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. Alethes

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Diagramação: Arthur Barretto de Almeida Costa

Revisão: João Vítor Moreira, Alan Rossi Silva e Marcos Felipe. Capa: Edição e montagem de Arthur Barretto de Almeida Costa sobre quadro de Vladimir Kush. Divisórias: Montagens de Arthur Barretto de Almeida Costa sobre

obras diversas de Salvador Dalí.

.

_____________________________________________

Alethes: Periódico científico dos graduandos em Direito Da UFJF. Vol. 05, N. 07. (Maio de 2015)

Juiz de Fora: DABC, 2015. Semestral. 1. Direito – Periódicos

ISSN 2177-4633

_____________________________________________

As opiniões expressas são de inteira responsabilidade de seus autores

Esta publicação conta com o apoio do Diretório Acadêmico Benjamin Colucci, da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora.

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Con fe lo imposible soñar al mal combatir sin temor

triunfar sobre el miedo invencible en pie soportar el dolor Amar la pureza sin par

buscar la verdad del error vivir con los brazos abiertos

creer en un mundo mejor Es mi ideal

la estrella alcanzar no importa cuan lejos

se pueda encontrar luchar por el bien sin dudar ni temer

y dispuesto al infierno llegar si lo dicta el deber Y yo sé

que si logro ser fiel a mi sueño ideal

estará mi alma en paz al llegar de mi vida el final

Será este mundo mejor si hubo quien despreciando el dolor

combatió hasta el último aliento Con fé lo imposible soñar

y la estrella alcanzar Lo sueño impossible Letra de Joe Darion

Melodia de Mitch Leight

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Conselho EditorialConselho EditorialConselho EditorialConselho Editorial Editor Chefe

Acadêmico Alan Rossi Silva (UFJF) Editores Adjuntos Acadêmico Arthur Barretto de Almeida Costa (UFMG) Acadêmica Elora Raad Fernandes (UFJF) Acadêmico Igor Ladeira (UFJF)

Acadêmico João Vítor de Freitas Moreira (UFJF) Acadêmico Marcos Felipe Lopes de Almeida (UFJF) Acadêmico Rafael Carrano Lelis (UFJF) Acadêmica Giovana Figueiredo Peluso Lopes (UFJF) Acadêmica Maria Fernanda Campos Goretti de Carvalho (UFJF) Conselheiros

Dr. Alexandre Travessoni Gomes (UFMG) Dr. Andityas Soares de Moura Costa Matos (UFMG) Dr. Antônio Márcio da Cunha Guimarães (PUC-SP) Dr. Aziz Tuffi Saliba (UFMG) Ms. Brahwlio Soares de Moura Ribeiro Mendes (UFJF) Drª. Cláudia Toledo (UFJF) Doutorando Daniel Giotti (UFJF) Drª. Daniela de Freitas Marques (UFMG) Dr. Denis Franco Silva (UFJF) Drª. Elizabete Rosa de Mello (UFJF) Doutorando Geraldo Adriano Emery Pereira (UFV) Drª. Eliana Conceição Perini (UFJF) Doutoranda Éllen Rodrigues (UFJF) Drª. Fernanda Maria da Costa Vieira (UFJF) Mestranda Juliana Martins de Sá Muller (UERJ) Dr. Marcos Vinício Chein Feres (UFJF) Dr. Leandro Martins Zanitelli (UFMG) Doutoranda Nathane Fernandes da Silva (UFJF-GV) Dr. Noel Struchiner (PUC-RIO) Ms. Renato Chaves Ferreira (UFJF) Dr. Ricardo Sontag (UFMG) Dr. Thomas da Rosa de Bustamante (UFMG) Mestrando Vitor Schettino Tresse (UERJ)

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SumárioSumárioSumárioSumário

Conselho Editorial 5 Editorial Board

Sumário 9 Summary

Editorial 13 Editorial Artigos Articles Ausência de licitação para o serviço de transporte coletivo no Município de 19 Juiz de Fora Absence of bidding for public transportation service in the city of Juiz de For a Daniele A. Carneiro Fernandes

Eveline Maila dos Reis Valle Conflitos Trabalhistas Internacionais: Uma abordagem sob a perspectiva 39 do Direito Internacional do Trabalho e do Direito Internacional Privado International Labor Conflict: an approach under the International Labor Law and Private International Law perspective

Thiago Martins Lage Bonsucesso

Relações de poder: Bilateralidade imanente e reações subsequentes no 57 Estado Democrático de Direitos Relations of power: Bilaterality immanent and subsequent reactions in the democratic rule of law

Henrique Detoni Leão O Triângulo de Produção: Consumidor-Fornecedor nas Relações 79 de Consumo The production Triangle: Consumer-Supplier in Consumer Relations

Francisco Patrick Barbosa Chagas Graziela Cristina Matias da Silva Josiele Ferreira Ribeiro

Caderno de Resumos EMED 99 Abstracts of EMED Artigos do EMED Articles of EMED Ativismo Judicial no Cenário Brasileiro e os Limites do Poder Judiciário: 107 Casos emblemáticos do STF Judicial activism in Brazil and the limits of the judiciary: emblematic cases of Brazilian Supreme Court

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Fernanda Lima de Carvalho Rafael Carrano Lelis Estado, globalização e justiça: revisões críticas ao marco estatal como 125 único promotor de justiça State, globalization and justice:critical reviews to the state framework as the only forwarder of justice

Pedro Henrique Borges Viana Entrevista Interview Entrevista com o Prof. E Dep. Marcelo Freixo 141 Interview with Professor and Deputy Marcelo Freixo Memória 149 Memory Normas de Publicação 155 Publication Norms

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF., v. 5, n., 7 pp. 15-16, mai., 2015.

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SILVA, A. R. Editorial

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF., v. 5, n., 7 pp. 15-16, mai., 2015.

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EditorialEditorialEditorialEditorial

A Alethes está crescendo. E, a cada edição, neste espaço, temos o orgulho de registrar

o quanto avançamos e amadurecemos com este projeto, quanto da estrada sem fim da

criatividade e da difusão do conhecimento percorremos em um semestre de grandiosas

experiências como editores e editoras deste periódico e, também, o quanto conseguimos

espalhar esta nossa ideia de pesquisa científica em Direito ao longo do país e fora dele.

É verdade que, ao olharmos todos os editoriais e publicações de trabalhos anteriores,

podemos encontrar avanços cristalinos em nossa trajetória, com vitórias e aprendizados

indeléveis na vida de cada um e cada uma que fez ou faz parte desta equipe. Entretanto, nesta

7ª edição, comemoramos 5 anos desde a publicação da primeira edição do Periódico Alethes.

Trata-se de um momento marcante na história do Periódico e, a nosso ver, de uma

oportunidade importantíssima para que não apenas relembremos nossos avanços e

elenquemos nossas conquistas, mas, principalmente, para refletirmos conjuntamente sobre

nossas verdadeiras bases e sobre nossos objetivos.

Para tanto, nesta edição contamos com o apoio de uma equipe ainda maior! Além dos

companheiros que participaram ativamente de nossas edições anteriores, tivemos a alegria

de receber em nossa equipe uma nova leva de amigos e amigas, que passaram a enfrentar

junto conosco os desafios e aprendizados diários inerentes à atividade editorial do periódico.

Esta edição não seria possível, portanto, sem a ajuda e dedicação de cada um dos editores e

de cada uma das editoras que colaboraram com este projeto, que ajudaram a estruturar e a

repensar cada uma de nossas ações ativamente. Sendo assim, agradeço, nominalmente, aos

que ajudam a construir e desenvolver a Alethes: Arthur Barretto, Elora Fernandes, Giovana

Lopes, Igor Ladeira, João Vitor, Marcos Felipe, Maria Fernanda e Rafael Lelis.

Ademais, se tratando de uma edição especial comemorativa, contamos com uma

parceria inédita firmada com o Diretório Acadêmico Benjamin Colucci (DABC), que

realizou o “XXX Encontro Mineiro de Estudantes de Direito (EMED)”, na cidade de Juiz de

Fora/MG. E, em razão desta parceria, reservamos um espaço desta edição para artigos de

graduandos e de graduandas previamente selecionados para apresentação oral no evento

organizado pelo DABC, que, depois de passarem por nosso Conselho Editorial, tivemos o

prazer de publicá-los em uma seção especial ao EMED. Assim, nesta edição, pudemos contar

com a contribuição de trabalhos que versam sobre o ativismo judicial, direito administrativo,

direito do trabalho, direito do consumidor, teoria da justiça e teoria do Estado. Esta foi uma

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SILVA, A. R. Editorial

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oportunidade ótima de aproximação entre a pesquisa científica e o movimento estudantil, ao

passo que o EMED é um evento organizado exclusivamente por estudantes da graduação e

conta com uma tradição histórica na defesa de um ensino jurídico crítico e criativo.

Neste sentido, assim como no movimento estudantil, é dever de todos aqueles que se

dedicam a uma produção séria – e, prazerosa - de conhecimento rever constantemente seus

pressupostos e conceitos construídos ao longo dos anos, com o intuito de se aproximar cada

vez mais da genuína relação entre o ser humano e o saber. Por isso, a Alethes, aos 5 anos

desde a sua primeira publicação, encontra-se em um momento crucial, de muitos

questionamentos: como lidar com a crescente expansão da revista e, mesmo assim, manter

uma consistência científica em suas publicações? Como estabelecer uma legitimidade

metodológica e conteudística dos trabalhos publicados e, ainda, conciliar o seu pressuposto

pedagógico inicial? Como lidar com as limitações estruturais de um periódico que se sustenta

com o esforço de graduandos e graduandas, em uma empreitada contramajoritária da

produção de conhecimento? Ademais, como se relacionar com a limitação dos próprios

integrantes, idealizadores do projeto, que apesar de vislumbrarem claramente os patamares

improváveis a serem atingidos, esforçam-se diariamente para tatear o melhor caminho?

Essas perguntas, contudo, provavelmente não comportam respostas adequadas, que

as esgotem e as detenham. Trata-se de questionamentos essenciais para que continuemos

caminhando de forma honesta e verdadeira. Nossa proposta justamente não se fundamenta

em construções de certezas bem moldadas, que nos servem e nos confortam. Não cultuamos

as certezas como finalidades intrínsecas ao roteiro bem planejado do sucesso. Acreditamos

que somente sob a égide da honestidade encontraremos a tão sonhada liberdade criativa, ao

assumirmos as incertezas como dadas e como ricos fertilizantes de uma cultura jurídica cada

vez mais consistente, por não carregarem consigo quaisquer valores negativos, ao contrário,

por carregarem consigo a falta de fôlego inspirada pela proximidade com o impossível e com

o impensável.

Alan Rossi Editor Geral da Alethes

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FERNANDES, D. A. C.; VALLE, E. M. R. Ausência de Licitação.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 05, v. 07, pp 19-38, mai., 2015

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FERNANDES, D. A. C.; VALLE, E. M. R. Ausência de Licitação.

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Ausência de licitação para o serviço de transporte coletivo no Município de Juiz de Fora

Absence of bidding for public transportation service in the city of Juiz de Fora

Daniele A. Carneiro Fernandes1 Eveline Maila dos Reis Valle2

Resumo: Este artigo jurídico trata dos desdobramentos e efeitos ocasionados pela expressa

previsão na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) relativos à obrigatoriedade de licitação para as contratações da Administração Pública. De acordo com o referido princípio, numa forma de garantir uma escolha objetiva e mais vantajosa para a Administração Pública, deve-se recorrer ao pleito licitatório em suas contratações. No ensejo tem destaque à questão de contratos firmados antes da CRFB/88 e simplesmente prorrogados posteriormente sem o devido e obrigatório procedimento constitucional de licitação, como no caso dos contratos de concessão de serviço público de transporte coletivo do município de Juiz de Fora. Destaca-se ainda que as prorrogações foram baseadas em interpretações equivocadas dos artigos e termos da legislação infraconstitucional, além da edição de uma Lei Municipal inconstitucional.

Palavras-chave: Licitação. Serviço Público. Transporte coletivo. Município de Juiz de Fora.

Abstract This article discusses the legal consequences and effects occasioned by express

prevision in the 1988 Constitution related to mandatory bidding for hiring in the Public Administration. According to this principle, in order to ensure an objective and more beneficial choice for Public Administration, it must resort to the bidding elections in their hiring. In this case has highlighted the issue of contracts signed before CRFB/88 and simply extended without due constitutional and mandatory competitive bidding procedure as in the case of contracts of public service concession for public transportation in the city of Juiz de Fora. It was also noted that that extensions were based on misinterpretations of articles and terms of constitutional legislation, besides the issue of an unconstitutional municipal law.

Key words: Bidding. Public Service. Mandatory bidding principle. Extension for no-bid contracts. Public transportation in the city of Juiz de Fora.

1 Discente do curso de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora 2 Discente do curso de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 05, v. 07, pp 19-38, mai., 2015

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1. Introdução

O procedimento licitatório, após longos anos presente apenas nas legislações

infraconstitucionais é constitucionalmente previsto, como obrigatório, a partir da

Constituição Federal de 1988, para as contratações da Administração Pública, com vistas

a assegurar a escolha objetiva da melhor proposta. Contudo, ainda podemos encontrar

situações em que, mesmo após 26 anos de incidência obrigatória do pleito licitatório Entes

da Federação ignoram o princípio constitucional e acabam por não realizar o

procedimento devido.

O Município de Juiz de Fora é um exemplo disso, visto que, o contrato de serviço

público de transporte coletivo sofreu constantes prorrogações sem o devido procedimento

de licitação. Sendo uma nítida violação a ditames constitucionais, em que se embasou a

Administração Pública do Município para conceder tais prerrogativas às empresas? Como

a Lei 8666/93 e a Lei 8987/95 tratam do assunto da prorrogação dos contratos? Há algum

argumento juridicamente válido e plausível para a ausência de licitação?

Diante do desafio de tentar compreender o que aconteceu durante todos esses

anos, a metodologia utilizada foi uma análise bibliográfica disponível sobre o tema.

Inicialmente vamos analisar a evolução do âmbito de abrangência da licitação no nosso

ordenamento e as leis que o disciplinam, de forma a concretizar todo o disposto da

Constituição de 1988, bem como as normas e princípios pertinentes às concessões e

permissões de serviços públicos, com vistas a construir uma interpretação apta a adentrar

criticamente no tema em foco deste artigo.

Na segunda parte deste trabalho avalia-se o caso concreto do Município de Juiz

de Fora onde o serviço de transporte público é prestado sem a devida licitação pública

desde 1963, sendo alvo do processo administrativo n. 734.282. Para descrição desta

problemática partimos do voto do Relator Conselheiro Antônio Carlos Andrada do

TCE/MG publicado na Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais,

abril/maio/junho 20093. Nos itens deste capítulo analisaremos o histórico da concessão

de serviço público de transporte coletivo no município de Juiz de Fora; a situação atual

do serviço no município e as inovações tecnológicas feitas. Desta forma, analisaremos as

defesas e pareceres apresentados, assim como a situação do transporte coletivo no

Município de Juiz de Fora em nossos dias.

3 Disponível em: <http://revista.tce.mg.gov.br/Content/Upload/Materia/540.pdf >. Acesso em: 02 jul. 2014.

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FERNANDES, D. A. C.; VALLE, E. M. R. Ausência de Licitação.

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2-Evolução Legislativa da Licitação no Brasil

O ordenamento jurídico brasileiro, em matéria de licitação, pode ser dividido por

dois momentos e entre eles está a nossa Constituição Federal de 1988 como marco divisor.

Antes da sua promulgação o contexto era de leis esparsas e ordinárias sobre o assunto,

que não proporcionavam a segurança jurídica necessária, já com a CRFB/88 a

obrigatoriedade de um processo licitatório está prevista no art. 37, XXI4. A inserção do

procedimento licitatório no contexto constitucional trouxe inúmeros avanços,

proporcionando transparência, segurança e publicidade aos atos públicos, tão necessários

à vida de uma democracia.

2.1- Contexto legislativo anterior a Constituição Federal de 1988.

O primeiro instrumento que visou regular o procedimento licitatório é o Decreto

nº 2.926 de 14 de maio de 1862, que tratou do processo de arrematação, de forma que,

conforme descrito no seu art.1º, nos casos de o governo mandar fazer por contrato

qualquer tipo de fornecimento, construção ou consertos de obras, com as despesas por

conta do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, o presidente da junta,

deverá publicar anúncios e fixar um prazo que poderia variar entre 15 dias a 06 meses

para a apresentação de propostas.

Após quase seis décadas de vigência do Decreto 2.926 de 1862, como grande

regulador da licitação, surge o Decreto nº 4.536 de 28 de janeiro de 1922, que organiza o

Código de Contabilidade da União. Cumpre destacar, que este Decreto trouxe em seu art.

50, que a licitação será feita, mediante publicação no Diário Oficial ou nos jornais oficiais

do Estado, destacando as condições a serem estipuladas, com a indicação das autoridades

encarregadas, além do dia, hora e lugar. Já no art. 51 estavam listados os casos onde serão

dispensadas as licitações.

4 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 05, v. 07, pp 19-38, mai., 2015

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O Decreto-lei nº 200 de 25 de fevereiro de 1967, estabeleceu no art. 125, que as

licitações para compras, obras, serviços e alienações, na Administração Direta e

autarquias, deverão ser regidas pelas disposições contidas no Título XII do Decreto em

estudo. É expressamente previsto no art. 1275, como modalidades de licitação, a

concorrência, a tomada de preços e o convite, esclarecendo-se ainda, o âmbito de

abrangência destas.

Pouco tempo depois, tivemos a Lei nº 5.456 de 20 de junho de 1968, que

determinou a ampliação da incidência do Decreto-lei 200 de 1967, aos Estados e

Municípios, contudo, estes poderiam editar disposições que visem regulamentar as

licitações para atender as peculiaridades locais e pormenores do objeto da contratação,

desde que não contrariem os princípios contidos na Lei Federal, podendo inclusive,

reduzir limites iniciais, para as modalidades de licitação por meio de Lei Estadual.

Dois anos antes da Constituição Federal de 1988, tivemos o Decreto-lei nº 2.300

de 21 de novembro de 1986, que tinha instruções relativas à licitação de forma mais

detalhada, visto que era específico para dispor sobre licitações e contratos no âmbito da

Administração Pública Federal. Estabeleceu como modalidades de licitação, além da

concorrência, tomada de preços e o convite, o concurso e o leilão.

Posteriormente, o Decreto-lei nº 2.348 de 24 de julho de 1987, tinha a função de

modificar o Decreto-lei 2.300 de 1986, contando, por exemplo, com inclusões relativas à

inexigibilidade de licitação, nos seguintes casos: aquisição de materiais que só possam

ser fornecidos por produtor; profissionais do setor artístico; profissionais únicos em seus

trabalhos; restauradores de arte; e compra ou locação de imóvel para o serviço público

com certas condições que condicionem a sua escolha.

Visando de igual forma, alterar o Decreto-lei 200, o Decreto-Lei 2.360 de 16 de

setembro de 1987 foi introduzido o §2º ao art. 3º, onde desde que observadas condições

satisfatórias de especificação, no que diz respeito ao desempenho e qualidade, prazo de

entrega e garantia, deverá ser dado uma preferência no momento da licitação, aos bens e

serviços produzidos no país, dentre outras modificações.

3.1 - Contexto Legislativo após a promulgação da Constituição Federal de 1988

5Art . 127. São modalidades de licitação: I - A concorrência; II - A tomada de preços; III - O convite. § 4° Convite é a modalidade de licitação entre interessados no ramo pertinente ao objeto da licitação, em número mínimo de três, escolhidos pela unidade administrativa, registrados ou não, e convocados por escrito com antecedência mínima de 3 (três) dias úteis.

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FERNANDES, D. A. C.; VALLE, E. M. R. Ausência de Licitação.

23 | A l e t h e s

Ao final da década de 1980, o Brasil passou por uma fase de redemocratização,

levando a promulgação da nova CRFB/88. A carta, adjetivada de Cidadã pelo Presidente

da Assembleia Constituinte no discurso da promulgação, marcou o momento histórico.

Foi nítida a busca por aprimoramento dos mecanismos de controle estatal, pela primeira

vez tivemos a obrigação constitucional de um processo licitatório para todas as

contratações com o Poder Público.

A CRFB/88 é um marco no ordenamento jurídico-licitatório (PESTANA, 2013,

p. 7), ela é o ápice e subordinam-se a ela as disposições legais sobre o assunto, que se

submetem formal e materialmente ao que foi nela disposto. É competência privativa da

União, legislar sobre normas gerais de Licitação, que possuem vigência em âmbito

nacional, segundo disposto no art.22, inciso XXVII6, cabendo aos Estados-membros,

Municípios e ao Distrito Federal apenas normas específicas, com conteúdo suplementar

e bastante limitado. A Lei 8666/1993 é o exemplo de maior densidade sobre o assunto,

introduzindo normas gerais, de aplicabilidade nacional, sobre licitações públicas.

Sobre o conteúdo das normas gerais sobre licitação, de competência exclusiva da

União, Marcos Pestana, disciplina:

Normas gerais devem ser consideradas a partir de enunciados jurídicos, de expressão nacional, que permitam elaborar normas jurídicas de sentido completo, endereçadas, no caso, a todas as pessoas políticas de direito constitucional interno, as pessoas jurídicas a elas ligadas, aos agentes públicos que participem do processo licitatório, assim como às pessoas físicas ou jurídicas que pretendam com a administração pública brasileira, normas jurídicas gerais estas que tem o objetivo de estruturar as diversas modalidades de licitação passíveis de serem utilizadas no país; os requisitos para sua realização; as hipóteses nas quais, em regime de exceção, admite-se a não realização de qualquer uma das modalidades de licitação; a dinâmica de sua implementação concreta; a especificação e tipificação dos crimes que sejam especialmente coibidos nesse domínio do direito; a definição dos recursos administrativos específicos cabíveis ao longo do processo licitatório, assim como os fatores de entorno, como prazos, efeitos e competências, dentre outros. (PESTANA, 2013)

O art.37, XXI, da CRFB/88 coloca entre os valores expressos para Administração

Pública, direta e indireta, a necessidade de processo licitatório para contratações públicas.

Com o objetivo de assegurar a igualdade de oportunidades a todos os interessados em

6Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: XXVII - normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 05, v. 07, pp 19-38, mai., 2015

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participar do certame. Enunciando o princípio da obrigatoriedade de Licitação prévia para

seleção do melhor contratante, exceto casos previstos expressamente em lei.

A Lei 8666/93 recebeu alterações e atualização de seus dispositivos por meio das

leis números 8.883/94; 9.648/98; 9.854/99; 11.107/05; 11.196/05; 11.481/07; 11.763/08;

11.952/09; 12.249/2010; 12.440/11; 12.715/12; Lei Complementar nº147 de 2014. E seu

texto tem sido alvo de muitas críticas feitas por aplicadores do direito, sendo acusada de

possuir construção textual confusa e de não ter uma eficiente técnica legislativa. Marcos

Pestana entende:

Trata-se de uma lei de elaboração, redação, conceituação, atualização e disposição confusas, adotando deficiente técnica legislativa (como, por exemplo, decorre a fixação de diversos artigos contendo extensos parágrafos, incisos e alíneas); preocupando-se excessivamente, com a realização de obras e serviços de engenharia, esquecendo-se, entretanto, de melhor disciplinar determinados aspectos de extrema relevância do processo administrativo-licitatório, como as sanções aplicáveis no âmbito da licitação (e não após a celebração do contrato administrativo consequente) ou, mesmo, para os processos administrativos insurgentes contra equívocos ou vícios dos atos praticados nos domínios da licitação, ou, ainda, os contratos de concessão de uso de bens públicos.(PESTANA, 2013)

Em 17 de julho de 2002 foi publicada a Lei 10.520, denominada Lei do pregão,

considerada um avanço para o certame licitatório por introduzir uma nova modalidade

mais célere. Seu histórico inicia em 1997, quando surgiu no sistema brasileiro a chamada

Lei Geral das Telecomunicações (Lei 9.472/1997), posteriormente o executivo editou a

Medida Provisória 2.026/2000, para implementação da modalidade que havia dado certo

no âmbito da ANATEL para as contratações federais, porém, o fato gerou polêmicas

devido a sua impropriedade, sendo convertida na Lei 10.520/2002 após várias reedições,

suprindo os vícios. O pregão só pode ser utilizado para aquisição de bens ou serviços

comuns, independente do valor envolvido na contratação. O Decreto 5.450/2005

determinou o uso preferencial desta modalidade de licitação pública na forma eletrônica,

em respeito ao princípio da celeridade.

Em 04 de agosto de 2011 foi publicada a Lei 12.462/2011, que introduziu no

ordenamento jurídico-licitatório o Regime Diferenciado de Contratações Públicas - RDC.

Seus objetivos e âmbito de abrangência estão no art.1º desta lei.

O RDC teve como foco inicial as Licitações e contratos públicos necessários para

a realização dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, da Copa das Confederações

de 2013 e da Copa do Mundo FIFA 2014, incluindo às obras de infraestrutura e

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FERNANDES, D. A. C.; VALLE, E. M. R. Ausência de Licitação.

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contratação de serviços para aeroportos das capitais dos Estados da Federação distantes

até 350 km das cidades que seriam sedes dos jogos.

A Lei 12.462/2011, desde sua criação, foi alvo de muitas críticas doutrinárias,

alguns juristas, inclusive, têm considerado inconstitucionais alguns de seus aspectos,

como a imprecisão dos termos obras, serviços e compras, que por não serem explicados

pela lei se tornam abertos e imprecisos demais, dando margem a uma discricionariedade

de atuação proveniente da omissão legal7.

A consolidação do princípio constitucional da obrigatoriedade de licitação pública

enfrenta grandes desafios. Porém, é inegável que o legislador constituinte de 1988 foi

progressista ao introduzir na ordem constitucional a obrigatoriedade de procedimento

licitatório para contratações de prestação de serviços públicos. A execução indireta dos

serviços públicos, delegando a outras pessoas sua prestação, por meio de concessão

pública, deve passar por uma seleção pública de melhor proposta, para preservar o

interesse público e diversos princípios como a economicidade, moralidade e a igualdade

de oportunidades em firmar esse tipo de contrato que é sempre de grande vulto. Com a

obrigatoriedade postulada no art. 37, XXI, da nossa Carta Magna de 1988, reduziu-se a

margem de discricionariedade do administrador da coisa pública vinculando-o a firmar

contrato com aquela prestadora de serviço vencedora do certame licitatório que tem por

objetivo sempre a escolha da melhor proposta.

3. Obrigatoriedade de Licitação como inovação expressa na CRFB/88

Diante do processo de redemocratização do Brasil houve uma preocupação em dar

maior transparência às contratações feitas pela Administração Pública, com isso a nossa

Constituição Federal de 1988 trouxe pela primeira vez expressamente o dever de licitar.

Podemos considerar que a licitação não é apenas uma mera formalidade, antes de tudo,

deve ser vista como uma garantia presente no Estado de Direito.

A licitação é conceituada por José dos Santos Carvalho Filho, da seguinte

maneira:

Procedimento administrativo vinculado por meio do qual os entes da Administração Pública e aqueles por ela controlados selecionam a melhor proposta entre as oferecidas pelos vários interessados, com dois objetivos – a celebração de contrato, ou a obtenção do melhor trabalho técnico, artístico ou científico. (CARVALHO FILHO, 2013)

7Sobre o assunto: FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo . 26 ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013. p. 297.

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Já na linha dos ensinamentos de Marçal Justen Filho, licitação é conceituada:

A licitação é um procedimento administrativo disciplinado por lei e por um ato administrativo prévio, que determina critérios objetivos visando à seleção da proposta de contratação mais vantajosa e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, com observância do princípio da isonomia, conduzido por um órgão dotado de competência específica. (JUSTEN FILHO, 2013)

Desta maneira, a Administração Pública, diante da necessidade de contratar com

terceiros, deve recorrer ao procedimento administrativo chamado licitação, com vistas a

selecionar a proposta mais vantajosa para o Estado, e para isso deve ser inerente ao

processo que os participantes sejam tratados de forma isonômica.

As Constituições anteriores a de 1988 silenciaram-se no que concerne às

licitações, contudo, estas eram disciplinadas por leis esparsas, e que por isso eram de certa

forma frágeis quanto à segurança e a vinculação da Administração Pública. Já na Carta

Magna de 1988, vislumbramos o princípio da obrigatoriedade de licitação do art. 37,

XXI 8, e expressamente indispensável também para a contratação de concessionárias e

permissionárias, evitando assim a discricionariedade imoderada do administrador

público.

A obrigatoriedade de licitação é elevada a um plano constitucional, tendo em vista

uma maior força vinculativa, que é inerente ao status que possui nossa Carta Maior, dando

contornos mais seguros, claros e de ampla participação a toda população interessada.

Desta forma, o procedimento licitatório funciona como requisito, via de regra,

indispensável, para a Administração Pública contratar com terceiros, e conseguir de

forma objetiva, a proposta melhor para o Estado.

3.2. Princípios da licitação

8Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

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FERNANDES, D. A. C.; VALLE, E. M. R. Ausência de Licitação.

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Tendo em vista o novo quadro relativo à obrigatoriedade de licitar, encontramos

na Constituição de 1988 e posteriormente na Lei 8666/93 alguns dos princípios que

norteiam à Administração Pública na condução desta função.

O princípio da isonomia, como regra, diz respeito à igualdade entre os

interessados, de forma que não exista uma discriminação entre eles, vislumbrando sempre

a escolha da contratação mais vantajosa.

Nesta linha de garantir a finalidade do procedimento licitatório, temos o princípio

da impessoalidade, que determina que a contratação, deve ser realizada,

independentemente dos eventuais vínculos pessoais e interesses subjetivos.

A Administração Pública deverá obedecer ao princípio da eficiência, de forma a

ser desempenhada uma gestão ágil, que toma as decisões corretas, com a menor utilização

de tempo possível, otimizando os resultados econômicos.

Mais uma garantia contra possíveis abusos advindos da Administração Pública

está adstrita no princípio da legalidade, pois deve ser feito o que estiver previsto na

legislação, inclusive os casos de dispensa e inexigibilidade de licitação. Outra garantia,

estará delimitada pelo princípio da vinculação ao instrumento convocatório, havendo uma

inerente relação com o edital. Este funcionará como uma forma de delimitação das regras

traçadas devendo ser observadas por todos, com vistas ainda, no princípio do julgamento

objetivo, de forma a garantir os demais princípios licitatórios.

Há de ser dado também um amplo acesso dos interessados ao procedimento

licitatório como um todo, desde sua participação até a fiscalização dos atos, como fruto

do princípio da publicidade. Como exceção a este princípio, será admitida a ausência de

publicidade, quando estiverem em risco outros interesses do Estado, entretanto, deverá

ser sempre justificada.

E durante todo este processo, como em todos os demais atos, a Administração

Pública e seus agentes devem ser dirigidos, de acordo com princípios éticos, tendo em

vista o princípio da moralidade, com a licitação devendo ser norteada, de todas as partes,

pela honestidade e seriedade. Na mesma linha ética e moral, é preceituado o princípio da

probidade administrativa.

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4- Caso concreto: Transporte coletivo do Município de Juiz de Fora, contrato

prorrogado sem licitação9

A concessão de serviço público de transporte coletivo do município de Juiz de

Fora tem sido alvo de um processo administrativo de nº 734.282. Desde 1963 estes

serviços são explorados pelas mesmas empresas havendo inclusive, neste período,

registro de fusão entre elas. Contando com sucessivas prorrogações dos contratos sem o

devido procedimento licitatório e indo de encontro, com as diretrizes traçadas por nossa

Carta Maior.

4.1. Histórico da concessão de serviço público de transporte coletivo no

Município de Juiz de Fora

No ano de 1982, ainda sob a incidência do Decreto-lei 200 de 1967, a

Administração Pública do Município de Juiz de Fora outorgou todas as concessões de

serviço público de transporte coletivo, por prazo indeterminado. Contudo, em 1999, na

tentativa demonstrar um cumprimento às novas diretrizes relativas à licitação, trazidas

pela Constituição de 1988, pela Lei 8666/93 e pela Lei 8987/95, foi feito um

procedimento de inexigibilidade de licitação de nº 5.677, para que fossem simplesmente

adicionados aos contratos estabelecidos, até então por tempo indeterminado, um prazo

definido. Desta forma prorrogaram-se os contratos por mais 87 meses, ou seja, até 02 de

dezembro de 2006.

Diante dos meses finais do prazo da vigência da concessão, em agosto de 2006, o

prefeito do Município de Juiz de Fora enviou notificação às empresas, informando-as que

haveria a abertura de um procedimento licitatório, visando assim, atender os ditames

constitucionais. Não obstante, as empresas enviaram uma contra notificação alegando que

havia um direito adquirido, por força da inexigibilidade de licitação já pleiteada e também

por força do art. 7º da Lei Municipal nº 8981/9610 que dispõe sobre transporte coletivo

9 Dados retirados da Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, abril/maio/junho 2009 – v.71 – n.2 – ano XXVII. Disponível em: http://revista.tce.mg.gov.br/Content/Upload/Materia/540.pdf. Acesso em: 02 de jul 2014. 10Art. 7º - As concessões, permissões ou autorizações, sejam de caráter precário ou que estiverem em vigor por prazo indeterminado ou ainda, as que estiverem com prazo vencido, das Empresas que atualmente operem no SISTEMA DE TRANSPORTE COLETIVO por ônibus no Município Juiz de Fora, permanecem válidas por um prazo de 10 (dez) anos, prorrogáveis por igual período, conforme previsto em Legislação Federal.

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FERNANDES, D. A. C.; VALLE, E. M. R. Ausência de Licitação.

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urbano e dá outras providências. Além disso, ressaltaram que foram feitos muitos

investimentos, que poderiam acarretar uma responsabilidade civil do município à

indenização, sendo necessário ser restabelecido um equilíbrio econômico-financeiro.

Diante do exposto pelas empresas, o prefeito decidiu que não haveria mais

realização de licitação, e sim, prorrogação dos contratos vigentes por mais 10 anos, a ser

contado a partir de 08/12/2006, indo de encontro ao parecer da Agência de Gestão do

Transporte e Trânsito de Juiz de Fora — GETTRAN11, que propunha ao prefeito dar

início ao procedimento licitatório. O prefeito argumentava que não mais estava baseado

na inexigibilidade de licitação, mas em princípios, como o do interesse público, da

continuidade dos serviços públicos, da economicidade e na Lei Municipal 8981/96, além

do receio de prejuízos aos cofres públicos e de uma possível desorganização em todo o

sistema de transporte coletivo.

Importante ressaltar que a Lei 8981/96, ao estabelecer a permanência e a

prorrogação dos contratos das empresas de transporte coletivo no Município de Juiz de

Fora viola princípios constitucionais, relativos à legalidade, a obrigatoriedade de licitação

e da igualdade entre possíveis interessados, previstos desde 1988 em nossa Carta Magna.

Além de que, as sucessivas prorrogações podem ser fruto de interesses subjetivos dos

administradores públicos, o que neste caso violaria também aos princípios da

impessoalidade e moralidade.

