criatividade urbana/urban creativitycriatividade urbana ... · identitária, dos egos dos seus...

24
CRIATIVIDADE URBANA/ URBAN CREATIVITYCRIATIVIDADE URBANA/ URBAN CREATIVITYCRIATIVIDADE URBAN

Upload: others

Post on 21-Jul-2020

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Criatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana ... · identitária, dos egos dos seus autores ou uma delimitação territorial de “tribos” urbanas. Há uma parte exibicionista

arqa 1.º trimestre 2018

Criatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana/Urban Creativity

Page 2: Criatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana ... · identitária, dos egos dos seus autores ou uma delimitação territorial de “tribos” urbanas. Há uma parte exibicionista

arqa 1.º trimestre 2018

Victor NeVes

oX

studio urma

aNtóNio cerVeira PiNto

Pedro soares

Criatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana/Urban Creativity

Page 3: Criatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana ... · identitária, dos egos dos seus autores ou uma delimitação territorial de “tribos” urbanas. Há uma parte exibicionista

arqa 1.º trimestre 2018

Street ArtA arte na margem de um equívoco

Page 4: Criatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana ... · identitária, dos egos dos seus autores ou uma delimitação territorial de “tribos” urbanas. Há uma parte exibicionista

arqa 1.º trimestre 2018

cidade é um poderoso meio de comunicação, um vasto e eloquente mass media, um ambiente de excepção (físico e real), para comunicar.

A arte é, também ela, um veículo de comunicação.A cidade é uma obra de arte? A interrogação contempla uma ideia formulada por Camillo Sitte1 que

reflete outra ideia: a de que a cidade é ela própria um objeto físico, cultural e um repositório de arte. Pinturas, esculturas, estatuária, design, pautas musicais e outras obras de arte ocupam galerias de arte, museus, fundações, coleções particulares, e outras instituições particulares e públicas.

Sitte foi contemporâneo de Le Corbusier mas esta ideia da cidade enquanto obra de arte passou ao lado do Movimento Moderno e só foi verdadeiramente aceite nos meios da arquitetura ocidental depois dos anos sessenta, sobretudo durante os entusiasmos fraturantes do Pós-Modernismo. A arquitetura contemporânea admite sem dificuldade esta ideia da cidade como obra de arte, mas essa ideia cruza-se com outra: a cidade enquanto “suporte” de arte e espectáculo. A cidade é, como se disse atrás, uma fenomenal “tela”expositiva com uma plateia de público de dimensão igualmente fenomenal. Os artistas, agentes de criação, sentem isso e cedo perceberam que o meio urbano é um palco privilegiado para todos os espectáculos e perfomances que quiserem montar. E é esta ideia de espectáculo que parece prevalecer na mentes de muitos agentes criativos ligados à street art. Recorrendo a Guy Debord2 e salvaguardado os contornos ideológicos da sua já clássica obra fundamental, A Sociedade do Espectáculo, encontramos nesse texto uma abordagem certeira e ainda atual de como podemos entender o espectáculo, num contexto urbano. Diz Debord que “(…) enquanto exposição geral da racionalidade do sistema, e enquanto setor avançado que modela diretamente uma multidão crescente de imagens – objetos, o espetáculo é a prin-cipal produção da sociedade atual”. Nós acrescentaremos à “exposição geral da racionalidade do sistema” também a exposição geral de egos modelados pelo sistema. Os “tags”, os “bombings”, os “trains”, os throw- -ups “e outras manifestações grafiteiras (a expressão é intencional) que utilizam a propriedade pública ou privada como suporte são manifestações quase sempre individuais que procuram uma exposição identitária, dos egos dos seus autores ou uma delimitação territorial de “tribos” urbanas. Há uma parte exibicionista (narcisista por vezes) nestas manifestações e também uma codificação, egocêntrica, pois uma significativa parte dos grafiteiros apenas pretende comunicar para si próprios ou para outros que conhecem. Tal como diz OX Michel3 na sua entrevista à arqa, essas manifestações são, na maior parte das vezes “(…) antes do mais uma reivindicação existencial”.

