflexão, que transformou nossas favelas/prisões em campos de extermínio e tortura, numa escala até então nunca vista. O livro da Alessandra De Giorgi vem aprofundar e substancializar a nossa luta e a nossa clareza acerca das funções reais do sistema penal e dos discursos punitivos nos dias de hoje. Como se fora pouco, o livro vem com uma genial interlocução, “discussão à guisa de prefácio” , desenvolvida por Dario Melossi, revigorando ainda mais a análise de De Giorgi, atualizando aquela proposta pelo já clássico Cárcere e fábrica. Regalai-vos, pois, criminólogos e penalistas críticos brasileiros: esta obra tem novidades!

Rio de Janeiro, setembro de 2005.

7

Page 9: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

Discussão à guisa de prefácioCárcere, pós-fordismo e ciclo de produção da “canalha”

Dario Melossi

Entre 1968 e 1975, produziu-se uma radical renovação nos estudos de sociologia penal. Durante o ano de 1968 foi reeditada nos Estados Unidos a obra Piinishment and Social Structure. Publicado pela primeira vez em 1939, sob a assinatura conjunta de Georg Rusche e Otto Kirchheimer1, Punishment and Social Structure foi o primeiro texto em inglês da famosa Escola de Frankfurt, e em particular da sua representação institucional, o Instituto parao F.studo das Ciências Sociais de Frankfurt. A publicação foi praticamente concomitante à complexa e difícil transferência do Instituto para Nova Iorque, junto à Universidade de Columbia, provocada pelos acontecimentos pré-bé- licos alemães e pela perseguição à sociologia, sobretudo à sociologia marxis­ta praticada em grande parte por intelectuais de origem judaica, que eram os principais protagonistas da produção do Instituto.

Já o ano de 1975 é marcado pela publicação daquela que foi provavel­mente a obra mais conhecida de Michel Foucault, Surveiller et punir2. Entre essas duas datas, estende-se o último grande,período de agitações sociais que ocorreram, com intensidade variada, em todos os países mais desenvol­vidos (mas não apenas neles), e que no interior de cada um desses países afetou não somente os principais núcleos da atividade produtiva - a fábrica, tal coifío a conhecíamos até então mas também todas aquelas instituições

1 Sobre os vários acontecimentos que interferiram na atorm entada elaboração deste texto, ver a introdução à edição italiana (D. Melossi, “Mercato dei lavoro, disciplina, controllo sociale: una discussione dei testo di Rusche e Kirchheimer” , in G. Rusche e O. Kirchheimer, Pena e struttura sociale. Bolonha, II Mulino, 1978) e a introdução à edição francesa (R. Levy e H. Zander, “Introduction”, em G. Rusche e O. Kirchheimer, Peine et structure sociale. Paris, Cerf, 1994). [N. do T.: edição brasileira Punição e estrutura social. Rio de Janeiro, Revan/ICC, 2“ éd., 2004, tradução e apresentação de Gizlene Neder].2 Michel Foucault, Sorvegliare e punire. Turim, Einaudi, 1977 [N. do T.: ediç^i- > brasileira Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes, 26a ed., 2002, tradução de Raquel Ramalhete].

Page 10: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

que, à época, foram descritas como “subalternas”3 à fábrica, em particular a instituição carcerária.

O texto de Rusche e Kirchheimer, que na atmosfera imediatamente ante­rior à guerra foi quase ignorado (salvo algumas louváveis exceções, registradas mais no campo da história econômica do que no da criminologia4), permitia uma releitura da história da pena numa perspectiva marxista, O texto de Foucault, a apenas sete anos de distância, oferecia a possibilidade não só de dar a sua contribuição àquela interpretação, mas também de ir além dela, ingressando num espaço que escapava dos esquemas mais rígidos da leitura marxista5. Após o trabalho de Foucault, desenvolveu-se uma ampla literatu­ra, sobretudo em língua inglesa, amplamente influenciada pelo reaparecimento das hipóteses de Rusche e Kirchheimer, que procurou checar a veracidade empírica da hipótese de uma relação entre variáveis estruturais fundamen­tais, especialmente as de natureza socioeconômica, e a evolução das institui - ções penais6.

Se, portanto, ainda em 1955, Donald Cressey, ao fazer o levantamento de campo de uma “sociologia da pena” , relacionou um número de obras que podiam ser contadas nos dedos de uma mão ou no máximo de duas7, no final do século X X já dispúnhamos de uma vasta literatura8. Um filão fundamental dessa sociologia é exatamente aquele que De Giorgi identifica como “econo­mia política da pena” , isto é, uma interpretação da história da penalidade na qual o objeto fundamental consiste em relacionar as categorias de derivação marxista à reconstrução dos processos de desenvolvimento das principais instituições penais. Ao menos duas são as contribuições centrais do trabalho

3 Dario Melossi, “Istituzioni di controllo soei ale e organizzazione capitalistica dei lavoro: alcuni ipotesi di ricerca” , in La questione criminale, 2, 1976, pp. 293-317, in prim is, naturalmente, aquelas que eram então chamadas de “instituições to­tais”, como em E. Goffman, Asylums. Turim, Einaüdi, 1968 (ed. orig. 1961).4 Para mas detalhes, ver as introduções citadas na nota 1.5 A minha leitura não concorda aqui com a de D. Garland, Pena e società moderna. Milão, II Saggiatore, 1999 (ed. orig. 1990), capítulos IV ao VII.6 Sobre esta literatura, remeto à exaustiva seção no texto de De Giorgi que se segue (infra, Capítulo 1).7 D. R. Cressey, “Hypothesis in the Sociology of Punishment”, in Sociology and Social Research, 39, pp. 394-400.8 Ver, além de D. Garland, Pena e società moderna, cit., os ensaios na antologia por mim organizada, The Sociology o f Punishment. Aldershot, Ashgate, 1998.

10

Page 11: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

i|iic De Giorgi apresenta aqui. A primeira é reconstruir o percurso da econo­mia política da pena tal como vejo se desenvolvendo até os dias de hoje. A M\'.’unda é procurar fornecer uma contribuição original a esse desenvolvi­mento, estendendo-o do período que De Giorgi chama de “fordista” até o atualmente consagrado como “pós-fordista” .

O ponto de partida de De Giorgi, de uma perspectiva empírica, é absolu­tamente macroscópico em termos de história das instituições penais. Desde a primeira metade dos anos 1970, em particular no interior das instituições penais cios Estados Unidos, assistimos a um impressionante crescimento tanto da população penitenciária quanto da parcela da população que é sub­metida, de um modo ou de outro, às diversas autoridades definidas como “correcionais” . Esse crescimento é de tal monta que a probabilidade de um homem afro-americano terminar sob o controle de uma dessas “autoridades correcionais” no decorrer da sua vida já está se aproximando daquela de se obter “cara” na brincadeira de “cara ou coroa”.

Esse fenômeno, que mudou profundamente as trends anteriormente obser­vadas, foi cada vez mais notado por um grande número de observadores9, mas as razões são muito complexas para serem exploradas exaustivamente. E certo que na época elas não eram esperadas. Uma das conseqüências da crítica radical às instituições totais e em particular às instituições carcerárias que, note-se, ocorreram imediatamente antes desse aumento impressionante, foi que, ainda no início dos anos 1970, tanto as principais orientações políti­cas nos Estados Unidos e nos outros países desenvolvidos quanto as princi­pais leituras dos fenômenos previam uma obsolescência mais ou menos ve­loz da instituição carcerária, bem como um aumento dos sistemas de contro­le extra-institucionais, “em comunidade”, como se costumava dizer.

Assim, Andrew Scull pôde intitular um importante trabalho de sua lavra, lançado em 1977, de Decarceration; Ivan Jankovic e eu pudemos escrever, no mesmo ano, sobre a probation como a forma penal do futuro, enquanto o

9 Entre outros, ver N. Christie, II business penitenziario. La via occidentale al Gulag. Milão, Eleuthera, 1998 (ed. orig. 1993); M. Tonry, Malign Neglect: Race, Crime and Punishment. Nova Iorque, Oxford University Press, 1995; M. Mauer, Race to Incarcerate. Nova Iorque, The New Press, 1999; Loíc Wacquant, Parola d ’ordine: tolleranza zero. La trasform azione dello stato penale nella società neoliberale. Milão, Feltrinelli, 2000 (ed. orig. 1999), e o mesmo De Giorgi. Zero Tolleranza. Strategie e pratiche delia societá di controllo. Roma, DeriveApprodi, 2000. Ver também o número especial da revista Punishment and Society dedicado ao tema “Mass Imprisonment in the United States” (2001).

11

Page 12: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

reconhecido criminólogo — absolutamente não marxista - AI Blumstein es­creveu sobre uma substancial “estabilidade” nas taxas de encarceramento, remetendo-a a explicações funcionalistas, de inspiração durkheim iana10. E no entanto, o que já estava em curso naqueles anos era, ao contrário, o mais notável aumento da população de detentos na história moderna das institui­ções penitenciárias, que com toda razão poderia ser comparado ao “grande internamento” sobre o qual Michel Foucault escreveu em História da loucu­ra na Idade Clássica, a propósito da França do século X VII". Mais uma vez nos Estados Unidos, mas não apenas lá, depois da suspensão devida a uma decisão da Corte Suprema entre 1972 e 1976, ocorreu uma retomada firme na cominação e na condenação à pena capital, primeiro de modo mais ou menos simbólico e em surdina, depois de maneira cada vez mais maciça até atingir o número de 98 condenações executadas em 1999. É bem verdade que esse movimento foi caracterizado desse modo tão ostensivo somente nos Estados Unidos. Para os países europeus, verificou-se um certo aumen­to nas taxas de encarceramento, mas nem de longe comparável ao norte- americano, nem generalizado a todos os países (e com exceções bastante relevantes, como a Alemanha e a Itália até o início dos anos 1990).

Os primeiros autores que procuraram dar conta desse fenômeno retoma­ram alguns dos elementos desenvolvidos por aqueles que, alguns anos antes, tinham diagnosticado um aumento d a probation, e os usaram para explicar o que estava acontecendo nas prisões. Talvez a contribuição mais importante nesse sentido tenha sido a de Stanley Cohen, que escreveu sobre a tendência do sistema correcional de “widening the nét” - “ampliar a rede” - , e também sobre a nova lógica penitenciária vista enquanto uma lógica de “warehousing”, i.e., de “armazenamento” dos detentos12.

Mas procedamos com ordem, ainda que de forma extremamente sintéti­ca, ao percorrermos as etapas desta “economia política da pena”. Segundo a

10 A. Scull, Decarceration. New Brunswick (NJ), Rutgers University Press, 1977; I. Jankovic, “Labor Market and Imprisonment” , in Crime and Social Justice, 8, 1977, pp. 17-31; D ano Melossi, “Strategies of Social Control in Capitalism: A com m ent on recent work”, in Contemporary Crises, 4, 1980, pp. 381-402; A. Blumstein e J. Cohen, “A Theory of the Stability of Punishment” , in Journal o f Criminal Law and Criminology, 64, 1973, pp. 198-207.11 Michel Foucault, Storia delia fo llia nelVetà classica. Milão, Rizzoli, 1963 (ed. orig. 1961). [N. do T.: edição brasileira História da loucura na Idade Clássica. São Paulo, Perspectiva, 1989, tradução de José Teixeira Coelho Netto].12 S. Cohen, Visions o f Social Control. Cambridge, Polity Press, 1985.

12

Page 13: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

ótica que poderemos chamar de “neo-marxista", que procurei desenvolver na seção que me foi confiada de Cárcere e fábrica13, era possível aplicar a grade interpretativa marxista clássica - derivada sobretudo do Livro Primei­ro de O capital, centrada sobre a gênese do modo de produção capitalista e na qual se destaca o conceito de “acumulação primitiva” 14- à história da instituição penitenciária. Essa instituição foi, de fato, criada contemporanea- mente aos processos de acumulação primitiva ou original, nos lugares onde teve inicio o modo de produção capitalista, numa conexão não casual e weberiana com os locais onde o protestantismo se revestiu das suas formas mais radicais.

O cárcere tivera como antepassado a “casa de trabalho”, espécie de ma­nufatura reservada às massas que, expulsas dos campos, afluíram para as cidades, dando lugar a fenômenos que preocupavam as elites mercantis (e proto-capitalistas) da época: banditismo, mendicância, pequenos furtos e, last but not least, recusa a trabalhar nas condições impostas por essas elites. A casa de trabalho - um “proto-cárcere” que seria depois tomado como modelo da forma moderna do cárcere no período iluminista, isto é, quando ocorreu a verdadeira “invenção penitenciária” — não parecia ser outra coisa senão uma instituição de adestramento forçado das massas ao modo de pro­dução capitalista; afinal, para elas, esse modo de produção era uma absoluta novidade (e nesse sentido, a casa de trabalho era uma instituição “subalter­na” à fábrica).

Não por acaso, Cárcere e fábrica encerrava essa reconstrução ao final histórico desse movimento originário, por volta da primeira metade do sécu­lo XIX. Tratava-se, todavia, de uma leitura que, assim como no caso das outras leituras “revisionistas” , permitia reconstruir a história do cárcere da perspectiva da crise da fábrica tradicional que se estava verificando naqueles anos, e portanto da perspectiva da crise da relação entre cárcere e fábrica. Do mesmo modo que, naquele momento, era possível desnaturalizar a fábri­ca como ela era então conhecida, e vê-la inscrita no interior de uma parábola que estava conhecendo o seu êxito final, era lógico aplicar esse mesmo modo de pensar a uma instituição como a carcerária que fora criada - como mal

13 Dario Melossi, “Cárcere e Iavoro in Europa e in Italia nel período delia formazione dei modo di produzione capitalista”, in Dario Melossi e Massímo Pavarini, Cárcere efabbrica. Bolonha, II Mulino, 1977 [N. do T.: edição brasileira Cárcere e fábrica. Rio de Janeiro, Revan/ICC, 2006, tradução de Sérgio Lamarão].14 Karl Marx, II capitale, vol. I. Roma, Riuniti, 1964 (ed. orig. 1867) [N. doT.: edição

brasileira O capital: critica da economia poli ti ca. Rio de Janeiro, Civilizaçao Brasileira, 1970-71, 74. 6v.].

.

Page 14: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

tínhamos descoberto! - juntamente com a fábrica. Por conseguinte, parecia lógico que ela seguisse o seu destino. (Note-se, porém, que, como bem havia esclarecido Bentham, na sua “Introdução” a um P anop ticon que, nes­se meio tempo, Foucault havia tomado famoso, o cárcere não era senão a mais “completa” das instituições que “têm por finalidade manter muitas pes­soas sob vigilância”15, dos cárceres aos hospitais psiquiátricos, das manufa­turas aos hospitais tou t court, das escolas aos quartéis). Daí a hipótese, elaborada sob diversas formas por vários autores, de que, assim como a fábrica tornava-se cada vez mais social e se difundia para fora de muros bem marcados - o início da transição ao pós-fordismo o cárcere teria seguido esse mesmo percurso.

Portanto, não era tanto a pena pecuniária, como havia predito Kirchheimer, que se colocaria como substituta do cárcere na época contemporânea, mas sim as várias formas de controle extra-institucional que haviam surgido, já há várias décadas, nos países de língua inglesa, e que pareciam se multipli­car, sobretudo quando escrevíamos Cárcere e fá b r ica . A “crítica do cárce­re”, que emanava seja das revoltas generalizadas em todo o Ocidente (mas não apenas nele), seja da literatura “revisionista”, parecia colher, portanto, uma ori­entação tendencial do próprio capitalismo em organizar-se não mais sob a for- ma-fábrica e sob a forma-cárcere subalterna, mas sim através de formas de controle “em comunidade”, como então se dizia, in prim is, as várias formas de probation, ou “confiança na prova”, como a lei de 1975 traduziu em italiano. Tal desenvolvimento parecia estar bem de acordo com um outro fenômeno que se desenhava cada vez mais claramente naqueles anos e que está na base do texto de Andrew Scull, isto é, a “crise fiscal do Estado”, no sentido em que já haviam explicado Habermas e 0 ’Connor16, De acordo com essa visão, o Estado parecia não estar mais em condições de “manter juntas” as funções que garantiam, ao mesmo tempo, a legitimação e a acumulação, ou seja, aquilo que depois passou à História como a “crise do W elfare S ta te”.

Porém, as coisas não caminharam exatamente desse jeito, pelo menos nos Estados Unidos, em virtude do fenômeno, como já recordamos no iní­

15 Jeremy Bentham, Panopticon, ovvero la casa d ’ispezione. Veneza, Marsilio, 1983 (ed. orig. 1787). [N. do T.: edição brasileira O panóptico, Belo Horizonte, Autêntica, 2000, tradução de Tomaz Tadeo da Silva].16 J. Habermas, Legitimation Crisis. Boston, Beacon Press, 1975 [N. do T.: edição

brasileira A crise de legitimação no capitalismo tardio. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1980, tradução de Vamireh Chacon]; J. O’ Connor, La crisifiscale dello stato. Turim, Einaudi, 1977 (ed. orig. 1973). .

14

Page 15: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

cio, do acentuado aumento da população carcerária que começou exatamen­te naquele período. Para dizer a verdade — e isso dever ser sublinhado - , a análise que via n a probation a forma de intervenção penal tendeneialmente predominante revelou-se exata do ponto de vista da proporção relativa às intervenções correcionais. Com efeito, o aumento tio número de pessoas em liberdade submetidas a controle foi amplamente superior, também nos Esta­dos Unidos, ao número daquelas sob controle dentro das prisões. A veloci­dade com que as várias formas de controle em liberdade aumentaram tam­bém na Europa superou, sem dúvida, o aumento das detenções, dramático nos EUA, e bem mais discreto nos países europeus.

Porem, o que não estava previsto era o aumento excepcional, ainda que em virtude da grave crise fiscal dos anos 1970 e 1980, do compromisso com o setor penal, de tal forma que Loic Wacquant pôde descrever as trans­formações ocorridas naqueles anos como uma verdadeira passagem do “Es­tado social” para o “Estado penal” 17. O aumento nas formas de probation ocorria, pois, juntamente com um aumento dramático, nos-Estados Unidos, das outras formas penais mais clássicas, e com um aumento da detenção no seu interior. Assim, quanto mais prisões, mais severos eram os regimes detentivos e mais se lançava mão da pena capital.

Nas páginas que se seguem, Alessandro De Giorgi avança num terreno ainda amplamente inexplorado, em língua italiana e em outras línguas, ten­tando verificar a possibilidade de a “economia política da pena” dar conta deste último período, disso que aconteceu a partir daquelas transformações que comumente são localizadas nos primeiros anos da década de 1970 e que ele reúne sob o termo de “pós-fordismo” . Certamente sem estar fazendo justiça à sua complexidade, para a qual remetemos o leitor às páginas do livro propriamente dito, parece-me que a tese que De Giorgi apresenta pode ser resumida na idéia de que, numa situação de expulsão permanente e estrutural da força de trabalho do processo produtivo - e, ao mesmo tempo, de pro­funda transformação do modo pelo qual a força de trabalho vem sendo cons­tituída na fase atual - , a “subalternidade” das principais instituições de con­trole social em relação à fábrica está de algum modo perdida e se teria torna­do obsoleta. O ensinamento disciplinar não tem mais sentido na sociedade pós-industrial/pós-fordista porque não há mais ensinamento a propor; por isso, as instituições que foram criadas na modernidade com esse objetivo perdem progressivamente a razão de ser. Resta apenas aquilo que Cohen

17 Lofs Wacquant, Pa rola (Uordine: tolleranza zero, cit.

Page 16: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

chamou de warehousing, o “armazenamento” de sujeitos que não são mais úteis e que, portanto, podem ser administrados apenas atrayés da incapacitation, da neutralizazzione [“neutralização”], como se diz em italiano18.

Essa afirmação é tanto mais verdadeira se considerarmos que aquilo que, por um lado, é “excesso” de força de trabalho - com relação aos estratos sociais expulsos da produção —, é, ao mesmo tempo, “excesso” de força produtiva em relação ao tipo de força de trabalho que se tornou cada vez mais central ao processo produtivo numa época na qual a profecia marxista dos Grundrisse, de uma força de trabalho que vai desenvolver a função de general intellect do capital19, parece enfim ter encontrado concretização. Uma vez que a realidade atual do modo de produção vê como central a esse processo um reservatório de capacidades intelectuais que excedem continu­amente as possibilidades de exploração, controle e contenção da parte da razão capitalista, qualquer forma de “disciplinamento”, mesmo que do tipo mais refinado, perde toda a razão de ser (se vocês me perdoem o nada casual jogo de palavras).

A tese é fascinante, mas, parece-me, não completamente convincente. E isso ocorre por múltiplas razões, algumas das quais podem provavelmente ser resumidas na sua excessiva tendencialidade, no seu deslocamento talvez para muito além do calor da (futura) observação, correndo o risco de perder contato com o que podemos observar hoje, à nossa volta. Não é possível, nas poucas páginas de um prefácio, confrontar completamente a riqueza da análise de De Giorgi, menos ainda de um ponto de vista crítico. Oferecere­mos apenas alguns temas de discussão.

Começamos olhando à nossa volta. Até alguns meses antes do 11 de setembro de 200120, quem vagasse pelas ruas principais das metrópoles do centro do Império - para usar uma metáfora que recentemente reencontrou um uso intenso21 - ou seja, Nova Iorque, Londres, as principais cidades da Califórnia, teria visto em muitas vitrinas nas quais o Império orgulhosamente

18 T. Bandini, U. Gatti, M. I.Marugo e A. Verde, Criminologia. Milão, Giuffrè, 1999, p p .651-757.19 Karl Marx, Lineamenti fondamentali delia crítica deli 'economia política. Flo-

rença, La Nuova Italia, 1970 (ed. orig. 1857-1858). Ver sobretudo pp. 400-403.20 Nesse momento já era mais do que claro, para quem quisesse ver, que estava ocorrendo uma recessão de uma certa consistência nos Estados Unidos.21 M. Hardt e A. Negri, Impero. Milão, Rizzoli, 2002 (ed. orig. 2000) [N. do T.: edição brasileira Império. Rio de Janeiro, Record, 2001, tradução de Berilo Vargas].

16

Page 17: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

ostentava suas mercadorias o cartaz “help w a n ted ”, “precisa-se de empre­gado”. E a essa distraída observação corresponde o fato de que nestes mes­mos centros do Império a taxa de desemprego caíra quase aos seus mínimos históricos e isso por um período de tempo bastante longo, capaz até de colocar em dúvida, aos estudiosos dos ciclos econômicos, o primado da década de 1960 corno os anos de maior prosperidade do capitalismo recente. E claro que aqueles cartazes de “help w anted ’ nutrem um processo de de­senvolvimento e de ocupação que foi definido, com um bruto mas eficaz neologismo, de “macdonaldização”22.

Isso quer dizer que a oferta de trabalho certamente não se dirige para o tipo de emprego perdido nos anos 1970 e 1980 - trabalhos relativamente bem pagos, estáveis, sindicalizados, em grande parte masculinos, com bene­fícios generosos de tipo assistencial (pensões e assistência médica) e cen­trais ao processo produtivo - , mas sim para um novo tipo de emprego, muitas vezes part-time, flexível, com pouca ou nenhuma proteção, em gran­de parte feminino e “marginal” ao percurso produtivo. Isso tanto é verdade que uma das teses mais sérias propostas no interior da academia criminológica norte-americana para explicar o inegável decréscimo da criminalidade na segunda metade dos anos 1990 - tese alternativa ao estardalhaço feito a propósito da “tolerância zero”, tão característica da Nova Iorque de Rudolph Giuliani e que foi reproduzida de modo mais ou menos análogo era quase todas as outras grandes cidades norte-americanas no mesmo período!23 - baseava-se exatamente no fato de que aqueles anos assistiram a uma oferta sustentada de trabalho que se dirigia para os estratos sociais marginais, jo ­vens e em geral “étnicos de cor”, que tinham sido os protagonistas, alguns anos antes, de um inusitado aumento de violência, ligado às batalhas pelo controle do crack entre as várias gangues24.

Isso, em outras e breves palavras, que acontece entre os anos 1970 e 1990, pode ser interpretado também como fase “cíclica”, e em particular como a fase descendente de um “ciclo longo” da economia, aquele tipo de ciclo que é acompanhado por transformações muito profundas do modo de produção capitalista em termos de setores econômicos de ponta, tecnologias,

22 G. Ritzer, II mondo alia McDonalds. Bolonha, II Mulino, 1997 (ed. orig. 1993).23 A. De Giorgi, Zero Tolleranza. Strategie e pratiche delia soei età di controllo, cit.24 A. Biumstein e R. Rosenfeld, “ExplainingRecent Trends in U.S. Homicide Rates”, in The Journal o f Criminal Law and Criminology, 88, 1998, pp. 1175-1216 (ver, sobretudo, pp. 1210-1212); R. Rosenfeld, “Crime Decline”, in Context (no prelo).

17

Page 18: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

transformações sociais conexas etc.25. O que De Giorgi chama de “pós- fordismo” poderia também corresponder a uma fase cíclica da economia, mais do que ao tipo de transformação “tópica” que parece transparecer das suas palavras e da literatura na qual se inspira. Isso teria também conseqüên­cias relevantes do ponto de vista das “estratégias do controle social” , se é que estamos nos referindo ao controle social de tipo formal e penal em par­ticular, como me parece ser o caso de De Giorgi.

Mas avancemos na ordem cronológica. Na passagem dos anos 1960 para os 1970 desenvolve-se um embate duríssimo em muitos países, em particular nos Estados Unidos, que envolve o conjunto da “fábrica social”, como se dizia então. No que concerne aos EUA, devemos recordar a situa­ção de insubordinação geral, aguda e contemporânea que afetava não tanto e não somente as fábricas (como ocorria, cada vez mais, na Europa), mas também as minorias étnicas, os estudantes, o Exército, os jovens em geral, as mulheres. A “criminalidade” — que em alguns dos seus aspectos especial­mente preocupantes para a classe média (o chamado Street crim e) havia au­mentado sensivelmente no correr dos anos 1960 - foi explicada por conta da referida insubordinação. A começar pelo primeiro mandato presidencial de Richard Nixon, o martelamento da propaganda esteve na ordem do dia, asse­melhando-se bastante àquilo a que fomos submetidos na Itália antes das últimas eleições: o crime não é outra coisa senão a “ponta do iceberg” de uma insubordinação e de uma falta, de controle de “certos” estratos sociais (nos quais, num códice não tão críptico, deviam ser reconhecidas as mino­rias de cor, nos Estados Unidos, e os imigrados, na Itália) que colocam em risco a ordem social e em relação aos quais é necessário tomar providências para restaurar o bom tempo passado, que corre o risco de ir-se embora para sempre se não houver uma intervenção imediata.

A repetição deste refrão por cerca de 20, 25 anos, conduziu a um tre­mendo aumento da penalidade, a que já nos referimos acima (nos Estados Unidos; na Itália, conforme se verá, por causa de algumas contradições de certa importância neste campo, no interior da coligação conservadora que

25 Para a aplicação desta abordagem ao tema da exclusão penal, ver Dario Melossi, “Punishment and Social Action: Changing Vocabularies of Punitive Motive Within a Political Business Cycle”, in Current Perspectives on Social Theory, 6, 1985, pp. 169-197; C. Vanneste, Les Chijfres cies Prisons. Paris: L’Harmattan, 2001. As con­tribuições de Hobsbawm, Kalecki, Kondratieff e Schumpeter encontram-se entre as mais conhecidas que podem ser remetidas, ainda que de modos diversos, a essa perspectiva.

18

Page 19: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

venceu as eleições). Mas não foi só isso. Ela contribuiu também, ainda que simbolicamente, para um processo de disciplinamento social geral, que foi acompanhado por uma profunda reestruturação da economia. Vale recordar que nos cerca de 20 anos da “virada”, de 1973 aos primeiros anos da década de 1990, o salário médio horário do trabalhador norte-americano foi reduzi­do em aproximadamente 20%, e o motivo pelo qual a renda das famílias permaneceu basicamente a mesma foi a entrada maciça e sem precedentes das mulheres no mundo do trabalho assalariado26.

Ao mesmo tempo, os estratos mais fortes da classe operária foram ex­pulsos do processo produtivo e, por conseguinte, perderam a centralídade de que desfrutavam no passado. Essa central idade foi transferida para a força de trabalho intelectual que se tornou crucial no interior do novo pro- cèsso produtivo “guiado” pela informática, mas que é mínima do ponto de vista ocupacional, ao passo que a maior parte dos empregos teve lugar no interior dos “serviços” que eram oferecidos às margens desta junta produti­va central e que, em grande medida, nada tinha a ver com um “terciário avançado”. Trata-se, isso sim, da oferta no mercado de todas aquelas ativi­dades que anteriormente eram desenvolvidas, em grande parte, por meio do trabalho doméstico não pago (que agora as mulheres executam, cada vez mais, também fora de casa), pelos serviços de restauração veloz, aqueles ao encargo dos jovens e dos velhos em toda uma série de serviços de entreteni­mento - em resumo, exatamente a “macdonaldização” .

Estamos seguros de que é possível afirmar, com relação especialmente a estes últimos estratos sociais, que não existe mais “projeto de disciplinamento” porque eles não constituem categorias “centrais” ao processo produtivo, no sentido de que não executam aquelas funções do “general intelect", em que

26 W. C. Peterson, The Silent Depression: The Fate o f the American Dream. Nova Iorque, Norton, 1994; J. B. Schor, The Overworked American. Nova Iorque, Basic Books, 1991; Dario Melossi, “Gazette of Morality and Social Whip: Punishment, Hegemony and the Case of the USA, 1970-1992”, in Social & Legal Studies, 2, 1993, pp. 259-279 (pode-se notar, en passant, como este é o “segredo” do extraor­dinário nível de participação no mercado de trabalho nos Estados Unidos que hoje é apresentado como um modelo a ser atingido pela economia italiana!). Esse também é o motivo pelo qual, no último ensaio citado, eu propus relacionar as taxas de encarceramento na Itália com o nível da “performance” requerida à classe operária em seu conjunto numa determinada fase, ao invés de remetê-las apenas à taxa de desemprego, como a literatura da “economia política da pena” geralmen­te procede.

Page 20: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

os conceitos de capital variável e capital fixo “entraram em colapso”, por assim dizer, em conjunto. Mas se cada vez faz menos sentido a distinção entre capital fixo e capital variável, entre trabalho “produtivo” e trabalho “improdutivo” - visto que, no final das contas, aqueles que inventam novos algoritmos para o software continuam a ter necessidade de quem cozinhe seus hambúrgueres, lave suas camisas e lhes garanta um certo relaxamento à noite, diante de um aparelho de televisão ou em qualquer outro local - se, em suma, é o mesmo “processo de vida real”27 que constitui a base da repro­dução capitalista, como podemos afirmar que o emprego “pós-fordista” é aquele emprego que não necessita mais de um aparato “subalterno” a uma “fábrica social” em vias de desaparecimento, e que, por conseguinte, não requereria mais estratégias de “disciplinamento”?

Na minha opinião, o enorme processo de encarceramento que se verifi­cou nos Estados Unidos nas “décadas da crise” - para citar Hobsbawm28- deveria ser reconsiderado a partir deste ponto de vista, ainda que não haja nenhuma dúvida de que, no seu interior, tenham convivido e ainda convivam tendências de tipo meramente “detentivo-neutralizante” e tendências, ao con­trário, de tipo “autoritário-ressocializante” . As segundas, na minha opinião, estão mais presentes exatamente em virtude da superação da fase mais nítida de reestruturação da economia, nos anos 1970 e 1980, e de retomada no período posterior, no qual o tema da re-emissão de nova força de trabalho no interior de uma nova fase de desenvolvimento se impôs com maior peso. Eis que nos anos 1990 começam a reaparecer preocupações que são apresenta­das, com todas as letras, como “neo-paternalistas”, como nos trabalhos de Lawrence M ead29; eis também que na segunda metade de 2000, pela primei­ra vez desde 1972, registrou-se uma diminuição na população de presos30 (e o uso da pena capital torna-se, novamente, matéria de discussão entre as elites norte-americanas). Esses acenos de uma inversão de tendência na es­fera do controle social pareceriam responder, segundo a leitura de longo

27 Karl Marx, Lineamenti fondamentali delia critica de li’economia política, cit., p. 403.28 Eric Hobsbawm, II secolo breve. Milão, Rizzoli, 1995 (ed. orig. 1994). [N. do. T.: edição brasileira A era dos extremos: o breve século XX, 1914-1991. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, tradução de Marcos Santarrita]. Vale destacar que também para o aumento nas taxas de encarceramento o ano da virada é 1972.29 L. Mead (ed.), The New Paternalism. Washington D. C., Brookings Institution Press, 1997.30 U. S. Department of Justice. Bureau of Justice Statistics, Prisoners in 2000.

20

Page 21: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

ciclo das hipóteses de Rusche e Kirchheimer que aqui são propostas, à in­versão ocorrida por volta da metade dos anos 1990 no campo das relações socioeconômicas, em direção a uma nova fase ascendente.

O que pretendo afirmar, em outras palavras, é que o cárcere parece per­durar obstinadamente como uma espécie de grande portão de ingresso ao contrato social, ou mesmo como introdução à forma de trabalho subordina­do. E um pouco como se a descoberta dos comerciantes holandeses (e de outros similares), no início do século XVII — isto é, a descoberta de que eles podiam “utilmente” “pôr para trabalhar” , juntamente com os seus capitais, os pobres, os mendigos, os vagabundos, os ladrõezinhos, os rebeldes que o processo de racionalização da agricultura estava expulsando dos campos - continuasse a se reproduzir junto com a “colonização” capitalista de “novos territórios”, territórios que podiam estar dentro de uma jurisdição política e social específica. Um exemplo dessa situação é o deslocamento dos negros americanos do sul para o norte dos Estados Unidos entre o primeiro pós- guerra e os anos 1950, ou a entrada em massa no mercado de trabalho das mulheres, especialmente as de cor, dos anos 1970 em diante. Vale notar que as taxas de encarceramento feminino nos Estados Unidos, embora ainda bastante baixa em termos absolutos, aumentaram de modo sensivelmente maior do que para os homens.

Há também as situações externas, como é o caso da imigração africana, asiática, latino-americana e do Leste europeu para a América do Norte e a União Européia. É como se, nas “margens” do desenvolvimento, o processo de “acumulação primitiva” continuasse incessantemente no seu percurso de “colonização” de “mundos” “outros”31. Se considerarmos, por exemplo, no nosso pequeno mundo “italiano” , o modo pelo qual o fenômeno da imigração fez reviver, em certo sentido, a instituição carcerária - que no Centro-Norte e com respeito a “usuários” específicos, como os menores de idade, está literalmente se “especializando” na direção dos estrangeiros - , compreende- se então como “a crise do cárcere” dos anos 1960 e 1970, as suas aparente­mente manifestas obsolescência e antiguidade estão ligadas a um “público” particular que vinha sendo concebido como “além” do cárcere. A situação mudou de forma dramática a partir dos primeiros anos da década de 1990, quando teve início um processo de imigração de alguma relevância (também

31 J. Habermas, Teoria dei agire comunicativo, vol. 2. Bolonha, II Mulino, 1986 (ed. orig. 1981), pp. 951-1088 [N. do T.: edição brasileira Agir comunicativo e razão destrancendentaüzada. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2002, tradução de Lúcia Aragão],

Page 22: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

por causa naturalmente de mecanismos jurídicos particulares como os da permissão de estadia, mas é dos efeitos sociais que aqui nos ocupamos e não da sua legitimação jurídica).

Parece-me difícil, em suma, ignorar o caráter “cíclico” que tão bem des­creve, embora não explique, esses fenômenos, também no que diz respeito a uma “filosofia da história” diversa, organizada em torno de uma sucessão de transformações “tópicas” . Em certos níveis de “poder”, adquiridos pela for­ça de trabalho - poder que ao mesmo tempo é de tipo político-tecnológico- sindical no interior da esfera mais diretamente produtiva e de tipo político- político, no seu exterior o trabalho se torna um limite ao desenvolvimento capitalista, determinando portanto uma “crise” dentro da qual ocorre tanto uma “reorientação” produtiva, em direção a um modo de produção que se livre da hipoteca do poder do trabalho, quanto um notável redimensionamento também do poder político da classe operária. Ao mesmo tempo instrumento e sinal de tais processos de reestruturação, emerge uma nova classe operá­ria, ou novos setores da classe operária, recrutados, exatamente como se dizia acima, no bojo da expansão do desenvolvimento capitalista, quer esse desenvolvimento se dirija para o mercado de trabalho “interno” (jovens, mulheres, ex-trabalhadores agrícolas, ex-pequenos proprietários e empresá­rios), quer para o “externo” (países há pouco, e de vários modos, incorpora­dos por um desenvolvimento capitalista mais direto e dinâmico).

