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Vol.51(3),pp.96-105 (Jan - Mar 2017) Revista UNINGÁ ISSN impresso: 1807-5053 I Online ISSN: 2318-0579 Openly accessible at http://www.mastereditora.com.br/uninga CRIMES CONTRA AS RELAÇÕES DE CONSUMO E A PERÍCIA MÉDICA VETERINÁRIA CRIMES AGAINST CONSUMER RELATIONS AND THE VETERINARY MEDICAL EXPERTISE ENEIDA MARIA DE ROSA SILVA DACAL¹*, SÉRVIO TÚLIO JACINTO REIS 2 1. Aluna do Curso de Pós-Graduação em Medicina Veterinária Legal do Instituto Qualittas; 2. Médico Veterinário. Perito Criminal Federal. Setor Técnico-Científico. Polícia Federal. Curitiba, PR. * Rua Nelson Borges de Barros, 204 B. Carandá Bosque II, Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil. CEP: 79.032-190 [email protected] Recebido em 10/12/2016. Aceito para publicação em 10/01/2017 RESUMO O presente artigo discorre sobre o tema saúde pública, ali- mentos seguros e os preceitos legais que asseguram esse direito de previsão constitucional. O ordenamento jurídico brasileiro possui diversas normas de proteção que impõem regras no tocante à alimentação saudável, com repercus- sões nas esferas administrativa, cível e criminal. A perícia médica veterinária é um profícuo campo de atuação onde o profissional médico veterinário empresta seu conhecimento técnico-científico como auxílio às decisões judiciais. Enten- dimentos recentes do Superior Tribunal de Justiça apon- tam para uma padronização na classificação dos crimes cometidos contra a saúde pública, dando azo à participação desse profissional como perito. No que tange às ilicitudes sanitárias, casos similares aos enfrentados por peritos vete- rinários são vivenciados pelos serviços de defesa e inspeção sanitária dos estados e como ilustração dessas condutas apresentamos um histórico de ocorrência vivido por agen- tes públicos do Estado do Mato Grosso do Sul. Este tra- balho visa reunir em um tópico a saúde pública e a rele- vância do médico veterinário como combatente de mano- bras fraudulentas contra o consumidor, atuando como pe- rito em ações cíveis e criminais ou como agente fiscal na esfera administrativa, cujo bem jurídico protegido é a dig- nidade humana. PALAVRAS-CHAVE: Ciência Forense. Agricultura. Saúde Pública. Legislação Sanitária. Medicina Veterinária Legal. ABSTRACT This present article talks about public health, food safety and the legal provisions that ensure this constitutionally provided right. The brazilian legal order has several protection standards that imposes rules about healthy feeding with predicted typifications in administrative, civil and criminal areas. The veterinary medical expertise is an emergent field where the medical vet- erinarian knowledge is applied to the lawsuits. Recent under- standings from the Supreme Court point to a standardization in the classification from the crimes against the public health, providing opportunities to this professional as an expert. About illegal sanitary activity, similar cases faced by veterinarian experts are experienced by defense services and sanitary in- spection of states and as illustration of these illegal activities we present an occurrence experienced by public agents of the state of Mato Grosso do Sul. These work aims to bring together on a topic - the public health, the relevance of the veterinarian as a combatant in fraudulent practices against the consumer, as an expert in civic and criminal actions or as a supervisor agent on administrative area which legal guardianship is the human dignity. KEYWORDS: Forensic Science. Agriculture. Public Health. Health Legislation. Legal Veterinary medicine. 1. INTRODUÇÃO Sintetizada por Esquivel (2009) a escala evolutiva da saúde pública pode ser vislumbrada através dos períodos representados pela idade média, sob influência de as- pectos sobrenaturais, o século XVII com o tratamento de doenças baseados na ciência, o século XIX, no período industrial, quando surge uma conscientização de bem estar voltada ao indivíduo, entretanto com objetivo pri- mordial de manutenção de mão-de-obra saudável, até o século XX, quando então se tem a saúde não somente vinculada a processos curativos, mas, sobretudo, voltada às ações preventivas. Verifica-se no retrocesso temporal que o tema saúde pública sempre foi objeto de preocupação. Medidas de mitigação de enfermidades já citavam a importância da qualidade dos alimentos como mantenedor do equilíbrio corpo-mente. No avanço histórico, é na Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU,1948) que a sa- úde passa a ser considerado um direito, garantindo ao homem um nível de vida condigna e que lhe assegure a saúde, o bem-estar, a alimentação, dentre outros. Situações envolvendo irregularidades na cadeia pro-

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Vol.51(3),pp.96-105 (Jan - Mar 2017) Revista UNINGÁ

ISSN impresso: 1807-5053 I Online ISSN: 2318-0579 Openly accessible at http://www.mastereditora.com.br/uninga

CRIMES CONTRA AS RELAÇÕES DE CONSUMO E APERÍCIA MÉDICA VETERINÁRIA

CRIMES AGAINST CONSUMER RELATIONS AND THEVETERINARY MEDICAL EXPERTISE

ENEIDA MARIA DE ROSA SILVA DACAL¹*, SÉRVIO TÚLIO JACINTO REIS2

1. Aluna do Curso de Pós-Graduação em Medicina Veterinária Legal do Instituto Qualittas; 2. Médico Veterinário. Perito CriminalFederal. Setor Técnico-Científico. Polícia Federal. Curitiba, PR.