Será isso suficiente para as catalogar como arte?Contornando a habitual redundância dos rótulos ou labels, a atual street art ou arte urbana abarca um

largo espectro de intervenções no espaço público que na sua essência têm a subversão, como ideário. Aliás, é esse lado subversivo que a remete, em alguns casos para a marginalidade. Ora a subversão é, para alguns críticos de arte, a condição essencial para a criação artística e para a sua contínua (e esperada) renovação. Esta pode ser uma visão redutora da arte, em geral, mas mesmo que seja credível e como tal aceite, a pergunta que surge é: a mera postura subversiva é por si só garante da emergência de um ato artístico? Onde acaba a subversão e começa o agressão?

Afinal o graffiti é, em alguns casos, puro terrorismo? – que agride e fere, visualmente, esteticamente e que usurpa património e direitos individuais, condicionando, mesmo, a liberdade de expressão?

Estas nossas interrogações não são inocentes porque é um facto que em alguns meios político/partidários esta questão da marginalidade da street art é um absoluto tabu e não é politicamente cor-reta. Daí que se a evite, ou que desencadeie reações violentas ou censura a quem ouse questionar a legitimidade de uma “arte” que para muitos não é “arte” nenhuma, mas puro terrorismo ou selvajaria. Veja-se as fotos anexas. Claro que esta discussão é difícil, ingrata e dificilmente conclusiva pelo simples facto de envolver a pretensão de definir o que é “arte” – tarefa quase impossível, como aliás é afirmado

Victor NeVes

a

Page 5: Criatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana ... · identitária, dos egos dos seus autores ou uma delimitação territorial de “tribos” urbanas. Há uma parte exibicionista

arqa 1.º trimestre 2018

pelos entrevistados da arqa. Mas não deixa de ser necessária e urgente, porque estão em causa coisas tão importantes como a salvaguarda de património, a degradação da imagem da cidade, o turismo, a salubridade, direitos individuais, a propriedade privada, dinheiros públicos, segurança, etc. Para os defensores do politicamente correto e para uma certa intelectualidade (?) incrustada na defesa (?) de liberdades várias, entre elas a clássica “liberdade de expressão”, estes problemas devem ser descartáveis e quem os levanta deve ser atacado e criticado.

E nesse contexto, o politicamente correto transfor-mou-se numa nova forma de fundamentalismo que está a afetar as relações sociais e até a linguagem quotidiana como disse Umberto Eco, um dia. O politicamente correto é uma estratégia de controlo da linguagem – e por isso do pensamento – que não tolera dissensão. Quem o diz é o humorista e cronista Ricardo Araújo Pereira.4

Mas a pergunta mais importante é: se os próprios artistas admitem que há uma vertente da street art que é ilegal e marginal, um delito sempre adiado, não é altura de discutir esse problema exatamente como ele é ? – sem visões paternalistas e sem cair na portuguesíssima tentação de ir adiando tudo, exercendo e promovendo uma consciencialização social coletiva sobre esta questão em concreto, e exercendo, claro, a repressão necessária dentro de um adequado quadro legal – o que não acontece atualmente. Na realidade o que há a fazer é o que muitos outros países já fizeram, aparentemente.

Quase todos os artistas da street art concordam em que existe uma arte da rua com expressão eru-dita – que na maioria dos casos se aproxima das artes plásticas tradicionais, da pintura e da escultura, com a diferença de que essa arte é, à partida, uma expressão efémera. Nas sociedades democráticas e livres essa vertente artística é reconhecida e valori-zada e a prova disso são os inúmeros festivais de street art que existem em Portugal onde os artistas são convidados.

Mas há uma evidente contradição neste tipo de eventos quando as obras deixam de ser efémeras na maioria dos casos e passam a ser meramente decorativas, na maioria dos casos. Ou seja, quando se deixa aprisionar pelo “sistema”. Que dizer quando o estilista Marc Jacobs combina os graffiti de Stephen Sprouse5 nas malas Louis Vuitton em 2001?

