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Page 1: CRIMES DA GLOBALIZAÇÃO GLOBALIZATION CRIMES · 1759 CRIMES DA GLOBALIZAÇÃO* GLOBALIZATION CRIMES Letícia de Souza Baddauy RESUMO O presente trabalho insere-se no campo do Direito

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CRIMES DA GLOBALIZAÇÃO*

GLOBALIZATION CRIMES

Letícia de Souza Baddauy

RESUMO

O presente trabalho insere-se no campo do Direito Penal Econômico. Trata dos crimes da globalização, entendendo-se estes como resultantes da chamada criminalidade econômica, que, embora não seja produto exclusivo da globalização, tem-se mostrado crescente no mundo globalizado, devido ao fato de a globalização favorecer em muito o poder econômico e a mobilidade internacional do capital, propiciando a prática mais intensa e freqüente de crimes econômicos. Primeiramente, o trabalho analisa o fenômeno da globalização e sua relação com o Direito. Em seguida, analisa especificamente a criminalidade econômica, apontando diretrizes para o combatê-la. Constitui trabalho que pretende mais levantar questionamentos que apresentar soluções definitivas. Conclui pela necessidade de adaptação do Direito Penal à nova realidade da globalização para o combate eficaz da criminalidade econômica, sem o abandono de seus princípios garantistas conquistados nos últimos séculos.

PALAVRAS-CHAVES: DIREITO PENAL ECONÔMICO. GLOBALIZAÇÃO. DIREITO PENAL E GLOBALIZAÇÃO.

ABSTRACT

This work was developed within the Economic Penal Law area. It deals with globalization crimes seen as result of economic criminality, which, although not an exclusive product of globalization , has increased in the globalized world since it strongly favors economic power and international mobility , thus promoting an intense and more frequent practice of economic crimes. Firstly, the work discusses the globalization phenomenon and its relation with Law. Next, it analyzes economic criminality in special, presenting guidelines to fight it. The objective of this work is more to raise questions than to present definitive answers. It concludes that the adaptation of the Penal Law to the new globalization reality is needed to fight economic criminality efficiently without abandoning its guaranteeing principles conquered in the last decades.

KEYWORDS: ECONOMIC PENAL LAW. GLOBALIZATION. PENAL LAW AND GLOBALIZATION.

* Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo – SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.

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INTRODUÇÃO

O tema escolhido para o presente trabalho foi a criminalidade econômica perante a globalização. O título do trabalho, Crimes da Globalização, refere-se a essa criminalidade, que, embora não seja produto exclusivo da globalização, tem-se mostrado crescente no mundo

globalizado, devido ao fato de a globalização favorecer em muito o poder econômico e a mobilidade internacional do capital, propiciando a prática mais intensa e freqüente de crimes econômicos.

Esclarecemos desde logo que deixaremos de aprofundar-nos na conceituação de globalização e criminalidade econômica. Um aprofundamento conceitual exigiria uma monografia para cada um dos termos, como, aliás, já existem várias. Partimos, portanto, de características de ambos os fenômenos que são aceitas pela maioria dos estudiosos, que entendemos serem passíveis de adoção para os fins deste trabalho.

Na primeira parte será feita uma abordagem do fenômeno da globalização, destacando suas principais características e problemas, demonstrando sinteticamente como o Direito, especialmente o Direito Penal, está sendo por ela afetado. A globalização é um fenômeno plural, que atinge fortemente as várias áreas do conhecimento. O Direito tem sofrido profundos questionamentos face ao processo globalizante. Os tradicionais dogmas do direito positivo dos diversos ordenamentos, bem como os métodos de solução de conflitos jurídicos, já não têm sido suficientes para a pacificação social. A globalização tem demandado uma grande desregulamentação e deslegalização, pondo em xeque normas e princípios até então pacificamente aceitos. Por outro lado, o sistema penal tem sido excessivamente utilizado, fazendo proliferar as normas penais, em uma questionável tentativa de solução através do Direito Penal dos conflitos sociais agravados pela globalização. Nesse sentido, a utilização do Direito Penal como ultima ratio encontra-se ameaçada, a nosso ver colocando em perigo os princípios garantistas do Direito Penal e do Processo Penal necessariamente vigentes em um Estado Democrático de Direito.

Na segunda parte, será tratada especificamente a criminalidade econômica e sua relação com a globalização, levantando-se os principais questionamentos enfrentados hoje pelo Direito Penal nessa área e algumas alternativas de soluções. A globalização proporciona um terreno fértil para a prática de crimes contra a ordem econômica, devido à intensa mobilidade do capital. Tais crimes preocupam a sociedade, pois são de difícil verificação e julgamento e causam grandes prejuízos sociais. O estudo da criminalidade econômica é de grande importância e atualidade, pois:

Pela dimensão dos danos materiais e morais que provoca, pela sua capacidade de adaptação e sobrevivência às mutações sociais e políticas, pela sua aptidão para criar defesas frustrando as formas de luta que lhe são dirigidas, a criminalidade económica é uma ameaça séria a minar os alicerces de qualquer sociedade organizada (DIAS; COSTA ANDRADE, 1998, p. 320).