* Rua Nelson Borges de Barros, 204 B. Carandá Bosque II, Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil. CEP: [email protected]

Recebido em 10/12/2016. Aceito para publicação em 10/01/2017

RESUMOO presente artigo discorre sobre o tema saúde pública, ali-mentos seguros e os preceitos legais que asseguram essedireito de previsão constitucional. O ordenamento jurídicobrasileiro possui diversas normas de proteção que impõemregras no tocante à alimentação saudável, com repercus-sões nas esferas administrativa, cível e criminal. A períciamédica veterinária é um profícuo campo de atuação onde oprofissional médico veterinário empresta seu conhecimentotécnico-científico como auxílio às decisões judiciais. Enten-dimentos recentes do Superior Tribunal de Justiça apon-tam para uma padronização na classificação dos crimescometidos contra a saúde pública, dando azo à participaçãodesse profissional como perito. No que tange às ilicitudessanitárias, casos similares aos enfrentados por peritos vete-rinários são vivenciados pelos serviços de defesa e inspeçãosanitária dos estados e como ilustração dessas condutasapresentamos um histórico de ocorrência vivido por agen-tes públicos do Estado do Mato Grosso do Sul. Este tra-balho visa reunir em um tópico a saúde pública e a rele-vância do médico veterinário como combatente de mano-bras fraudulentas contra o consumidor, atuando como pe-rito em ações cíveis e criminais ou como agente fiscal naesfera administrativa, cujo bem jurídico protegido é a dig-nidade humana.

PALAVRAS-CHAVE: Ciência Forense. Agricultura. SaúdePública. Legislação Sanitária. Medicina Veterinária Legal.

ABSTRACTThis present article talks about public health, food safety and thelegal provisions that ensure this constitutionally provided right.The brazilian legal order has several protection standards thatimposes rules about healthy feeding with predicted typificationsin administrative, civil and criminal areas. The veterinarymedical expertise is an emergent field where the medical vet-erinarian knowledge is applied to the lawsuits. Recent under-standings from the Supreme Court point to a standardization inthe classification from the crimes against the public health,

providing opportunities to this professional as an expert. Aboutillegal sanitary activity, similar cases faced by veterinarianexperts are experienced by defense services and sanitary in-spection of states and as illustration of these illegal activities wepresent an occurrence experienced by public agents of the stateof Mato Grosso do Sul. These work aims to bring together on atopic - the public health, the relevance of the veterinarian as acombatant in fraudulent practices against the consumer, as anexpert in civic and criminal actions or as a supervisor agent onadministrative area which legal guardianship is the humandignity.

KEYWORDS: Forensic Science. Agriculture. Public Health.Health Legislation. Legal Veterinary medicine.

1. INTRODUÇÃOSintetizada por Esquivel (2009) a escala evolutiva da

saúde pública pode ser vislumbrada através dos períodosrepresentados pela idade média, sob influência de as-pectos sobrenaturais, o século XVII com o tratamento dedoenças baseados na ciência, o século XIX, no períodoindustrial, quando surge uma conscientização de bemestar voltada ao indivíduo, entretanto com objetivo pri-mordial de manutenção de mão-de-obra saudável, até oséculo XX, quando então se tem a saúde não somentevinculada a processos curativos, mas, sobretudo, voltadaàs ações preventivas.

Verifica-se no retrocesso temporal que o tema saúdepública sempre foi objeto de preocupação. Medidas demitigação de enfermidades já citavam a importância daqualidade dos alimentos como mantenedor do equilíbriocorpo-mente. No avanço histórico, é na DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos (ONU,1948) que a sa-úde passa a ser considerado um direito, garantindo aohomem um nível de vida condigna e que lhe assegure asaúde, o bem-estar, a alimentação, dentre outros.

Situações envolvendo irregularidades na cadeia pro-

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Dacal & Reis / Revista Uningá V.51(3),pp.96-105 (Jan- Mar 2017)

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dutiva do alimento não são casos esporádicos. Deman-dam do Poder Público um grande número de ações naintenção de impedir a evolução da irregularidade quepode ocorrer em toda a cadeia alimentar, desde a produ-ção primária até o consumo final. Cumpre ressaltar aimportância dos alimentos como uma necessidade vitaldo ser humano, cujo consumo deve atender seus objeti-vos essenciais à vida. Para tanto, é também necessárioque estejam livres de substâncias potencialmente noci-vas.

Consagrada como um direito social, é na Constitui-ção Federal (BRASIL,1988) que a saúde encontra pre-ceito legal, conferindo ao Estado, em seu artigo 196, odever de garantir esses direitos à população. Mormenteseja obrigação do Estado assegurar o direito à saúde, háde se ressaltar a união de esforços como um dever quealcança toda a sociedade, inclusive o Poder Público.

A legislação brasileira possui normativas que prote-gem o consumidor contra abusos praticados nas relaçõesde consumo nas diversas searas, seja administrativa,cível ou criminal, sendo a esfera administrativa atribuídaaos serviços de vigilâncias sanitárias e aos órgãos públi-cos ligados à agricultura, com legislações pertinentes acada setor.

Na área criminal tais irregularidades encontram pre-visão legal no Código Penal (Dos Crimes Contra a Saú-de Pública), no Código de Defesa do Consumidor (CDC,Lei 8.078/90) e na Lei 8.137/90 (Crimes Contra as Re-lações de Consumo), todas prevendo sanções penais paracondutas delituosas praticadas contra o consumidor.

No que se refere a medidas protetivas do consumidor,o médico veterinário, com seu conhecimento técni-co-científico, tem participação preponderante para oesclarecimento de fatos de interesse da justiça e investi-gação dos delitos. Com uma sociedade atual em evolu-ção em diversos setores, a medicina veterinária tambémprospera em novas áreas, lastrando o conceito da Medi-cina Veterinária Legal e inculcando no meio judiciário aparticipação desse profissional como auxiliar da Justiça.

Reis (2013) define a Medicina Veterinária Legal comouma especialidade que aplica conhecimentos inerentes àmedicina veterinária aos fins do Direito e da Justiça, coma participação do médico veterinário como perito, assis-tente técnico ou consultor. Alude que assim como na áreahumana, a medicina veterinária também possui suacomplexidade técnica e evidencia que a prova técni-co-científica, mais do que o testemunho e a confissão,vem se fortalecendo no meio jurídico, tornando imperiosaa participação do profissional para o deslinde de casosenvolvendo animais.