Assim, o art. 7° da Lei Municipal 8981/96, cria uma norma inconstitucional, como

pontua José dos Santos Carvalho Filho:

Além de ser obrigatório o procedimento de licitação, deve o certame guiar-se por todos os princípios que normalmente regem essa modalidade de seleção. Por tal razão, é necessário observar os princípios da legalidade, moralidade, publicidade, igualdade, julgamento objetivo e vinculação ao instrumento convocatório. Diante disso, é inconstitucional a Lei do ente público, que, de forma abstrata, regule as concessões com a antecipada previsão de prorrogabilidade do contrato, forma dissimulada de violar aqueles princípios e de praticar favorecimentos escusos.(CARVALHO FILHO, 2013)

O STF já decidiu pela obrigatoriedade de procedimento licitatório para

contratação de concessão de serviço público de transporte coletivo reiteradas vezes:

Embargos de declaração em agravo de instrumento. 2. Decisão monocrática do relator. Embargos de declaração recebidos como agravo regimental. 3. Exploração de transporte urbano. Concessão. Necessidade de prévia licitação.

11 Atualmente Secretaria de Transporte e Transito – SETTRA

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Precedentes. 4. Agravo regimental a que se nega provimento. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, AI 637782, Relator: Min. Gilmar Mendes, 2008)

De qualquer forma, analisando o art. 7º da Lei 8981/96, percebemos que não

poderia ser aplicado em 2006. O dispositivo já tinha embasado a prorrogação ocorrida em

1999, transformando uma contratação por tempo indeterminado a uma com prazo

definido e também por não ser um caso de prazo vencido.

A 8981/96 foi em última análise, uma tentativa de adequação da concessão do

serviço público de transporte coletivo ao novo ordenamento jurídico licitatório com

graves falhas. A prorrogação constante no art. 7° da referida Lei, por mais dez anos, a

partir de 1996, prorrogável por igual período é nítida afronta a Constituição de 1988, que

ao inserir a obrigatoriedade de procedimento licitatório para contratação com o poder

público, visou o fim dos favoritismos, clientelismos e primou pela transparência da coisa

pública. Verifica-se ainda, que o prazo estabelecido na legislação municipal foi

demasiadamente longo, não justificando, desta forma, a amortização dos investimentos

feitos pela empresa prestadora do serviço público nem o reequilíbrio econômico e

financeiro.

A defesa da Administração Pública esclareceu que a prorrogação teve como

fundamento o art. 42 da Lei 8987/9512, com as alterações advindas da Lei 11.445/2007,

alegando um efeito ex tunc. De acordo com a redação inicial do art. 42 da Lei 8987/95

era determinado que se respeitasse o prazo inicialmente contratado e findo o prazo era

necessário à realização do procedimento licitatório. E por força da modificação

legislativa, tem-se como exceção estabelecida, as relativas a concessões em caráter

precário, de prazo indeterminado ou vencido, que continuarão válidas para a realização

12Art. 42. As concessões de serviço público outorgadas anteriormente à entrada em vigor desta Lei consideram-se válidas pelo prazo fixado no contrato ou no ato de outorga, observado o disposto no art. 43

desta Lei. § 1o Vencido o prazo da concessão, o poder concedente procederá a sua licitação, nos

termos desta Lei. § 1o Vencido o prazo mencionado no contrato ou ato de outorga, o serviço poderá ser prestado por órgão ou entidade do poder concedente, ou delegado a terceiros, mediante novo contrato. (Redação dada pela Lei nº 11.445, de 2007). § 2o As concessões em caráter precário, as que estiverem com prazo vencido e as que estiverem em vigor por prazo indeterminado, inclusive por força de legislação anterior, permanecerão válidas pelo prazo necessário à realização dos levantamentos e avaliações indispensáveis à organização das licitações que precederão a outorga das concessões que as substituirão, prazo esse que não será inferior a 24 (vinte e quatro) meses. § 3º As concessões a que se refere o § 2o deste artigo, inclusive as que não possuam instrumento que as formalize ou que possuam cláusula que preveja prorrogação, terão validade máxima até o dia 31 de dezembro de 2010, desde que, até o dia 30 de junho de 2009, tenham sido cumpridas, cumulativamente, as seguintes condições: (Incluído pela Lei nº 11.445, de 2007).

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dos levantamentos e avaliações indispensáveis à organização das licitações, por um prazo

mínimo de 24 (vinte e quatro) meses.

Ainda, a defesa da Administração Pública do Município de Juiz de Fora

considerou que os prazos estabelecidos pelas prorrogações dos contratos são legais, por

não haver vedação à validade dos contratos, pelo tempo que se julgar necessário, à

organização do certame, somente sendo determinado que o prazo não seja inferior a 24

meses. Contudo, inexiste embasamento justificador das prorrogações no art. 42 da Lei

8987/95 e em sua modificação legislativa, visto que, também é estabelecido em seu §3º

que o prazo máximo, para os contratos serem considerados como válidos, seria até o dia

31 de dezembro de 2010, estando à concessão já extinta. De igual maneira, o caput do

art. 42 da Lei 8987/95 deixa patente que ele deve ser observado conjuntamente com o art.

43, que versa sobre a extinção de todas as concessões que forem outorgadas sem licitação

na vigência da CRFB/88. No Agravo de Instrumento de nº 70058331166, o

Desembargador Carlos Roberto Lofego Caníbal, da 1ª Câmara Cível do Tribunal de

Justiça do Rio Grande do Sul, corrobora este entendimento, no seguinte sentido:

Há que se referir que a Lei nº 8.987/95, ao regulamentar o art. 175 da Carta Magna, objetivando assegurar a continuidade do serviço de transporte público, garantiu às permissionárias/concessionárias, cujas permissões/concessões foram delegadas anteriormente à entrada em vigor da Lei, que estivessem irregulares, a permanência na prestação do serviço pelo período necessário à tomada de providências para que realizasse a devida licitação; prazo este não inferior a 24 meses. Repito: 24 meses, e não 25 anos! Denota-se que a Lei nº 8.987/95, em seu questionável art. 42, § 3º, ainda estende como prazo máximo para prorrogações de concessões precárias, a data de 31 de dezembro de 2010, já ultrapassada, portanto, em mais de três anos! (RIO GRANDE DO SUL, 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Agravo de Instrumento de nº 70058331166, o Desembargador Carlos Roberto Lofego Caníbal, 2014, Grifos nossos).

A alteração do art. 42 da Lei 8987/95, feita pela Lei 11.445/2007, foi duramente criticada pela doutrina, sendo inclusive alvo de Ação Direta de Inconstitucionalidade número 4058, que tramita na Suprema Corte. Neste sentido é o posicionamento de José Dos Santos Carvalho Filho:

Este último dispositivo, no entanto, foi alterado pela Lei n°11.445, de 5.1.2007, que trata das diretrizes gerais para saneamento básico. Dispões agora que, vencido o prazo do ajuste, o serviço poderá ser prestado por órgão ou entidade do poder concedente, ou delegado a terceiros, mediante novo contrato. A alteração é inteiramente despida de sentido. Com efeito, o vencimento do contrato enseja sempre a retomada do serviço pelo concedente ou o prosseguimento da delegação através de novo contrato. Só que, neste ultimo caso, será indispensável a licitação, formalidade exigida pelo art. 175 da CF. O silencio da norma ora vigente quanto a licitação não pode ser interpretado

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como sinal de dispensa do certame; interpretação em tal direção seria flagrantemente inconstitucional.(CARVALHO FILHO, 2013)

O Procurador Glaydson Santo Soprani Massaria do Tribunal de Contas do Estado

de Minas Gerais, ao se pronunciar sobre a concessão de transporte público no Município

de Juiz de Fora, proferiu entendimento de que o que ocorreu em 1999 não foi um novo

contrato de licitação por inexigibilidade, pois materialmente não existem elementos que

assim caracterizem, foi apenas um apenso ao antigo contrato. Foi desta forma, somente

uma prorrogação do contrato anteriormente vigente, conforme podemos verificar em um

trecho de seu parecer:

Do exposto anteriormente é possível perceber que, não obstante ter utilizado como fundamento específico para a prorrogação a inexigibilidade de licitação, que levaria prima facie à conclusão de tratar de uma nova contratação, agora sob a vigência da CF/88 e da Lei n. 8.987/95, sem respeitar as novas regras inseridas no ordenamento jurídico pátrio (concessão de serviço de transporte coletivo somente por meio de procedimento licitatório, vedada, portanto, a aplicação do instituto da inexigibilidade previsto no artigo 25 da Lei n. 8.666/93), os demais elementos dos autos indicam tratar-se de prorrogação de contrato anteriormente existente, por força da integração entre as normas federal e municipal.

Assim, em 2006 houve uma segunda prorrogação de um contrato firmado antes

da Constituição de 1988 e não uma prorrogação de contrato firmado posteriormente à ela,

não podendo servir de escusa, os art. 42 e 43 da Lei 8987/95.

Outro embasamento teórico alegado pela defesa está presente das diretrizes do art.

57 da Lei 8666/9313, pois tendo em vista a supremacia do interesse público, buscou-se

por vantagens à administração, acreditando que estas não seriam possíveis diante da

realização do pleito licitatório.

Todavia, apesar dos vários argumentos baseados em uma interpretação da defesa

da Administração Pública do Município de Juiz de Fora, verificamos uma nítida violação

aos princípios e garantias constitucionais e legais, com patente inobservância dos

13Art. 57. A duração dos contratos regidos por esta Lei ficará adstrita à vigência dos respectivos créditos orçamentários, exceto quanto aos relativos: II - à prestação de serviços a serem executados de forma contínua, que poderão ter a sua duração prorrogada por iguais e sucessivos períodos com vistas à obtenção de preços e condições mais vantajosas para a administração, limitada a sessenta meses.

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preceitos contidos nos art. 14 da Lei 8987/95 14e art.175 da Constituição de 198815, que

asseguram um amplo acesso para a contratação com a Administração Pública. E mais

ainda, uma vedação da escolha, por meio de um procedimento licitatório que assegure

objetivamente (e não subjetivamente) a proposta mais vantajosa ao município.

A prorrogação de contratos de concessão e permissão de serviços públicos, sem o

devido procedimento licitatório não é algo que está presente somente na cidade de Juiz

de Fora. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, no início do ano de

2014, deu um prazo de 30 dias ao Município de Porto Alegre, para publicar o edital

de licitação para a concessão do serviço de transporte público, que assim como o de

Juiz de Fora, chegou em 2014 sem submeter o serviço às normas constitucionais e

legais referentes à obrigatoriedade de licitação, com o Desembargador Carlos

Roberto Lofego Caníbal, afirmando que além da violação das leis, os maiores

prejudicados são os próprios usuários, conforme segue:

A inércia da Administração Pública Municipal somente vem em benefício das empresas que, sem qualquer legitimidade, por não terem participado de processo seletivo, vêm explorando o serviço de transporte público coletivo no Município de Porto Alegre, prestando um serviço a cada dia mais deficitário, de péssima qualidade, em total prejuízo à população, em especial aos usuários do transporte coletivo urbano, em manifesta violação às Leis Federais nº 8.987/95 e 12.587/2012. (RIO GRANDE DO SUL, Tribunal de Justiça, Agravo de instrumento nº70058331166, Relator: Des. Carlos Roberto Lofego Caníbal,2014)

Além do mais, a prorrogação dos contratos sem o devido procedimento licitatório,

poderia assegurar às concessionárias que atualmente prestam o serviço público, uma

vantagem incompatível com o nosso ordenamento, tendo em vista uma infração ao

princípio da isonomia em relação a outros possíveis interessados a contratarem com a

Administração Pública.

4.2. A situação atual do Município de Juiz de Fora

14Art. 14. Toda concessão de serviço público, precedida ou não da execução de obra pública, será objeto de prévia licitação, nos termos da legislação própria e com observância dos princípios da legalidade, moralidade, publicidade, igualdade, do julgamento por critérios objetivos e da vinculação ao instrumento convocatório. 15 Art.175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

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Encontramos de forma expressa, no art. 186, inciso I da Lei Orgânica do

Município de Juiz de Fora16, que o transporte é um direito fundamental do cidadão. É

competência do Município, organizar e prestar diretamente ou valendo-se do regime de

concessão ou permissão, tendo ainda como alvo a priorização do transporte coletivo.

Não obstante à redação prevista na Lei do Município de Juiz de Fora, temos uma

grande distância entre a teoria e a prática. Percebemos que há muitas ilegalidades no que

tange ao cumprimento do procedimento licitatório por parte do Município de Juiz de Fora.

Verificamos que não há em momento algum uma “priorização do transporte coletivo”,

não há licitação; não há qualidade no serviço; os munícipes enfrentam ônibus lotados;

motoristas e cobradores mal preparados, mal remunerados e extenuados diante de uma

longa jornada de trabalho; poucos horários disponíveis; ausência do cumprimento devido

dos horários previamente estabelecidos; dentre outros fatores que causam indignação aos

usuários que necessitam simplesmente ir ou voltar de seu trabalho, enfim há má qualidade

na prestação deste serviço.

Ora nos indagamos, diante da ausência de licitação, o monopólio que fora

estabelecido, não interfere na qualidade do serviço oferecido a população juizforana? A

“comodidade” dos anos de prestação de serviços pelas mesmas empresas, não podem ser

um dos diversos fatores que contribuem na precariedade deste tipo de serviço?

Com vistas a melhorar este quadro acima relatado, foi implantado um estudo

técnico que irá viabilizar o edital de reestruturação do transporte coletivo de Juiz de Fora,

que se configura como sendo uma primeira etapa para a realização do procedimento

licitatório. De acordo com o noticiado pelo Jornal Tribuna de Minas, o processo de

pesquisa que conta com um trabalho de campo junto aos usuários, bem como o

diagnóstico das linhas e a distribuição dos horários, já estão concluídas. A SETTRA no

mês de setembro de 2014 estendeu por 180 dias o prazo para a empresa concluir o

diagnóstico que vai embasar a revisão de todo o transporte coletivo de Juiz de Fora, assim

a previsão é de que o estudo saia em dezembro.

O atual secretário de transporte e trânsito, Rodrigo Tortoriello, destaca que

somente falta elaborar o plano de médio e de longo prazo, conforme entende:

16Art. 186 - O Transporte é um direito fundamental do cidadão, sendo de competência do Município organizar e prestar diretamente, ou sob regime de concessão, ou permissão, os serviços de transporte coletivo urbano, tendo como alvos:I - priorização do transporte coletivo e criação dos corredores de tráfego independentes;

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FERNANDES, D. A. C.; VALLE, E. M. R. Ausência de Licitação.

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Está em aberto o dimensionamento da quantidade de coletivos para cada linha e a análise financeira de todo o novo sistema. Após fecharmos todas estas etapas, iremos finalizar todo o projeto e estipular por quanto tempo as novas empresas irão prestar o serviço em Juiz de Fora.

O Município de Juiz de Fora diante de sua postura nos últimos anos desrespeita

não só as normas constitucionais, como também as legais, inclusive a Lei Orgânica do

próprio Município, pois aparentemente não priorizou o transporte coletivo, apenas

prorrogou as concessões já vigentes, no que à época poderia parecer mais cômodo ou

mais interessante à Administração Pública, visto a ausência de dispêndio de tempo com

licitação ou a necessidade de exercer um contraditório diante das alegações dos gastos

realizados pelas empresas prestadoras do serviço público de transporte coletivo.

4.3. Inovações tecnológicas no serviço público de transporte coletivo prestado

no Município de Juiz de Fora

Numa forma de informatizar o sistema de horários de transporte público em Juiz

de Fora, ajudando assim a população que utiliza deste tipo de serviço público, 03 alunos

do curso de Ciências da Computação da UFJF, desenvolveram um aplicativo de nome

“Busão JF”, que informa os horários e itinerários de todos os ônibus que transitam na

cidade. Atitude que demonstra a preocupação das mais variadas pessoas com a

necessidade de se melhorar, em todos os níveis, o sistema de transporte coletivo.

Ainda nesta linha de tecnologia, a SETTRA já divulgou a implantação do

aplicativo “Cittabus”, que ainda encontra alguns empecilhos na falha na rede de internet

móvel em Juiz de fora, com problemas junto a operadora que disponibiliza os chips a

serem instalados nos ônibus, por ser um sistema de monitoramento via satélite. O

aplicativo contribuirá para que a SETTRA tenha maior controle sobre os ônibus, com o

conhecimento em tempo real de onde eles estão, além de prováveis reduções de itinerários

não cumpridos e atrasos de motoristas em pontos finais.

Observa-se uma preocupação em melhorar a estrutura do transporte coletivo de

Juiz de Fora, com mecanismos a otimizar seu desempenho e, consequentemente, a

satisfação dos usuários, por meio de planejamentos e recursos tecnológicos.

5. Conclusões

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 05, v. 07, pp 19-38, mai., 2015

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A ausência de licitação para o serviço público de transporte coletivo no Município

de Juiz de Fora suprimiu a possibilidade de disputa objetiva entre possíveis interessados

a prestar este tipo de serviço e as maiores beneficiadas são as próprias empresas

prestadoras de transporte coletivo.

É necessário encontrar a melhor contratação que só pode ser concretizada por

meio de um procedimento licitatório, que diante de todo o rol dos seus princípios, norteará

uma escolha, não com base em critérios subjetivos, mas sim visando exclusivamente a

melhor contração.

O Município de Juiz de Fora não poderia ter utilizado como fundamento para suas

diversas prorrogações contratuais ilegais, o art. 7º da Lei Municipal 8981/96, por este ser

considerado inconstitucional diante da afronta aos princípios relativos à licitação e por

violar o estabelecido na Constituição de 1988 no art.37, XXI, não podendo assim uma

Lei Municipal e posterior sobrepor a norma constitucional.

É inadmissível que desde 1963 o serviço público de transporte coletivo sejam

prestados pelas mesmas empresas sem o devido processo licitatório, afrontando de forma

drástica o que determina a CRFB/88 sobre a obrigatoriedade de licitação. São 51 anos de

monopólio deste vultuoso contrato e 26 anos afrontando a necessidade constitucional de

realizar a licitação.

Desta forma, não há mais o que a Administração Pública do Município

argumentar, mas sim, é hora de efetivamente viabilizar o pleito licitatório, com vistas a

garantir uma escolha objetiva das concessionárias que nos prestam o importante serviço

público de transporte coletivo.

Referências Bibliográficas AGRAVO de Instrumento. Ação Civil Pública. Município de Porto Alegre. Nº70058331166. Disponível em: <http://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/138469558/agravo-de-instrumento-ai-70058331166-rs>. Acesso em: 02 de out. 2014. BRASIL, Decreto nº 2.926, de 14 de Maio de 1862. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-2926-14-maio-1862-555553-publicacaooriginal-74857-pe.html>. Acesso em: 23 de ago. 2014. BRASIL, Decreto nº 4.536 de 28 de janeiro de 1922. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/Historicos/DPL/DPL4536.htm>. Acesso em: 23 de ago. 2014.

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FERNANDES, D. A. C.; VALLE, E. M. R. Ausência de Licitação.

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Conflitos Trabalhistas Internacionais: Uma abordagem sob a perspectiva do Direito Internacional do Trabalho e do

Direito Internacional Privado

International Labor Conflict: an approach under the International Labor Law and Private International Law perspective

Thiago Martins Lage Bonsucesso1

Resumo O presente artigo analisa o conflito principiológico existente entre normas de

Direito Internacional Privado, aplicáveis às relações laborais, e normas de Direito Internacional do Trabalho, ressaltando o entendimento predominante no ordenamento jurídico brasileiro. Primeiro, apresentamos um panorama relativo ao surgimento do Direito Internacional do Trabalho, desde as primeiras conferências internacionais até a efetiva criação da Organização Internacional do Trabalho (OTI). Posteriormente, seguimos com uma análise teleológica da organização, ressaltando seus principais instrumentos jurídicos e elencando as regras de solução de conflitos trabalhistas internacionais, definidas pelo Direito Internacional Privado brasileiro, a fim de analisar a sua efetiva aplicação ao caso concreto.

Palavras-chave: Conflito normativo. Direito Internacional Privado. Direito Internacional do Trabalho.

Abstract This paper analyzes the conflict between principles of private international law

applicable to employment relationships and norms of International Labour Law, highlighting the prevailing understanding in the Brazilian legal system. First, we present an overview concerning the emergence of the International Labor Law, from the beginning of international conferences until the creation of the International Labour Organization (ILO), making a teleological analysis of the organization, as well as highlighting the main legal instruments on labor matters in force in the international contemporary scenario. Then we list the rules of international labor dispute resolution, defined by the Brazilian Private International Law in order to analyze their effective application.

Keywords: Normative conflict. Private International Law. International Labour Law.

1 Monitor de Direito Comparado da Integração na Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisador do Grupo de Estudos em Direito Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais (GEDI). Bolsista do Programa de Inovação e Qualidade de Ensino de Graduação na área de desenvolvimento de cursos e materiais de Direito Internacional. Graduando em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 07, pp. 39-56, mai., 2015.

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Introdução

Em um contexto de economia globalizada, as relações trabalhistas extrapolam os

limites territoriais e, por conseguinte, surgem diversos conflitos inerentes à competência

quanto à aplicação da norma aos contratos de trabalho.

Observa-se que a solução de conflitos normativos no ordenamento jurídico

internacional, de maneira geral, não pode ser resolvida unicamente pelas regras do Direito

Internacional tradicional, o que tem sido comprovado no contexto material.

O estudo de casos nos remete a uma nova teoria, um tanto quanto difícil de ser

codificada, dada a pluralidade de regimes jurídicos presentes no cenário internacional

contemporâneo, o que dificulta a sistematização de normas gerais aplicáveis à todos os

Estados.

De toda forma, as convenções emanadas das Organizações Internacionais tem

representado um passo importante para a garantia de direitos individuais e promoção da

justiça social, princípio basilar de perpetuação da paz no cenário internacional.

Neste contexto, dois institutos nos parecem antagônicos a priori, as regras de

Direito Internacional Privado, que indicam a norma aplicável em sede de conflito de Leis

no espaço, tutelando o direito sobre pessoas, bens, atos, fatos e relações de naturezas

diversas e o Direito Internacional do Trabalho que visa, essencialmente, a garantia de

direitos individuais, não reconhecendo o trabalho como mera mercadoria ou matéria

passível de aplicação imediata da teoria geral dos contratos.

Destarte, não obstante o Direito Internacional Privado brasileiro indique

parâmetros para a solução dos conflitos de leis no espaço relativas à relações laborais em

que os contratos de trabalho são firmados em um país e executados em outro, verifica-se

que o Direito Internacional do Trabalho é regido por normas de caráter distinto, baseadas

na garantia de direitos fundamentais e direitos humanos, consagradas na Declaração

Universal de Direitos Humanos, de 1948. Tal diferença principiológica ocasiona conflitos

relativos à aplicação da norma em casos envolvendo litígios trabalhistas internacionais.

Desta feita, o presente trabalho tem o condão de analisar a aplicação das normas

de Direito Internacional Privado no contexto material, traçando um contraponto entre o

Direito Internacional do Trabalho e o Direito Interno.

1. O direito internacional do trabalho

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BONSUCESSO, T. M. L. Conflitos Trabalhistas...

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O Direito Internacional do Trabalho ocupa-se da regulamentação dos direitos e

obrigações de empregados e empregadores dentro das relações laborais, estabelecendo

parâmetros básicos na área trabalhista, que devem ser aplicados em todos os Estados

(PORTELA, 2013, p. 469).

O objeto do Direito Internacional do Trabalho fundamenta-se, portanto, no

combate a práticas análogas às relações laborais que configurem dano à dignidade

humana, no estabelecimento de padrões trabalhistas mínimos internacionais, e, por

conseguinte, na promoção da dignidade humana e da justiça social.

1.1. Evolução histórica

A Suíça foi o primeiro Estado a propor oficialmente, em 1855, a elaboração de

uma legislação trabalhista internacional e a realização da primeira Conferência

Internacional do Trabalho, em Berlim, em 1980, dedicada a estabelecer regras

internacionais relativas às relações laborais.

De acordo com Seitenfus, a conferência alinhava um certo número de questões

que deveriam ser equacionadas pelos legisladores nacionais, tais como: condições de

trabalho das mulheres, adolescentes e crianças, trabalho nas minas e descanso semanal

(SEITENFUS, 2008, p. 229). Em 1900 foi criada a Associação Internacional para a

Proteção dos Trabalhadores.

Posteriormente a Primeira Guerra Mundial, a qual havia interrompido o processo

de conferências internacionais sobre o Direito do Trabalho, foram anexados ao Tratado

de Versalhes tanto o Pacto da Liga das Nações quanto o projeto de criação de uma

instituição permanente voltada às questões laborais. Tal desiderato culminou na criação

da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1919, que é considerada a primeira

organização especializada de caráter universal, fundada sobre a convicção primordial de

que a paz universal e permanente somente poderia ser alcançada através da justiça social.

O OIT é a única das agências do Sistema das Nações Unidas com uma estrutura

tripartite, composta de representantes de governos, de organizações de empregadores e

de trabalhadores, sendo esta sua principal característica. A organização é responsável pela

formulação e aplicação das normas internacionais do trabalho, convenções e

recomendações, as quais, uma vez ratificadas por decisão soberana de um país, passam a

fazer parte de seu ordenamento jurídico. O Brasil está entre os membros fundadores da

OIT e participa da Conferência Internacional do Trabalho desde sua primeira reunião.

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A constituição da OIT foi atualizada pela Declaração de Filadélfia, de 1944, e

caracteriza-se por ser uma organização internacional autônoma, classificada como sujeito

de Direito Internacional Público, sendo composta por três órgãos principais, quais sejam:

a Conferência Internacional do Trabalho (CIT), o Conselho de Administração e a

Repartição Internacional do Trabalho (RIT), nos termos do artigo 2 de sua Constituição.

A Conferência Internacional do Trabalho é encarregada de examinar os grandes

problemas sociais e trabalhistas, adotando convenções e expressando recomendações que

serão submetidas à aprovação dos governos dos Estados.

O Conselho de Administração, por sua vez, é o órgão executivo da organização,

responsável pelas decisões políticas e pela supervisão das atividades da Repartição

Internacional do Trabalho, pela aplicação de medidas em caso de reclamação ou queixa

contra um Estado-membro por inobservância de instrumento que este tenha ratificado,

bem como pela elaboração do projeto de programa e de orçamento da OIT.

A Repartição Internacional do Trabalho ou Bureau Internacional do Trabalho é

dirigida por um Diretor-Geral, sendo encarregada da execução de pesquisas,

levantamentos, estudos, cooperação técnica e publicações. A aplicação das normas de

Direito Internacional do Trabalho, no entanto, fica a cargo da Comissão de Peritos, órgão

técnico responsável pelo monitoramento e aplicação das obrigações consagradas nas

normas internacionais trabalhistas. O Comitê de Liberdade Sindical é responsável por

resguardar a liberdade sindical.

As convenções da OIT tratam essencialmente de temas afetos a garantia de

direitos humanos e fundamentais, visando a promoção do indivíduo no contexto social,

tais como: emprego, política social, administração do trabalho, relações de trabalho,

condições de trabalho, seguridade social, trabalho de mulheres, trabalho de crianças,

trabalhadores migrantes e indígenas e categorias especiais de trabalhadores, tais como:

marítimos, portuários e arrendatários.

1.2. Competência da OIT ante a Organização Mundial do Comércio

(OMC)

A Declaração Final da Conferência Ministerial de Cingapura, de 1996, a

primeira após a criação da OMC, reiterou a competência da OIT no que tange à questões

trabalhistas relacionadas ao comércio internacional, ipsis litteris:

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Nós Ministros, renovamos nosso compromisso para o cumprimento de padrões trabalhistas básicos internacionalmente reconhecidos. A OIT é o órgão competente para estabelecer e lidar com tais padrões, e afirmamos nosso apoio pelo seu trabalho em promove-los. Acreditamos que o crescimento econômico e o desenvolvimento suportados pelo aumento do comércio e a sua liberalização contribuem para a promoção desses padrões. Rejeitamos o uso de padrões trabalhistas com fins protecionistas, e concordamos que a vantagem comparativa dos países, não deve, de maneira alguma, ser colocada em questão. A OMC e a OIT continuarão a sua colaboração mútua (Singapore Ministerial Declaration, 1996).

Como destacado por Vera Thorstensen (THORSTENSEN, 1998), apesar dos

constantes bloqueios por parte dos países em desenvolvimento à introdução de padrões

trabalhistas na OMC, existem várias propostas de como o tema poderia ser incluído nas

regras da organização, tais como:

(i) antidumping – dentro do Artigo VI do GATT 1994 – como uma forma de

introduzir o produto em um membro, com preços abaixo do valor normal,

e, assim, de forma considerada desleal;

(ii) anti-subsídio – dentro do Artigo VI e XVI do GATT 1994 – como uma

forma de subsídio do governo, ao permitir condições trabalhistas em níveis

muito baixos;

(iii) exceção às regras gerais – dentro do Artigo XX do GATT 1994 – como

uma exceção às regras gerais de restrição às importações, a ser incluída

nos casos já previstos de: proteção à vida humana, animal ou vegetal,

segurança, trabalho de presidiários, e conservação de recursos exauríveis;

(iv) anulação ou prejuízo de benefícios – dentro do Artigo XXIII do GATT

1994 – sob a alegação de que os benefícios derivados de uma negociação

estão sendo anulados ou prejudicados.

Apesar da pertinência do tema em relação ao comércio internacional, prevalecem

às convenções e recomendações da OIT sobre as regras da Organização Mundial do

Comércio.

2. Convenções e recomendações da OIT e sua aplicação no Brasil

2.1. A Organização Internacional do Trabalho

A Conferência da Paz de 1919 aprovou o Tratado de Versalles, cuja Parte XIII

dispôs, em seu preâmbulo, sobre a criação da OIT e enunciou os princípios gerais que

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deveriam guiar a política da Sociedade das Nações no campo do Trabalho (SUSSEKIND,

1998, p. 17), ipsis litteris:

(I) a sociedade das Nações tem por objetivo estabelecer a paz universal, que não pode ser fundada senão sobre a base da justiça social; (II) existem condições de trabalho que implicam para um grande número de pessoas em injustiça, míséria e privações;

(III) a não-adoção por uma nação qualquer de um regime de trabalho realmente humanitário é um obstáculo aos esforços dos demais, desejosos de melhorar a sorte dos trabalhadores nos seus próprios países.

Como ressaltou Nicolas Valticos, esse preâmbulo, que de forma ligeiramente

modificada ainda é o da Constituição atual da OIT, continha os elementos essenciais da

tríplice justificação de uma ação legislativa internacional sobre as questões trabalhistas,

de caráter: (i) político, visando assegurar bases sólidas para a paz universal; (ii)

humanitário, visando eliminar as condições de trabalho degradantes, causa de injustiças,

míséria e privações e, por fim; (iii) econômico, como argumento inicial da concorrência

internacional como obstáculo para a melhoria das condições sociais em escala nacional

(VALTICOS, 1983, p. 44).

Por se tratar de uma Organização Especializada da ONU, fundada na promoção

dos Direitos Humanos, a OIT através da Declaração de Filadélfia repetiu o princípio

segundo o qual o “trabalho não é uma mercadoria” (art. I, a) e confirmou o tripartismo

para as decisões destinadas a promover o bem-estar, que deve prosseguir mediante

esforço internacional, em cada nação, de modo que:

Art. II (...) c - todos os seres humanos, de qualquer raça, crença ou sexo, têm o direito de perseguir o seu bem-estar material e o seu desenvolvimento espiritual em liberdade e dignidade, segurança econômica e iguais oportunidades (art. II, a); destacando que; quaisquer planos ou medidas, no terreno nacional ou internacional, sobretudo os de caráter econômico e financeiro, devem ser considerados sob esse ponto de vista e somente aceitos, quando favorecerem, e não entravarem, a realização desse objetivo principal.

Como consequência das disposições supramencionadas, a título ilustrativo,

ressaltamos a medida adotada pela Conferência da OIT, em 1961, que aprovou a expulsão

da África do Sul do quadro de membros da Organização, em decorrência de sua prática

de Apartheid2. Há que se ressaltar, no entanto, que em virtude de não haver, à época,

2 O apartheid [apartáid]1 (pronúncia em africâner: [ɐˈpɐrtɦəit], significando "separação"). Dicionário escolar da língua portuguesa/Academia Brasileira de Letras. 2ª edição. São Paulo. Companhia Editora Nacional. 2008. p. 147. O termo é, também, utilizado para designar o regime de segregação racial adotado de 1948 a 1994 pelos sucessivos governos do Partido Nacional na África do Sul, no qual os direitos da grande maioria dos habitantes foram cerceados pelo governo formado pela minoria branca.

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previsão específica a respeito na Constituição da OIT, o Estado sul-africano continuou a

enviar sua delegação diplomática regularmente às sessões subsequentes da Conferência,

tendo sido garantido aos respectivos delegados o direito de participação nos

procedimentos deliberativos do órgão plenário da Entidade (RESENDE, 2010, p. 101).

A situação paradoxal relatada perdurou até o ano de 1964, momento em que o ato

constitutivo da Organização foi emendado no sentido de prever a viabilidade jurídica,

substantiva e procedimental dos atos de expulsão e suspensão de qualquer Estado membro

que tenha sido condenado pelas Nações Unidas em virtude da adoção de políticas de

discriminação racial (RESENDE, 2010, p. 102).

2.2. Fontes do Direito Internacional do Trabalho que emanam da

Organização das Nações Unidas

As principais fontes de direito internacional do trabalho são as normas adotadas

pela OIT. Contudo, os instrumentos adotados por outras organizações, tais como:

Organização das Nações Unidas, Conselho da Europa, a União Européia, a Organização

dos Estados Americanos e a Organização da Unidade Africana, também são utilizados,

de maneira complementar.

A complementariedade dos instrumentos de direitos humanos da OIT e da ONU

é reconhecida nos pactos da ONU sobre direito humanos e em suas convenções auxiliares,

dentre as quais destacamos: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto

Internacional de Direitos Civis e Políticos, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos,

Sociais e Culturais, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de

Discriminação contra a Mulher e a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos

de todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de sua Família.

2.3. Carta Internacional de Direitos Humanos

A Carta Internacional de Direitos Humanos é uma expressão usada para referir-se

coletivamente a três instrumentos gerais de direitos humanos redigidos pela Comissão de

Direitos Humanos da ONU e adotados pela Assembleia Geral da ONU, quais sejam:

(i) a Declaração Universal dos Direitos Humanos;

(ii) o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

(PIDESC);

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(iii) o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e seus dois

protocolos (PIDCP).

No contexto material, a Declaração Universal dos Direitos Humanos pode ser

invocada quando instrumentos internacionais vinculantes, tais como o pacto das Nações

Unidas sobre direitos humanos ou as convenções da OIT, ainda não tiverem sido

ratificados. O PIDESC, que dispõe explicitamente sobre o direito de greve, pode ser

utilizado para fins de delimitação dos motivos que legitimam a restrição deste direito. O

PIDCP, por sua vez, pode ser usado para tratar de novos motivos de discriminação não

explicitamente mencionados em Convenções da OIT ou no direito interno.

Percebe-se, portanto, que o Direito Internacional do Trabalho é alicerçado por

normas que extrapolam o caráter contratual nas relações laborais, visando tanto a garantia

dos direitos do indivíduo, quanto o equilíbrio no custo benefício do resultado deste

trabalho, uma vez que quanto mais protegida e repleta de benefícios for a relação

trabalhista, mais onerosa será. A violação destas garantias trabalhistas mínimas são

conhecidas como dumping social.