Esses novos segmentos sociais vão constituir uma “classe operária em formação”32, e em formação pelo menos em dois sentidos: porque se está inserindo no interior de processos de trabalho correspondentes a projetos empresariais novos ou renovados (macdonaldização, transformações indus­triais, “novo mercado”); e porque não tem nenhum sentido de si enquanto tal (os clássicos teriam dito que lhes “falta consciência de classe”). E destino comum desses setores da “classe operária em formação” serem normalmen­te descritos - pelo ressentimento das “velhas” categorias operárias, ajudadas nisso por vários tipos de agitadores e por comentaristas “autorizados”, que se encarregam de racionalizar este ponto de vista - como “excremento”, “classe perigosa”, subproletariado, underclass, para usar um termo norte- americano recente.

32 Sobre o caso italiano atual, ver a minha “Introdução” , em Dario Melossi (org.), Multiculturalismo e sicurezza in Emilia-Romagna: Secondci parte. Quademo n. 21-ab dei “Progetto C ittà S icure” . Bolonha, Regione Em ilia-Rom agna, 2001 ([email protected]).

22

Page 23: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

Essas descrições se baseiam, naturalmente, também era “fatos reais” , visto que o processo de desenvolvimento capitalista ocorre geralmente de modo um tanto anárquico e irracional, e o deslocamento dos futuros operá­rios do campo para as cidades não é nem automático nem indolor, provocan­do fenômenos de inserção de alguns dos novos que chegam no interior dos mercados do chamado “ilícito” (que, por outro lado, faz parte daquele mer­cado “efetuai” , no interior do qual também se necessita de mão-de-obra, como ocorre hoje na Itália com a droga e a prostituição), e igualmente de rejeição e de hostilidade da parte dos estratos sociais, também operários, precedentes. Por conseguinte, o excremento, a classe perigosa, a underclass será encerrada (e “cultivada”) no interior de um sistema carcerário que, reencontrando seus próprios hóspedes preferidos de sempre - ex-campone­ses que se dirigem à cidade, mesmo que a sua cor, a sua língua ou a sua religião sejam agora diferentes - , se sentirá renascer, reconhecendo nos no­vos recém-chegados os próprios “eternos hóspedes”, por assim dizer a linfa vital da qual o sistema se nutre (não obstante a ingenuidade ocasional de um ou outro magistrado que, tomando ao pé da letra a forma do direito, tentou enviar para a prisão, nesse meio tempo, hóspedes por assim dizer “inespera­dos” , mas isso acabou não dando certo!). Porém, como já acontecera no passado com aqueles velhos operários (e os seus pais e os seus avós), que agora maldizem a “incivilidade” dos recém-chegados, assim também estes últimos crescerão juntamente com o tipo de desenvolvimento em que foram imersos e encontrarão, de acordo com formas solidárias e organizativas, o modo de considerar a si mesmos, e a outros como eles, não mais como excremento mas como seres humanos, e daí a pouco também como seres humanos dotados de um certo poder.

Como dizia uma palavra de ordem que circulava entremos trabalhadores da província de Reggio Emilia, há cerca de um século atrás, “unidos somos

. tudo/divididos somos canalha”33. Para que tal modo de pensar se torne um modo de pensar largamente compartilhado, isso depende não somente do esforço infatigável de organizadores e ativistas, mas também, e naturalmen­te, dos acontecimentos registrados no desenvolvimento das forças produti­vas (muito embora as duas coisas não possam ser separadas uma da outra). O fato é que, quando isso acontecer, e la canaille não for mais a canalha, este será também o momento em que novamente o cárcere será visto como

33 M aterial recolhido por ocasião da celebração do centenário da Câm ara do Trabalho de Reggio Emilia (2001).

Page 24: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

um resíduo arcaico do passado e serão previstas novas “alternativas” puniti­vas, “correcionais” e “reeducativas” ; ao mesmo tempo, em algum canto do mundo, as primeiras patrulhas em busca de uma nova “canalha” estarão começando a apressar-se, num incansável movimento, em direção aos con­fins do contrato social/império.

24

Page 25: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

Introdução

Paris, 1676.

Não obstante numerosas providências, todo o restante dos mendigos continuou a viver em plena liberdade em toda Paris e nos subúrbios; eles chegavam ali provenientes de todas as províncias do reino e de todos os países da Europa. O seu número crescia dia após dia, até se constituírem como um povo independente, que não conhecia nem lei, nem religião, nem autoridade, nem polícia; a crueldade, a baixeza, a libertinagem era tudo que reinâva entre,eles. No dia 13, uma missa solene ao Espírito Santo foi cantada na igreja da Pitié e no dia 14 a reclusão dos Pobres foi levada a bom termo sem nenhuma perturbação.

Naquele dia toda Paris mudou de aspecto, tendo a maior parte dos mendigos se retirado para as províncias, e os mais espertos pensando em encontrar sustento com as suas próprias forças. Houve, indubitavelmente, um ato da proteção divina sobre esta grande iniciativa, porque não se poderia jamais acreditar que se chegaria a um resultado tão feliz com tão pouco esforço1.

Nova Iorque, 1997.Grafites e outros sinais da desordem estavam por toda parte. Durante os

anos 1970 e boa parte dos anos 1980, não havia um único vagão do metrô da cidade que não estivesse com pletam ente coberto daquilo que alguns, impropriamente, definiam como uma forma de arte urbana, os grafites. As estações do metrô transformavam-se em bidonvilles para os homeless, e a esmola arrogante crescia, exacerbando um clima de medo. Assim, mal você colocava os pés em Manhattan, dava de cara com o estandarte não oficial da cidade de Nova Iorque; a epidemia dos lavadores de carros. Bem-vindo a Nova Iorque. Estes tipos tinham sempre nas mãos um trapo sujo, e empor-

' .L'Hòpital Général, opúsculo anônimo de 1676, citado por Michel Foucault in Storia delia follia nell’età classica, trad. it. Milão, Rizzoli, 1998, pp. 459-460. [N. do T.: edição brasileira H istória da loucura na Idade Clássica. São Paulo, Perspectiva, 1989, tradução de José Teixeira Coelho Netto],

25

Page 26: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

calhariam o vidro do teu carro com algum líquido imundo, para depois pedir dinheiro. Quem andasse pela Quinta Avenida, pela área dos negócios da alta moda e dos edifícios chiques, esbarrava por toda parte com ambulantes não autorizados e mendigos. Se voltasse ao metrô, deparava com artistas equilibristas que se comportavam como vândalos, exigindo que os passageiros lhes dessem dinheiro. Mendigos em todos os vagões. Nos trilhos, cidades de papelão serviam de moradia aos homeless. Dominava a sensação de uma cidade permissiva, de uma sociedade que autorizava coisas que não teriam sido permitidas anos antes2.

A primeira impressão que se pode ter ao se ler os textos reproduzidos acima é que pouca coisa mudou nos três séculos que separam a Paris do Hôpital Général da Nova Iorque da Zero Tolerance. O autor anônimo do opúsculo do século XVII e o ex-chefe de polícia de Nova Iorque, que foi o principal artífice das estratégias da Zero Tolerance, parecem se inspirar na mesma filosofia: idêntico é o desprezo pór aquela pobreza extrema que, de modo desabusado, ousa mostrar-se, contaminando o ambiente metropolitano; idêntico o entrelaçamento entre motivos morais e alusões vagamente eugênicas; idêntica a hostilidade contra tudo aquilo que perturba o quieto e ordenado fluir da vida produtiva citadina, defendendo-a da infecção do não-trabalho, do parasitismo econômico, do nomadismo urbano; idêntica, sobretudo, a implícita equação entre marginalidade social e criminalidade, entre classes pobres e classes perigosas. Todavia, a uma observação mais atenta, esta impressão se revela completamente inexata.

O opúsculo anônimo se coloca historicamente no limiar da transição de um regime de poder, que Michel Foucault define como “soberano”, para um modelo de controle de tipo “disciplinar” . Diante do espetáculo da mendicância, da pobreza e da dissolução moral oferecido pelos pobres na Europa entre os séculos XVII e XVIII, as estratégias do poder mudam lentamente, passando de uma função negativa, de destruição e eliminação física do desvio, a uma função positiva , de recuperação, disciplinam ento e norm alização dos diferentes. É aqui que se inicia a era do “grande internamento”. Pobres, vagabundos, prostitutas, alcoólatras e criminosos de toda espécie não são mais dilacerados, colocados na roda, aniquilados simbolicamente através da destruição teatral dos seus corpos.

2 W. J. Bratton. “Crime is Down in New York City: Blame the Police” , in N. Dennis (ed.), Zero Tolerance. Policing a Free Society. Londres, Institute of Economic Affairs, 1997, pp. 33-34.

Page 27: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

De forma muito mais discreta, silenciosa e eficaz, eles são encerrados. Eles começam a ser internados porque se compreende que eles são passíveis de constituir uma massa que as nascentes tecnologias da disciplina podem forjar, plasmar, transformar em sujeitos úteis, isto é, em força de trabalho. Do “direito de morte” ao “poder sobre a vida”, da neutralização violénta de indivíduos “infames” à regulação produtiva das populações que habitam o território urbano, é isso que, com vigor religioso, o autor anônimo do opúsculo invoca, ao mesmo tempo que anuncia precisam ente o »na«cimení©-*4a írmpolftica3.

Articulando-se entre disciplina do corpo eregulação dos grupos humanos, 'a biopolítica organiza um poder eficaz sobre a vida, agrupa um conjunto de tecnologias de governo que contrapõem à dissipação e ao esbanjamento (dos corpos, das energias, dos recursos, mas também do poder) uma gestão racional das forças produtivas'.

a adequação da acum ulação do s hom ens à do capital, a articulação do crescim ento dos grupos humanos co m a ex p an são das forças produtivas e a repartição diferencial do lucro se tornaram possíveis cm parte devido ao exercício do biopoder, em suas formas e com os procedimentos os mais variados. O investimento do corpo vivo, a sua valorização e a gestão distributiva das suas forças foram, naquele momento, indispensáveis .

J n ausura-se. assim, Jõ modelo de controle social disciplinar que carac­terizará toda a fase de expansão da sociedade industrial, até o seu apogeu, durante o período do capitalismo fordistãTJSerá, de fato, no decorrer da primeira metade do século XX que o projeto de uma perfeita articulação entre disciplina dos corpos e governo das populações se completará, mate- rializando-se no regime econômico da fábrica, no modelo social do Welfare State e no paradigma penal do cárcere “correcional”.

Zero Tolerance e as práticas de discurso que a acompanham já se situam num contexto radicalmente mudado, marcado pela crise e pelo progressivo

3“Poder-se-ia dizer que o velho direito de fazer morrer ou deixar viver foi substituído por.um poder de fazer viver ou de rejeitar a morte”(Michel Foucault, La volontà di sapere, trad. it. Milão, FeHnnelii, 1997, p. 122) [N. do T.: edição brasileira História da sexualidade 1: vontade de saber. São Paulo, Graal, 1977, tradução de.M aria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque].4 Iclem, p. 125.

Page 28: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

abandono do grande projeto disciplinar da modernidade capitalista. Aqui, as tecnologias do disciplinamento não são mais um instrumento eficaz de controle e governo da dissipação e do desperdício da força de trabalho (talvez porque dissipação e desperdício não existam mais) jPobres, desempregados, mendi­gos, nômades e migrantes representam certamente as novas classes perigosas, “os condenados da metrópole” , contra quem se mobilizam os dispositivos de controle5, mas agora sãoj;jiiprewadas^estt3 tégia&.difereiites nesse confronto? Trata-se, antes de tudo, de indmdualizá-los e separá-los das “classes laboriosas”. Esta tarefa é, de fato, bastante simples numa metrópole produtiva, na qual a contínua precarização do trabalho, o emprego - que se torna cada vez mais flexível, incerto e transitório - , e a constante superposição entre economia “legal” e economias submersas, inform ais e também ilegais, determ inam uma progressiva solda entre trabalho e não-trabalho e entre classes laboriosas e classes perigosas, a ponto de tomar qualquer distinção praticamente impossível. Trata- se, pois,, defneutralizar a “periculosidade” das classes perigosas através de técnicas de prevenção do risco, que se articulam principalmente sob as formas de vigilância, segregação urbana e contenção carcerária^

Se voltarmos o olhar às tecnologias de controle que emergem no ocaso do século XX e anunciam a aurora do século XXI, podemos certamente falar de um segundo grande internamentOLX>e um internamento urbano, que tem a forma do gueto, de um internamento penal, que tem a forma do cárcere, e de um internamento global, que assume a forma das inumeráveis “zonas de espera”, disseminadas pelos confins internos do Império6. Porém, diferen­temente do internamento do qual nos fala Foucault, a sua reedição atual não parece cultivar nenhuma utopia de tipo disciplinar. O novo internamento se configura mais do que qualquer outra coisa com o|iina tentativa de definir

/um espaço de contenção, de traçar um perímetro material ou imaterial em í torno das populações que são “excedentes”,/seja a nível global, seja a nível metropolitano, em relação ao sistema de produção vigente.

5 S. Palidda, Polizia postmoderna. Etnografia dei nuovo controllo sociale. Milão, Feltrinelli, 2000.6 M. Hardt e A. Negri, Impero. II nuovo online delia globalizzione, trad. it. Milão, Rizzoli, 2002 [N. do T.: edição brasileira Império. Rio de Janeiro: Record, 2001, tradução de Berilo Vargas]. Pensamos aqui, obviamente, nos processos de controle implementados em relação aos migrantes. Sobre esse tema, ver particularmente S. M ezzadra e A. Petrillo (org.), / confini delia globalizzazione. Lavoro, cultura, cittadinanza. Roma, Manifestolibri, 2000.

28

Page 29: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

i Aqui se determina, por conseguinte, uma nítida separação entre biopolíticae d iscip linaridade , na qual a primeira se expressa, paradoxalmente, através da negação da segunda. Resta a instalação biopolítica de um poder entendido mais como regulação de populações produtivas, como controle dos fluxos da força de trabalho global num espaço tornado imperial, e menos como aquela “anatomo-política do corpo” da qual nos fala Foucault, aquele “fazer viver” produtivo que integra, ao nível dos indivíduos singulares, a regulação das populações no seu conjunto.

Também têm menos espaço aquelas tecnologias de sujeitificação que perseguiam o objetivo de transformar os indivíduos por meio de um controle individualizado. Em outras palavras, (não se trata mais de “fazer viver ou repelir a morte” , mas talvez de “fazer viver através do repelir a morte^jEste “repelir a morte”, imposto a uma parte da força de trabalho global, parece constituir-se hoje no pressuposto para “fazer viver” a produtividade social conjunta do capitalismo pós-fordista. Falamos aqui de uma morte que se concretiza na violência institucional dos dispositivos de controle que sustentam o domínio capita lista, de um a m orte que incide sobre a ex istência afetiva, social e econômica dos indivíduos e que se apresenta como limitação das expectativas subjetivas, como expropriação de possibilidades, como negação do direito de circular livremente.(Antes e ainda mais do que da morte biológica, , /falamos da morte como experíencia b iográ fica da força de trabalho con-

: temporânea, que se materializa na biografia dos migrantes que morrem nosconfins da fortaleza européia, na tentativa de exercitar um “direito de fuga” I negado7, nas biografias dos dois milhões de prisioneiros encerrados no gulag

\ americano ou nas daqueles para quem o horizonte de vida tende a coincidir/ |,com a fronteira de um gueto.

Michel Foucault reconstruiu a genealogia de um poder disciplinar que se inscreve na formação do modo de produção capitalista e que se estende até à época da sociedade industrial fordista. A disciplinaridade pode ser compreendida apenas a partir da constituição da produção industrial, do seu nascimento ao seu declínio. Por sua vez, o desenvolvimento do capitalismo industrial não pode ser concebido se prescindirmos das estratégias de produção de subjetividade e de força de trabalho que se concretizam nas técnicas disciplinares. Mas aquilo que

7 Sobre “direito de fuga” (entendido, também, significativamente, como exercício de uma “crítica prática” da divisão internacional do trabalho), ver S. Mezzadra, ‘Migrazioni”, in A. Zanini e U. Fadini (org.), Lessico postfordista. Dizionario cli idee delia mutazione. Milão, Feltrinelli, 2001, pp. 206-211; e S. Mezzadra, Diritto di fuga. Migrazioni, globaUzzazione, cittadinanza. Verona, Ombrecorte, 2001.

29

Page 30: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

temos hoje diante de nós é precisamente a superação do modelo capitalista * fordista para o qual aquelas tecnologias foram por tanto tempo destinadas8. f

Percebemos sinais inequívocos desta superação. Dispomos de descrições, I análises e definições que, sobretudo nos últimos dez anos, foram condensadas f numa já extensa literatura9. O termo “pós-fordismo” - em uso tanto na lin- i guagem sociológica, política e econômica, quanto no léxico comum — indica- \ nos saltos de paradigma e transições radicais, que reescrevem a fundo a f nossa experiência da contempOraneidade. Ao mesmo tempo, emergem ten- í tativas de reconstrução das mutações que investem a geografia do controle ! social. Termos como “sociedade de controle” e “sociedade da vigilância” | parecem indicar o epílogo e a superação do regime disciplinar, uma transição I que se consumiria a partir do esgotamento da estrutura produtiva fordista. |

Todavia, enquanto o trabalho de Michel Foucault inscrevia a análise do I “controle disciplinar” diretamente na materialidade das relações de produção ? capitalistas, nos processos de constituição do proletariado e nas formas de | produção de subjetividade da força de trabalho industrial, as análises das í estratégias do “contro le social” custam a assum ir um a perspectiva metodo- ? lógica análoga, limitando-se essencialmente a uma fenomenologia de superfície, s Em outros termos, podemos afirmar que^ã disciplinaridade se revela cada vez mais inadequada com relação às novas formas de produção e impotente para exercitar práticas de controle eficazes no confronto com as novas subjetividades do trabalho;/porém, não estamos em condições de reconduzir essa inadequação j e essa impotência aos processos de transformação em curso na produção.

Chegamos assim ao objeto deste livro, que consiste na individualização de algumas hipóteses para preencher este aparente vazio. O Qbjetjyp, um tanto ambicioso, consiste em (descrever algumas mutações ocorridas nas formas do controle a partir da emergência de uma nova articulação das relações de produção, perguntando-se de que modo as estratégias atuais de controle se inscrevem no contexto produtivo pós-fordistaTJNo entanto, fazer essa

8 “A abordagem foucaultiana permite ler o desenvolvimento da sociedade moderna e a relação nela existente entre Estado e sociedade até o momento histórico do fordismo (...) Mas é este, exatamente, o ponto crucial. Esta configuração é arrastada, faz tempo, numa crise aparentemente sem saída, pelo desmoronamento do seu eixo central, vale dizer, do valor social paradigmático da disciplina de fábrica de tipo fordista” (L. Ferrari Bravo, “Sovranità”, in Zanini e Fadini (org.), Lessico postfordista, cit.,p.280).9 A transição do fordismo ao pós-fordismo (e as descrições desta transição) será objeto de uma seção posterior desta obra.

30

Page 31: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

pergunta significa, necessariamente, fazer convergir a análise do controle com aquela, complementar, da força de trabalho contemporânea, até o ponto de fundir as duas.

Entra aqui em jogo o conceito, fundamental, de “multidão!’, com o qual se pretende exprimir o caráter compósito, enraizado e múltiplo da força de trabalho pós-fordista, em relação à qual um conjunto de caracterizações, distinções e separações, referenciáveis à classe operária, parece perder progressivamente consistência. Vale dizer porém que o conceito de multidão não pretende aludir a uma subjetividade auto-consciente, à emergência de um novo sujeito revolu­cionário, ou à formação de uma identidade paradigmática da força de trabalho contemporânea. Ao contrário, o termo multidão define um processo de subjetivação em andamento, um “tornar-se múltiplo” das novas formas de trabalho sobre as quais convergem as tecnologias do controle pós-disciplinar. Multidão indica, sobretudo, a impossibilidade de uma rechictio acl unam das diversas subjetividades produtivas comparáveis àquela que permitia individua­lizar, na classe operária, a forma de subjetividade hegemônica durante a época do capitalismo fordista.

A partir do conceito de multidão veremos então que aquela que, à primeira vista, se revela como inadequação das tecnologias disciplinares em relação ao novo horizonte produtivo, configura-se, na realidade, como um excesso daquilo que deve ser controlado (a nova força de trabalho social) no que concerne aos dispositivos de controle, uma nova constituição do trabalho que transgride continuamente as determinações e as formas de subjetivação impostas pelo domínio. Será então possível afirmar que/a construção de um modelo de governo do excesso expressa pela multidão produtiva pós-fordista toma-se uma prioridade das atuais estratégias de controleJSerá preciso, porém, articular estas transições seguindo uma certa ordem e situá-las num contexto histórico mais geral.

A economia política da penalidade parece poder-nos oferecer esta possi­bilidade. Trata-se de uma orientação da criminologia crítica, de derivação princi­palmente marxista e foucaultiana, que investigou, sobretudo a partir dos anos 1970, a relação entre economia e controle social, reconstruindo as coordenadas da relação que parece manter juntas determinadas formas de produzir e determinadas modalidades de punir10. Como veremos, ela concentrou suas

10 O texto fundamental, do qual depois foram derivadas mais ou menos diretamente todas as análises posteriores, é G. Rusche e O. Kirchheimer, Pena e struttura sociale. trad. it. Bolonha, II Mulino, 1978 ]N. do T.: edição brasileira: Punição e estrutura social, Rio de Janeiro, Revan/ICC, 2a ed., 2004, tradução e apresentação de Gizlene Neder].

Page 32: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

próprias análises particularmente nos nexos entre “cárcere e fábrica”, entre “encarceramento e desemprego” , questionando a relação entre dinâmicas do mercado de trabalho e estratégias repressivas no interior de um cenário fordista. Mas os instrumentos críticos produzidos pela economia política da penalidade- tanto por meio da reconstrução histórica do nascimento da penitenciária e da reclusão quanto através da análise da relação atual entre economia e pena- constituem uma herança significativa, que deve ser recolhida e levada em conta para se empreender uma crítica do controle social pós-fordista.

Por conseguinte, gostaria de ter como ponto de partida a economia política da penalidade para nela individualizar as diretrizes teóricas fundamentais e investigar sua dupla dimensão histórica e contemporânea. Emergirão, assim, alguns lim ites deste paradigm a de análise, ligados em particu la r às transformações que, nestes anos, afetaram a produção social. Será, pois, necessário valtar nossas atenções para estas transformações, para nelas colhermos as tendências e os efeitos no plano da subjetividade produtiva. Apenas neste momento serão pesquisadas as formas de controle da multidão através das quais um regime de governo do excesso começa a se revelar.

Parte deste trabalho constitui uma reelaboração de dois artigos: “OItre 1’economia politica delia penalità: posfordismo e controllo delia moltitudine” [“Além da economia política da penalidade: pós-fordismo e controle da m ul­tidão”], in Dei delitti e dellepene, 1-2, 2000, e “Società di controllo: lavori in corso” [“Sociedade de controle: trabalhos em curso”], in DeriveAprodi, 20, 2001 .

Desejo agradecer a Venere Bugliari, Richard Sparks, Stefania De Petris, Thea Hinde, Dario Melossi e Sandro Mezzadra pelos seus preciosos co­mentários.

32

Page 33: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

Capítulo 1

Regime disciplinar e proletariado fordista

A prim eira fu n çã o era subtrair o tempo, fa zendo com que o tempo dos homens,

o tempo das suas vidas, se transformasse em tem po de trabalho. A segunda função

consistia em fa ze r com o que o corpo dos hom ens se tornasse fo rça de trabalho.

A função de transform ação do corpo em fo rça de trabalho corresponde à função

de transform ação do tempo em tempo de trabalho.M. Foucault,

A verdade e as fo rm as juríd icas

Economia política do controle socialA criminologia nasce como um saber inseparável das tecnologias de po­

der que remetem ao universo criminal. Ela é produto daquilo que Foucault define como “civilização inquisitória” . A sua genealogia faz parte do proces­so histórico de transformação no sentido “governamental” da razão de Esta­do que tomou forma entre os séculos XVIII e XIX. Neste período, a ciência de governo se especializa e se diferencia em seu próprio interior, dando vida a saberes sobre a população, tais como a estatística, a urbanística, a higiene, a psiquiatria, a medicina social e a criminologia". O potencial “inquisitorial”- que a criminologia acumula e, ao mesmo tempo, libera em relação ao des­vio - produz, por conseguinte, uma ordem peculiar do discurso e um con­junto de verdades que se concretizam historicamente nas figuras do hom o crim inalis, do reincidente, do ambiente críminógeno e da classe perigosa'2.

. 11 M. Foucault, “La governamentalità” , trad. it. .in M. Foucault, Poteri e strategie.L ‘assoggetamento dei corpi e Velemento sfuggente (P. Delia Vigna, org.). Milão,

r^M imesis, 1994, pp. 43-67.12 “A inquisição: forma de poder-saber essencial à nossa sociedade. A verdade da experiência é filha da inquisição - do poder político, administrativo, judiciário de

"Q/Colocar perguntas, de extorquir respostas, de recolher testemunhos, de controlar afirmações, de estabelecer fatos — como a verdade das medidas e das proporções era

Page 34: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

Ao longo de toda a primeira metade do século XX, a investigação crimi- nológica permanece fortemente caracterizada por um saber a serviço do “príncipe”, incapaz de superar o estatuto epistemológico consolidado na fase inicial da sua história. Esta marca fundamentalmente “tecnocrática” , que torna a criminologia uma verdadeira “ciência de polícia” (Polizeiwissenschaft), dificulta por muito tempo a elaboração de teorias do controle social, ou seja, a formação de paradigmas de análises capazes de interrogar criticamente as dinâmicas de reação social e institucional em relação ao desvio.

Apenas com o desenvolvimento das teorias do “etiquetamento” nos anos 1960 é que o poder punitivo faz o seu ingresso efetivo no horizonte crim i­nológico como universo de investigação parcialmente independente da cri­minalidade13. Os teóricos do “etiquetamento” foram os primeiros a promo­ver um processo de renovação crítica do saber criminológico, propondo uma valorização do desvio enquanto diversidade estigmatizada pelos meca­nismos de poder. Porém, ao fazerem isso, eles continuaram confinados aos limites de uma perspectiva micro-sociológíca.

“R evolucionário” sob certos aspectos, o projeto interacionista — voltado para uma reavaliação da identidade desviante diante dos rituais de repressão e degradação social dos quais é objeto - não se fundamentava, porém, em hipóteses abrangentes, relativas ao fundamento material do poder de “eti­quetar” e reprimir. De um lado, o universo desviante descrito pelos labelling theorists parece incapaz de produzir resistências ao poder que não sejam totalmente individuais e quase sempre oportunistas. Por outro lado, o poder de definição do desvio só encontra algum fundamento nos processos de interação simbólica que têm lugar no microcosmo das instituições totais14.

Esses aspectos tendem a prejudicar o potencial crítico da análise “interacionista” em relação às estratégias punitivas, visto que restituem uma

filha de dike” (M. Foucault, 1 corsi al College de France. I Resumées, trad. it. Milão, Feltrinelli, 1999, p. 22) [N. do T.: edição brasileira Resumo dos cursos do Collège de France: 1970/1982. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, tradução de Andréa Daher, consultoria de Roberto Machado], Sobre o nascimento da criminologia e sobre a sua relação com a ‘‘governamentalidade’’ e a disciplina, ver R Pasquino, “Criminology: the Birth of a Special Saviour”, in Ideology and Consciousness, 7, 1980, pp. 17-33.13 Sobre as teorias de etiquetamento, ver a coletânea de escritos publicados em E. Rubington & M. Weinberg (eds.) Deviance. The Interactionist Perspective. Nova Iorque, MacMIllan, 1973.14 E. Goffman, Asylums, trad, it. Turim, Einaudi, 1968.

34

Page 35: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

im a g e m d o p o d e r p u n i t iv o fu n d a m e n ta lm e n te des-h istoric iz .ada e descontextualizada. A crim in o lo g ia crítica com eça, po rtan to , a denunc ia r a urgência de um a fundação m ateria lis ta da aná lise dos p rocessos institucionais dc con tro le do desvio, is to é, de um a an á lise capaz de ex am in a r criticam ente os Icibellers (as institu ições e as es tra tég ias do p o d er pun itivo ) e tam bém os labelled (aqueles que são os destin a tário s im ediatos dos labellers). E sse es­tímulo político-intelectual determ ina , ou pelo m enos agiliza, d e m odo sign ifi­cativo, a en trada do m arx ism o na socio log ia crim inal, oco rrida en tre o final da década de 1960 e o in ício dos anos 197015.

Nao duas as principais d ireções de investigação que se delineiam neste período. A prim eira é co n stitu íd a po r um con jun to de estudos h istó ricos que descrevem o papel exercido pelos sis tem as p rodu tivos na afirm ação h istó ri­ca das re lações de p rodução c a p ita lis ta s16, U m a h is tó ria d a pena, que até aquele m om ento era rep resen tad a co m o um progresso con tín u o da c iv iliza­ção ju ríd ica em direção à rac io n alid ad e e à hum an ização da punição , agora é descrita com o um a concatenação de estra tég ias com as q u a is a ordem cap i­talista im pôs, no tem po, suas fo rm as p ecu lia res de subord inação e repressão de classe. Já a segunda d ireção de investigação se o rien ta para as prá ticas contem porâneas dos sis tem as de co n tro le e, sobretudo , do d ispositivo ca rce­

15 Ver sobretudo a crítica na perspectiva marxista feita por Alvin Gouldner aos labelling theorists no seu Per Ia sociologia. Ri/movo e critica delia sociologia dei nostri tempi, trad. it. Nápoles, Liguori, 1977. Seria simplista remeter as diver­sas orientações que se desenvolveram neste período no âmbito da criminologia crítica apenas à influência teórica do marxismo. Surgem, por exemplo, correntes anarquistas, que se consolidarão posteriormente no movimento abolicionista, e, sobretudo, são lançadas as bases para o nascimento das diversas criminologias feministas. Para uma reconstrução da história da criminologia crítica em todas as suas correntes (embora lim itada ao contexto europeu), das suas origens até a metade dos anos 1990, ver R. Van Swaningen, Criticai Criminology. Visions froni Europe. Londres, Sage, 1997.16 M. Foucault, Sorvegliare e punire, trad. it. Turim, Einaudi, 1976 [N. do T.: edição brasileira Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes, 2002, 26a ed.; tradução de Raquei Ramalhete]; M. Ignatieff, Le origini dei peninteziario. Sistema carcerario e rivoluzione industriale inglese 1750-1850, trad. it. Milão, Mondadori, 1982; Rusche e Kirchheimer, Pena e struttura sociale, cit.; D. Rothman, The Discovery o f the Asyliim. Social Order and Disorder in the New Republic. Boston, Little Brovvn, 1971; D. Melossi e M. Pavarini, Cárcere efabbrica. Bolo­nha, II Mulino, 1977 [N. do T.: edição brasileira Cárcere e fábrica. Rio de Janeiro, Kevan/ICC, 2006, tradução de Sérgio Lamarão],

Page 36: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

rário. A análise se concentra, aqui, no papel desempenhado pelos aparelhos : repressivos em relação às dinâmicas econômicas atuais e, em particular, em relação ao funcionamento do mercado de trabalho nas sociedades industria­lizadas.

A convergência dessas duas direções de investigação dá forma, final­mente, a uma crítica materialista da penalidade. O fio condutor da economia política da pena é construído pela hipótese geral segundo a qual a evolução ; das formas de repressão só pode ser entendida se as legitimações ideológi­cas historicamente atribuídas à pena forem deixadas de lado. A penalidade absorve uma função diversa e posterior em relação à função manifesta de controle dos desvios e defesa social da criminalidade. Esta função “latente” pode ser descrita situando-se os dispositivos de controle social no contexto - das transformações econômicas que perpassam a sociedade capitalista e as contradições que delas derivam. Tanto a afirmação histórica de determina­das práticas punitivas quanto a permanência dessas práticas na sociedade contemporânea devem ser reportadas às relações de produção dominantes, às relações econômicas entre os sujeitos e às formas hegemônicas de orga- . nização do trabalho.

A penalidade se inscreve num conjunto de instituições jurídicas, políticas e sociais (o direito, o Estado, a família), que se consolidam historicamente , em função da manutenção das relações de classe dominantes. Não é possível j descrever os processos de transformação que interessam a essas institui- • ções se não se levar em conta os nexos que ligam determinadas expressões j da dominação ideológica de classe no interior da sociedade às formas de dominação material que se manifestam no âmbito da produção. j

O controle do desvio enquanto legitimação aparente das instituições pe- ; nais constitui, pois, uma construção social por meio da qual as classes domi- j nantes preservam as bases materiais da sua própria dominação. As institui- i ções de controle não tratam a criminalidade como fenômeno danoso aos interesses da sociedade em seu conjunto; ao contrário, por meio da reprodu­ção de um imaginário social que legitima a ordem existente, elas contribuem para ocultar as contradições internas ao sistema de produção capitalista. Em < outras palavras, numa sociedade capitalista o direito penal não pode ser co- í locado a serviço de um “interesse geral” inexistente: ele se torna, necessari­amente, a expressão de um poder de classe.

Por outro lado, porém, o caráter complexo das relações entre estrutui econômica material e instituições punitivas não pode ser subestimado cas se queira ev itar a recolocação de um paradigm a teórico abalado pel

36

Page 37: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

determinismo e pelo economicismo. Esse problema já era eficazmente ilus­trado por Georg Rusche em seu já célebre artigo de 1933, no qual definia as linhas teóricas da economia política da pena:

É necessário que não se confunda a independência teórica do fenô­meno criminal e da luta conduzida contra ele, empreendida por meio da argumentação histórica e econômica, com a completa clarifica- ção do problema. As forças às quais se reconhece eficácia através de uma análise deste tipo não são as únicas que contribuem para determinar o objeto da nossa pesquisa, que, por conseguinte, é im­perfeita e limitada em muitos aspectos .

A ligação entre economia e penalidade não deve ser, pois, considerada como resultado de um automatismo, como uma relação mecânica mediante a qual a superestrutura ideológica da pena possa ser deduzida, de modo linear, da estrutura material das relações de produção. Ainda que ocupe uma posição de proeminência em relação a outros fatores sociais, o universo da economia simplesmente contribui para definir a fisionomia histórica dos diversos sistemas punitivos. Porém, de acordo com Rusche, esta perspec­tiva materialista de análise da penalidade estava ausente de todas as corren­tes criminológicas, de derivação sobretudo positivista, que lhe eram contem­porâneas:

Elas não mantêm nenhuma ligação com a teoria econômica, e por- , tanto não se reportam à base material da sociedade, e nem sequer são historicamente orientadas. Isso significa que elas pressupõem uma constância na estrutura social que na realidade não existe e que absolutizam^ de modo inconsciente, as condições sociais reais do observador .

Trata -se, portanto, de superar uma dimensão teórica da criminologia enquanto ciência da criminalidade, como saber-poder sobre as causas indi­viduais e sociais do desvio, e de construir uma crítica histórico-econômica da formação dos sistemas repressivos. A emergência de formas determina­das da penalidade é o resultado da convergência de forças culturais, políti­cas e sociais, que embora não sendo o reflexo necessário dé determinadas articulações das relações de produção, estão intimamente conectadas a es­

G. Rusche, “II mercato di lavoro e 1’esecuzione delia pena. Riflessioni per una sociologia delia giustizia penale”, trad. it. in La Questione crininale, 2, 1976, p. 522.18 Idem, pp. 521-522.