Desse modo, ações que envolvam animais seus pro-dutos ou subprodutos abarcam os mais diversos campos,dentre eles tráfico de animais, bem-estar animal, crimesambientais, defesa do consumidor, seguro animal e saú-de pública, entre outros.

Corroborando a informação acima mencionada,Conceição (2015) ressalta a crescente demanda pela par-ticipação desses profissionais em processos judiciais,especialmente em ações cujas partes buscam a elucida-ção das circunstâncias por meio de provas que compro-vem a veracidade dos fatos. Contudo apregoa que paraque a Perícia Médica Veterinária tenha sua ascensão re-conhecida é fundamental um trabalho em comunhãoentre os profissionais interessados na área, o Poder Judi-ciário valorando as orientações de natureza técnica e asociedade em geral pleiteando a participação dos peritospara a solução das lides.

Nesse ambiente, o agente fiscal, com similaridade deações, também busca salvaguardar a eficiência da segu-rança alimentar, uma vez que suas condutas são semprevoltadas ao bem público, não sendo incomum que irre-gularidades sanitárias de ordem administrativa culminemem ações judiciais.

O presente trabalho reúne em um tema a saúde pú-blica e a relevância do médico veterinário como comba-tente de práticas fraudulentas contra o consumidor, atu-ando como perito em ações cíveis e criminais assim co-mo agente fiscal no âmbito administrativo, tendo comobem jurídico tutelado o direito à vida, a saúde e à digni-dade humana.

2. MATERIAL E MÉTODOSEste artigo corresponde à revisão de literatura sobre

os diversos tipos de injustos praticados contra as rela-ções de consumo envolvendo produtos de origem animal,as fraudes alimentares e os comandos normativos queregulamentam as sanções legais. A pesquisa envolveuconsultas a livros, artigos e pesquisa via internet. Final-mente, foi retratado em relato de caso evento presencia-do pelo serviço de defesa sanitária animal do Estado doMato Grosso do Sul.

3. DESENVOLVIMENTODe elevado impacto econômico em todo o mundo, as

doenças de origem alimentar são um tema relevante nasaúde pública. Preocupações com fraudes e abusos co-metidos pelos detentores das atividades de mercado ain-da geram várias discussões entre a opinião pública e osserviços regulamentadores. Tal afirmação é corroboradapor Souza (2007) que faz uma abordagem sobre a orga-nização, o funcionamento e a regulamentação do comér-cio de gêneros alimentícios no Rio de Janeiro no períodode 1840 a 1889. Destacava-se desde então, entre as in-frações mais cometidas a venda de produtos falsificadose a comercialização de gêneros em condições imprópriasao consumo. A capital do Império contava com um “Có-digo de Postura” onde já postulavam penalidades pecu-niárias e sanitárias aos agentes infratores e tais delitospoderiam resultar em prisões dos responsáveis.

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O controle sanitário dos alimentos não perdeu suamagnitude no decorrer histórico. Erigido à condiçãoconstitucional, conforme dita o texto da ConstituiçãoFederal (BRASIL, 1988) em seu artigo 200, inciso VI:“fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido ocontrole de seu teor nutricional, bem como bebidas eáguas para consumo humano”. A Declaração Universaldos Direitos Humanos (ONU,1948) já mencionava asegurança alimentar e tornou-a direito reconhecido aohomem, onde informa que “todo ser humano tem direitoa um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua fa-mília saúde e bem-estar, inclusive alimentação”. Há,portanto uma obrigação de garantia da segurança dosalimentos em todos os segmentos dos setores produtivos,constituindo, juntamente com os consumidores, um eloimportante da cadeia alimentícia.

Tema do Dia Mundial da Saúde no ano de 2015, aOrganização Mundial da Saúde (OMS) fez um alertasobre a necessidade de buscar renovações e reforços nasmedidas de controle aos desafios e ameaças que cons-tantemente surgem à segurança alimentar, trabalho queexige esforço compartilhado de vários segmentos e en-volve toda uma cadeia produtiva – de agricultores e fa-bricantes a fornecedores e consumidores. De acordo coma OMS, por ano registram-se 582 milhões de casos dedoenças em decorrência de alimentação imprópria para oconsumo. Cabe aqui frisar que segundo Esquivel (2009)devido à similaridade dos sintomas causados por intoxi-cações alimentares e de outras patologias mais simplescomo a gripe, muitos desses casos não tem notificaçãoconfirmada, o que pode elevar em muito o número realde infecções causadas por alimentos. Ademais, destacaque esses injustos penais podem resultar nas chamadascifras negras ou ocultas, ou seja, são crimes que não en-tram nas estatísticas por não ter o conhecimento das au-toridades.

Frente a essas ameaças, a OMS pretende alertar sobrea necessidade de ações que englobem toda a cadeia deabastecimento de alimentos, com o desenvolvimento desistemas que auxiliem os governos nas estratégias deações públicas para conter esses avanços (REIS, 2015).Convém destacar que a OMS é tida como orientadora eelaboradora das ações de políticas internacionais ligadosà saúde pública (ESQUIVEL, 2009 apud SOARES,1999).

Propagando a ideia de saúde pública e os meios dealcançar esse intento, aconteceu no ano de 2016, na ci-dade de Curitiba/PR a Conferência Mundial de Promo-ção da Saúde e Educação (UIPES) com o tema “Promo-vendo Saúde e Equidade”, cuja intenção foi de avaliar oprogresso, as estratégias apresentadas, resultados depesquisas e por fim sobre as práticas e políticas inova-doras para a obtenção desse objetivo (ONUBR, 2015).Insta ressaltar o propósito da conferência de incrementara promoção de saúde no mundo, através do fortaleci-

mento dos serviços comunitários, das políticas públicas euma eficaz participação da sociedade.