2.4. Dumping Social

O dumping social consiste na redução dos preços de bens e de serviços por conta

da prática de padrões trabalhistas inferiores aos internacionais, ou seja, representa a

produção de mercadorias em condições de trabalho prejudiciais à dignidade humana e

que contribuem para a redução dos custos de produção e, por conseguinte, do preço final

dos produtos, permitindo que estes ganhem mercado (PORTELA, 2013, p. 508).

Portanto, tal prática tem sido combatida veementemente no âmbito internacional,

uma vez que a inobservância das garantias trabalhistas por parte de alguns Estados

refletem no custo final dos produtos e, consequentemente, refletem em uma competição

desleal em relação aos países que seguem as prerrogativas da Organização Internacional

do Trabalho.3

3 Como destacou Vera Thorstensen, o tema condições de trabalho e comércio constava da Carta de Havana assinada em 1948, que pretendia criar a OIC – Organização Internacional de Comércio. O objetivo da Carta era enquadrar o comércio internacional dentro de um amplo contexto, e não tomá-lo isoladamente. A Carta negociou temas que incluíam emprego e atividade econômica, desenvolvimento econômico e reconstrução, práticas comerciais restritivas, acordos sobre commodities, investimento, e padrões trabalhistas (Havana Charter, Final Act, 1948). O tema padrões trabalhistas não é um tema novo. Na verdade, tem mais de 150 anos e data da Revolução Industrial, e sempre se enquadrou na discussão de se manter as vantagens competitivas dos países. Nessa fase, a questão era de se melhorar as condições de trabalho. Agora, a questão é a de se manter as condições já conquistadas (THORSTENSEN, 1998).

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Para evitar tais abusos estipulou-se as cláusulas sociais, bem como o selo social,

os quais representam um compromisso dos Estados no combate a prática de exploração

do trabalho sem a observância dos padrões mínimos estipulados pela comunidade

internacional.

2.5. Inserção da Cláusula Social nos Tratados Internacionais

De acordo com Georgenor de Sousa Franco Filho, a cláusula social é o dispositivo

que fixa condições mínimas ou equitativas de trabalho, em tratados internacionais de

comércio, aparecendo também como cláusula em seguro de investimentos, como a US

Overseas Private Investiment Corporation (FRANCO FILHO, 1996, p. 83).

A sua inserção em acordo internacional de comércio autoriza a limitar ou proibir

importações de produtos oriundos de países, ramos de atividade ou empresas em que as

condições de trabalho sejam inferiores às determinadas por normas mínimas de proteção

às relações de trabalho.4

A cláusula social5 pode ser observada em diversas convenções relativas a

regulamentação do trabalho no âmbito internacional, como por exemplo:

Convenção Internacional do Estanho, de 1981:

Art. 45 - Os Membros declaram que, a fim de evitar a queda do nível de vida e a introdução de fatores de competência desleal no comércio mundial, procurarão manter normas justas na indústria do estanho.

Convenção Internacional do Cacau, de 1986:

Art. 64 - Os membros declaram que, com objetivo de elevar os níveis de vida das populações e de proporcionar pleno emprego, procurarão manter, nos diversos setores da produção de cacau nos respectivos países, normas laborais e condições de trabalho justas, compatíveis com seu estado de desenvolvimento, tanto no que se refere aos trabalhadores agrícolas como aos trabalhadores industriais neles empregados.

Convenção Internacional do Açúcar, de 1987:

4 Devemos verificar a problemática das relações com os países em desenvolvimento, os quais costumam se opor a essa cláusula porque acham que a inclusão, sobretudo se imposta, de garantia de proteção ao trabalhador significa uma maneira de os países desenvolvidos manterem suas regras de protecionismo, isto é, ao impor que aqueles países dêem certas garantias aos trabalhadores, ficam esses tratados protegendo os países desenvolvidos, porque o custo da garantia social é maior para os países em desenvolvimento (FRANCO FILHO, 1996: p. 85-86). 5 O selo social, por sua vez, é uma certificação conferida à empresas e entidades que exercem suas atividades em consonância com padrões de promoção da dignidade humana, consagrado em normas de direitos humanos, de proteção ambiental e de garantia de padrões trabalhistas mínimos.

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Art. 28 - Os Membros garantirão a manutenção de normas laborais justas em suas respectivas indústrias açucareiras e, na medida do possível, procurarão melhorar o nível de vida dos trabalhadores agrícolas e industriais nos diversos ramos da produção açucareira e dos plantadores de cana-de-açúcar e de beterraba.

Convenção Internacional da Borracha Natural, de 1987:

Art. 53 - Os Membros declaram que se esforçarão em manter normas de trabalho que contribuam para melhorar o nível de vida dos trabalhadores de suas respectias indústrias de borracha natural.

Não obstante todo o arcabouço normativo internacional acerca das relações

trabalhistas, muitas controvérsias podem surgir quando o Direito Internacional é

contraposto ao Direito Interno. Tal matéria é afeta ao Direito Internacional Privado

(DIPRI) que tem o condão de indicar a norma aplicável ao caso concreto.

No entanto, as regras de DIPRI nem sempre podem ser aplicadas à questões de

ordem trabalhista, uma vez que estas não possuem caráter meramente contratual. Há que

se ressaltar, no entanto, que tais institutos são de suma importância e devem servir de

norte para a aplicação das normas específicas oriundas do Direito Internacional do

Trabalho.

3. Solução de conflitos normativos trabalhistas no âmbito internacional

3.1. Lei aplicável aos contratos de trabalho internacionais

De acordo com Paulo Henrique Gonçalves Portela, são três os parâmetros

principais que guiam a solução dos conflitos de leis no espaço em relações laborais em

que os contratos de trabalho são firmados em um país e executados em outro, quais sejam:

os princípios lex loci executionis, locus regit actum e o princípio da primazia da norma

mais favorável ao trabalhador (PORTELA, 2013, p. 500).

Pelo princípio lex loci executionis, aplicam-se às obrigações as normas do Estado

em cujo território forem executadas. Por outro lado, pelo princípio locus regit actum ,

também conhecido como lex loci contractus, as obrigações devem obedecer à lei do

Estado onde foram constituídas. Por fim, pelo princípio da primazia da norma mais

favorável ao trabalhador, aplica-se a norma que melhor resguarde os direitos do

empregado (PORTELA, 2013, p. 502).

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Nos tratados internacionais, há duas normas que se aplicam aos contratos de

trabalho internacionais. A primeira, que consagra o princípio lex loci executionis, é o

artigo 198 do Código de Bustamante (Convenção de Direito Internacional Privado), 1928,

promulgada pelo Decreto 18.871, de 13.08.1929, que determina (...) “é territorial a

legislação sobre accidentes do trabalho e protecção social do trabalhador.”

A segunda, que acolhe o princípio da primazia da norma mais favorável ao

trabalhador, é o artigo 19, parágrafo 8º, da Constituição da Organização Internacional do

Trabalho (OIT), que dispõe que:

Em caso algum, a adoção, pela Conferência, de uma convenção ou recomendação, ou a ratificação, por um Estado-Membro, de uma convenção, deverão ser consideradas como afetando qualquer lei, sentença, costumes ou acordos que assegurem aos trabalhadores interessados condições mais favoráveis que as previstas pela convenção ou recomendação.

A principal lei brasileira a respeito da matéria é a Lei 7.064 de 1982, que regula a

situação dos trabalhadores contratados no Brasil e enviados para prestar serviços no

exterior.

A lei em apreço define que a empresa responsável pelo contrato de trabalho do

empregado transferido deverá assegurar, independentemente de observância da legislação

do local da execução dos serviços, os direitos estabelecidos em seu próprio texto, a

aplicação da legislação brasileira de proteção ao trabalho quando mais favorável e,

ressalvadas suas disposições especiais, as normas brasileiras sobre Previdência Social,

FGTS e PIS/PASEP (BRASIL, 1982):

Art. 3º - A empresa responsável pelo contrato de trabalho do empregado transferido assegurar-lhe-á, independentemente da observância da legislação do local da execução dos serviços:

I - os direitos previstos nesta Lei;

II - a aplicação da legislação brasileira de proteção ao trabalho, naquilo que não for incompatível com o disposto nesta Lei, quando mais favorável do que a legislação territorial, no conjunto de normas e em relação a cada matéria.

Parágrafo único. Respeitadas as disposições especiais desta Lei, aplicar-se-á a legislação brasileira sobre Previdência Social, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço - FGTS e Programa de Integração Social - PIS/PASEP.

Na jurisprudência brasileira, prevalecia a Súmula 207 do Tribunal Superior do

Trabalho (TST), que determinava que:

A relação jurídica trabalhista é regida pelas leis vigentes no país da prestação de serviço e não por aquelas do local da contratação. Súmula nº 207 do TST.

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CONFLITOS DE LEIS TRABALHISTAS NO ESPAÇO. PRINCÍPIO DA "LEX LOCI EXECUTIONIS" (cancelada) - Res. 181/2012, DEJT divulgado em 19, 20 e 23.04.2012.

Histórico: Súmula mantida - Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003 – Redação original - Res. 13/1985, DJ 11, 12 e 15.07.1985.

A referida súmula foi extinta devido ao conflito entre o princípio lex loci

executionis, incorporado à Súmula supramencionada, e o artigo 3º da Lei 7.064/82.

Outro ponto importante a ser ressaltado refere-se a inaplicabilidade do princípio

da autonomia da vontade, ao ordenamento jurídico brasileiro, como um critério legítimo

para determinar a norma trabalhista aplicável aos contratos celebrados em um país e

executados em outro, bem como a controvérsia existente entre a possibilidade de

aplicação do princípio da retroatividade motivada aos contratos laborais.

3.2. Princípio da retroatividade motivada

O princípio da retroatividade motivada, previsto no art. 2.035 do Código Civil de

2002, define que as normas de ordem pública relacionadas à função social dos contratos

podem retroagir, verbis:

Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.

Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.

Tartuce, por sua vez, afirma que a expressão “convenção” constante no art. 2.035

do Código Civil de 2002 abrange qualquer ato jurídico celebrado, incluindo nesse rol os

negócios jurídicos celebrados antes da entrada em vigor da nova lei geral privada

(TARTUCE, 2012, p. 29).

No entanto, verificamos que a relação trabalhista extrapola a própria lógica

contratualista, regida pela autonomia da vontade e pela aplicação do princípio pacta sunt

servanda, uma vez que está fundamentada no princípio jurídico da proteção, basilar no

âmbito das relações de trabalho.

Tal ponto merece destaque, pois representa um tema bastante controverso no

âmbito dos litígios trabalhistas de cunho internacional, uma vez que os ordenamentos

jurídicos internos tendem a adotar ou rechaçar a aplicação do princípio da autonomia da

vontade, aos contratos desta natureza, de maneira diversa.

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A aplicação dos princípios supramencionados exercem influência direta no

regime de trabalho, tanto dos brasileiros contratados ou transferidos para prestar serviços

no exterior,6 quanto no caso de estrangeiros contratados no exterior para prestar serviços

no Brasil.7

3.3. Competência da Justiça do Trabalho na área internacional após as

alterações introduzidas pela Emenda Constitucional 45/2004

A Emenda Constitucional 45, de 2004, não alterou a competência da justiça do

trabalho para dirimir litígios internacionais, mas a destacou, passando a fazer parte do

inciso I do artigo 114, ipsis litteris:

Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I - as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

A título de ilustrativo, em acórdão proferido em 28 de abril de 2010, o Tribunal

Regional do Trabalho da 20ª Região (SE) entendeu que os organismos internacionais não

gozam de imunidade de jurisdição quando atuam no âmbito das relações privadas,

especialmente na área do Direito do Trabalho, em consonância com a jurisprudência do

TST, que estabelece que os Estados estrangeiros não dispõem de imunidade de jurisdição

junto ao Poder Judiciário brasileiro em causas de natureza trabalhista:

EMENTA

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO. ORGANISMO INTERNACIONAL. ONU. O recurso de revista não se viabiliza por violação dos arts. 2º, 49, I, e 84, VII, da Constituição Federal, ditos como violador, porque, além de não se encontrarem devidamente prequestionados, não dispõem sobre imunidade de jurisdição de organismo internacional, conforme a hipótese. Além disso, os paradigmas trazidos ao confronto de teses são inservíveis ao fim colimado, por não indicarem a fonte de publicação. Incidência das Súmulas nº 297, I e nº 337, I, a, do TST.

6 A Lei n 7.064, de 1982, não se aplica aos empregados designados para prestar serviços de natureza transitória, no exterior, desde que por período não superior a 90 (noventa) dias, e desde que tenham ciência expressa dessa transitoriedade e que recebam passagem de ida e volta diárias, que não terão natureza salarial, nos termos do art. 1º, parágrafo único. 7 Quanto ao estrangeiros contratados no exterior para prestar serviços no Brasil, não existe consenso sobre o tema ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que, como a Súmula 207 foi extinta a partir de conflitos com a Lei 7.064/82, a qual se aplica apenas aos trabalhadores transferidos do Brasil para prestar serviços no exterior, e como o Código de Bustamante não foi, ainda, denunciado pelo Estado brasileiro, aparentemente permanece válido o critério lex loci executionis, em caso de conflitos de leis no espaço envolvendo trabalhadores estrangeiros contratados no exterior para prestar serviços no Brasil.

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DECISÃO : , por unanimidade, conhecer do agravo de instrumento e, no mérito, negar-lhe provimento.

V O T O - MÉRITO

IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO. ORGANISMO INTERNACIONAL. ONU

O Tribunal Regional do Trabalho da 20ª Região manteve a decisão de primeiro grau em que não acolheu a imunidade de jurisdição da Organização das Nações Unidas - ONU, adotando os fundamentos seguintes, sintetizados na ementa do acórdão, à fl. 70, verbis: IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO - JURISDIÇÃO TRABALHISTA - ORGANISMO INTERNACIONAL - PRIVILÉGIO INEXISTENTE A imunidade de jurisdição não pode se invocada em processos trabalhistas porque o ente estrangeiro, ao contratar pessoas para prestar serviço subordinado, pratica ato de gestão, o qual não decorre do poder de império da entidade internacional, em razão do que perde a referida prerrogativa.

Agravo de instrumento a que se nega provimento.

Agravante (s) Organização das Nações Unidas – ONU. Agravado (s) Estado de Sergipe. Processo Nº AIRR-333/2006-004-20-40.3. Relator Min. Walmir Oliveira da Costa.

No caso supramencionado, o empregado foi contratado pela ONU para atuar no

Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, na execução do Projeto

BA/97/040, junto à Secretaria de Estado da Fazenda de Sergipe (Sefaz). Foram celebrados

cinco contratos de prestação de serviço, vigentes de setembro de 2001 a dezembro de

2003, quando o reclamante teve seu contrato interrompido.

O reclamante pugnou, na Justiça do Trabalho brasileira, pelo reconhecimento do

vínculo empregatício, bem como pelo pagamento das verbas rescisórias previstas na

legislação doméstica. A 3ª Vara do Trabalho de Aracaju rejeitou a imunidade de

jurisdição e condenou a ONU e o Estado de Sergipe a pagar horas extras, férias em dobro,

13º salário durante todo o pacto, aviso prévio e indenização substitutiva pela ausência de

depósitos do FGTS. A ONU ainda foi condenada a assinar e dar baixa na carteira de

trabalho do empregado e ao pagamento da quantia de R$ 5 mil.

Posteriormente, o TRT Sergipe elevou o valor da indenização para o montante de

R$ 67 mil, negando os recursos interpostos pela ONU e pelo Estado de Sergipe,

determinando, ainda, que o INSS fosse pago exclusivamente por ambos, isentando o

reclamante da parcela previdenciária, uma vez que já contribuira pelo teto.

No caso em tela, resta claro a aplicação do princípio da primazia da norma mais

favorável em detrimento do princípio lex loci executionis e do princípio locus regit actum,

uma vez que o ordenamento jurídico brasileiro não reconhece a imunidade de jurisdição

dos Estados, nem tampouco das Organizações Internacionais em se tratando de matéria

trabalhista.

4. Conclusão

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O estudo da teoria do Direito Internacional Privado, aplicável aos contratos

laborais, é de fundamental importância para a solução de conflitos no âmbito

internacional, uma vez que a matéria trabalhista possui diversas peculiaridades que

impedem a aplicação imediata da teoria geral dos contratos e dos elementos de conexão

costumeiros.

No ordenamento jurídico brasileiro, tal sistemática se torna ainda mais

controversa, uma vez que a aplicação do princípio da autonomia da vontade aos contratos,

de qualquer natureza, ainda não é um ponto pacífico entre os doutrinadores, nem

tampouco se verifica tal posicionamento dominante na jurisprudência.

Entendemos que as normas internacionais de proteção ao trabalhador, baseadas na

garantia de direitos fundamentais e direitos humanos, tendem a se sobrepor às regras de

Direito Internacional Privado para solução de conflitos de leis no espaço.

Concluímos, portanto, que o princípio da proximidade, aplicado subsidiariamente

ao princípio protetivo, tem exercido grande influência no Direito Internacional do

Trabalho, de forma que, tal entendimento tem prevalecido em detrimento da aplicação

sistemática do princípio da autonomia da vontade e do pacta sunt servanda aos contratos

laborativos.

Referências Bibliográficas

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LEÃO, H. D. Relações de Poder

57 | A l e t h e s

Relações de poder: Bilateralidade imanente e reações subsequentes no Estado Democrático de Direitos

Relations of power: Bilaterality immanent and subsequent reactions in the democratic rule of law

Henrique Detoni Leão1

Resumo: O presente trabalho tem como proposta fazer uma análise das relações de poder

na sociedade, destacando duas ramificações das relações de poder: de um lado, as relações inerentes ao homem, e de outro, as novas formas de dominação oriundas de um fato histórico. Evidenciam-se os instrumentos de controle e manipulação do pensamento, exercido pelas diversas instituições públicas e privadas, principalmente, as oriundas da segunda ramificação; descortina-se também como os instrumentos constitucionais, oriundos da classe dominante, têm o escopo de moldar os comportamentos sociais tolhendo direitos das classes humildes, promovendo discriminação, dificultando a luta por reconhecimento e de igualitárias condições na sociedade.

Palavras-chave: Estado. Relações de poder. Atores sociais. Manipulação do comportamento.

Abstract: This paper aims to analyze power relations in society, highlighting two branches

of power relations; on the one hand, the relations remained over time, and the other, the new forms of domination coming from a historical fact. Show up the instruments of control and manipulation of thought, played by various public and private institutions, mainly those from the second branch, unfolds also as the constitutional instruments, arising from the ruling class, has the scope to shape the behaviors hindering social rights of the lower classes, promoting discrimination, making it difficult to fight for recognition and equal conditions in society.

Keywords: State. Power relations. Social actors. Behavior manipulation.

1 Graduando em direito da Universidade Federal de Juiz de Fora– UFJF

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1- Introdução

A trajetória desenvolvida pelo homem orbita pelo amplo aspecto das relações

humanas. O indivíduo particularizado apresenta características próprias, mas também

universais as quais permitem e almejam o estabelecimento de relações intersubjetivas. O

objetivo deste artigo é, justamente, tratar dessas relações às quais detém característica

bilateralidade, ou seja, advêm da construção humana ou da natureza humana, atuantes e

indissociáveis de um sujeito. No entanto, as relações tratadas ao longo do texto, serão

especificamente as relações de poder, atuando como coadjuvante, as relações humanas.

Iluminará, nessa teatralidade do poder, as relações construídas no tempo/espaço -

principalmente, em cisões históricas da ordem existente e criadores de novas formas de

dominação - e também aclarar as relações de natureza humana – como as relações de

poder subjetivas.

1.1- Natureza universalizável

As relações de poder em si, tomando como base a subjetividade humana, fazem

parte da consciência individual, exteriorizando-se na tentativa de imposição da sua

vontade sobre os outros na relação intersubjetiva - por ora prescindida. Dessa forma, a

democracia representativa - representatividade da sociedade por cidadãos eleitos -

compreende característica uníssona, à intrínseca relação de poder, a necessidade de um

comandante, visto que a mobilização das pessoas depende do start, da iniciativa e

organização de alguma(s) pessoa(s). E dessa forma, os atores principais detêm o poder de

influenciar, direta ou indiretamente em certas decisões, a consciência individual e assim,

por meio da dominação, arraigarem os atores coadjuvantes da sociedade, caracterizados

por serem receptores do poder/dominação, partindo, pois, da aceitabilidade (construção

humana), no Estado democrático de direito - este trabalho, restringe-se a esta forma de

governo.

Existem sutis relações na sociedade as quais devem ser ressaltadas, porque são

elas que afetam cabalmente as relações sociais. As crianças podem ser expositoras dessa

relação de poder em si, intrínseca ao ser humano, quando se percebe na construção das

relações sociais a tentativa de sobrepujar-se por meio de injúrias ao receptor da ação,

como se observa na prática de bullying. E assim, as tentativas recíprocas de dominação

esbarram em fatores alheios, os quais definem psicologicamente a aceitabilidade à fonte

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LEÃO, H. D. Relações de Poder

59 | A l e t h e s

do poder na situação concreta. Essa externalidade pode ser definidora de conflitos entre

poder, delineando melhor a aceitabilidade do receptor desse poder/dominação. O cidadão,

ao longo do desenvolvimento, mergulhado na vontade de dominar, atua sobre a ação de

sobrepujar-se de acordo com seus interesses, que passam por canais mais sutis no âmbito

da competição social, se manifestando em preconceitos, em interações interpessoais e em

relações de trabalho. Além disso, a psicologia moderna constata a existência de uma

inerente predileção a certos comportamentos e sentimentos os quais podem ser

estimulados ou tolhidos pela família, repercutindo na formação do indivíduo e na sua

relação com o outro.

1.2- História e construção social

Tem-se, nessa relação com o outro, uma conexão histórica, visto que o homem

está localizado temporalmente. A historicidade, dessa forma, guarda cisões de

entendimento, de classes, de desenvolvimento, dentre várias repercussões promovedoras

de mudanças de pensamento e também de convívio social como as provocadas pela

Revolução Industrial (item 5.1). E no afã de compreender o presente, acreditando residir

nele as raízes do futuro, muitas vezes, esquece-se na historicidade o escopo da análise de

um fato. Dissociar a historicidade das relações de poder na sociedade é, simplesmente,

fazer uma análise superficial dessas relações e dos jogos de convivência, de sorte que

acontecimentos históricos de delimitado tempo/espaço refletirão no presente e

provavelmente no futuro. Dessa forma, será tratado ao longo do artigo, algumas marcas

históricas relevantes e associadas às relações sociais, voltadas às dominações na

sociedade.

As relações de poder construídas têm início quando o sujeito parte do isolamento

e estabelece relações com os indivíduos socialmente. As relações intersubjetivas

exprimem maior complexidade comparativamente às relações individuais, visto que

estabelecem multifacetadas conexões inter-individuais que se opõem numa relação

simples entre dois indivíduos, um o dominado e outro o dominador. Contudo, a sociedade

identifica diversas fontes de poder, muito além da oposição entre dominador e dominado.

A fonte do poder, dificilmente, será vista na sociedade, em vista da difusão do poder, ou

seja, é circular advindo de vários pontos, logo, não apresenta colocação exata, parte de

uma construção humana intersubjetiva e visível, talvez, em determinados caso concretos.

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O poder, dessa forma, atravessa a história, junto à construção da sociedade e de seus

valores.

2- Poder e Axiologias sociais

A evolução da sociedade construiu novos valores, mas também evidenciou valores

invariáveis. Contudo, diferentemente das relações de poder em si e da liberdade em si -

item três do artigo -, parte dos valores subjetivos são passíveis de universalidade,

correspondendo a invariantes axiológicas, transcrevendo nos direitos humanos sobre os

princípios da liberdade e da igualdade. Outra parte dos valores subjetivos não são

inerentes ao ser humano, mas são relativos e, portanto, partem de maior complexidade

para a construção de um consenso. Dessa forma, o processo democrático, num Estado

Democrático de Direitos, sistematiza o processo para feitura de consensos axiológicos

fundados e positivados na Constituição.

A sociedade, portanto, como a Constituição, mudaram e mudam alguns valores.

A alteração axiológica é permeada por relações de poder e interesses diversos. Essas

alterações dos interesses da sociedade, ao longo da história, em acordo às novas demandas

sociais, políticas e econômicas, encontraram nos atores principais desse jogo de

convivência social, um expoente por vezes abastado, carismático, forte ou por concessão

legal.

O poder tem intrínseco envolvimento com as relações humanas. A existência do

poder está associada ao consentimento dos dominados, caso contrário o poder não

encontraria alvo, se não houvesse quem aceitasse ser dominado, numa relação clara da

localidade do poder. O poder se efetiva em formas de dominação divididas em três tipos

dominação tradicional, dominação carismática e dominação racional legal. Esta se

caracteriza através do fundamento de dominação legal, ou seja, as leis orientadas pelos

homens esculpem os comportamentos individuais, dominando certas atitudes

consideradas a margem do interesse social. Enquanto essa é exercida através do carisma

individual na qual o sujeito se simpatiza cedendo poder, como por exemplo, na eleição

de presidentes por meio da qual a população, geralmente, tende a escolher aquele líder

com o qual mais se identifica. Já aquele - dominação tradicional - é exercido

constantemente na sociedade, através das formas tradicionais e históricas concebidas.

Assim, pode-se inferir que todo poder é capilar, preenchendo os espaços onde o

ser humano se encontra, podendo ser encontrado tanto em nível microfísico (por exemplo:

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LEÃO, H. D. Relações de Poder

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professores e guardas de trânsito); como em nível macrofísico (presidentes e

governadores). Com base nisso, o poder também pode ser subdividido em quatro tipos:

político, militar, econômico e simbólico. Político, exercido pelas instituições políticas do

Estado; militar, exercido através do uso da força, do monopólio da força; econômico,

exercido pelos detentores desse recurso que podem influenciar os outros poderes, sendo

característica dos interesses humanos a busca por melhores condições de vida; e

simbólico, ligado aos valores e também ao carisma (por exemplo: religião, líderes

culturais e grandes escritores). O poder imerso, no Estado Democrático de Direitos, faz-

se imposto sutilmente e banhado, muitas vezes, por uma falsa legalidade a qual se utiliza

do controle e da imposição sem a observância do que é justo ao ser humano. No Estado

despótico, o poder advindo da estrutura do Estado é diferente, mas guarda no âmbito

social proximidade de formas de controle e imposição de determinada conduta. O Brasil,

imerso no Estado Democrático de Direitos, garante aos cidadãos, pelo menos

formalmente, o princípio fundamental da liberdade e junto a outros princípios

orientadores do ordenamento jurídico.

3- Liberdade indissociável

A liberdade encontra-se imersa num processo envolto pela consciência coletiva e

jurídica. À construção coletiva, entende-se a autonomia oriunda da consciência moral

individual e intersubjetiva. Portanto, obtém-se dessa bilateralidade axiológica atribuições

aos sujeitos de direito, permitidas somente pela existência do Estado Democrático de

Direito o qual garantidor de liberdades/autonomias. A consciência moral individual do

sujeito imerso, geralmente, num núcleo familiar, desenvolve-se permeada por garantias

constitucionais (consciência jurídica) e por relações autônomas entre os sujeitos de direito

(consciência moral intersubjetiva). E, dessa forma, o individuo particularizado reconhece-

se livre e autônomo para realizar interações sociais, sendo-lhe atribuído identidade, ou

seja, reconhece-se como igual num processo dialógico-interacional. A passagem, pois, da

consciência moral individual para a relação com a consciência moral intersubjetiva, nega

aos sujeitos - não mais isoladamente - perda da liberdade total em certos aspectos, visto

que a liberdade individual estende-se à fronteira da liberdade de outrem para ser legítima,

no Estado democrático; então, ultrapassando esse limite, o ponto de interseção entre a

liberdade de dois indivíduos representa a perda da igualdade e perder-se-á, pois, parte da

liberdade e da legitimidade de uma ação. Dessa forma, a relação entre os sujeitos,

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socialmente, demanda perda de liberdades para a garantia de liberdades prioritárias. O

sujeito, portanto, aderido à sociedade, desenvolve sua consciência moral coletiva

integrada inicialmente aos padrões daquela cultura, logo, externa ao indivíduo isolado e,

posteriormente, é capaz de tecer críticas a padrões que lhe são impostos2 (consciência

individual). A consciência jurídica, dotada de juridicidade, observa a bilateralidade

axiológica, reconhecendo nesta o ethos social que atua como substrato axiológico

máximo da sociedade devendo, portanto, ser positivado constitucionalmente, pois

representa os anseios e os interesses, racionalmente construídos e dispostos. Dessa forma,

o processo de construção da liberdade é permeado pela bilateralidade axiológica e pela

consciência jurídica, ocorrendo, entre esses momentos, intrínseca interação entre os

fatores e, portanto, não sendo possível sua separação no caso concreto da construção da

liberdade do sujeito.

Dessa forma, a liberdade do individuo em si (consciência moral individual) é

inerente ao ser humano. Imerso na relação “eu”, tem-se a liberdade em si um expoente na

liberdade do pensamento, a qual alheia à dominação direta das relações intersubjetivas,

visto a inviabilidade de controle direto sobre o pensamento. A dominação indireta atua

sobre a forma de pensar e agir da sociedade, impondo padrões sobre a conduta social. São

elas subdivididas em quatro tipos: normas imperativas, convencionalismos sociais

demandantes de comportamentos socialmente aceitos, padronizados; normas morais,

constroem os valores socialmente assumidos como promotores do bem comum; normas

religiosas, fundadas na vontade divina; e, por fim, as normas jurídicas, dotadas de

coercibilidade, impõem condutas em acordo ao ordenamento jurídico posto.

A liberdade, quando confrontada aos interesses da sociedade, determina dos atores

principais, fontes do poder, instrumentos os quais delimitam essa liberdade em si,

objetivando interesses de classe, de instituições privadas ou de governo, de pessoas,

dentre outros possíveis expoentes do poder. Diante disso, a liberdade em si basicamente

delinear-se-ia sobre o campo da vontade individual, enquanto a liberdade intersubjetiva,

construída, basicamente delinear-se-ia sobre a condição3. Portanto, inexiste ser humano

3 A condição entendida amplamente, delineada por fatores necessários para realização da

autonomia/liberdade do sujeito, formas de alcançar a liberdade de um ato, como exemplo o dinheiro, a educação, a não coerção física ou moral - esta dependente da aceitabilidade das consequências pelo individuo; caso fraca, o individuo desconsidera preponderância para delimitar sua ação; caso forte, preponderante para delimitar sua ação .

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LEÃO, H. D. Relações de Poder

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somente possuidor de vontade individual, dentro de um processo intersubjetivo da

sociedade, visto que o tempo todo estabelecem-se relações, interindividuais demandantes

de, no mínimo, condição de igualdade dialógica. Desse modo, a liberdade é única, não

podendo dissociar suas fases no ser humano; além disso - como visto - não se ausentam

as relações de poder nessa relação, sendo a construção da liberdade, interferida pela

capilaridade do poder o qual influencia a consciência moral individual e intersubjetiva, e

também a consciência jurídica.

4- Surgimento, condução e ciclos do Estado

O Estado é grande expoente do poder, não sendo também a única fonte de poder

e nem sempre é detentor do poder. As relações do poder na história dos governos,

tomando como base o meio de imersão na sociedade do poder advindo do governo,

apresentam variações quanto à forma -branda ou brutal- de imposição da vontade e

também quanto à aceitabilidade de imposição de terceiros (privado) ou governo (público).

O público e privado, no incipiente Estado, apresentavam mínimas distinções, podendo o

soberano interferir da forma que lhe convier na vida dos cidadãos, utilizar o dinheiro

público da mesma forma e, muito menos, ofertar ao cidadão informações tanto às politicas

públicas quanto aos gastos do governo. Nesse sentido, Norberto Bobbio ilustra:

O poder político é o poder público no sentido da grande dicotomia mesmo quando não é público, não age em público, esconde-se do público, não é controlado pelo público. Conceitualmente, o problema do caráter público do poder sempre serviu para pôr em evidência a diferença entre duas formas de governo: a república, caracterizada pelo controle público do poder e na idade moderna pela livre formação de uma opinião pública, e o principado, cujo método de governo contempla inclusive o recurso aos arcana imperii, isto é, ao segredo de Estado que num Estado de direito moderno é previsto apenas como remédio excepcional (BOBBIO, 1997).

Deslocar-se do principado para a república passou a ser escopo de duas classes

sociais; a burguesia, para evitar abusos do monarca, insurgiu-se empregando seu poder

econômico, objetivando garantir direitos fundamentais, como à propriedade, a fim de

garantir a ingerência do Estado nas suas propriedades enquanto ao povo também

insurgente restou o ônus dessa disputa. Assim, enquanto formas de governar, os monarcas

passariam por um longo processo de descentralização do poder, enquanto historicamente

o Estado em si, também enfrentaria graves consequências nas suas estruturas, para

adaptarem-se as atuais demandas por direitos.

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Do comando do Estado para seleção das diretrizes econômicas percebe-se

distintos graus de dominação correlacionada ao Estado mínimo e ao Estado máximo. O

tamanho do Estado -subentende-se na relação entre Estado mínimo e máximo- interfere

distintamente nas políticas econômicas e sociais de um país, encontrando-se, ao longo da

história, revezamento entre essas características de Estados. No Estado mínimo há,

basicamente, redução da máquina pública, através de privatizações, e mínima intervenção

do Estado na economia, enquanto no Estado máximo ocorre o oposto: há inchaço das

despesas estatais e forte controle estatal na economia. Diante disso, as instituições estatais

capazes de reproduzir normas, por vezes, alheias ao interesse público, mas oportuno ao

interesse de manutenção de estruturas de dominação da sociedade. As normas de forma

geral subdividem-se em normas primárias referentes ao comportamento, ou seja, a

hipótese de incidência e a correspondente consequência jurídica; e normas secundárias

referentes à funcionalidade da instituição, ao estabelecimento de prazos e podem ser

instituídas pela sociedade quando esta, através de regras, hábitos e reiterações, constituem

um comportamento a ser seguido para inclusão daquele sujeito, sendo muito mais fáceis

de serem assimiladas pela sociedade, quando partem de um comportamento social. E, por

sua vez, podem instituir um comportamento, apresentando maior dificuldade de

incorporação social, já que almejam controlar, moldar certo comportamento entendido

como concorrente ao bem coletivo. Nesse contexto, se encontra o direito positivo,

imposto por meio das normas para garantir previsibilidade e ideia de segurança, para

dessa forma evitar condutas socialmente repreensíveis e moldar o cidadão prevendo

condutas corretas, ou pelo menos, assim consideradas por determinado grupo dominante.

Portanto, quanto maior o Estado, maior será a presença de instituições para regular seu

funcionamento, e maior será a regulação da sociedade e de comportamentos.