Page 38: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

sas últimas, A estrutura material da sociedade informa a geografia das rela­ções de domínio e subordinação que aí prevalecem e, ao mesmo tempo, acelera o processo de consolidação das instituições sociais que reúnem con­dições de favorecer a sua reprodução. A história da pena deverá, por conse­guinte, tornar-se uma história econômica e social dos aparelhos repressivos que se constituem como dispositivos reguladores das relações de ciasse. Ela é “algo mais do que uma história do suposto desenvolvimento particular de uma ‘instituição’ legal qualquer. Ela é a história das relações entre as ‘duas nações’ [..,] que compõem a população, os ricos e os pobres” 19.

O corre aqui, evidentem ente, uma profunda ruptura com relação à historiografia jurídico-penal tradicional. As transformações históricas da pena representam não o resultado do progresso da sociedade, mas, pelo contrá­rio, a evolução das estratégias com as quais a primeira das “duas nações” sempre impôs sua própria ordem social à segunda. Contando com a contri­buição de Otto Kirchheimer, Georg Rusche escreverá a história destas duas nações num livro de título definitivo, Punição e estrutura social. Publicada em 1939, essa obra ficaiá. (odavia, por muito tempo esquecida. A economia política da penalidade desaparecerá por aproximadamente 30 anos do hori­zonte criminológico e sociológico. Apenas em 1969, com a reedição desse livro, o programa teórico de Rusche será finalmente retomado pela nascente criminologia crítica.

Não é difícil compreender as razões do esquecimento e da posterior redescoberta. O texto de Rusche e Kirchheimer vem à luz pela primeira vez nos anos 1930, em circunstâncias históricas particularmente adversas ao marxismo nos Estados Unidos e às ciências sociais na Europa. O advento dos regimes totalitários após o segundo conflito mundial e de uma recons­trução pós-bélica que enfatizará uma concepção tecnocrática dos proble­mas sociais e, conseqüentemente, do desvio, certamente não estimulam o desenvolvimento das perspectivas críticas apresentadas em Punição e es­trutura social. No entanto, no contexto muito diferente dos anos 1960 e 1970, parece finalmente estar colocado o espaço intelectual e político para uma crítica materialista das instituições repressivas, um espaço no qual a criminologia crítica e a economia política da pena ganham uma posição de destaque.

19 Jdem, pp. 528.

38

Page 39: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

N ascim ento da sociedade indu stria l c disciplinamento do proletariadoAs hipóteses centrais de R u sch e são duas. A p rim eira é que qualquer

sistema repressivo deve, necessariam ente , inspirar-se num a lógica de p re ­venção: o ob jetivo imediato das penas é d issuadir os c r im inosos em potencia l de violar as leis. Por outro lado, p orém , são as classes subord inadas que cometem esses crimes - sobre tudo con tra a propriedade - e é para elas que o sistema penal se dirige se le tivam ente . A segunda hipótese é que as m odali­dades com as quais se concre tiza o ob je tivo da prevenção variam historica­mente em re lação ao universo da eco n o m ia e, sobretudo, à s i tuação do m er­cado de trabalho:

Ensina a experiência que os delitos são com etidos, em sua m aior parte, p o r aqueles que pertencem às classes sobre as quais pesa uma opressão social m ais forte [...] A pena, portan to , se não se quer negar a sua própria função, deve ser estabelecida de tal m odo que as cam adas potencialm ente crim inosas prefiram, sem dúvida, através de um a consideração racional, não com eter as ações proibidas, para não serem vítimas de punição" .

As classes sociais despossuídas constituem, assim, o objetivo principal das instituições penais. A história dos sistemas punitivos é, nessa perspecti­va, urna história das “duas nações” , isto é, das diversas estratégias repressi­vas de que as classes dominantes lançaram mão através dos séculos para evitar as ameaças à ordem social provenientes dos subordinados.

As diversas orientações da política penal se articulam a partir das condi­ções materiais das classes pobres. Para serem eficazes, as instituições e práticas repressivas devem impor, a quem ousa violar a ordem constituída, condições de existência piores do que as garantidas a quem se submeter a ela. Numa economia capitalista, isso significa que será a condição do prole­tariado marginal que determinará os rumos da política criminal e, por conse­guinte, o regime de “sofrimento legal” imposto àqueles que forem punidos por desrespeito às leis. Em outras palavras, “todo esforço em prol de uma reforma no tratamento do delinqüente encontra o seu próprio limite na situ­ação do estrato proletário mais baixo, socialmente significativo, que a socie­dade usa como parâmetro para quem comete ações criminosas”21.

20 Idem, pp. 523.21 Idem, pp. 524.

39

Page 40: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

A evo lução da pena lidade não é, portanto , o resu ltado d e re fo rm as socia is e ju ríd icas cad a vez m ais am biciosas e p rogressistas. E x iste , de fa to , um lim ite estru tu ra l a q u a lq u er p rocesso de re fo rm a e c iv ilização d as penaS, e este lim ite é rep resen tad o pelo p rincíp io da less e lig ib ility (isto é, d a m en o r p re ferib ilidade) da pena , ao qu al todo sistem a de rep ressão deve adequar-se .

N as eco n o m ias p ré -cap ita lis tas , a cond ição das c lasses m arg in a is e ra defin ida p o r fatores antes de tudo políticos, que estab e lec iam as m argens de exp lo ração d a fo rça de traba lho conform e um a estra tificação socia l b asead a em laços de serv idão e d ep en d ên cia pessoal das c lasses su b a lte rn as para com as c lasses dom inan tes. P orém , com a afirm ação do m odo de p ro d u ção cap ita lista , a cond ição do p ro le ta riado se torna um a função p rin c ip a lm en te econôm ica: a cond ição m ateria l do pro letariado é de term inada d ire tam en te no in te rio r dos p rocessos de o rgan ização e de d iv isão do traba lho .

S ão as d inâm icas inv isíve is e anônim as do m ercado que co n fe rem à fo r­ça d e trab a lh o o seu “p reço ju s to ” , e é um a lei eco n ô m ica que o rien ta a fixação do preço: q uan to m aio r for a oferta de trabalho , m en o r será o seu valo r e p iores serão as cond ições do pro letariado . D a í deriva , de aco rdo com o p rincíp io d a less e lig ib ility , q u e os períodos h istóricos em q u e oco rre um surp lus de fo rça de traba lho serão necessariam ente ca rac te rizados p o r um agravam en to das penas.

A s m assas sem trabalho, que diante da fom e e da necessidade tendem a com eter delitos ditados pelo desespero, só podem ser contidas atra­vés de penas cruéis. N um a sociedade onde os trabalhadores são escas­sos, a execução penal tem um a função to talm ente diversa. Q uando alguém que quer trabalhar encontra trabalho, o estrato social m ais bai­xo é form ado por trabalhadores não qualificados e não por desem pre­gados que se encontram num a situação de necessidade. A execução penal pode, assim , contentar-se em obrigar ao trabalho quem a ele se recusa e ensinar aos delinqüentes que eles se contentem com o que é suficiente para um trabalhador honesto viver .

O n asc im en to da p risão se co loca, portanto , na passag em de um reg im e penal que ap o n ta para a destru ição do corpo do condenado , so b re o qual se reflete o p o d er abso lu to do m onarca , para um a fo rm a d e p un ição que poupa o corpo a fim de que, n a sua p rodu tiv idade, se ev idencie o p o d er econôm ico re la tivo do cap ita lis ta . U m a no v a concepção do tem po, de um lado , e um a

22 Idem, pp. 526-527.

40

Page 41: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

universalização do p rinc íp io da troca d e equivalen tes, do outro , exp licam a afirm ação h istó rica p ara le la do contrato como fixação do tempo de trabalhoe da sentença como fixação do tempo de reclusão21.

Punição e estrutura social desenvo lve estas linhas teó ricas e as em prega na análise h istó rica dos reg im es pun itivos da Idade M éd ia ta rd ia até os anos30 do sécu lo X X . N este con tex to , o conceito da less eligibility recebe um a elaboração m ais com plexa e é ap licado à análise de p rocessos h istó ricos tais como a transição da eco n o m ia feudal para o m ercan tilism o e, posterio rm en­te, o advento d a R evo lução Industrial.

A origem da pena de ten tiv a está inserida no contex to das transform ações .sociais que o co rreram n a E uropa nos sécu los X V I e X V II. N aquele período, um a repentina redução dem ográfica, ligada em parte à G u erra dos T rin ta Anos, hav ia d e term in ad o um a dram ática carência de m ão-de-obra , o que resultou na e levação p ro g ressiv a dos salários. E ssa situação induziu os go ­vernos dos pa íses eu ro p eu s eco n o m icam en te m ais av an çad o s a rev er as suas políticas em re lação à pobreza. A m adurecia a id é ia de que os pobres em condições de traba lhar deveriam ser obrigados a fazê-lo. A través da im posi­ção do trabalho, to rnava-se possível enfrentar, ao m esm o tem po, a praga social da vagabundagem e a praga econôm ica do aum ento dos salários, p ro ­vocado pela escassez de força de trabalho.- - Essa nova filosofia insp ira a construção das prim eiras institu ições desti­nadas à rec lusão dos pobres: Bridewell, na Ing laterra , Hôpital Général, na França, e Zuchthaus e Spinhaus, na H olanda. A reclusão co m eça assim a ser proposta com o estra tég ia para o con tro le das classes m arg inais. A sua u tili­dade, independen tem ente das cam adas da população às quais pode ser ap li­cada (pobres, vagabundos, p rostitu tas, crim inosos), consiste no fa to de que agora o çe rp o é valo rizado por encerrar um a po tencia lidade p rodutiva, e os sistem as de con tro le têm in ício concen trando-se nas atitudes, na m oralidade, na alm a dos ind iv íd u o s. P rogressivam en te , a detenção se afirm ará com o

23 “A privação da liberdade por um período determinado preventivamente pela sen­tença do tribunal é a forma específica na qual [...] o direito penal moderno burguês- capitalista realiza o princípio da retribuição equivalente. Trata-se de um meio in­consciente, mas profundamente ligado à idéia do homem abstrato e do trabalho humano abstrato medido pelo tempo” (E. B. Pasohukanis, La teoria generale dei diritto e il marxismo, trad. it. [N. do T.: edição portuguesa A teoria geral do direito e o marxismo. Coimbra, Centelha, 1972, tradução de Soveral Martins], in U. Cerroni (org.), Teorie sovietiche dei diritto. Milão, Giuffrè, 1964, p. 230.

Page 42: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

m odalidade hegem ônica da punição, dando origem assim ao “grande internamento” de que fala Foucault. No momento em que esta hegemonia estiver definitivamente consolidada, o que vai mudar, segundo o princípio da less eligibility, serão os regimes de reclusão, isto é, as condições de vida impostas aos detidos.

Uma vez, mais, as intenções humanitárias desempenham um papel com­pletamente secundário em tudo isso. As reformas sustam o passo, quando não retrocedem, toda vez que o desemprego cresce, reduzindo novamente o valor do trabalho. Um exemplo significativo é dado pela Inglaterra do início do século XIX, quando um novo surplus de força de trabalho orienta a política penal no sentido da reintrodução de métodos punitivos cruéis e destrutivos, que parecem decretar momentaneamente a falência dos ambiciosos projetos iluministas de reforma:

Já tínhamos observado que o movimento reformador encontrou um terreno fértil só porque os princípios humanitários cm que se inspirava coincidiam com as necessidades da economia da época, mas agora, enquanto nos esforçávamos para dar expressão prática a essas novas concepções, o fundamento do qual nós havíamos partido já havia, pelo menos em parte, deixado de existir .

Quando a utilidade econômica dos novos sistemas punitivos é menor, as mesmas medidas introduzidas pelo reformismo humanitário podem voltar a assumir a crueldade que as reformas pareciam ter confiado ao passado:

O trabalho no cárcere torna-se, assim, um instrumento de tortura e as autoridades mostravam-se cada vez mais hábeis em inventar novos sistemas; ocupações de caráter exclusivamente punitivo tornavam- se extremamente fatigantes^ prolongadas por períodos de tempo absolutamente insuportáveis' .

No centro da análise de Rusche e Kirchheimer encontramos as trans­formações descritas no primeiro livro do Capital. Na seção VII, Marx enfrenta a questão da acumulação primitiva, estágio pré-histórico do capital, no qual o sistema capitalista teve criadas as condições para o seu próprio desenvolvi­mento, ou seja, a destruição do sistema de produção agrícola-artesanal e a transformação do trabalho aí empregado em força de trabalho assalariada. A contradição constitutiva deste processo fica logo clara: se de um lado o

24 Rusche e Kirchheimer, cit., p. 153.25 Idem, p. 191.

42

Page 43: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

capital libera o trabalho dos vínculos servis e da dependência pessoal que, até aquele momento, o haviam refreado, por outro sujeita-o a uma nova forma de subordinação. A “liberação” do trabalho advém de uma expropriação dos produtores que os submete a um nível mais alto de servilismo:

Assim, o movimento histórico que transforma os produtores em operários assalariados se apresenta, de um lado, como sua libertação da servidão e da coerção corporativa; e para os nossos historiógrafos burgueses só existe esse lado. Mas, por outro lado, esses recérn- iibertos só se tornam vendedores de si mesmos após terem sido espoliados de todos os seus meios de produção e de todas as garantias para a sua existência, oferecidas pelas antigas instituições feudais" .

As massas de camponeses em fuga após o cercamento dos campos diri- gèm-se para as cidades, engrossando as fileiras de vagabundos e pobres. Esta força de trabalho ern potencial, expropriada dos poucos meios de sustento de que dispunha e separada violentamente do próprio ambiente, revela-se a princípio incapaz de adaptar-se às novas condições de produção e reluta em se submeter à nova organização do trabalho que se afirma nas fábricas. Marx detém-se nas práticas repressivas que atingiam as massas expropriadas:

Os pais da atual classe operária foram punidos, num primeiro mo­mento, ao serem transformados em vagabundos e em miseráveis. A legislação tratou-os como delinqüentes voluntários e partiu do pres­suposto de que dependia da sua boa vontade continuar a trabalhar nas antigas condições não mais existentes .

Pena e subsunção real do trabalho ao capitalUma vez mais, o problema é a constituição do proletariado, isto é, a

transformação do trabalho em capital produtivo de mais-valia. A afirmação do regime de fábrica dirige o processo que Marx define como “subsunção real” do trabalho: todas as formas do trabalho pré-capitalista são progressi­vamente reduzidas à forma geral do “trabalho abstrato”. Os produtores são :assim transformados em força de trabalho social e o trabalhador coletivo sucede o trabalhador individual:

Com o desenvolvimento da submissão real do trabalho ao capital e, por conseguinte, do modo de produção especificamente capitalista,o verdadeiro agente do processo de trabalho total não é o trabalhador

26 Marx, 11 capitale, cit., p. 779.11 Idem, p. 797.

Page 44: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

individual, mas sim uma força de trabalho cada vez mais combinada socialmente, e as diversas forças de trabalho cooperantes que formam a máquina produtiva total participam, de diversas maneiras, do proces­so imediato de produção de mercadorias .

Qual foi então o papel das práticas punitivas no processo de subsunção real do trabalho? E qual foi a função da prisão no controle das contradições nas quais este processo se baseia?

Do ponto de vista da economia política da pena, a contribuição das insti­tuições e das tecnologias da pena foi, nesse sentido, fundamental: a penitenciária nasce e se consolida como instituição subalterna à fábrica, e como mecanismo pronto a atender as exigências do^nascente sistema de produção industrial, A estrutura da penitenciária, sob o‘perfil tanto organizativo quanto ideológico, não pode ser compreendida se, paralelamente, não for observada a estrutura dos locais de produção; é o conceito de disciplina do trabalho que deve ser proposto aqui como teruno que faz a mediação entre cárcere e fábrica. Todas as instituições de reclusão que tomam forma no final do século XVIII co- dividem uma idêntica lógica disciplinar que as torna complementares à fábrica:

Elas se caracterizam por serem incumbidas pelo Estado da sociedade burguesa da gestão dos vários momentos da formação, produção e reprodução do proletariado de fábrica; elas são um dos instrumentos essenciais da política social do Estado, política que persegue o objetivo de garantir ao capital uma força de trabalho que - por hábitos morais, saúde física, capacidades intelectuais, conformidade às regras, hábito à disciplina e à obediência etc. - possa facilmente adaptar-se ao regime de vida na fábrica em seu conjunto e produzir, assim, a quota máxima de mais-valia extraível em determinadas circunstâncias .

A prisão se consolida então como dispositivo orientado à produção e à reprodução de uma subjetividade operária. Deve-se forjar, na penitenciária, uma nova categoria de indivíduos, indivíduos predispostos a obedecer, seguir ordens e respeitar ritmos de trabalho regulares, e sobretudo que estejam em condições de interiorizar a nova concepção capitalista do tempo como medida do valor e do espaço como delimitação do ambiente de trabalho. Delineiam- se aqui os contornos de uma economia política do corpo, de uma tecnologia do controle disciplinar que age sobre o corpo para governá-lo enquanto

28 Marx, II capitale. Libro I. Capítulo VI, Inédito, trad. it. Florença, La Nuova Itália, 1969, p. 74.29 Melossi e Pavarini, Cárcere e fabbrica, cit., p. 70.4 4

Page 45: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

produtor de mais-valía e que, juntamente com outros corpos “cientificamente” organizados, torna-se capital. Como escreve Melossi:

Tal disciplina é condição fundamental para a extração de mais-valia e, portanto, o único ensinamento real que a sociedade burguesa tem a propor ao proletariado. Se fora da produção pode imperar a ideologia jurídica, no seu interior opera a servidão, a desigualdade. Mas o local da produção é a fábrica. Eis a razão pela qual a função insti­tucional que primeiro a casa de trabalho e depois a prisão assumem é o aprendizado, por parte do proletariado, da disciplina de fábrica .

Mas a reconstrução do nascimento do cárcere e da sua função na formação histórica do proletariado industrial constitui apenas uma vertente do problema. A outra vertente é representada pelo papel que este dispositivo de controle desenvolve na reprodução da força de trabalho assalariada. Nesse sentido, toma-se indispensável considerar tanto a dimensão instrumental quanto a dimensão simbólica da instituição carcerária. A dimensão instrumental nos permite iluminar as origens da penitenciária e as funções econômicas imediatas que ela assumia, sendo a principal delas a produção de uma força de trabalho disciplinada e disponível à valorização capitalista. A dimensão simbólica, por sua vez, permite-nos explicar o motivo do “sucesso histórico” aparente da instituição carcerária. O cárcere representa a materialização de um modelo ideal de sociedade capitalista industrial, um modelo que se consolida através do processo de “desconstruçâo” e “reconstrução” contínua dos indivíduos no interior da instituição penitenciária. O pobre se toma criminoso, o criminoso se torna prisioneiro e, enfim, o prisioneiro se transforma em proletário:

Porém, uma vez reduzido o prisioneiro a sujeito abstrato, uma vez “anulada” a sua diversidade [...], uma vez colocado diante das necessidades materiais que não pode mais satisfazer aujonomamente, tornado assim completamente dependente da/à soberania adm i­nistrativa, enfim, é imposta a este produto da máquina disciplinar a única alternativa possível à própria destruição, à própria loucura: a forma moral da sujeição, isto é, a forma moral do status de proletário. Melhor dizendo: a forma moral de proletário é aqui imposta como a única condição existencial, no sentido de única condição para a sobrevivência do não-proprietário .

J0 D. Melossi, “Criminologia e marxismo. Alie origini delia questione penale nella società de *11 Capitale’”. In La questione c rim inale, I, 2/1975, p. 328.1 Melossi e Pavarini, Cárcere e fabbrica, cit., p. 223.

45

Page 46: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

Esta dinâmica da produção de subjetividade através do regime carcerário nos conduz diretam ente às reflexões de Althusser sobre os “aparelhos ideológicos dê Estado”. Segundo Althusser, é exatamente nos processos de subjetivação dos indivíduos, ao perpetuar as relações de produção nas quais a subord inação m aterial dos sujeitos se m anifesta, que se baseia o funcionamento da ideologia32.

A instituição carcerária é pois, certamente, uma tecnologia repressiva, uma vez que impõe ao detento uma situação de privação absoluta que faz dele um sujeito totalmente dependente do aparelho de poder que o subordina. Mas é também um poderoso dispositivo ideológico, uma vez que lhe impõe a submissão ao trabalho como único caminho para sair desta condição. Revela- se, assim, o paradoxo de um mecanismo que, de um lado, produz privação, falta, carência, e, de outro, impõe as próprias engrenagens disciplinares como remédio para esta condição.

A prisão cria o sícitus de detento e, ao mesmo tempo, impõe ao indivíduo trabalho, obediência e disciplina (elementos constitutivos desse status) como condições que devem ser satisfeitas, a fim de que possa, no futuro, livrar-se delas. Ela evoca assim, nos indivíduos, uma representação imaginária de si mesmos em relação à própria condição material. A privação extrema imposta ao preso é, assim, representada como conseqüência óbvia e quase natural dá recusa da disciplina do trabalho33. O princípio da troca de equivalentes torna a instituição carcerária ideologicamente aceitável, do mesmo modo que torna “justo” um contrato de trabalho. Neste não há abuso ou excesso, mas sim troca entre iguais e retribuição ao justo preço:

O conteúdo da pena (a execução) está, deste modo, ligada à sua forma jurídica, do mesmo modo que, na fábrica, a autoridade garante que a exploração pode assumir o aspecto de contrato .

Vemos emergir aqui uma contradição estrutural da sociedade capitalista: a contradição entre uma igualdade form al e uma desigualdade fundamental.

32 L. Althusser, La Stato e i suoi apparati, trad. it. Roma, Riuniti, 1997 [N. do T.: edição brasileira. Aparelhos ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro, Graal, 1987, 3aed, introdução crítica de J.A.Guilhon Albu­querque, tradução de Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro],33 Ver também a definição althusseriana de ideologia: “Na ideologia encontra-se representado não o sistema das relações reais que governam a existência dos in­divíduos, mas sim a relação imaginária destes indivíduos com as relações reais nas quais eles vivem" (idem, pp. 185-186; itálico meu).34 Melossi e Pavarini, Cárcere e fabbrica, cit., p. 87.

46

Page 47: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

Esta é observável seja no universo econômico, no qual se exprime na relação entre a esfera da circulação (igualdade) e a esfera da produção (desigualdade), seja na instituição carcerária, onde se traduz no conflito insolúvel entre o princípio de retribuição e as práticas disciplinares. A ideologia retributiva- legalista oculta a realidade de disciplina e violência que se produz no interior da instituição penitenciária, assim como a ideologia contratual-igualitária esconde a realidade de exploração e subordinação que se produz na fábrica. Q objetivo, coerentemente, é reproduzir um proletariado que considere o salário ' com o ju s ta retribu ição do p ró p r io tra b a lh o e a p e n a co m o ju s ta m edida dos seus p ró p rio s crim es.

E ncarceram ento e desem prego na época fordistaA partir da segunda metade dos anos 1970, a criminologia marxista começa

a utilizar os conceitos da economia política da pena na análise dos sistemas punitivos contemporâneos. O paradigma materialista que Rusche e Kir­chheimer tinham elaborado para descrever as transformações históricas dapenalidade é, assim, re tom ado para investigar as re lações entre sistema, e c o ­nôm ico fo rd is ta e estra tég ias da repressão pena l.

A passagem da investigação histórica à dim ensão contem porânea comporta, porém, dois problemas. O primeiro diz respeito à “tradução” dos conceitos. Enquanto Rusche e K irchheimer descreveram o processo de evolução da penalidade ao longo de um arco histórico que se estende do feudalismo à afirmação do capitalismo, o horizonte deve reduzir-se agora à relação entre economia e pena numa fase específica do capitalismo. Como é possível aplicar hipóteses concebidas originariam ente num a perspectiva histórica à análise das políticas penais na sociedade industrial ou pós-industrial? O segundo problema é de ordem metodológica e diz respeito à construção de “representações eficazes” da economia e da penalidade contemporâneas. Em outras palavras, como podem ser individualizados instrumentos analíticos adequados para descrever a situação econômica atual, as estratégias repres­sivas contemporâneas e o laço que as une?

O percurso teórico através do qual se consegue dar uma resposta a essas interrogações está intimamente ligado às circunstâncias históricas particulares em que ocorreu este aggiornamento da economia política da pena. Estamos no final dos anos 1970, nos Estados Unidos. É aqui que se inicia, pouco depois da publicação de P un ishm ent a n d Social Structure, o processo de atualização da perspectiva materialista.

• A reestruturação capitalista está em curso já há alguns anos e seus primeiros -efeitos começam a ser percebidos, sobretudo o aumento do desemprego que se

47

Page 48: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

segue à expulsão de uma ampla fatia do trabalho desqualificado do setor indus- j trial. Começa-se a se falar em surplus population, isto é, uma força de trabalho em excesso no que tange à capacidade de absorção do mercado de trabalho. Essa força de trabalho se configura cada vez mais como uma reedição, no capitalismo tardio, do “exército industrial de reserva” marxista. Trata-se de uma massa de trabalho escassamente ou nada qualificada, expulsa pelo processo produtivo porque é extremamente numerosa, mas ao mesmo tempo extrema­mente eficaz como instrumento de controle das reivindicações salariais da força de trabalho ativa. Ela é, portanto, a principal candidata ao posto de “estrato proletário mais baixo” ao qual Rusche se referia em 1933.

Paralelamente, ocorre nos Estados Unidos uma significativa inversão de tendência na política criminal. As taxas de encarceramento, que desde a depressão de 1929 ao final dos anos 1960 foram mantidas em níveis par­ticularmente baixos, a partir dos primeiros anos da década de 1970 começam novamente a crescer, inaugurando uma tendência que assumirá proporções cada vez maiores nos anos subsequentes. A economia política da pena co­meça, então, a investigar conjuntamente esses fenômenos, indagando se eles eram completamente independentes ou se, ainda que não fosse possível indivi- ! dualizar, havia entre eles uma relação estrutural.

Um setor da criminologia marxista americana avança a hipótese de que o aumento paralelo do desemprego e do encarceramento constitui o momento , inicial de um processo de redefinição conjunta da relação entre economia e sistema repressivo. Delineia-se, assim, uma resposta aos problemas que se colocavam antes. A solução consistirá em assumir o desemprego como pa­râmetro da condição econômica e o encarceramento como medida da se­veridade do sistema penal. Richard Quinney oferece uma interpretação efi­caz das transformações em curso:

Incapaz de absorver o surplus no interior da economia política, o capi­talismo avançado pode apenas supervisionar e controlar uma população que agora é supérflua [...] O sistema penal é o recurso moderno para o controle do surplus de trabalho produzido pelo capitalismo tardio .

Em 1977, Ivan Jankovic será o primeiro a tentar aplicar o paradigma de Rusche e Kirchheimer à situação americana36. Ele parte de duas hipóteses. A

35 R- Quinney. Class, State and Crime. Nova Iorque, Longman, 1977, p. 131.36 I. Jankovic. “Labor Market and Imprisonment”, in Crime and Social Justice, 8, 1977, p. 17-31. Na realidade, merecem ser citadas pelo menos outras duas contribui­ções, muito anteriores à de Jankovic, mas não tão centrais do ponto de vista da sua

48

Page 49: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

primeira refere-se à “severidade” das penas: o agravamento das condições econômicas, isto é, o aumento do desemprego, corresponde a uma maior rigidez das sanções penais, isto é, um incremento das taxas de encarcera­mento. O núcleo da argumentação está ancorado no princípio da less eligibility: as penas se tornam tão pesadas que, por piores que sejam as condições oferecidas ao trabalhador “livre”, elas ainda são preferíveis ao s'tatus de criminoso “punido”.

A segunda hipótese diz respeito à “utilidade” das penas com relação ao mercado de trabalho. O recurso ao encarceramento desempenha a função de “regulação” do surp lus de força de trabalho, com o objetivo implícito de consolidar o exército industrial de reserva de que fala Marx. Nas palavras do próprio Jankovic:

O que eu proponho é uma reformulação da hipótese da “severidade” avançada por Rusche e Kirchheimer. quando a economia está em crise, as penas são mais severas (...) A segunda hipótese a ser veri­ficada é aquela segundo a qual o aumento do encarceramento tem a função de reduzir o desemprego. Esta hipótese de “utilidade” sus­tenta que os efeitos das mudanças nas políticas penais se refletem no mercado de trabalho’ .

Jankovic separa nitidamente as suas análises do comportamento das taxas de criminalidade. O pressuposto inicial é que estes fenômenos são observáveis independentemente da criminalidade e que a relação entre desemprego e

influência sobre os desenvolvimentos posteriores da economia política da penalida- gde. A primeira é a de T. Sellin, “Research Memorando on Crime in the Depression”, in }§ocial Science Research Council, Boletim 27, Nova Iorque, 1937. Essa publicação é

importante porque, antes mesmo da publicação de Punishment and Social Structure, réonfere destaque às intuições de Rusche (Sellin trabalha com o artigo de 1933). Em iparticular no capítulo VII (pp. 109 e ss.), Sellin considera o conceito da less eligibility como um possível ponto de referência para os desdobramentos futuros da pesquisa

Vsõbre economia e sistema penal. A segunda contribuição é de L. T. Stem, “The Effect iM the Depression on Prison Commitments and Sentences”, in Journal o f the American

Institute o f Criminal Law and Criminology, vol. XXXI, 1940-1941, pp. 696-711. Siern se propõe aqui, explicitamente, a testar as hipóteses de Georg Rusche, verifi­cando se à depressão econômica nos Estados Unidos correspondeu um endureci­mento das condenações à pena de detenção (o case study conduzido por Stern limitou-se, contudo, a duas penitenciárias do estado da Pensilvânia).37 Jankovic, “Labor Market and Imprisonment”, cit., pp. 20-21.

Page 50: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

encarceramento é, por conseguinte, direta38. Todavia, examinando o caso dos Estados Unidos entre 1926 e 1974, os resultados são ambíguos. De um lado, é confirmada a hipótese da “severidade”: encarceramento e desemprego seguem, de fato, a mesma direção e esta tendência não é influenciada pelo andamento das taxas de criminalidade. De outro, porém, não se registra nenhum impacto significativo das taxas de encarceramento no mercado de trabalho: a hipótese de um efeito imediato do aparelho repressivo em relação ao surplus de força de trabalho é desmentida. Com efeito, muito embora a população carcerária seja constituída em grande parte por desempregados, trata-se sempre de uma fração muito limitada para que ela possa exercer um impacto significativo sobre as dimensões do exército industrial de reserva.

Entre os anos 1970 e 1980 entram em cena outros trabalhas que têm como objetivo verificar as hipóteses de Rusche e Kirchheimer, e é uma vez mais e sobretudo a criminologia crítica norte-americana que investiga a relação entre desemprego e encarceramento. Mas, também nesses casos, a hipótese da severidade é sistematicamente confirmada e a da utilidade não encontra base de apoio39.

O fato é que, no período em que surgem essas análises, as medidas penais não constituem (ainda) o único dispositivo institucional de regulação do surplus de força de trabalho. Estamos, vale repetir, entre o final dos anos 1970 e os primeiros anos da década de 1980, quando a reestruturação indus­

38 É desse ponto de vista que a investigação de Jankovic se distancia notavelmen­te de outros estudos precedentes, os quais, embora tendo como hipótese uma relação entre economia e encarceramento, assumiam que a criminalidade ali exer­citasse um papel de mediação e que, conseqüentemente, fosse a verdadeira “cau­sa” das mudanças do sistema repressivo. Ver, por exemplo, D. A. Dobbins e B. M. Bass, “Effects of U nem ploym ent on W hite and Negro Prison Adm issions in Louisiana” , in Journal o f Criminal Law, Crhninology cind Police Science, 48, 1958,p p .522-525.39 Ver, sobretudo, D. Greenberg, “The Dynamics of Oscillatory Punishment Pro­cesses” , in The Journal o f Criminal Law and Crhninology, 4, 1977, pp. 643-651; e “Penal Sanctions in Poland: a Test of Al terna tive Models” , in Social Problems, XXVIII, 2, 1980, pp. 194-204; M. Yeager, “Unemployment and Imprisonment”, in The Journal o f Criminal Law and Crhninology, vol. 70, 4, 1979, pp. 586-588; D. Wallace, “The Political Economy of Incarceration Trends in late U. S. Capitalism: 1971-1977” , in The Insurgent Sociologist, vol. XI, 1, 1980, pp. 59-65. Para uma resenha que inclui trabalhos não considerados aqui, ver G. T. Chiricos & M. Delone, “Labor Surplus and Imprisonment: A Review and Assessment of Theory and Evidence”, in Social Problems, vol. 39, 4, 1992, pp. 421-446.50

Page 51: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

trial certamente já se iniciara, mas ainda não produzira os efeitos dramáticos que só viriam a ocorrer no decênio seguinte. Além disso, o assalto neoliberal ao Welfare State ainda não se abatera violentamente sobre as classes marginais. Isso significa que Estado social e medidas repressivas concorrem, nessa fase, para a gestão do excesso de força de trabalho, dividindo, em certa medida, as tarefas. Nem toda a população desempregada cai na rede repressiva da penalidade. Parte dela é “gerida” com medidas de w elfare e assistência social, que, de qualquer modo, começam a assumir conotações “punitivas”, por exemplo, através da crescente estigmatização social imposta aos benefi­ciários e da seletividade dos procedimentos de acesso.

O criminólogo marxista Steven Spitzer descreve este processo com acui­dade, quando afirma que o su rp lu s de força de trabalho pode ser subdividido em social ju n k e em so c ia l dynam ite , O primeiro termo se refere à parcela da população desempregada que representa um “detrito social”, inofensivo em relação aos aparelhos do p o d e r (e, portanto , passível d e m an o b ra p o r parte do Welfare State): o seg u n d o é a fração do surp lus po tencia lm en te exp losiva e, portanto, perigosa para a o rdem constituída, que d ev e ser tra tada pelo sistema repressivo ca rcerár io40. O increm ento do en ca rce ram en to não está, portanto, l igado genericam ente ao desem prego , mas s im ao desem p reg o que atinge alguns estratos sociais considerados perigosos à ordem constituída: minorias étnicas, imigrantes, jovens marginais41.

No âmbito da economia política da pena delineia-se, nesse momento, a tendência a abandonar as hipóteses “ortodoxas” formuladas por Rusche e retomadas por Jankovic, A dificuldade de provar a existência de uma relação de funcionalidade imediata entre sistema repressivo e mercado de trabalho sugere interpretações mais articuladas da relação entre economia e penalidade e uma reavaliação dos elementos çxtra-econômicos. A relação tende a ser estabelecida cada vez mais em termos qualitativos, medianfé a análise dos

40 S. Sptizer, “Toward a Marxian Theory of Deviance” , in Social Problems, vol. 22,5,1975.41 Para um interessante study case sobre o efeito da interação entre etnicidade, condição ocupacional e níveis de repressão nos Estados Unidos, ver G. T. Chiricos

. e W. D. Bales, “Unemployment and Punishment; an Empirical Assessm ent” , in Criminology, vol. 29,1 4, 1991, pp. 701-724; G. T. Lessan, “Macro-economic De- terminants of Penal Policy: Estimating the Unemployment and Inflation Influences and Imprisonment Rate Changes in the United States, 1948-1985” , in Crime, Law and Social Change, 16, 1991, pp. 177-198; G. S. Bridges; R. D. Crutchfíeld e E. E. Simpson, “Crime, Social Structure and Criminal'Punishment: White and Nonwhite Rates of Imprisonment”, in Social Problems, vol. 34, 4, 1987, pp. 345ss.

'■•51

Page 52: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

fatores sociais que convergem para a “qualificação” do desemprego: compo­sição étnica da população, relações de gênero, transformações abrangentes do mercado de trabalho etc42. A hipótese de um papel imediato das práticas repressivas na gestão do exército industrial de reserva parecia, pois, perder plausibilidade por conta da citada “divisão de trabalho” entre penalidade e welfare.

Na realidade, porém, uma conclusão desse tipo seria apressada. Nos úl­timos trinta anos a situação nos Estados Unidos mudou profundamente, tanto na vertente das políticas penais quanto na vertente das políticas sociais. O aumento das taxas de encarceramento, do qual Jankovic pôde entrever apenas o começo, foi tão intenso que levou a população carcerária ao nível mais alto de toda a história contemporânea americana; o ataque neoliberal ao Estado do bem-estar social prosseguiu ininterruptamente, até determinar, de fato, a substituição do “Estado social” por um verdadeiro “Estado penal”43.