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As alternativas para o combate à criminalidade econômica apresentadas não pretendem ser definitivas, levando-nos a apresentar como conclusão apenas algumas constatações que consideramos de relevância para esse tipo de estudo.

Encerrando a apresentação, esclarecemos que se trata de uma discussão mais ao nível filosófico que ao nível dogmático, analisando-se o impacto da globalização no âmbito do Direito Penal, buscando-se com isso dar uma pequena contribuição para os inevitáveis e frutíferos debates que no atual momento histórico estão acontecendo, através do questionamento sobre os rumos que poderão ser tomados pelo Direito Penal Econômico.

O MUNDO GLOBALIZADO E AS TRANSFORMAÇÕES NO DIREITO

Conforme expusemos, o presente trabalho não comporta um aprofundamento na conceituação de globalização. Esse fenômeno é altamente complexo, podendo-se afirmar que qualquer conceito seria incompleto e insatisfatório, inclusive porque a globalização pode ser analisada sob os mais variados aspectos. Para os fins de nossa análise, exporemos a seguir algumas das principais características da globalização, concentrando-nos em seu aspecto que consideramos de maior relevância, o econômico, pois é a globalização econômica que gera e influencia a globalização política, cultural, jurídica etc.

Atualmente, a chamada globalização tem ocupado um espaço enorme nos debates acadêmicos, nos diálogos políticos, na mídia, enfim, em toda a sociedade mundial contemporânea. Sabemos, porém, que o processo de globalização não é novo. O homem há tempos busca expandir suas áreas territoriais de atuação e domínio. Silva Franco (2000, p. 104) coloca a questão de maneira bastante pertinente ao destacar as denominadas ondas de mundialização[2] ocorridas neste milênio.

A globalização não é um fenômeno de uma única face. É sim um fenômeno complexo, multifacetado, plural, que envolve aspectos culturais, sociais, políticos, institucionais, jurídicos etc. Mas é preciso reconhecer que, sobretudo, a globalização é econômica.

A globalização caracteriza-se pela trasnacionalização dos mercados, pela mobilidade extrema dos capitais, pela alteração da noção de tempo e espaço trazida pelo incrível avanço da informática e das telecomunicações, pela fragmentação da produção, para citarmos alguns de seus aspectos mais relevantes.

É certo também que a globalização é um fenômeno irreversível. Todavia, sua irreversibilidade não pode implicar, como tem acontecido, uma postura acrítica, aceitando-se seus efeitos como imperativos intransponíveis, com os quais só nos resta conformarmo-nos.

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Os personagens principais desse quadro são os grandes conglomerados transnacionais. São essas empresas que concentram atualmente o capital. Demonstra isso, por exemplo, o faturamento de algumas empresas transnacionais, que chegam a superar o Produto Nacional Bruto de alguns países (FARIA apud MORAIS, 2000, p. 439).

Talvez a conseqüência mais notória da globalização seja o enfraquecimento do Estado-nação. Veja-se que ocorre justamente o contrário do que ocorreu nas outras ondas de mundialização, em que os Estados fortaleceram-se enormemente. Atualmente, o Estado, com as tradicionais características a ele associadas, especialmente a soberania, constitui um entrave ao processo globalizador. Houve um esvaziamento da soberania e da autonomia dos Estados nacionais (FARIA apud CELLI JUNIOR,1999, p. 53). Nesse contexto, o discurso neoliberal tomou proporções bastante significativas e, servindo aos donos do capital, praticamente derrubou o Estado Providência, ou Estado do Bem Estar Social (Welfare State), que, preocupado em garantir a seus cidadãos direitos sociais e igualdade, mergulhara em uma crise fiscal, que ainda perdura em diversos países. O neoliberalismo apresentou-se como se fosse a única saída para a crise político-econômica que o mundo atravessava com a referida

crise fiscal e o esgotamento do modelo socialista, ou mesmo social-democrata. Crise, aliás, que se renovou recentemente, a partir do final do ano de 2008, mas agora talvez como esgotamento do próprio modelo neoliberal, tendo em vista que suas soluções, ou tentativas de, envolveram grande intervenção estatal.

O atual modelo capitalista especulativo não está preocupado com a produção. Assim, o desemprego no Estado neoliberal é estrutural. Como bem coloca Chauí (1999, p. 29):

O desemprego tornou-se estrutural, deixando de ser acidental ou expressão de uma crise conjuntural, porque a forma contemporânea do capitalismo, ao contrário de sua forma clássica, não opera por inclusão de toda a sociedade no mercado de trabalho e de consumo, mas por exclusão (grifo nosso).

Além disso, o modelo de divisão do trabalho também mudou. Hoje temos uma divisão internacional, graças à flexibilização das antigas plantas industriais rígidas (Taylor, Fayol e Ford). Essa divisão internacional do trabalho dificulta a tomada de consciência do trabalhador como classe, facilitando, em contrapartida, a redução e enfraquecimento de seus direitos sociais. A mobilidade das indústrias permite que os empresários barganhem a instalação de suas fábricas com vários Estados, ou até dentro de um mesmo país, possibilitando-lhes grandes vantagens fiscais, trabalhistas, ambientais, entre outras. Perde o Estado, perde o trabalhador, perde o meio ambiente, enfim, perde a sociedade.