Atualmente, o Estado mínimo como certos idealizadores mais radicais

empregavam, não encontra mais respaldo na conjuntura social de maior demanda de

interferência estatal a fim de garantir melhores condições de vida na sociedade, e assim,

o estado mínimo admite, atualmente, politicas intervencionistas na área social com o

interesse de abarcar os anseios sociais. Assim descreve Norberto Bobbio:

O primado do público assumiu várias formas segundo os vários modos através dos quais se manifestou, sobretudo no ultimo século, a reação contra a concepção liberal do Estado e se configurou a derrota histórica, embora não definitiva, do Estado mínimo. Ele se funda sobre a contraposição do interesse coletivo ao interesse individual e sobre a necessária subordinação, até à eventual supressão, do segundo ao primeiro, bem como sobre a irredutibilidade do bem comum à soma dos bens individuais, e portanto sobre a crítica de uma das teses mais correntes do utilitarismo elementar (BOBBIO, 1997).

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LEÃO, H. D. Relações de Poder

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E complementa o autor :

Praticamente, o primado do público significa o aumento da intervenção estatal na regulação coativa dos comportamentos dos indivíduos e dos grupos infra-estatais, ou seja, o caminho inverso ao da emancipação da sociedade civil em relação ao Estado, emancipação que fora uma das conseqüências históricas do nascimento, crescimento e hegemonia da classe burguesa (sociedade civil e sociedade burguesa são, no léxico marxiano e em parte também no hegeliano, a mesma coisa). Com o declínio dos limites à ação do Estado, cujos fundamentos éticos haviam sido encontrados pela tradição jusnaturalista na prioridade axiológica do indivíduo com respeito ao grupo, e na conseqüente afirmação dos direitos naturais do indivíduo, o estado foi pouco a pouco se reapropriando do espaço conquistado pela sociedade civil burguesa até absorvê-lo completamente na experiência extrema do Estado total (total exatamente no sentido de que não deixa espaço algum fora de si) (BOBBIO,1997).

Bobbio apresenta, assim, uma crítica ao Estado mínimo, revelando certos ciclos

existentes no Estado; ora mínimo, ora máximo. Nessa disputa entre a burguesia, que

anseia pelo Estado mínimo, e o Estado que busca preencher os espaços existentes na

sociedade, há intrínseca relação entre ambos e, por isso, também há abdicação de um dos

lados, dependendo do momento histórico e de seu interesse em favor do que detém maior

influência naquele momento. Essas variações entre Estado mínimo e máximo podem ser

percebidas através de momentos históricos, posturas político-econômicas e demandas

sociais distintas do país. Essas variações refletiram na economia principalmente e

deixaram rastros com o presente.

5- Economia do poder

O Consenso de Washington impulsionador em escala global - creditado

principalmente aos Estados Unidos da América e à Europa o caráter expansionista - de

políticas neoliberais dos governos, dispondo no Estado Mínimo residência de melhor

forma de o Estado, como gestor, administrar os assuntos realmente importantes e deixar

a cargo da iniciativa privada lucrativa os outros assuntos. Além disso, políticas neoliberais

têm como marca interferir o mínimo possível em questões sociais, o que pode despertar

na sociedade um espírito individualista completamente destoante das características da

busca de uma sociedade mais igualitária e cidadã, transferindo assim parte de suas

atribuições à sociedade civil, as quais engajadas perante aos problemas sociais,

promovem apoio e movimentos sem suporte estatal.

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Mesmo assim, os EUA e a Europa promoveram a instalação de políticas

neoliberais, principalmente, em países “subdesenvolvidos” a fim de evitar a intervenção

do governo na iniciativa privada, já que o eixo de atração das transnacionais europeias e

estadunidenses se deslocava para esses países devido ao aumento de renda e também,

portanto, de mercado consumidor. Fazia-se, então, necessário garantir o lucro dessas

empresas e as remessas financeiras, provenientes da exploração dos países latino-

americanos e asiáticos, às matrizes e aos países, na grande maioria, os tidos como

desenvolvidos. Dessa forma, criou-se maneiras de aumentar o consumo na sociedade e

de privilegiar grandes empresas em detrimento das pequenas.

5.1- Mecanismos de mercado

A revolução industrial, em especial, o intenso crescimento e transformação da

Inglaterra articulou profundas alterações na sociedade inglesa e nas relações destas com

as outras, muito além, das novas formas de produção e de divisão do trabalho, mas

também se estendeu sobre complexas relações sociais, através da progressiva

degeneração das relações de reconhecimento em mecanismos de mercado. A revolução

industrial fomentou, nesse período, extravagâncias e luxos pela nobreza, sendo

assimiladas como formas de vida da classe burguesa, institucionalizando, portanto, a

supervalorização do capital, oriundo da consequência de um estreito canal entre o

dinheiro e obtenção do poder. E com o advento dessa nova era - das revoluções - novas

políticas entrariam em vigor no mundo inteiro, principalmente, pela hegemonia britânica

a qual, através desse período, estreitou os laços com outras nações a fim de vender o

excedente da produção. Dessa forma ampliaram-se os jogos de poder entre as nações e

fortes relações capitalistas, com intensa exploração do trabalho, baixos salários e aumento

da desigualdade social.

A “Lei dos cercamentos” ou enclosures acts, vigoraria nessa época, expulsando

por meio do capital e do poder, os trabalhadores rurais para, através das novas imposições

do mercado, usufruir da terra para criação de ovelhas as quais renderiam lucro e matéria

prima para a vindoura indústria têxtil. Essa relação perderia espaço, algum tempo depois,

para outro produto demandado pelo mercado, o algodão. Esse sistema suscitou vastos e

graves impactos na organização dos espaços na Inglaterra, antes predominantemente rural

e, consequentemente, a esta política, os trabalhadores rurais foram expulsos do campo e

buscaram, nas cidades, o sustento, embora nas áreas urbanas não havia condições de

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LEÃO, H. D. Relações de Poder

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comportar esses novos habitantes e, por sua vez, as insipientes indústrias abrem seus

imensos portões e as cidades seus imensos cortiços. Surgem, a partir de então, intensas

formas de exploração do proletariado, de sorte que, até hoje, encontram-se reflexos dessa

relação de super-exploração do proletariado e superlucro dos patrões, advindos da forma

de trabalho e da busca incessante por capital. Essa busca, aliada à ciência, levaria ao

desenvolvimento de novas máquinas para substituir “o escravo legal” que não dispunha

do mínimo de condições dignas para trabalhar, mas mesmo assim, por ser assalariado,

contava com a conivência estatal. Essa nova política demandava da hegemônica Grã-

Bretanha do século XVIII, transformar, através do seu poder, as relações trabalhistas no

mundo, fazendo, portanto, forte crítica ao trabalho escravo. Por meio dessa política

pressionava-se e mostrava-se visionária, através da busca por relações trabalhistas mais

humanas e, portanto, mascarava as verdadeiras intenções inglesas as quais correspondiam

à busca do aumento do mercado consumidor, visto que o escravo não detinha poder de

compra, já que não recebia financeiramente, enquanto o trabalhador assalariado mantinha

certo poder de compra, mesmo pequeno à época, e por isso poderia garantir o escoamento

da produção das indústrias inglesas. O homem fabricou, através dos jogos de poder e da

busca dos seus interesses, um conhecimento de modo que fosse ao encontro dos interesses

econômicos, camuflando o egoísmo presente nesta política reverberada até a atualidade,

com políticas de fabricação do consumo.

5.2- Criação da demanda e consumo latente

O governo, a mídia, as empresas e a sociedade coagem os atores sociais a

consumirem desenfreadamente, para serem inclusos. A coação social, umas das mais

frequentes formas de dominação, exerce direta influência sobre a forma de conduta social

do sujeito. Um claro exemplo é a teoria da maioria ou da multidão, na qual o individuo,

na balança entre regras morais e conduta pondera, inconsequentemente, por um ato que

normalmente não faria levado pela multidão, gerando arrependimentos posteriores. Além

disso, a coação quanto à conduta de consumo é empregada e estimulada na sociedade,

provocando consequências indiretas, que se estende desde produtos sem utilidades a

brigas familiares. As empresas criam inescrupulosos mecanismos, piorando a qualidade

do produto os quais, grande parte, antes de seis meses encontram-se inutilizados. Essa

politica é imoral e ilegal, então porque os Estados não fazem nada? As grandes

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corporações tem grande peso influenciador no comando politico do país? É interessante

ao Estado manter esse consumo? “Trabalhei tanto, mereço” a que custo?

O mundo não é linear, ele é finito. E, destarte, o consumo deliberado, apresenta

consequências ambientais e sociais. As consequências ambientais são explicitas e as

sociais são graves, ao custo de exploração humana em países de legislação trabalhista

frágil e de grande ambição econômica, por meio do qual as grandes empresas instalam

suas plantas produtivas e de crescente consumo.

5.3- Dominação econômica

Essas empresas gigantes economicamente instalam-se num determinado país

perseguindo fatores locacionais -custo da energia elétrica, disponibilidade de água,

infraestrutura, mercado consumidor, incentivos fiscais e mão de obra qualificada ou

barata dependendo do segmento industrial- retiram parte dos recursos naturais e humanos

do país, ou seja, lucrando por meio da exploração e redirecionado grande parte do lucro

à matriz. Além disso, muitas dessas empresas multinacionais e gigantes nacionais

auferem exagerados incentivos de governos, tais como isenção ou redução fiscal, doação

de terrenos, obras de infraestrutura para assegurar o correto funcionamento dessas

empresas e nega, os mesmos, aos pequenos empresários, gerando consequências

principalmente em pequenas cidades cujo poder econômico e influência política das

gigantes se sobrepõem aos das pequenas empresas. Dessa forma, principalmente no

processo de instalação das grandes empresas, há transferência de receitas dessas

empresas, em razão da migração do mercado e da desigualdade de concorrência, posto

que obtiveram incentivos, conseguiram diminuir custos e amealhar gastos ao longo do

processo produtivo. A concentração do lucro na grande corporação, consequentemente,

acarreta problemas de distribuição de renda e de declínio das pequenas empresas, muitas

vezes, antigas e familiares. Além disso, há falta de controle rígido do governo a fim de

evitar o envio de grande parte do lucro,de estagnação de investimentos na comunidade e

consequentes impactos decorrentes da forma de produção e impedir ainda inobservância

aos direitos humanos. Os incentivos dos governos às grandes empresas, e os supostos

direitos negados às pequenas empresas ferem, portanto, o direito constitucional da livre

concorrência exposto na Lei Nº 12.529, de 30 de novembro de 2011.

CAPÍTULO II DAS INFRAÇÕES

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(...) Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; II - dominar mercado relevante de bens ou serviços; III - aumentar arbitrariamente os lucros; e IV - exercer de forma abusiva posição dominante. (...)

A influência das grandes empresas, em atitudes políticas, fica clara não apenas no

favorecimento do governo para a implantação e distribuição das mercadorias, mas

também no financiamento eleitoral de partidos e candidatos. Esse interesse privado

influencia o Estado e percebe-se nitidamente, quando se compara ao que ocorre nas

campanhas eleitorais do Brasil, especialmente em 2014, à de presidente da república,

onde uma única empresa financiou a campanha dos três candidatos melhor votados. Dessa

forma, cria-se, através da influência do setor privado em interesses públicos- a

privatização do Estado -, um quadro aquém do interesse coletivo, diante da concessão à

contratação dessas empresas pelo governo, até mesmo depois da eleição. A privatização

do Estado constitui um escambo antiético e ilegal por meio do qual a maioria desses

governantes utiliza-se do dinheiro público como moeda de troca para movimentar esse

empreendimento. A Carta Magna brasileira de 1988 enquadra, no artigo 37, das

disposições gerais sobre administração pública, a qual prevê moralidade e

impessoalidade, a criminalização desse empreendimento como moeda de troca:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...)

Outro efeito dessa privatização do público se apresenta na relação entre pessoa

jurídica e pessoa jurídica, ou entre pessoa jurídica e pessoa física. O Estado fundamenta-

se na proteção do ente mais fraco da relação, assim como o código de trânsito brasileiro

dispõe quanto a uma situação de tráfego que o pedestre tem preferência sobre o ciclista,

que tem preferência sobre o carro e assim por diante. Na analogia a uma situação entre

pessoas jurídicas não se encontra muitas distinções, pois cabe ao Estado garantir, na

concorrência entre eles, a defesa do ente mais frágil desta relação e, portanto,

visivelmente uma pequena empresa é mais carente de amparo Estatal quando comparada

a uma grande empresa. Dessa forma, a pessoa física sobrepõe-se - no tocante ao grau de

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proteção Estatal - sobre a pessoa jurídica, uma vez que não dispõem das mesmas

condições econômicas e de reconhecimento na sociedade. As diretrizes do Estado, quanto

à relação pessoa jurídica e pessoa física, devem observar a manutenção de interesses

coletivos, ao invés do que vem ocorrendo, o privilégio do interesse de grandes

corporações em detrimento do interesse público.

O Estado deve libertar-se do sequestro das grandes corporações. O Brasil deve

criar condições para uma empresa entrar no país, diferentemente do que hodiernamente

ocorre; grande parte das empresas agraciadas - incentivos fiscais, logístico, dentre outros

- são estrangeiras e a volatilidade dessas empresas corresponde a um risco nacional. O

Estado refém das corporações que a qualquer princípio de crise, é exigido por elas, para

permanecerem operando no local, incentivos do governo, essa prática prejudica, como

exposto, as pequenas empresas nacionais e, portanto, o Estado deve criar regras de entrada

socialmente pensada a fim de evitar - na analogia feita - esse crime.

6- Sociedade disciplinar

Um ponto a ser abordado sobre relações de poder advém, como vários outros,

diretamente do Estado. A concepção penal variou durante o crescimento da sociedade e

assim foram construídas formas distintas de punição a fim de moldar e evitar a

reincidência de atos nocivos socialmente. Consequentemente também formulou-se,

aliadas às ideias de superioridade etnocêntrica, uma série de caricaturas “anômalas” e,

portanto, receptoras de preconceitos.Na democracia grega antiga, houve a instauração da

figura da testemunha, através da qual o povo se apoderou do direito de dizer a verdade,

de opor a verdade a seus próprios senhores, buscando no processo a verdade dos fatos, a

realidade do ocorrido. Diferentemente, o direito dos povos germânicos antigos instituía-

se próximo da regulação do fazer guerra, por meio de jogos de provas fundados em duelos

entre famílias, parentes ou algum autor de danos, sendo inclusive instaurada a vingança

na qual um familiar poderia vingar um ente da família, ou outras situações previstas,

alimentando assim as rivalidades entre as famílias.

O antigo Império Romano expande seus domínios, agregando o território

pertencente a esses povos germânicos e, pela influência grega, também incorporada à

Roma antiga, as noções de julgamento, de testemunha e da busca pela verdade no

processo. Enquanto o direito feudal - diante do clima de guerras constantes, da

desarticulação do Estado e das disputas familiares- externava concepção semelhante ao

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LEÃO, H. D. Relações de Poder

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direito germânico, através dos sistemas de provas de estrutura binária no qual o indivíduo

deveria aceitar ou não a realização de uma prova, esse mecanismo de provas, díspar do

sistema grego e romano, não serve para julgar quem tem razão, apenas para afirmar quem

é o mais forte, o mais influente. Assim as punições variavam basicamente de indenização

até penas de mortes, com mínima intervenção de terceiros nesses processos.

O inquérito aparece, durante a Idade Média, como pesquisa da verdade entre as

práticas jurídicas. A sucessiva substituição dos sistemas de provas pela busca da verdade

promoveu grandes avanços, muito além dos processos judiciários, mas influenciaram,

portanto, toda a sociedade e instituições delas derivadas. Busca-se a partir de então a

verdade nas ciências, nas pujantes universidades, na filosofia, ou seja, marca-se

doravante, a volta do racionalismo. A noção de crime altera-se, surgindo à ideia de

infração que seria um dano cometido conta o Estado e a ordem; fazendo, portanto, com

que através desse mecanismo, o Estado confiscasse o poder judiciário e retornasse a

concepção da busca da verdade, do fato ocorrido, no processo.

O direito penal sofre diversas reelaborações ao longo da história, desenvolvendo,

um princípio teórico de separação do crime – infração- ligado ao código penal em si, da

falta fundamentada no caráter religioso e moral. A lei, portanto, não deve retranscrever

as leis morais e religiosas, mas deve adaptar-se ao que é nocivo a sociedade. Assim, a lei

deve reparar o mal e impedir que males semelhantes possam ser cometidos contra o corpo

social, ou seja, o criminoso social seria envolvido pela constituição por meio da qual seria

punido. A partir disso surgem cinco tipos de punição, formulados por Beccaria e outros

teóricos, como citado por Foucault como a “bateria de penalidade”. São: “deportação,

trabalho forçado, vergonha, escândalo público e pena de talião” (FOUCAULT, 2002). A

primeira, assentada na transposição pelo individuo do pacto social, o não pertencer à

sociedade; o segundo, restituição dos danos causados; a terceira, a exclusão dentro do

corpo social, a punição viria da vergonha, espaço de exclusão social do indivíduo; o

quarto consistiria em tornar o caso público, afetando socialmente o condenado; e por fim,

a quinta, a pena de talião, fundamentação consistente na reciprocidade de ação por meio

da qual o individuo deveria sofrer o ato cometido.

Esses projetos penais desenvolvidos por teóricos com Beccaria duraram pouco

tempo e foram substituídos no início do século XIX, pela prisão. Essa nova forma de

punição rapidamente se espalha, revelando-se distante da utilidade social, uma vez que

buscava menos a defesa coletiva da sociedade e, mais o controle, a reforma moral das

atitudes e dos comportamentos do indivíduo. Dessa forma, a noção da teoria penal,

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fundamenta-se na periculosidade, em prever e impedir certas atitudes humanas, ao invés

de se ater ao que o indivíduo realmente fez. Nos moldes de Foucault, o controle dos

indivíduos passa a ser exercido por uma série de poderes estatais como a polícia e toda

uma rede de instituições de vigilância e correção, como por exemplo, as escolas as quais

moldam os pensamentos e as atitudes, originando uma sociedade disciplinar. E

atualmente, como instrumento de dominação utilizado denota-se a interpretação da

constituição, muitas vezes, avessa à intenção do legislador, mas encontra-se

condescendente na sociedade.

7- Sequela do direito penal

Nesse âmbito, o direito penal pode ser incluso na manutenção de estruturas pré-

existentes da sociedade. As leis penais não foram positivadas para as classes mais altas

da sociedade, mas foram positivadas para controlar as classes mais baixas e, assim, o

Estado criou uma série de preconceitos, principalmente, contra os desfavorecidos

financeiramente, alvos dessa política penal de periculosidade e controlabilidade. Percebe-

se, claramente, no sistema carcerário, a criminalização da pobreza, onde através da força

policial e do meio judiciário, criaram-se preconceitos relativos às classes modestas da

sociedade, associando-as à criminalidade.

A origem social de certo comportamento, já serve para institucionalizar

preconceitos. Culturalmente, o samba surgiu como forma de expressão oriunda das

classes humildes da sociedade e inicialmente foi recusado pelas classes dominantes,

justamente por advir de uma classe diferente, e por isso considerada popular; o samba, ao

longo do tempo, sofreu um processo de elitização e assim ser aceito pela elite.

Atualmente, há clara perpetuação desse comportamento pelo qual transita hoje o funk.

Esse processo de elitização de uma cultura serve para firmar, a negação por parte da elite,

do que expressa a origem popular e manter ideologicamente na sociedade a premissa de

superioridade da cultura elitista em detrimento das outras.

Dessa forma, o Estado alimenta preconceitos e, portanto, exclui as populações

carentes da sociedade, encontrando sérias barreiras, na sociedade pela formação

institucional que frequentemente dificulta a luta por reconhecimento, a qual se

fundamenta no amor, no direito e na estima social. O amor, que geralmente tem por início

o maternal, permite ao indivíduo adquirir autoconfiança para estabelecer, por meio da

língua e dos jogos de linguagem a ela inerentes, interações interpessoais e se reconhecer,

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LEÃO, H. D. Relações de Poder

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num contexto social e institucional, moralmente como sujeito livre e autônomo,

garantindo sua identidade. O direito, considerando a natureza jurídica do sujeito como

pessoa, lhe garante direitos e deveres, os quais iguais a todos, possibilitando o auto-

reconhecimento dos indivíduos dentro do mesmo contexto e, por isso, demandando auto-

respeito. A estima social assegura aos sujeitos em comunidade igual respeito e

consideração, proporcionando-lhe sentimento de próprio valor, de pertencimento à

sociedade.

Entende-se o direito positivo como imposto pelas instituições, de modo que

frequentemente ultrapassa a autonomia moral, e sendo esta dependente da liberdade do

indivíduo, ele terá tolhida parte da autonomia para agir diante das diversas situações

sociais. A autonomia moral pode ser entendida por meio de duas vertentes intrínsecas, a

condição e a vontade (vide item três). A condição para o indivíduo firmar sua

liberdade/autonomia, será fundada no direito, se aquele ato é lícito, nas condições

financeiras, se o sujeito possui meios para comprar algo, e em diversas situações

condicionantes da sociedade. Enquanto a vontade está voltada para a individualidade, se

o indivíduo está interessado em realizar tal ato. Portanto, o Estado, de acordo com seus

interesses, pode privar o indivíduo de certa autonomia quando lhe nega algumas

condições essenciais para a realização da sua liberdade, como a constituição, inibindo-o

de praticar certa atitude, mas principalmente, o dinheiro sem o qual o sujeito pode ser

privado, inclusive da sua dignidade, caso da falta de alimento, mínimo possível para

existência da pessoa humana.

Diante disso, a luta constante por reconhecimento se encontra dificultada para as

pessoas carentes, principalmente nas favelas, aonde os direitos humanos chegam à forma

de exclusão de direitos. Os direitos humanos historicamente criados na época da

revolução francesa representavam a morte das ideologias, permanecendo com o vazio de

direitos, generalizado, o qual não conseguiu romper com as estruturas de dominação e

esse -vazio de direitos- vai ser socialmente preenchido de acordo com os interesses do

capitalismo, encontrando expoentes nas críticas de Marx e de Costas Douzinas,

especialmente, pela classe social que orientava esse movimento. A carta dos “Direitos

universais do homem e do cidadão” foi oriunda de reivindicações da burguesia. Assim a

divisão do trabalho permaneceu de forma desigual e injusta para o trabalhador. E a

desigualdade social, decorrente dessa discriminação e falta de oportunidade, mina o

processo de construção do sujeito, excluindo-o do relacionamento equitativo com os

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demais sujeitos, não se reconhecendo, pois, pertencente à sociedade, apresentando

desigualdades de condições as quais prejudicarão sua formação como pessoa.

A desigualdade de condições e falta de oportunidades acaba deixando o indivíduo

a cargo do direito penal, excluindo-o dos outros direitos e também da sociedade,

transformando-o em bandido, promovendo nesse sujeito um sentimento de menor valia,

de desprezo social. Além desse fator das relações de poder, outros ainda compõem a

formação dessa ideia de menos valia socialmente, levando a maior aceitação da imposição

de poder.

8- Anomalia social

A atmosfera criada para a imposição do poder constrói outros fatores

condicionantes de inferiorização, diminuindo no conflito de poder a tentativa de

imposição de uma das partes. O etnocentrismo vai ao encontro das relações de poder na

sociedade no que tange a análise bilateral entre dominação e dominados ou de “superiores

e inferiores”. Essas relações se apresentaram na historicidade de variadas formas,

analisadas duas delas, mas possuidoras de uma interseção, a suposta superioridade étnica.

A colonização européia dos territórios latino-americanos e africanos e a globalização são

duas dessas relações alicerçando num ponto de interseção a assimilação dos dominados

de uma cultura tida como dominante, a aculturação. O término da colonização, a partir

da retirada física da força militar do Estado colonizador e da independência política das

colônias, não bastou para acabar com a influência cultural permanecente, baseada na

aceitação do modo de vida e na valorização da cultura, principalmente, europeia.

Enquanto a globalização promove uma aproximação cultural, originando por meio desta

um supercontinente, a “Nova Europa”, que abrangeria além da Europa, as Américas do

Sul, Central e do Norte. A globalização ergueu-se, junto aos cambaleantes Estados

nacionais, porém encontrava-se em ambos disputas por poder e subsequentes reflexos nas

relações sociais. A dominação ideológica subjuga o dominado inferiorizando sua forma

de agir e expressar sua cultura no âmbito nacional nesse caso, mas até mesmo dentro da

nação há imposição de uma cultura a características particulares regionais. Uma forma

aceita de dominação ideológica é a nomeação de um país como subdesenvolvido, menor

diante da explicita inferiorizarão da antiga nomenclatura de terceiro mundo. A

globalização, nesse contexto, também é protagonista na dominação ideológica.

Subjacente tem-se a cultura uniformizada, principalmente no espaço ocidental do globo.

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LEÃO, H. D. Relações de Poder

75 | A l e t h e s

A globalização, responsável pelo encurtamento das distâncias e pela aceleração

psicológica do tempo, tem nos veículos de massa grandes construtores axiológicos e

manipuladores comportamentais.

9- Impulsos jornalísticos, controle do Estado e verdades forjadas

O controle exercido pelos veículos de massa, especialmente a televisão, estabelece

estreita relação com o ethos social. A construção de um saber, imerso na intrínseca

intencionalidade de qualquer ação humana, desenvolve trajetória permeada por interesses

diversos, logo, estabelecem relações de poder para alcançar um fim. Essa característica

humana de intencionalidade necessita de mecanismos para alcançar seus objetivos e, para

isso, muitas vezes, verdades são inventadas no processo discursivo.

A constante manipulação do pensamento e do comportamento é exercida não

somente pelos órgãos públicos, mas também pelas empresas privadas, principalmente, os

veículos de massa como a televisão, o jornal e o rádio. A completa liberdade de imprensa

difundida pela mídia imparcial impacta o telespectador, leitor e ouvinte, respectivamente,

para seus interesses a fim de garantir maior controle do pensamento e, derivado, poder.

O Estado controla certos impulsos jornalísticos, com embasamento jurídico, caso de um

veículo de informação divulgar uma notícia tendenciosa sobre um candidato nas vésperas

de eleição, sem permitir o direito de resposta. Por mais que a informação seja verdadeira,

a atual legislação brasileira impede esse tipo de ato. Por outro lado o cidadão não pode

ser privado da verdade, principalmente, porque ele irá escolher seus representantes, os

quais terão grande poder para mudar os rumos de um país e, por isso, os meios de

comunicação imparcialmente devem prestar essas informações sobre o candidato, mas

não desrespeitando a legislação. Portanto, algumas alterações são adequadas à

constituição a fim de evitar esse tipo de situação, como a permissão das campanhas no

radio e televisão nas vésperas da eleição permitindo, pois, o direito de defesa contra certas

acusações e permitindo o esclarecimento do cidadão.

O Estado deve impedir que uma grande empresa seja detentora da espinha dorsal

do sistema comunicativo, ou seja, o quase monopólio de alguns grupos de vários sistemas

comunicativos de grande difusão. Uma empresa detentora de vários canais na televisão,

de algumas estações de rádio e jornais divulgam através desses meios a notícia de acordo

com o interesse do grupo detentor do poder, manipulando a população para agir e pensar

da forma com a qual eles transmitirão a informação, levando ao cidadão menos

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informado, apenas uma vertente da situação, dificultando seu acesso a diferentes

interpretações acerca de determinado assunto provocadas por outros meios de difusão.

10- Considerações finais

Conclui-se, no decorrer do texto, a existência de características humanas perenes,

permeadas ou influenciadas pelos jogos de poder, ante sua construção intersubjetiva.

Portanto, denota-se a existência, não apenas de verdades construídas e nem apenas

consentidas, mas também absolutas indissociáveis ao ser humano. Assim, estabelece-se

um norte para delinear o problema em curso de sociedade de controle e vigilância, por

vezes, permeada pela luta de classes e pelo decorrente progresso tecnológico, expressos

em acontecimentos históricos transformadores da ordem existente; mas também envoltos

nos valores componentes do ethos social e estabelecedores da coerção moral.

Denota-se, portanto, a dominação e o controle exercidos distante dos ideais de

Direitos Humanos, no tocante à luta por reconhecimento e inserção do sujeito no âmbito

social. A busca de soluções mais adequadas ao Estado de exclusão que se cria aos menos

abastados, mesmo submerso no Estado Democrático de Direitos, deve objetivar a

melhoria de oportunidade, de condição de vida digna, de educação inclusiva. Além disso,

fazem-se necessárias alterações em diretrizes institucionais para adequação ao texto

constitucional, principalmente, ao braço forte do Estado. Além da busca por uma carta

magna justa, inclusiva e promovedora de bem estar social que é o desejo de muitos povos

no mundo, principalmente, os imersos dentro do Estado democrático de direitos, visto

que se têm melhores condições de normatizarem e desenvolverem uma consciência

individual e coletiva ao encontro dessa constituição mais justa.

As relações de poder, na historicidade, revelam a natureza humana egoísta, ou

seja, a motivação do indivíduo é, normalmente, sua vontade a qual alheia ao processo de

dominação, mas sua ação pode ser controlada, dependendo do julgamento feito pelo

individuo. Em situações nas quais requer maior ponderação de valores entre o

individualismo e o bem da coletividade, sua formação moral e intelectual será

preponderante para gerar a decisão. No intuito de domar as vontades intersubjetivas os

seres humanos concedem e legitimam o poder a outros para garantir tranquilidade e

sobrevivência. A observância de que a exclusividade das relações de poder não é apenas

humana - mas também os seres vivos estabelecem relações de poder com claras

distinções, por meio das competições, seja por nutrientes ou por acasalamento,

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LEÃO, H. D. Relações de Poder

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distinguindo quem evolutivamente é o mais forte, mais adaptado - a percepção de

semelhanças entre os seres vivos é interessante para estabelecer parâmetros de contato

entre os seres humanos e os seres vivos, percebendo que, por vezes, também estabelecem

mutuamente relações de poder.

Cabe ressaltar também o papel do Estado, por meio do código penal, que exerce

o controle e manipula comportamentos da sociedade, refletindo certos preconceitos

presentes nas classes dominantes detentoras do poder, impactando as classes mais baixas,

através da discriminação e da falta de oportunidades, gerando competições desleais na

sociedade, excluindo a população carente de formas de reconhecimento e de inserção

social, levando a criminalidade. A sociedade, quanto maior o grau de instrução da

população, melhor ela consegue refletir seus ideais na constituição e dessa forma, melhor

consegue-se distribuir e garantir maior fatia de inclusão e participação dos atores

coadjuvantes e protagonistas no limiar de entendimento do bem coletivo.

Referências bibliográficas

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TOLEDO, Cláudia. Direito adquirido e Estado democrático de direito. São Paulo: Landy, 2003, p.22-139.

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CHAGAS, F. P. B.; SILVA, G. C. M.; RIBEIRO, J. F.

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O Triângulo de Produção: Consumidor-Fornecedor nas Relações de Consumo

The production Triangle: Consumer-Supplier in Consumer Relations

Francisco Patrick Barbosa Chagas1 Graziela Cristina Matias da Silva2

Josiele Ferreira Ribeiro3

Resumo: A Relação de Consumo está elencada na Constituição Federal, como um Direito

Fundamental inerente ao cidadão e um princípio basilar para a defesa da Ordem Econômica. A relação de consumo forma-se como uma pirâmide, no qual o fornecedor é o polo mais forte da relação de consumo, o consumidor é a parte mais vulnerável da relação e o objeto da relação de consumo é o produto e o serviço.

Palavras Chaves: Relação de Consumo. Consumidor. Fornecedor.

Abstract: The consumption relation is entered in the Federal Constitution as a Fundamental

Right inherent in the citizen and a basic principle for the defense of the Economic Order. The consumption relation is formed as a pyramid, where the supplier is the strongest pole of the consumption relation, the consumer is the most vulnerable part of the relation and the object of consumption relation is the product and the service.

Key words: Consumption Relation. Supplier. Consumer.

1 Aluno do 4º ano do curso de Direito do UNASP, monitor de Direito Internacional Privado, foi aluno PIBIC no ano de 2014 do grupo de pesquisa em Direitos Fundamentais, Desenvolvimento Humano e Propriedade Intelectual. 2 Aluna do 3º ano do curso de Direito do UNASP. 3 Bacharel em Direito do UNASP.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 07, pp 79-96, mai., 2015.

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1. Introdução

O presente trabalho aborda a temática do Triângulo de Produção: o Consumidor,

Fornecedor nas Relações de Consumo. O fornecedor é o polo mais forte da relação de

consumo, o consumidor é a parte mais vulnerável da relação e o objeto da relação de

consumo é o produto e o serviço.

Em um primeiro momento, será feita uma apresentação sobre a temática proposta,

para um melhor entendimento do leitor. Será apresentada a relação de consumo como um

todo, e a sua ligação com a Constituição Federal. Apresentando os princípios que regem

a relação de consumo, que são eles: a Vulnerabilidade; a Boa-fé; a Harmonização dos

interesses do consumidor e do fornecedor no mercado de consumo; a Dignidade humana;

e a Relação de Consumo a título gratuito.

Posteriormente, falar-se-á sobre o consumidor, estudando a pessoa jurídica como

consumidor, e o consumidor por equiparação. Logo em seguida, o fornecedor, este a título

gratuito, que exerce finalidade não lucrativa, e a Administração Pública como

fornecedora.

Por último, será analisada a relação de consumo, ou seja, os seus objetos, que

abrange o produto e o serviço. E as considerações finais resultantes da pesquisa

empregada para a feitura deste artigo.

2. A Relação de Consumo

Intitula-se como Relação de consumo a relação jurídica que existe entre o

consumidor, fornecedor e o objeto. Esta relação é regulamentada pela lei n. 8.078, de 11-

9-1990, chamada de Código de Defesa do Consumidor (ANDRADE, 2006, p.47).

Para Ronaldo Andrade (2006, p.47) “Relação de consumo é a relação jurídica

havida entre consumidor e fornecedor envolvendo a aquisição, por esse último, de

qualquer produto ou serviço para consumo final”.

O Código de defesa do consumidor tem por objetivo criar uma segurança jurídica

na relação consumerista, que é realizada pelo consumidor e o fornecedor. A relação de

consumo tem por base a aquisição de produtos ou serviços finais, e o consumidor figura-

se no polo mais fraco dessa relação e por isso, o CDC tem por objetivo a defesa da

vulnerabilidade do consumidor.

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CHAGAS, F. P. B.; SILVA, G. C. M.; RIBEIRO, J. F.

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A conceituação legal teria o condão de outorgar maior segurança e facilidade para o enquadramento de uma relação jurídica aos ditames do Código de Defesa do Consumidor. Entretanto, como já é ressaltado, é possível estabelecer uma noção mais ou menos segura de relação de consumo, partindo-se do conceito de seus elementos subjetivos - consumidor e fornecedor – e objetivos – produtos e serviço, de modo que a relação jurídica será qualificada como de consumo e por isso regulada pelo Código de Defesa do Consumidor, quando em seus polos subjetivos figurarem um fornecedor e um produto ou qualquer outra atuação no mercado de consumo, tendo por objeto serviço, produto ou qualquer outra atuação no mercado de consumo. Esse conceito pretende ser o mais abrangente possível, trazendo para o seu interior não só a relação jurídica de fornecimento de produto ou serviço, como também qualquer outra atuação do fornecedor, como suas práticas comerciais e a realização de publicidade no mercado de consumo (ANDRADE, 2006, p.48).