Partindo dessas transformações, Bruce Western e Katherine Beckett re­colocaram a hipótese de uma relação de funcionalidade entre políticas penais e mercado de trabalho nos Estados Unidos44. Retornando a hipótese da “uti­lidade” das penas, eles sugerem que o enorme aumento das taxas de encar­ceramento dos últim os anos exerceu um sério impacto sobre as taxas de d e se m p re g o 45.

42 Ver, por exemplo, S. L. Myers e W. J. Sabol, “Unemployment and Racial Differenees in Imprisonment”, in Review o f Black Political Economy, vol,. 16, 1-2, 1987, pp. 189-209. Para um exemplo mais recente, que faz referência particular aos fatores políticos como elemento de mediação da relação entre economia e penalidade, ver D. Jacobs e R. E. Hei ms, “Toward a Political Modeí of Incarceration: A Time-Series Examinatiori of Multiple Explanations for Prison Admission Rates”, in American Journal o f Sociology, 2, 1996, pp. 323-357.43 “A desregulamentação econômica e a hiper-regulamentação penal caminham, na realidade, lado a lado. O desinvestimento social implica o super-investimento carcerário, que representa o único instrumento em condições de fazer frente às atribulações suscitadas pelo desmantelamento do Estado social e pela generaliza­ção da insegurança material que, inevitavelm ente, se difunde entre os grupos sociais colocados nas posições mais baixas da escala social” (L. Wacquant, Pa rola d ’ordine: tolleranza zero. La trasform azione dello stato penale nella società neoliberale, trad. it. Milão, Feltrinelli, 2000, p. 101).44 B. Western e K. Beckett, “How Unregulated is the U.S. Labor Market? The Penal System as A Labor Market Institution” , in American Journal o f Sociology, CIV, 4, 1999, pp. 1030-1060.45 Poder-se-ia acrescentar um outro efeito do encarceramento de massa, que é retirar os desempregados das estatísticas mediante o seu emprego na indústria da

52

Page 53: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

O caráter relativamente limitado das taxas de desemprego norte-americano nos anos 1980 e 1990 teria sido causado não pelas políticas de flexibilização e liberalização do mercado de trabalho (como sustenta a vulgata neoliberal), mas sim pelo incremento vertical do encarceramento, que teria ocultado uma parte da população desempregada, encerrando-a nas prisões americanas. Por outro lado, porém, o efeito penalizante que o encarceramento exerce sobre as possibilidades futuras de emprego da força de trabalho é tal que, para poder manter os níveis atuais de desemprego, os Estados Unidos deveriam intensificar o internamento em massa iniciado na segunda metade dos anos 1970, alimentando assim uma espiral cujo fim é difícil de se ver.

Analisando a composição de classe da população carcerária dos Estados Unidos, verificamos que a taxa de desemprego seria pelo menos dois pontos mais elevada do que a indicada pelas estatísticas oficiais. O aumento do percentual parece ainda mais significativo se levarmos em conta a população afro-americana: incluindo os detentos nas estatísticas, a variação neste caso seria de 7%. Isso significa dizer que o encarceramento em massa teria reduzido as taxas de desemprego dos afro-americanos em cerca de um terço. Enquanto nos países europeus sobrevivem algumas orientações de política social voltadas para a correção das distorções do mercado de trabalho e para remediar as desigualdades sociais daí resultantes, nos Estados Unidos se observa a tendência a substituir essas medidas sociais por políticas penais. A gestão do desemprego e da precariedade social parecer ter passado, em suma, do universo das políticas sociais para o da política criminal.

Mas se os Estados Unidos exibem a realidade sem disfarces de uma gestão repressiva das novas pobrezas que se materializa na progressiva convergência entre precarização social e autoritarismo penal, hoje um cenário semelhante parece desenhar-se também na Europa. Nas últimas duas décadas, as taxas de encarceramento cresceram de forma aguda em todos os países europeus, abatendo-se de modo desproporcional sobre a população desempregada, sobre os tóxico-dependentes e, nos últimos anos, sobre os imigrantes. Também na Europa, ademais, este processo de “hipertrofia” do sistema penal se produziu

segurança. A privatização dos cárceres é um fenômeno já consolidado nos Esta­dos Unidos, onde prisioneiros e serviços de segurança privada representam um dos mais promissores setores de emprego de mão-de-obra. Em suma, os pobres encontram trabalho exatamente no prison-industrial complex que nasce com o objetivo de encarcerar outros pobres am ericanos. Sobre a transform ação do encarceramento em em presa, ver, necessariam ente, N. C hristie, 11 business penitenziario. La via occidentale dei Gulag. trad. it. Milão, Eleuthera, 1996.

53

Page 54: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

para le lam en te à reestru turação do w elfare, num a singu lar s im b iose entre construção do Estado penal e destru ição das garantias sociais.

As análises críticas mais recentes voltadas ao contexto europeu deixam pouca m argem à dúvida. Analisando o caso inglês, Steven Box e Chris Hale puderam verificar tam bém na Inglaterra a existência de um a re lação direta entre m ercado de trabalho e práticas punitivas46. A períodos de crise ec o n ô ­m ica, co m o o a travessado pela Ing la terra a partir dos p rim eiros anos da década de 1970. correspondeu um increm ento vertical das taxas de en carce­ram ento devido a um a maior punitiv idade do aparelho repressivo:

A perspectiva “ radical” [...] afirm a que desemprego e encarceramento estão ligados, mas ao invés de olhar a criminalidade e as condenações como elementos de mediação entre as duas, ela concentrou-se na visão de que “o desemprego produz criminalidade” e nas maneiras pelas quais esta crença influencia direta ou indiretamente as decisões das cortes, os pareceres dos assistentes sociais c as práticas da polícia .

Segundo os dois autores, convem tornar distância das hipóteses “conspi- racionisías” que p intam o sistema punitivo como uma estrutura monolítica, perfeitam ente integrada e em condições de responder às “ necessidades do capita l” , e estender a observação ao conjunto dos fatores ideológicos e cultu­rais que incidem sobre a relação entre econom ia e pena48. O sistem a punitivo não guarda autonomia das dinâmicas ideológicas da sociedade: as instituições

46 S, Box e C. Hale, “Economic Crisis and the Rising Prison Population in England and Wales”, in Crime and Social Justice, 17, 1982, pp.20-35; S. Box e C. Hale, “Unemployment, Imprisonment and Prison Overcrowding”, in Contemporary Cri­ses-, 9, 1985, pp.209-228; e S. Box e C. Hale, “Unemployment, Crime and Imprison- ment, and the Enduring Probiem of Prísons Overcrowding” , in R. Mathews e J. Young (ed.), Confronting Crime. Londres, Sage, 1986, pp.72-99; C. Hale, “Economy, Punishment and Imprisonment”, in Contemporary Crises, 13, 1989, pp.327-349.47 S. Box. Recession, Crime and Punishment. Londres, MeMillan Education, 1987, p. 158.48 Para alguns exemplos deste “conspiracionismo”, ver os trabalhos já citados de Jankovie, Quinney e Wallaee e mais os seguintes: R. Vogel, “Capitalism and Incarceration” , in Monthly Review, vol. 34, 10, 1983, pp. 30-41; M. Colvin, “Controlling the Surplus Population: the Latent Functions of Imprisonment and Welfare in Late U. S, Capitalism”, in B. D. Maclean (ed.). The Poli ti cal Economy o f Crime. Ontario, Prentice Hall, 1986, pp. 154-165. Para uma perspectiva histórica, ver C. Adamson, “Tovvard a Marxian Penology: Captive Criminal Population as Economies Threats and Resources”, in Social Problems, vol. 31, 4, 1984.

54

Page 55: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

do “E stado penal” co-dividem represen tações e estereótipos dom inantes , que, por sua vez, são afetados pelas cond ições da econom ia . A gindo d e m odo particularm ente punitivo para c o m as c lasses subordinadas, os operadores do s is tem a penal não respondem a n ecess idades abstratas do capita l, das quais, aliás, é improvável que eles tenham consciência; eles se l im itam , isso sim, a to m ar dec isões de aco rdo co m suas próprias co n v icçõ es sobre a questão criminal e sobre as estra tégias p a ra enfrentá-la , entre elas a idéia dc que q u em vive em condições de pobreza e precariedade está mais inclinado a com eter crimes.

A relação entre desemprego e encarceram ento é mediada, por conseguinte , por um a percepção da marginalidade social com o am eaça à o rdem constituída, que se torna hegem ônica nos períodos d e crise econômica;

Quando a crise econôm ica se agrava, o Poder jud ic iário m anifesta crescente preocupação co m a possível am eaça à o rdem social, p ro ­veniente de “populações prob lem áticas” , dos hom ens desem pregados mais do que das mulheres, dos jo v en s mais do que tios adultos e dos negros mais do que dos brancos [...], e reage a essa “percepção” aum entando o recurso ao en carceram en to , sob re tudo no caso dc delitos contra a propriedade, n a expectativa de que u m a resposta deste tipo tenha um efeito in ib idor e incapacitador, e que, cm co n se ­qüência, possa neutralizar a am eaça .

O lim ite da economia política da penalidade ford istaComeça, assim, a delinear-se aquilo que nas primeiras páginas se anunciava

com o o lim ite da economia política da penalidade. A tradução dos conceitos de estrutura social e pena, nos term os d a re lação entre desem prego e en ca r­ceramento, que constitui u m a constan te da cr im inologia marxista , res tr inge indevidamente o campo de observação da relação entre econom ia e dispositivos de controle. As transformações que afe tam , sobretudo a partir dos p rim eiros anos da década de 1970, os d ispositivos de controle da sociedade c o n tem ­porânea, não podem ser referenciadas apenas às m utações do m ercado de trabalho e às taxas de desem prego. N a verdade, elas não const i tuem mais um a representação adequada da d inâm ica capitalista atual.

E m outras palavras, a evolução recente das tecnologias de controle deve ser inserida no contexto dos processos de m utação que p erpas­

49 S. Box e C Hale, “Unemployment, Imprisonment and Prison Overcrowding , cit., p. 217.

55

Page 56: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

sam a “estrutura social” no seu conjunto. Estamos falando, pois, das subjetividades do trabalho, das formas de organização da produção, das modalidades de exploração da força de trabalho contemporânea. Porém, do mesmo modo, deve-se também frisar que as taxas de encar­ceramento, que certamente constituem um indicador plausível da severidade de um sistema penal, não são uma exemplificação exaustiva das estratégias de controle social que vemos desenvolver-se.

Pode-se assim com preender em que sentido a econom ia política da penalidade fordista se revela inadequada para descrever as formas de produção de subjetividade que se delineiam no horizonte do controle social pós-fordista. As suas análises não levam em conta os processos de transformação do trabalho, limitando-se à observação do tratamento penal do desemprego, do “não-trabalho”.

O que devem os nos perguntar é se este “reducionism o” está efe­tivam ente presente na perspectiva m aterialista originalm ente definida por Rusche e Kirchheimer. Em outros term os, até que ponto é possível lançar mão dos instrum entos críticos oferecidos pela crim inologia m arxista? Poder-se-ia responder: até a m argem extrem a do capitalism o fordista, até o ponto de consecução da transição ao pós-fordism o que redesenha, em seu conjunto, a estrutura m aterial da produção à qual a econom ia po lítica da pena se dirige. Tentamos, pois, aproxim ar-nos deste limiar, retornando por um segundo ao paradigm a de Rusche e K irchheim er para valorizar alguns de seus elem entos que a crim inologia m arxista m ais re­cente parece deixar parcialm ente de lado.

Nas páginas iniciais d & Punição e estrutura social propõe-se uma definição geral do elo existente entre relações de produção e formas de repressão:

Todo modo de produção tende a descobrir formas punitivas que correspondam às próprias relações de produção. E, pois, necessário analisar a origem e o destino dos sistemas penais, o uso e o abandono de certas penas, a intensidade das práticas punitivas, assim como se estes fenômenos foram determinados pelas forças sociais, in primis por aquelas econômicas e fiscais .

Por outro lado, no já citado artigo de 1933, Rusche individualizava, como vimos, as linhas contingentes de transformação deste elo nas formações sociais capitalistas.

50 Rusche e Kirchheimer, Pena e strutlura sociale, cit., p. 46.

56

Page 57: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

No primeiro caso, delineia-se uma correspondência histórica e tendencial entre relações de produção e sistemas de controle. No segundo, ficam claros os termos em que esta relação se articula ciclicamente diante de determinadas circunstâncias históricas. Ademais, o princípio da less eligibility constitui, dc certo modo, o nexo de continuidade entre as tendências históricas de longo prazo e as contingências particulares da relação. Independentemente das situações específicas, tal princípio define as fronteiras nas quais a condição de quem se submete voluntariamente à ordem constituída deve, em geral, parecer preferível à de quem é punido por tê-la infringido.

Três elementos me parecem merecer aqui particular atenção. Em primeiro lugar, a relação entre estrutura social e penalidade é dinâmica. Tanto de um ponto de vista histórico quanto do da análise do presente, a relação se inscreve num processo de contínua transformação que recusa qualquer representação estática. O objeto da análise é constituído pela relação entre estrutura social e formas de controle, respectivamente nas suas macro-trajetórias históricas e nas suas micro-trajetórias cíclicas51. Em outras palavras, se a análise da história social pré-capitalista e capitalista nos permite afirmar que cada sistema de produção tende a descobrir formas de punir que correspondam às próprias relações de produção, a investigação sobre o contexto capita lis ta nos perm ite detectar as linhas ao longo das quais esta correspondência se modula de quando em quando, em consonância com a mudança de determinados fatores econômicos e sociais.

Além disso, a relação se revela complexa e tendencial. Por conta disso, não é possível estabelecer uma ligação definida e irreversível: os termos nos quais a relação se articula estão sujeitos a uma redefinição contínua, que depende de circunstâncias políticas, sociais e culturais. Rusche fala expli­citamente de correspondência entre sistemas de produção, e formas de punir como uma tendência de longo praztfj e de forças sociais que influem sobre aquela correspondência. Enfim, o princípio da less eligibility não é traduzível em um nexo imediato entre indicadores econômicos e indicadores penais, e menos ainda, conseqüentemente, na simples relação entre taxas de desemprego e taxas de encarceramento. É a situação do estrato proletário mais carente que constitui o limite externo a qualquer reforma do regime penal. Isso significa

51 Sobre a necessidade de distinguir as “macro-trajetórias” e as “micro-trajetóri- as” da relação entre economia e penalidade, ver sobretudo D. Melossi, “Punish- rnent and Social Action: Changing Vocabularies of Punitive Motive Within a Political Business Cycle”, in Current Perspectives on Social Theory, VI, 1985, p. 186.

57

Page 58: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

dizer que, na definição das fronteiras nas quais a less e lig ib ility opera, outros fatores sociais intervém para delinear a condição do proletariado e a sua relação com o regime p enaP 2.

Vale dizer que a expressão “a situação do estra to proletário mais baixo socialmente significativo” requer uma interpretação muito mais extensa do que a permitida pela referência ao desemprego ou ao mercado de trabalho. Ela remete, na realidade, à composição d a força de trabalho, às formas de organização da produção e às relações de classe, em seu co n ju n to 53. Isto é, devemos introduzir no nexo entre estrutura econômica e controle social aquele conjunto de transformações da produção que, ao definir a condição conjunta da força de traba lho contemporânea, inscreve este nexo no universo dos modos de organização do trabalho, de governo, do conflito de classe e de gestão d a m arg ina lidade social.

P odem os en tão am pliar o horizonte do p rincíp io da less e lig ib ility e situá-lo na en cru zilh ad a entre m ercado de trabalho,, governo do social e políticas repressivas. Os dois primeiros elementos determinam a “situação” do estrato proletário marginal que, por sua vez, define o espaço de ação das estratégias de co n tro le54. Porém , isso sign ifica ilum inar tam bém a verten te ideológica da re lação en tre econom ia e pena. Não é de fa to possível d efin ir a “ sign ificati- v idade soc ia l” dos estratos m arg ina is se não se lev ar em con ta tam bém os p ro cesso s ideo lóg icos e cu ltu ra is m ed ian te os quais o “v a lo r so c ia l” dos d iversos segm entos da força de traba lho é socia lm en te defin ido.

A esse ponto, torna-se possível desenvolver linhas interpretativas que não se1 im item a fornecer um a racionalização aposteriori da correlação estatística entre desem prego e encarceram ento, m as que, ao contrário, co loquem estas cor­relações en tre os processos de m udança da econpmia em seu conjunto. M elossi ju lg a que estes processos têm um andam ento cíclico e, por isso, refere-sô a p o litica l business cycles:

52 Ver, sobre este ponto, R. Lévy e H. Zander, “In troduction” , in Rusche e Kirchheimer, Peine et structure sociale. Paris, Cerf, 1994.53 A esse respeito, Lévy e Zander chegam a sustentar que o desemprego represen­taria para Rusche uma “categoria virtual”, mais do que uma entidade real e concre­ta. Com isso, os autores pretendem, uma vez mais, evidenciar a importância da dimensão político-social tanto no que diz respeito às transformações históricas do conceito da less eligibility quanto no que concerne à noção de “correspon­dência tendencial” entre relações de produção e práticas penais.54 Ver Wacquant, Parola d ’ordine: tolleranza zero, cit.

58

Page 59: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

O co n jun to das cond ições soc ia is e polí ticas assoc iadas ao ciclo político-econôm ico não é de term inado por este nem lhe é secundário. A o contrário, são essas condições que tornam possível o seu desenvol­vim ento. E m outros termos, o v ínculo entre ciclo econôm ico e fe­nôm enos político-sociais correlatos não é o produto de “leis” econô­m icas im p crsc ru táv e is , que so b re d e te rm in a m o v a lo r de ou tras variáveis sociais. A o contrário , o v ínculo é resu ltado da ob ra de atores sociais cuja interação faz flu tuar os indicadores econômicos, seguindo u m a trajetória quase oscilan te .

A sucessão destes ciclos redefine continuam ente tanto os term os da re lação entre eco n o m ia e penalidade quanto, e sobretudo, as form as de construção social da própria relação, as quais se traduzem por u m a d em an d a social de severidade penal e de intransigência para co m o desvio56. E m outras palavras, durante os períodos de recessão econômica, de aumento de desemprego e deterioração das condições de trabalho, entra em cena uma nova “moralidade”. Uma m ora lidade que se mostra severa para co m os fenômenos de desvio e constitui terreno fértil para as cam panhas de law a nd order promovidas pelas elites no poder. Este “clima m oral” d ifuso na sociedade pode ser considerado como o term o de m ediação entre dinâmicas da economia e práticas de controle:

A relação entre economia e encarceramento não deveria ser concebida como diretamente causai. Antes, dever-se-ia conectar a mudança econômica com o clima moral que costumeiramente a acompanha, admitindo que as orientações empreendidas pelas partes envolvidas no conflito econômico estejam profundamente relacionadas a atitudes sociais mais gerais e historicamente determinadas .

Em períodos de crise econômica, a criminalidade se torna o tema privile­giado do discurso público, permitindo assim às elites políticas catalisar, sob

53 Melossi, “Punishment and Social Action”, cit., pp. 179-180.56 “Tempos de depressão econômica são também tempos de punição. Os políticosdeploram os hábitos imorais e dissipadores dos tempos passados, o aum entoespan toso das a tiv idades c rim in o sas e d esv ian te s , a fa lê n c ia dos laços institucionais e morais da sociedade. Às suas palavras fazem eco os mass media [...] Diz-se que os trabalhadores tenham passado o tempo a desperdiçar os seus grandes salários e agora se pede a eles que, na austeridade sem brilho da sua nova condição de desempregados, se arrependam. Agora é tempo de traçar uma linha. É tempo de punir” (idem, p. 181).57 D. M elossi, “Introduction” , The Sociology o f P u n ish m e n t . S o c io -S t r u c tu r a l Perspectives. Aldershot, Ashgate, 1998, p., xxiv.

59

Page 60: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

a fo rm a do “ pânico m oral” p roduz ido pelo aum ento da c rim inalidade , in se ­g u ran ças e m edos cu ja o rigem se situa m ais longe do que n u n ca do seu ob je to im ed iato58. O s processos de defin ição do desv io m udam rad ica lm en te de sinal du ran te os ciclos po lítico -econôm icos recessivos. A p rá ticas d iscu r­sivas sob re o fenôm eno crim inal que exaltam o respeito p e la d iversidade , a im p o rtân cia d a in tegração social dos desv ian tes e o papel ressoei ali zan te do s is tem a pun itivo , opõem -se linguagens o rien tadas para a d e fesa social, a n eu tra lização do in im igo púb lico e a necessidade de ze rar a to le rân cia para com o crim e.

Q uando falam os de ciclos de depressão econôm ica, re ferim o -n o s a um con jun to de fa tores que p ertencem à esfera da econom ia sem , p o rém , e sg o ­tar-se no dado estatístico do desem prego . P ara defin ir es te con ju n to de e le ­m entos, M elossi in troduz o conceito de perform ance, que rem ete às co n d i­ções gerais d e trabalho , aos n íveis salariais, aos padrões de v ida e aos n íveis de ex p lo ração im postos pelo cap ita l aos setores m arginais da c lasse operária. O s ciclos po lítico -econôm icos em que se d ifunde o clim a m oral p u n itiv o e a c rim in alização de massa das classes m arginais são carac terizados p o r um a in ten sificação da pressão capitalista sobre a fo rça de trabalho:

Dever-se-ia estabelecer um a ligação direta entre a dem anda am pliada de p erform ance d irig ida à c lasse operáçia e o aum en to da pressão penal sobre os estratos m ais m arginais da sociedade (a underclass). E sta pressão cria um efeito de “frustração social” que leva todos a trab a lh ar m ais, e sp ecia lm en te aqueles que estão tão p ró x im o s do fundo a^jponto de p o d er sen tir os urros e os lam en tos de quem é su rrad o .

V oltam os assim à função su b alte rn a das institu ições de co n tro le na o rg a­n ização cap ita lis ta do trabalho. O princíp io da less elig ib ility su sten ta e re ­força, m ed ian te um a am eaça rep ressiva crescente, a dem anda de p erfo rm a n ce que o p oder econôm ico d irige à classe operária. C om o já acontecia nos albores do sistem a de p rodução cap ita lista , o objetivo seria co n stran g er à d iscip lina aquelas fa tias do p ro le ta riado m arg in a l que se m ostram m ais recalc itran tes

58 Idem, pp. xxv-xxvi. Sobre a insegurança e o medo como categorias existenciais que definem a experiência do “cidadão global”, ver Z. Baum an, La società delVincertezza. trad. it. Milão, Feltrinelli, 2000.39 D. Melossi, “Gazette of Morality and Social Whip: Punishment, Hegemony and the Case of the Usa, 1970-1992” , in Social & Legal Studies, vol. 2, 1993, p. 263.

60

Page 61: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

para com as condições renovadas d e exploração , p recariedade e in seg u ran ça im postas à fo rça de traba lho pós-fo rd ista .

A tingim os aqui o lim iar extrem o da econom ia política da penalidade fordista à qual nos referíam os an terio rm ente. R elendo R usche e K irchheim er, através das h ipóteses de M elossi, acom panham os esta corren te c rim in o ló g ica m ar­xista até o dec lín io do ford ism o, isto é, até a crise da eco n o m ia industrial taylorista e a in tensificação da p ressão cap ita lista sobre a c lasse op erária que acom panhou o desdobram en to desta crise .

A gora nos encon tram os no lim iar. A trás de nós, o un iv erso econôm ico da fábrica e o cárcere d iscip linar, ana lisado pela econom ia p o lítica d a pena; à nossa frente, a crise desse un iverso e um processo de tran sfo rm ação das relações de produção em curso que redesenha , em seu con jun to , a fis ionom ia da fo rça de trabalho con tem porânea , arrastando consigo o reg im e d isc ip lina r e a estru tura da re lação en tre p rodução e d ispositivos de co n tro le que até agora procuram os descrever.

Page 62: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

Capítulo 2

Excesso pós-fordista e trabalho da multidão

O p oder im perial ê o resíduo negativo, a recaída da potência da multidão. E um parasita que

retira a sua vitalidade da capacidade da m ultidão de criar sem pre novas fo n tes de energia

e de valor. Um parasita que enfraquece a resistência do seu hospedeiro, podendo colocar

em risco também a sua própria existência.O funcionam ento do p o d er im perial está

indissoluvehnente ligado ao seu declínio.M. Hardt e A. Negri, Im pério

Pós-forcíismo: o regim e do excessoAntes de proceder a uma análise mais aprofundada dos processos de

transformação da produção e investigar as novas coordenadas da relação en tre e ssa s tran sfo rm açõ e s e o s p ro c esso s de m u d a n ç a q u e a fe tam as estratégias de contro le , faz-se necessário estabe lecer duas p rem issas.

A p rim eira , de ordem m etodo lóg ica , d iz respeito à u tilid ad e do term o “pós-fo rd ism o” , ao qual recorro com tanta freqüência n este trabalho . C om o dizia nas pág inas in trodutórias, pós-fo rd ism o é ho je um a ex p ressão com um tanto na lite ra tu ra econômica (ao m enos na não o rtodoxa) quan to no léxico sociológico e político. Porém , a d ifusão de um term o, p o r m ais ampla que seja, não sign ifica necessariam en te ser sinôn im o da sua e ficác ia exp lica tiva e da adequação para descrever os fenôm enos a que se refere . “P ó s” ind ica sem pre um processo de transição “daquilo que não é m ais” para “ aqu ilo que ainda não é” ; isto é, denota dinâmicas de transfo rm ações que, se p o r um lado perm item p en sa r que nada é m ais com o antes, p o r ou tro nos su rp reende despreparados para descrever a nova cond ição em todos os seus aspectos. N este sen tido , pós-fo rd ism o é um term o que alu d e m ais a d eterm in ad as tendências e ao espaço indefin ido que se estende en tre o “ não m ais” e o “não ainda” , do que à consolidação de um parad igm a claramente defin ível. S erá portanto im portan te considerar as argum entações p resen tes nas pág inas que se seguem com o fruto d a ten ta tiva de iden tificar as tendênc ias para le lam en te

Page 63: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

observáveis nos universos da produção e do controle social e de explorar o território, ainda confuso, no qual elas se desenvolvem.

A segunda prem issa, ao contrário, diz respeito à necessidade de “qualificar” o modo pelo qual é usado o conceito de pós-ford ism o. O próprio fato de se referir m ais à percepção de tendências do que à iden tificação de um modelo definido faz com que ele possa ser utilizado para descrever fenõm epos diversos en tre si e m uitas vezes até m esm o con trad itó rio s60. N estas pág inas, o term o p ós-fo rd ism o descreve p rocessos de transform ação do trabalho e da p rodução q u e , sob re tudo no curso dos anos 1990, situaram -se no cen tro do d eb a te político-intelectual am adurecido n o âmbito do marxismo neo-obrerista ita lian o 65. T ra ta -se , certamente, de uma perspectiva parcial - mas talvez mais útil que ou tras, sobretudo por sua atenção às dinâm icas de conflito que sem pre se entrelaçam às transformações da produção - a iluminar aqueles aspectos d a transição pó s-fo rd ista que parecem incidir, de m odo m ais s ign ificativo , sobre o terreno do controle social.

E ncon tra -se , po is, em andam ento um processo de transfo rm ação g lobal d a eco n o m ia que sanciona o esgo tam en to do m odelo industria l fo rd is ta e p ro je ta , ao m esm o tempo, um a con fig u ração de todo inéd ita das re lações de produção . E sta nova articulação envolve, sim ultaneam ente, os d iversos planos em torno dos quais se desenvo lveu o sistema capitalista ocidental a partir do segundo pós-guerra. D e um lado, no que concerne aos sistem as p rodu tivos, vem os co n su m ar-se a p ro g ressiv a “ex p lo são ” do parad igm a tay lo ris ta de o rg an ização do trabalho: a grande fábrica tende a desaparecer do horizonte da m etrópo le pós-moderna. D e outro, e contemporaneamente, consuma-se a c rise d a es tra tég ia fo rd is ta de regu lação da d inâm ica salarial, isto é, rom pe- se o círcu lo v irtuoso que, duran te boa parte do século X X , perm itiu m an ter em conjunto o rendimento operário, a produtividade social e o consumo de m assa. A tudo isso se acrescenta, tíie last b u t no t the least, um processo de

60 Para uma interpretação “anglo-saxônica” do conceito de pós-fordismo, ver, por exemplo, W. Bonefeld e J. Holloway (eds.), Post-Fordism and Social Form. A M arxist Debate on the Post-Fordist State . Londres, MacMillan, 1991; R. Burrows e B. Loader (eds.), Towards a Post-Fordism Welfare State? Londres, Routledge,1994. Para uma ampla resenha do debate internacional, ver A. Amin, Post-Fordism. A Reader. Oxford, Blackwell, 1994:61 Os momentos mais significativos podem ser reconstruídos através das revistas Luogo comune, DeriveApprodi, Altreragione, Vis à Vis e Futuro Anteriore, queno decorrer desses anos serviram de espaço para o debate.

6 4

Page 64: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

revisão rad ical das po líticas keynesianas de apo io à despesa púb lica e de in tervenção púb lica na econom ia , que perm itiam m an ter ou restabelecer, periodicam ente, os precários equilíbrios das econom ias capitalistas ocidentais.

N esse m eio tem po, m u d a tam bém a geografia da p rodução cap ita lis ta em nível m undial. O capital não é m ais apenas transnacional, m óvel, capaz de expandir-se e a travessar as fron te iras dos E stados, m as tam bém global. E le criou um espaço de valo rização sem confins, no qual não ex istem fron te iras, instituições nacionais soberanas e de lim itações territo ria is do poder. O novo território do capita l g loba l é o Im pério , um “espaço liso” no qual c ircu lam fluxos de d inheiro , fo rça de traba lho e inform ação, su jeitos a reg im es de controle d iferenciados62.

A passagem de um reg im e de p leno em prego para um a cond ição em que o desem prego rep resen ta um fato “estru tu ra l” , a passagem de um a econom ia orientada para a p rodução para um a econom ia da in form ação , a passag em da centralidade da classe o p erá ria para a constitu ição de um a força de trabalho global (que, com o verem os, assum e as ca rac te rísticas de um a m ultid ã o ) n ão são fe n ô m e n o s q u e p e rp a s s a m s o m e n te o s p a ís e s c a p i ta l i s ta s “dom inantes” e os segm entos individualizados das suas forças d e trabalho. As profundas diferenças que podem os distinguir entre os regim es de produção que p revalecem nas d iferen tes áreas geográficas do Im pério (bem com o no interior de suas p rov íncias) não ind icam , de fato, a coex istência de estág ios diferenciados do desenvo lv im en to cap ita lista , com o se estivéssem os d ian te de um m odelo pós-fo rd ista no “P rim eiro M undo” , fo rd is ta no “S egundo” e pré-ford ista no “T erce iro” . E ssas d iferenças são, ac im a de tudo , o efe ito im ediato das estra tificações h ierárqu icas im postas à fo rça de traba lho g lobal pelo dom ínio cap ita lista sobre a p rodu tiv idade social63.

L im itando o nosso d iscurso às tendências que determ inam os efeitos de m aior a lcance sobre o p lano da re lação en tre d inâm icas da p rodução e fo rm as do co n tro le , g o s ta ria de m e d e te r p r in c ip a lm en te em do is a sp e c to s da transform ação em curso . O prim eiro , que cham aria de “quan tita tiv o ” , refere- se à p rog ressiva red u ção do n ív e l de “em p reg o ” d a fo rça de trab a lh o e, conseqüen tem en te , à d rá s tica d im in u ição da d em an d a de trab a lh o v ivo , expressa pelo sistem a p rodu tivo a partir pelo m enos da segunda m etade dos anos 1970.0 segundo, que cham aria de “qualitativo” , d iz respeito às m udanças

62 Hardt e Negri, Impero, cit.63 Idem, p. 288.

65

Page 65: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

ocorridas nas formas da produção, na composição da força de trabalho, nos processos de constituição das sub je tiv idades produtivas e nas dinâmicas de valorização capitalista em que elas estão imersas.

A interação entre estes aspectos da mudança nos permite descrever a transição do fo rd ism o ao pós-fordismo como a passagem de um regim e caracterizado p e la carência (e pelo desenvolvimento de um conjunto de estra­tégias orientadas para a disciplina da carência ) a um regim e produtivo definido p e lo excesso (e conseqüentemente, pela emergência de estratégias orientadas para o contro le do excesso). Seria, porém, de todo impróprio pensar que estas duas tendências (redução do trabalho necessário e mudanças nos pro­cessos de produção) se manifestem independentemente uma da outra, como se fossem os extrem os opostos da transição pós-ford ista . Ao contrário, elas se in screvem con jun tam en te n u m a fo rça de trabalho social afe tada, co n ­ju n tam en te , por p rocessos de transfo rm ação cu jo efeito p rincipal é ex a ta ­m ente a crise de um con jun to de distinções consolidadas. Pense-se ' nas d is­tinções en tre trabalho e não-trabalho , en tre produção e reprodução , entre ag ir instrum ental e ag ir com unicativo .

Todavia, gostaria de descrever estas tendências e os seus efeitos separa­damente, porque isso nos perm itirá , p o r um lado, esc larecer em que sentido se pode d izer que o pós-fo rd ism o inaugura um reg im e de excesso e, por ou tro , id en tificar o su jeito de tal excesso , a nova força de traba lho social, aque la m u ltidão produ tiva sobre a qual, com o verem os, se reco rtam as novas estra tég ias do controle.

O excesso negativoO prim eiro dado, portanto , é que a econom ia pós-ford ista p arece depender

cad a vez m enos da quantidade de fo rça de trabalho diretam ente em pregada no p rocesso de produtivo. A in trodução de novas-tecnologias (princ ipa lm ente in fo rm áticas) d im inuiu p rog ressivam en te o quantum de trabalho vivo n eces­sário à valo rização do capital, até reduzi-lo a um m ínim o:

O progresso tecnológico inform ático não am plia a produção, m as a reestru tu ra e a m odifica através de um constante increm ento de flex i­bilidade. T udo isso não cria em prego, m as, ao contrário , o destró i. O d e se m p reg o não é m ais , p o rtan to , um fe n ô m e n o p u ra m e n te conjuntural, m as sim estru tural .

64 A. Fumagalli, “Aspettti delPaccumalazione flessibile in Italia”, in S. Bologna e A. Fumagalli (org.), II lavoro autonomo di se conda generazione. Scenari dei posfordismo in Itália. Milão, Feltrinelli, 1997, pp. 137-138.

66

Page 66: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

Este processo teve início no começo dos anos 1970 e constitui, por um lado, a resposta capitalista à recusa operária da disciplina de fábrica, à insubordinação e ao ab sen te ísm o , à contestação do trabalho assalariado expressa pelos movimentos revolucionários dos anos 1960; por outro lado, a reação do sistema empresarial à superprodução e à saturação dos mercados de bens duráveis63.

Já na metade dos anos 1980, a fábrica fordista se apresentava como um deserto no qual o ecoar barulhento e obsessivo das m áq u in as ao longo da linha de montagem foi sendo substituído por máquinas silenciosamente “inteligentes” , que requeriam a supervisão de poucos técnicos66. Parcelas crescentes da força de trabalho, expulsas dos contextos produtivos em reestruturação, foram, assim, alimentar õ exército da população desempregada, não empregada e subem pregada, ou preencher os vários nichos do seto r terciário, aqueles âmbitos com plem en tares ao compartimento industrial, cada vez mais caracterizados pela precariedade dos direitos e pela insegurança dos rendimentos, quando não até mesmo por relações neo-servis67.