Diante de todo esse quadro, a concentração do capital atinge níveis jamais vistos.

A lógica da competitividade foi elevada ao nível de imperativo natural da sociedade. Ela faz perder o sentido de 'viver juntos', do 'bem comum'. Enquanto isso, a distribuição dos lucros da produtividade se faz em benefício do capital e em detrimento do trabalho, o

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custo da solidariedade é considerado insuportável e o edifício do Estado de bem-estar é implodido (RAMONET, 2000, p.17).

Assim, indivíduos sem-oportunidade, sem-emprego, sem-teto, sem-terra, sem-saúde, sem-educação formam a massa dos socialmente excluídos. No atual modelo, de alta tecnologia e sobra de mão-de-obra, sequer interessa aos donos do capital a exploração dos demais. O antigo explorado hoje é excluído, deixou de ter importância para o sistema, é descartável.

Face ao exposto, destaca-se nesse trabalho o interesse pela globalização como padronizadora de posturas e regras de comportamento e enfraquecedora do poder estatal. "Como parte significativa dessas regras de comportamento é balizada por normas jurídicas estatais, ou seja, por normas de direito produzidas pelo estado - e não de maneira universal - impõe-se naturalmente a reflexão acerca da repercussão da globalização no campo do Direito" (DALLARI, 1998, p. 17).

Com o nível de complexidade atingido pela sociedade globalizada, o Direito já não é capaz de regular e controlar a sociedade e a economia apenas através de seus instrumentos tradicionais e de suas soluções homogêneas. O direito positivo vem perdendo sua capacidade de ordenar e conformar a sociedade e os mecanismos processuais já não conseguem eficazmente dirimir conflitos. Conhecemos o Direito até hoje basicamente como produto do Estado. Entretanto, com o enfraquecimento do Estado e o aumento da velocidade dos negócios internacionais, vem aquele perdendo sua capacidade regulamentadora. Na medida em que as barreiras geográficas são superadas economicamente, as leis materiais e processuais dos Estados, concebidas para atuarem dentro de limites territoriais, perdem a efetividade. Surgem e adquirem cada vez maior importância os mecanismos paraestatais de solução dos conflitos e a normatividade autoproduzida pelos conglomerados empresariais, que criam suas próprias regras de funcionamento e seus próprios princípios de atuação. No mundo inteiro são adotadas estratégias de desregulamentação, gerando um pluralismo de ordens normativas. Assim, a globalização prega uma reforma do ensino jurídico, das leis, dos processos judiciais. Embora transformações no paradigma do direito positivo sejam necessárias, a referida reforma tem sido apregoada de forma a adaptar o sistema jurídico aos interesses do mercado mundial (SILVA, 1998, p. 81). O modelo que se tenta impor aos países periféricos no plano jurídico, assim como no econômico e político, é o modelo dos países centrais, especialmente dos Estados Unidos. Algumas tendências, elencadas por Silva (1998, p.84-85), merecem ser ressaltadas: a) a preferência por padrões legais anglo-saxônicos, devido a sua rapidez, pragmatismo e flexibilidade, em contraposição ao formalismo, rigidez e lentidão dos padrões romano-germânicos; b) o destaque dado ao Direito Privado, que rege as relações ente as empresas, em detrimento do Direito Público; c) o enfraquecimento do Direito do Trabalho, face à nova divisão internacional do trabalho.

Todavia, com relação ao Direito Penal, o processo tem sentido inverso. É assustadora a proliferação de leis penais. Enquanto assistimos a uma desregulamentação e deslegalização nas outras áreas do Direito, as normas penais são cada vez em número maior, dificultando o trabalho de todos aqueles que operam o Direito Penal. Face à exclusão social crescente causada pela globalização, obviamente os conflitos e tensões

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sociais aumentam, aumentando os níveis de violência[3]. Assim, para atender ao anseio da população incluída, que compra o discurso ideológico das elites dominantes e passa a exigir a solução dos conflitos sociais que, na qualidade de incluída, muito a incomodam, o Estado produz leis penais e passa a utilizar o Direito Penal como prima ratio. Contudo, o Direito Penal não serve para fazer justiça social. Dessa forma, os valores até então conquistados pelo Direito Penal, ou seja, todas as garantias penais e processuais penais, encontram-se ameaçadas por uma política demagógica, que não soluciona os conflitos (até porque o Direito Penal não tem capacidade de fazê-lo), mas custa pouco e convence a população manipulada pelo discurso legitimante das elites, a quem interessa a existência da massa dos excluídos, pois ela é resultado da extrema concentração do capital. O Direito Penal tem sido utilizado para o desejado descarte desses indivíduos. Entretanto, não podemos permitir que o Direito Penal sirva a isso. Ao contrário,

Aos operadores do Direito caberá a árdua tarefa de defender os princípios e valores que garantem os limites da atuação legítima do Direito Penal, para que tenha somente o objetivo de preservação do homem e de seus direitos, e não a consecução do oposto que aponta para o seu desprezo e conseqüente destruição (CABETTE, 1999, p. 4).