A relação será de consumo quando apresentar os elementos necessários para a sua

caracterização, que são eles, o consumidor e o fornecedor, de maneira que seja regulada

pelo Código de Defesa do Consumidor, pois ao se tratar de relação consumerista a citada

lei será o ponto basilar, e quando esta deixar lacunas na aplicação de um caso concreto

recorrer-se-á a outros dispositivos normativos. Sabe-se assim, que o Código de Defesa do

Consumidor é a principal lei ao se falar em relação de consumo, ao passo que as demais

leis serão complementares (ANDRADE, 2006, p. 49).

Conceitua-se consumidor apenas para efeito explicativo, pois a posteriori será

abordada essa temática de maneira mais profunda, segundo o art. 2o como toda pessoa

física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

O fornecedor será conceituado a seguir a lógica apresentada na definição de

consumidor, segundo o art. 3ᵒ é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional

ou estrangeira, bem como entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de

produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação,

distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

2.1 O Código do Consumidor e a Constituição Federal

O Código de Defesa do Consumidor é resguardado pela Constituição da República

Federativa do Brasil, em seus artigos 5ᵒ, inciso XXXII e o art. 170, inciso V. No art. 5ᵒ o

Código de Defesa do Consumidor é posto como um direito fundamental, pois se encontra

elencado no Título II da Constituição Federal que tem por temática “Dos Direitos e

Garantias Fundamentais” e no art. 170, é apresentado como um princípio e a sua

importância para o desenvolvimento da Ordem Econômica.

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A defesa do consumidor é princípio constitucional, inserido em capítulo dos princípios gerais da atividade econômica. O termo princípio é aqui utilizado no sentido de norma-fonte informadora do sistema, ou seja, no sentido de que em toda atividade econômica deve ser promovida a defesa do consumidor, seja particular espontaneamente, seja pela atuação estatal (ANDRADE, 2006, p.1).

O Código de Defesa do Consumidor expressa em seu art. 4o que a Política

Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos

consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses

econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e

harmonizadas relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:

I- Reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;

II- Harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e

compatibilização da proteção do consumidor a necessidade de

desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios

nos quais se funda a ordem econômica (art. 170 da Constituição Federal),

sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e

fornecedores;

Far-se-á, uma breve explanação sobre os princípios que regem a relação

consumerista, com o intuito de um melhor entendimento das relações de consumo. E para

tal, conceitua-se princípio como “mandamento fundamental que dá base a um sistema,

um instituto jurídico ou norma legal e lhes dá base, podendo ou não vir expresso em

diploma legislativo” (ANDRADE, 2006, p.52).

2.1.1 Princípio da Vulnerabilidade do Consumidor

Na relação de consumo, o consumidor é o polo mais fraco, e por isso, este é o que

necessita de proteção jurídica para atuar no mercado de consumo. O consumidor não é

considerado o mais frágil na relação de consumo, em razão de seu patrimônio e sim, por

desconhecimento técnico do produto. “O Código volta a sua atenção não para o objeto da

relação jurídica (tutela objetiva), mas para um dos sujeitos que dela participa – o mais

fraco (tutela subjetiva)” (CAVALIERI FILHO, 2011, p.56).

Esse princípio dita que o consumidor deve ser tido como a parte vulnerável da relação de consumo, uma vez que, em geral, encontra-se em uma posição debilitada, pois normalmente não detém o conhecimento tecnológico do produto ou serviço e, não obstante, é obrigado a consumir para suprir suas

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necessidades básicas e impostergáveis, não raro criadas pelo próprio fornecedor (ANDRADE, 2006, p.54).

O consumidor como sendo o vulnerável na relação, fala-se em seu

desconhecimento técnico do serviço ou produto, e não ao seu cabedal. Assim sendo, pode-

se aferir que o consumidor pode até ser mais rico que o fornecedor, no entanto esse

continuará a ser caracteriza como o polo mais fraco da relação, pois o consumidor não

tem o conhecimento técnico sobre a utilização do produto ou/e serviço (ANDRADE,

2006, p.55).

Falar-se em vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo não é o mesmo que dizer ser ele, sempre, o economicamente mais fraco, um hipossuficiente, que devido a essa circunstância faz jus à proteção parecida com aquela que a Consolidação das Leis do trabalho dispensa assalariado. O consumidor, às vezes, é uma empresa que, sob o prisma econômico, mostra-se muita mais poderosa que aquele que lhe vende algo ou que lhe presta um serviço (SAAD et al, 2006, p.169).

Cita-se, por exemplo, um rico empresário que consome um alimento em um

restaurante de porte pequeno, e esse alimento lhe faz mal, chegando a cair acamado em

razão deste. Mesmo o empresário sendo mais rico que o pequeno comerciante, este tem

o conhecimento sobre a fabricação e conservação do alimento que foi servido, e o

empresário, caracterizado como a vítima do fato do serviço, desconhece essa informação.

Por isso, ele figura-se no polo passivo, por ser ignorante quanto à questão técnica desse

serviço ou produto (SAAD et al, 2006, p.55).

O princípio aqui analisado, a nosso ver, encerra presunção juris tantum, na medida em que ela pode ser afastada por prova em contrário. É que em algumas hipóteses o consumidor tem conhecimento técnico do produto ou serviço e até mesmo do processo produtivo e, nesse caso, entendemos que, se o princípio fosse aplicado, haveria tratamento desigual para pessoas iguais (SAAD et al, 2006, p.55).

Ao reconhecer o consumidor como o polo mais fraco da relação, concretiza-se o

princípio da isonomia que está garantido na Constituição Federal. Pois, esse desequilíbrio

na relação de consumo é fato. “Essa fraqueza, essa fragilidade, é real, concreta, e decorre

de dois aspectos: um de ordem técnica e outro de cunho econômico” (NUNES, 2013,

p.178).

O consumidor “é reconhecido como a parte mais fraca da relação de consumo,

afetado em sua liberdade pela ignorância, pela dispersão, pela desvantagem técnica ou

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econômica, pela pressão das necessidades, ou pela influência da propaganda”

(CAVALIERI FILHO, 2011, p.67).

2.1.2 Princípio da boa-fé

O Princípio da boa- fé aduz que tanto o consumidor quanto o fornecedor devem

agir com honestidade, lealdade, sem prejudicar aqueles com quem se relacionam

(ANDRADE, 2006, p.56).

A boa-fé é uma regra que dita o comportamento moral da sociedade, os seus

efeitos devem estar presentes tanto na formação quanto na execução do contrato. A boa-

fé somente pode ser analisada em situações particulares, em casos específicos, pois se

trata de uma regra de comportamento, então varia conforme a sociedade, devido aos

valores morais serem diferentes em cada localidade (ANDRADE, 2006, p.56).

Segundo Ronaldo Andrade, ao se analisar:

Os aspectos intrínsecos e extrínsecos da boa-fé, encontramos que a doutrina, de forma absolutamente apropriada, faz distinção entre boa-fé subjetiva e boa-fé objetiva. Para Jacques Ghestin, a primeira é um estado psicológico, uma crença de o sujeito estar agindo de boa-fé. A segunda exprime um valor exterior revelado por normas de comportamento que são traduzidos na lealdade e nos bons costumes, criando, assim, os bons costumes sociais e comerciais na sua expressão exterior e não somente no plano interior de quem pratica a ação (ANDRADE, 2006, p. 56-7).

A boa-fé objetiva é percebida por meio dos atos praticados pelos agentes da

relação consumerista, e a boa-fé subjetiva, quanto às intenções, aos pensamentos e a

vontade intrínseca. Esta se refere ao foro íntimo dos agentes da relação de consumo. Ou

seja, o marco identificador da boa-fé objetiva para a boa-fé subjetiva é a exteriorização

da vontade em ação (ANDRADE, 2006, p.57).

2.1.3 Princípio da harmonização dos interesses do consumidor e do fornecedor

no mercado de consumo

Este princípio tem por objetivo harmonizar os interesses do consumidor e do

fornecedor com as relações de consumo, para que tenha uma relação com frutos

produtivos para ambas as partes.

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Harmonizar “é compatibilizar interesses antagônicos com a finalidade de obter

um ponto ótimo, ou seja, um resultado que atenda razoavelmente aos interesses pessoais

das partes envolvidas na relação de consumo, ou seja, o consumidor e o fornecedor”

(ANDRADE, 2006, p.58).

O princípio da harmonização dos interesses do consumidor, “que Ricardo Hasson

Sayeg denominou de “princípio da compatibilidade na relação de consumo, e do

fornecedor” visa equilibrar a relação de consumo para evitar que o fornecedor sobreponha

seu interesse ao do consumidor, em prejuízo deste” (ANDRADE, 2006, p.58).

2.1.4 Princípio da Dignidade Humana

“A dignidade da pessoa humana – e do consumidor – é garantia fundamental que

ilumina todos os demais princípios e normas e que, então, a ela devem respeito, dentro

do sistema constitucional brasileiro” (NUNES, 2013, p.176).

A dignidade humana apresentada no art. 4ᵒ, caput do Código de Defesa do

Consumidor, ou, Lei n. 8. 078/ 90 é a mesma do art. 1o , inciso III da Constituição Federal.

O princípio da dignidade humana é tido como um dos principais princípios do

Ordenamento Jurídico, ele é um meta princípio, faz-se menção a autores que assim o

consideram, tais como, Bernado Fernandes (2013), Luís Roberto Barroso (2012), Virgílio

Afonso da Silva (2010).

A dignidade humana tem por objetivo garantir o mínimo existencial, e nisso

inclui-se à vida, à segurança, alimentação, educação. Essas são necessidades que devem

ser supervisionadas pelo Estado. “A dignidade é elemento que qualifica e completa o ser

humano e dele não pode ser destacado; imprescindível à própria condição humana,

impõe-se ao Estado que a reconheça, proteja e respeite” (BORGES, 2000, p.32).

“A dignidade, como atualmente compreendida, se assenta sobre o pressuposto de

que cada ser humano possui um valor intrínseco e desfruta de uma posição especial no

universo” (BARROSO, 2012, p.14).

Percebe-se então, que, consequentemente, a regra do caput do art. 4o descreve um quadro amplo de asseguramento de condições morais e materiais para o consumidor. Quando se refere à melhoria de qualidade de vida, está apontando não só o conforto material, resultado do direito de aquisição de produtos e serviços, especialmente os essenciais (serviços públicos de transporte, água e eletricidade, gás, os medicamentos e mesmo imóveis etc.), mas também o desfrute de prazeres ligados ao lazer (garantido no texto constitucional – art. 6ᵒ, caput) e ao bem-estar moral ou psicológico (Nunes, 2013, p. 177).

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A dignidade humana advém “da solidariedade e da ética humana. Pela

solidariedade, o homem reconhece o outro como seu semelhante e pode delinear seu

comportamento ético no sentido de que tudo aquilo que o afeta, seja bom ou mau, afetará

o seu semelhante” (ANDRADE, 2006, p.4).

“Assim, tudo que for digno para uma pessoa, será também para outra, o mesmo

ocorrendo com a indignidade, de forma que, se algum ato ou situação forem indignos para

uma pessoa, igualmente o serão para as demais” (ANDRADE, 2006, p.4).

A Constituição da Republicana ao colocar a defesa do consumidor no capítulo dos

direitos e garantias fundamentais, “integrou-a a dignidade humana, de maneira que, em

todas as relações de consumo, a dignidade do consumidor deve ser preservada, sob pena

de ferimento de preceito constitucional fundamental” (ANDRADE, 2006, p.7).

2.2 A Relação de Consumo a Título Gratuito

A relação consumerista “normalmente é uma relação jurídica engendrada pelos

seus sujeitos - consumidor e fornecedor – a título oneroso, até porque a finalidade do

consumo decorre da necessidade das pessoas de consumirem produtos e serviços”

(ANDRADE, 2006, p. 50).

Ronaldo Andrade aduz que:

É inerente que quem atua como fornecedor necessita receber a remuneração para o exercício dessa atividade, até porque a relação jurídica de consumo é, sem duvida, o contrato de consumo, que tem por objeto a atuação do fornecedor para o fornecimento de um produto ou serviço, tendo como contraprestação a remuneração paga pelo consumidor. Desse modo, não há como negar que a relação de consumo é normalmente, mas não é essencialmente, onerosa (ANDRADE, 2006, p. 50).

No entanto, existe a possibilidade da relação de consumo ser a título gratuito, ou

aparentar não ser oneroso. É o que acontece com serviços tidos como gratuitos, mas estão

embutidos em outros serviços ou produtos. Aponta-se como exemplo um Hipermercado

que disponibiliza aos seus clientes estacionamento de forma gratuita (ANDRADE, 2006,

p.50).

No caso citado, não se tem uma relação de consumo gratuito, o que acontece é que

o pagamento é feito de maneira geral, ou seja, é pago pelo conjunto total de consumidores

e não por cada um destes, e esses não pagam diretamente pelo serviço que lhe foi

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oferecido, e sim, indiretamente, adquirindo algum produto desse estabelecimento

(ANDRADE, 2006, p.50).

O Código de Defesa do Consumidor determina que o bystander, participa da

relação de consumo, sendo considerado consumidor. O bystander “não é propriamente

consumidor porque não adquiriu produto ou serviço, mas ficou exposto ao fornecimento

e à prática do fornecedor no mercado de consumo” (ANDRADE, 2006, p.51).

Veja-se que, nessa hipótese, não há propriamente relação de consumo, mas, por ficar o consumidor bystander exposto à atuação do fornecedor, os danos que ele vier a experimentar serão reparados na forma do CDC, de maneira que, no que concerne à reparação de danos, essa atuação no mercado de consumo é regulada pela lei consumerista (ANDRADE, 2006, p.51).

A relação jurídica gratuita será consumerista, em razão da responsabilidade pelo

fato do produto apregoado no art. 17 de CDC “o fornecedor terá atuado no mercado de

consumo de maneira a provocar acidente de consumo e consequente dano ao consumidor”

(ANDRADE, 2006, p.51).

3. O Consumidor

O art. 2o do Código de Defesa Consumidor define consumidor, como toda pessoa

física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. “A

norma define como consumidor tanto quem efetivamente adquire (obtém) o produto ou o

serviço como àquele que, não o tendo adquirido, utiliza-o ou o consome” (NUNES, 2013,

p.122).

Consumidor, de regra, é aquele que, em posição de vulnerabilidade no mercado de consumo e não profissionalmente, adquire ou utiliza produtos ou serviços como destinatário fático e econômico desses produtos ou serviços, visando à satisfação de suas necessidades pessoais, ou das de sua família, ou das de terceiros que se subordinam por vinculação doméstica ou protetiva a ele (CAVALIEIR FILHO, 2011, p.60).

A doutrina tenta explicar o consumidor e para tal, utiliza-se de duas correntes a

maximalista ou objetiva e a finalista ou subjetivista.

A corrente maximalista ou objetiva entende que o CDC, ao definir o consumidor, apenas exige, para sua caracterização, a realização de um ato de consumo. A expressão destinatário final, pois, deve ser interpretada de forma ampla, bastando à configuração do consumidor que a pessoa, física ou jurídica, se apresente como destinatário fático do bem ou serviço, isto é, que o retire do mercado, encerrando objetivamente a cadeia produtiva em que inseridos o fornecimento do bem ou prestação do serviço (CAVALIERI FILHO, 2011, p.60).

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Para a corrente maximalista, não importa se o consumidor tem por objetivo

satisfazer os seus anseios ou para fim profissional. Este será caracterizado pela retirada

fática do produto do mercado, ou seja, por meio do ato de consumir (CAVALIERI

FILHO, 2011, p.60).

Dando ao bem ou serviço uma destinação final fática, a pessoa, física ou jurídica, profissional ou não, caracteriza-se como consumidora, pelo que dispensável cogitar acerca de sua de sua vulnerabilidade técnica (ausência de conhecimentos específicos quanto aos caracteres do bem ou serviço consumido), jurídica (falta de conhecimentos jurídicos, contábeis ou econômicos) ou socioeconômica (posição contratual inferior em virtude da magnitude econômica da parte adversa ou do caráter essencial do produto ou serviço oferecido) (CAVALIERI FILHO, 2011, p.60).

Para os seguidores da teoria maximalista ou objetiva, o CDC não é especifico, ele

é amplo, é um código genérico seria, “um Código para a sociedade de consumo, razão

pela qual a definição do seu art. 2ᵒ, caput, deverá ser interpretada de forma extensiva para

que as suas normas possam servir cada vez mais às relações de mercado” (CAVALIERI

FILHO, 2011, p.61).

A teoria do finalismo ou subjetivismo interpreta diferente da corrente

maximalista, a pessoa do consumidor. Para essa, o simples ato de consumir não

caracteriza o consumidor, este tem que ter o intuito de retirar o produto ou o serviço do

mercado de trabalho, e ser o destinatário final (CAVALIERI FILHO, 2011, 61).

A corrente finalista ou subjetivista, a seu turno, interpreta de maneira restritiva a expressão destinatário final. Só merece a tutela do CDC aquele que é vulnerável. Entende ser imprescindível à conceituação de consumidor que a destinação final seja entendida como econômica, isto é, que a aquisição de um bem ou a utilização de um serviço satisfaça uma necessidade pessoal do adquirente ou utente, pessoa física ou jurídica, e não objetive o desenvolvimento de outra atividade negocial. Não se admite, destarte, que o consumo se faça com vistas à incrementação de atividade profissional lucrativa, e isto, ressalta-se, quer se destine o bem ou serviço à revenda ou à integração do processo de transformação, beneficiamento ou montagem de outros bens ou serviços, quer simplesmente passe a compor o ativo fixo do estabelecimento empresarial. Consumidor, em síntese, é aquele que pões fim a um processo econômico (CAVALIERI FILHO, 2011, p.61).

“O conceito de consumidor, na esteira do finalismo, portanto, restringe-se, em

princípio, às pessoas, físicas ou jurídicas, não profissionais, que não visam lucro em suas

atividades e que contratam com profissionais” (CAVALIERI FILHO, 2011, p.62).

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O Código de Defesa do Consumidor adotou a corrente finalista, não admitindo o

consumidor lucrar com esse produto ou serviço, ou seja, destiná-lo a fim empresarial.

Pois, este que ser o destinatário final da corrente de consumo, o produto tem que ser

adquirido para a supressão das suas necessidades e não a busca por lucros (OLIVEIRA,

2009, p.5).

3.1 A Pessoa Jurídica como Consumidor

Para a teoria objetivista/maximalista, somente será afastado a característica de

consumido da pessoa Jurídica, se esta ao adquirir um produto o destina as suas atividades

produtivas, a um fim econômico, ou seja, este é utilizado como meio para alcançar

maiores dividendos (CAVALIERI FILHO, 2011, p.68).

No entanto, a pessoa jurídica ao adquirir o produto e utilizá-lo nas suas

necessidades internas, não será descaracterizada como consumidor. Pode-se indicar como

exemplo, uma empresa produtora de carvão que compra algumas canetas e as destina para

uso do setor administrativo. Para este fim, será considerado consumidor, mas se ao

adquirir as canetas e decide revende-las, passa de consumidor para o polo de fornecedor

(CAVALIERI FILHO, 2011, p.68).

Sérgio Cavalieri Filho (2011, p.68) aduz que “para que uma pessoa jurídica seja

considerada consumidora faz-se necessário, em primeiro lugar, que ostente a mesma

característica que marca o consumidor pessoa física, qual seja a vulnerabilidade”.

Posteriormente, é necessário que seja dado um fim de consumo aos bens obtidos, ou seja,

essa pessoa jurídica seja o destinatário final, e não um meio para conseguir um fim

econômico (CAVALIERI FILHO, 2011, p.68).

Para Sérgio Cavalieri Filho (2011, p.69) “não se confere à pessoa jurídica a

condição de consumidora quando adquire produtos ou contrata a prestação de serviços

como intermediário do ciclo de produção, salvo se comprovadamente vulnerável”. A

doutrina tem sustentado que a empresa ao realmente consumir o produto/serviço sem

transferir a outras pessoas, é considerado consumidor (ANDRADE, 2006, p.19).

Ronaldo Andrade aduz que:

A pessoa jurídica quando age fora de sua área de atuação, é tão frágil quanto à pessoa física, mormente no caso de mercado de consumo brasileiro, onde os fornecedores, em geral, são micro e pequenas empresas, muita delas familiares, que somente recebem roupagem de pessoa jurídica, sendo na essência um grupamento de pessoas físicas que haurem seu sustento a partir da exploração

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de uma atividade econômica exercida no mercado de consumo por uma empresa jurídica (ANDRADE, 2006, p. 22).

3.2 Consumidor por equiparação

Consumidor por equiparação é aquele que não participou da relação de consumo,

no entanto os efeitos dessa lhe atingiram. Os artigos 2o, 17 e 29 do CDC apresentam

algumas situações de consumidor por equiparação. Abaixo os artigos, para um melhor

entendimento da matéria.

Art. 2º - Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza

produto ou serviço como destinatário final.

Parágrafo único. - Equipara-se a um consumidor a coletividade de pessoas, ainda

que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.

Art. 17 - Para os efeitos desta Seção (da responsabilidade pelo fato do produto ou

serviço), equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento.

Art. 29 - Para os fins deste Capítulo e do seguinte (das práticas comerciais e das

práticas comerciais), equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou

não, expostas as praticas nele previstas.

Não se justifica o simples lucro do fornecedor e o cerceamento de direitos da

sociedade. É necessário que o fornecedor ao expor os seus produtos no mercado de

consumo, tome as devidas precauções de que o produto encontra-se em excelente estado

para uso, e que não venha apresentar riscos à vida dos consumidores.

No entanto, às vezes, terceiros que não estavam expostos à relação de consumo,

venham a sofrer danos pelo fato do produto ou serviço, devido a isso o Código do

Consumidor vem dando um tratamento especial para essas vítimas, equiparando-as a

consumidores para que possam figurar como o polo vulnerável, o prejudicado, da relação

(CAVALIERI FILHO, 2011, p.70).

O Código de Defesa do Consumidor ao conceituar a pessoa do consumidor,

abrangeu seu campo de atuação para acolher em seu ordenamento indivíduos que não

pertenceram a uma relação consumerista, contudo, sofreram mesmo que indiretamente,

os efeitos dessa relação, assim como os consumidores direitos. Esses consumidores

equiparados, são chamados de bystander, são vítimas do acidente de consumo

(ANDRADE, 2006, p.26).

Assim, como os bystander, àqueles que foram expostos a práticas abusivas de

consumo (art. 29 do CDC), são consumidores equiparados. Pois, mesmo sem terem criado

alguma relação obrigacional consumerista, estão sujeitas as práticas supracitadas, pois

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não depende tão somente da vontade do consumidor, todavia são colocadas de maneira

impositiva pelo fornecedor, e a maneira encontrada pelo legislador, foi estabelecer uma

equiparação entre esses consumidores indiretos e os diretos, tendo em vista que ambos

sofrem com essa situação (ANDRADE, 2006, p.26).

Essa equiparação, ao contrário do consumidor bystander ou da pessoa exposta à prática de consumo levada a efeito pelo fornecedor – arts. 17 e 29 do Código de Defesa do Consumidor, em que o conceito de consumidor é alargado para alcançar pessoas que não participaram diretamente de relação de consumo – a coletividade de pessoas (em geral, associações de consumidores) não está sujeita às práticas de relação de consumo, mas, sim, as pessoas que a integram, as quais realmente realizam diretamente relações de consumo ou a elas estão indiretamente sujeitas – by ou stander: Pessoas sujeitas às práticas de consumo. Assim, cremos que o parágrafo 2ᵒ do Código de Defesa do Consumidor não alargou o conceito de consumidor, ele somente outorgou legitimação processual para esses entes coletivos, tão importantes e caros ao microssistema da regulação das relações de consumo instituído pelo Código de Defesa do Consumidor (ANDRADE, 2006, p.27).

Existe também a figura do consumidor misto, que é aquele em que uma pessoa

física obtém um produto e este, é utilizado na sua vida privada e profissional, e chega-se

a indagação, há uma relação consumerista nesse caso? Ronaldo Andrade aduz que o mais

acertado a se fazer é analisar o assunto segundo o caso concreto (ANDRADE, 2006, p.27-

28).

Neste sentido foi o recente julgamento do Superior Tribunal de Justiça, em que

foi relator o Des. Raul Araújo, julgado na Segunda Câmara:

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. AÇÃO DE INEXIGIBILIDADE DE CHEQUE E DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. CHEQUE FALSIFICADO DADO EM PAGAMENTO. ACIDENTE DE CONSUMO (CDC, ART. 17). CONSUMIDOR POR EQUIPARAÇÃO OU BYSTANDARD. COMPETÊNCIA DO FORO DO DOMICÍLIO DO CONSUMIDOR. 1. Cuida-se de suposto uso de cheque falsificado para pagamento de estadia em hotel, provocando a inscrição do consumidor em serviços de proteção ao crédito e a emergência de danos morais. 2. Configura-se, em tese, acidente de consumo em virtude da suposta falta de segurança na prestação do serviço por parte do estabelecimento hoteleiro que, alegadamente, poderia ter identificado a fraude mediante simples conferência de assinatura na cédula de identidade do portador do cheque. 3. Equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do acidente de consumo (CDC, art. 17). 4. Conflito conhecido para declarar competente o foro do domicílio. (STJ -CC 128079 / MT Conflito de Competência – 2013/0136047-0)

4. Fornecedor

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 07, pp 79-96, mai., 2015.

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Segundo o art. 3ᵒ do Código de Defesa do Consumidor, fornecedor é toda pessoa

física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes

despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação,

construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de

produtos ou prestações de serviços.

“O que efetivamente importa para o conceito de fornecedor é averiguar se a pessoa

que exerce o fornecimento atua efetivamente no mercado de consumo, em polo

contraposto ao do consumidor” (ANDRADE, 2006, p.30).

A estratégia do legislador permite considerar fornecedores todos aqueles que, mesmo sem personalidade jurídica (“entes despersonalizados”), atuam nas diversas etapas do processo produtivo (produção-transformação-distribuição-comercialização-prestação), antes da chegada do produto ou serviço ao seu destinatário final (CAVALIERI FILHO, 2011, p.73).

Será considerado fornecedor, não somente o produtor e o fabricante, mas, os

intermediários também, os transportadores, os comerciantes, o montador, o construtor, o

transformador, o importador, o exportador, o prestador de serviços e outros. Para ser

caracterizada como fornecedor, basta que seja aquele que tire vantagem econômica da

relação de consumo, caracterizando-o como lucros provenientes de atividade empresarial.

4.1 Fornecedor a título gratuito

O fornecedor a título gratuito é aquele que responde pelo fato do serviço ou do

produto gratuito, é uma simulação de relação de consumo que resulta em fatos. Esta

relação é feita por meio de doação, ou seja, o fornecedor é o doador. No entanto se o

consumidor sofrer algum dano, não é por que a relação não foi onerosa que este não será

amparado.

Lembra-se que o Código de Defesa do Consumidor tem por princípio a

vulnerabilidade do consumidor e este tem que ser resguardado. Então, mesmo a relação

sendo gratuito, o fornecedor responderá pelas perdas e danos que a vítima sofreu.

Se a relação consumerista “não caracterizar o fornecimento gratuito, donatário não

poderá reclamar pelos vícios de qualidade do produto, pois não teve qualquer prejuízo e,

não havendo dano, não se abre ao consumidor a possibilidade de pleitear indenização por

perdas e danos” (ANDRADE, 2006, p.31).

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CHAGAS, F. P. B.; SILVA, G. C. M.; RIBEIRO, J. F.

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Entretanto, o mesmo não se pode dizer dos danos provocados pelo fato do produto, ou seja, pelo acidente de consumo, pois nessas hipóteses ficará caracterizada a relação de consumo, estando o consumidor amparado pelas normas protetoras do Código de Defesa do Consumidor, já que o consumidor teve prejuízo em razão do fornecimento. Figuremos a hipótese de um fabricante de panelas doar panelas de pressão a um grupo de pessoas e que uma delas venha a sofrer danos em razão de a panela ter “estourado”. Parece-nos que o fornecedor responderá pelas perdas e danos, nos moldes do art. 12 do CDC, que estabelece a responsabilidade do fornecedor pelo fato do produto, independentemente de culpa. Portanto, ao menos para fins de responsabilidade civil decorrente do fato do produto, o fornecimento gratuito caracterizará relação de consumo e o doador será tido como fornecedor (ANDRADE, 2006, p.31).

Vale lembrar, o fornecedor não responderá pelos vícios encontrados no produto

ou serviço, mas somente pelo fato do serviço ou produto, ou seja, somente pelo acidente

de consumo.

4.2 Fornecedor que exerce finalidade não lucrativa

A pessoa jurídica que tem como atuação a filantropia, a cultura e a religião, não é

considerada fornecedores aos termos do art. 3ᵒ do CDC, por não obterem lucros

monetários de suas ações. No entanto, pode ser considerado como fornecedor quando

vende algum produto ou serviço, para esses fins ele responderá como fornecedor, mas se

prestar serviço como voluntário, não oneroso, não será considerado fornecedor, exceto na

responsabilidade pelo fato do produto ou serviço (ANDRADE, 2006, p.34).

“Todavia, se houver qualquer espécie de remuneração, a entidade será considerada

fornecedora, nos termos do CDC” (ANDRADE, 2006, p.34).

Dessa forma, […] se um clube ou uma sociedade beneficente é fornecedor quando vende produtos em sua lanchonete, quando efetua vendas na realização de bazar, ainda que beneficente, o mesmo ocorrendo na prestação de serviços, como assistência médica e hospitalar, orientação para construção de imóveis etc. (ANDRADE, 2006, P.34).

4.3 A Administração Pública como Fornecedora

“A administração pública direta e indireta não se enquadra no conceito de fornecedor,

uma vez que não atua no mercado econômico para fornecer produto ou serviço com

intuito de perceber lucro” (ANDRADE, 2006, p.37).

É sabido, que os entes atuam na relação consumerista, no fornecimento de

produtos e serviços, “mas essa atuação no mercado de consumo, na maior parte das vezes

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 07, pp 79-96, mai., 2015.

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não poderá ser qualificada como relação de consumo, por ter caráter institucional”

(ANDRADE, 2006, p.37).

Na esfera pública, há serviços que se incluem entre aqueles regulados por este Código. Merecem destaque os serviços prestados ao público e em obediência a uma tarifa. Tais serviços (energia elétrica, água, esgoto, limpeza pública, operações portuárias etc.) são prestados diretamente pelo poder público ou por intermédio de concessionários (SAAD et al, 2006, p.90).

Enquadrar-se-á em relação de consumo, aqueles casos em que a administração

pública fornece serviço mediante remuneração. “Quando o Poder Público presta serviços

não enquadráveis como direitos sociais, cobrando remuneração, atua no mercado

econômico como fornecedor” (ANDRADE, 2006, p.39).

“No caso do serviço público, quando há concessão para o particular – telefonia,

administração de estradas etc. -, este é enquadrado no conceito de fornecedor”

(ANDRADE, 2006, p.39).

5. Conceito de Produto

A Relação de consumo é pautada em um triângulo, o fornecedor o polo mais forte

da relação, o consumidor o polo mais vulnerável, e o produto ou serviço que é o objeto

da relação de consumo (ANDRADE, 2006, p.40).

O art. 3o, Parágrafo 1o do CDC define produto como qualquer bem, móvel ou

imóvel, material ou imaterial.

Em princípio, qualquer bem pode ser considerado produto, desde que resulte de atividade empresarial em série de transformação econômica. Quanto aos bens do setor primário, tal como são os de natureza agrícola, entende-se que serão incluídos sob a esfera do Código de Defesa do Consumidor, desde que tenham sofrido transformação por intervenção do trabalho humano ou mecânico (CAVALIERI FILHO, 2011, p.75).

“O vocábulo produto […] indica a intenção do legislador de tornar a lei mais

compreensível aos que nela atuam e, por isso, produto é utilizado em seu sentido

econômico e universal, isto é, aquilo que resulta do processo de produção ou fabricação”

(CAVALIERI FILHO, 2011, p.75).

6. Conceito de Serviço

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CHAGAS, F. P. B.; SILVA, G. C. M.; RIBEIRO, J. F.

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O art. 3o, parágrafo 2o do Código de Defesa do Consumidor define serviço, como

qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive

as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das

relações de caráter trabalhista.

Serviço é o desempenho de alguma atividade diversa do fornecimento de bens ou produtos. Assim, temos uma variada gama de serviços que vão de atividades intelectuais de consultoria a trabalhos braçais de limpeza ou construção civil. Em realidade, serviço é a execução de uma ação humana, que na economia apresenta-se como um setor distinto e bastante lucrativo, pois proporciona a criação de empresas que organizam determinada atividade para atuar no mercado de consumo, a fim de suprir as necessidades do homem moderno, que em geral não tem tempo ou conhecimento para desenvolver determinada atividade (ANDRADE, 2006, p.42).

“A empresa, quando aparece como consumidor de serviços autônomos, deve ter a

cautela de escolher profissional ou sociedade de profissionais que estejam em condições

de responder por eventuais vícios ou defeitos do serviço prestado” (SAAD et al, 2006,

p.91).

“Em se tratando de pessoa física, no caso, verificar se ela exerce a atividade como

profissional e que não é um diletante que, de quando em vez, desempenha tal função”

(SAAD et al, 2006, p.91).

7. Considerações Finais

Conclui-se que na relação de consumo é de vital importância, a aplicabilidade dos

princípios constitucionais explícitos, e dos princípios aplicáveis à relação de consumo.

Salienta-se que esses princípios se interligam, tendo por base a dignidade humana do

consumidor, pois somente assim, este poderá participar satisfatoriamente no mercado

consumerista.

Outro ponto suscitado, que se mostra de grande relevância para relação

consumerista, é a possibilidade do consumidor por equiparação, pois é uma forma de

proteger da relação mercadológica aqueles que nada tem haver com ela. E, ao se

considerar essa vítima da relação como consumidor equiparado, estará aplicando

juntamente o princípio da vulnerabilidade, pois, por meio deste, àquele que afetou a

vítima terá que repará-la com perdas e danos, mesmo não tendo uma relação direta de

consumo com ela.

E por último, a possibilidade da Administração Pública Direta ou Indireta de

figurar como Fornecedora na relação de consumo. Pois, sabe-se que esta presta serviços,

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 07, pp 79-96, mai., 2015.

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mas quanto a estes, ela não pode ser considerada fornecedora, pois são atividades

institucionais, elencados na Constituição Federal. No entanto, a possibilidade desta ser

fornecedora é somente na prestação de serviços que não estão ligadas a sua atividade

típica.

Referências Bibliográficas

ANDRADE, Ronaldo Alves de. Curso de direito do consumidor. 1. ed. Barueri: Manole, 2006. BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2012. BORGES, Rosângela Mara Sartori. UNOPAR Científica: Ciências Jurídicas e Empresariais / Coordenadoria de Pesquisa de Pós-Graduação, Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, Universidade Norte do Paraná. Vol. 1, n.1 (Mar. 2000). Londrina: UNOPAR, 2000, p.30 - 32. CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de direito do consumidor. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011. LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Mariana de Andrade. Fundamentos da Metodologia científica. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006. NUNES,Luis Antonio Rizzato. Curso de direito do consumidor. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. OLIVEIRA, James Eduardo. Código de defesa do consumidor: anotado e comentado: doutrina e jurisprudência. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2009. SAAD, E. G.; SAAD, J. E. D.; BRANCO, A. M. S. C. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor e sua jurisprudência anotada: Lei n. 8.078, de 11.9.90

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MOREIRA, J. V. (Org.). Caderno de Resumos.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir UFJF, v. 05, n. 07, pp. 97-106, mai., 2015.