Contemporaneamente, o assalto neo-liberal ao welfare determina o abati­mento, das garantias sociais, alimentando as condições de incerteza, a dispo­nibilidade absoluta à flex ib ilidade e as novas escrav idões que se tornarão um aspecto ex istencia l, estru tural e parad igm ático da nova fo rça de traba lho68. A restrição dos espaços de acesso ao em p reg o regular, sobre o qual converge o ataque po lítico aos d ireitos sociais, p ro d u z uma h ip ertro fia das econom ias subm ersas, dos circuitos p rodu tivos parale los aos quais aqueles que não têm

65 Para uma análise (voltada para o caso italiano) da crise do paradigma fordista, que leva em consideração tanto os aspectos ligados à conflitualidgde do trabalho quanto às disfunções internas ao sistema fordista derivadas da sua rigidez e, ainda, às dinâmicas de saturação dos mercados que, posteriormente, aceleraram os pro­cessos de reestruturação, ver mais uma vez Fumagalli, “Aspettti deli’ accumulazione flessibile in I tal ia”, cit.66 Uma descrição fascinante do processo de reestruturação que ocorreu na Fiat a partir dos anos 1970 e sobretudo dos efeitos sobre a subjetividade operária foi feita por M. Revelli, Lavorare in Fiat. Da Valletta acl Agnelli a Romiti. Operai sindacciti robot. Turim, Garzanti, 1989.67 A. Gorz, M i serie dei presente. R icchezza dei p o ss íb ile , trad. it. Roma, Manifestolibri, 1998.6S Para uma reconstrução dos efeitos “biográficos” deste devir inseguro, precário c flexível, ver R. Sennet, L ' uomo flessibile. Le conseguenze dei mtovo capitalis­mo sulla vita personale, trad. it. Milão, Feltrinelli, 2000.

67

Page 67: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

g aran tia são obrigados a reco rre r p a ra se assegurar de fontes a lte rn a tiv as tle renda. Setores inteiros da p rodução com eçam , assim , a apoiar-se em m ercados não regu lados, não tu telados, m u itas vezes no lim ite da legalidade , em que dom ina o trabalho interm itente, tem porário , flexível às exigências contingentes de em presas que, de acordo com a filosofia do ju s t in tim e e d a lean-pro- duction , con tra tam fora fases iso ladas do processo de produção . É a rees­truturação do seto r industrial que de term ina estes processos. D eslo ca lização p rodu tiva , d escen tram en to , o u tsourcing , dow nsizing e terc iarização deses- tru tu ram a fo rça d e trabalho operária , fragm entando-a em um arq u ip é lag o de trab a lh ad o res atípicos69.

D iante de um a verdadeira “d eflag ração ” do trabalho, de um a reco lo cação ab ran g en te da p rodu tiv idade social en tre p restações atíp icas é ocasionais,, traba lho negro , in terino e in term iten te , d ian te da passagem de um trabalho p erceb id o com o evento b iográfico “n arráv e l” para um trabalho v iv ido com o “ frag m en to ” , com o necessidade do hoje, u rgência do m om ento, bem , d ian te d e tudo isso ainda é possível d efin ir o desem prego com o fa lta de traba lho?

N a realidade, isso que temos o costume de cham ar de “d ese m p reg o ” talvez não corresponda mais à fa lta de trabalho, m as sim de em prego, se por em p reg o entendermos um con jun to de seguranças - estab ilidade, acesso a d e term in ad as garantias, titu laridade de um con jun to de d ireitos so cia lm en te reco n h ec id o s - do qual o p ó s-fo rd ism o expropriou a to talidade da fo rça de trab a lh o con tem porânea . T alvez o “ d esem prego” en tão se co n fig u re hoje m ais p ro p riam en te com o a ab o lição do “ traba lho” específico , p ró p rio do cap ita lism o industrial, do traba lho ao qual nos referim os q uando se d iz que u m a m ulher “não tem um trab a lh o ” e ded ica o seu tem po a c ria r os filhos, e q u e “ tem um traba lho” , q uando d ed ica apenas um a fração do seu tem p o a c r ia r os filhos dos ou tros70.

N esse sen tido , o conceito de desem p reg o a travessa urna rad ical m udança sem ân tica (que, en tre tan to , afe ta d ire tam en te o p lano da experiênc ia social). O desem p reg o deixa, de fato, de ser associável à idéia de “ in a tiv id ad e” para se to rnar um a m edida oficial da fra tu ra en tre as inum eráveis “a tiv id ad es”

69 Para uma análise dos efeitos de fragmentação e perda de segurança (econômi­ca, cultural e existencial) que acom panha a transição do trabalho operário às novas formas de trabalho “atípico” , ver S. Bologna, “Dieci tesi per la definizzione di uno statuto dei Iavoro autônom o”, in Bologna e Fumagalli (org.), II lavoro autonomo di seconda generazione, cit., pp. 13-42.70 Gorz, Miserie dei presente. Ricchezza dei possibile, cit., p. 10.

68

Page 68: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

produtivas - isto é, aquelas que rem etem à noção de trabalho no sen tido próprio do term o nas quais os ind iv íduos estão con tinuam en te envolv idos, e o lim ite im posto pelo sis tem a cap ita lis ta , a fim de que seja reconhecido a essas atividades o valor social de “trabalho” . Em outros term os, o desem prego se configura como a margem de excesso da produtividade social em relação à separação artificial entre trabalho e em prego im posta pelo dom ínio capitalista à sociedade contemporânea. O desaparecimento do emprego não eqüivale, na verdade, ao d esap arec im en to do trabalho. Antes, no p ó s-fo rd ism o , o trabalho, en tend ido com o um con jun to de ações, p erfo rm a n ces e p restações produtivas, estende-se cada vez m ais até integrar toda a ex istência social. A quilo que ex p e rim en tam o s, e fe tiv am en te , é um a rad ica l sep a ração do trabalho, assim co n ceb id o , de um sis tem a de gov ern o d o s d ire ito s e d a cidadania ainda p ro fundam en te ligado ao conceito fo rd ista de em prego.

A im posição da sociedade salarial se configura, portan to , com o um a nova articulação do nexo en tre trabalho , rend im en to e cidadania. A negação do acesso ao trabalho enquan to “em p reg o ” exclui da cidadania massas cres­centes de sujeitos cujo agir propriamente enquanto trabalhador (isto é, pro ­dutivo), seja ele material ou imaterial, não é socialmente reconhecido como condição suficiente para ter acesso a uma existência sociaí plena71.

Delineia-se, nesse m om ento, um a profunda contradição: o reconhecim ento do direito à c idadania, à inclusão social e ao rend im ento é subord inado a um trabalho, entendido com o em prego, que não tem m ais um a referência m aterial. Se até a segunda m etade do sécu lo X X foi possível constru ir a c idadan ia com o conjunto de d ireitos do traba lho m ediados pelo d ireito ao trabalho , direitos que o com prom isso ford ista podia garan tir m ed ian te a reprodução do eiclo traba lho-salário -consum o-cidadan ia , agora esta d inâm ica não é m ais imaginável.

Em ergem , assim , os p rim eiros con to rnos daquilo que definimos com o regime do excesso. E xcesso significa, neste sentido, que a d inâm ica p rodu tiva co n tem p o rân ea excede co n tin u a m e n te os d isp o s itiv o s in s titu c io n a is de atribuição, reconhecim ento e garan tia da cidadan ia social. A crise do pacto

71 Ver, por exemplo, A. Gorz, II lavoro debole. Oltre la società salctriale, trad. it. Roma, Lavoro, 1994. Porérn, é preciso não esquecer que mesmo o problema da falta de reconhecim ento de determ inadas práticas sociais como trabalho, com tudo aquilo que daí deriva em termos de direito de cidadania, constitui um terreno de conflito constante entre capital e força de trabalho. Pensemos, neste sentido, nas críticas feministas da divisão sexual do trabalho e nas lutas para o reco­nhecimento do trabalho “doméstico” como trabalho “lout-court”.

Page 69: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

fo rd is ta -k ey n esian o e do E stado social que fora constru ído sobre aquele pac to reso lve-se n u m a crônica inadequação por parte das institu ições de governo da sociedade em garantir inclusão por m eio do trabalho. A separação entre constitu ição material da sociedade e constituição formal das instituições é m áxim a. S ão transpostas aqui todas as m argens de m ediação en tre força de trabalho e capital. O que perm anece é um contínuo excesso da produtiv idade social pa ra co m os dispositivos institucionais destinados a reg u lá -la e inseri- la num projeto abrangente de governo da sociedade.

Enquanto durante o período fordista era razoável afirm ar que o desemprego, a exc lusão social e a precariedade existencial eram a conseqüência de um a carência, de um déficit, de um a inadequação subjetiva dos indivíduos para com u m s is te m a q ue , todav ia , t inha co n d içõ es de garan tir , g ra ça s aos instrum entos políticos de m ediação da re lação entre econom ia e sociedade, inclusão e c idadan ia v irtualm ente universais, hoje isso não é mais possível. A q u e le s in s t ru m en to s de m ed iaç ão d e sm o ro n a ram e n ão p a rece h av e r desequ ilíb rios sociais e carências subjetivas passíveis de serem supridas m edian te a ação de dispositivos institucionais de d isciplinam ento da força de trabalho e de socialização cia produção, nem muito menos excessos produtivos e surp lus de força de trabalho a controlar.

D o p o n to de vista capitalista, podem os d izer que o Welfare S ta te pertence à fase h istórica na qual era o capital que se m anifestava com o excesso sobre a fo rça d e trabalho . O desenvo lv im ento h istó rico do cap ita lism o industrial fo rd ista n ecessita de aparatos de governo da população e de d ispositivos de con tro le social que perm itam elevar ao nível das relações de p rodução um a fo rça d e trabalho “caren te” , inadequada, relutante. V im os, a p ropósito do papel exercido pela prisão na produção do proletariado, que eram as carências, as in su fic iêne tas, a lém da rebelião da fo rça de trabalho, que se procurava co n tro la r , sob o m an to da co o p e ra ç ã o p ro d u tiv a , do a u to c o n tro le dos ind iv íduos, da capacidade de inserção no processo produtivo. N esse m esm o cenário se in screv ia tam bém a lóg ica p rofundam ente disciplinar do Welfare State, que perm eav a todas as institu ições sociais, em prim eiro lugar a prisão .

Este tip o de d ispositivo d isc ip linar cai por terra agora, e é o capital que se m ostra caren te em re lação a um a fo rça de trabalho tornada flex ível, nôm ade, m óvel: m u ltid ã o . A m ultidão p ro d u tiv a ex ced e as re laçõ es de p ro d u ção cap ita lis tas no m om ento em que vive d ire tam ente a inadequação do conceito de traba lho -em prego e experim enta em si m esm a a v io len ta negação dos d ireitos de c idadan ia provocada por esta inadequação. N esse sentido, podem os fa la r aqui de um excesso negativo, ev idenciando, por um lado, os efeitos da

70

Page 70: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

exclusão, da violência do poder e do controle que este excesso determina sobre a força de trabalho e, por outro, o fa to de que, neste processo, o domínio do capital resulta potencialmente negado. Isto é, este domínio se revela em toda a sua estranheza, violência e opressão para com a força de trabalho social. T ratar-se-á então de verificar de que modo e mediante que estratégias de controle da multidão o domínio tenta, a despeito de tudo, “negar” esta negação e constituir-se como regime de governo do excesso.

O excesso positivoDizia-se que a automação da produção determina um processo de redução

do trabalho humano necessário à valorização capitalista. Isso, porém, é apenas um aspecto da transfo rm ação em curso72. A informatização da produção incide, de fato, diretamente sobre as próprias formas do trabalho, sobre os processos de organização que a conformam e sobre o conteúdo da prestação de trabalho. Desse ponto de vista “qualitativo”, pode-se dizer que o trabalho torna-se cada vez mais “cognitivo” e “ im a te r ia l” . Irnaterial porque se fundamenta na elaboração de símbolos, na construção de linguagens, num so b re -fazer que não deve nunca se r id ên tico a.si m esm o, n a gestão dos signos. O trabalho tende a “desmaterializar-se” , no sentido de que se desvincula da sua relação histórica com um produto determ inado para se tornar performance comunicativa, ato criativo que dificilmente pode resolver-se no objeto imediato do agir, momento produtivo que cria uma “segunda natureza” (a v irtual), ao invés de lim itar-se a transformar o m undo natural.

Se o fo rd ism o - e o tay lo rism o co m o sua tradução organizativa - se fundava sobre um a n ítida sep aração en tre criação , d ireção do traba lho e execução da tarefa, o pós-fordism o parece tornar este ciclo horizontal, fazendo da inovação e da criação os fundam entos de todo p rocesso p rodu tivo7,5.

A repetição das operações, a coo rdenação s incrôn ica ao longo das fileiras p rodutivas p ré-constitu ídas a partir de cim a e a subord inação h ierá rq u ica são elem entos da organização taylorista do trabalho que tendem a perder valo r na

72 Essa vertente-é em si mesma controvertida, caso consideremos que diante da progressiva automação de determinados âmbitos da produção emergem setores muitas vezes eomplementares a estes (pense-se em todo o terciário desqualificado) ou até mesmo em “sistemas de produção” inteiros (pense-se no Sudeste asiático), em que a automação é quase inexistente.73 y er Sobretudo T. Ohno, Lo spiríto Toyota, trad. it. Turim, Eínaudi, 1993; e B. Coriat, Ripensare / ’ organizzazzione dei lavoro. Concetti e prassi dei modelo giapponese, trad. it. Bari, Dedalo, 199J.

71

Page 71: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

empresa flexível pós-fordista. Ao contrário, eles representam verdadeiros o b s tá c u lo s à p ro d u tiv id a d e . A interdição im p o s ta ao s operários d e se com un icarem , que na fáb rica fo rd is ta e ra sistem aticam ente acompanhada da in ju n ção de in crem en tar o ren d im en to con jun to dos m ecan ism os a través de p restações parcializadas e perfeitamente sincronizadas no tem po e no espaço , cede agora a vez para a figura do trabalho im dtiskilled , cujo requisito principal é exatamente a capacidade de não se repetir nunca, de não d isp o r-se de acordo com uma ordem predefin ida:

Na época da manufatura e depois durante o longo apogeu da fáb rica fordista, a atividade de trabalho 6 muda. Quem trabalha, cala. A produção é uma cadeia silenciosa, na qual é admitida apenas uma relação mecânica e exterior entre antecedente e conseqüente, ao mesmo tempo em que se impede qualquer correlação interativa entre simultâneos (...) N a metrópole pós-fordista, ao contrário, o processo de trabalho material pode ser descrita, em piricam ente, como conjunto de atos lingüísticos, seqüência de asserções, interação simbólica. Em parte, [isso ocorre] porque a atividade do trabalho vivo se explicita, agora, ao lado do sistema de máquinas, através de tarefas de regulação, supervisão e coordenação, mas sobretudo porque o processo produtivo tem como “matéria-prima” o saber, a informação, a cultura, as re lações socia is .

O trabalho se torna lingü ístico na medida em que a com un icação se to m a m ercadoria (sob a fo rm a da m ercadoria-in fo rm ação) e o in telecto , en tend idocomo conjunto de faculdades comunicativas, expressivas e inventivas, torna- se o novo u tensílio da p ro d u çã o pós-fo rd ista . Assim, os tempos e lugares que na soc iedade-fáb rica sep arav am o un iverso da produção da esfe ra da reprodução são desestru tu rados: o traba lho , progressivam ente, re tira -se doperímetro da instituição fechada. Ora, a produtividade não depende mais tanto de uma gestão racional e economicamente eficaz dos recursos internos à empresa (dos seus fatores produtivos imediatos) quanto da capacidade empresarial de colher, compreender, decodificar fluxos de conhecimento, resíduos de experiência social difusa - tais como modos, linguagens, redes de relação (aquilo que se define como “externalidade positiva”) - e conferir- lhes valor. Nesse sentido, com respeito à nova força de trabalho im ateria l, torna-se cada vez mais problemática urna real separação entre tempo de

74 P. Virno, “Lavoro e linguaggio”, in Zanini e Fadini (org.), Lessico Posfordista , cit., p. 181.

72

Page 72: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

trabalho e tem po de não -trabalho . D e um lado, na realidade, o tem po de rep ro d u ção d a fo rç a d e tra b a lh o im a te ria l to rn a -se tem p o d ire ta m e n te produtivo, um a vez que a em presa pó s-fo rd ista confere v alo r a com petências, habilidades, a titudes que se desen v o lv em (ou m elhor, que se constituem ) sobretudo du ran te o tem po de “n ão -trab a lh o ” . P o r ou tro lado, o trabalho im aterial se ca rac te riza exa tam en te com o p rocesso de p rodução daquelas relações lingüísticas e com unicativas nas quais se desenvolvem competências, habilidades e atitudes a serem valo rizadas.

O devir lingü ístico do traba lho traduz-se, assim , em p rodução de sentido, com unicação e laço social, i.e ., em p rodução de subjetiv idade, em m odo de subjetividade. D isso lve-se , destarte , a d istinção trad ic ional en tre estrutura m aterial da sociedade - en ten d id a com o universo da valo rização cap ita lista das subjetividades - e superestru tura - en tend ida com o universo de form ação daquelas m esm as sub je tiv idades. N as palavras de N egri e H ardt:

A superestru tu ra co locada no trabalho e no un iverso em que vivem os é um universo de redes lingüísticas produtivas. A s linhas da produção e as da representação se cruzam e se confundem no m esm o contexto lingüístico e produtivo (...) A produção é indistinguível da reprodução; as forças produtivas evoluem paralelamente às relações de produção; o capital constan te ten d e a ser constitu ído e represen tado no interior do capital variável que está nos cérebros, nos corpos e na cooperação dos sujeitos produ tivos '.

U m ex em p lo s ig n ifica tiv o dos p ro cesso s que estam os d esc rev en d o é representado pelo “ logo”76. N a eco n o m ia pós-fo rd ista dos signos, o logo não é m ais apenas um a m arca que perm ite d istingu ir um produto de outro, idêntico m as de fabricação d iversa. A o con trário , ele encerra o valor lingü ístico ou im aterial do próprio p roduto , to rna-o parte de um estilo de v ida e faz dele um medium da com unicação social. O logo contém em si um a experiência relacionai- veicula e p roduz subjetiv idades. M as o que faz dele um d ispositivo de

75 Hardt e Negri, Impero, cit., pp. 356-357. Ver também M. Lazzarato, La v oro immateríale. Forme di vila e produzione di soggettività. Verona, Ombrecorte, 1997; P. Virno, Mondanità. U idea di “m ondo” tra esperienza sensibile e sfera pubblica. Roma, Manifestolibri, 1994.76 Ver, naturalmente, N. Klein, No Logo. Economia globale e nuova contestazione, trad. it. Milão, Baidini&Castoldi, 2000 [N. do T.: edição brasileira Sem logo. Atirania das marcas em um planeta vendido. Rio de Janeiro, Record, 2002, tradu­ção de Ryta Vinagre],

73

Page 73: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

produção de subjetiv idades é precisam ente o fato de que e le m esm o é o resultado da valorização de subjetividades. Em outras palavras, para ser eficaz- isto é, p ro d u t iv o - , o logo d ev e p o d er captar, a r ran c a r e in te rc ep ta r determ inadas formas da re lação social e valorizá-las com o atributo de um produto. É nesse sentido que a em presa pós-fordista se caracteriza como disposit ivo que valo riza fluxos de linguagem , sím bolos e com unicação , transform ando-os em mercadorias. M as isso significa que a em presa valoriza d iretamente a esfera da reprodução, do não-trabalho, da existência social: aqui se consum a o fim da distinção entre estrutura material e superestru tura ideológica da sociedade.

De outra parte, é a vida inteira a ser subm etida ao trabalho, a partir do m om ento em que são as faculdades hum anas mais com uns que constituem o núcleo da produtiv idade pós-fordista: capacidade de linguagem , faculdade de expressão e invenção, p ropensão à com unicação e à relação, afetiv idade. A valorização capitalista destas atitudes não pode realizar-se apenas nos lugares e nos tempos que um contrato de trabalho define com o em prego. Ao contrário, esta “hum anidade no trabalho” reproduz-se e estende-se no espaço indefin ido das relações entre os sujeitos e nas redes do agir comunicativo.

Se a linguagem , a com unicação e a relacionalidade se tornaram elementos constitutivos da produtividade, a cooperação social representa certam ente a sua fo rm a de realização . C om preende-se , assim , por que o p rocesso de produção depende cada vez m enos de prestações singularizadas às quais o com ando cap ita lis ta pode im por urna organização racional do alto, com o acontecia na fábrica taylorista. A cooperação produ tiva entre os su jeitos do trabalho pós-fordista se furta a qualquer lógica disciplinar que pretenda vinculá- la a um a repetição, a um a sincronização, a um a ordem cuja rig idez é antitética ao processo de com unicar. A rede substitui a linha de m ontagem . A em presa em rede obtém e valoriza um a cooperação que se produz de baixo e se alim enta de trocas lingüísticas e sim bólicas, com relação às quais q ualquer fo rm a de organização rígida represen ta um lim ite que d ificu lta o seu livre fluir.

M as se isso é verdade - isto é, se a produtiv idade do trabalho depende cada vez m ais daquilo que, no passado, seria defin ido com o o universo do não-trabalho , e se além disso é a cooperação (e não a com petição) en tre os sujeitos que constitu i o p ressuposto m aterial deste sistem a de p rodução - , então, ao lado da crise das ca tegorias tradicionais de que vim os falando, perfila-se tam bém a da “ lei do valo r” . Q uer dizer, do projeto cap ita lista de m edir, através do tem po de trabalho, o espaço do desenvo lv im ento hum ano que perm ite à produtividade social exprim ir-se. Torna-se im possível quantificar

74

Page 74: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

economicamente o tempo e os recursos necessários à reprodução do utensílio de trabalho hegemônico na produção pós-fordista, o intelecto11.

Marx prevê as transformações que vemos desenvolver-se e define a nova capacidade produtiva social como general in tellect, O general in tellect é, de acordo com a definição marxista, uma nova entidade produtiva que emerge graças à inovação tecnológica e do trabalho im ediato como fonte da riqueza social:

O desenvolvimento do capital fixo mostra até que ponto o saber social geral, knowleclge, tornou-se força produtiva imediata e, por conseguinte, as condições do próprio processo vital da sociedade são passadas para o controle do General intellect, e remodeladas de acordo com ele, até o ponto de as forças produtivas sociais serem produzidas não apenas na forma do saber, mas também como órgãos im ediatos da práxis social, do processo de vida real ,

As possibilidades de realização das potencialidades produtivas do general intellect dependem de processos de cooperação e comunicação social exter­nos. anteriores e contrastantes com a racionalidade org an iza tiv a da empresa capitalista. O comando empresarial se coloca diante desses processos como puro domínio externo, como uma camisa de força que Mmita as infinitas potencialidades da cooperação, ao mesmo tem po em que as encerra dentro da fo rm a da valorização:

O trabalho vivo é organizado no in terior da em presa, independen­tem ente do com ando cap ita lis ta e apenas num segundo tem po, e form alm ente, esta cooperação é sistem atizada no com ando. A coo­peração produtiva se co loca com o precedente e independente da fun­ção empresarial. Portanto, o capital não se apresenta com o organizador da força de trabalho, m as com o reg istro e gestão da organização autônom a da força de trabalho. A função p rog ressiva do capital está term inada .

77 “De um lado, ele [o capital] evoca, portanto, todas as forças da ciência e da natureza, bem como da combinação social e das relações sociais, a fim de tornar a criação da riqueza (relativamente) independente do tempo de trabalho nela empre­gado. Por outro lado, ele pretende medir as gigantescas forças sociais assim evocadas à medida do tempo, e aprisioná-las nos limites que são necessários para conservar o valor já criado (K. Marx, Lineamenti fondamentali delia critica deli 'economia política, trad. it. Florença, La Nuova Italia, 1978, p. 402).78 Jdem, p. 403.79 Hardt e Negri, 11 lavoro di Dioniso, cit., p. 103.

75

Page 75: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

O co n tro le cap ita lis ta se exerce a posteriori sobre esta no v a fo rça de trabalho , não m ais com o determ inação dos pressupostos o rgan izativos que to rn a m p o ss ív e l a p ro d u tiv id a d e so c ia l, m as co m o p u ra e x p ro p ria ç ã o (desv incu lada, de fato, de um a troca de equivalen tes to rnada im possíve l) de um a produ tiv idade que tende, continuam ente, a ex trapo lar as fron te iras da valorização. N ão há dúvida, adem ais, que esta expropriação finalm ente ocorra. N ão pre tendem os, é certo , afirm ar que agora a força de trabalho social esteja m ateria lm en te liv re do com ando capitalista. A o contrário , o que devem os investigar é exatam ente a form ação de novas m odalidades de con tro le da fo rça d e trabalho im aterial, tornadas necessárias pelo desenvo lv im en to de um a cooperação social que excede a re lação capitalista.

Sabem os, por ora, que se trata de form as de con tro le que não rem etem m ais a um dom ín io cap ita lista “ in terno” ao processo de trabalho , m as sim que se articu lam a partir de um com ando externo e que, portanto, m aterializam um poder m ais “político” do que econôm ico do capital. D efiniria com o político o controle que o capital exerce hoje sobre o trabalho exatam ente para evidenciar a re tirada p rog ressiva do dom ínio de um universo econôm ico fundado sobre a idéia de troca de equivalentes, para se chegar a uma relação de puro com ando. N o período fo rd ista , a valorização capitalista estava ligada a form as de o rga­nização científica da fábrica que perm itiam m axim izar o rendim ento do trabalho operário a partir do in terior do processo produtivo. Hoje, a valorização depende da p ossib ilidade de con tro lar de fora e de im por a fo rm a da com petição (e, subrep tic iam ente , a lei do valor) a atitudes produ tivas que, por sua natureza, são coopera tivas80.

O que defin im os com o “excesso p ós-fo rd ista” co n fig u ra-se aqui com o excesso constan te de po tencia lidades produtivas, de laços de cooperação , de fo rm as da co m u n icação com respeito às geografias da p rodução im postas p o r um a rac io n alid ad e cap ita lis ta reduzida a dom ín io . O cap ita l - não m ais em co n d içõ es de g o v ern ar ativam ente, a partir de dentro , a p rodu tiv idade social, v isto que es ta excede as fo rm as cap ita listas de rac ionalização do real- lim ita-se a ex e rc ita r um contro le , a expressar-se com o puro lim ite ex terno em re lação a um a cooperação p rodu tiva que p refigura a sua obso lescência. E u fa la ria , p o rtan to , de excesso p ó s-fo rd ista para ev idenc iar, ao m esm o

80 “Com isso a contradição da exploração é deslocada para um nível altíssimo, onde o sujeito principalmente explorado (aquele técnico-científico, o cyborg, o operário social) é reconhecido na sua subjetividade criativa, mas controlado na gestão da potência que exprime” (ibidem, p. 105).

76

Page 76: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

tem po, tanto os aspectos de hiper-inclusão e centralidade do trabalho im aterial no que concerne à p ro d u ção pós-fo rd ista , quanto ao fa to de que esta força de traba lho so c ia l a lu d e , co n s tan tem en te , à p o ss ib ilid ad e de su p e ra r o parasitism o do cap ita l. Isso p refigura um horizon te de p rodu tiv idade liv re e de cooperação social não com andada.

M ultidãoPelo que fo i d ito até agora, poder-se-ia ter a im pressão que ex iste um a

profunda separação entre aquilo que definimos por excesso negativo e excesso positivo . Isto é, p o d er-se -ia pensar que os dois term os - re feridos, resp ec­tivam ente, a p rocessos q u an tita tivos e qualita tivos de transfo rm ação do tra ­balho - descrevem aspectos até m esm o con trad itó rios da transição em curso: de um lado, a fo rça de trabalho expu lsa do processo p rodu tivo , do outro, a força de trabalho h iper-in teg rada ; de um lado, m assas c rescen tes de sujeitos que excedem as ex igências do sistem a, do outro um a aristocrac ia do trabalho im aterial que se co loca exa tam en te no seu centro. In d o -se m ais longe nessa reflexão, p oder-se-ia ju lg a r que exatam ente a progressiva cen tra lidade do trabalho imaterial, cogn itivo e de alfa tecnologia contribu i para determ inar a exclusão e a m arg ina lização daqueles estratos da força de trabalho que se apresentam com o excesso com relação ao sistem a pós-fordista.

Se assim fosse , d ev e r-se - ia ta lv ez co n c lu ir que a tran s içã o ao pós- fordism o rep resen ta um a v itória , p rovavelm ente defin itiva , do cap ita l sobre a força de trabalho . O dom ín io cap ita lista abandonaria o terreno do conflito contra o trab a lh o para de ixar que ele se desenvo lva entre os su jeitos do trab a lh o . O m esm o ra c io c ín io p o d e r ia se r e s te n d id o , em se g u id a , à com posição g lo b a l da fo rça d e trabalho : à c rescen te in fo rm a tização da produção em alguns países cap ita listas dom inantes con trapõe-se , de fato, a deterioração das cond ições de v ida e trabalho naquelas reg iões do Im pério onde a au tom ação não ocorreu.

Este pon to de v ista não é novo e representa o n úcleo central d a argu­m entação de todos aqueles que recusam a categoria de “pó s-fo rd ism o ” oU contestam que esta reú n a condições suficientes para d esc rev e r o conjunto das transform ações que atingem a fo rça de trabalho con tem porânea . E m resum o, quando se fa la de pós-fo rd ism o estaríam os nos re ferindo apenas a um a elite re s trita do trabalho inform atizado , deixando de fo ra tan to parcelas crescentes da força de trabalho dos países “dom inantes” quan to - e sobretudo ~ sistem as produ tivos in teiros dos países “dom inados” . A ndré G orz sin tetiza eficazm ente esta p ersp ec tiv a quando afirm a que “é in sensato apresen tar com o fonte essencial da autonomia, da identidade e do desenvo lv im ento de

Page 77: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

todos um trabalho cuja função é a de fazer com que haja cada vez mais menos trabalho e salário para todos”81.

O nosso problema não é, certamente, contestar a validade destas posições. Alguns elementos são, de fato, completamente irrefutáveis. E indiscutível, por exemplo, que a revolução tecnológica em curso abole quotas crescentes de trabalho e que isso significa, para quem não tem experiência, não a “liber­tação do trabalho”, mas sim o desemprego e a m arginalização . E igualm ente indiscutível que as condições existenciais da grande parte da força de trabalho contemporânea sejam caracterizadas pela insegurança e pela precariedade, da mesma forma que existem amplos setores da produção nos quais a infor­matização nao se faz presente. E também verdade que o devir im aterial de alguns circuitos produtivos tenha, no máximo, possibilitado que outros con­textos da p rodução perm aneçam m ais m ateriais do que nunca, ou que, final­m ente, o trabalho im aterial seja a form a de trabalho que atualm ente “com anda” as outras.

De resto, é efetivamente indiscutível que, embora possam ser consideradas inadequadas frente às tendências em curso, distinções tradicionais - tais como em prego/desem prego, produção/reprodução, tempo de trabalho/tem po de não- trabalho - m antêm a sua vigência do ponto de vista dos efeitos que concretam ente produzem sobre os indivíduos. E m ou tras palavras, não se p ode negar que ex ista um p lano fac tua l no qual a condição de desem pregado, de em pregada dom éstica im igran te ou de traba lhador tem porário com porte conseqüências reais, tangíveis e concretas sobre as experiências b iográficas subjetivas.

Porém , é possível afirm ar que tudo isso se-atém a um a percepção “feno- m enológ ica” do trabalho, a um ponto de vista que não nos perm ite co lher o excesso expresso pe la força de trabalho contem porânea nem identificar o seu potencia l “subversivo” . O plano fenom enológico induz à re ificação de conceitos im postos pela rac ionalidade cap italista, tais com o desem prego , excesso , salário , e a considerá-los com o características constitu tivas da força de trabalho onde elas efetivam ente não estão. N ão é no nível da fenom enologia do trabalho que podem os com preender o significado do excesso pós-fordista , m as sim no n ível da sua “onto logia” : são os pressupostos da produtiv idade do trab a lh o que ho je excedem a re lação cap ita lis ta e não as determ inações concretas desta p rodu tiv idade82. N o nível constitutivo, on to lógico , a força

81 Gorz, Miserie dei presente. Ricchezza dei posslbile, cit., p. 66. Uma ampla resenha das análises que adotam esta perspectiva pode ser encontrada em Vis â Vis, Altreragioni e Capital & Class.82 A.Negri, Fabbriche dei soggetto. Livomo, Sec. XXI, 1987 (sobretudo pp.131-138).

78

Page 78: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

de trabalho contemporânea se configura como totalidade produtiva indistinta, como conjunto de potencialidades cooperativas que escapam a qualquer regulamentação: nesse sentido, ela é uma multidão.

Na teoria política clássica, o conceito de “multidão” se define em contra-, posição ao de “povo”. No De eive, Hobbes considera a incapacidade de dis­tinguir entre povo e multidão como a estrada que leva à sedição e, conseqüen­temente, à queda dos governos. “Povo” é a entidade que exprime uma vontade geral única por intermédio do querer de um único indivíduo que representa a iodos. “Multidão”, ao contrário, é o conjunto indiferenciado dos sujeitos aos quais uma única vontade e uma única ação podem ser referidas. Á sedição nasce não quando o povo se rebela contra o soberano,*mas sim quando os cidadãos se revoltam contra a cidade, isto é, quando a multidão se opõe ao povo83.

Referido, portanto, à realidade produtiva contemporânea, o conceito de multidão permite identificar uma força de trabalho abrangente, cujas determi­nações escapam a qualquer capacidade de individualização da parte do comando capitalista. Multidão indica o fato de que a força de trabalho pós-fordista expressa, constitutivamente, a própria produtividade na indistinção entre produção e reprodução, emprego e desemprego, trabalho e linguagem. Mas indica também, e ao mesmo tempo, que nenhum sujeito hegemônico, nenhuma “vontade individual” ou ação individual tem condições de exprimir e representar comple­tamente a complexidade desta força de trabalho. Nesse sentido, o conceito de multidão demonstra e supera a inadequação do conceito de classe, não tanto porque a classe operária tradicional perde hoje a própria centralidade produtiva, mas porque não é mais possível definir um lugar determinado de constituição da subjetividade do trabalho, de tornar extrínseca a sua produtividade e de expressão da sua conflitualidade, como era possível para a classe operária fordista84.

O excesso negativo e o excesso positivo são entidades indistinguíveis sob o perfil da sua potencialidade produtiva. Inclusão e exclusão, emprego e

83 Th. Hobbes, De Cive, XII, 8. O conceito de “multidão” também está presente em N. Machiavelli, Discorsi sopra la prima de ca de Ti to Livio, I, 58, e em B. Spinoza, Traetatus Politicus, III, 2, 6, 9.84 “Multidão é a forma hodterna do trabalho vivo, não uma Babel de identidades dispersas, mas tampouco uma nova classe operária sob invólucros pós-modemos. E um conjunto de subjetividades cujo impacto produtivo é diretamente proporcional à sua capacidade relacionai, lingüística e comunicativa. A linguagem, enquanto algo comum, é colocada a serviço dos muitos, do ser social inteiro, formação indefinida na cooperação lingüística” (A. Zanini, “Multidão” , in Zanini e Fadini [org.], Lessico postfordista, cit., p. 214).

79

Page 79: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

n ã o e m p re g o , são categorias que, repetimos, produzem efeitos absolutamente reais, mas são impostas à multidão pela ex terio ridade do comando capitalista e pelas estratégias de controle que contribuem para a sua reprodução.

O apagam ento das delimitações do agir individual e coletivo - que, durante o período fordista, circunscreviam os lugares d iscip linares de controle da força de traba lho - p roduz um espaço “ liso” pós-fordista, no qual os dispo­sitivos de poder não parecem mais se dirigir tanto para os indivíduos singulares, m as sim à p red isp o sição de “aparelhos de cap tu ra” capazes de con tro la r fluxos de p rodu tiv idade social que atravessam a m ultidão. N as palavras de Deleuze e G uattari,

O m ais-trabalho e a organização capitalista no.seu con jun to passam cada vez m enos pelo cstriam ento espaço-tem po corresponden te ao co n ce ito fís ico -soc ia l de traba lho . A ntes, é com o se a a lien ação h um ana fosse substitu ída no próprio m ais-trabalho po r um a “sujeição m aq u in a i” generalizada, de tal fo rm a que se pode ex tra ir um a m ais- valia independente de um trabalho qualquer (o m enino, o aposentado, o desem pregado, o em pregado de tele-escuta etc.)' .