Globalização e Criminalidade Econômica

Sem dúvida a globalização causa sérios impactos em todo o Direito Penal, e não apenas no que se refere aos crimes dos poderosos. Todavia, a criminalidade econômica ganha enorme destaque na atual conjuntura, pois a economia é o principal alvo do processo globalizador, e os agentes econômicos, dentre estes destacando-se as empresas transnacionais, seus principais articuladores. O capitalismo especulativo proporciona um terreno fértil para os crimes do poder econômico. Nesse contexto, empresários ávidos pela obtenção de lucros de proporções cada vez maiores vêm cometendo diversos crimes que atingem diretamente a economia, causando sérios prejuízos de ordem social.

Como bem sintetiza Silva Franco (2000, p. 120):

De um lado, não se pode deixar de reconhecer que o modelo globalizador produziu novas formas de criminalidade que se caracterizam, fundamentalmente, por ser uma criminalidade supranacional, sem fronteiras limitadoras, por ser uma criminalidade organizada no sentido de que possui uma estrutura hierarquizada, quer em forma de empresas lícitas, quer em forma de organização criminosa, e por ser um criminalidade que permite a separação tempo-espaço entre a ação das pessoas que atuam no plano criminoso e a danosidade social provocada (grifo nosso).

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E, ainda, Rodrigues (1999, p. 12):

Mas há indicações impressionantes sobre a globalização e sua relação com o mundo do direito criminal. O que se apresenta como novo e verdadeiramente preocupante é a utilização das lógicas e das potencialidades da globalização para a organização do crime, permitindo que grupos marginais homogéneos se articulem em rede e adoptem tipos de cumplicidade, solidariedade e hierarquia ou, em qualquer caso, estabeleçam formas de alianças estratégicas baseadas em considerações como a redução do risco, a necessidade de especialização ou o desejo de penetrar em novos mercados (grifo nosso).

Afinal, pode o Direito Penal intervir nesse quadro? De que forma? Necessitamos de um novo Direito Penal? Tais questões têm sido colocadas nos estudos do Direito Penal Econômico.

Para subsidiar o combate à criminalidade econômica muitos têm sido os estudos que procuram descrever, analisar e explicar a fenomenologia do Direito Penal Econômico e dessa criminalidade. Mas boa parte dos problemas continua sem solução. As dificuldades dos estudiosos dessa área são muitas. Dentre elas poderíamos destacar a delimitação de seu objeto de estudo. Até o presente momento não temos na doutrina um consenso a respeito de qual seja o objeto do Direito Penal Econômico. Conforme já dissemos inicialmente, não é preocupação principal deste trabalho um aprofundamento conceitual do Direito Penal Econômico, ou da infração penal econômica. Todavia, apesar das inúmeras divergências existentes nesse campo, alguns pontos podem ser fixados como característicos dos crimes econômicos. Existem algumas correntes restritivas, outras, abrangentes. Importa aqui delimitar nossa área de discussão, sem entrarmos nas críticas que se podem fazer a cada um dos critérios de definição da infração econômica, pois que todas, ao menos por enquanto, têm sido passíveis de críticas. A falta de consenso e de precisão já podem ser percebidas nas várias expressões utilizadas para referir-se a esse tipo de crime, algumas das quais já propositadamente utilizamos acima: crimes econômicos, crimes dos poderosos, crimes do poder econômico, crimes do colarinho branco, crimes corporativos (corporate crimes) etc. Todas as expressões referem-se ao mesmo tipo de criminalidade, cujas características principais serão colocadas a seguir, em sua relação com os problemas que apresentam para a atuação do Direito Penal.

A. A própria criminalização das condutas antieconômicas já foi bastante discutida. Havia, e ainda há segmentos contrários a essa criminalização, por entenderem que ela causa prejuízos ao desenvolvimento econômico. A criminalização causaria um dirigismo da atividade econômica. A livre iniciativa restaria tolhida, o que é totalmente contrário à economia de mercado. Criminalizar condutas referentes às atividades econômicas, como por exemplo atividades desenvolvidas em gestão de empresa, não levaria em conta que a atividade do empresário é de risco. Ele está sempre lidando com riscos em sua gestão, inclusive sujeitando-se ao risco de decidir mal. A criminalização é vista por alguns como uma possível penalização injusta por eventuais más decisões

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tomadas pelo empresário, o que imporia uma total falta de criatividade e ousadia em sua gestão, comprometendo o sucesso dos negócios. Disso decorrem os posicionamentos de correntes individualistas e liberais totalmente contrárias à intervenção do Direito Penal na atividade econômica. Entretanto, na realidade, ainda que a globalização busque a não interferência estatal nas atividades econômicas, na sociedade contemporânea não existe uma total não interferência do Estado nessas atividades, ainda que seja justamente para garantir o funcionamento leal da economia de mercado e a confiabilidade nesse modelo. A Constituição do Brasil, por exemplo, estabelece como princípios da ordem econômica, dentre outros, a livre concorrência e a livre iniciativa (artigo 170). Também em seu artigo 173, § 4º, estabelece que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.