Há, de facto, uma contradição que envolve a street art: quando ela se configura como arte, como uma reconhecida e expressão artística, ela está condenada a desaparecer. Do mesmo modo que aparece, pode

desaparecer. Vem e vai. O meio urbano, onde vive, assim o determina. No momento em que começa a desvendar os seus enigmas ela pode desaparecer, apagar-se . Este constante risco de não mais poder ser recuperada é a peça fundamental na constituição de seu caráter.

Diz Debord: “A cultura é o lugar da procura da unidade perdida. Nesta procura da unidade, a cul-tura como esfera separada é ela própria obrigada a negar-se”6. Esta negação é uma espécie de estertor que envolve a street art, que, no entanto, é ver-dadeiramente motivadora e arrebatadora e que a nosso ver não deve ser abandonada -o seu carácter efémero – mas que dialoga com outra que é muito desafiadora: a sua necessária renovação.

Voltar à inocência dos desenhos feitos com giz de Keith Haring7 no metro de NY, espécie de hieróglifos contemporâneos que continham mensagens de con-teúdo social e político é o princípio dessa renovação?. A street art tem a sua origem numa estreita interação com o meio físico urbano e com os espaços devolutos, abandonados, degradados, esquecidos, utilizando-os como palcos de mensagens sociais e políticas. Os murais dos partidos e movimentos políticos que pre-enchiam a paisagem urbana nos anos subsequentes à revolução de 25 de Abril de 1974 são disso um exemplo. Mas também o Hip Hop, mantém, em par-te, essa característica de militância quando consegue interagir com a mutação dos grandes centros urbanos e da geografia social e política No entanto, enquanto arte, há necessariamente uma dimensão estética e plástica que interfere com a imagem da cidade, com a paisagem urbana. Fazê-lo com consciência cultural e competência artística é algo que não está que alcance de todos, sobretudo sabendo que a grande maioria dos artistas da rua são autodidatas. Não está seguramente ao alcance dos que se limitam a replicar gestos de outros, a despejar tinta como desespero da total falta de talento, a decalcar grafismos de revistas ou escrever uma assinatura pessoal numa parede. Está ao alcance, sim, daqueles que desenvolvem uma expressão estética aturada, solitária, persistente com ética e, porque não, consciência cívica que poderão transmitir a outros. Aí, como em qualquer arte, abrem-se formas de expressão inovadoras, como as instalações volumétricas de Christos, as silhuetas esculpidas de Vhils ou as instalações zoomórficas de trash de Bordalo II, (para referir apenas dois dos mais conhecidos artistas portugueses destacados pela StreetArtNews), que permitirão a renovação de uma arte que vive e se alimenta da seu caráter provisório e efémero e do diálogo com o entorno físico urbano. No

AfinAl o grAffiti é, em AlgunS cASoS, puro terroriSmo? – que Agride e fere, viSuAlmente, eSteticAmente e que uSurpA pAtrimónio e direitoS individuAiS, condicionAndo, meSmo, A liberdAde de expreSSão?

Page 6: Criatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana ... · identitária, dos egos dos seus autores ou uma delimitação territorial de “tribos” urbanas. Há uma parte exibicionista