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MOREIRA, J. V. (Org.). Caderno de Resumos.

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Caderno de resumos:

XXX Encontro Mineiro dos Estudantes de Direito

A sétima edição do Periódico Alethes é especial. Ela marca 5 anos de sua

inauguração, se mostrando mais forte do que nunca em seus propósitos, mas também

temos a oportunidade de ampliar nosso rol de publicações acadêmicas nessa edição

através deste caderno de resumos. Nada mais oportuno do que celebrar esse momento

com os resumos dos trabalhos científicos apresentados no Encontro Mineiro dos

Estudantes de Direito. Em sua trigésima edição, esse tradicional evento sedia não somente

espaços de encontro entre alunos e alunas do estado de Minas Gerais e suas tradicionais

comemorações, não obstante traz em seu corpo um espaços onde o pensar científico é

possibilitado que são os Grupos de Trabalho. Sob a temática de a crise do direito,

percebemos como os alunos e alunas são capazes de criar de forma diversa trabalhos

primorosos, muitos deles dialogando com temas tão complexos e de incipiente discussão

no cenário nacional como é o caso de A insuficiência do Estado como única instância

para promoção de justiça.Alguns desses artigos podem ser conferidos na íntegra nessa

sétima, ao passo que outros não foram designados para publicação, mas julgamos

extremante justo publicar seus resumos.

Nesse sentido, vale a pena observa o conteúdo trabalhado por alunos e alunas de

universidade diversas, como a UFLA, PUC-Minas, Instituto Vianna Junior e UFJF, e

perceber a maneira como não existe medo de se mergulhar no vasto mundo do pensar,

faculdade necessária para nos emanciparmos de uma lógica alienante que impera na

formação acadêmica dos alunos e das alunas de Direito. Por isso, devemos louvar, assim

como os autores e autora abaixo, nos mergulhar sem medo neste oceano de possibilidades

que o pensar científico nos proporciona e nos tornamos sujeitos comprometidos com uma

vida ética que inscreva nas práticas da vida cotidiana o valor justiça, pois esse é um dos

motivos de existir ciência.

João Vítor de Freitas Moreira Editor de Publicação Da Alethes

Organizador do Caderno de Resumos do EMED

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir UFJF, v. 05, n. 07, pp. 97-106, mai., 2015.

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MOREIRA, J. V. (Org.). Caderno de Resumos.

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A insuficiência do Estado como única instância para promoção de justiça

The State failure as single instance for accomplishment of justice

Pedro Henrique Borges Viana1

Resumo Busca-se, através deste artigo, questionar o papel do Estado como única instância

responsável pela realização e efetivação de justiça, idealcaríssimo aos intérpretes do Direito. A filosofia de um “Estado justo”, tão presente nas teorias liberais, aqui analisadas sob a perspectiva de John Rawls, mostra-se altamente falha quando transportada para o contexto transnacional de uma sociedade moderna e globalizada. Serão analisadas no artigo a crítica comunitária feita ao nacionalismo do liberalismo igualitário, a crítica de Honneth ao esquema de justiça distributiva das teorias dominantes e, por fim, a crítica de Fraser à dicotomia redistribuição e reconhecimento e sua defesa de um enquadramento adequado dos níveis de justiça. As prerrogativas ora expostas levarão a uma breve reflexão sobre os contornos de uma teoria de justiça global, não mais sustentada apenas no Estado como sua única instância para sua efetivação.

Palavras-chave: Teorias da Justiça. Estado. Liberalismo. Reconhecimento. Justiça Global.

Abstract The aim is to, through this paper, question the role of the State as the only authority

responsible for carrying out and enforcing justice, significant ideal to the law interpreters.The philosophy of a "Fair State", present in liberal theories, here analyzed from the perspective of John Rawls, shown highly flawed when transported to the transnational context of a modern, globalized society.Will be analyzed in this paper the communitarianism criticism made to nationalism of egalitarian liberalism, Honneth's criticism to distributive justice scheme of the dominant theories and, finally, Fraser's criticism of the dichotomy between redistribution and recognition and her defense of a reframing of levels justice. Exposed prerogatives in this paper will lead to a brief reflection on the contours of a global theory of justice, not only sustained the State as the only forum for its implementation.

Keywords: Theories of Justice. State. Liberalism. Recognition. Global Justice.

1 Graduando do curso de Direito da Universidade Federal de Lavras, bolsista do Programa de Educação Tutorial (PETI Direito) e membro do Núcleo de Estudos em Direito e Relações Internacionais - NEDRI.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir UFJF, v. 05, n. 07, pp. 97-106, mai., 2015.

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A crise de representatividade no movimento estudantil brasileiro através do aparelhamento político partidário

André Dell’IsolaDenardi2 Resumo: O presente artigo tem por escopo estudarcomo o aparelhamentopolítico partidário

das entidades de representação estudantil nos diferentes níveis de ensino (fundamental, médio e superior) tem contribuído negativamente para a efetiva defesa dos estudantes brasileiros, gerando uma crise endêmica de representatividade do corpo discente. Para tanto, será analisado o conceito de “aparelhamento”, observando sua incidência emdiferentes entidades de representação estudantis, entre as quais a União Nacional dos Estudantes, a Federação Nacional dos Estudantes de Direito e o Diretório Central dos Estudantes da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – Campus Coração Eucarístico. Apresentadas estas evidências, serão analisadas possíveis formas de superação deste status quo, concluindo-se que a perpetuação do fenômeno do aparelhamentonão apenas reduz a pauta de interesses dos estudantes como também os afasta das entidades que deveriam representa-lo. Pretende-se que este estudo contribua para conduzir o leitor a uma reflexão crítica sobre seu papel no movimento estudantil, encorajando-o a se envolver no mesmo e fortalecendo as representações discentes através da liberdade de pensamento e autonomia institucional.

Palavras-Chave: Movimento Estudantil, Aparelhamento, Democracia.

Abstract: The following article has the goal of studying how the party-political rigging of

student representation entities in different s schooling levels (primary, high school and university) had been negatively contributed for the effective defense of Brazilian students, generating an endemic representative crisis among the student body. For this purpose, an analysis about the concept of “rigging” was made, observing it’s incidence in different entities of student’s representation, including the National Union of Students, the Nacional Federations Of Law Students and the Student’s Central Directory of the Catholic Pontific University of Minas Gerais – CoraçãoEucarístico’s Campus. After the presentation of these evidences, different forms of solutions to overcome this status quowere made, concluding that the perpetuation of the “rigging” phenomenon not only reducesthe student’sinterest staves but also shove them away from the entities that should represent them. The study’s result contributes to conduce the lector to a critical reflection about his role in the student’s movement, encouraging him to get involved, strengthening the students representations through freedom of thought and institutional autonomy.

Keywords: Student’s Movement, Rigging, Democracy.

2 Graduando em Direito pela PUC-Minas e Ciências do Estado pela UFMG.

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MOREIRA, J. V. (Org.). Caderno de Resumos.

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A Toponímia Urbana como Monumento e como Documento:

Ressignificando a Memória sobre as Graves Violações de Direitos Humanos Ocorridas no Brasil Durante a Ditadura Civil-Militar de

1964 Urban Toponymy as Document and Monument: Resignfyng the Memory on Human Rights Violations in Brazil During the Milita ry Dictatorship of 1964

Arthur Barretto de Almeida Costa3

Resumo: No presente trabalho, buscamos analisar as recentes controvérsias acerca da

mudança dos nomes de lugar que homenageiam agentes do governo do período do regime militar à luz da teoria da história e de toponímia. Em primeiro lugar, estabelecemos a relação entre a toponímia urbana e o poder político, usando, para isso, dos conceitos de monumento e documento de LE GOFF e de FOUCAULT. Posteriormente, olhamos para as tendências atuais da persecução da assim chamada Justiça de Transição no Brasil, bem como da busca pelo Direito à Memória e à Verdade, trazendo a tona a importância de procedimentos simbólicos de reparação das vítimas das violações de direitos humanos e de construção da memória coletiva. A título de considerações finais, discorremos sobre a necessidade de revisão da nomenclatura de algumas ruas, com a troca de alguns e possível manutenção de outros.

Palavras-Chave: Toponímia Urbana. Memória Coletiva. Direito à Memória e à Verdade. Regime Militar. Monumento e Documento.

Abstract: In this work, we analyze the recent controversies regarding the change of place

names in honor of agents from the Military Government in Brazil (1964-1985) using the Theory of History and the Toponymy. First, we establish the relations between urban toponymy and political power, using the concepts of document and monument from LE GOFF and FOUCAULT. Later, we look at contemporary tendencies on the so-called transitional justice in Brazil, as well the challenge of the Right to Memory and Truth, bringing the importance of symbolic reparation procedures of human rights violations victims and building collective memory. As final considerations, we argue about the need of revision of street names, changing some of them and possible keeping others.

Key words: Urban Toponymy. Collective Memory. Right to memory and Truth. Brazilian Military Regime. Monument and Document.

3 Graduando em Direito pela UFMG

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir UFJF, v. 05, n. 07, pp. 97-106, mai., 2015.

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Aplicação das ferramentas de Gestão Legal para um melhor posicionamento no mercado.

Application of Legal Management tools for a better position in the market. Mariana Lacerda Lima4

Murilo Venelli Pyles2

Resumo: O presente trabalho analisa a advocacia empreendedora em tempos de ampla

concorrência observada no mercado jurídico brasileiro. Demonstra a possibilidade de tornar a advocacia um grande negócio trazendo exemplos de cases de sucesso. Elenca as principais ferramentas de gestão aplicáveis à escritórios de advocacia, ensinando os profissionais de Direito a otimizarem a prestação dos serviços jurídicos de forma a aumentar a sua capacidade produtiva e planejar os rumos de sua banca, afastando a aleatoriedade do mercado . Traz ainda o perfil dos escritórios e advogados mais admirados no mercado, bem como os fatores mais observados pela clientela empresarial.

Palavras-chave: Gestão jurídica. Gestão Escritório. Advocacia.

Abstract: This paper analyzes the entrepreneurial law in times of wide competition observed

in the Brazilian legal market. Demonstrates the possibility of making the law a great deal bringing examples of successful cases. It lists the main management tools applicable to law firms, teaching law professionals to optimize the provision of legal services in order to increase they production capacity and plan the course of your bankroll, removing the randomness of the market. It also presents the profile of the most admired firms and lawyers in the market as well as the factors most observed by the business clientele.

Keywords: Legal management. Office management. Advocacy.

4 Discente do 5º período de Direito no Instituto Vianna Júnior. Consultora de marketing na empresa Vianna Consultoria Júnior. 2 Discente do 7º período de Direito no Instituto Vianna Júnior. Diretor presidente na empresa Vianna Consultoria Júnior.

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MOREIRA, J. V. (Org.). Caderno de Resumos.

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Ativismo judicial no cenário brasileiro e os limites do poder judiciário Judicial activism in Brazil and the limits of the judiciary

Fernanda Lima de Carvalho5

Rafael Carrano Lelis6

Resumo: Este artigo pretende fazer uma análise do ativismo judicial no Supremo Tribunal

Federal (STF), sua prática dissimulada e suas consequências. Para tanto, são estudados dois casos apreciados pelo Supremo em que se julga ter havido ativismo: o Mandado de Segurança (MS) 26602 – que versa a respeito da fidelidade partidária - e a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.277 – que tem como temática central a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Procura-se contrastar um caso considerado como retrógrado na interpretação da lei (da fidelidade partidária) com outro de claro avanço na concessão de direitos (da união estável homoafetiva) para indicar que, nos dois casos, o meio que se utilizou para atingir o fim desejado é tortuoso e um claro atentado à democracia. O artigo pretende, por fim, responder à seguinte pergunta: qual o risco de o Poder Judiciário brasileiro tomar decisões por meio da ampliação interpretativa (ativismo) dos próprios poderes?

Palavras-chave: Supremo Tribunal Federal. Ativismo judicial. Limites do Poder Judiciário.

Abstract: This article intends to analyze the judicial activism of the “Supremo Tribunal

Federal” (Brazilian Supreme Court), its covert practice and its consequences. For that much, two cases judge by the Supreme Court will be studied: the Security Warrant 26602 – that discourses about the party fidelity – and the Direct Action of Unconstitutionality 4.277 – which has the civil union between two people of the same gender as its mainly theme. It seeks to contrast one case considered as a way of retrocession in law interpretation(the first one) against another of clear progress in the concession of rights (the second one) to point that, in both cases, the mean to get to the intended end is tortuous and clearly a attempt towards democracy. The article intends, at last, to answer the following question: what is the risk of the Brazilian Judiciary making decisions by an expanded interpretation (activism) of its own power?

Keywords: Supremo Tribunal Federal. Judicial activism. LimitsoftheJudiciary.

5Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora. 6Graduando em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir UFJF, v. 05, n. 07, pp. 97-106, mai., 2015.

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Assessorias Jurídicas Populares como meio de efetivação dos direitos7 Popular Legal consulting as a way of rights' implementation

João Vitor de Freitas Moreira8 Vanessa Lopes9

Resumo: O presente trabalho se propõe a fazer uma abordagem das Assessorias Jurídicas

Populares – AJUPs – como novos meios de efetivação de direitos, tendo em vista a arcaica estrutura de ensino das universidades brasileiras. Para tanto, cunha-se uma metodologia combinando a ideia da pesquisa-ação de Gustin & Dias com a ecologia dos saberes proposta por Boaventura de Sousa Santos. A partir dessas determinações metodológicas, analisa-se dois estudos de caso que fornecerão substrato para as inferências realizadas, bem como comprovarão a hipótese levantada. Assim, conclui-se, por fim, em sentido de ampliar-se o significado de uma assessoria popular inseridas em um contexto crítico de efetivação de direitos.

Palavras-chave: Assessoria Jurídica Popular. Ensino Jurídico. Efetivação dos direitos.

Abstract: The present paper aims to establish an approach of Popular Legal Counseling –

AJUPs – as a new model of rights foundation, taking into account the archaic structure of education process in Brazilian universities. In order to create a new methodology to analysis the concrete case, it combines the theoretical point of view based on ecology of knowledges by Boaventura de Sousa Santos with the action-research developed by Gustin & Dias. Considering the methodology established, it analysis two cases that it will provide the bases to inferences as well as it will testify the initial hypothesis. Thus, it will be conclude in order to amplify the meaning of Popular Legal Counseling in a critical context of rights enforcement.

Keywords: Popular Legal Counseling. Legal Education. Rights enforcements.

7 Agradecemos as integrantes e aos integrantes do Núcleo de Assessoria Jurídica Popular Gabriel Pimenta por suas contribuições neste trabalho, especialmente por nos permitir analisar alguns dos seus projetos. 8 Acadêmico do curso de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora, assessor no Núcleo de Assessória Jurídica Popular Gabriel Pimenta (NAJUP GP). [email protected] 9 Acadêmica do curso de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora, assessora no Núcleo de Assessória Jurídica Popular Gabriel Pimenta (NAJUP GP). [email protected]

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CARVALHO, F. L.; LELIS, R. C. Ativismo Judicial...

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Ativismo Judicial no Cenário Brasileiro e os Limites do Poder Judiciário:

Casos emblemáticos do STF Judicial activism in Brazil and the limits of the judiciary: emblematic cases

of Brazilian Supreme Court Fernanda Lima de Carvalho1 Rafael Carrano Lelis2

Resumo Este artigo pretende fazer uma análise do ativismo judicial no Supremo Tribunal

Federal (STF), sua prática dissimulada e suas consequências. Para tanto, são estudados dois casos apreciados pelo Supremo em que se julga ter havido ativismo: o Mandado de Segurança (MS) 26602 – que versa a respeito da fidelidade partidária - e a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.277 – que tem como temática central a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Procura-se contrastar um caso considerado como retrógrado na interpretação da lei (da fidelidade partidária) com outro de claro avanço na concessão de direitos (da união estável homoafetiva) para indicar que, nos dois casos, o meio que se utilizou para atingir o fim desejado é tortuoso e um claro atentado à democracia. O artigo pretende, por fim, responder à seguinte pergunta: qual o risco de o Poder Judiciário brasileiro tomar decisões por meio da ampliação interpretativa (ativismo) dos próprios poderes?

Palavras-chave: Supremo Tribunal Federal. Ativismo judicial. Limites do Poder Judiciário.

Abstract This article intends to analyze the judicial activism of the “Supremo Tribunal

Federal” (Brazilian Supreme Court), its covert practice and its consequences. For that much, two cases judge by the Supreme Court will be studied: the Security Warrant 26602 – that discourses about the party fidelity – and the Direct Action of Unconstitutionality 4.277 – which has the civil union between two people of the same gender as its mainly theme. It seeks to contrast one case considered as a way of retrocession in law interpretation (the first one) against another of clear progress in the concession of rights (the second one) to point that, in both cases, the mean to get to the intended end is tortuous and clearly a attempt towards democracy. The article intends, at last, to answer the following question: what is the risk of the Brazilian Judiciary making decisions by an expanded interpretation (activism) of its own power?

Keywords: Supremo Tribunal Federal. Judicial activism. Limits of the Judiciary.

1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora. 2 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 07, pp 107-124, mai., 2015.

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Introdução

O Judiciário brasileiro tem assumido, cada vez mais, uma postura ativista,

extrapolando os limites do próprio órgão, que são assegurados pela Constituição. Dessa

forma, concede novas direções ao que está previsto no texto constitucional para temas

como política, religião, moral e ciência. Faz-se necessário, pois, analisar casos em que

houve tal ativismo a fim de se entender até que ponto esse comportamento pode ser

benéfico ou prejudicial para a sociedade, levando-se em consideração que a Constituição

deve corresponder à singularidade do tempo presente, mas que é, ao mesmo tempo,

instrumento de garantia e previsibilidade dos direitos dos cidadãos, o que implica a

necessidade de não serem feitas mudanças drásticas no seu texto ou interpretações que

deturpem o que é por ela previsto.

Tendo isso em vista, o presente artigo se inicia, visando evitar a “prática corrente

de se criticar ou festejar o ativismo judicial sem defini-lo” (MACHADO, 2008), com uma

definição do que considera ser o ativismo judicial, para, posteriormente, proceder à

análise de dois casos emblemáticos na história do Supremo Tribunal Federal (STF). O

primeiro será o MS 26602, de relatoria do Ministro Eros Grau, que versa a respeito da

fidelidade partidária; o segundo, a ADI 4.277, relatada por Carlos Ayres Britto, que

possibilitou a união estável homoafetiva.

O caso da fidelidade partidária foi escolhido, em especial, por algumas de suas

características ímpares: ter sido um marco de mudança jurisprudencial, em sentido

oposto, do próprio STF; ser um caso com ligação direta à política, vista a matéria sobre a

qual versa, que será à frente detalhada; configurar um caso de explícita ampliação dos

poderes do Judiciário, tendo sido tomada a decisão sem embasamento no texto

constitucional e apenas sendo considerada a interpretação dos Ministros. Por outro lado,

o caso da união estável homoafetiva foi selecionado, pois, não obstante tenha sido

amplamente aceito por grande parte da população e se mostrado como um avanço na

garantia dos direitos de minorias, o texto constitucional foi, novamente, desrespeitado,

mostrando-se um grande risco à democracia brasileira.

A análise dos dois casos se dará a partir da seguinte estrutura: contextualização do

caso, precedentes do STF (quando houver), superação dos próprios precedentes pela Alta

Corte (caso haja) e interpretação ampliativa dos próprios poderes.

Destarte, numa tentativa de problematização da atuação judicial, este artigo

pretende responder ao seguinte questionamento: qual o risco de o Poder Judiciário

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CARVALHO, F. L.; LELIS, R. C. Ativismo Judicial...

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brasileiro tomar decisões por meio da ampliação interpretativa (ativismo) dos próprios

poderes?

1 Definição de ativismo judicial

Para que se possa realizar a devida análise crítica de casos de ativismo judicial no

Brasil pelo Supremo Tribunal Federal é necessário que, de antemão, conceitue-se ou, em

virtude de certa dificuldade apresentada com a expressão, defina-se, para efeitos do

desenvolvimento deste artigo, o que seria o “ativismo judicial”.

Como dito, há enorme dificuldade em se conceituar, com exatidão, o termo

“ativismo judicial”. Nesse sentido, a Professora Joana de Souza Machado nos presta um

pequeno esclarecimento:

A expressão “ativismo judicial” já foi utilizada por conservadores como referência pejorativa a jurisdições de perfil liberal; não escapou, ainda, da apropriação dos liberais, que, por sua vez, usaram-na para fazer menção negativa a jurisdições de perfil conservador, como se verá adiante. A variedade de significados e usos do termo “ativismo judicial” explica-se, primeiramente, pelo caráter histórico da preocupação com o adequado exercício da função jurisdicional. Essa preocupação aparece em diversos contextos históricos, cada qual com motivações próprias, que ditaram a evolução no emprego da ideia de uma jurisdição ativista. (MACHADO, 2008)

Sendo assim, com vistas à facilitação e compreensão de forma didática daquilo

que será abordado pelo artigo, coloca-se a definição que pareceu de maior coerência:

considera-se ativismo judicial, para efeitos deste artigo, decisões tomadas pelo Poder

Judiciário, de caráter conservador ou liberal, na maioria das vezes sem embasamento

categórico do texto legal, que invadam a esfera de outros poderes (Legislativo e

Executivo).

2 Caso da fidelidade partidária

a) Contextualização do Caso

Um dos casos aqui examinados (ementa em anexo), o MS 26602, julgado junto a

dois outros mandados de segurança (MS 26603, MS 26604), foi impetrado, diante do

STF, pelo Partido Popular Socialista (PPS) contra ato do Presidente da Câmara dos

Deputados.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 07, pp 107-124, mai., 2015.

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O partido havia requerido ao Presidente da Câmara “a posse dos deputados

suplentes nas vagas pertencentes ao Partido Popular Socialista decorrentes da desfiliação

dos deputados” (BRASIL, STF, 2007), fazendo menção à decisão afirmativa do Tribunal

Superior Eleitoral (TSE) referente à consulta nº 1.389, contendo a seguinte indagação:

Os partidos e coligações têm direito de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda? (BRASIL, TSE, CTA nº 1389/DF)

O Presidente da Câmara dos Deputados negou o pedido feito pelo partido,

alegando o fato de o argumento apresentado – os deputados serem trânsfugas e ferirem a

fidelidade partidária – não constar em nenhuma das hipóteses do art. 56, § 1º da

Constituição, que dispõe a respeito da convocação de suplentes. Diante da negativa, o

partido impetrou o MS, requerendo a declaração de vacância do cargo dos deputados

eleitos pelo PPS que deixaram o partido.

b) Precedentes do Supremo Tribunal Federal

O Supremo Tribunal Federal havia, em 1989, no julgamento do MS 20927,

defendido que a infidelidade partidária não configuraria causa para perda de mandato. O

MS foi requerido pelo terceiro suplente e exigia a perda do mandato do segundo suplente,

que assumiria em decorrência de vacância de cargo de deputado. O impetrante afirmava

que o segundo suplente havia se desvinculado do partido pelo qual concorreu nas eleições

de 1986 para se filiar a outro partido nas eleições municipais de 1988. Para o terceiro

suplente, o desligamento do segundo suplente do partido pelo qual concorreu em 1986

seria razão para que este perdesse o poder de assumir o mandato de deputado, tendo o

impetrante baseado seu requerimento na fidelidade partidária, segundo dispõe a ementa:

Mandado de Segurança. Fidelidade Partidária. Suplente de Deputado Federal. Em que pese o princípio da representação proporcional e a representação parlamentar federal por intermédio dos partidos políticos, não perde a condição de suplente o candidato diplomado pela Justiça Eleitoral que, posteriormente, se desvincula do partido ou aliança partidária pelo qual se elegeu. A inaplicabilidade do princípio da fidelidade partidária aos parlamentares empossados se estende, no silêncio da Constituição e da lei, aos respectivos suplentes. Mandado de lei indeferido. (BRASIL, STF, 1989)

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CARVALHO, F. L.; LELIS, R. C. Ativismo Judicial...

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O MS 20927 foi indeferido. Na ocasião do julgamento, de relatoria do Ministro

Moreira Alves, o STF afirmou que o candidato que se diplomou suplente pela Justiça

Eleitoral e que, posteriormente às eleições, desligou-se do partido pelo qual se elegeu não

perde a condição de suplente, podendo, assim, assumir o cargo em caso de vacância. Com

isso, a jurisprudência do STF determinou que o cargo pertenceria ao candidato, e não ao

partido; ou seja, a infidelidade partidária não configuraria causa para a perda de mandato.

c) Superação dos Próprios Precedentes

Em decisão publicada em 04 de outubro de 2007, o Supremo Tribunal Federal

indicou a brusca mudança de sua própria jurisprudência, declarando a troca de partido de

titular de mandato eletivo como motivo justificado para a perda do mandato por esse

parlamentar; reconhecendo, portanto, a proteção da fidelidade partidária pela

Constituição de 1988.

A partir dessa decisão, o STF desconstruiu a sólida jurisprudência desse mesmo

Tribunal, primeiramente formulada no julgamento do MS 20927, no ano de 1989, que

decidiu que a mudança de partido pelo titular do mandato ou pelo suplente não se

configurava como motivo para a perda do mandato.

Dessa forma, ao se definir o veredicto, por maioria de votos (vencidos os

Ministros Eros Grau, Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski), do MS 26602, o

Supremo Tribunal Federal reconheceu, pela primeira vez desde o advento da Constituição

de 1988, a fidelidade partidária como garantia constitucional; tendo, inclusive, alguns dos

Ministros mudado sua opinião antes incisivamente apresentada. Nesse sentido, no seu

voto do mandado de segurança aqui apreciado, o Ministro Ricardo Lewandowski lembrou

a mudança de posição do também Ministro Gilmar Mendes, que, quando relator do MS

23405, de 22 de março de 2004, tratando de tema similar, ressaltou:

Embora a troca de partidos por parlamentares eleitos sob regime da proporcionalidade revele-se extremamente negativa para o desenvolvimento e continuidade do sistema eleitoral e do próprio sistema democrático, é certo que a Constituição não fornece elementos para que se provoque o resultado pretendido pelo requerente. (BRASIL, STF, 2007)

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 07, pp 107-124, mai., 2015.

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Essa mudança radical no posicionamento, como ilustrado pelas palavras do

Ministro Gilmar Mendes, revela que a análise do texto constitucional passou a ser feita

de modo diferente, superando precedentes do próprio STF.

Diante dessa mudança inusitada de orientação na Alta Corte, ressalta-se o prejuízo

à segurança jurídica (BOBBIO, 1986), uma vez que os deputados que mudaram de partido

o fizeram pensando ter respaldo da Constituição e das decisões do Supremo. Nesse

sentido, o jurista francês Antoine Garapon ressalta: “é preferível uma regra injusta mas

previsível do que uma justiça dependente da personalidade de um juiz” (GARAPON;

PAPADOPOULOS, 2008). Ademais, como levanta o próprio Garapon, uma mudança de

jurisprudência, como essa, em direção oposta, é característica da tradição da Common

Law, e não da Civil Law que é praticada no Brasil:

Em casos muito excepcionais, a jurisdição suprema pode tomar a direção oposta da jurisprudência. Se a regra do precedente, do stare decisis, tem por objetivo garantir uma certa segurança jurídica, a diferenciação e essa inflexão dão à common law uma relativa flexibilidade. (GARAPON; PAPADOPOULOS, 2008)

d) Interpretação Ampliativa dos Próprios Poderes

A mudança de jurisprudência pelo Supremo Tribunal Federal, em relação à

fidelidade partidária, não só chama a atenção pela alteração repentina e contrastante do

seu entendimento, mas também pela interpretação ampliativa dos próprios poderes, como

foi alertado, logo no início de seu voto, pelo relator Eros Grau:

Resulta bem nítido, aliás, o desígnio nutrido pelo impetrante, no sentido de que o Supremo Tribunal Federal crie, por via oblíqua, hipótese de perda de mandato não prevista no texto constitucional. Pretende transformar este Tribunal em legislador, trilhando a estreita via do mandado de segurança. (BRASIL, STF, 2007)

Fica claro que o STF despreza, por exemplo, o disposto no § 1º do art. 17 da

Constituição (com redação da emenda constitucional nº 52, publicada em 2006, ou seja,

bem atual e próxima à data do julgamento, não se podendo alegar distanciamento de

realidade), que designa, explicitamente, aos partidos o estabelecimento, em seus

estatutos, de “normas de disciplina e fidelidade partidária”. Também não atenta para a

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ausência da infidelidade partidária no art. 55 da Constituição, que elenca as situações de

perda de mandato.

Sendo assim, ao tomar tal decisão em caso de extrema interferência política,

revela-se a contaminação do judiciário na sua interpretação da própria Constituição,

apontando não para uma fidelidade ao texto, mas para uma tomada de decisão definida

pelas crenças e ideais pessoais; podendo-se identificar, até mesmo, invasão na esfera do

legislador.

O mais agravante de tal decisão, além de ferir a democracia, visto que os juízes

contrastam decisão tomada pelos parlamentares – democraticamente eleitos pelo povo –,

é a forma como ela é tomada, dissimuladamente, de maneira a esconder a ampliação dos

próprios poderes, como é brilhantemente levantado por Jeremy Waldron:

Um juiz, quando legisla no direito consuetudinário (se é isso que ele faz) tem, pelo menos, a gentileza de fingir que está descobrindo o que a lei era o tempo todo: ele não se apresenta explicitamente como legislador. Na verdade, como todos nós sabemos, a lei é mudada todos os dias nos nossos tribunais de recursos, mas, na maioria das vezes, é mudada sob o disfarce de uma decorosa simulação, de que nada podia estar mais distante da nossa mente, ou da mente do tribunal, que uma aspiração legislativa. (WALDRON, 2003)

Ademais, é válido que se frise a incoerência do veredicto do Supremo, tendo em

vista contradições do próprio STF em relação a seus argumentos. Três são os pontos que

explicitam a incoerência:

1) segundo a Resolução nº 22.610 do TSE, de relatoria do Ministro Cezar

Peluso, § 1º, inciso II, caso a desfiliação do parlamentar seja em função de criação

de novo partido, caracteriza-se como justa causa, não ocasionando perda do

mandato. Nesse caso, mesmo o Supremo ressaltando o pertencimento do mandato

ao partido, há troca de partido e o mandato não é perdido, desqualificando o

argumento da própria Suprema Corte;

2) em caso de renúncia do titular do mandato eletivo e de o primeiro

suplente não poder assumir devido à troca de partido, é possível uma situação na

qual o segundo suplente, que virá a assumir o cargo, seja do mesmo partido que

aquele de destino do parlamentar que teve o seu mandato suspenso. Isso ocorre

por falha do sistema proporcional como é aplicado no Brasil (não cabendo, no

entanto, problematizar aqui tal sistema);

3) segundo o AgR-Inq nº 2453/MS, de relatoria do ministro Ricardo

Lewandowski, de 17 de maio de 2007, aquele suplente que trocar de partido, mas

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 07, pp 107-124, mai., 2015.

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que, na época da posse do cargo, tiver se refiliado ao partido de origem, tem o

direito de assumir normalmente o mandato. Tal decisão descaracteriza, portanto,

qualquer possibilidade de que o parlamentar seja vinculado a algum tipo de

ideologia, característica há muito desvanecida no cenário brasileiro, no qual não

é mais possível se identificar ideologia partidária fidedigna nos trinta e dois

partidos existentes no país, que constantemente trocam seus ideais.3

3 Caso da união estável homoafetiva

a) Contextualização do caso

A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) de número 4.277 (ementa em

anexo) foi proposta pela Procuradoria-Geral da República e julgada junto à Arguição de

Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) de número 132 – essa última proposta

pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro.

O objetivo da proposição de tal ação pela Procuradoria-Geral da República

era que o STF declarasse:

a) Que é obrigatório o reconhecimento, no Brasil, da união de pessoas do mesmo sexo, como entidade familiar, desde que atendidos os requisitos exigidos para a constituição da união estável entre homem e mulher; e b) que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis estendam-se aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo. (BRASIL, STF, 2011)

Para tanto, baseou e fundamentou sua argumentação nos princípios

constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da vedação de

discriminações odiosas, da liberdade e da proteção à segurança jurídica; alegando

a obrigatoriedade do reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como

entidade familiar. (BRASIL, STF, 2011)

b) Precedentes do Supremo Tribunal Federal

3 Para relação completa dos partidos, acessar:http://www.tse.jus.br/partidos/partidos-politicos/registrados-no-tse, último acesso em: 15/03/15.

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CARVALHO, F. L.; LELIS, R. C. Ativismo Judicial...

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Até o momento último da confecção deste artigo, a presente pesquisa não

encontrou qualquer caso de precedente do STF em relação à temática da união estável.

Destaca-se, contudo, a ADI 3300/DF, de relatoria do Ministro Celso de Mello, no qual se

pedia que fosse declarada a inconstitucionalidade do art. 1º da Lei n° 9.278/96, que

dispunha:

É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família (grifo nosso)

Na referida ADI, o Ministro Celso de Mello decidiu pela extinção do

processo, alegando razão de ordem formal, visto que essa mesma lei “resultou derrogada

em face da superveniência do novo Código Civil” (BRASIL, STF, 2006), uma vez que o

art. 1.723 desse Código, que disciplina a questão da união estável, reproduziu, em grande

parte e essencialidade, o “conteúdo normativo inscrito no ora impugnado art. 1° da Lei

n° 9.278/96” (BRASIL, STF, 2006). Em face disso, e como não foi pedida a declaração

de inconstitucionalidade do art. 1.723 do Código Civil, o Relator não viu possibilidade

de seguir com a análise do pedido.

c) Superação dos Próprios Precedentes

Como já explicado anteriormente, não foram encontrados casos de

precedentes jurisprudenciais do Supremo Tribunal Federal em relação à temática da união

estável homoafetiva. Considera-se, pois, que, no julgamento da ADI 4.277 houve, não

superação, mas sim uma inovação (sem precedentes) da interpretação da Constituição.

d) Interpretação Ampliativa dos Próprios Poderes

Ao emitir a sentença, reconhecendo a união estável entre casais do mesmo

sexo, a mais Alta Corte brasileira avança, evidentemente, na concessão de direitos às

minorias e exerce sua função contramajoritária, como é de se esperar em um Estado

Democrático de Direito. Todavia, há de se identificar a clara incompatibilidade com o

texto constitucional (em seu art. 226, §3°) e também com Código Civil (no art. 1.723),

que dispõem, respectivamente:

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Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. (BRASIL, Constituição Federal, art. 226, §3º; grifo nosso) É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. (BRASIL. Código Civil, art. 1.723, caput; grifo nosso)

Dessa forma, deve-se, primariamente, reconhecer a importância da garantia de

direitos fundamentais (ALEXY, 2009) aos casais homoafetivos, condições necessárias e

essenciais mínimas para a vida humana. Entretanto, não se pode justificar os meios pelos

fins, como pensava Maquiavel, não em um Estado Democrático de Direito como o em

que vivemos, e o meio foi, claramente, ativista e de ampliação dos próprios poderes pelo

órgão Judiciário.