B. Por outro lado, é verdade que a hipercriminalização não traz redução em criminalidade de nenhuma natureza. Conforme foi dito, o Direito Penal positivo parece andar na contramão das outras áreas do Direito diante do fenômeno da globalização. Enquanto assistimos à desregulamentação nas outras áreas, as leis penais proliferam. O problema notado é que tais normas acabam atingido somente os excluídos. Servem para aliviar algumas tensões sociais, que são em número cada vez maior na atual ordem mundial. Mas pouco atingem a criminalidade econômica, praticada pelos poderosos, os donos do capital, este senhor da globalização. Não queremos dizer com isso que devam ser editadas inúmeras leis criando tipos penais referentes às infrações econômicas. Ao contrário, a proliferação legislativa e o aumento das penas têm função apenas simbólica.

Entendemos que algumas condutas antieconômicas merecem ser criminalizadas, pois lesam a sociedade e não se justifica que, sendo de grande lesividade e desvalor, seu tratamento seja diferente daquele dado à criminalidade violenta. Porém, defendemos o recurso a outras formas de regulamentação, deixando somente para as condutas mais graves o tratamento penal. Na Europa, o direito de mera ordenação social tem sido utilizado para punir condutas antieconômicas sem relevância penal. No Brasil, as sanções não penais semelhantes estariam no âmbito do Direito Administrativo. Essa área de atuação do Direito é chamada de Direito Administrativo Sancionatório, apresentando-se como uma ordem eficiente para o controle e punição das condutas antieconômicas, entre outras, pois utiliza sanções pecuniárias e de interdição da atividade do empresário e da empresa, o que os atingem de maneira bastante prejudicial a suas atividades. Também existem ações de natureza civil em vários ordenamentos com finalidade indenizatória dos danos causados pela conduta antieconômica. No Brasil, tem-se a Ação Civil Pública[4], que pode levar a uma condenação indenizatória de danos causados (ao Erário, por exemplo, em se tratando de má gestão de empresa pública.) Acrescente-se que a legitimidade ativa para sua propositura é ampla, incluindo-se associações civis, como também acontece em outros países, e que essa espécie de ação permite uma maior atuação das instâncias de controle não formal da criminalidade econômica. Nesse sentido, o Direito Penal deve ter um caráter subsidiário no combate às infrações econômicas.

Nesse cenário de intensa produção normativa, falta ao ordenamento de diversos países uma sistematização das leis penais referentes aos delitos econômicos. Na Europa, muitos países já têm buscado essa sistematização. O excesso de leis e a falta de sistematização dificultam o trabalho de controle tanto das instâncias formais como das

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informais. Essa hipercriminalização e desorganização geram muitas vezes, na consciência da coletividade, a sensação de total falta de eficiência do sistema.

C. Também de grande relevância é a tipificação dos delitos econômicos. Na mesma tendência hipercriminalizadora comentada acima, na área do Direito Penal Econômico, em vários países, têm sido criados tipos abertos. A explicação para tanto se encontra na extrema dificuldade de verificação da ocorrência da infração antieconômica. A fronteira entre o lícito e o ilícito nessa seara muitas vezes é bastante tênue. Os mecanismos de atuação do agente são extremamente sofisticados, tanto que alguns autores referem-se a uma criminalidade de inteligência. Assim, o tipo aberto permite com maior facilidade que a conduta criminosa possa ser caracterizada, permitindo que as instâncias formais de controle, que não a lei, caracterizem a ocorrência de crime. No ordenamento brasileiro encontramos, por exemplo, na Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro (Lei nº 7.492/86), em seu artigo 4º, o seguinte tipo:

Gerir fraudulentamente instituição financeira: Pena - reclusão, de 3 (três) a 12 (doze) anos e multa. Parágrafo único. Se a gestão é temerária: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos e multa. Temos aqui um típico exemplo de perigo de punição do administrador que atuou lidando com os riscos inerentes à sua atividade. O conceito de gestão temerária é vago, impreciso. O administrador nem sempre tem consciência a priori de que possa estar agindo temerariamente. Na verdade, não se sabe pelo tipo referido o que vem a ser gestão temerária, o que é muito ameaçador para quem lida com os riscos de gestão de uma instituição financeira. "Todos sabemos que os tipos abertos representam caminho livre para o arbítrio e para a negação da segurança jurídica" [...] (MALHEIROS FILHO, 1999, p. 5, grifo nosso).

Seguindo o mesmo raciocínio, podemos afirmar que outro cuidado a ser tomado pelo legislador é quanto à criação da modalidade culposa de crimes econômicos, que entendemos ser inadmissível para vários tipos, devido sempre aos riscos inerentes à atividade empresarial, o que dificulta ou mesmo impossibilita a averiguação da imprudência, imperícia ou negligência do agente.

Além dos tipos abertos, a antecipação da tutela penal também tem sido utilizada na tentativa de combate à criminalidade econômica. Ora, é sabido que o Direito Penal atua tardiamente. Quando o Direito Penal é aplicado, o dano já ocorreu. Para tentar inibir a prática de crimes econômicos, tem-se utilizado também de maneira temerária a criação de crimes de perigo, mormente de perigo abstrato. Levando-se em conta o que já foi exposto sobre a atividade empresarial, esse tipos representam mais uma ameaça às garantias individuais do gestor da empresa. O alargamento dos tipos "pode prejudicar a liberdade de iniciativa ou a capacidade e interesse na tomada de decisões pelos administradores ou gestores de empresas" (CORREIA, 1998, p. 308). Muitas das condutas caracterizadas como crime de perigo no âmbito do Direito Penal Econômico poderiam ser reguladas e sancionadas apenas pelo Direito Administrativo (direito de mera ordenação social), neste caso, sim, podendo-se admitir uma atenuação do princípio da legalidade.