Segundo Ramos (2014), o incremento na produçãoalimentícia associado à diversidade de produtos e evo-lução tecnológica da indústria confere ao poder público anecessidade de intensificação das atividades relativas aocontrole sanitário no setor alimentício, com fiscalizaçãonos diversos ramos do ciclo produtivo, do cultivo à efe-tiva disponibilização ao consumo, considerando quenegligência e omissões podem resultar em efeitos dano-sos à saúde do consumidor dada a natureza perecíveldessas mercadorias.

Não obstante a diversidade de normas regulamenta-doras no controle dessas atividades e de vigilâncias con-tínuas praticadas pelos setores competentes, as irregula-ridades na cadeia produtiva ainda são cometidas. Fraudese falsificações com objetivo claro de diminuir custos deprodução, mascarar condições inapropriadas entre outrasirregularidades infelizmente são uma constante.

De fato, a legislação em vigor no Brasil referente aoassunto é bastante ampla. Normas de proteção ao con-sumidor e à população em geral, no que concerne à ga-rantia de alimentos seguros, estão previstas nas diversasesferas, sejam administrativas, cíveis ou criminais. Oconsumidor é um importante reforço na demanda poratributos de qualidade dos alimentos. Ações de fiscali-zação, inspeção e regulamentação governamentais podemser insuficientes agindo isoladamente como garantia dasegurança dos produtos.

No âmbito da fiscalização administrativa, estão osórgãos de vigilâncias sanitárias e os órgãos públicosvinculados ao Ministério da Agricultura, Pecuária eAbastecimento (MAPA) que tutelam suas atividadesbaseadas em normativas específicas a cada setor. Dessemodo, a Lei 7.889 (BRASIL,1989), que alterou algunsdispositivos da Lei 1.283 (BRASIL, 1950), estabelececompetência entre os entes federativos, outorgando aonível federal a inspeção dos estabelecimentos de comér-cio interestadual ou internacional, aos estados os de co-mércio intermunicipal e aos municípios os estabeleci-mentos restritos ao comércio municipal. Logo, todos osentes federativos tem competência legal para fiscalizar eelaborar as diretrizes de ação governamental para inspe-ção de produtos e derivados de origem animal. Nessecontexto, não é incomum que processos administrativosdecorrentes de infrações sanitárias alcancem também aesfera criminal.

Atuando em estabelecimentos de comércio interna-cional, o Ministério da Agricultura tem suas ações legi-timadas pelo Decreto 30.691 - RIISPOA (BRASIL,1952),que estabelece normas que regulamentam a inspeção efiscalização industrial e sanitária de produtos de origemanimal. Em seu artigo 1º, o regulamento impõe normas“destinadas a preservar a saúde e os interesses do con-sumidor”, com isso se fortalece a ideia de que essa nor-

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ma possui o intento essencial de preservação da incolu-midade pública assegurando ao indivíduo e a coletivida-de a integridade, o bem-estar, a vida e a saúde.

Vale lembrar que outros diplomas de abrangência es-tadual e municipal no âmbito de seus limites tambémdesenvolvem ações de fiscalização e inspeção, com aaplicabilidade das sanções administrativas de proteção àsaúde do consumidor, como multas, apreensões e des-truição de produtos, suspensão e interdição de estabele-cimentos.

No âmbito criminal, a Lei nº 8.137 (BRASIL,1990), éum dispositivo valioso contra irregularidades e condutasmaliciosas praticados contra as relações de consumo.Em seu artigo 7º, inciso IX ressalta que “Constitui crimecontra as relações de consumo, vender, ter em depósitopara vender ou expor à venda ou, de qualquer forma,entregar matéria-prima ou mercadoria, em condiçõesimpróprias ao consumo”. Dessa forma, quem produz,vende, entrega ou mantém matérias primas, insumos ouprodutos alimentícios em condições inapropriadas para oconsumo está cometendo ato ilícito, intentado de má-féou dolo, com assegurada disponibilidade legal.

Por ser norma penal em branco, o referido artigo en-contra preceito legal no artigo 18, § 6º, I, II, III do CDC(BRASIL, 1990) onde estabelece a responsabilidade“pelos vícios de qualidade ou quantidade que tornemprodutos impróprios ou inadequados ao consumo, defi-nindo como impróprios para o consumo aqueles “cujosprazos de validade estejam vencidos” (inciso I), “produ-tos deteriorados, alterados, adulterados, avariados, falsi-ficados, corrompidos, fraudados, nocivos à vida ou àsaúde, perigosos ou, aqueles em desacordo com as nor-mas regulamentares de fabricação, distribuição ou apre-sentação” (inciso II) e “os produtos que por qualquermotivo, se revelem inadequados ao fim a que se desti-nam” (inciso III)”.

Além das previsões legais anteriormente citadas, po-rém de maneira mais ampla, o CDC (BRASIL,1990) emseu artigo 61, dispõe que condutas previstas em seusartigos subsequentes (63 ao 80) constituem crimes contraas relações de consumo, sem prejuízo do disposto noCódigo Penal e leis especiais, corroborando assim paraque a esfera penal seja mais uma forma de defesa doconsumidor, além da administrativa e cível.

Consolidando as medidas protetivas à população emprol de uma alimentação saudável, o Código Penal(BRASIL, 1940) no Título VII (Dos Crimes contra aSaúde Pública), também trata da incolumidade pública econtempla em seus artigos 272, 274, 275, 276, 277 e 278delitos praticados contra a inocuidade de produtos ali-mentícios, semelhantes aos previstos no artigo 7º, IX, daLei 8.137 (BRASIL,1990). Na valoração da severidadede condutas fraudulentas contra o consumidor, a Lei9.677 (BRASIL,1998), altera alguns dispositivos do Có-digo Penal e impõe sanções penais mais rigorosas trans-

formando em crime de natureza hedionda os delitos co-metidos contra a saúde pública (grifo nosso).