arqa 1.º trimestre 2018

panorama sempre conservador e imobilista da arte em Portugal, a street art tem também um lugar reservado pela qualidade e talento de um conjunto de artistas que se alimenta da luta com o meio urbano agressivo e do inconformismo estético, social e que se qualifica através da investigação e da formação. Não poderá tolerar mais o terrorismo dos incompetentes. •1 SITTE, Camillo, L´art de batir les villes-L´urbanism selon les fondements aritistiques, ed. L´equerre,19802 DEBORD ,Guy, A sociedae do espectáculo,ed.Afrodite, Lisboa 1972, pag173 OX (Michel) artista francês participou na edição de 2017 da conferência Street Art & urban Creativity SAUC, realizada em Lisboa.4 Em en trevista dada ao jornal i em 15 de Dez.20175 Stephen Sprouse (1954-2004) artista e designer norte americano ligado à pop art e à estética punk. Ficou conhecido por utilizar o lettering dos ambientes grafiteiros da rua no design de moda6 DEBORD ,Guy, A sociedade do espectáculo,ed.Afrodite, Lisboa 1972, pag175 7 Keith Haring (1958-1990) artista norte-americano ligado à Pop arte e à street art nova-iorquina dos anos 80. Os seus graffiti feitos com giz no metro de Nova Iorque tornaram-se virais.

Page 7: Criatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana ... · identitária, dos egos dos seus autores ou uma delimitação territorial de “tribos” urbanas. Há uma parte exibicionista

arqa 1.º trimestre 2018

“eu aceito ser qualificado de ‘artista de rua’ (porque realizo obras na rua), mas não me reconheço totalmente nesta denominação redutora...

Page 8: Criatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana ... · identitária, dos egos dos seus autores ou uma delimitação territorial de “tribos” urbanas. Há uma parte exibicionista

arqa 1.º trimestre 2018

... Eu defino-me antes de tudo como pintor”

ox, michel

Page 9: Criatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana ... · identitária, dos egos dos seus autores ou uma delimitação territorial de “tribos” urbanas. Há uma parte exibicionista

arqa 1.º trimestre 2018

ontornando a redundância dos meros labels, acha que se pode encontrar uma definição actual para a “street art”?, ou, pelo menos, encontrar uma forma de reconhecer o que á “arte” no espaço público?Por comodidade, eu aceito ser qualificado de “ar-tista de rua” (porque realizo obras na rua), mas não me reconheço totalmente nesta denominação redutora - eu defino-me antes de tudo como pintor. Embora eu intervenha regularmente no espaço público por meio de colagens nos painéis publici-tários, e sendo que esta actividade ocupa um lugar central no meu trabalho, eu preparo essas acções e pinto especialmente no atelier. Essas intervenções são provisórias e muito frequentemente anónimas. O meu desejo não é marcar um território com a minha marca, nem englobar a cidade, mas criar uma lacuna que perturbe temporariamente o nosso meio ambiente. Desde um ponto de vista artístico, não pretendo ser especialista em graffiti ou arte urbana, mas, desde então, começando a praticar

em meados dos anos 80, consegui assistir ao sur-gimento e à diversificação desse fenómeno. Definir a arte no espaço público é praticamente impos-sível, pois as práticas e motivações são diversas. Não podemos sequer dar uma definição que diga respeito apenas ao espaço exterior, porque uma parte da chamada arte urbana também é jogada dentro de edifícios. Ainda podemos distinguir dois tipos de acções radicalmente diferentes. A primeira é ilegal, não patrocinado, não financiado e, muitas vezes, efémero, o que corresponde a graffiti e uma grande parte da arte de rua. A segunda é legal, responde a um pedido, é financiado (se não remu-nerado) e é mais perene, o que corresponde mais à comissão pública ou privada, à arte decorativa ou ao muralismo. Paradoxalmente, essa distinção não é suficiente para definir categorias de artistas, porque elas passam de bom grado (e este é o meu caso) de uma prática para outra. Se eu tivesse que caber em uma categoria, gostaria de destacar o aspecto contextual da minha abordagem.