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A precariedade e diversidade dos limites, formas e meios de tipificação do ilícito penal econômico (CORREIA, 1998, p. 302), que dão ao Direito Penal Econômico um caráter intimidativo e gerador de incerteza, devem ser veementemente rejeitadas. Não podemos aceitar as graves imperfeições que vêm sendo observadas na tipificação dos delitos econômicos.

D. A prática de crimes econômicos envolve agentes geralmente com grande conhecimento do mundo dos negócios e das transações internacionais de capital. Esse mesmo domínio técnico, contudo, não costuma ser partilhado pelos órgãos de controle da criminalidade econômica. Como as infrações são cometidas em ambientes fechados, sem transparência, através de complexas operações, muitas vezes internacionais, por pessoas que dominam conhecimentos técnicos, através de sofisticados mecanismos, onde a fronteira entre o lícito e o ilícito é sutil, o sistema penal mostra-se desestruturado para o combate a essa criminalidade. Os mesmos conhecimentos das operações econômico-financeiras é necessário aos operadores do Direito Penal. Ademais, é necessário um procedimento especializado para a apuração desses crimes e para a instrução e julgamento dos respectivos processos. É indispensável que as instâncias de controle formal especializem-se, através de um adequado treinamento de pessoal e intercâmbio entre os órgãos ligados à tarefa de combate à criminalidade econômica. Isso já tem sido realizado em diversos países, notadamente na Europa, onde temos como exemplo a City of London Police, e Estados Unidos, mas ainda é precário no Brasil. Esse treinamento envolveria especialmente a Polícia Judicária, o Ministério Público e o Judiciário, que precisam manter um contato mais intenso com órgãos da Administração, como os que fiscalizam a arrecadação de tributos.

A qualificação referida, acompanhada de um devido aparelhamento tecnológico, seriam também de grande valia para a superação de um dos grandes problemas dos processos relacionados à criminalidade econômica: a prova. Atualmente, verificamos a enorme dificuldade existente na fase instrutória do processo criminal por prática de delito econômico, o que tem levado inclusive à adoção do instituto, nem sempre bem manipulado, da delação premiada.

E. No cenário sem fronteiras para o capital, tampouco o crime conhece-as. Os crimes econômicos comumente são cometidos em operações internacionais de circulação do capital. O local do crime não existe da maneira como é concebido pelo Direito Penal tradicional. As organizações, tanto lícitas como ilícitas, que participam de alguma forma da conduta criminosa, têm atuação transnacional. Portanto, entendemos que a cooperação internacional é absolutamente indispensável para uma atuação eficaz do Direito Penal no âmbito da criminalidade econômica. Nesse ponto, temos um grave obstáculo. Existem Estados coniventes com a criminalidade econômica que, além de não a punirem, oferecem condições para a realização de lavagem de dinheiro, crime freqüentemente associado a outras condutas também caracterizadas como crime econômico, pois o dinheiro lucrado com o crime econômico precisa entrar de forma lícita na economia formal. Típico exemplo são os chamados paraísos fiscais. Outro crime freqüentemente associado a outras condutas criminosas no âmbito da economia é a corrupção. Como denuncia Rodriguez Devesa (1981, p. 706): "Estados que se dicen civilizados se beneficien de estos delitos cerrando los ojos al origen de los ingressos que tales enemigos del género humano les reportan".

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A cooperação internacional no combate à criminalidade econômica, entretanto, ainda não tem expressividade. Mesmo nos blocos econômicos que já possuem uma série de normas legais pertinentes a outras áreas do Direito não existe integração entre os Estados-membros quanto às normas penais e à política criminal relativas à criminalidade econômica. Um tribunal penal internacional que tivesse competência para o julgamento de crimes econômicos de grande lesividade e cometidos transnacionalmente também pode ser colocado como alternativa nesse desejado cenário de cooperação internacional no combate à criminalidade econômica, especialmente porque essa criminalidade costuma atuar de forma organizada, quase sempre realizando lavagem de dinheiro, crime que causa enormes prejuízos à sociedade global. Evidentemente a idéia de um tribunal internacional é ainda prematura, pois a experiência mundial com esse tipo de Corte é incipiente. O Tribunal Penal Internacional tem competência apenas para julgamento de crimes contra a humanidade, que são tipos penais que tutelam bens jurídicos relativos aos direitos humanos.