Como se vê, dada a importância das Doenças Trans-mitidas por Alimentos (DTAs) e as consequências dessasações maliciosas é mister o fomento de ações contráriasàs fraudes alimentares uma vez que essas práticas cons-tantemente evoluem e da mesma forma devem evoluir osmeios de detecção e mitigação dos riscos. A investigaçãodo cumprimento de normas e leis para produção, mani-pulação e comercialização desses alimentos constitui umaimportante função do médico veterinário, seja agindocomo fiscal nas esferas administrativas ou como perito abem do serviço judicial.

Mormente classificado pelo Superior Tribunal deJustiça (STJ) como crimes formais e de perigo abstrato,quando não há a necessidade de realização de prova pe-ricial para atestar a materialidade do ilícito, bastan-do, para isso que se coloque em risco a saúde de eventu-al consumidor da mercadoria, um novo entendimento doSTJ pode mudar os rumos processuais de crimes come-tidos contra a saúde pública. Considerada até então que aimpropriedade do produto poderia ser apenas presumidaante a desnecessidade de prova pericial, acordaram osministros em decisão unânime de agravo regimental, quepara que se caracterizasse o delito previsto no artigo 7º daLei 8.137 (BRASIL,1990), seria “imprescindível” a rea-lização de perícia a fim de atestar a inequívoca potencia-lidade lesiva do produto. Classificando-o, portanto comocrime material de perigo concreto (STJ/DF, 2012, grifonosso).

Observada a jurisprudência no tocante aos crimescontra saúde pública, verifica-se uma questão jurídicaque aponta para uma uniformidade no Supremo Tribunalde Justiça dando rumos profícuos às ações judiciais cominterveniência pericial.

Sempre que um crime deixa vestígios, o exame decorpo de delito, direto ou indireto, torna-se um impera-tivo, conforme o Código de Processo Penal, artigo 158,Decreto-Lei nº 3.689 (BRASIL, 1941). Nos crimes queenvolvem produtos de origem animal, o profissionalcompetente para a realização da respectiva perícia é omédico veterinário.

Importa ressaltar que todo médico veterinário podeatuar como perito. Com atuação legal prevista na Lei5.517 (BRASIL,1968), que dispõe sobre o exercício daprofissão de médico veterinário, atribuindo a esses pro-fissionais, em seu artigo 5º, atividades e funções de pe-ritagem sobre animais e produtos de origem animal. Ou-trossim, o referido preceito privatiza aos médicos vete-rinários o exercício da peritagem, restringindo, portanto,que profissionais de outras áreas atuem nas ações queenvolvam animais, seus produtos e subprodutos. Hodi-ernamente vemos um aumento dessa categoria de profis-sionais e fortes tendências do incremento das períciasmédicas veterinárias como reforço na elucidação dos

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fatos em processos judiciais.Conforme o conceito acima tracejado, Conceição

(2015) esclarece que a nomeação do perito, na esferacível, é feita exclusivamente por um magistrado e tem porobjetivo a elucidação das divergências levantadas poruma ou ambas as partes de um processo judicial através aprodução da prova principal que é o laudo médico vete-rinário pericial. Destaca que nele deve constar a descriçãominuciosa do feito, devendo ser imparcial e objetivo, comclareza e riqueza de detalhes para que cumpra seu pro-pósito de sustentação à decisão judicial.

França (2012) descreve que a finalidade da perícia éde produzir a prova, e a prova é o elemento de compro-vação de um fato que certifica a ocorrência de um feitocontrário ao direito, um delito. Fornece, assim, ao ma-gistrado a percepção da verdade para a formação de suaconvicção e a solução de um conflito. Esclarece que “parao devido conhecimento da verdade jurídica a ser resta-belecida, o direito processual penal deve se valer deprovas para a formação da convicção do julgador”, daí avaliosa minudência na análise e interpretação de dadoscolhidos para a composição final do laudo pericial.

Dada a importância das informações prestadas peloperito, Alberto Filho (2015) ratifica que, sendo a provaessencial ao processo e sobretudo de cunho técnico, maisse evidencia a relevância e valoração do perito e de suaparticipação no processo. Condição que gera respeito domagistrado que busca nele as virtudes necessárias para amelhor elucidação da causa.

A exemplo da participação acima mencionada, con-vém destacar nota publicada pela assessoria de comuni-cação do Conselho Federal de Medicina Veterinária/CFMV salientando a atuação do profissional em conde-nação inédita no Brasil por crime contra animais. Comresultado exemplar nestes eventos, o presidente doCFMV, Benedito Fortes de Arruda, ressaltou que a Me-dicina Veterinária Forense tem apresentado um cresci-mento admirável e que o Conselho pretende ser parceirodeste novo ramo da profissão a fim de erigir essa ativi-dade ainda exordial, porém de futuro próspero (CFMV,2015).

Consubstancia a esse esforço, a Associação Brasileirade Medicina Veterinária Legal/ ABMVL, associaçãofundada em 15 de agosto de 2009 por médicos veteriná-rios envolvidos no avanço dessa especialidade, objeti-vando a congregação dos profissionais que atuem naárea, com discussões acerca do assunto, promoção deseminários, debates científicos e treinamentos entre ou-tros, e um propósito primordial de aperfeiçoamento pro-fissional (ABMVL, 2015).

Nessa trilha, os procedimentos em eventos de fisca-lização e inspeção de produtos de origem animal prati-cadas pelos órgãos da administração pública se asseme-lham em muito às ações realizadas em peritagens nasesferas cíveis ou penais. Agrega-se a isso o fato de que

no rol de condutas cometidas contra as relações de con-sumo ainda que evidenciadas no âmbito administrativo,podem culminar em processos criminais, onde encontrasupedâneo no Código Penal e nos estatutos consumeris-tas.