A possibilidade de extrapolação dos poderes pelo Judiciário chegou a ser aventada

pelo Ministro Marco Aurélio em seu voto, porém tão rapidamente descartada quanto foi

lembrada:

(...) seria possível incluir nesse regime uma situação que não foi originalmente prevista pelo legislador ao estabelecer a premissa para a consequência jurídica? Não haveria transbordamento dos limites da atividade jurisdicional? A resposta à última questão, adianto, é desenganadamente negativa. (BRASIL, STF, 2011)

Ignorando o texto literal, tanto da Constituição, quanto do Código Civil, muitos

dos Ministros se basearam, dissimuladamente, no fato de que, segundo eles, ao explicitar

“homem e mulher”, a Constituição procurava uma inclusão dessa última em um contexto

patriarcal e não a exclusão de qualquer outra forma de união, como o faz o Ministro Celso

de Mello, ao citar o, à época, professor e advogado Luís Roberto Barroso (que

posteriormente ganhou sua própria cadeira no Supremo Tribunal Federal):

(...) não traduz uma vedação de extensão do mesmo regime às relações homoafetivas (...) Extrair desse preceito tal consequência seria desvirtuar a sua natureza: a de uma norma de inclusão. De fato, ela foi introduzida na Constituição para superar a discriminação que, historicamente, incidira sobre as relações entre homem e mulher que não decorressem do casamento (BRASIL, STF, 2011)

O voto do relator, o Ministro Ayres Britto, acompanhado por todos os outros

ministros, sendo a decisão unânime, ressalta, pelas palavras do psiquiatra e psicoterapeuta

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suíço, Carl Gustav Jung, que “a homossexualidade, porém, é entendida não como

anomalia patológica, mas como identidade psíquica e, portanto, como equilíbrio

específico que o sujeito encontra no seu processo de individuação.” Ele ainda salienta a

questão de não se poder dignificar mais um indivíduo por ser homem ou mulher, por ser

hetero ou homossexual; e trata com bastante ênfase do preconceito existente para com os

homossexuais, afirmando que: “(...)nada incomoda mais as pessoas do que a preferência

sexual alheia, quando tal preferência já não corresponde ao padrão da

heterossexualidade”. Percebe-se, assim, que o Relator se respalda mais nas atuais e

antigas concepções da sociedade sobre o tema do que no que está disposto no texto

constitucional que rege o país. (BRASIL, STF, 2011)

É dessa forma, como em inúmeras outras, que a Suprema Corte brasileira,

disfarçadamente, e do alto de sua justificação “técnica e elaborada” (que a qualquer leigo

impressiona e basta como embasamento para alteração no texto constitucional), assume

um papel muito além do qual deveria pretender: o de legislador. Nesse cenário, o Supremo

legisla – sem admitir –, a exemplo do que lembra Pierre Bourdieu:

(...) propensão, visível sobretudo nos juízes, (...), de intérprete que se refugia na aparência ao menos de uma simples aplicação da lei e que, quando faz obra de criação jurídica, tende a dissimulá-la (BOURDIEU, 2010)

Bourdieu aponta também a tênue distância entre a política e a prática jurisdicional

(que, com frequência, vem sendo transposta):

(...) a concorrência entre os intérpretes está limitada pelo fato de as decisões judiciais só poderem distinguir-se de simples atos de força política na medida em que se apresentam como resultado necessário de uma interpretação regulada de textos unanimemente reconhecidos (BOURDIEU, 2010)

Há de se ressaltar, no entanto, que, não obstante essa “interpretação regulada de

textos unanimemente reconhecidos”, o Judiciário insiste, descaradamente, em “redefinir”

o que claramente diz a Constituição. Foi exatamente por temer esse tipo de atitude que a

França Revolucionária procurou compilar uma grande codificação de suas leis,

desconfiada de seus juízes, como destaca John Henry Merryman:

(...) postulado da revolução intelectual foi a separação dos poderes governamentais. (...) era de fundamental importância para a racionalização do governo, estabelecer e manter a separação dos poderes e, em particular, distinguir e separar claramente o legislativo e o executivo de um lado, e o judiciário de outro. O objetivo era prevenir a intromissão do judiciário em áreas

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– elaboração das leis e sua aplicação – reservadas aos outros dois poderes. (...) Na França, (...) os juízes se recusavam a aplicar as novas leis, interpretavam-nas contrariamente à sua finalidade ou criavam obstáculos à sua execução pelos funcionários da administração. Montesquieu e outros desenvolveram a teoria de que a única forma segura de prevenir este tipo de abuso era, primeiro, separar o legislativo e o executivo do judiciário e, em seguida, regulamentar cuidadosamente o funcionamento do judiciário (MERRYMAN, 2009)

No caso específico da união estável a situação se sagra ainda mais grave, já que

não se pode, nem mesmo, alegar omissão por parte do Legislativo (não que tal

justificativa fosse, em alguma medida, suficiente para desrespeitar o texto da Carta

Magna), uma vez que o projeto de lei (PL) de número 1151/19954, que procurava

regulamentar a união estável homoafetiva, proposto pela então Deputada Federal Marta

Suplicy – pelo Partido dos Trabalhadores (PT) –, foi retirado da pauta em 2001 e passou

por sucessivos arquivamentos nos anos de 2003, 2007 e 2011; demonstrava, assim,

claramente, o Legislativo sua recusa à implementação do PL.

À vista de tudo isso, é válido que se ressalte, por fim, o conflito lucidamente

apontado por Robert Alexy entre Legislativo e Judiciário, quando a questão tange aos

direitos fundamentais. Conflito esse que, no caso analisado, existe, evidentemente, e há

uma clara intromissão do segundo na esfera do primeiro.

Em um sistema jurídico que tem uma jurisdição constitucional abrangente, como é o caso do sistema da República Federal da Alemanha, os problemas que a determinação substancial causam(sic) para a jurisdição constitucional têm papel especial. No centro do longo e árduo debate acerca da jurisdição constitucional encontra-se o problema do equilíbrio entre a competência do tribunal constitucional e a do legislador. (ALEXY, 2009)

Nesse sentido, fica claro que a Corte agiu de forma prejudicial à democracia ao

interferir em esfera além de sua competência e, ainda mais, fazê-lo disfarçadamente,

como se não passasse do ordinário exercício de sua função.

Conclusão

Como já explicitado, os casos estudados são um claro exemplo nos quais o

Supremo Tribunal Federal, em postura ativista, baseou sua decisão não no que está

respaldado pela Constituição, mas nas opiniões pessoais dos Ministros. É perceptível que

4 Para conhecimento completo do projeto de lei, acessar: www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=16329, último acesso em: 15/03/2015.

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CARVALHO, F. L.; LELIS, R. C. Ativismo Judicial...

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a ampliação dos poderes do Judiciário traz o perigo da imprevisibilidade das decisões. Se

o órgão de representação maior do poder judicial no Brasil (STF) não pauta suas sentenças

nos dispositivos da Constituição e das normas infraconstitucionais, não é possível haver

confiança no Órgão, credibilidade em suas decisões e segurança acerca das medidas

adotadas na resolução de um caso.

Nessa mesma confluência de pensamento, Luiz Werneck Vianna afirma que:

(...) especialmente a partir dos anos de 1970, os juízes – inclusive os do sistema da civil law, contrariando uma pesada tradição – cada vez mais ocupem lugares tradicionalmente reservados às instituições especializadas da política e às de auto-regulação societária (...) (VIANNA; BURGOS; SALLES, 2007)

A partir dessa afirmação, pode-se melhor analisar e, consequentemente, identificar

como o atual comportamento do Judiciário brasileiro se encaixa nessa perspectiva.

Algumas das mais fortes características da Civil Law, vigente no Brasil, são a

previsibilidade e a segurança das decisões. Como é observado no presente artigo, o

ativismo judicial tende a aproximar a tradição jurídica brasileira da Common Law,

caracterizada pela dinamicidade, que coloca em risco a segurança sobre o posicionamento

dos juízes. Evidencia-se, assim, grande risco de impacto do ativismo judicial em uma

sociedade pautada na Civil Law: a perda da capacidade de saberem os cidadãos como

serão julgadas suas ações, uma vez que tal postura do Judiciário coloca em segundo plano

o texto Constitucional e privilegia as concepções do juiz, abrindo espaço para decisões

cada vez mais arbitrárias e sem fundamentação em documento previamente reconhecido

e de acesso a toda a população.

Ressalta-se que as escolhas dos casos não foram aleatórias: procurou-se escolher

um caso (o da fidelidade partidária) no qual a postura ativista do STF se mostrou

prejudicial e retrógrada em relação à aplicação prática da lei; e outro (o da união estável

homoafetiva) no qual tal ativismo realizado pelo Judiciário se revelou extremamente

benéfico e um grande progresso na concessão de direitos que há muito deveriam ter sido

garantidos a essa parcela da população. Foi feito isso com uma intenção: frisar que,

independente do conteúdo da decisão, conservadora ou liberal, progressista ou retrógrada,

não se pode permitir que o Judiciário, dissimuladamente, legisle. Nesse sentido, o que se

procura problematizar é que, talvez, fosse mais aceitável esse ativismo de cunho liberal

realizado pelo Supremo – na ADI 4.277 –, se ele tivesse sido realizado abertamente, como

se o Órgão falasse: “sabemos que a Constituição se refere a homem e mulher apenas,

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 07, pp 107-124, mai., 2015.

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porém os tempos são outros e é preciso que alguém exerça o papel contramajoritário e

defenda os direitos das minorias”.

Essa atitude – ampliação dos próprios poderes dissimuladamente –, ao tomar

decisões que dizem respeito ao ordenamento de todo o país e, obviamente, refletem na

sociedade como um todo, causa prejuízo à democracia. Na decisão do MS 26602 e da

ADI 4.277, o STF vai contra o que havia determinado o legislador e estava disposto na

Carta Magna. Assim, percebe-se, ainda, que a atuação ativista do Poder Judiciário passa

a se sobrepor ao poder do Legislativo, que foi eleito democraticamente pelos cidadãos

brasileiros, sendo danosa ao Estado Democrático de Direito, além de menosprezar o poder

de escolha dos cidadãos, que, por meio das eleições, participam indiretamente do governo

do país. A atitude, portanto, vai contra o que está previsto no parágrafo único do art. 1º

da Constituição Federal de 1988: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio

de representantes eleitos, ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Por fim, retornando, objetivamente, à pergunta feita no início deste artigo: qual o risco de

o Poder Judiciário brasileiro tomar decisões por meio da ampliação interpretativa

(ativismo) dos próprios poderes? O maior risco aparente, intensificado quando a prática

se dá às escuras e como se não existisse, é o de empoderamento do Judiciário, criando

uma supremacia judicial (em contraste à supremacia constitucional), permitindo a esse

Poder uma via fácil de alteração da maior garantia de segurança jurídica do povo: o texto

constitucional.

Anexo I:

Ementa acórdão Mandado de Segurança 26602 do STF

Constitucional. Eleitoral. Mandado de segurança. Fidelidade Partidária. Desfiliação. Perda de mandato. Arts. 14, §3°, V e 55, I a VI da Constituição. Conhecimento do mandado de segurança, ressalvando entendimento do relator. Substituição do Deputado Federal que muda de partido pelo suplente da legenda anterior. Ato do Presidente da Câmara que negou posse aos suplentes. Consulta, ao Tribunal Superior Eleitoral, que decidiu pela manutenção das vagas obtidas pelo sistema proporcional em favor dos partidos políticos e das coligações. Alteração da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Marco temporal a partir do qual a fidelidade partidária deve ser observada [27.03.07]. Exceções definidas e examinadas pelo Tribunal Superior Eleitoral. Desfiliação ocorrida antes da resposta à consulta ao TSE. Ordem denegada. 1. Mandado de segurança conhecido, ressalvando o

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CARVALHO, F. L.; LELIS, R. C. Ativismo Judicial...

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entendimento do relator, no sentido de que as hipóteses de perda de mandato parlamentar, taxativamente previstas no texto constitucional, reclamam decisão do Plenário ou da Mesa Diretora, não do Presidente da Casa, isoladamente e com fundamento em decisão do Tribunal Superior Eleitoral. 2. A permanência do parlamentar no partido pelo qual se elegeu é imprescindível para a manutenção da representatividade partidária do próprio mandato. Daí a alteração da jurisprudência do Tribunal, a fim de que a fidelidade do parlamentar perdure após a posse no cargo eletivo. 3. O instituto da fidelidade partidária, vinculando o candidato eleito ao partido, passou a vigorar a partir da resposta do Tribunal Superior Eleitoral à Consulta n. 1.398, em 27 de março de 2007. 4. O abandono da legenda enseja a extinção do mandato do parlamentar, ressalvadas situações específicas, tais como mudanças na ideologia do partido ou perseguições políticas, a serem definidas e apreciadas caso a caso pelo Tribunal Superior Eleitoral. 5. Os parlamentares litisconsortes passivos no presente mandado de segurança mudaram de partido antes da resposta do Tribunal Superior Eleitoral. Ordem denegada. (BRASIL, STF, 2007)

Anexo II:

Ementa acórdão Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277 do STF

1. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). Perda parcial de objeto. Recebimento, na parte remanescente, como Ação Direta de Inconstitucionalidade. União homoafetiva e seu reconhecimento como instituto jurídico. Convergência de objetos entre ações de natureza abstrata. Julgamento conjunto. Encampação dos fundamentos da ADPF n° 132-RJ pela ADI n° 4.277-DF, com a finalidade de conferir “interpretação conforme à Constituição” ao art. 1.723 do Código Civil. Atendimento das condições da ação. 2. Proibição de discriminação das pessoas em razão do sexo, seja no plano da dicotomia homem/mulher (gênero), seja no plano da orientação sexual de cada qual deles. A proibição do preconceito como capítulo do constitucionalismo fraternal. Homenagem ao pluralismo como valor sócio-político-cultural. Liberdade para dispor da própria sexualidade, inserida na categoria dos direitos fundamentais do indivíduo, expressão que é da autonomia de vontade. Direito à intimidade e à vida privada. Cláusula pétrea. O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. Proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art. 3° da Constituição Federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos”. Silêncio normativo da Carta Magna a respeito do concreto uso do sexo dos indivíduos como saque da kelseniana “norma geral negativa”, segundo a qual “o que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido”. Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da “dignidade humana”: direito a auto-estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito À liberdade sexual. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula pétrea. 3. Tratamento constitucional da instituição família. Reconhecimento de que Constituição Federal não empresta ao substantivo " família " nenhum significado ortodoxo ou da própria técnica jurídica. A família como categoria sócio-cultural e princípio espiritual. Direito subjetivo de constituir família. Interpretação não-reducionista. O caput do art. 26 confere à família, base da sociedade, especial proteção do estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando ser formal ou informalmente constituída,

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ou ser integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão " família ", não limita sua formação a casais heteroafetivos nem cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por " intimidade e vida privada " (inciso X do art. 5º). Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Família como figura central ou continente, de que tudo mais conteúdo. Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-cultural. Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas. 4. União estável. Normação constitucional referida a homem e mulher, mas apenas para especial proteção desta última. Focado propósito constitucional de estabelecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia entre as duas tipologias do gênero humano. Identidade constitucional dos conceitos de " entidade familiar " e " família ". A referência constitucional à dualidade básica homem/mulher no §3º do seu art. 226, deve-se ao centrado intuito de não se perder a menor oportunidade para favorecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia no âmbito das sociedades domésticas. Reforço normativo a um mais eficiente combate à renitência patriarcal dos costumes brasileiros. Impossibilidade de uso da letra da Constituição para ressuscitar o art. 175 da Carta de 1967/1969. Não há como fazer rolar a cabeça do art. 226 no patíbulo do seu parágrafo terceiro. Dispositivo que, ao utilizar da terminologia " entidade familiar ", não pretendiam diferenciá-la da " família ". Inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico. Emprego do fraseado " entidade familiar " como sinônimo perfeito de família. A Constituição não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo. Consagração do juízo de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um legítimo interesse de outrem, ou de toda a sociedade, o que não se dá na hipótese se sub judice. Inexistência do direito dos indivíduos heteroafetivos à sua não-equiparação jurídica com os indivíduos homoafetivos. A aplicabilidade do §2º do art. 5º da Constituição Federal, a evidenciar que outros direitos e garantias, não expressamente listados na Constituição, emergem " do regime e dos princípios por ela adotados", verbis: " os direitos e garantias expressos nesta constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte". 5. Divergências laterais quanto à fundamentação do acórdão. Anotação de que os ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso convergiram no particular entendimento da impossibilidade de ortodoxo enquadramento da união homoafetiva nas espécies de família constitucionalmente estabelecidas. Sem embargo, reconheceram a união entre parceiros do mesmo sexo como uma nova forma de entidade familiar. Matéria aberta à conformação legislativa, sem prejuízo do reconhecimento da imediata auto-aplicabilidade da Constituição. 6. Interpretação do art. 1.723 do Código Civil em conformidade com a Constituição Federal (técnica da "interpretação conforme"). Reconhecimento da união homoafetiva como família. Procedência das ações. Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do artigo 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de " Interpretação conforme à Constituição ". Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua,

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CARVALHO, F. L.; LELIS, R. C. Ativismo Judicial...

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pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva. (BRASIL, STF, 2011)

Referências Bibliográficas ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad.: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2009. BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia – Uma defesa das Regras do Jogo. Trad.: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Trad.: Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil 2010. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2014. _______. Código Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2014. _______. Acórdão ADI 4.277. STF: 2011. _______. Acórdão MS 26602. STF: 2007. _______. Acórdão ADI 3300. STF: 2006. _______. Acórdão MS 20927. STF: 1989. GARAPON, Antoine; PAPADOPOULOS, Ioannis. Julgar nos Estados Unidos e na França – Cultura Jurídica Francesa e Common Law em uma Perspectiva Comparada. Trad.: Regina Vasconcelos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. MACHADO, Joana de Souza. Ativismo Judicial no Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Direito, 2008. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Trad.: Maurício Santana Dias. São Paulo: Editora Schwarcz, 2010. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2014. MERRYMAN, John Henry; PÉREZ-PERDOMO, Rogelio. A Tradição da Civil Law. Trad.: Cássio Casagrande. Rio de Janeiro: safE, 2009. VIANNA, Luiz Werneck; BURGOS, Marcelo Baumann; SALLES, Paula Martins. Dezessete anos de judicialização da política. São Paulo: Tempo Social, revista de sociologia da USP, 2007. WALDRON, Jeremy. A dignidade da Legislação. Trad.: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 07, pp 107-124, mai., 2015.

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VIANA, P. H. B. Estado, Globalização e Justiça.

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Estado, globalização e justiça: revisões críticas ao marco estatal como único promotor de justiça

State, globalization and justice: critical reviews to the state framework as the only forwarder of justice

Pedro Henrique Borges Viana1

Resumo: Busca-se, através deste artigo, questionar o papel do Estado como única instância

responsável pela realização e efetivação de justiça, ideal caríssimo aos intérpretes do Direito. A filosofia de um “Estado justo”, tão presente nas teorias liberais, aqui analisadas sob a perspectiva de John Rawls, mostra-se altamente falha quando transportada para o contexto transnacional de uma sociedade moderna e globalizada. Serão analisadas no artigo a crítica comunitária feita ao nacionalismo do liberalismo igualitário, a crítica de Honneth ao esquema de justiça distributiva das teorias dominantes e, por fim, a crítica de Fraser à dicotomia redistribuição e reconhecimento e sua defesa de um enquadramento adequado dos níveis de justiça. As prerrogativas ora expostas levarão a uma breve reflexão sobre os contornos de uma teoria de justiça global, não mais sustentada apenas no Estado como sua única instância para sua efetivação.

Palavras-chave: Teorias da Justiça. Estado. Liberalismo. Reconhecimento. Justiça Global.

Abstract: The aim is to, through this paper, question the role of the State as the only authority

responsible for carrying out and enforcing justice, significant ideal to the law interpreters. The philosophy of a "Fair State", present in liberal theories, here analyzed from the perspective of John Rawls, shown highly flawed when transported to the transnational context of a modern, globalized society. Will be analyzed in this paper the communitarianism criticism made to nationalism of egalitarian liberalism, Honneth's criticism to distributive justice scheme of the dominant theories and, finally, Fraser's criticism of the dichotomy between redistribution and recognition and her defense of a reframing of levels justice. Exposed prerogatives in this paper will lead to a brief reflection on the contours of a global theory of justice, not only sustained the State as the only forum for its implementation.

Keywords: Theories of Justice. State. Liberalism. Recognition. Global Justice.

1 Graduando do curso de Direito da Universidade Federal de Lavras, bolsista do Programa de Educação Tutorial (PETI Direito) e membro do Núcleo de Estudos em Direito e Relações Internacionais - NEDRI.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 07, pp. 125-141, mai., 2015.

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1. Introdução

Teorias da Justiça certamente constitui uma disciplina de profundos e contínuos

diálogos entre Filosofia do Direito e Filosofia Política. Enquanto objeto comum destas

duas áreas de conhecimento, a Teorias da Justiça também é responsável por tê-las

reavivado nas últimas décadas, constituindo-se em um dos principais temas da agenda

teórica contemporânea.

Para a maioria dos intérpretes do Direito, a ideia de justiça sempre foi um conceito

gerador de grande controvérsia. A negação do critério objetivo de justiça, comum a

doutrina neopositiva ou neo-empirista, concebendo seu conceito em termos valorativos,

de aspiração emocional, onde cada operador lhe conferiria um valor particular e, portanto,

impossível de encaminhar para um consenso, foi em grande parte superada. Ignorar a

ordem prática deste conceito é axiologicamente falho, visto ser a justiça o valor fundante

do direito e o fim para o qual se dirigem as normas jurídicas em seu conjunto.

Uma das discussões que mais ganham espaço no debate contemporâneo de

Filosofia Política e Filosofia do Direito é se esta mesma justiça, tão cara aos intérpretes

do Direito, é capaz de se propor como um conceito transfronteiriço, isto é, que seja capaz

de ultrapassar as fronteiras dos Estados nacionais para permitir que pessoas de qualquer

cidadania tenham acesso aos mesmo direitos. Em outras palavras, teóricos do mundo

inteiro vêm se perguntando se é possível pensar a justiça em um mundo globalizado? Ou,

como enuncia Nancy Fraser, “a globalização está mudando o modo pelo qual discutimos

a justiça?” (FRASER, 2009, p. 11).

Este artigo pretende usar diversas correntes teóricas para questionar se a justiça

concebida pelas teorias predominantes, como um fim último que se revela a partir do

Estado – e, por que não, do Direito? – é capaz de se validar no contexto de um mundo

globalizado.

Ainda que um evento do outro lado do mundo não trouxesse consequências

jurídicas diretas para determinado país, seria impossível, dado os avanços dos meios de

comunicação, que tais eventos passassem desapercebidos pela sociedade. Além do mais,

seria eticamente questionável que eventuais injustiças fossem creditadas apenas como

simples “assuntos internos de outra jurisdição”. Aceitar tal premissa, à priori, legitimaria

as atrocidades praticadas pelo Partido Nazista na Alemanha ou desqualificaria a

preocupação decorrente de grandes desastres ambientais, como o derrame de petróleo no

Golfo do México em 2010 ou a explosão de Chernobyl, Ucrânia, em 1986. A Constituição

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VIANA, P. H. B. Estado, Globalização e Justiça.

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Cidadã de 1988, ao elencar os princípios que regerão as relações do Brasil com outras

nações, apesar de não explicitar o conceito de justiça, traz outros valores que poderiam

ser interpretados com igual valor semântico, entre os quais citamos a prevalência dos

direitos humanos, a autodeterminação dos povos e defesa da paz.

Os questionamentos que decorrem desta linha de pensamento perpassam pelos

impactos que a globalização causa à nossa maneira de refletir o conceito de justiça e,

principalmente, nas respostas que o Direito e a Teorias da Justiça apresentam para esta

revisão conceitual. É nossa intenção neste artigo, portanto, questionar se a busca pela

justiça através do Direito encontra-se em crise, dada a globalização que encontra-se como

fato evidente na sociedade internacional.

Analisaremos, para tanto, a formulação teórica de justiça feita por John Rawls na

década de 70, para quem a justiça era a primeira virtude das instituições sociais, e depois

passaremos pelas críticas feitas à tal teoria na problemática de um paradigma globalizado,

utilizando como marco teórico a tradição comunitarista, Axel Honneth e Nancy Fraser.

Embora as três correntes teóricas trabalhadas apresentem pontos sérios de divergência,

como o debate entre Honneth e Fraser acerca do reconhecimento ou a oposição de ambos

ao comunitarismo, e que, portanto, de forma alguma podem ser interpretadas como

próximas ou complementares umas das outras, buscaremos recortar a leitura das mesmas

no debate sobre justiça em um mundo globalizado.

2. Justiça e Estado para John Rawls

Em Uma teoria de justiça (1971), John Rawls, expôs de forma mais sistemática

sua teoria da justiça, a que chamou de teoria da justiça como equidade. Sua argumentação

gira em torno da ideia de que, numa situação inicial, chamada por ele de posição original,

se instituiria a todos a necessidade de princípios de justiça. Por desconhecer a própria

posição e a dos demais membros da sociedade que está sendo compactuada, os indivíduos

encontram-se sob um véu de ignorância ao escolher os princípios que compõe a justiça,

sendo estes o princípio da liberdade, que garante igual sistema de liberdades e direitos o

mais amplo possível, sendo a liberdade igual a todos os indivíduos, e depois o princípio

da diferença que assegura que as eventuais desigualdades econômicas na distribuição de

renda e riqueza somente são aceitas caso beneficiem especialmente os menos favorecidos.

Em suas palavras, “todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza,

assim como as bases sociais e o respeito a si mesmo – haverão de ser distribuídas

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igualitariamente, a menos que uma distribuição desigual de algum ou de todos esses

valores redunde numa vantagem para todos” (RAWLS, 2000, p. 84). Na concepção geral

de sua teoria, Rawls

[...] vincula a ideia de justiça a uma parcela igual de bens sociais, mas acrescenta uma importante modificação. Tratamos as pessoas como iguais não removendo todas as desigualdades, mas apenas as que trazem desvantagem para alguns. Se certas desigualdades beneficiarem todo o mundo, ao extraírem talentos e energias socialmente úteis, então elas serão aceitáveis para todo o mundo. (KYMLICKA, 2006, p. 66)

É importante ressaltar que os princípios defendidos por Rawls surgem muito mais

como critérios que se destinam a ser aplicados à “estrutura básica da sociedade”

(GARGARELLA, 2009, p. 19). Nas palavras do filósofo americano, “a maneira pela qual

as instituições sociais mais importantes distribuem os direitos e deveres fundamentais, e

determinam a divisão das vantagens provenientes da cooperação social. Por instituições

mais importantes, entendo a constituição política e as principais disposições econômicas

e sociais.” (RAWLS, 2000, p. 7-8).

A primeira característica que nos importa sublinhar desta teoria da justiça é o

fundamental papel exercido pelo Estado para efetivá-la. Como vimos, para Rawls “uma

sociedade justa precisa de um Estado [...] cujas instituições fundamentais deveriam

contribuir para a primordial tarefa de igualar as pessoas em suas circunstâncias básicas.”

(GARGARELLA, 2009, p. 33). O papel do Estado para Rawls é, de maneira sintética,

compatibilizar as liberdades dos indivíduos garantindo as mesmas oportunidades básicas

de um modo neutro. Álvaro de Vita, ao fazer uma análise sobre as teorias liberais

contemporâneas, das quais Rawls é o grande precursor, lembra que “um Estado liberal

justo deve ter como um de seus objetivos centrais propiciar a seus membros as condições

para que cada um possa agir com base em suas próprias convicções sobre aquilo que tem

valor intrínseco na vida” (VITA, 2013, p. 55)

Esta característica das teorias de justiça liberais de articular o Estado como

principal ferramenta, e algumas vezes até como única instância, capaz de efetivar e

realizar o sentido de justiça, é o ponto no qual concentraremos as críticas deste artigo.

Como lembra Honneth, nas teorias liberais a “tarefa de realização da justiça

precisa já aqui ser atribuída unicamente ao Estado, pelo fato de só ele possuir, graças às

suas múltiplas competências regulatórias, o poder de distribuir aqueles bens que parecem

ser essencialmente decisivos para possibilitar a autonomia individual.” (HONNETH,

2009, p. 357) Veremos, através da crítica ao nacionalismo das teorias liberais igualitárias,

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do exame de Axel Honneth sobre o modelo distributivo estatal das mesmas teorias e, por

última, da proposta de Nancy Fraser sobre enquadramento das matérias de justiça, como

o Estado, considerado como única entidade realizadora de justiça, é insuficiente para a

verdadeira realização deste princípio.

3. O comunitarismo e sua crítica às fronteiras liberais de justiça

Muito embora, como afirma Honneth, “o debate sobre a relação entre liberalismo

e comunitarismo se extinguiu com a mesma rapidez com que ele surgiu” (HONNETH,

2009, p. 346), esta aproximação de corrente filosófica, a despeito de sua heterogeneidade,

se mostrou como uma das mais importantes vias críticas ao liberalismo igualitário,

afirmando que estas teorias interpretam erroneamente nossa capacidade de

autodeterminação e negligenciam as precondições sociais sob as quais esta capacidade

pode ser exercida (KYMLICKA, 2006, p. 254).

São muitas as críticas comunitaristas ao liberalismo igualitário. Além de estarem

formuladas nos trabalhos de diversos autores, as mesmas não apresentam um caráter

unívoco, podendo oscilar entre a defesa de posições socialistas e republicanas, como

Michael Sandel, a posturas mais conversadoras, como Alasdair MacIntyre.

Para os fins deste artigo buscaremos nos conter na crítica comunitária ao pretenso

caráter cosmopolita2 das teorias liberais. Esta crítica expressa que “a grande falha do

nacionalismo liberal não é a sua incapacidade de manter a justiça distributiva dentro das

fronteiras nacionais, mas a sua aparente indiferença às questões de justiça global para

além das fronteiras nacionais.” (KYMLICKA, 2002, p. 268) Esta discussão, centrada

sobre a complexa problemática da universalidade dos valores éticos e políticos, ilustra

um dos pontos mais controversos do debate entre liberais e comunitaristas. (MARTINS,

1994, p. 340)

A obra rawlsiana Uma Teoria da Justiça é tida como um dos textos mais

representativos da reconstrução contemporânea do universalismo kantiano. Inicialmente,

incorre-lhe a crítica de ser uma teoria formulada em um plano ideal. Tal como em Platão,

2 Entende-se por cosmopolitismo o pensamento filosófico que despreza as fronteiras geográficas impostas pela sociedade, considerando que a humanidade segue as leis do Universo (cosmos) e, portanto, compõe-se apenas de uma pátria. Este termo é, acima de tudo, um conceito ocidental que representa a necessidade que agentes sociais têm de conceber uma entidade cultural e política, maior do que sua própria pátria, que engloba todos os seres humanos em escala global. A tese central segue a ideia segundo a qual uma visão de direitos humanos amplos (políticos, econômicos, sociais etc.) deve ser aplicada a qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo, sem que contingências históricas ou circunstâncias naturais interfiram nessa aplicação.

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num mundo imaginado, pessoas ideais encontram-se num lugar ideal e descobrem os

princípios ideais de uma sociedade ideal. O que o comunitarismo culturalista de Michael

Walzer condena em Rawls e em qualquer autor de teoria política que assuma tal

perspectiva, por exemplo, é a ausência de atenção ao individual e ao particular que

caracterizam cada contexto. (MARTINS, 1994, p. 339).

Segundo Will Kymlicka, o compromisso do liberalismo igualitário de sanar as

desigualdades imerecidas da sociedade pressuporia uma concepção “cosmopolita” de

justiça distributiva. (KYMLICKA, 2002, p. 269) Isso, de fato, é o que muitos rawlsinianos

argumentaram, ao defender que a teoria da justiça de Rawls deveria ser aplicada a nível

global, isto é, que as pessoas na ‘posição original’ não seriam afetadas pelas contingências

geográficas, históricas e culturais dos países em que nasceram. A ideia básica de uma

justiça global desta linha de argumentação, portanto, seria a de que os princípios da justiça

– o princípio da liberdade e o princípio da diferença – não devem ser restringidos nem

limitados pelas fronteiras nacionais.

A grande questão é como os princípios distributivos de justiça válidos para um

Estado liberal devem se portar em um Estado não-liberal. Na melhor das hipóteses, a

teoria da justiça como equidade de Rawls será válida apenas para uma sociedade liberal

(MARTINS, 1994, p. 340). O liberalismo, nos dizeres de Kymlicka, “parece estar

preocupado apenas em sustentar as instituições nacionais de justiça distributiva, e toma

como certo o direito dos Estados-nações ocidentais de acumular sua riqueza

desigualmente e fechar as suas fronteiras aos imigrantes.” (KYMLICKA, 2002, p. 269)

Vários autores comunitaristas têm argumentado que esta indiferença à justiça global é

uma das principais falhas do liberalismo. Eles assumem que para defender qualquer noção

de justiça global ou cosmopolita é preciso abandonar o nacionalismo liberal. Como afirma

Charles Taylor, um dos maiores expoentes do comunitarismo, “a condição imprescindível

do sucesso desta reflexão é não esquecer que o mundo real das democracias liberais está

longe de coincidir com as fronteiras dos Estados Unidos da América”. (TAYLOR apud

MATINS, 1994, p. 341).

Todavia, mesmo que apresente firmes críticas contra o nacionalismo liberal, a

maior parte dos autores comunitaristas não abre mão de ter o Estado como principal

edificador do princípio da justiça. Eles opõem-se ao Estado neutro (KYMLICKA, 2006,

p. 263) de autores como Ronald Dworkin, outro precursor do liberalismo igualitário, para

quem “o Estado deve ser neutro em matéria ética, não devendo proibir ou recompensar

nenhuma atividade privada com base em que alguma concepção ética é superior ou

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inferior às demais” (GARGARELLA, 2008, p. 66), mas defendem, por outro lado, “um

Estado [que] pode e deve encorajar as pessoas a adotar concepções de bem que se ajustem

ao modo de vida da comunidade, ao mesmo tempo desencoraja concepções do bem que

entrem em conflito com aquelas.” (KYMLICKA, 2006, p. 265) Endossar uma ideia de

justiça sem realizá-la através da instância estatal se mostra uma tarefa impossível, visto

que, para os comunitaristas, esta “é a arena adequada para a formulação de nossas visões

do bem, [na medida em que] estas visões requerem a investigação compartilhada. Elas

não podem ser buscadas, ou sequer conhecidas, por indivíduos solitários”. (KYMLICKA,

2006, p. 284)

Esta visão de Estado se mostra tão insustentável quanto àquela defendida pelo

liberalismo igualitário quando analisada em perspectiva global. O Estado comunitário se

compromete em desenvolver uma política de bem-comum com base nas concepções de

bem de sua comunidade, mas ao desconsiderar a impossibilidade de uma mesma

concepção de bem que se ajuste ao modo de vida de todas as sociedades em plano

mundial, apresenta a mesma característica falha de seu interlocutor. Nota-se, com isso,

que o grande problema de ambas teorias é sua formulação com base na atividade estatal

como única instância realizadora de justiça. A crítica de Honneth, a ser desenvolvida a

seguir, se articula neste ínterim.