F. Também é decisivo para a eficácia do Direito Penal e do Processo Penal uma profunda transformação cultural: que sejam superadas as diferenças de tratamento que os agentes recebem do aparelho repressivo do Estado conforme tenham elevado estatuto social ou sejam socialmente excluídos. A criminologia, desde Sutherland, já se ocupou de demonstrar que os indivíduos que detêm o poder econômico também cometem crimes de grande lesividade, e são justamente eles os principais agentes dos crimes econômicos. O Direito Penal não pode fundamentar-se no agente da conduta, obviamente. Porém, diversos crimes econômicos são crimes próprios de gestores de empresas, e apenas têm oportunidade de cometê-los essas pessoas de elevado estatuto social. Ocorre que a política criminal até hoje adotada pelos Estados não se preocupa em efetivamente punir esses agentes[5]. Isso ocorre em todo o mundo. Uma série de fatores (cuja amplitude da discussão extrapola os limites deste trabalho) favorecem a impunidade dos crimes do colarinho branco. Logo, a moralização da atuação de todas essas instâncias urge e é imprescindível para o combate à criminalidade econômica. Essa mudança está diretamente relacionada com a conscientização, que se faz necessária, das vítimas dos crimes econômicos. Os crimes do colarinho branco na maioria das vezes produzem vítimas de difícil identificação. Toda uma sociedade é lesada por uma fraude fiscal, por exemplo. Todavia, é preciso uma política de conscientização dos indivíduos, que muitas vezes não se apercebem dessa lesividade, importando-se mais com um pequeno furto. Existe uma verdadeira tolerância por parte da sociedade em relação aos crimes econômicos. Isso também porque os bens jurídicos tutelados pelo tipo são supraindividuais. É muito mais fácil para o cidadão aperceber-se da lesão a seu patrimônio individual. Na criminalidade econômica, os valores protegidos não se individualizam, as vítimas são abstratas.

Por outro lado, é comum acontecer a utilização de um bode expiatório para a punição dos crimes econômicos. Como é difícil a investigação do crime, há falta de cooperação internacional e muitos dos agentes têm forte poder político, o sistema por vezes encontra algum indivíduo para mostrar à sociedade que está exercendo o devido controle penal. As pessoas satisfazem-se, então, com a severa punição de um dos agentes, na maioria dos casos que menor dano causou. Nisso, vemos a utilização do Direito Penal como intimidação, por meio de uma punição aleatória e meramente exemplar, contrariando totalmente a idéia de justiça, servindo de maneira utilitária ao Estado. Por isso, a conscientização da população sobre a lesividade do crime econômico e as verdadeiras formas (hierarquicamente organizada, transnacional) pelas quais é

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cometido é essencial para seu verdadeiro controle, evitando o uso do Direito Penal como mero terror. É sabido que a severidade da punição não traz resultados no combate à criminalidade. É preciso, sim, a certeza da punição, para fugir-se de um Direito Penal com caráter meramente simbólico.

G. O sistema punitivo adequado ao Direito Penal Econômico é ainda desconhecido. Afirmamos isso porque entendemos que atualmente, em todo o Direito Penal, a punição está em fase de grandes questionamentos. Quais as penas adequadas ao autor do crime econômico? Essa é uma questão de grande dificuldade de resposta para nós, pois na verdade existe uma outra questão ainda maior: quais as penas adequadas a qualquer tipo de criminoso? A resposta a essa indagação foge ao âmbito deste trabalho. Todavia, entendemos que certamente atender aos anseios populares de aprisionar alguns dos criminosos do colarinho branco (os bodes expiatórios), para se mostrar que os poderoso também vão para a prisão, não é a solução, pelas razões já expostas. A pena de prisão, admitindo-se que deve continuar existindo, deve ser utilizada para os fins a que se destina, e não para aterrorizar. As penas alternativas devem ser aplicadas também para os casos de crimes econômicos. Como neles estão envolvidas pessoas de elevado poder aquisitivo, que inclusive enriquecem com o produto de seus crimes, têm-se mostrado adequadas penas como severas multas, proibição de exercício de atividades econômicas e perdimento dos bens produtos do crime. Não se quer dizer com isso que o criminoso econômico não deva ser aprisionado, enquanto os demais devam. Ao contrário, para qualquer tipo de crime, a prisão tem de ser necessária. O que não pode ocorrer, conforme tem sempre ocorrido, é um tratamento privilegiado aos poderosos quando chegam a ser aprisionados, costumando até mesmo dirigir seus negócios ilícitos de dentro do presídio. Por esse tratamento privilegiado, verificou-se que o sistema do sharp short shock não funcionou, e os agentes continuaram a delinqüir. Poder-se-ia vulgarmente dizer que para eles "o crime compensava", pois o pouco tempo de aprisionamento, com tratamento privilegiado, era um preço baixo diante dos lucros obtidos com a prática dos crimes econômicos.

Enfim, a proporcionalidade entre o desvalor da conduta e a reação legal é princípio inafastável do Direito Penal. Conforme defende René Ariel Dotti, citado por Lopes (2000, p. 442), a proporcionalidade da pena revela, por um lado, o interesse da defesa social e, por outro, o direito do condenado em não sofrer uma punição que exceda o limite do mal causado pelo ilícito. Também esse princípio não pode ser esquecido na ânsia do combate à criminalidade econômica.

A criminalidade econômica tem características próprias que estão a exigir do Direito Penal uma adaptação para seu combate. Entendemos, contudo, que os princípios já conhecidos não podem ser afastados e que essencialmente o Direito Penal não deverá sofrer mudanças em sua principiologia básica, mantendo especialmente a legalidade, a proporcionalidade e a presunção da inocência. Pode-se dizer que se está exigindo um melhor aparelhamento do sistema penal e mudança de postura no combate a criminalidade dos poderosos no sentido de que eles possam ser efetivamente punidos pelos enormes danos que causam.