4. RELATO DE CASOO Departamento de Inspeção de Produtos de Origem

Animal/ DIPOA, setor pertencente à Agência Estadualde Defesa Sanitária Animal e Vegetal/IAGRO do Estadode Mato Grosso do Sul atua no âmbito das ações de fis-calizações administrativas em estabelecimentos de co-mércio intermunicipal (SIE) e no exercício de vigilânciasativas e passivas.

Após denúncia apresentada no setor competente re-lacionada a irregularidades em entreposto de produtoslácteos uma equipe composta por fiscais estaduais agro-pecuários, agentes de serviços agropecuários da Agência,médicos veterinários da Vigilância Sanitária e agentes dapolícia civil (DECON), se deslocou ao estabelecimentoonde deram início aos procedimentos de averiguação dolocal e coleta de dados. Verificados os fatos constataramos seguintes resultados.

O referido estabelecimento não possuía registro emnenhum serviço de inspeção oficial, conforme preconizaa Lei Federal 1.283 (BRASIL,1950), em seu artigo 1º: “éestabelecida a obrigatoriedade de prévia fiscalização,sob o ponto de vista industrial e sanitário, de todos osprodutos de origem animal, comestíveis e não comestí-veis sejam ou não adicionados de produtos vegetais,preparados, transformados, manipulados, recebidos,acondicionados, depositados e em trânsito”.

Figura 1. Área do pátio sem pavimentação.

Adentrando ao local constataram que o pátio nãopossuía pavimentação (Figuras 01, 02 e 03) de forma aproteger e impedir o levantamento de poeira, compro-metendo e impondo riscos à qualidade do produto final.Encontraram animais (cães) circulando livremente e

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grande quantidade de materiais alheios à finalidade doentreposto na área externa, bem como os dejetos e resí-duos da produção sendo descartados a céu aberto, comtransbordamento da fossa existente, poluindo com isso oambiente e com produção de odores afetando as residên-cias circundantes (Figura 04).

Figura 2. Área do pátio sem pavimentação.

Figura 3. Área do pátio sem pavimentação.

Figura 4. Descarte irregular de resíduos.

Foram encontrados no local 22.420 (vinte e dois milquatrocentos e vinte) quilos de queijos consideradosimpróprios para o consumo, armazenados de forma ir-regular em meio a sujidades e contaminantes. No esta-belecimento em comento não eram realizadas as verifi-cações de medição de níveis de cloro livre e pH da águaa fim de garantir a qualidade do produto final.

Pedilúvios e lavadores de botas desativados foramencontrados com claros indícios de que não eram utili-zados há tempos (Figuras 07 e 08). Também se verificoua ausência de itens obrigatórios como pia com torneirade acionamento pelo joelho, porta sabonete líquido, por-ta papel toalha e porta álcool 70º glicerinado para higie-nização dos colaboradores assim como a ausência delixeira com tampa de acionamento a pedal. Verifi-cou-se o completo descumprimento das normativas parao funcionamento do estabelecimento.

Figura 7. Pedilúvio desativado.

Figura 8. Lavadores de botas desativados.

A caixaria utilizada pelo entreposto estava em péssi-mas condições de higiene e conservação (Figuras 09 e10). A sala de armazenamento das matérias primas(queijos) não possuía azulejamento, iluminação, venti-lação e espaçamento entre as caixas, assim como a pa-

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rede de modo que a umidade relativa do ar estava alta(Figuras 11 e 12).

Figura 9. Acondicionamento sem padrão

Figura 10. Acondicionamento sem padrão.

Figura 11. Acondicionamento sem padrão.

Observou-se que durante todo o processo de fabrica-ção nenhuma sala possuía climatização, fato inaceitáveldo ponto de vista sanitário devido ao fato de se manipu-lar produtos de origem animal em seu interior. Foramencontrados no local queijos sendo lavados com escovas

de lavar roupa com cabos feitos de fitas de borrachasextraídas de câmaras de ar de pneus.

Figura 12. Acondicionamento sem padrão

Figura 13. Presença de microrganismos.

Figura 14. Presença de microrganismos.

No tocante à matéria prima encontrada, ficou consta-tado o mau acondicionamento desta, com ausência declimatização e condições organolépticas desfavoráveisindicando baixa qualidade, pois no local forma encon-

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trados queijos com início de decomposição, presença defungos, moscas, larvas e pupas de insetos além de gran-de quantidade de sujidades. O odor presente no local eraácido e havia sinal de presença de microrganismos fer-mentadores da lactose (Figuras 13, 14, 15 e 16). Durantea fiscalização flagrou-se a lavagem de algumas peças dequeijo.

Figura 15. Presença de microrganismos.

Figura 16. Presença de microrganismos.

Concluindo o processo de fiscalização sanitária ecom preceito legal nos dispositivos da Lei Federal nº1.283 (BRASIL,1950), em seus artigos 1º e 7º; no De-creto Federal nº 30.691 (BRASIL,1952); na Lei Federalnº 7.889 (BRASIL,1989); na Lei Federal nº 8.078(BRASIL,1990) em seu artigo 18, § 6º, inciso II; na LeiEstadual nº 1.232 (MS,1991) em seus artigos. 2º e 6º; noDecreto Estadual nº 6.450 (MS,1992) em seu artigo 42;na Lei Estadual nº 1.293 (MS,1992) e na Lei Estadual nº3823 (MS,2009), constatou-se que os queijos se encon-travam impróprios para o consumo humano devido àelaboração e armazenamento sem as mínimas condiçõeshigiênico-sanitárias, sendo passíveis de causarem preju-ízos à saúde dos consumidores.