4. Axel Honneth e o reconhecimento de uma justiça não-estatal

Em seu trabalho “A textura da justiça: sobre os limites do procedimentalismo

contemporâneo”, o filósofo e sociólogo alemão Axel Honneth busca mostrar que a textura

intrínseca a um conceito adequado de justiça não consiste em bens distribuíveis, tal como

em Rawls, mas nas relações sociais comumente aceitas e constituídas por práticas de

conteúdo moral. Para tanto, o autor defende sua teoria a partir de uma desconstrução

sistemática do que ele considera como “amplo consenso em relação à questão sobre como

devem estar constituídas as premissas de uma teoria da justiça social” (HONNETH, 2009,

p. 348). Seu objetivo é alcançar uma perspectiva externa do conceito de justiça, que se

afaste das premissas liberais dominantes e busque responder “como efetivamente

devemos imaginar a matéria da justiça social se a ideia de distribuição de bens não

representa a solução adequada” (HONNETH, 2009, p. 347).

O autor concentra suas críticas nos três elementos que “hoje parecem fazer parte

de um consenso abrangente de praticamente todas as teorias da justiça; sem levar em

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consideração as muitas diferenças entre as teorias individuais” (HONNETH, 2009, p.

347): o procedimentalismo constitutivo da concepção de justiça, a ideia da dimensão

distributiva deste conceito e, por fim, o que ele chama de “fixação” no papel do Estado

como único responsável pela realização da justiça.

Honneth parte do pressuposto que a verdadeira autonomia, interpretada pelas

teorias liberais como “condições para que cada um possa agir com base em suas próprias

convicções sobre aquilo que tem valor intrínseco na vida” (VITA, 2013, p. 55), precisa

ser intersubjetivamente adquirida, isto é, “para poder compreender chances profissionais

como caminhos para a realização das habilidades individuais, a pessoa primeiro precisa

ter compreendido suas disposições e talentos como importantes e dignos de realização.”

(HONNETH, 2009, p. 253)

Segundo o autor, “a autonomia necessita do reconhecimento recíproco entre

indivíduos” (HONNETH, 2009, p. 354) capaz de permitir que os mesmos se reconheçam

como seres cujas necessidades ultrapassam bens ou recursos distribuídos previamente.

Em suas palavras, a “autonomia é uma dimensão relacional, intersubjetiva, (...) [que se]

compõe de relações vivas de reconhecimento recíproco que são justas na medida em que

através delas e dentro delas aprendemos a valorizar reciprocamente nossas necessidades,

convicções e habilidades.” (HONNETH, 2009, p. 354). A liberdade individual, portanto,

não é uma faculdade adquirida capaz de permitir a escolha racional dos modos de vida,

mas sim “o resultado de relações de reconhecimento que se dão entre indivíduos.”

(HONNETH, 2009, p. 361).

A partir deste ponto, ele desconstrói o “esquema que nos é sugerido pelas teorias

oficiais com seus modelos distributivos e seus ensinamentos sobre situação original”

(HONNETH, 2009, p. 360), composto pelos três elementos supracitados. Analisemo-nos

com devido cuidado.

O principal ponto das teorias liberais de justiça criticado por Honneth é sua

preocupação meramente material que tem como objetivo aparente apenas distribuir bens

entre cidadãs e cidadãos segundo critérios a serem definidos no procedimento

constitutivo. Segundo ele, este elemento pressupõe o interesse dos sujeitos de justiça em

tais recursos para promoverem os próprios ideais de vida (HONNETH, 2009, p. 352). O

que as teorias se esquecem, contudo, é que para perseguir estes ideais, as pessoas precisam

compreender suas disposições e talentos como dignos de realização. Esta compreensão

são é um bem fixo, não é uma “coisa”, mas precisa ser adquirida em e através de relações

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entre pessoas. (HONNETH, 2009, p. 353) A autonomia não é per se inerente ao sujeito,

mas precisa ser alcançada por vias subjetivas.

Autonomia é uma dimensão relacional, intersubjetiva, não uma conquista monológica; aquilo que nos ajuda a adquirir uma tal autonomia resulta de outra matéria que não aquela que se consiste um bem a ser distribuído; ela se compõe de relações vivas de reconhecimento recíproco que são justas na medida em que através delas e dentro delas aprendemos a valorizar reciprocamente nossas necessidade, convicções e habilidades. (HONNETH, 2009, p. 354)

Um dos elementos mais importantes da teoria da justiça rawlsiniana é o que o

autor chama de posição original, estado hipotético e pré-social onde os sujeitos percebem

a necessidade de delimitar os princípios de justiça que serão norteadores para promover

a igualdade na sociedade uma vez criada. Este procedimento constitutivo, que pode ser

considerado o “elemento formal” das teorias da justiça liberais, é criticado por Honneth

na medida em que a “a ideia da distribuição de bens se constitui no pressuposto

perfeitamente adequado para este tipo de procedimentalismo” (HONNETH, 2009, p.

356), mas se a premissa de justiça como distribuição de bens não se sustenta, tendo que

ser analisada como relações sociais recíprocas, sua concepção desmorona. As relações de

reconhecimento, decisivas para realização da autonomia pessoal, não são distribuíveis,

quanto mais objetos passíveis de serem alocados aleatoriamente em um procedimento

decisório.

Tão logo não subsistam mais bens distribuíveis como matéria de justiça, tão logo por conseguinte nos despeçamos do paradigma distributivo, também não poderemos mais conceber a geração dos princípios de justiça correspondentes na forma de uma procedimento fictício em uma situação original qualquer: por mais equitativa, imparcial e livre de dominação que tal procedimento sempre possa constituído virtualmente, com o desaparecimento do esquema distributivo as partes envolvidas perdem ao mesmo tempo a capacidade de conceber em si a questão de uma ordem social justa como questão de recursos ou meios livremente disponíveis. (HONNETH, 2009, p. 356-357)

Resta-nos, então, o exame daquele último pressuposto argumentativo presente nas

teorias liberais dominantes e que, neste artigo, será principal foco de análise: o

pressuposto de que “somente o Estado (...) [dispõe] dos meios adequados, geralmente

aceitos, para implementar na sociedade os princípios de justiça tidos como justificados.”

(HONNETH, 2009, p. 357)

É possível conceber a ideia de justiça como função direta do Estado quando, na

esfera pública, “nos reconhecemos reciprocamente como cidadãos iguais e livres, e com

isso alcançamos consciência de nossa autonomia política.” (HONNETH, 2009, p. 358)

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Por outro lado, ao alcançar a esfera privada, onde situações recíprocas de reconhecimento

são observadas nas relações familiares e nas relações sociais de trabalho, a influência

estatal encontra-se limitada. Honneth enfatiza tais relações, pois acredita são nas relações

privadas onde adquirimos “tudo aquilo que mais tarde caracterizará nossa autoconfiança,

nossa capacidade de articular necessidades, [...] de nos perceber como valiosos, como

socialmente úteis em nosso desempenho e nossas competências.” (HONNETH, 2009,

358).

O autor, em seguida, questiona se devemos abandonar a pretensão de criar

condições mais justas nestas relações particulares apenas porque não parecem estar à

disposição de interferência do Estado e suas agências de justiça. Honneth conclui que

O fato de não conseguirmos perceber as atividades daquelas organizações civis [e pré-estatais, como grupos familiares, de autoajuda, sindicatos, comunidades eclesiásticas, empresas etc.] como intervenções morais, como incentivadoras sociais de justiça, é consequência de um estreitamento do olhar a que as teorias da justiça hoje dominantes nos induzem. (HONNETH, 2009, p. 359).

Na última parte do texto “A textura da justiça: sobre os limites do

procedimentalismo contemporâneo”, Honneth busca desenvolver, a partir das concepções

por ele desenvolvidas, os contornos de um modelo de justiça mais adequado. Em poucas

palavras, ele defende que

primeiro, o esquema distributivo teria que ser substituído pela concepção de uma inclusão de todos os sujeitos nas relações de reconhecimento desenvolvidas em cada situação; segundo, que no lugar da construção de um procedimento fictício deveria ser colocada uma reconstrução normativa que revele histórico-geneticamente as normas morais fundamentais daquelas relações de reconhecimento; e, terceiro, que o olhar exclusivo sobre a atividade reguladora do estado de direito deveria ser complementado por uma consideração descentralizada de agências e organizações não estatais. (HONNETH, 2009, p. 360, grifo nosso)

Honneth, em nenhum momento, busca fundamentar uma justiça em perspectiva

global. Seus esforços teóricos giram em torno das “organizações pré-estatais, associações

ou sociedades que se engajam em favor de uma melhoria nas condições de

reconhecimento em nome da justiça” (HONNETH, 2009, p. 359) e não da comunidade

internacional. Acenamos, porém, que sua defesa pela insuficiência do Estado como única

instância de realização da justiça também pode servir para aludir as muitas vezes em que

organizações internacionais não-governamentais são diminuídas em relação aos Estados

no debate por uma justiça global.

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Outro ponto importante traduz-se no fato de que Honneth não somente estabelece

um reconhecimento positivo das relações sociais como também um impõe uma espécie

de reconhecimento negativo, no sentido de outorgar responsabilização pela justiça a

entidades privadas (HONNETH, 2009, p. 351). A partir desta interpretação, a

responsabilidade da justiça também pode recair sobre empresas de capital privado cujo

fins se pretendem apenas lucrativos. Tal afirmação pode parecer irrelevante no esquema

atual do direito interno brasileiro, haja vista a função social da ordem econômica

estabelecida pelo texto constitucional. Contudo, ganha enorme destaque quando analisada

em perspectiva mundial, dado o processo de globalização comandado pelas grandes

corporações multinacionais a serviço de seus interesses, com a cumplicidade de governos

nacionais. Tal processo, além de juridicamente incontrolável, vem se mostrando

precursor de gritantes desigualdades.

5. A proposto de reenquadramento de Nancy Fraser

Nancy Fraser busca pensar o reconhecimento a partir de uma chave interpretativa

não marcada pela autorrealização ou pela política da identidade (MENDONÇA, 2013, p.

122). Sua investigação se concentra, sobretudo, na “nova relevância das lutas por

reconhecimento, sua separação das lutas por redistribuição e a relativa decadência desta

última, ao menos na sua forma igualitária centrada em classes sociais.” (FRASER, 2006,

p. 85) Para esta autora, a ausência de representação seria um exemplo de exclusão que,

embora relacionada a estas, não pode ser explicada apenas nas dimensões culturais e

econômicas.

Tal pressuposto vem marcando os escritos mais recentes de Fraser, sobretudo na medida em que a filósofa norte-americana se volta à compreensão da justiça em um contexto transnacional. De acordo com a autora, as teorias da justiça devem-se tornar tridimensionais, incorporando a dimensão política da representação ao lado da dimensão econômica da distribuição e da dimensão cultural do reconhecimento. Nessa definição tridimensional, a noção de reconhecimento permanece ligada à natureza cultural dos conflitos sociais, configurando-se como uma condição intersubjetiva para a paridade de participação. (MENDONÇA, 2013, p. 123-24)

Fraser ainda ressalta que “o fato de que a globalização está desestabilizando o

sistema do Estado westfaliano moderno.” (FRASER, 2006, p. 86) A crescente demanda

de processos transnacionais, isto é, processos que exigem cooperação e colaboração de

Estados-membros da comunidade internacional, está questionando a premissa liberal da

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 07, pp. 125-141, mai., 2015.

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nacionalidade e territorialidade da cidadania. O resultado, segundo a autora, é “a

reproblematização de uma questão que parecia solucionada, ao menos em princípio: as

origens e os limites da filiação política.” (FRASER, 2006, p. 86)

Ao constatar que diante de tais problemas as teorias da justiça encontram-se num

estágio transitório, Fraser destaca três tendências políticas que, se não combatidas, podem

“ameaçar o projeto de integração da redistribuição e do reconhecimento e (...)

promovendo desigualdades econômicas e violações dos direitos humanos.” (FRASER,

2006, p. 87) São elas a reificação, usada para designar a crescente interação e

comunicação transcultural que afeta as lutas pelo reconhecimento, o deslocamento,

causado pela aceleração da globalização econômica que marginaliza as lutas por justiça

enquanto redistribuição, e o desenquadramento.

Em “Reenquadrando a justiça em mundo globalizado”, artigo originalmente

publicado na New Left Review em 2005, Nancy Fraser expõe de maneira sistemática sua

crítica ao que ela chama de “enquadramento Keynesiano-Westfaliano”, ou seja, ao modo

de encarar justiça como uma função estatal em última instância.

No passado, quando as discussões acerca da justiça concerniam às relações entre

cidadãos, não convém condenar o fato de que tanto demandas por redistribuição

socioeconômica quanto reivindicações por reconhecimento legal ou cultural fossem

realizadas dentro dos espaços públicos nacionais. Enquanto problema de redistribuição

ou reconhecimento, de diferenças de classe ou de hierarquias de status, ele era tratado de

um modo em que a unidade da qual a justiça se aplicava era o Estado territorial moderno.

(FRASER, 2009, p. 12) Mesmo que ocasionalmente eventos como a fome ou o genocídio

ultrapassassem as fronteiras chocando a opinião pública, eles eram tratados como

problemas de segurança internacional, não justiça.

Atualmente, contudo, esse enquadramento vem perdendo sua força. Nas palavras

de Fraser, “graças à elevada preocupação com a globalização e às instabilidades

geopolíticas pós-Guerra Fria, muitos observam que os processos sociais que moldam suas

vidas rotineiramente transbordam as fronteiras territoriais” (FRASER, 2009, p. 14). As

decisões de um Estado muitas vezes impactam as vidas dos que estão fora dele, assim

como as ações de corporações multinacionais e dos especuladores financeiros

internacionais. Preocupações com questões como o aquecimento global, a disseminação

da aids e o terrorismo também ultrapassam fronteiras, além, claro, da crescente

visibilidade que organizações internacionais, tanto governamentais quanto não

governamentais, ganham através dos meios de comunicação de massa. O efeito disso é a

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desestabilização da prévia estrutura de formulação de demandas políticas – e, portanto, a

mudança do modo pelo qual discutimos a justiça. (FRASER, 2009, p. 14).

A configuração atual está emergindo, apesar (ou por causa) da descentralização do marco nacional de referência. Isto é, está ocorrendo quando cada vez é mais inverossímil postular que o Estado westfaliano como o único continente, campo e regulador da justiça social. Nestas condições, é imprescindível levantar as questões no nível adequado: como vimos, há que se determinar quais matérias são genuinamente nacionais, quais são locais, quais são regionais e quais são mundiais. Contudo, os conflitos atuais assumem, frequentemente, um marco de referência inadequado. (FRASER, 2006, p. 87)

Para Fraser, tanto a justiça pensada enquanto redistribuição de bens (como

tratamos, por exemplo, em John Rawls) quanto defendida como reconhecimento (como

é o caso de Axel Honneth), é afetada por este processo. Para citar dois de seus diversos

exemplos, podemos pensar nos oponentes da Organização Mundial do Comércio, que

atacam diretamente as novas estruturas de governança da economia global, enquanto

demanda de justiça redistributiva, e o movimento feminista enquanto demanda de justiça

de reconhecimento, que ultimamente defende a vinculação de “direitos das mulheres”

como “direitos humanos” para exigir uma reforma de legislação em nível internacional.

Em ambos os casos, os debates acerca de justiça estão implodindo o enquadramento

Keynesiano-Westfaliano (FRASER, 2009, p. 14).

Fraser sustenta que a justiça, nos dias de hoje, é um elemento que deve ser pensado

tridimensionalmente. Além de da dimensão econômica da distribuição e da dimensão

cultural do reconhecimento, a justiça deve incorporar a dimensão política da

representação. (FRASER, 2009, p. 17). Ela entende esta dimensão política contribuir

para determinar o alcance daquelas outras duas dimensões. (FRASER, 2009, p. 19).

Ao estabelecer regras de decisão, a dimensão política também estipula os procedimentos de apresentação e resolução das disputas tanto na dimensão econômica quanto na cultural: ela revela não apenas quem pode fazer reivindicações por redistribuição e reconhecimento, mas também como tais reivindicações devem ser introduzidas no debate e julgadas. (FRASER, 2009, p. 19)

Se a representação é a questão definidora da dimensão política da justiça, a

característica política da injusta é, portanto, a falsa representação. Fraser acredita que

“superar a injustiça significa desmantelar os obstáculos institucionalizados que impedem

alguns sujeitos de participarem, em condições de paridade com os demais, como parceiros

integrais de interação social” (FRASER, 2009, p. 17). Quando as fronteiras políticas de

uma comunidade são estabelecidas injustamente, excluindo de algumas pessoas as

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chances de participarem dos debates sobre a justiça, tem-se o que a autora denomina de

mau enquadramento.

Quando questões da justiça são enquadradas de uma forma que, erroneamente, exclui alguns indivíduos do âmbito de consideração, a consequência é um tipo específico de metainjustiça, em que se negam a esses a chance de formularem reivindicações de justiça de primeira ordem em uma dada comunidade política. (FRASER, 2009, p. 22)

A falsa representação, enquanto mau enquadramento, é uma das consequências

mais visíveis da globalização. Antes deste fenômeno, no auge do Estado de bem-estar

pós-guerra, a justiça pelo enquadramento possuía a distribuição como principal foco.

Com o surgimento dos novos movimentos sociais e do multiculturalismo, as atenções se

voltaram ao reconhecimento. Em ambos os casos, a figura do Estado foi assumida sem

discussão (FRASER, 2009, p. 23). O advento da globalização tem colocado a questão do

enquadramento diretamente na agenda política, visto que o modelo Keynesiano-

Westfaliano fraciona o espaço político de tal modo que impede os pobres e os desprezados

de desafiarem as forças que os oprimem (FRASER, 2009, p. 24). Nas palavras de Nancy

Fraser, “a arquitetura do sistema interestatal protege o mesmo fracionamento do espaço

político que ela institucionaliza, excluindo, de modo efetivo, as questões sobre a justiça

do processo democrático transnacional de tomada de decisão” (FRASER, 2009, p. 24).

Para Nancy Fraser, estas tendências ameaçam inviabilizar o projeto de integrar

redistribuição e reconhecimento em um marco político global (FRASER, 2006, p. 88).

Segundo ela, não há redistribuição ou reconhecimento sem representação (FRASER,

2009, p. 25). Uma teoria da justiça adequada, portanto, deve nos permitir colocar e

responder a questão política central de nossa era: como podemos integrar lutas contra a

má distribuição, o falso reconhecimento e a falsa representação dentro de um

enquadramento global?

6. Considerações finais

Não é preciso grande reflexão para constatar que as decisões dos Estados na

comunidade internacional são dominadas por uma distorcida visão utilitarista de justiça.

Esta corrente, em sua fundamentação clássica, considera um ato como correto quando

maximiza a felicidade geral, isto é, quando contribui para o bem-estar da maioria

(GARGARELLA, 2008, p. 3). Se, no entanto, forem admitidos os pressupostos do

utilitarismo de que os Estados agem movidos por egoísmo, buscando maximizar suas

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próprias vantagens, e se for igualmente aceito que esses atores veem na cooperação

internacional uma alternativa estratégica para alcançar seus objetivos, inclusive o da

própria preservação, pergunta-se, então, como deve ocorrer um diálogo entre pessoas que

se orientam por esse tipo de racionalidade e, acima de tudo, como sustentar que a justiça

de uma comunidade não é suficiente ao ponto de alcançar outra.

Honneth destaca que, ao responder à pergunta sobre “qual agência ou quais

instâncias são concebidas como apropriadas para implementar na realidade social os

princípios distributivos tidos como justificado” (HONNETH, 2009, p. 351), as teorias

liberais dominantes tendem a apontar o Estado como agência realizadora de justiça. De

fato, não podemos desconsiderar seu papel fundamental numa sociedade democrática de

direito; mas ao mesmo tempo, também não devemos ignorar sua insuficiência como única

instância responsável para promoção do ideal de justiça, ainda mais em nosso contexto

global. Como aponta Luciana Ballestrin,

[A]o contrário do que o termo semanticamente supõe em sua pretensão universal e homogênea, a globalização se mostrou profundamente assimétrica em termo de ritmo, intensidade e abrangência, produzindo desigualdades e injustiças que acentuaram as diferenças entre o Norte e o Sul. Pelos aeroportos das cidades globais não circulam apenas turistas a passeio ou executivos a negócios, mas também uma imensa massa de refugiados políticos, trabalhadores escravos e imigrantes ilegais. (BALLESTRIN, 2013, p. 243)

Os comunitários criticam as teorias liberais em sua indiferença às questões de

justiça global para além das fronteiras liberais. Honneth, por outro lado, defende a

insuficiência do Estado nas teorias dominantes como agente realizador de uma justiça,

ressaltando a importância de agentes não-estatais nas lutas por reconhecimento. Para

Fraser, o desenquadramento de matérias de justiça ameaça a nossa capacidade de

contextualizar a justiça numa conjuntura de globalização. Ela propõe ainda que

revisitemos o problema do enquadramento, buscando uma concepção múltipla de

“níveis” de justiça que descentre a visão estatal, pois apenas tal mudança permitiria

acomodar toda a extensão de processos sociais que ameaçam a plena participação de

indivíduos e grupos sociais num mundo globalizado.

Em vista disso, parece-nos plausível levar em consideração todas as críticas

apresentadas neste artigo, principalmente aquela articulada por Nancy Fraser. O caráter

“transnacional dos riscos – nucleares, militares, econômicos, ambientais, populacionais,

epidêmicos, biogenéticos – atingiu todas as populações do globo e impôs aos Estados

nacionais dilemas de coordenação e cooperação.” (BALLESTRIN, 2013, p. 243)

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 07, pp. 125-141, mai., 2015.

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Enquanto as teorias da justiça concentrarem-se na figura do Estado como seu único marco

de sustentação sem vincular o debate contra o mau enquadramento, as lutas contra a má

distribuição e o falso reconhecimento não poderão acontecer, tampouco obter êxito.

Referências Bibliográficas

BALLESTRIN, Luciana. Justiça Internacional. In: ALVRITZER, Leonardo. et. al. (Orgs.). Dimensões políticas da justiça – Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 2013. FRASER, Nancy. Reenquadrando a justiça em um mundo globalizado. São Paulo, SP: Lua Nova, v. 77, p. 11-39, 2009. FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. Redistribuición o reconocimiento: um debate político-filosófico – Madrid: Ediciones Morata, 2006. GARGARELLA, Roberto. As Teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política – São Paulo, SP: Martins Fontes, 2008. HONNETH, Axel. A textura da justiça: sobre os limites do procedimentalismo contemporâneo – Porto Alegre, RS: Revista Civitas, v. 9, p. 345-368, 2009. KYMLICKA, Will. Filosofia Política contemporânea: uma introdução – São Paulo, SP: Martins Fontes, 2006. MARTINS, Antônio Manuel. Liberalismo político e consenso constitucional – Coimbra: Revista Filosófica de Coimbra, v. 6, p. 321-259, 1994. MENDONÇA, Ricardo Fabrino. Reconhecimento. In: ALVRITZER, Leonardo. et. al. (Orgs.). Dimensões políticas da justiça – Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 2013. MINHOTO, Antonio Celso Baeta. Globalização e Direito: o impacto da ordem mundial global sobre o direito – São Paulo, SP: Juarez de Oliveira, 2004. RAWLS, John. Uma teoria da justiça – São Paulo, SP: Martins Fontes, 2000. VITA, Álvaro de. Liberalismo Contemporâneo. In: ALVRITZER, Leonardo. et. al. (Orgs.). Dimensões políticas da justiça – Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 2013.

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FREIXO, M. Entrevista.

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FREIXO, M. Entrevista.

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Entrevista com Marcelo FreixoEntrevista com Marcelo FreixoEntrevista com Marcelo FreixoEntrevista com Marcelo Freixo

Marcelo Freixo é formado em história pela Universidade Federal Fluminense,

militando desde a época da graduação na defesa dos direitos dos encarceirados. Já foi

pesquisador de Organizações não-governamentais e assessor parlamentar. Filiado ao

Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), já está em seu terceiro mandato como deputado

estadual, tendo sido o candidato mais votado das últimas eleições no Rio de Janeiro. Em

2012, foi candidato a prefeito do Rio de Janeiro, ganhando mais de 900 mil votos (30%

do total), o que lhe garantiu o segundo lugar na disputa. Militante dos direitos humanos,

presidiu em 2007 a CPI do tráfico de armas, instalada na ALERJ (Assembleia

Legislativa do Rio de Janeiro), e desde 2009 é presidente da Comissão de Defesa dos

Direitos Humanos e Cidadania naquela mesma casa legislativa.

No dia 18 de abril de 2015, após uma inspiradora palestra durante o 30º

Encontro Mineiro de Estudantes de Direito, entre uma conversa e outra, pouco antes de

voltar para o Rio de Janeiro, o professor e deputado gentilmente nos cedeu uma

entrevista, após a qual foi registrada a foto que se encontra na seção de “memória” desta

edição.

Intrv. : Marcelo, para você qual é o

papel do ensino institucionalizado e

especificamente do ensino de direito na

formação da juventude e na formação

da democracia?

M. F. : Então, eu sou formado em

história, mas como eu trabalho com

direitos humanos a muitos anos na

minha vida eu sempre dialoguei muito

com estudantes de direito, defensores e

militantes que passaram pelo curso de

direito. Eu acho que é decisivo o curso

de direito se aproximar de uma

concepção de justiça que vai para além

da lei, o Brasil é um país que tem uma

distância muito grande entre o real e o

legal,então é preciso que o estudantes

de direito tenha um pouco de Paulo

Freire na sua formação, não só dos

códigos civil,penal etc. O que é preciso

é aprender a ler o mundo, como Paulo

Freire falava, e ler o mundo muitas

vezes não é só lendo o código penal,

código civil ou qualquer norma legal. É

preciso entender mais um pouco,

preciso ver as pessoas , ver aqueles que

estão fora, ver de quem a lei está

falando e sobre o que ela fala. Então,

eu acredito que o ensino

institucionalizado tem o seu papel,ele é

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importante, mas é preciso um exercício

permanente e um hábito para se

aproximar da realidade.

Intrv. : E você como representante

político, qual é a maneira que você

enxerga a forma de aproximar a

representação política da população.

M. F. : Olha eu acho que eu não

represento muito essa política de hoje

não, estou meio em crise, inclusive. Isso

porque até que ponto eu penso o que eu

faço e como ele não representa o que

está acontecendo. Isso são dramas,

enfim, estou confessando algo muito

pessoal, reais. Não é fácil viver nesse

mundo representativo, estamos vivendo

em uma grande crise da democracia, da

representatividade no pós-ditadura, no

qual um determinado modelo de

democracia que nasceu, ruiu, ele

acabou. Eu concordo com o Safatle

[Vladimir Safatle] quando ele diz isso: a

nova democracia morreu. Então nós

precisamos reinventar a democracia, ea

nova democracia precisa contar com

internet, com novas formas de

participação direita, precisa contar com

uma concepção de cidade que envolva

mais as pessoas na suas decisões

cotidianas, porque a política hoje veio

pra rua, ela se deslocou pra rua. Essa

política não cabe mais na

institucionalidade. Ela tem

institucionalidade, é importante ter

institucionalidade, é importante ter

partido, é importante ter os tribunais,

mas ela precisa de algo mais. A

população quando vai pra rua dizer que

nada representa ela também está falando

da defensoria, do ministério público,ela

está falando do tribunal de justiça, dos

partidos, dos parlamento, dos governos.

Ela está falando de todo uma vida

institucional. Então essa vida

institucional precisa entender que ela

não da conta de tudo que está

acontecendo. Ela precisa entender que

as formas mais direita de participação

precisam ganhar mais espaço,a

população deve ter a capacidade de

tomar decisão.

Intrv. : Somente mais uma pergunta,

Marcelo: Se e como o Direito pode ser

um elemento de combate as

desigualdade e de transformação social?

M. F. : Ele não é isso naturalmente,

assim como a democracia não é

naturalmente. Aí o Brecht [Bertolt

Brecht] "Nada deve parecer natural.

Nada deve parecer impossível de

mudar". Eu acho que o ensino de direito

ele tem que se posicionar, e cada um

que faz o curso de direito tem que

buscar se posicionar, quem diz que

governa pra todo mundo, mente para

alguém. Quem diz que legisla para todo

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FREIXO, M. Entrevista.

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mundo, também mente para alguém.

Quem diz que julga igualmente todas as

pessoas, mente para alguém. Então você

vive uma realidade social que você tem

que aprender lê-la, e aprendera

entender; e daí você tem que ter lado,

que país que você quer construir. Daí é

isso que o Direito tem que fazer.

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Normas de Publicação

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 07, pp. 155-157, mai., 2015.

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Normas de Publicação

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Normas de Publicação

1. Regras Gerais 1.1 Todo artigo deve ser de autoria exclusiva de graduandos, não havendo

restrições com relação a área de conhecimento abordada, desde que dialoguem com a temática jurídica.

1.2 Para cada artigo submetido será aceito para avaliação apenas 1(um) trabalho como primeiro autor e os demais como co-autor, não podendo ultrapassar o máximo de 3 (três) no total.

1.3 Para a submissão de trabalhos, o autor deve enviar três arquivos em formato Word (.doc ou .docx) para o e-mail do periódico ([email protected]): um arquivo com o texto completo do artigo; um segundo arquivo com o mesmo texto, mas sem a identificação do autor; e um terceiro arquivo apenas com os dados (nome completo, filiação institucional e contatos) do(s) autor(es) e área do Direito que abordada diretamente no trabalho.

1.4 Os trabalhos devem conter de 15 a 20 laudas e estar de acordo com a formatação descrita nos itens abaixo e disponíveis no site do periódico: http://periodicoalethes.com.br/.

1.5 O artigo submetido deverá ser inédito, e não estar sob avaliação de nenhuma outra revista. Entretanto, obras publicadas em anais de congressos e outros eventos acadêmicos podem ser republicados na revista, contanto que tenham ocorrido alterações substanciais.

2. Critérios de avaliação e aceitação dos artigos. 2.1 Todo artigo será submetido à análise do Conselho Editorial, sendo enviados a

dois pareceristas anônimos para avaliação qualitativa de conteúdo, segundo o método da avaliação duplo-cega por pares.

2.2 Os pareceristas serão definidos pelos editores de acordo com a área de atuação/formação, a qual deverá ser, na máxima medida do possível, coincidente com a temática do artigo a ser avaliado.

2.3 Os pareceristas deverão optar por uma das seguintes recomendações: Aprovado; reprovado; aprovado com necessidade de alterações. Caso haja uma aprovação e uma reprovação, o artigo será enviado a um novo pareceristas para decisão final.

2.4 Recebidos os pareceres pelo Editor, esse definirá a publicação ou não dos artigos, enviando as justificativas e especificações necessárias ao autor, com o intuito que ele possa adequar seu trabalho às sugestões feitas e reenviá-lo para nova avaliação.

2.5 Os pareceres poderão conter indicações de bibliografia, sugestões de mudanças na estrutura dos textos, acréscimo ou subtração de informações, críticas, elogios, sugestões e outras observações julgadas pelo pareceristas como pertinentes para a melhoria do conteúdo do artigo e para a adequação deste aos critérios definidos pela revista.

2.6 Feitas as alterações pelos autores, caso sejam aprovadas pelo conselho editorial, o artigo será publicado. A ALETHES, no entanto, reserva-se o direito de colocar as obras nos números seguintes, conforme for a conveniência.

2.7 O processo de análise dos artigos terá o prazo de 30 a 45 dias, que se iniciará ao fim da chamada de artigos, definido neste edital.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 07, pp. 155-157, mai., 2015.

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2.8 Serão utilizados como critérios: a adequação à metodologia científica; a relevância do tema e a originalidade da abordagem; o bom delineamento do objeto de pesquisa; a qualidade na seleção e no manejo da bibliografia pertinente; a utilização da norma culta da língua portuguesa; e outros que forem julgados pertinentes.

2.9 A decisão dos editores é final, e dela não cabe recurso. 3. Estrutura e Formatação dos artigos. 3.1 Os artigos devem ser apresentados digitados em folha A4 (210 x 297 mm). 3.2 Editor de texto Word for Windows 6.0 ou posteriores. Times New Roman,

tamanho 12. 3.3 Margens esquerda, direita, superior e inferior de 2 cm. 3.4 Espaçamento e Parágrafos: Espaçamento 1,5 entre linhas, com texto

justificado. Parágrafo recuado 1,25 da margem esquerda e sem espaço entre parágrafos. 3.5 Texto.

3.5.1 A primeira página deve conter título (português e inglês) com no máximo 15 palavras, com alinhamento centralizado, fonte Times New Roman, tamanho 14, destacado em negrito

3.5.2 O nome do(s) autor(es) deve vir logo abaixo do título, com duplo espaço, fonte Times New Roman, tamanho 12 e alinhados à direita.

3.5.3 O nome do autor deve ser acompanhado pela primeira nota de rodapé, contendo um breve currículo do autor, levando em consideração a Instituição e o curso do graduando

3.5.4 A primeira página deve conter um resumo em português – antecedidas pela expressão “Resumo:”, também em português e inglês - com no máximo 300 palavras, fonte Times New Roman, tamanho 12.

3.5.5 As palavras-chave devem figurar logo abaixo do resumo, em um número máximo de 5 palavras, com espaçamento simples, antecedidas da expressão “Palavras-chave:”, em português e inglês; separadas entre si por ponto e finalizadas também por ponto.

3.5.6 O texto, de forma geral, deve ser digitado, fonte Times New Roman, tamanho 12, alinhamento justificado.

3.5.7 As notas devem ser postas no rodapé do texto, numeradas em sequência, fonte Times New Roman, tamanho 10, alinhamento justificado.

3.5.8 As citações devem seguir a regra: se menores que três linhas, serem inseridas diretamente no texto, entre aspas, com indicação da devida referência, de acordo com as normas da ABNT. E, se maiores que três linhas, devem ser destacadas com recuo à esquerda de 4 centímetros, fonte Times New Roman, tamanho 10, com a indicação da devida referência, de acordo com as normas da ABNT. 3.6 Referências Bibliográficas: As referências completas deverão ser

apresentadas, em ordem alfabética e no final do texto, de acordo com as normas da ABNT.

4. Disposições Finais 4.1 As opiniões contidas nos artigos são de inteira responsabilidade dos seus

autores, de modo que a ALETHES não se responsabiliza pelo conteúdo dos textos que publica.

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4.2 A publicação dos artigos não terá por contrapartida qualquer tipo de remuneração aos autores, especialmente financeira.

4.3 Os autores, ao concordarem com a publicação de seus artigos, estarão concedendo do direito da primeira publicação à ALETHES. Ficam autorizados a republicá-los futuramente, aceitando, contudo, citar o nome e edição da revista, fazendo referência ao fato de a publicação original ter ocorrido na ALETHES.

4.4 A constatação de qualquer imoralidade, ilegalidade, fraude ou outra atitude que coloque em dúvida a lisura da publicação, em especial a prática de plágio, importarão imediato abortamento do processo de avaliação do artigo; caso este já tenha sido publicado, ele será retirado da base da revista, sendo proibida sua posterior citação vinculada ao nome da ALETHES, e, no número seguinte da revista, será publicado texto divulgando e justificando o cancelamento da publicação.