c

Page 10: Criatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana ... · identitária, dos egos dos seus autores ou uma delimitação territorial de “tribos” urbanas. Há uma parte exibicionista

arqa 1.º trimestre 2018

A arte urbana é individualista? – expressão singular, até hedonista, dos indivíduos, ou pode encerrar conteúdos colectivos para além das “tribos” urbanas? Individualista, mas voltada para os outros, pre-cisando do olhar dessses outros para existir. São sinais que interpelam e se dirigem a todos. Esta é uma abordagem que tenta fazer aparecer as individualidades. Uma maneira de reivindicar um lugar na sociedade, para dizer que estou vivo e eu existo, pois dou-vos a ver. Mas não é uma ex-pressão singular no sentido de se ter transformado numa cultura de massa globalizada. Eu acho que podemos distinguir, de um lado, o tag que res-ponde a códigos e é principalmente dirigido aos

indivíduos que o praticam ou a uma audiência de conhecedores - seja ele puramente vandalismo ou associado a um pensamento de rectaguarda artística. E, por outro lado, o resto das práticas, (graffiti, stencil, cartazes, etc ....), que politicamen-te comprometidos ou não, respondem a um desejo de partilha estética mais acessível a uma vasta audiência. Essas acções, muitas vezes usando imagens, fazem mais uso do senso artístico dos espectadores que não são necessariamente mem-bros. Por minha parte, coloquei imagens equívocas que criam confusão para os transeuntes porque são transportadas por um vector publicitário que é suposto entregar uma mensagem, o que eu não faço. Às vezes, misturam-se quase completamente

com a paisagem, o que significa que nem sempre são identificados como gestos artísticos.

Existe uma dimensão ideológica e social no graffiti? – ou pelo contrário, ele esgota-se na simples acção subversiva, undeground?Uma dimensão sociológica seguramente, e ideo-lógica e social às vezes, mas não acho que seja essa a razão que empurra alguém para a rua para deixar aí um rastro. É acima de tudo um tipo de pulsação. Todos os perfis e motivações se reúnem- para alguns o desejo de promover sua concepção do mundo através de mensagens políticas ou de-mandas sociais é um motor ou uma componente importante de suas acções. Mas a maior parte

A Arte urbAnA é individuAliStA, mAS voltAdA pArA oS outroS, preciSAndo do olhAr deSSSeS outroS pArA exiStir. São SinAiS que interpelAm e Se dirigem A todoS. eStA é umA AbordAgem que tentA fAzer ApArecer AS individuAlidAdeS

Page 11: Criatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana ... · identitária, dos egos dos seus autores ou uma delimitação territorial de “tribos” urbanas. Há uma parte exibicionista

arqa 1.º trimestre 2018

das vezes é acima de tudo uma reivindicação existencial. Isso também pode ser motivado pelo desejo de acesso a uma promoção social através do reconhecimento das instituições artísticas. Es-sas motivações podem variar ao longo do tempo. Pode-se dizer antes de tudo, que qualquer artista, activista reconhece-se em ambas as atitudes. A minha primeira motivação foi usar a rua como uma galeria e os outdoors como uma forma de entrar em contacto com o mundo da arte. Numa segundo momento, focalizei-me no contexto em que intervenho, e a parte da comunicação (já que ela existe) ocorre agora pela internet.

A arte urbana é sempre subversiva? E até que ponto a subversão, como ideário artístico se articula com a mera expressão de signos individuais ou mesmo marginais do graffiti?Nas sociedades democráticas, a arte de rua é ra-ramente subversiva - ela muitas vezes contenta-se apenas em infringir as regras sem pretender atacar o sistema. Mesmo que algumas pessoas assumam

riscos reais e incorram em condenações financeiras significativas, elas raramente criam uma tomada de consciência suscetível de mudar a sociedade. Eu, pessoalmente, não tenho como objetivo remover anúncios ou remover completamente a publici-dade. Eu acredito que essas formas de acção e de espressão ainda têm uma grande importância no nosso ambiente sensorial e emocional, porque são, de facto, uma verdadeira cultura popular e, como tal, exercem uma grande influência na ima-ginação coletiva.