Por tais inconformidades, foi lavrado o Termo deApreensão da Vigilância Sanitária e os produtos foramdestruídos em aterro sanitário. Lavrado o Auto de infra-ção e multa pela Agência Estadual.

5. CONCLUSÃODelitos cometidos contra o consumidor no que tange

a uma alimentação saudável não tem origem recente.Registros históricos apontam que no século XVIII a. C.punições severas às práticas de fraudes alimentares jáeram aplicadas e que o primeiro “código de alimentos”elaborado por Moisés já demonstrava preocupações so-bre a qualidade e higiene do alimento (ESQUIVEL,2009 apud PAIS, 1996). No trespassar histórico essapreocupação tem sido cada vez mais frequente, acentua-da por uma sociedade globalizada, com crescente de-manda por alimentos, variabilidade alimentícia e umalcance de diversos mercados, levando os produtos atodos os lugares, ainda que remotos.

O aumento na produção de alimentos, associados aocrescente consumo de produtos alimentícios diversos,impõem ao poder público a necessidade de incrementaros meios de mitigação das irregularidades cometidas aolongo da cadeia produtiva. O Estado ocupa posiçãopreeminente como combatente das ações contrárias aesses direitos e a práticas que possam trazer prejuízos àsaúde dos consumidores. Ademais, assim como a indús-tria alimentícia se desenvolve, delitos que comprometema garantia de alimento seguro também ganham novasmodalidades e artifícios.

Tais garantias estão consagradas na Carta Constitu-cional onde assegura que todo homem “tem direito a umpadrão de vida capaz de assegurar a si e a sua famíliasaúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário,habitação, cuidados médicos e os serviços sociais in-dispensáveis, e direito à segurança em caso de desem-prego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casosde perda dos meios de subsistência em circunstânciasfora de seu controle”. Outrossim, a saúde pública é umdireito fundamental sujeito às observâncias do Estado ede caráter coletivo, ou seja, não se atém ao indivíduo,vai além dos interesses individuais e se insere nos deinteresse supra individuais.

Nessa vertente, é importante ressaltar a estreita rela-ção entre saúde e alimentação, uma vez que através dosalimentos suprimos as necessidades fisiológicas e orgâ-nicas básicas para o fornecimento de uma condição devida no mínimo saudável ao ser humano. Estimativasapontam que por ano milhares de pessoas são infectadaspor algum tipo de patógeno resultante de alimentos im-próprios ao consumo. Essas cifras podem ser ainda mai-ores visto que devido à similaridade com outras patolo-gias muitos casos não são sequer notificados.

Destarte, reforça-se a importância de que esse ali-

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mento seja seguro, livre de contaminantes e de qualqueroutra substância que possa colocar em risco a saúde dacoletividade. A mendacidade dos fraudadores compro-mete a funcionalidade do alimento, qual seja o forneci-mento de nutrição adequada para a manutenção da saúdee bem-estar do ser humano.

Tamanho efeito desses delitos, emana do Estado odever de intervir, assegurando à sociedade condiçõesessenciais e o direito à qualidade de vida. No tocante àárea administrativa, as atividades de fiscalização cabemaos serviços de vigilância sanitárias e de órgãos públicosvinculados à Agricultura respeitados seus limites e le-gislações concernentes.

No âmbito criminal, tais ilicitudes encontram funda-mentos nos artigos 270 a 277 do Código Penal (BRA-SIL,1940), além dos estatutos consumeristas, mais espe-cificamente a Lei 8.078 (BRASIL,1990) e a Lei 8.137(BRASIL,1990). Acresça-se a esses comandos fáticos aLei 9.677 (BRASIL,1998) que altera dispositivos do CPem comento incluindo-os na categoria de crimes hedi-ondos.

Decisões judiciais quanto aos tipos de injustos prati-cados contra a saúde pública tem tido aplicação diferen-ciada pelo STJ quanto a sua classificação. Conquantoalgumas decisões jurisprudências conferissem ao delito aclassificação de crime abstrato, quando não há necessi-dade de comprovação da nocividade do produto, outrasapontam para a categoria de crime concreto com exigên-cia de prova material, ou seja, do laudo pericial para acomprovação da potencialidade nefasta à saúde do con-sumidor.

Consoante, destaca-se a imperiosidade do conheci-mento técnico do médico veterinário como auxiliar nadecisão judicial contra essas delinquências sanitárias.Ademais a Lei 5.517 (BRASIL,1968) confere compe-tência ao profissional e privatiza as ações de peritagemsobre animais e os produtos de origem animal. A medi-cina veterinária tem se aprimorado e novas áreas vemsurgindo. A perícia médica veterinária, ainda que incipi-ente, tem se apresentado proficiente campo de atuaçãopara esses profissionais.

Finalmente, demonstrou-se através do relato de casoas ações veementes desses fraudadores e a aplicação demedidas segundo comandos normativos na esfera admi-nistrativa. Repise-se que outros diplomas de dignidadepenal assim como as consumeristas podem ser especial-mente invocados, inclusive com sanções penais maisseveras do ordenamento jurídico.

No que toca aos sujeitos de combate a esses atos de-lituosos, reforça-se a relevância do médico veterináriocomo agente público na seara administrativa ou comoperito a serviço da autoridade judicial de foro cível oucriminal, sempre com o objetivo fundamental de asse-gurar o direito à vida, à saúde e a incolumidade pública.

REFERÊNCIAS[1] ABMVL, Associação Brasileira de Medicina Veterinária

Legal. A ABMVL. Disponível em:http://www.abmvl.org.br/a-abmvl. Acesso em:13.08.2016.

[2] ALBERTO FILHO, R. P. Da Perícia ao Perito. 4º ed.Niterói, RJ: Impetus, p. 35; 41, 2015.