P arece-m e que a categoria de m ultidão exprime todo o seu valor toda vez que ela é em p reg ad a para definir um a força de trabalho social que se p r é -

- constitu i com respeito a qualquer lóg ica do dom ínio em presarial. M ultidão é aqu ilo que an tecede ao com ando e que, po tencia lm ente , escapa a ele; são m uitos aqueles que, quase sem pre de fo rm a la ten te , m as às vezes tam bém ex p lic itam en te , “ transgridem ” os regulam entos das institu ições do poder e sua filosofia de redução da com plexidade. L á onde o “povo” representa aquilo que resta da m ultidão , um a vez que as institu ições de governo da sociedade tenham desenvo lv ido eficazm ente os próprios d ispositivos de dom ín io sobre o real, a “m u ltid ão ” exprim e exatam ente a crescen te irredu tib ilidade dojeal

85 G. D eleuze & F. G uattari, Apparati di cattura. Millepicini. Capitalismo e schizofrenia. Seção IV, trad. it.. Roma, Castelvecchi, 1997, p. 118 [N. do T.: edição brasileira Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 1. Rio de Janeiro, Editora 34.1995, tradução de Aurélio Guerra e Célia Pinto Costa],86 Negri evidenciava, num trabalho fundamental, datado de 1977, o nexo existente entre a força de trabalho, a ser entendida, neste contexto, como classe operária, e as formas da soberania política do Estado que se constitucionalizam a partir do conceito de povo: “A força de trabalho que comparece como totalidade social se configura como povo no interior do mecanismo de reprodução do capital: o povo é a força de trabalho constitucionalizada no Estado da sociedade-fãbrica” (A. Negri. La form a Stato. Per la crittica deli 'economia política delia costituzione. Milão, Feltrinelli, 1977, p. 53).

80

Page 80: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

às categorias do dom ín io po lítico e econôm ico86.Não se pense que este deslocam ento da teoria po lítica à teo ria econôm ica

seja im próprio. In screvendo os conceitos de povo e m ultidão no con tex to da transição do ford ism o ao pós-fo rd ism o, pre tendo ev idençiar, de um lado, o declínio paralelo dos conceitos de povo e classe operária - en tidade unitárias, suscetíveis de reductio a d unam , passíveis de representação singular, situáveis cm territórios determ inados (E stado-nação e fábrica) e su jeiíáveis ao regim e disciplinar e, de outro, a em ergência dos conceitos de m ultidão e produção s o c ia l - e n t id a d e s m ú l t ip la s , i r r e d u t ív e is , n ã o r e p r e s e n tá v e i s e desterritorializadas, às quais se torna necessário im p o r urn novo reg im e de controle:

O co m an d o im p e ria l não se e x e rc ita se g u n d o as m o d a lid a d e s d is c ip lin a re s do E s ta d o m o d ern o , m as s im de a c o rd o co m as m odalidades do controle biopolítico. Estas m odalidades têm com o base e objeto um a m ultidão produtiva que não pode ser d iscip linada e n o rm a l iz a d a , m as que, c o n tu d o , d ev e ser g o v e rn a d a na sua autonom ia. A idéia dc Povo, enquanto sujeito organizado pelo sistema de com ando, não funciona m ais; em conscqiicncia, a identidade do povo é substituída pela m obilidade, pela flex ibilidade e pela auto- d iferenciação perpétua da m ultidão .

A passagem do fo rd ism o ao pós-ford ism o se en trecruza, assim , com o progressivo esgo tam ento de um a soberan ia estatal defin ida corno com plexo de e s tra tég ias de n o rm a liza ção d isc ip lin a r da c la s se o p e rá ria e com a em erg ên cia de um d o m ín io im p eria l co n stru íd o co m b ase no co n tro le biopolítico da m ultidão. Todavia, esse controle “b iopo lítico” co loca-se num plano to talm ente ex terno às determ inações singulares da fo rça de trabalho social, inscrevendo-se num dom ínio capita lista reduzido a puro com ando. É aqui que se determ ina a separação radical entre b iopo lítica e d isc ip linaridade com a qual eu acenava nas prim eiras páginas deste trabalho.

87 Hardt e Negri, Impero, cit., p. 319.

81

Page 81: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

1f?

Page 82: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

Capítulo 3

Governo do excesso e controle da multidãoDa disciplina da carência ao governo do excesso

Podemos, agora, começar a repensar a análise da relação entre dinâmicas da produção e formas düucontrole social a partir da em ergência daquilo que definimos como “excesso pós-fordista” e tendo como hipótese que as estratégias pós- disciplinares orientadas para o controle d a nova força de trabalho, da multidão, convergem na formação de um regime de “govemo do excesso”.

E sta hipótese se baseia, por um lado, na análise do esgotamento do papel produ tivo do comando cap ita lis ta que descrevemos até este momento e, por outro , no fa to de que um processo aná logo tam bém é o b serv áv el no p lano das estratégias de contro le social. Em ou tras palavras, p a rece -m e que o fa to de o dom ín io cap ita lista d isc ip lin a r te r um menor co n tro le dos p ro cesso s de trabalho está determinando, paralelamente, uma crcscen le estra n h eza dos aparatos e das estra tég ias de co n tro le para com a m ultidão p ó s-fo rd ista . O bviam ente , movemo-nos no plano d a tendência e o ob je tiv o aq u i é traçar algum as linhas de transfo rm ação p rováveis , e não d esc rev e r u m p arad ig m a in te iram en te desenvolv ido . A inda no terreno do co n tro le socia l, do m esm o m odo que oco rre no con tex to da p rodução , m uitas vezes en co n tram o s, à fren te de processos de m udança que p refigu ram h o rizo n tes co m p le tam en te inéditos, a persistênc ia de m odelos, estra tég ias, p rá ticas e in s titu içõ es que parecem atestar um a substancia l co n tin u id ad e en tre p assad o e p resen te . N o fundo, po lítica , tribunais e cárcere a in d a constituem , p ra ticam en te em to d a a parte , as institu ições fundam en tais do con tro le socia l. M as isso não deve prejudicar o sentido de um a análise atenta aos fenôm enos que se agitam sob a superfície do presente para colher a tendência das transform ações em curso.

D evem os, porém , deter-nos um a vez m ais sobre aque le co m p lex o de estratégias e racionalidades que tem definido, até agora, a relação en tre controle social e sistem a de produção capita lista . Isso é necessário porque , co m o já foi visto, no processo de desenvo lv im ento do cap ita lism o industria l, desde a acum ulação prim itiva até o ford ism o, os d ispositivos de co n tro le ex erceram um a função fundam ental de racionalização disciplinar da produção e de sujeição da fo rça de trabalho à valorização capita lista . E é ex a tam en te o aparen te esgo tam ento desta função p rodu tiva do controle que constitu i o ob jeto do nosso d iscu rso .

83

Page 83: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

Gostaria, portanto, de voltar a Foucault e em particular às suas hipóteses sobre a governamentalidade, a disciplinaridade e o biopoder. Trata-se, de fato, de conceitos que representam as coordenadas essenciais daquela cartografia da modernidade e dos seus aparelhos de poder que se revelaram instrumento indispensável para compreender as diversas articulações da relação entre controle disciplinar e produção fordista. Essa cartografia, de resto, foi também atingida, e de modo significativo, pela economia política da pena que descrevemos nas primeiras páginas deste trabalho.

O pensamento volta-se quase que instintivamente para Vigiar e punir. E aqui, na realidade, que Foucault se ocupa especificamente da penalidade e das suas transformações, revelando uma atenção constante aos processos de transformação da economia capitalista e aos seus efeitos sobre o universo da punição. A pesquisa sobre o “nascim ento da prisão” representa a sistem atização definitiva de análises e reflexões que Foucault estava em preendendo já havia tempo (devem os pensar sobretudo nos cursos ministrados no Collège de France entre 1970 e 1974), e muitas vezes são os m ateriais não sistemáticos que revelam as intuições foucaultianas mais interessantes a respeito das relações entre sistema de produção e formas de controle88.

No centro do projeto foucaultiano encontra-se a tentativa de reconstrução de uma genealogia das tecnologias de poder que nos permite decodificar a economia e as racionalidades internas aos sistemas de controle. O objetivo principal é, pois, analisar os processos históricos de transformação dos d ispositivos de repressão, perguntando sobretudo de que modo eles, abandonando progressivamente uma lógica baseada na negação e na destruição dos desvios, foram capazes de desenvolver uma função produtiva que os torna partícipes do processo histórico de afirmação do capitalismo.

Os processos de formação das tecnologias discipíinares descritos em Vigiar e punir constituem o contexto em que se dá a passagem do “suplício” à “prisão”, isto é, de um poder que destrói a um poder que transforma. Por

88 Num a conferência de 1971, Foucault descrevia as linhas mais gerais da sua investigação: “Pareceu-me interessante procurar compreender a nossa sociedade e a nossa civilização através dos seus sistemas de exclusão, de rejeição, de recu­sa, através daquilo que elas não querem, os seus limites, a obrigação de ter de suprimir um certo número de coisas, de pessoas, de processos, aquilo que elas devem deixar cair no esquecim ento, o seu sistem a de repressão-supressão” (Conversazione con Michel Foucault, II, Pote/i, saperi, strategie, coord. A. dal Lago. Milão, Feítrinelli, 1997, p.38).

84

Page 84: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

sua vez, a emergência do universo disciplinar só pode ser compreendida no interior de um processo muito mais amplo: o da afirmação da “governamen- íalidade”89, Como se acenava nas páginas introdutórias, trata-se da transição de uma lógica do poder centrada no modelo da soberania para uma prática do poder que se nutre da nova “ciência de governo” , A ciência de governo redefine a articulação do nexo saber-poder no interior do qual tomam forma as técnicas disciplinares e a prisão em particular. Contra u m poder soberano que emprega os recursos e finaliza as estratégias de controle à conservação das próprias prerrogativas absolutas, entra em cena, na idade clássica, uma concepção do poder “governamental” que se dirige à população e aos fluxos produtivos que a perpassam. Foucault define a “governamentalidade” como

o con ju n to co n s titu íd o p e las in s titu içõ es, p ro ced im en to s, aná lises e re flex õ es, cá lcu lo s e tá ticas q u e p e rm item exercitar u m a fo rm a m uito específica e tam bém m uito com plexa de poder que tem com o alvo a população, com o form a principal de saber a econom ia política, e com o instrum entos técnicos essenciais os d ispositivos de segurança90.

A “governam entalidade” rep resen ta portanto a penetração da econom ia política na “razão de Estado” , isto é, naquele conjunto de saberes relativos à gestão correta de um territó rio e das suas populações. O fa to de a econom ia política se im prim ir na racionalidade de governo, perm eando as suas estra té­gias, prá ticas e institu ições, sign ifica que, a partir desse m om ento, governar um Estado e exercitar p rodu tivam ente os poderes que derivam do novo con­ceito de soberania sign ificará m ax im izar as potencialidades produtivas e in ­centivar o bem -estar d a população , ativando nesse m eio tem po m ecanism os de verificação dos resu ltados, tais com o a estatística social, os recensea- m entos, a contab ilidade nacional.

A aquisição h istórica d a consc iência de poder influir, m ed ian te estratégias de governo racional dos processos,-"Sobre as populações e sobre os fenôm e­nos econôm icos que os conformam, determina a constitu ição de novos “re ­gim es de p ráticas” , isto é, de novos aglom erados de saber e de poder que definem os objetos do governo: a produção, a saúde, a sexualidade, a hig ie­ne. U m poder fundado no p rincíp io de auto-conservação, que se traduz na possibilidade sem lim ites de reprimir tudo aquilo que constitu i um a am eaça, cede lugar a um a troca de saberes en tre o sistem a político e as nascentes

89 Sobre a “governamentalidade”, ver sobretudo o amplo trabalho de M. Dean, Governmentality. Power and Ride in Modem Society. Londres, Sage, 1999.90 Foucault. “La governamentalità”, in Foucault, Poteri e strategie, cit., p. 65.

Page 85: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

ciências sociais e biológicas, a uma idéia de poder como motor dos proces­sos, como sujeito ativo de transformação da realidade91,

O poder se torna então, progressivamente, regulação das populações atra­vés das quais o governo da sociedade é exercitado, um governo produtivo, que se insinua na complexa interação entre fenômenos sociais, processos produtivos e fluxos vitais que não devem ser impedidos, obstacu lizados e constrangidos, mas sim dirigidos, canalizados e organizados eficazmente. Ainda segundo Foucault:

A elaboração do problema população-riqueza (nos seus diversos aspec­tos concretos: fiscalidade, carestia, despovoamento, ócio-vagabun- dagem) constitui uma das condições para a formação da economia política. Esta última se desenvolve quando nos damos conta que a gestão da relação entre recursos e população não pode m ais depender exclusivamente de um sistema de tipo regulamentar e coercitivo .

A passagem da soberania como poder que proíbe a governamental idade para um poder que regula, ordena e dispõe assinala, pois, a apropriação definitiva da racionalidade econômica capitalista por parte da ciência de governo. Assim, a transcendência de um soberano que se colocava acima e fora daquilo que comandava é substituída pela im anênc ia de um governo que se coloca no in terio r dos p rocessos que regula. A s referências deste poder não serão m ais, separadamente, o território enquanto delimitação espacial do monopólio da vio lência, a soberan ia enquanto leg itim ação transcendental desse monopólio e o povo enquanto destinatário da p rópria violência, O ponto de apoio do p oder “governam ental” será, ao contrário , constitu ído pela tríade território- popu lação -riqueza, um organ ism o com plexo , um corpo social que p roduz e consom e recursos lim itados.

P ara le lam ente à form ação desta nova racionalidade, consolidam-se d is ­positivos e práticas de segurança cu ja função é garan tir o correto fu n c io n a­

91 Melossi evidencia, de forma muito apropriada, a afirmação desta concepção transformadora do poder no seu estudo sobre o processo histórico de consolida­ção do conceito de “controle social” nos Estados Unidos (conceito alternativo ao de “Estado” que domina as ciências sociais européias). O controle social condensa a capacidade do poder de informar-se a respeito da sociedade, penetrando em suas relações produtivas, em seus fenômenos culturais e em suas dinâmicas de construção do consenso. Cf. D. Melossi, The State o f Social Control. Cambridge, Polity Press, 1990.92 M. Foucault, l corsi al Collège de France. I Resumées, trad. it. Milão, Feltrinelli, 1999, p. 78.

86

Page 86: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

m ento do aparato “governam ental” e p rese rv ar o p rincip io d e m axim ização econôm ica sobre o qual e le é regido. F alando dos dispositivos de segurança, Foucault se refere a um conjunto de práticas de controle e supervisão da p o ­pulação, m as tam bém à educação, aos seguros que então despontavam , às políticas de saúde pública, em sum a, a tudo isso que perm ite a reprodução e a conservação de determ inados arranjos de gestão produtiva das populações93.

As estratégias de controle social, e em particular as penalidades e a política crim inal, integram igualm ente estes aparatos de segurança. A qui a análise da governam entalidade se interliga à m icroffsica do p o d er disciplinar: as técn icas d iscip linares, com o Foucault não se can sa de repetir, não constituem um prim a com relação à “governam entalidade” , um a fase anterior a esta e colocada a m eio cam inho en tre o esgo tam ento do m odelo da soberan ia e a o rigem da nova ciência de governo. A o con trá rio , o con tro le d isc ip linar é im anen te à governam entalidade e à b iopolítica . N e le se condensa, na realidade, um c o n ­jun to de tecnologias e prá ticas de su je ição dos corpos a p artir das quais pode ganhar fo rm a um a ciência do governo econôm ico das populações,

A penalidade, concretização peculiar das tecnologias disciplinares, assum e nesse contexto um a função com pletam ente diversa da que exercia durante a era da soberania. Também ela participa da difusão de um a concepção econôm ica e produtiva-éo poder. Assim, pode finalm ente consum ar-se a superação do suplí­cio em toda a sua teatralidade destrutiva, e o alvorecer de um a penalidade silen­ciosa, discreta, que age com sistem ática regularidade na penum bra das institui­ções totais. A penalidade torna-se, portan to , um processo m ed ian te o qual produzem -se indivíduos cu ja u tilidade - tanto com o singu laridades quanto com o partes de um a população p rodu tiva - se realiza no trabalho94.

N o en tan to , o corpo perm anece no centro. A s d iversas técn icas do p o d er se exercem sobre o corpo, nele im prim indo as suas m arcas. Sobre o corpo

93 Esta foi a definição que Foucault deu aos aparatos de segurança durante uma aula ministrada no Collège de France no dia 5 de abril de 1978: “Pôr em prática de mecanis­mos de segurança [...] mecanismos ou modos de intervenção do Estado cuja função é garantir a segurança dos fenôm enos naturais, dos processos econôm icos e dos processos intrínsecos à população, torna-se o objetivo principal da racio­nalidade governamental” (citado em G. Burchell, “Governmental Rationality. An Introduction”, in Burchell, Gordon e Miller (eds.), The Foucault Effect, cit., p .19).<m “q corpD deve ser não mais marcado, mas sim adestrado e corrigido; o seu tempo deve ser medido e plenamente utilizado; as suas forças, continuamente aplicadas ao trabalho” (Foucault, / corsi al Collège de France, cit., p. 40).

87

Page 87: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

se consum a a v io lência espe tacu lar do suplício de D am ien, que ocupa as prim eiras páginas de Vigiar e p u n ir ; sobre o corpo se fundam agora as tec­nologias d iscip linares que anunciam o fim daquele suplício . O m esm o corpo sobre o qual se m aterializava a ilim itada potência destru tiva e an iq iiiladora do p oder soberano agora se to rna objeto peculiar do poder “governam en ta l” , o núcleo sobre o qual convergem os novos saberes reguladores (as ciências biológicas, a estatística, a m edicina, a psiquiatria, a crim inologia), as novas institu ições (escolas, quarté is, hospitais, hospícios, prisões), os novos reg i­m es de práticas (a investigação , a pesquisa, o exam e, a terapia, a sentença).

A racionalidade do b iopoder d iscip linar e “governam ental” certam ente se constró i, com o se d isse m ais de um a vez, sobre um a idéia p ro d u tiv a do poder. M as esta p rodu tiv idade não se explica se não se leva em con ta um elem ento fundam ental (que perm anece enquanto tal até a crise do sistem a de produção fordista). O s d ispositivos de poder e de controle devem ser ativados produtivam ente porque ex iste um a im produtividade social d ifusa à qual é preeiso pôr um fim , um a latente d ispersão de recursos que deve ser contida, um a carência de cooperação produ tiva que deve ser recuperada. As relações capitalistas de produção excedem a força de trabalho, convocam -na para for­m as de cooperação em re lação às quais ela se revela inadequada, desp repara­da, de-socializada, carente. P ara rem ediar essas carências, o sistem a cap i­talista teve de inventar “m étodos de poder capazes de am pliar as forças, as atitudes, a vida em geral, sem, no entanto, tornar mais difícil o assujeitam ento”95.

A prisão e as dem ais institu ições d iscip linares m ateria lizam um a nova concepção do espaço e do tem po ap licada aos corpos e à população . A sin ­cronização dos gestos, a reg u lação das rffãssas de indivíduos na indústria, a re lação corpo-m áquina, são aspectos que exem plificam a racionalidade eco­nôm ica peculiar que se afirm a com a em ergência da produção industrial e se conso lidará com o desenvo lv im ento do capitalism o fordista. A s tecnologias do con tro le d iscip linar exprim em esta racionalidade, traduzindo-a em m oda­lidades específicas do pun ir96. As linhas desta evolução se articu larão , sim ul­taneam ente, seja na fábrica, onde os princípios científicos de o rgan ização do trabalho conferirão à d ireção o papel de propulsão e de governo da p rodu ti­

95 Foucault, La volontà di sapere, cit., pp. 124-125.96 “O tempo dos homens deve ser oferecido ao aparato de produção; é necessário que este possa utilizar o tempo de vida, o tempo de existência dos homens. É por isso e sob esta forma que o controle se exercita” (M. Foucault, “La verità e leforme giuridiche”, in Archivio Foucault, II, Poteri, saperí, strategie, cit., p. 157).

88

Page 88: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

vidade, seja fora da fábrica, onde as políticas keynesianas de regu lação da relação en tre econom ia e sociedade defin irão as coordenadas d a in tervenção estatal nos processos sociais97.

D ireção da em presa, regu lação das re lações en tre econom ia e sociedade e controle do desvio expressam um a racionalidade “go v ern am en ta l” na m edi­da em que se au to-constiíuem com o d ispositivos em cond ições de m itigar determ inadas insuficiências, de suprir determ inadas faltas, de in tegrar o que é deficitário , até o m om ento em que se configurarem com o d ispositivos de clisciplinamento das carências da fo rça de trabalho no confron to com a o r­ganização cap italista da produção. A fábrica deve ser governada “cien tifica­m ente” para suprir a carências de produtiv idade; a sociedade deve ser gover­nada “cien tificam ente” para fazer frente às carências de inclusão devidas aos deséquilíbrios do m ercado; o desvio deve ser tratado “cien tificam en te” para rem ediar as carências de socialização e integração que se produzem quando as outras práticas de governo falham . D e um ponto dè v ista in terno à econo­m ia política do controle social, creio que se possa sin te tizar deste m odo a sim biose en tre produção, processos sociais e práticas do con tro le d iscip linar que se desenvolveu durante o fordism o.

Nessa altura, é possível perguntar quais tecnologias de con tro le e form as de racionalidade do d o m ín io se co n stitu em a p a rtir do esg o tam en to do fordism o, do encerram ento do ciclo industrial do cap ita lism o e da transfor­m ação da força de trabalho pós-ford ista em m ultidão. Isto é, chegam os ao m om ento de perguntar que novas práticas de governo se recortam no h o ri­zonte da passagem de um regim e da carência para um regim e do excesso.

O controle co m o “não-saber”A transição do ford ism o para o pós-fordism o, m arcada pela transform a­

ção da força de trabalho contem porânea em m ultidão, determ ina m udanças significativas no terreno da racionalidade “governam ental” e dos dispositivos de controle que asseguram a sua vigência.

97A respeito do complexo disciplinar-governamental, no qual se situam, respectiva­mente, a organização taylorista da produção e o governo welfarista da sociedade, Lazzarato escreve com muita propriedade: “Na fábrica, o taylorismo radicaliza cien­tificamente a redução do corpo a organismo (sua redução aos esquemas senso-motores). O welfare articula e dissemina a população em processos de reprodução, multiplicando as figuras da sujeição (controle e instituição da família, das mulheres e das crianças, da saúde, da formação e da velhice etc.)” (Lazzarato, Lavoro immateriale, cit., p. 121).

Page 89: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

O excesso negativo é representado como um conjunto de subjetividades que excedem a lóg ica “g o vern a m en ta l”, uma vez que acentuam a contradi­ção entre uma cidadania social ainda baseada no trabalho e uma esfera pro­dutiva que cada vez tem menos necessidade de trabalho vivo. O excesso positivo se define, por seu turno, como conjunto de subjetividades que exce­dem ci racionalidade capita lista porque agudizam a contradição entre uma potencialidade produtiva ilimitada e cooperativa e um arranjo das relações de produção que cria obstáculos à autonomia do comando capitalista, impondo às relações de produção uma valorização baseada na competição.

Quando falo de exclusão social, de desemprego, de marginalidade, refe­rindo esses term os a aspectos de um excesso negativo, procuro evidenciar dois pólos de uma contradição que parece insolúvel nas condições atuais. De um lado, observamos uma sociedade cujas dinâmicas de inclusão são medi­adas pelo trabalho entendido com o emprego, como ocupação a tempo pleno, garantida, continuada e estável, em resumo, uma sociedade que continua a subordinar a titularidade dos direitos de cidadania e, em últim a instância, do direito à existência à condição de ser frabalhador ou trabalhadora. De outro lado, porém, emerge uma estrutura das relações de produção que se funda exatamente na redução e na precarização do trabalho.

O acesso à renda, à cidadania, à in tegração social e à p róp ria ex istência é, em ou tras palavras, subord inado à satisfação de um requ isito que d esap a­rece p rog ressivam en te do horizonte de possib ilidades da constitu ição m ate­rial pós-fo rd ista . Vejo aqui um a prim eira vertente da con trad ição , que as atuais estra tég ias de contro le se d ispõem a conter, rep rim ir ou in ib ir devido às suas conseqüências po tencia lm ente subversivas da ordem social: a con ­trad ição en tre os requisitos que a constitu ição form al da cidadan ia requer abstra tam ente, e os recursos que a constitu ição m aterial pós-fo rd ista p re­dispõe concretam ente .

Qilando falo de trabalho im aterial, de in telectualização da produção, de trabalho lingü ístico e de general intellect, referindo-os a aspectos do excesso po sitivo , p rocuro delinear as carac terísticas de um a con trad ição u lterior, m as em tudo com plem en tar à precedente . R efiro-m e à con trad ição entre um a fo rça de trabalho que possui, potencialm ente, capacidades e atitudes produtivas que perm itiriam superar o com ando e a organização cap ita lista do trabalho e um sistem a de relações de produção que, ao contrário , se im põe de fora, com o dom ínio puro e com ando parasitário . A contrad ição se define aqui com o excesso da a tividade - enquanto cooperação social produtiva au tônom a - sobre o trabalho - enquanto produção hetero-dirig ida de m ais-

90

Page 90: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

valia, como conflito entre um potencial de produtividade que, enraizando-se diretamente nas atitudes do corpo vivo (comunicação, invenção, criatividade), torna supérfluo o comando capitalista, e uma racionalidade vazia de empresa que, não obstante, a tudo se impõe98.

Para tentar delinear as novas configurações do nexo entre produção e controle, devemos necessariamente partir novamente da força de trabalho industrial, da classe operária, à multidão, à nova força de trabalho social cujas determinações produtivas excedem o domínio do capital, Isso signifi­cará analisar as novas geografias do controle a partir da crise da racionalidade disciplinar, isto é, a partir do esgotamento da forma de poder que se inscre­via no corpo de uma força de trabalho localizável no tempo e no espaço, definidos pela produção industrial fordista.

A passagem não é, de forma alguma, secundária. O modelo de poder que informava as tecnologias disciplinares era constituído sobre um saber particularizado, profundo e minucioso a respeito do corpo, dos indivíduos e das formas de cooperação produtiva às quais estes deviam ser submetidos. O saber-poder que constituía o pressuposto do controle disciplinar apresen­tava-se, por conseguinte, como processo de individualização pontual e pre­cisa, como cartografia exata das dinâmicas produtivas dos corpos. Era um saber retirado do corpo, que, quando se tratava de organizá-lo no interior da fábrica, voltava a imprimir-se sobre o corpo, sob a forma de prática disci­plinar e controle:

Numa instituição como a fábrica, o trabalho operário e o saber do ope­rário sobre o próprio trabalho, os melhoramentos técnicos, as peque­nas invenções e descobertas, as micro-adaptações que eles tinham con­dição de fazer no curso do seu trabalho eram imediatamente anotados e registrados e, em conseqüência, subtraídos de sua prática e acumula­dos pelo poder [...] Deste modo, o trabalho do operário vem ganhando, pouco a pouco, um certo saber da produtividade, ou um^certo saber técnico da produção que permitirá um reforço do controle .

Mas o que acontece com a passagem ao regime do excesso é exatamente a possibilidade, por parte das instituições do controle, de “extrair” este saber do corpo produtivo da multidão. O “saber da produtividade”, de que fala Foucault, permanece firmemente nas mãos (e nas mentes) da força de traba­

9S Sobre a distinção entre trabalho e atividade, ver R. Alquati, Lavoro e attivitã. Per un 'analisi delia schiavitü neomodema. Roma, Manifestolibrí, 1997.99 Foucault, "La verità e le forme giuridiche”, cit., p. 160.

91

Page 91: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

lho pós-fordista, escapa aos dispositivos de controle, recusa os seus apara­tos de captura e se mostra irredutível às categorias que empregam: valor- trabalho, competição, tem po de trabalho e tempo de não-trabalho, p roduçãoe reprodução.

Se o regim e da carência podia ser definido, em termos fouçaultianos, como o universo no qual se desenvolvia um poder-saber, talvez tenhamos chegado ao momento de dizer que o regime do excesso pós-fo rd ista se qua­lifica cada vez mais como terreno de exercício de um domínio caracterizado pelo não-saher. As determinações concretas da multidão, as suas ca rac te rís­ticas constitutivas, os seus possíveis comportamentos, as interações às quais p ode dar v ida, as formas de cooperação que constantemente alimenta, esca­pam a qualquer definição rigorosa da parte dos aparelhos de controle . Esta condição de n ão-saber q ualifica os d ispositivos de controle e os orien ta para urna função de superv isão , de lim itação do acesso, de neu tra lização e de contenção do excesso.

O controle da m ultidãoTentemos, pois, defin ir a lguns elem entos das estratégias de controle que

em ergem em torno da m ultidão pós-ford ista , detendo-nos sobretudo n aq u e­les aspectos que ev idenciam a passagem de práticas constru ídas sobre um sa b er d isc ip linar para m odalidades de controle caracterizadas por um a co n ­dição de não-saber.

N ão se tra ta de constru ir um novo paradigm a ou de defin ir um m odelo abrangen te de aná lise do con tro le social. As transform ações da fo rça de trabalho sobre as quais nos debruçam os afetam , de m odo sign ificativo , a relação en tre econom ia e contro le , e sugerem a oportunidade de repensar con jun tam ente os instrum entos conceituais da econom ia política da penali­dade. Trata-se, porém , com o já se repetiu m uitas vezes, de p rocessos de m udança tendenciais, a inda não c laram en te definíveis. E , portanto , no plano da tendência que deverá ser co lo cad a a descrição das tecnologias de contro le que ganham form a a partir destas transform ações.

O P anopticon foi considerado p o r m uito tempo com o a exem plificação m ais coeren te das tecno log ias d isc ip linares de con tro le dos ind iv íduos. A su a arqu ite tu ra funde, p lasticam en te , saber e poder, e constitui um a m etáfo ­ra histórica eficaz do processo de form ação das estratégias de o rgan ização dos corpos no espaço . N ele se co n cre tiza a u topia m oderna e cap ita lis ta de um a observab ilidade in in te rru p ta e, principalm ente, de um a transparência abso lu ta dos subord inados aos olhos do poder: um poder que vigia os mui­tos porque sabe ex a tam en te onde e quando observar; os muitos se atêm

92

Page 92: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

m inuciosam ente à no rm a porque não sabem exatam en te de onde e quando serão observados. O ra, ju s tam en te esta con caten ação de saber e poder que sin tetiza toda a econom ia do sistem a d isc ip lin a r p arece esta r sendo p rog res­sivam ente desarticu lada para ceder lugar a tecno log ias de con tro le que m i­g ram em d ireção a um reg im e de superv isão e con tenção p reven tiva de classes in teiras de sujeitos, renunciando , assim , a q u a lq u er saber sobre os indivíduos.

A m etáfora do Panopticon foi recentem ente re tom ada em algum as análi­ses sobre as transform ações do con tro le na sociedade contem porânea. S us­tentou-se, por exem plo , que as atuais tecnologias de contro le convergem para a construção de um regim e pós-panóptico , definível com o Synopticon. N a “ sociedade do espetácu lo” con tem porânea não seriam m ais os poucos a v igiar os m uitos para obrigá-los a seguir as regras, mas sim os m uitos, cons­tantem ente transform ados em “púb lico” , que adm irariam as façanhas dos poucos e in teriorizariam valores, atitudes e m odelos de com portam ento , tor- nando-se assim indivíduos responsáveis e consum idores co n fiáv e is1*’. Do m esm o m odo, sustentou-se que o Panopticon estaria sendo progressivamente substituído pelo Oligoptimn um m odelo de controle no qual grupos sociais restritos exercem um poder de vigilância dirig ido a outros grupos sociais restritos1-01. E stas descrições, em bora bastante diferen tes en tre si, parecem concordar num ponto: o esgotam ento da u top ia d isc ip linar de um saber ab ­soluto do poder para com os indivíduos, e tam bém o fato de que este grande desenho da m odern idade está sendo substitu ído hoje por tecnologias de con­trole que renunciam explicitam ente àquela utopia.

Se exam inarm os as m arcas desta renúncia, constatarem os o vislumbre de tecnologias de controle orientadas para o internam ento, para a vigilância e para a limitação do acesso. Nas páginas que se seguem pretendo oferecer alguns primeiros elem entos de descrição destas tecnologias, conferindo particular aten­ção àqueles contextos em que m e parece que elas com eçam a se m anifestar de forma m ais defmida: o cárcere a tu aria l102, a m etrópole punitiva, a rede.

100 T. Mathíesen, The Viewer Society: Michel Foucaulfs Panopticon Revisited, in Theoretical Criminology, 1-2, 1997, pp. 215-234.101 R. Boyne, Post-Panopticism , in Economy and Society, vol. 29, 2, 2000, pp.

285-307.wa O termo “atuarial” , como veremos nas páginas que se seguem, remete aos

procedimentos e às lógicas econômicas típicas das empresas de seguro. Trata-se de uma filosofia de “monetarização” do risco e gestão do perigo.

Page 93: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

O risco aprisionado - Já é quase um lugar-com um co locar a crise do fordism o por volta da prim eira m etade dos anos 1970, m ais p recisam ente em 1973, ano em que exp lode a crise do petróleo . P eriod izações ríg idas assim se prestam , obviam ente, a m uitas críticas, a prim eira das quais é a que afirm a não ser nunca socio logicam ente possível ind iv idualizar o m om ento preciso em se determ inam rupturas radicais, transições dram áticas ou pas­sagens de paradigm a. Se de um lado esta crítica parece com pletam ente razo ­ável com re lação aos fenôm enos econôm icos, do outro — no que concerne às m utações ocorridas nas estra tég ias penais contem porâneas - não o é. Em outras palavras, ocorre um m om ento de ruptura, claram ente identificável neste caso, que co incide exa tam en te com o período em que, em bora de m odo discutível, tendem os a situar a crise do sistem a fordista. E ex iste tam ­bém um lugar onde esta rup tura ocorreu: os E stados U nidos.

■ D urante o segundo pós-guerra, a população carcerária dos E stados U n i­dos seguia um a tendência constan te à queda (in tensificada, sobretudo , d u ­rante os anos Sessenta), favorecida pela contribuição dc diversos fatores. O “clim a m oral” tolerante que se seguiu à revolução dos direitos civis, o alarga­mento do E stado social e a in trodução de form as de controle alternativas ao cárcere ce rtam en te d esem p en h aram um papel im portan te n essa d ireção . Porém , na m etade dos anos 1970 ocorreu um a radical inversão de tendência. A população carcerária com eça a crescer, prim eiro gradualm ente e depois de fo rm a acelerada. P assa-se de 400 .000 presos em 1975 para 750 .000 em 1985, chegando-se à cifra de m ais de dois m ilhões em 1998 e esse cresc i­m ento ainda não dá sinal de que vai parar.

O aprisionam ento atingiu n íveis jam ais alcançados no arco de toda a h is­tó ria dos E stados U nidos, superando até m esm o bs da Á frica do Sul da época do apartheid e da R ússia pós-com unista. N os Estados U nidos a m édia de prisioneiros é cinco vezes superio r à da Europa. E se acrescentarm os aos detentos todos aqueles que estão sujeitos a algum a form a de contro le penal extra-carcerário ou para-carcerário (m edidas alternativas, probation o u parole), verificam os que a população am ericana “penalm ente con tro lada” conta, em seu conjunto , com cinco m ilhões de indivíduos.

Seria inútil procurar nas taxas de crim inalidade um a causa possível deste processo de prisão em m assa. A crim inalidade nos Estados U nidos parece ter seguido um a trajetória de substancial estabilidade no curso das últim as décadas, para depois d im inuir significativam ente a partir da segunda m etade dos anos 1990. Um outro dado que não deve ser desprezado é que cerca de m u m ilhão - i.e., a m etade - dos presos am ericanos são acusados de crim es

94

Page 94: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

não violentos e, por conseguinte, menos graves: delitos contra a proprieda­de, contra a ordem pública, delitos que envolvem o consumo de substâncias estupefacientes e, no caso dos migrantes, violações da disciplina sobre a imigração.

O quadro que emerge daí nos inform a claramente que o grande in­ternamento inaugurado pelos Estados Unidos está ligado mais a uma mudan­ça da política repressiva e das estratégias de controle do que à criminalidade. Se atentarmos para a composição da população reclusa, compreendermos também em que direção se processou esta mudança, quais são as coordena­das de fundo da nova estratégia repressiva e quais são as suas vítimas.