Conclusão

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Formular conclusões a partir de um estudo que praticamente se ocupou de levantar dúvidas é tarefa difícil. Entretanto, dois pontos desta discussão não podem deixar dúvidas.

Primeiro, é preciso que a criminalidade econômica seja verdadeiramente combatida, pois o prejuízo social que se tem sofrido com sua prática é expressivo e intolerável. Se é preciso, repensemos os conceitos, os modelos, os princípios, as políticas criminais. Se o Direito está em transformação, não fujamos dela. Todavia, e aqui temos a outra certeza, sem jamais abandonar as conquistas do Direito Penal em termos de garantias das liberdades públicas e da dignidade humana. É preciso conter, na ânsia de punir os autores de crimes econômicos, a arbitrariedade.

Se impone una revisión en profundidad de las concepciones herdadas del siglo pasado sin que, por supuesto, deba pensarse ni por un sólo instante en abandonar los principios de legalidad y de que no hay pena sin culpabilidad adquiridos tras siglos de dramáticas experiencias, de sangre y de lágrimas" (RODRIGUEZ DEVESA, 1981, p. 704).

Embora ainda não tenhamos encontrado a fórmula, entendemos ser possível fazê-lo equilibrando esse dois pontos, desde que se abandone o discurso demagógico, que não se perca de vista que o Direito Penal serve para a tutela de bens jurídicos de grande relevância e é ultima ratio, que se deixe de pedir ao Direito Penal aquilo que ele não pode oferecer-nos: o céu. Vê-se bem que a questão mesmo transcende o Direito Penal. Fica claro que combater a criminalidade econômica é tarefa que envolve diversos segmentos da sociedade e não apenas os operadores do Direito Penal. A coletividade precisa tomar consciência dos males que sofre com a catarse que realiza ao exigir a rigorosa punição da criminalidade violenta, não se dando conta do quanto é prejudicada pela criminalidade econômica, ou, quando muito, satisfazendo-se com a execração pública de bodes expiatórios. Precisamos, nas palavras de Ramonet (2000, p. 17) de "um contraprojeto global, uma contra-ideologia, um edifício conceitual que se possa contrapor ao modelo atualmente dominante".

O mundo hoje realmente tornou-se a famosa aldeia global. Sabemos que a globalização trouxe para a sociedade muitos efeitos positivos, sendo para nós o mais importante a difusão do conhecimento e o acesso à informação (embora apenas para os incluídos, pois a Revolução Tecnológica tem-se mostrado extremamente excludente). Falta-nos ainda a Revolução do Conhecimento e da Ética.

Dentro do Direito Penal, e tomando-se ainda as demais Ciências Criminais como um todo, podemos destacar os pontos que entendemos mereçam ser estudados e analisados permanentemente e com profundidade, para que cheguemos a um modelo eficaz e justo no combate à criminalidade econômica:

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1) utilização do Direito Penal como ultima ratio; 2) descriminalização das condutas de menor lesividade e desvalor; 3) utilização do Direito Administrativo Sancionatório; 4) estrita obediência ao princípio da reserva legal, com rigor na descrição dos

tipos, evitando-se tipos abertos; 5) sistematização das leis penais relacionadas ao crime econômico; 6) treinamento e capacitação das instâncias de controle formal; 7) efetiva cooperação internacional; 8) possibilidade de utilização de um tribunal penal internacional; 9) conscientização das instâncias de controle informal; 10) adoção de um sistema punitivo adequado.

É evidente que a globalização está produzindo uma série de transformações no Direito que não podem deixar de ser criticamente analisadas. Mas o ser humano está cheio de dúvidas neste terceiro milênio, e com o estudioso do Direito não poderia ser diferente. Assim, permitimo-nos encerrar este trabalho não com uma resposta, mas como a pergunta formulada por Faria (2000, p. 9), que se encaixa com perfeição ao Direito Penal Econômico: "Que tipo ou modelo de direito, afinal, estaria apto a dar conta de tanta mutação, de tanta complexidade e de um sem-número de situações ainda não inteiramente estruturadas e sedimentadas?". Eis o desafio.

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[2] Primeira onda: as grandes descobertas marítimas, ou grandes navegações, protagonizadas, em um primeiro momento, por Portugal e Castela, geradoras da Revolução Mercantil (capitalismo mercantilista) e do colonialismo. Segunda onda: as imigrações conseqüentes da superpopulação da Europa, decorrente da Revolução Industrial (capitalismo industrial), geradora do novo colonialismo. Terceira onda: a globalização iniciada na década de 70, possível graças à Revolução Tecnológica, produtora de novo modelo capitalista (capitalismo financeiro) que tem por base não mais a produção, mas sim a especulação, e não conhece fronteiras territoriais.

[3] Destacamos dois pontos: 1. é questionável se esta violência é a maior ou mais grave que a violência de excluírem-se seres humanos da sociedade; 2. são também questionáveis os dados sobre a violência divulgados pela mídia.

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[4] Tramita no Congresso Nacional o PL 5139/2009 (Câmara dos Deputados), criando uma nova regulamentação para a ação civil pública.

[5] Reiman (2000) demonstra de maneira clara esta afirmação em sua obra The rich get richer and the poor get prision.