[3] BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasilde 1988. Brasília, Senado Federal, 1988.

[4] BRASIL, Código de Proteção e Defesa do Consumidor.Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Disponívelem:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8078.htm.Acesso em: 06.07.2015.

[5] BRASIL, Código de Processo Penal. Decreto Lei 2.848de 07 de dezembro de 1940. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm. Acesso em: 05.09.2015.

[6] BRASIL, Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitáriade Produtos de Origem Animal/ RIISPOA. Lei 7.889 de23 de novembro de 1989. Disponível em:http://www.agricultura.gov.br/legislacao. Acesso em:01.06.2015.

[7] BRASIL, Lei de Crimes Contra a Saúde Pública – Lei9.677 de 02 de julho de 1998. Disponível em:http://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/103301/lei-de-crimes-contra-a-saude-publica-lei-9677-98. Acessoem 06.01.2016.

[8] BRASIL, Dispõe sobre o exercício da profissão de mé-dico-veterinário e cria os Conselhos Federais e Regionaisde Medicina Veterinária. Lei Nº 5.517, de 23 de Outubrode 1968. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5517.htm.Acesso em: 12.09.2015

[9] BRASIL, Ministério da Agricultura Pecuária e Abaste-cimento. Disponível em: http://www.agricultura.gov.br/.Acesso em: 13.07.2015.

[10] BRASIL, Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitáriade Produtos de Origem Animal. Decreto 30.691, de 29 demarço de 1952. Disponível em:http://www.agricultura.gov.br/legislacao. Acesso em:15.10.2015.

[11] BRASIL, Define crimes contra a ordem tributária, eco-nômica e contra as relações de consumo, e dá outras pro-vidências. LEI Nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990.Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8137.htm.Acesso em 01.08.15.

[12] BRASIL, Supremo Tribunal de Justiça-STJ. Brasília, DF.Disponível em:http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21606326/agravo-regimental-no-recurso-especial-agrg-no-resp-1175679-rs-2010-0005668-0-stj. Acesso em: 11.01.2016.

[13] CARVALHO, P.B. Conflito de Competências na Fisca-lização de Alimentos de Origem Animal no Brasil: UmaAnálise à Luz do Direito. In: BRASIL. Ministério daSaúde. Questões Atuais de Direito Sanitário. Brasília:MS; 2006. cap. 7, 167-199 p. Disponível em:http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/QUESTOES_ATUAIS_DIREITO_SANITARIO.pdf. Acesso em01.08.2015.

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[14] CONCEIÇÃO, C. D. C. Perícia Cível para médicos vete-rinários. 1ª ed. Rio de Janeiro: L.F. Livros, p. 28, 2015.

[15] CFMV, Conselho Federal de Medicina Veterinária. Mé-dicos Veterinários ajudam Justiça Brasileira em conde-nação inédita por crime contra animais. Disponível em:http://portal.cfmv.gov.br/portal/noticia/index/id/4261.Acesso em: 06.09.2016.

[16] ESQUIVEL, C. L. W. Crimes Contra a Saúde Publica,Fraude Alimentar. Curitiba: Juruá Editora, 2009.

[17] FRANÇA, G. V. Fundamentos de Medicina Legal. 2º ed.Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, p.10; 13. 2012.

[18] MS, Aprova o Regulamento à Lei n.º 1.232, de 10 dedezembro de 1991. Decreto n.º 6.450, de 24 de Abril de1992. Disponível em:http://www3.servicos.ms.gov.br/iagro_ged/pdf/1571_GED.pdf. Acesso em 10.12.2015.

[19] MS, Código Sanitário do Estado de Mato Grosso do Sul.Lei nº 1293 de 21 de setembro de 1992. Disponível em:fi-le:///C:/Users/Eneida/Downloads/20121030104106%20(3).pdf. Acesso em 14.02.2016.

[20] MS, Dispõe sobre a inspeção e fiscalização sanitária dosprodutos de origem animal, e dá outras providências. Leinº 1.232 de 10 de Dezembro de 1.991. Disponível em:http://www3.servicos.ms.gov.br/iagro_ged/pdf/1571_GED.pdf. Acesso em 10.12.2015.

[21] MS, Institui a defesa sanitária animal e dispõe sobre ma-térias correlatas. Lei nº 3.823, de 21 de Dezembro de2009. Disponível em:http://www3.servicos.ms.gov.br/iagro_ged/pdf/1571_GED.pdf. Acesso em 06.12.2015.

[22] ONU, 2015. Conferência Mundial de Promoção da Saúde.Disponível em:https://nacoesunidas.org/curitiba-sediara-conferencia-mundial-de-promocao-saude/. Acesso em 14.01.2016.

[23] RAMOS, S. P. Crime contra as relações de consumo (art.7º, IX da Lei nº 8.137/90): alimentos impróprios ao con-sumo. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n.4136, 28 out. 2014. Disponível em:<http://jus.com.br/artigos/30176>. Acesso em: 4 out.2015.

[24] REIS, S.T.J. Perícia e a Medicina Veterinária Legal.Disponível em:http://www.apcf.org.br/Noticias/AgenciaAPCF/tabid/341/post/pericia-e-medicina/Default.aspx. Acesso em05.09.2016.

[25] REIS, V. Segurança alimentar é tema do Dia Mundial daSaúde de 2015. Disponível em:http://www.abrasco.org.br/site/2015/04/seguranca-alimentar-e-tema-do-dia-mundial-da-saude/. Acesso em:11.11.2015.

[26] SOUZA, J. T. A autoridade municipal na Corte imperial:enfrentamentos e negociações na regulação do comérciode gêneros (1840-1889). Disponível em:http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?view=vtls000418331. Acesso em 01.11.2015.

[27] UNESCO – Declaração Universal dos Direitos Humanos.Brasília, 1948. Disponível em:http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf. Acesso em 27.09.2015.