Os afro-americanos constituem 12% da população norte-americana, mas já há dez anos eles representam a maioria absoluta da sua população carcerária. Em 1950, ela era constituída de 66% de brancos e 32%; de negros. Quarenta anos depois, os percentuais se inverteram: os brancos representam pouco menos de 30%, enquanto os afro-americanos chegam a cerca de 60%. Se levarmos em consideração, especificamente, as taxas de detenção (ou seja, o número de presos por 100.000 habitantes), verificamos que, enquanto entre os brancos detidos a proporção é de 900 ern 100.000, entre os afro-america­nos detidos essa relação chega a quase 7.000 por 100.000. Vale dizer que a probabilidade de um afro-americano terminar na prisão é mais de sete vezes superior à de um branco. Traduzido em termos ainda mais claros, um afro- americano em três, na faixa etária compreendida entre 18 e 35 anos, está preso ou submetido a alguma medida alternativa ao cárcere. Estes dados nos falam de uma guerra declarada à população negra pelo sistema repressivo norte- americano. De fato, para fornecer uma legitimação pública ao encarceramento de massa dos negros americanos, foi usada uma autêntica retórica militar (war on crime, war on dritgs, zero toiercmce)m . ^

Esses dados devem ainda ser cruzados com os relativos à composição de classe da população prisional, e o resultado disso é revelador. A expansão do sistema penal coincidiu, com um timing que se pode dizer quase perfeito, com a progressiva demolição do Estado social. Ao aumento vertical do encarceramento correspondeu, no mesmo período e com a mesma rapidez, uma redução também vertical do amparo às famílias pobres, da assistência social e da ajuda aos desempregados. Por exemplo, apenas no período que se estende de 1993 a 1998 registrou-se uma queda de 44% do-número de

103 Ver J. Mi 11 er, Search and Destroy. African-American Males in the Criminal Justice System. Cambridge, Cambridge University Press, 1996.

95

Page 95: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

fam ílias que recebem o amparo público para filhos dependen tes (A FD C ), principal form a de subsídio aos pobres concedida pelo w elfare dos Estados U nidos. Estudos recentes demonstram, além disso, que o aumento da seve­ridade penal foi mais profundo exatamente nos estados norte-americanos que primeiro se mobilizaram para reduzir as medidas de welfare (por exem­plo, Texas, C alifórnia, Lousiana, A rizona)104. O fato de a população carcerária ser constituída em sua imensa maioria por pobres, desempregados e subem - pregados não é nenhuma novidade; ao contrário , trata-se de um a constan te h istórica que os recentes acontecim entos am ericanos serv iram apenas para evidenciar. O que m udou, porém , e de m odo significativo, foi a re lação entre instituições sociais e institu ições penais na gestão da pobreza.

A s “populações problem áticas” , vale dizer o surplus de força de trabalho determ inado pela reestruturação capitalista pós-fordista, são geridas cada vez m enos pelos instrum entos de regulação “social” da pobreza e cada vez mais pelos dispositivos de repressão penal do desvio. D eriva daí aquela transição “do Estado social ao Estado penal” de que fala Loíc W acquant, quando define “a irresistível ascensão do Estado penal am ericano” com o um a estra tég ia de “crim inalização da miséria funcional pela imposição da condição salarial precária e sub-rcm unerada” , que se desenrola paralelamente ã “concomitante reformulação dos program as sociais no sentido punitivo” 105. O m esm o W acquant nos adver­te, porém , que estas tendências não dizem respeito apenas aos Estados Unidos e que um novo “sentido com um penal neoliberal” se difunde progressivam ente tam bém na Europa. N ão é difícil identificar os traços que parecem aproxim ar o grande internam ento europeu ao norte-am eriçano. Nos últim os dez anos as taxas de aprisionam ento aum entaram em cerca de 40% na Itália, Inglaterra e França, 140% em Portugal, 200% na Espanha e nos Países Baixos. Os únicos países onde foi registrada um a ligeira contra-tendência foram a Alem anha, a Áustria e a Finlândia.

M as indo além dos aspectos quantitativos, eloqüentes ao dem onstrar que o encarceram ento aum entou em todos os países europeus com um a rapidez que pouco tem a invejar dos Estados U nidos, tam bém aqui o aspecto m ais significa­tivo é representado pela com posição da população carcerária. Se é verdade que nos E stados U nidos o cárcere tende a se tornar cada vez mais “negro” e “po­bre” , os m esm os fenôm enos tam bém são observáveis nas prisões da Europa.

104 B. Western e K. Beckett, “Governing Social Marginality: Welfare, Incarceration, and the Transformation of State Policy”, in D. Garland (ed.), Mass Imprisonment. Social Causes and Consequences. Londres, Sage, 2001, pp. 35-50.105 L. Wacquant, Pa rol a d 'ordine; tolleranza zero, cit., p. 70.

96

Page 96: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

Os m igrantes estão super-representados em todos os sistem as carcerários europeus, Na Itália, por exem plo, de 1990 até hoje o percentual de m igrantes no total da população carcerária passou de 15% para 30% . Esse dado é efetiva­mente preocupante se levarmos em conta que os migrantes constituem apenas cerca de 2% da população residente no país1'16. Como no resto da Europa, também na Itália o hiper-encarceram ento dos migrantes é acompanhado, siste­maticamente, pelo dos tóxico-dependentes e dos desempregados. Emerge daí, assim, a im agem dramática de um cárcere dos “três terços”: um terço de im i­grantes, um terço de tóxico-dependentes e um terço de desempregados.

Estas são, portanto, as coordenadas de conjunto da nova estratégia repres­siva euro-americana que servem de páno de fundo à transição do fordismo ao pós-fordismo e do “Estado social” ao “Estado penal”. Todavia, é legítimo in­dagar até que ponto esta estratégia difere das práticas disciplinares que já co­nhecíamos. No fundo, o que.exam inam os não é outra coisa senão a progressiva centralidade alcançada pelo cárcere, isto é, pelo dispositivo disciplinar par exceUence na gestão da nova força de trabalho e dos grupos sociais marginais, grupos que, por sua vez, se ampliam cada vez mais em conseqüência do au­mento do desemprego, da precarização do trabalho e do empobrecimento de massa que se seguiram u reestruturação do welfare. Poder-se-ía, em suma, pensar que o grande internamento contemporâneo não é algo muito diferente do que Foucault descreveu, e que, no fundo, o projeto disciplinar não tenha sido nem de longe extinto e que, ainda uma vez, o objetivo dos dispositivos de con­trole seja o disciplinam ento da força de trabalho desqualificada.

O caráter ilusório desta impressão aparece claramente, porém, se observar­mos a nova racionalidade do controle que parece inspirar o experimento carcerário em andamento. O conceito qualificante desta racionalidade é o de risco. As novas estratégias penais se caracterizam cada vez mais como dispositivos de gestão do risco e de repressão preventiva das populações consideradas porta­doras desse risco. Não se trata de aprisionar criminosos perigosos individuais, isto é, de neutralizar fatores de risco individual, mas sim de gerir, ao nível de populações inteiras, uma carga de risco que não se pode (e, de resto, não se está interessado em) reduzir. A racionalidade que estamos descrevendo não é disci­plinar, e sim atuarial™.

106 y er Palidda, “Devianza e vittimizzazione ira i migranti” . Quaderni IS MU 2/ 2001. Milão, Fondazione Cariplo, 2001.107 Sobre a emergência do modelo atuarial de controle penal, ver M. Felley e J. Simon, “The New Penology. Notes on the Emerging Strategies of Corrections and its Implications” , in Criminology, XXX, 4, 1992, pp. 449-474; M. Felley e J. Simon,

97

Page 97: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

O recru tam ento da população carcerária ocorre com base na identifica­ção (mas m elhor seria dizer “ invenção”) das classes de sujeitos consideradas produtoras de risco, potencia lm ente desviantes e perigosas para a ordem constituída. A ssim , não são mais tanto as características individuais dos sujeitos que consti tuem o pressuposto (e ao m esm o tem po o objeto) das estratégias de controle, mas sim aqueles indícios de probabilidades que per­m item reconduzir determ inados sujeitos a classes perigosas especificas. Isso significa, concretam ente , que categorias inteiras de indivíduos deixam virtu­alm ente de com eter crimes para se tornarem , elas mesmas, c r im e108.

D evem os pensar ainda uma vez nos migrantes, em relação aos quais são ativadas práticas de controle repressivo e para-carcerário já to talmente inde­pendentes do seu agir concreto e sim ligadas à sua construção (e ao seu tratamento) com o classes perigosas, categorias de risco, agregados de peri­go potencial. Repetiu-se e denunciou-se insistentemente que os “centros de detenção para m igrantes” , que foram disseminados pelos territórios da forta­leza européia, são de fato prisões e que o regim e carcerário ao qu al são subm etidos os m igrantes aí mantidos não oferece sequer aquelas poucas garantias juríd icas de que a condição de detento, ao menos form alm ente, “goza” . Talvez tenha chegado o momento de inverter este raciocínio e de per­guntarmos se não são os próprios centros de detenção para migrantes que constituem o novo modelo no qual, progressivamente, as prisões pós-fordistas se inspirarão. Esses centros se configuram como dispositivos prepostos à con­tenção de um a população excedente e de um surplus de força de trabalho desqualificada; eles prescindem explicitam ente da consum ação de um delito, das características individuais de quem está detido neles e de qualquer finalidade reeducativa ou correcional, para orientar-se no sentido da “estocagem ” de ca te ­gorias in teiras de in d iv íd u o ^co n sid erad as de risco. O cárcere atuarial, da m esm a m aneira que o centro de detenção para m igrantes, torna-se então, e cada vez m ais, um a zona de espera em que se procede à alocação dos ind iv í­duos singu lares às d iversas classes de risco das quais deverão continuar a fazer parte no futuro.

“Actuarial Justice: The Emerging New Criminal Law”, in D. Nelken (ed.), The Futures o f Criminology. Londres, Sage, 1994, pp. 173-201; P. 0 ’Malley, “Legal Networks and Domestic Security”, in Studies in Law, Poli ti cs and Society, XI/ 1991, pp. 170-190; P. 0 ’MaIley, “Risk, Power and Crime Prevenlion”, in Economy and Society, XXI, 3, 1992, pp. 252-275.108 Sobre este assunto, ver L, Morris, Dangerous Class. The Underclass and

Social Citizenship. Londres, Routledge, 1999.

98

Page 98: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

Por conseguinte, a concretude do indivíduo, as modulações reais da inte­ração social, são substituídas por representações p ro bab ilís ticas baseadas na produção estatística de classe, simulacros do real: imigrantes clandestinos, afro-amerícanos do gueto, tóxico-dependentes, desempregados. Enquanto a reclusão disciplinar era uma espécie de “laboratório” - no quai o desenvolvi­mento das tecnologias de controle alimentava, constantemente, novos sabe­res sobre os sujeitos, que, depois, eram reflexivamente aplicados às mesmas tecnologias para melhorar a sua capacitlade de penetração da realidade o encarceramento de massa atuarial renuncia expressamente a tudo isso. O atuarialismo penal declara, assim, a irrelevância do saber sobre os indivíduos e o substitui pela construção de categorias e formas de individualização com ­pletamente arbitrárias, baseadas no conceito de periculosidade e orientadas para a contenção dos riscos.

As determinações peculiares do sujeito, que as tecnologias disciplinares pretendiam m istu ra r, dobra r e transfo rm ar, são substitu ídas por agregados estatísticos que oferecem às agências da repressão a nova lin ha -gu ia para a seleção da população carcerária. A atuariaiização do con tro le se m a te ria liza assim num con jun to de práticas que desestruturam os índ iv íduos e os su b s­tituem po r construções a r t if ic ia is que, po r sua vez, a lim en tam práticas de contenção preventiva109.

A lógica atuarial evidencia, certamente, a penetração de uma racionalidade gerencial no sistema de controle, uma racionalidade que torna seus os prin­cípios de economízação dos recursos, de monetarização dos riscos, de efe­tividade da relação custo-benefício110. Mas o ingresso nestes mecanismos constitui uma racionalidade econômica "pós-fordista ”. Cada vez mais estranha à complexidade do real e incapaz de penetrar a matéria sobre a qual exerce o domínio, ela substitui a regulação das forças sobre as quais se desenvolve pela redução ao mínimo das potencialidades que não controla. E exatamente a dificuldade crescente em distinguir o desviante do precário, o criminoso do irregular, o trabalhador da economia ilegal do trabalhador da economia infor­mal que determina o reagrupamento da diversidade em classe perigosa. Pa­rece-me que se torna possível aqui reconhecer uma afinidade particular en-

109 Para uma análise mais articulada da lógica atuarial e da sua penetração na penalidade contemporânea, permito-me remeter ao meu livro Zero Tolleranza. Strategie e pratiche delia società di controllo. Roma, DeriveApprodi, 2000.110 Sobre estes aspectos do atuarialismo', ver 1. Taylor, Crime in Context. A Criticai Crhninology o f Market Societies. Cambridge, Polity Press, 1999.

99

Page 99: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

jtre um p o d er de contro le incapaz de exercitar qualquer função d isc ip linar de transfo rm ação dos sujeitos e um a racionalidade cap ita lista que, igualm ente d istan te das d inâm icas da p rodutiv idade social, p ro je ta-se sobre a fo rça de trabalho p ós-fo rd ista sob a form a de controle ex terno puro.

C onvém , por outro lado, reconhecer que a lóg ica securitária, na qual as p rá ticas do con tro le atuarial se inspiram , não represen ta um a novidade abso-

; luta. O E stado social pode ser, de fato , represen tado com o um m odelo deI regu lação d a sociedade que con juga eficazm ente o parad igm a disciplw or-de• con tro le sob re os su jeitos com um sistem a de socialização atuarial dos riscos| que a fe tam as p o p u laçõ es em seu con jun to . É a p a rtir d esta in sta lação

b iopo lítica q ue se com preende o nascim ento dos sistem as san itários nac io ­nais, da p rev idência social, das legislações sobre acidentes de trabalho . Era todos esses casos um a lógica securitá ria inform a e racionaliza os d isp o siti­vos b iopo líticos de regulação da p o p u laçã o "1. O que hoje m e parece dec id i­dam ente novo é o m odo pelo qual a tecnologia securitá ria se con juga às novas estra tég ias de controle. E nquan to na tradução w elfarista as técnicas secu ritá rias representavam um m ecan ism o de regulação o rien tado para a socialização dos riscos coletivos e alim entavam formas de interação social fundadas na cooperação, na em paíia e na solidariedade, as técnicas atuariais de con tro le contem porâneas operam exatam ente na d ireção oposta, lim itan­do, neu tra lizando e desestru tu rando form as da in teração social percebidas

| com o de risco . A o com binar sistem aticam ente estra tég ias políticas que ali-• m entam a construção social de um im aginário da insegurança, do risco e da• am eaça c rim in al p roveniente do “estrangeiro” , as tecno log ias atuariais se

revelam , ao m esm o tem po, um instrum ento dè con tenção da força de traba­lho exceden te e um dispositivo sim bólico de desconstrução dos elos sociais d a m ultidão pós-ford ista .

O en carceram en to de m assa, susten tado por re tó ricas de guerra, inva­são e asséd io , perm ite atribu ir ao excesso negativo a fis ionom ia da nova c lasse p erig o sa e de d e-socia lizar a m ultidão pós-fo rd ista , substitu indo os laço s d e co o p e ra ç ã o p o r aqu ilo que P at 0 ’M alley d e fin e co m o “ novo p ru d en c ia lism o ” , um reg im e de descon fiança un iversa l que im pede o reco-

111 É a François Ewald que devemos os estudos mais significativos sobre a rela­ção entre a emergência da lógica atuarial e o nascimento do Estado social. F. Ewald, L'État-Providence. Paris, Grasset, 1986; F. Ewald, “Norms, Discipline and the Law”, in Representations, 30, 1990, pp. 136-161; F. Ewald, “Insurance and Risk” , in Burchell, Gordon & Miller (eds.), The Foucault Effect, cit., pp. 197-210.

100

Page 100: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

nhecimento reciproco dos indivíduos como parte de uma mesma força de trabalho social112.

Estes processos de construção social da diversidade como algo de risco (dos lugares, das situações, dos indivíduos e de grupos inteiros) inscrevem novas hierarquias na superfície da multidão e impõem novas distâncias no seu interior. Desse modo, a multiplicidade, a mistura de linguagens, a irredu- tibilidade das experiências, em suma, todas aquelas características que nos permitem definir a força de trabalho contemporânea como uma multidão, são redefinidas pelas estratégias de controle como fontes de incerteza per­manente, fobia do diferente e pânico pelo imprevisível113.

Hoje, a conservação da ordem social parece invocar, insistentemente, a implementação de uma estratégia de controle capaz de desarticular exata­mente aquelas formas de socialização e de cooperação social que antes fora nçcessário alimentar uma vez que constituíam o fundamento da produtivi­dade fordista. E isso acontece porque hoje aquelas formas de cooperação escapam constantemente ao controle, fogem de qualquer cartografia disci­plinar e assumem a fisionomia de eventos de risco, que devem ser evitados a qualquer preço"4.

112 Ver em particular P. 0 ’Malley, “Risk, Crime and Prudentialism Revisíted”, in K. Stenson e R. Sullivan (eds.), Crime, Risk and Justice. The Politics o f Crime Control in Liberal Democracies. Devem, Willan, 2001, pp. 89-103.113 Para uma descrição dos processos de construção do “estrangeiro” e da sua função quanto à reprodução.de uma incerteza existencial que legitima o domínio, ver Z. Bauman, La società dell'inôertezza, trad. it. Bolonha, 11 Mulino, 1999.114 Neste contexto insere-se também o processo de “normalização da emergência” a

que assistimos na sociedade contemporânea. Estamos nos referindo à jã sistemática recolocação de “emergências” criminais que permitem, ao mesmo tempo, construir as novas classes perigosas (dar-lhes uma fisionomia reconhecível: pedófllos, sáta- nistas, fundamentalistas islâmicos, hackers, albaneses, nômades etc.) e produzir consenso social em torno de novas medidas repressivas. Pode-se falar de normaliza­ção em dois sentidos: porque estas emergências são cada vez mais freqüentes, mas sobretudo porque, uma vez cessadas (isto é, desaparecidas do cenário mass-midiático, seu único plano de existência), as medidas repressivas adotadas para fazer-lhes frente permanecem em vigor, normalizando os efeitos de limitação das liberdades que daí derivam. Ver em particular L. Blisset Project, Nemici dei/o Stato. Criininali “nostri’ e leggi speciali nella società di controllo, Roma, Derive Approdi, 1999, e o meu artigo “La qualità totale dei controllo”, in De ri veA pp rodi, 19, 2000, pp. 99-102.

101

Page 101: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

A m etrópo le pun itiva - P resença constante na literatura c rim ino lóg ica contem porânea, a cidade parece sef candidata a representar o cenário tanto das utopias de controle mais am biciosas quando das distopías repressivas mais angustiantes. j.

E m Vigiar e pun ir, Michel Foucault analisava o sonho m oderno da “cida­de punitiva” , um a cidade em cujo território as tecnologias disciplinares, trans­postos os muros das instituições panópticas, expandem -se até transform á-la num teatro infinito de m icro-práticas p u n itiv as115. Há vinte anos, descobri­mos, com M ike D avis, que a Los A hgeles de hoje não é aquele jo g o perfeito de encaixes disciplinares, mas sim um a “c idade de quartzo” , um a fortaleza pós-m oderna de prism as, na q t ia l 'a obsessão do controle se re fra ta e se agiganta, criando figuras cada vez mais distantes daquela u topia discipli­n a r " 6. As práticas disciplinares abandonam certam ente o cárcere, m as não para difundir-se além do seu períirfôtro no interior do espaço urbano, com o Foucault havia anunciado e outros depois dele haviam o b se rv ad o 117, mas para afastar-se progressivam ente tam bém deste.

N ão mais s im plesm ente tcaíro 3o controle, a cidade torna-se agora, ela m esm a, um “reg im e de práticas”’de controle. A arquitetura urbana não se lim ita a tornar possível a vigilância, segundo o modelo foucaultiano da c ida­de punitiva, rrias sim se transform a,'ela m esm a, em d ispositivo de v igilância, m odalidade de um a repressão que se exerce, ainda um a véz, não mais sobre os indivíduos singulares, mas sobre.classes inteiras de sujeitos. E ainda mais- importante, a c idade não parece funcionar com o um m ecanism o orientado para determinar, nos indivíduos, a in teriorização de valores disciplinares, a aquisição de m odelos de com portam ento regulados, a obediência a estilos de vida pré-constitu ídos. Perpassada por u m a m ultidão produtiva que foge às categorias disciplinares de norm alidade e patologia social, conform idade e desvio, operosidade e pericu losidade, abarcando todas, m as sem se deixar identificar com nenhum a delas,-a cidade pós-discip linar im põe aquilo que, com B aum an, podem os talvez definir com o um a “ordem sem nprm a” 1’8. A

1,5 Foucault, Sorvegliare e punire, cíí.116 M. Davis, Città di quarzo. Indagando sul futuro in Los Angeles, trad. it. Roma,Manifesto! ibri, 1999. -117 Ver, por exemplo, S. Cohen, “Tlíê. Punitive City: Notes on the Dispersai of Social Control”, in Contemporary Crises, 3, 1979, pp. 339-363.118 Z. Bauman, Work Consuinerism, and the New Poor. Buckingham , Open

University Press, 2001, p. 85. !_

102

Page 102: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

n o v a arquitetura urbana e as políticas de controle que nela se apo iam - quer se cham e to lerância zero ou n e ig h b o u rh o o d w a tch , ou ainda vig ilância e le ­trôn ica ou com m uniiy p o lic in g - a l im entam u m a geografia social totalmente independen te dos com portam entos individuais (ausência de u m a norma), preparada para a segregação e a contenção de classes de ind iv íduos defin i­das pelo staítis (im posição de u m a ordem).

As 21 .000 te le-câm eras de c ircuito fechado que estão insta ladas nos territórios urbanos da Inglaterra, as torres direcionais de Los A ngeles (m u­nidas de “olfato, sensibilidade à um idade e à tem pera tu ra” , capacidade de “detecção dos m ovim entos e, em alguns casos, de e scu ta” 119), os. ins tru ­m entos de detecção biom étrica das identidades d issem inados nas principais m etrópoles ocidentais, os detectores de metais que, d iante da indiferença generalizada, procedem a sistem áticas “perquisições im a te ria is” 120, en fim todos estes dispositivos de v igilância não configuram u m único, eno rm e e onipresente panopticon. O seu objetivo, na realidade, não é con tro lar os indivíduos, mas sim constru í-los, reunindo “ fragm entos fac tu a is” que, no seu con jun to , perm item d esig n ar os indivíduos a esta ou àq u e la c lasse de risco: “o objetivo não é necessariam ente colher no vôo q u a lq u e r evento atual [...] mas sim antecipar as ações, plani ficar qualquer even tua lidade” 121. Pelo contrário , as classificações atuariais p roduzidas p o r esses processos (e que, por sua vez, as inspiram) não têm tanto a função de detec tar populações a serem disciplinadas, regu ladas ou “ norm alizadas” ; sua função é m uito m ais a de d iferenciar as possib ilidades de acesso a (ou de fu g a de) determ inadas zonas da cidade.

E m outras palavras, estas tecnologias se erigem com o pro teção dos guetos “ v o lu n tá rio s” (centros co m erc ia is , parques tem áticos, ae ro p o rto s , gatecl com num ities) e “involuntários.” (os guetos p ropriam ente d itos) que com põem a cidade pós-fordista, garan tindo o respeito aos crité rios q u e regulam os fluxos de entrada 011 saída de uns e outros. D esse m odo, elas “ ind icam ” as no-go-areas d issem inadas pela m etrópole e assinalam v isualm ente que existe

1,9 M. Davis, Geografie delia paiira. Los Angeles: Uiminaginario colletivo dei disastro. Milão, Feltrinelli, 1999, p. 382. [N. do T.: edição brasileira. Estratégia do medo. Los Angeles e a fabricação de um desastre. Rio de Janeiro, Record, 2001, tradução de Aluízio Pestana da Costa],120 O. Razac, Storia política dei filo spinato, trad. it. Verona, Ombrecorte, 2001.121 D. Lyon, Surveillance Society, Monitoring Everyday Life. Buckingham, Opcn

University Press, 2001, p. 54.

103

Page 103: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

uma diferença fundamental entre “aqueles que, na cidade pós-m oderna, lêem o av iso no-go-area com o ‘eu não quero e n tra r’” e “aqueles para quem no go se traduz por ‘eu não posso sa ir” ’122.

A m etrópo le p ós-fo rd ista isola, no seu interior, espaços de reclusão que desa rticu lam violentamente as m ultidões, rep roduzindo um a separação a rti­ficial en te aquilo que definimos com o excesso negativo e excesso p o s itiv o , d iferenciando sele tivam ente as possibilidades de m ovim ento e in teração: “E assim c riad a um a esco la social, m ensurável de acordo com a capacidade de acesso aos lugares sim bolicam ente e/ou econom icam ente valorizados” m . A cidade abstém -se defin itivam en te de envergar as vestes do “espaço p ú b lico ” p a ra tran sfo rm ar-se num aparato de cap tu ra e v ig ilân c ia de p opu lações o b serv áv eis à distância. O con tro le se m ateria liza num a arquite tura q u e não regu la o encon tro , m as o im pede, não governa a in teração, m as cria o b stá ­cu los a e la , não d isc ip lin a as p resenças, m as as to rna invisíveis. B arre iras sim bó licas e fron te iras m ateria is p roduzem assim exclusão e inclusão.

D iante da incapacidade de governar, regular e disciplinar os com portam en­tos da multidão, os dispositivos do controle urbano se limitam à vigilância e à contenção de massa, reconstruindo, no interior das cidades globais, aquelas fronteiras externas que mostram sinais de desm oronam ento diante da constitui­ção de um espaço im perial virtualm ente livre de fronteiras e das pressões m igra­tórias da força de trabalho global sobre os lim ites nacionais. Redesenham -se aqui os novos contornos do gueto urbano que, em “sim biose m ortal” co m o d isp o sitiv o carcerário , co loca-se com o garan te das estratégias de frag m en ­tação e separação h ierárqu ica da força de trabalho, restabelecendo artific ia l­m en te a d iferença e a distância social entre “inclu ídos” e “exclu ídos” 124.

122 Bauman, La societcijielVincertezza, cit., p. 70.123 Razac, Storia política dei filo spinato, cit., p. 91. Ver também M. Ilardi, Negli

spazi vuoti deila metropoü. Distruzione, disordine, trcidimento deli 'ultimo uoino. Turim, Bollati Boringhieri, 1999, e A. Petrillo, La città pereluta. Ueclisse delia dimensione urbana nel mondo contemporâneo. Bari, Dedalo, 2000.124 Sobre a idéia de uma equivalência funcional que desemboca numa verdadeira “simbiose” entre gueto e prisão, ver L. Wacquant, “Deadly Symbiosis: When Ghetto and Prison Meet and Mesli”, in D. Garland (ed.), Mass Imprisonment, cit., pp. 82-120. Vale dizer, porém, que já em 1980 Dario Melossi prefigurava estes desenvolvimentos e prenunciava a afirmação das estratégias de contenção urbana e de guetização como substitutos das políticas de controle através do welfare. Cf, D, Melossi, “Oltre Í1 Panopticon. Per uno studio delle strategie di controllo sociale nel capitalismo dei ventesimo secolo”, in La questione criminale, VI, 2-3, 1980, pp. 277-361.104

Page 104: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

A reestru tu ração das cidades de aco rdo com linhas de fo rtificação e perím etros de segurança dá consistência p lástica à separação entre classes p erigosas e c lasses lab o rio sas que co n stitu i o ún ico te rren o co locado à d isposição dos d ispositivos de con tro le para con ter o excesso da m ultidão. A segregação dos m ig ran tes nas cidades européias, a reclusão da força de trabalho afro-am ericana, h ispano-am ericana e oriental nas m etrópoles dos E stados U nidos e, em geral, a institu ição de zonas urbanas de acessib ilidade d ife re n c ia d a a lim e n ta m um re g im e d a e s tra n h e z a , c u jo o b je tiv o é a desestruturação da m ultidão, a ruptura daqueles laços de em patia e cooperação que, do ponto de v ista do dom ínio , represen tam um perigo extrem o. O efeito é a segm entação da m ultidão através de um a ecologia do m edo que, na cidade, se m aterializa na figura do estrangeiro , do im igrante, do desem pregado , do dependente de drogas.

A contenção do excesso negativo alim enta a sua construção social com o classe perigosa, com o en tidade im previsível. A í se ev idencia o crepúsculo de um poder d iscip linar que cultivava a am bição de p roduzir sujeitos úteis, e o alvorecer de um poder de contro le que se limita a v ig iar populações cujas formas de vida não consegue colher. E m conseqüência,

o desvio, visto no contexto da interação social, é, essencialmente, mais projetado do que m aterializado, mais tem ido do que deplorado, mais evitado do que contrastado, mais prevenido do que suprim ido. T rata-se de um a esfera sociocognitiva com pletam ente renovada, que em erge do conflito bem delineado entre territórios governados e “ou­tros perigosos” ~ .

A atribuição de um a função de contro le ao espaço - d issociada das carac­terísticas individuais dos sujeitos, separada das form as específicas da interação entre eles, indiferente às m odalidades de socialização concreta dos ind iv ídu­os e fundada sobre a construção social de perigos cujas características fo­gem a toda e-qu alq u er com preensão precisa - ev idencia até que ponto a lógica do risco é o resultado de um a perda de contato sobre o real da parte dos aparelhos de controle. E les operam com o pura inibição de processos de interação que não governam , renunciando a qualquer função positiva, p rodu­tiva e transform adora.

A rede im bricada - N esse m eio tem po, a econom ia da rede reclam a n o ­vas form as de controle à altura das transform ações que perpassaram a p ro ­

125 M.Lianos e M.Douglas, “ Dangerization and the End of Deviance. The Insti- tutiona! Envíronment” , in The British Journal o f Criminology, XI, 2, 2000, p. 274.

105

Page 105: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

dução imaterial. O ciberespaço representa o âmbito de expansão máxima da produtividade informatizada, o não-lugarno qual se concretiza (ou se virtualiza)a cooperação produtiva da multidão, mas também um terreno de conflito potencial em contínua expansão:

é no ciberespaço que o capital procura agora assegurar comando total, controle e capacidade comunicativa que lhe permita, como dizia Marx, “apropriar-se, além do trabalho [...] também das suas redes de relações sociais” . Mas ao mesmo tempo, é nesta esfera virtual que estão acontecendo alguns dos experimentos mais signifi­cativos do contra-poder comunicativo " .

Compreende-se, assim, por que hoje o controle se articula em torno da definição do quanto e do conto ter acesso, com base em quais requisitos e com quais limites, à rede, às informações, à inovação, ao saber. O controle se exercita não tanto mais sobre o uso concreto de determinados recursos - porque quando os efeitos deste uso se produzem já é muito tarde - e sim, preventivamente, sobre os efeitos que o acesso descontrolado a eles poderia determinar, isto c. mais uma vez. sobre o risco:

As novas emergências moleculares são produzidas para moni­torar, controlar e censurar a comunicação telemática, e mais preci­samente os comportamentos dos novos trabalhadores do imaterial, sujeitos que se apropriam do know-how e da capacidade de inova­ção, adquirindo cada vez mais autonomia da organização do coman­do, e cujo uso das redes e do computador pode, a qualquer momen­to. tornar dísfuncional, transformar-se em sabota sem, conexão das

127 ^lutas, “desobediência civil eletrônica” .

Também aqui, porém, emergem algumas contradições insanáveis, que revelam a vulnerabilidade e a estranheza das formas do domínio na sua rela­ção com a nova força de trabalho imaterial: de um lado, apenas o acesso universal - potencialmente indiscriminado e horizontalmente co-dividido às informações - aos dados, aos signos e ao espaço virtual permite à produtividade lingüística e imaterial exprimir-se plenamente; de outro lado, exatamente o acesso e esta co-divisão generalizada parecem minar os próprios fundamen­tos da expropriação e da valorização capitalista dos novos fatores produti­vos, visto que privam de sentido os mesmos conceitos de “apropriação” e

126 N. D. Witheford, Cyber-Marx, Cycles and Circuits o f S in iggie in High- Technology Capitalism. Urbana, University of Illinois Press, 1999, p. 122.127 Blisset Project, Nemici dello St ato, cit., p. 15.

106

Page 106: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

“propriedade” . No momento em que estende o próprio domínio para além da esfera do real, projetando-o sobre a dimensão virtual, o capital lança, paradoxal­mente, as bases para a própria dissolução, inaugurando continuamente novas frentes em que se materializa o excedente da força de trabalho pós-fordista.

Por conseguinte, os trabalhadores do imaterial devem ser impedidos de ter acesso a informações que possam colocar em perigo a exclusividade de uma ação relacionada aos procedimentos de tratamento dos dados. O acesso a determinados serviços informáticos deve ser subordinado à posse de uma password capaz de individualizar aquele ou aqueles que demonstrem contar com os requisitos que assegurem ao sistema um uso previsível e não arris­cado dos próprios serviços. Voltam assim à mente as palavras de Deleuze:

Nas sociedades de controle [...] o essencial não é nem uma firma nem um número, mas uma cifra; a cifra é uma password, uma vez que as sociedades disciplinares são reguladas por palavras de ordem [...]. À linguagem digital do controle é feita de cifras que assinalam o acesso à informação, ou a recusa. Não nos encontramos mais diantedo par massa/indivíduo. Os indivíduos tornaram-se “divíduos”, e as

‘ 12Á

massas amostras estatísticas, dados, mercados ou “bancos” .Estas estratégias de controle preventivo não podem, no entanto, escapar

de uma contradição constitutiva, que as leva ao limite do paradoxo. Elas pretendem estabelecer um regime da previsibilidade absoluta, da antecipação e da categorização, ali onde a produtividade da multidão se baseia exatamente no oposto, i.e., na imprevisibilidade, no inédito, no que não se repete. Por outro lado, porém, estas estratégias não podem manter-se sempre fora dos processos de comunicação e troca que animam os fluxos da produção virtu­al, configurando-se, conseqüentemente, como limite imposto ao livre desen­rolar destes mesmos fluxos. Uma vez mais, poréfh, este limite não pode ser empurrado até se tornar imposição de uma verdadeira disciplina, porque esta esgotaria os requisitos da própria produtividade.

A co-divisão horizontal de informações e o acesso indiscriminado aos não-lugares nos quais elas são produzidas representam hoje as formas mais

128 G. Deleuze, “La società dei controllo” , in G. Deleuze, Pourparlers, trad. it. Macerata, Quodlibet, 2000, p. 239 [N, do T.: edição brasileira Conversações, 1972- 1990. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992, tradução de Peter Pál Pelbart], Para uma resenha dos problemas de controle causados pelo desenvolvimento da rede, ver D. Thomas e B. Loader (eds.) Cybercrime. Law Enforcement, Security and Surveil- lance in the Information Age. Nova Iorque, Routledge, 2000.

107

Page 107: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

graves de atentado à apropriação capitalista dos meios de produção, e as novas estratégias de controle tentam, em meio a contradições e paradoxos, dispor desta apropriação. Compreende-se, assim, por que não é exagerado afirmar que “a Internet é o mais importante bode expiatório dos nossos tem­pos, a mãe de todas as novas emergências, a jihad que pressupõe e justifica toda e qualquer guerra local” 129.

Tudo isso nos reporta, significativamente, aos albores do modo de pro­dução capitalista, quando na Inglaterra, na transição entre os séculos XVIII e XIX, foi exatamente a difusão das manufaturas, das máquinas, dos esto­ques de mercadorias e dos negócios o que constituiu o pressuposto do nas­cimento da polícia moderna:

Esses haveres - constituídos por estoques, por matérias-primas, por objetos importados, por máquinas, por oficinas - estão diretamente expostos ao roubo. Toda essa população de pobres, de desemprega­dos, de pessoas que procuram trabalho, tem agora um contato dire­to, físico, com as fortunas, com a riqueza. O roubo de navios, o saque das lojas e dos estoques, os furtos nas oficinas tornam-se normais na Inglaterra, no final do século XVIII. E exatamente o grande problema do poder na Inglaterra nesta época é promover mecanismos de controle que permitam proteger esta nova forma material da riqueza .

Se essas novas exigências de controle determinaram o nascimento de urna polícia como nós a conhecemos hoje e alimentaram formas de organi­zação do trabalho no interior da fábrica fordista em que, ao lado do objetivo da máxima produtividade, encontrava-se o do máximo controle sobre os comportamentos operários, hoje talvez assistamos a uma evolução. Uma renovada necessidade de controle se manifesta diante das novas formas de'" produção da riqueza social e das novas possibilidades de apropriação dos recursos: “enquanto a era que está chegando ao término se caracterizava pelo controle da troca de bens, a nova era se caracteriza pelo controle da troca de conceitos” 131.

129 Blisset Project, Neiuici dello Stato, cit., p. 11.no Foucault, “La verità e le forme giuridiche”, cit., p. 146. Sobre o nascimento da polícia e sobre as transformações atuais ver ainda Palidda, Polizia postoderna. Etnografici dei nuovo controllo socictle, cit.151 J. Rifkin, f e r a de li’acesso. La rivoluzione delia New Economy, trad. it. Milão, Mondadori, 2000, p. 76.

108

Page 108: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

Emergem, assim, progressivamente, um controle preventivo - porque, diferentemente da riqueza material, a riqueza imaterial só pode ser recupera­da quando alguém se tenha apropriado ou feito uso dela um controle difuso - porque, diferentemente dos recursos materiais, os recursos imateriais não se localizam num espaço determinado, constituindo antes fluxos, redes, éter - , e um controle atuarial - porque, diferentemente dos sujeitos da pro­dução material, situáveis e organizáveis disciplinarmente num espaço produ­tivo definido, a multidão pós-fordista é uma entidade irredutível às formas de singularização típicas da produção fordista e às categorias conceituais que se baseiam nelas. A produtividade fundada no saber dos muitos excede, enfim,o domínio fundado no não-saber do poder.

Novas resistências. Em La volontà di sapere, Foucault se detém'nas formas de resistência

que emergem na sociedade do controle biopolítico. Essas resistências não se enraízam, afirma ele, num “lugar da Grande Recusa” , não delineiam um “ânimo de revolta”, nem sequer um “foco de todas as rebeliões” sobre as quais se imprime uma “lei pura do revolucionário” . Elas se configuram, ao contrário, como “exemplos de espécie: possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, concertadas, estressantes, violentas, irredutíveis, pontas ao compromisso, interessadas ou sacrificiais” 132.

As resistências ao governo do excesso estão em processo constante. Embora nem sempre seja possível dar-lhes um nome, ou consigam nomear- se como tais, elas se desenvolvem numa molecuraridade de conflitos difusos. É exatamente isso que, com o declínio da fábrica fordista e a implosão do regime de controle disciplinar, Foucault nos sugere, para dizer o menos, daquele lugar da “grande recusa” à qual associamos a forma histórica da resistência e da insurgência operárias. Oriundos do perímetro de instituições disciplinares fechadas, os conflitos que surgem em torno das novas estraté­gias de controle pós-fordista se caracterizam pela multiplicidade de formas, pela irredutibilidade a qualquer práxis hegemônica, pela hibridação contínua das práticas e pela amplitude com que se manifestam.

Todo dispositivo de controle é constituído por um conjunto de práticas, estratégias e discursos que dão corpo a uma economia interna e a uma racionalidade específica do domínio. As resistências se localizam exatamen­te naquela economia e naquela racionalidade para sabotá-las, subtraí-las, torná-

132 Foucault, “La volontà di sapere”, cit., p. 85.

109

Page 109: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

Ias ineficazes, minar a sua eficácia por dentro, quase um axioma daquilo que podemos definir como uma genealogia do nexo poder-resistência. Modelos específicos do controle que se constituem a partir de formas concretas de produção da subjetividade alimentam (no próprio ato de exercer-se sobre a força de trabalho) formas de recusa que se nutrem das contradições intrín­secas aos dispositivos de sujeição133,

Não se trata, convém frisar, de sugerir que exista uma relação “dialética” en tre poderes e re s is tên c ia s , com o se a um reg im e de dom ínio correspondessem formas de rebelião que representam a negação daquele regime. Trata-se, ao contrário, de reconhecer que os dispositivos de segu­rança sobre os quais se fundamenta o controle alimentam continuamente um desejo de subtração, recusa e contestação dos espaços, dos tempos e da ordem em que os indivíduos são dispostos e organizados pelo poder. Volte­mos por um instante à sociedade disciplinar. As tecnologias disciplinares - agindo como dispositivos de produção de subjetividade no interior da fábri­ca, do cárcere, do hospital psiquiátrico, da escola - delimitavam espaços de controle totalizantes que, neste meio tempo, se ofereciam como novos terri­tórios de resistência ao próprio controle. A disciplinaridade, em outros ter­mos, permitia a localização da resistência, seu enraizamento no espaço físico e nas relações de poder-saber que lhe conferiam vigor. Esta resistência podia exprimir-se corno êxodo dos lugares do controle, isto é, como desejo de retirar- se desta localização (evasão do cárcere, fuga da fábrica ou da instituição psiqui­átrica), corno desestruturação por dentro (sabotagem industrial, prática do ob­jetivo, formas “atípicas” de greve), ou como práxis de reapropriação do espaço para destiná-lo a um uso distinto do imposto pelo domínio (práticas anti-psiqui­átricas, ocupação das fábricas, comunidades anárquicas).

Os mesmos mecanismos da organização disciplinar que tornaram possí­vel a grandiosidade do taylorismo nos anos Sessenta e Setenta representa­ram o elemento de força de uma classe operária que começava a dar vida a práticas de auto-valorizaçâo dentro e contra o capital. Toda aquela preciosa

133 Ainda segundo Foucault, é sempre no interior das relações de poder que as resistências se constituem. Não existe uma exterioridade absoluta da resistência ao poder, visto que as relações de poder são dispersas, difusas e “ubíquas’'. É este um dos pontos mais controversos (mas, na minha opinião, também mais fascinantes) da análise foucaultiana, sobre o qual se mede a difícil relação entre Foucault e o marxismo ortodoxo, pela recusa, por parte do filósofo francês, de toda representação estática, monolítica e vertical dos aparelhos de poder.

110

Page 110: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

engrenagem de controle total sobre a força de trabalho se voltou, assim, progressivamente, contra o domínio capitalista que a havia montado e colo­cado em ação. As mesmas posturas rígidas, as mesmas máquinas, as mes­mas linhas de montagem, as mesmas sucessões hierárquicas que haviam exasperado a alienação, a exploração e a subordinação do corpo ao valor, permitiam agora, à classe operária, exercitar um contra-poder efetivo em relação ao sistema produtivo. Quero dizer com isso que, dentro ou fora da produção, dentro ou fora dos espaços definidos do controle, as resistências nascem exatamente lá, onde os poderes se apoiam, nutrindo-se daquelas mesmas características que fazem deles poderes “eficazes”.

Ora, as tecnologias do controle que vimos descrevendo nessas páginas pareceriam quase consumar estas margens de resistência, porque substitu­em lugares, indivíduos e relações subjetivas reais por simulacros, fluxos de dados e números, estatísticas e não-lugares, com respeito aos quais é difícil imaginar a possibilidade de resistência. A tabela estatística, a zoning e o mapping das áreas de risco da cidade, a diferenciação dos regimes carcerários com base na proveniência étnica dos reclusos, a administração de terapias psiquiátricas com base no grupo probabilísticodeHpertencimento dos pacientes são alguns exemplos de tecnologias atuariais que parecem tornar impensável qualquer resistência porque a anulam na sua dimensão subjetiva, isto é, de- sestruturam aqueles sujeitos e aquelas formas de interação social que as tec­nologias disciplinares pretendiam transformar e regular. Em outras palavras:

A classificação atuarial, com o seu sujeito sem centro, parece elimi­nar, antecipadamente, a possibilidade de uma identidade, de um auto- conhecimento crítico e de uma intersubjetividade. Ao invés de cons­truir as pessoas, as práticas atuariais as desmantelam .

Todavia, talvez seja possível considerar tudo isso não como a submissão definitiva das resistências da parte de um poder de controle que refinou os próprios instrumentos de domínio, mas sim como a demonstração de uma radical retração do poder, de uma drástica perda de controle sobre as dinâmi­cas sociais. A atuarialízação, a vigilância, o internamento, as limitações de acesso não impedem as resistências, simplesmente procuram ignorá-las, colocando as práticas de controle num plano diverso, onde no lugar de sujei­tos reais encontramos imagens deformadas.

134 J. Simon, “The Ideological Effect of Actuarial Practices” , in Law and Society Review, II, 4/1988, p. 795.

111

Page 111: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

Então, é aqui que podemos identificar um nexo singular entre estratégias de controle do excesso e formas de domínio do capital sobre a multidão pós- fordista. Do mesmo modo que o cornando do capital sobre a força de traba­lho se desenvolve sob a forma de simulacro, como contínua imposição de categorias que não compartilham nada com o caráter social e cooperativo da força de trabalho a que pretendem aplicar-se (trabalho e não-trabalho, pro­dutividade e improdutividade, emprego e desemprego), o controle do exces­so se desenvolve através da imposição de categorias virtuais e transcenden­tes, tais como a classe perigosa, o clandestino, o sujeito de risco, o fotograma e a identidade biométrica.

Se, como já foi dito muitas vezes, a consolidação das relações produtivas pós-fordistas representa a resposta a uma ofensiva operária que tinha preju­dicado o processo da acumulação capitalista e a realização da mais-valia, podemos pensar que a mesma dinâmica esteja ocorrendo na passagem da disciplina para o controle. Agora, os sujeitos, a própria matéria sobre as quais as tecnologias disciplinares puderam se exercitar no período fordista, cedem lugar a uma multidão que foge, que continuamente procura se retirar dos espaços delimitados da disciplina para ingressar no tecido social em seu conjunto. O que vemos então não é mais a definição disciplinar de espaços e tempos de controle distintos dos espaços e dos tempos do não-controle, mas sim o explodir de uma obsessão quase desesperada de vigilância total, de gestão do imprevisto, de antecipação do possível.

Quando afirmamos que o controle pós-fordista assume progressivamen­te a forma de um simulacro, não pretendemos desmaterializá-lo, nem mes­mo subestimar a violência que o inspira e as conseqüências factuais que daí derivam. As novas estratégias de segregação urbana, de destruição do espa­ço público, de encarceramento de massa e de limitação do acesso à informa­ção são fenômenos extremamérite reais. Produzem sofrimento, isolamento, desespero, chegando mesmo, muitas vezes, a impor aquela “morte biográfi­ca” a que eu me referia nas primeiras páginas. É impossível negá-lo. Assim como é impossível não ver até que ponto este arsenal de violência do contro­le que vemos desenvolver-se na sociedade contemporânea demonstra toda a sua pobreza diante da riqueza das subjetividades produtivas que pretende controlar.

Aqui, a incapacidade de compreender e governar o real determina a tran­sição a um poder de controle do excesso que não é mais produção, mas sim pura destruição de subjetividades. Através da vigilância, do gueto, do internamento, da guerra contra a imigração, da guerra humanitária, ele culti­

112

Page 112: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

va a ilusão de constranger a multidão em categorias definidas, de dispô-la segundo linhas hierárquicas, impondo-lhe uma ordem pré-concebida. Não conseguindo exercer-se sobre o “tornar-se múltiplo” dos sujeitos, o governo do excesso os cristaliza, atribuindo-lhes violentamente uma identidade pré- defínida - de imigrante, desempregado, criminoso - necessária para tornar possível o regime da vigilância. Mas à violência desta imposição de identida­de acrescenta-se imediatamente uma outra, a distribuição das diversas clas­ses de indivíduos nos não-lugares do controle: a imigração nas “zonas de espera” do Império, o desemprego nos guetos metropolitanos, a precarieda­de nas dobras do trabalho negro, o desvio no cárcere, o trabalho imaterial nas redes, as diversidades existenciais nas margens.

Porém, voltando o olhar para as formas de resistência emersas nos últi­mos anos em várias frentes — da identidade sexual ao trabalho, da imigração aos direitos da cidadania - , descobrimos que elas se configuram exatamente como práticas de contestação dos dispositivos que obrigam os indivíduos a aceitar identidades pré-constituídas e, como conseqüência, a colocar-se em espaços de controle pré-dispostos. Não penso aqui tanto nas resistências que acabaram- por se reconhecer enquanto tais e que, através de processos que podemos definir de “auto-consciência”, se organizaram politicamente; penso muito mais nas resistências que emergem no quotidiano silencioso das formas de vida e das experiências biográficas individuais. Penso nas resis­tências que se enraízam na corporeidade de um trabalho hiper-explorado e precário, nas expectativas de vida confinadas num gueto urbano ou no dese­jo de fuga que esbarra num confim artificial. “Exemplos de espécie”, diria Foucault; emergências singulares, muitas vezes subterrâneas, quase sempre ocultas ou tornadas invisíveis pelos dispositivos do controle pós-fordista, mas que delineiam uma nova cartografhj das resistências biopolíticas.

Penso nos migrantes, cujo desejo de mobilidade, de subtração, de fuga, esbarra diariamente nos dispositivos de controle e de localização forçada da multidão, expressando uma “crítica prática” a eles135. As políticas de contro­le das migrações se traduzem numa expropriação sistemática dos desejos, das motivações e das expectativas que inspiram os projetos migratórios. Na metrópole pós-fordista, é retirada a palavra ao migrante, a linguagem e a possibilidade de comunicar a própria condição existencial lhe são tolhidas, reduzindo-o, assim, à afasia. Vemos desenvolver-se aqui, de modo exemplar, a racionalidade dos dispositivos de controle pós-fordistas. Ao mesmo tempo

135 Cf. Mezzadra, Diritto di fuga, cit.

Page 113: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

classe trabalhadora e classe perigosa, excesso positivo e excesso negativo» os migrantes devem ser privados exatamente daquelas faculdades comuni­cativas, lingüísticas e afetivas que fazem deles uma subjetividade constitutiva da força de trabalho social, O objetivo é contrastar o auto-reconhecimento de si como parte da multidão, de impedir a construção de laços e formas de cooperação social e política que possam dar corpo à rebelião. Os migrantes constituem então uma imagem paradigmática da multidão pós-fordista e in­dicam, sobretudo, as formas de resistência a que ela pode dar vida, dentro do e contra o novo regirne de governo do excesso.

114

Page 114: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

Bibliografia

ADAMSON, C. “Tovvard a Marxian Penoíogy, Captive Criminal Populationas Economics Threats and Resources” , in Social Problems, vol. 31, 4, 1984.

ALQUATI, R. Lavoro e atlività. Per u n ’analisi delia schiavitü neomoderna. Roma, Manifestolibri, 1997.

BAUMAN, Z. La società delVincertezzci. trad. it. Milão, Feltrinelli, 2000. BOLOGNA, S. e FUMAGALI, Á. (org.). II lavoro autonomo di seconda

generazJone. Scenari deipostfordismo in Itália. Milão, Feltrinelli, 1997.B O X , S. e HALE, C. “Economic C ris is and the R is in g Prison P opu la tio n in

England and Waies” , in Crime and Social Justice, 17, 1982.B O X , S. e H A L E , C. “ U ne rn p lo ym en t, C r im e and Im p r is o n m e n t, and the

Enduring Problem of Prisons Overcrowding” , in MATFIEWS, R . e YOUNG, J. (org.), Confronting Crime. Londres, Sage, 1986.

BO X, S. e HALE, C. “U nernp loym ent, Im p riso n m en t and P risonOvercrowding” , in Contemporary Crises, 9, 1985, pp. 209-228.

BOX, S. Recession, Crime and Punishment. Londres, M cM illan Education, 1987.

BRATTON, W. J. “Crime is Down in New York City, Blam e the Police” , in DENNIS, N. (org.). Zero Tolerance. Policing a Free Society. Londres, Institute of Economic Affairs, 1997.

BRIDGES, G. S.; CRUTCHFIELD, R. D. e SIMPSON, E. E. “C rim e, Social Structure and Criminal Punishment, W hite and Nonwhite Rates of Imprisonm ent” , in Social Problems, vol. 34, 4, 1987.

BURCHELL, G.; GORDON, C. e MILLER, P. (org .).'The Foucault Effect. Studies in Governmentality. Chicago, The University of Chicago Press, 1991.

CASTELLANO, L. La politica clella moltitudine. Postfordismo e crisi delia rappresentanza. Roma, Manifestolibri, 1996.

CHIRICOS, G. T. e BALES, W. D. “Unernployment and Punishment, an Empirical Assessment” , in Criminology, vol. 29,14, 1991.

115

Page 115: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

CHIRICOS, G. T. e DELONE, M. “Labor S urplus and Imprisonment: A Review and Assessment of Theory and Evidenee” , in Social Problems, vol. 39, 4, 1992.

CHRISTIE, N. 11 businesspenitenziario. La via occidentale dei Gulcig. trad.it. Milão, Elèuthera, 1996.

COLVIN, M. “Controlling the Surplus Population: the Latent Functions of Imprisonment and Welfare inLate U. S. Capitalism”, in MACLEAN, B. D. (org.). The Political Economy o f Crime. Ontario, Prentice Hall, 1986.

CORIAT, B. Ripensare l ’organizzazjone dei lavoro. Cone et ti e prassi dei m odellogiapponese. trad. it. Bari, Dedalo, 1991.

DAVIS, M. Geogrcifie delia paurci. Los Angeles: rim m aginario collettivo dei disastro. trad. it. Roma, Manifestolibri, 2000.

DAVIS, M. La città di quartzo. Indagando sul futuro. Los Angeles, trad. it. Roma, Manifestolibri, 2000.

DE GIORGI, A. Zero Tolleranza. Strategie e prattiche delia società di controllo. Prefácio de Toni Negri. Roma, Deri veApprodi, 2000.

DE GIORGI, A. “La qualità totale dei controllo”, in DeriveApprodi, 19,2000.DEAN, M. Governmentality, Power and Rule in M odem Society. Londres,

Sage, 1999..DELEUZE, G. e GUATTAJ3J, F. Apparati di cattura. Millepiani. Capitalismo

e schizofrenia. Seção IV. trad. it. Roma, Gas|elvecchi, 1997.DQBBINS, D. A. e BASS, B. M. “Effects of Unemployment on White

and Negro Prison Admissions in Louisiana” , in Journal o f Criminal Law, Criminology and Police Science, 48, 1958.

EWALD, F. L ’État-Providence. Paris, Grasset, 1986.EWALD, F. “Norms, Discipline and Law”, in Representcitions, 30, 1990.FEELEY, M. e SIMON, J. “Actuarial Justice: The Em ergingNew Criminal

Law ”, in NEKLEN, D. (org.), The Futures o f Criminology. Londres, Sage, 1994.

FEELEY, M. e SIMON, J. “The New Penology. Notes on the Emerging Strategies o f Corrections and its Implications” , in Criminology, XXX, 4, 1992.

FERRARI BRAVO, L. “Sovranità”, in ZANINI, A. e FADINI, U. (org.). Lessico postfordista. Dizionarío di idee delia mutazione. Milão, Feltrinellí, 2001.

FOUCAULT, M. 1 corsi al Collège de France. 1 Resumées. Trad. it. Milão, Feltrinelli, 1999.

116

Page 116: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

FOUCAULT, M. “La governamentalità”, trad. it. in FOUCAULT, M. Poteri e strategie. L ’assoggetarnento dei corpi e Velemento sfuggente (org. P. Delia Vigna). Milão, Mimesis» 1994.

FOUCAULT, M. “La verità e le forme giuridiche”. trad. it. InArchivio Foucault. 2. Poteri, saperi, strategie (org. A. Dal Lago). Milão, Feltrinellí, 1997.

FOUCAULT, M. La volontà di scipere. trad. it. Milão, Feltrinellí, 1997.FOUCAULT, M. Sorvegliare epunire. trad. it. Turim, Einaudi, 1976,FOUCAULT, M. Storía delia foü ia nelVetà elas si ca. trad. it. Milão, Rizzolli,

1998.GODEFROY, T. e LAFFARGUE, B. Changements Economiques et Rêpression

Penale. CESPID, 5, 1991. Paris, 1995.GOFFMAN, E. Asylums. trad. it. Turim, Einaudi, 1968.GORZ, A. II lavoro debole. Oltre la societci salariale, trad. it. Roma, Edizioni

Lavoro, 1994.GORZ, A. M iserie dei presente, richezza dei posible, trad. it. Roma,

Manifestolibri, 1998.GREENBERG, D. “ Penal Sanctions in Poland: a T e s to f A líem a tiv e Models”,

in Social Problems, X XV Iil, 2, 1980.GREENBERG, D. “The Dynamics o f Osciilatory Punishment Processes” ,

in The Journal o f Criminal Law and Crhninology, 4, 1977.HALE, C. “Economy, Punishment and Imprisonment”, in Contemporary

Crises, 13, 1989.HARDT, M. e NEGRI, A. II lavoro di Dionisio. Per la critica deli o stato

postmoderno, trad. it. Roma, Manifestolibri, 1995.HARDT, M. e NEGRI, A. Impero. II nuovo online delia globalizzazione,

trad. it. Milão, Rizzolli, 2002.IGNATIEFF, M. Le origini deipeninteziario. Sistema carcerário e rivoluzione

industriale inglese, 1750-1850, trad. it. Milão, Mondadori, 1982.ILARDI, M. Negli spazi vuoti delia metropoli. Distruzione, disordine,

tradimento deli’ultimo uomo. Turim, Bollati Boringhieri, 1999.JACOBS, D. e HELMS, R. E. “Toward a Political Model of Incarceration: A

Time-Series Examination ofM ultiple Explanations for Prison Admission Rates” , in American Journal o f Sociology, 2, 1996.

JANKOVIC, I. “Labor M arket and Imprisonment” , in Crime and Social Justice, 8, 1977.

117

Page 117: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

LAZZARATO, M. Lavoro Immateriale. Forme di vita e produzione di soggettività. Verona, Ombrecorte, 1997,

LESSAN, G. T. “Macro-economic Determinants of Penal Policy: Estimating the Unernployment and Inflation Influences and Imprisonm ent Rate Changes in the United States, 1948-1935”, h\ Crime, Law and Social Change, 16, 1991.

LEVY, R. e ZANDER, H. “Introduction”, in RUSCHE, G. e KIRCHHEIMER, O. Peine et structure socicde. Paris, Les Éditions da-Cerf, 1994.

LIANOS, M. e DOUGLAS, M. “Dangerization and the End o f Deviance. Thelnstitutional Environment” , in The British Journal ofCrim inology,XL, 2, 2000.

LYON, D. Surveillance Society. M onitorm g Everyday Life. Buckingham: University Press, 2001; trad. it, La società sorvegliata. Técnologie di controllo delia vita quotidiana. Milão, Feltrinelli, 2002.

M A R A Z Z I , C . 11 posto dei calzini. Lu svolta lingüística nelVeconomia e i suoi effetti nelta política. B e llin zo na , Edizioni Casagrande, 1996.

M A R A Z Z I , C. E il denaro va. Esodo e rivol.uz.ione nei mercati finanziari. Turim, Bollati Boringhieri, 1998.

M ARX, K. 11 capitale, Libro 1, Capitolo VI inédito, trad. it. Florença, La Nuova Italia, 1969.

M ARX, K. Lineamenti fondam entali delia critica deli 'economia política, trad. it. Florença, La Nuova Italia, 1978.

MELOSSI, D. (org.) The Sociology o f Punishment. Aldershot, Ashgate, 1998. MELOSSI, D. “Gazette of Morality and Social Whip: Punishment, Hegemony

and the Case o f the USA, 1970-1992”, in Social e Legcd Studies, vol. 2, 1993.

M ELOSSI, D. “Punishment and Social Action: Changing Vocabularies ofPunitive Motive Within a Political Business Cycle”, in Current Perspectives on Socicd Theory, VI, 1985.

MELOSSI, D. The State o f Social Control. Cambridge, Polity Press, 1990. M EZZADRA, S. “M igrazioni” , in ZANINI e FADINI (org.), Lessico

postfordista.MEZZADRA, S. Diritto difuga. Migrazioni, cittadinanza, globalizzazione.

Verona, Ombrecorte, 2001,M ILLER, J. Search and Destroy. African-American Males in the Criminal

Justice System. Cambridge University Press, 1996.118

Page 118: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

M ORRIS, L. Dangerous Cl as s. The Underckiss and Social Citizenship. Londres, Routledge, 1999.

M YERS, S. L, e SABOL, W. J. “U nem ploym ent and Racial D ifferences in Im prisonm ent” , in Review o f B lack Political E conom y, vol,. 16, 1-2, 1987.

NEGRI, A. Fabbriche dei soggetto. Livorno, XXI Secolo, J 987,NEGRI, A. La form a Stato. Per la critica deli ’economia política delia

costituzione. Milão, Feltrinellí, 1977.C)’CONNOR, J. “Problemi dei movimento popolare negli Stati U nili” , in

Critica dei diritto, 14, 1978.G ’MALLEY, R “Legal Networks and Domestic Securíty”, in Studies in Law,

Politics, and Society , XI, 1991.0 ’MALLEY, R “Risk, Crime and Prudentialism Revisited” , in STENSON,

K. e SULLIVAN, R. (eds.) Crime, Risk and Justice. The Politics o f Crime Control in Liberal Democracies. Devon, Willan, 2001.

0 ’MALLEY, P. “Risk, Power and Prcvention”, in Econom y and Society, XXI, 3, 1992.

OHNO, T. Lo spirito Toyota, trad. it. Turim, Einaudi, 1993.PALIDDA, S. Devianza e vittimizzazione tra i migranti. M ilão, Fondazione

Cariplo ISMU, 2001.PALIDDA, S. Poliziapostmoderna. Etnografia dei nuovo controllo sociale.

Milão, Feltrinellí, 2000.PASUKANIS,E. B. “La teoria generale dei diritto e il marxismo” , trad. it., in

Teorie sovietiche def diritto, a cura de U. Cerroni. M ilão, Giuffrè, 1964.PASQUINO, P. “Criminology: the Birth of a Special Saviour” , in Ideology

and Consciousness, 7, 1980.PETRILLO, A. La città perduta. Veclissi delia dimensione urbana nel mondo

contemporâneo. Bari, Dedalo, 2000.QUINNEY, R. Class, State and Crime. Nova Iorque, Longman, 1977.REVELLI, M. Lavorare in Fiat. Da Valetta ad Agnelli a Romiti. Operai

sindacati Robot. Turim, Garzanti, 1989.RIFKIN, J. La fine dei lavoro. II declino delia fo rza lavoro globale e

l 'avvento deli "era post-mercato, trad. it. Milão, Baldini e Castoldi, 1997.RIFKIN, J. L ’era deli’acesso. La rivoluzione delia New Economy, trad. it.

Milão, Mondadori, 2000.

119

Page 119: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

ROTHMAN, D. The Discovery o fthe Asylum. Social Orclerand Disorder in the New Republic. Boston, Little Brown, 1971.

RUBINGTON, E. e W EINBERG, M. (eds.) Deviance. The IntercictionistPerspective. Nova Iorque, MacMillan, 1973.

RUSCHE, G. “II mercato di lavoro e Pesecuzione delia pena; riflessioni per una sociologia delia giustizia penale”, trad. it. In La Questione criminale, 2, 1976.

RUSCHE, G. e KIRCHHEIMER, O. Pena e struttura sociale, trad. it. Bolonha,II Mulino, 1978.

SELLIN, T. “Research M emorando on Crime in the Depression”, in Social Science Research Council, Boletim 27, Nova Iorque, 1937.

SENNET, R. U uomoflessibile. Le conseguenze clel nuovo capitalismo sulla vitapersonale, trad. it. Milão, Feltrinelli, 2000.

SIM ON, I. “The Ideological Effect of Actuarial Practices” , in Law and Society Review, II, 4, 1988.

SPTIZER, S. “Toward a Marxian Theory of Deviance”, in Social Problems, vol. 22, 5, 1975.

STERN, L. T. “The Effect of the Depression on Prison Commitments and Sentences” , in Journal o f the American Institute o f Criminal Law and Criminology, vol. XXXI, 1940-1941.

TAYLOR, F. W. Vorganizzazione scientifica dei lavoro, trad. it. Milão, Etas Kompass, 1967.

TAYLOR, I. Crime in Context. A Criticai Criminology o fM arket Societies. Cambridge, Polity Press, 1999.

THOMAS, D. e LOADER, B. (org.) Cybercrime, Law Enforcement, Security and Surveillance in the Information Age. Nova Iorque, Routledge, 2000.

VAN SWANINGEN, R. Criticai Criminology. Visionsfrom Eufope. Londres, Sage, 1997.

VIRNO, P. “Lavoro e linguaggio”, in ZANINI e FADINI (org.), Lessico postfordista.

VIRNO, P. Mondanità. U idea di “m ondo” tra esperanza sensibile e sfera pubblica. Roma, Manifestolibri, 1994.

VOGEL, R. “Capitalism and Incarceration”, in M onthly Review, vol. 34, 10, 1983.

WACQUANT, L. “Deadly Symbiosis, When Ghetto and Prison M eet and M esh” , in GARLAND, D. (org.), M ass Imprisonment, Social Causes

120

Page 120: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

and Consequences. Londres, Sage, 2001; trad. It. “Simbiosi mortale. Quando guetto e prigione si incontrano e si intrecciano”, in GARLAND, D. (org.), Simbiosi mortale. Neoliberalismo e política penale. Verona, Ombrecorte, 2002.

WACQUANT, L. Parolci d ’ ordine: tolleranza zero. La trasformazione dello statopenale nella società neoliberale, trad. it. Milão, Feltrinelli, 2000.

WACQUANT, L. “The Rise of Advanced Marginality: Notes on its Nature and Implications” , in Acta Sociologica, XXXIX, 1996.

WALLACE, D. “The Political Economy of Incarceration Trends in late U. S. Capitalism, 1971-1977”, in The Insurgent Sociologist, vol. XI, 1, 1980.

WESTERN, B. e BECKETT, K. “How Unregulated is the U.S. Labor Market? The Penal System as A Labor Market Institution”, in American Journal o f Sociology, CIV, 4, 1999.

WITHFORD, N. D. Cyber-Marx, Cycles and circuits o f Struggle in High- Tecknology Capitalism. Urbana, University of Illinois Press, 1999.

YEAGER, M. “Unemployment and Imprisonment”, in The Journal o f Criminal Law and Criminology, vol. 70, 4, 1979.

ZANINI, A. “Moltitudine”, in ZANINI e FAD1N1 (org.), Lessicopostfordista.

CartografiasGILLES DELEUZE. Divenire molteplice. Nietzsche, Foucault ed altri

intercessori. Introdução e organização de Ubaldo Fadini (nova edição ampliada).

MAURIZIO LAZZARATO. Lavoro immateriale. Forme di vita eproduzone di soggettività.

FÉLIZ GUATARI. Piano sul pianetci. Capitale m ondiale integra to e globalizzazione. Introdução de Franco Berardi (Bifo).

FRA NCO B ER A R D I (B IFO ). D elV innocenza . 1977: Vanno delia premonizione.

HANNAH ARENDT. Lavoro, opera, azione. Le form e delia vita attiva. Introdução e organização de Guido D. Neri.

FRANÇOIS ZOURABICHVILI. Deleuze. Una filosofia deli'evento.GILLES DELEUZE, CLAIRE PERNET. Converscizioni.PAUL VIENE. M ichel Foucault. La storia , il nichilismo e la morale,

organização de Maximiliano Guareschi.MARIO PERNOLA. Philosophia sexualis. Scritti su Georges Bataille.

121

Page 121: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

ADELINO ZANINI. Mcicchine di pensiero. Schumpetei; Keynes, Marx. Introdução de Giorgio Lunghini.

JACQUES DERIDA. Posizioni. Scene, atti, figure delia disseminaziorte.PHILIPPE ZARIFAN. U emergere d i un Popolo Mondo. Appartenenza,

singolarità e divenire collettivo.ALESSANDRO DAL LAGO. La produzjone delia devianza. Teoria soei ale

e meccanismi di controllo.M ICHEL FOUCAULT. Raym ond Roussel. Introdução e organização de

Massimiliano Guareschi.SA N D RO M EZZAD RA. D iritto di fuga . M igrazioni, cittadinanza,

global izzfízione.ANDREA FUMAGALLI, CHRISTÍAN MARAZZI e ADELINO ZANINI. La

moneta n e ll ’im p e ro . Prefácio de Toni Negri.ALESSANDRO DE GIORGI. II g o vern o d e l i ’eccedenzM. R o stfo rd is in o e

con tro llo delia nioltitudine.PAOLO VIRNO. Esercizi di esodo. Analisi 'lingüística e critica dei presen te .LGIC WACQUANT. Simbiosi mortale. Saggi sullapenalità neoliberale.RANAJIT GUHA e GAYATRICHACRAVORTY SPIVAK. Suhaltem Studies.

M odernità e (post)colonialism o. Introdução de Edw ard W. Said; organização de Sandro Mezzadra.

BRUNO ACCARINO (org.). La bilcmcia e Ia crisi. II linguaggio filosófico deli’ equilíbrio.

CulturasPIERA NG ELO DI VITTORIO. Foucault e Basaglia. U incontro tra

genealogie e movimenti di base. Prefácio de Píer Aldo Rovatti.PIERRE LEV Y. Le tecnologie deli ’ intelligenza, II futuro dei pensiero nell 'era

deli 'informatica.LORENZO CHIESA. Antonin Artaud. Verso un corpo senza organi.ARNOLD GEHLEN. Morale e ipermorale. Um ’eticapluralistica. Introdução

e organização de Ubaldo Fadini.ANTONIO CARONIA. Archeologie dei virtuale, Teorie, scritture, schermi.A. DAL LAGO e A. M OLINARI (org.). Giovani senza tempo. IIm ito delia

giovinezza nella società globale.CIRCOLO PINK (org.). Le ragioni d i un silenzio. La persecuzione degli

omossesuali durante il nazismo e il fascismo.122

Page 122: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

YANN M OULIER-BOUTANG (org.). U età dei capitalismo cognitivo.Innovazione, piiprietà e cooperazione delia moltitudine.

PIERRE CLASTRES. La società contro lo Stato. Ricerche di antropologia política.

ANTONIO SCURATI. Televisioni di guerra.. II conflitto dei Golfo come evento mediatico e il paradosso de Ho spettatore totale.

AmericanasROBERTO CAGLIERO e FRANCESCO RONZON (org.). Spettri di Haiti.

Dal colonialismofrancese a li’imperialismo americano.GIORGIO MARÍANI. La penna e il tamburo. Gli indiani d ’Am erica e la

letteratura degli Stati Uniti.

123

Page 123: Criminológico SU ES Pensamento 12 - arquimedes.adv.brarquimedes.adv.br/livros100/A Miséria Governada Através do... · Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este

ZZEZ Pensam en toCriminológico

VOLUME 1 Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal Introdução à Crítica do Direito PenalAlessandro Baratta

VOLUME 2 Difíceis Ganhos Fáceis:Drogas e Juventude Pobre no Rio de Janeiro Vera Malaguti Batista

VOLUME 3 Punição e Estrutura SocialCeorg Rusche e Otto Kirchheimer

VOLUME 4 lluminismo Jurídico-penal Luso-brasileiro: Obediência e Submissão Cizlene Neder

VOLUME 5 Matrizes Ibéricas do Sistema Penal Brasileiro - 1Nilo Batista

VOLUME 6 Punir os Pobres: a Administração da Miséria nos Estados Unidos Lóic Wacquant

VOLUME 7 A Sociedade Excludente: Exclusão Social,Criminalidade e Diferença na ModernidadeRecentelock Young

VOLUME 8 Criminologia e Subjetividade no BrasilCristina Rauter

VOLUME 9 A América Latina e sua Criminologia Rosa dei Olmo

VOLUME 10 Criminologia da Libertação Lola Aniyar de Castro

VOLUME 11 Cáfíere e Fábrica: As origens do Sistema Penitenciário (séculos XVI - XIX)Dario Melossi e Massimo Pavarini

muw

Pens

amen

to

Crim

inol

ógic

o A

misé

ria

gove

rnad

a at

ravé

s do

siste

ma

pena

l