Sabendo que o graffiti é ilegal em muitos sítios, o que pensa sobre os “tags”, os “bombings” , os “trains” e outras manifestações grafiteiras que utilizam a propriedade privada (em alguns casos com valor patrimonial) como suporte? Pessoalmente, não sou fanático da ilegalidade e, mesmo que minha prática seja ilegal, não me parece que seja ilegítima, pois até agora ninguém se queixou de ser impedido de receber uma men-sagem comercial. Quando intervimos no espaço

público, somos responsáveis pelo conteúdo que queremos transmitir e pelo suporte que escolhe-mos. Devemos estar cientes das reações das pes-soas envolvidas e das conseqüências que isso pode implicar. A maioria das tags são espalhadas em espaços que são considerados por muitos como vazios, escuros e sujos e que não vistos como pri-vados. Mesmo que não sejam vistos com atenção, esses sinais penetram o inconsciente dos usuários dos transportes em particular e beneficiam de uma certa indiferença. Não se trata de uma questão de desrespeito pela propriedade privada, porque se existe o direito de se expressar por graffiti ou outro, existe também o direito de desfrutar uma superfície imaculada livre de qualquer traço indesejado. A publicidade é vivida pela maioria dos cidadãos como uma agressão diária, mas o mesmo acontece com as expressões urbanas - elas podem ser brutais e também constituem poluição visual. O jogo de recuperação (buffing) por parte dos municípios e proprietários exasperados dá origem a uma nova forma de arte inesperada, também ela recuperada e alterada por esses mesmos artistas ...

Que relação se pode estabelecer entre a “street art” e a arquitectura? Existe alguma hipótese de colaboração entre estas duas disciplinas, ou acha que a “street art” é uma expressão autó-noma, não compatível com normal perenidade da arquitectura? Há uma contradição da natureza entre uma dis-ciplina como a arquitetura que está destinada a durar e que responde aos requisitos consensuais e aquelas prácticas e intervenções que são necessa-riamente mais efémeras, porque são ilegais e que não usam autorizações para aparecer à luz do dia. Essas intervenções podem jogar com a arquitetura criando interações com ela de maneira mais ou

Page 12: Criatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana ... · identitária, dos egos dos seus autores ou uma delimitação territorial de “tribos” urbanas. Há uma parte exibicionista

arqa 1.º trimestre 2018

menos temporária. Isso é algo que me interessa muito, mas até agora sempre reagi em resposta a um elemento de arquitetura e não em concertação com o seu autor. Se pedimos aos artistas que intervenham nas construções a posteriori, é mais uma questão de decoração. No entanto, podemos pensar que alguns arquitetos têm uma visão que os aproxima da arte urbana e é óbvio que alguns artistas também se inspiram muita na arquitetura. Poderíamos imaginar colaborações e empréstimos mútuos e, certamente, reflexões comuns para con-seguir formas completamente novas.

A cidade é, podemos dizer, um poderoso meio de comunicação. Que futuro antevê para a “street art”? – Continuará a ser um fenómeno urbano?A história recente mostra que essas práticas são du-radouras, uma vez que, considerando a parte con-

temporânea do graffiti norte-americano, essa forma de arte continuou a desenvolver-se e a conquistar novos territórios, a tomar novas formas. Continua a ser o meio favorito de expressão da juventude em todo o mundo - uma geração substituindo a outra e repelindo os limites. O poder desta forma de expressão reside no facto de que é democrático no sentido de que todos, sem exceção, poderem participar nele. Mesmo que uma certa letargia das instituições seja sentida, comparando-a com uma moda passageira e procurando afastá-la do fenómeno artístico, ele permanece vivo, regeneran-do-se constantemente, persistindo como fenómeno sociológico. Essa tendência tem-se intensificado desde o advento da internet, que ampliou o público e o interesse nas ações mais espetaculares de uma maneira fantástica, mas também favoreceu as mutações geradas pela emulação e interacção entre aqueles que nelas participam. •

quAndo intervimoS no eSpAço público, SomoS reSponSáveiS pelo conteúdo que queremoS trAnSmitir e pelo Suporte que eScolhemoS. devemoS eStAr cienteS dAS reAçõeS dAS peSSoAS envolvidAS e dAS conSeqüênciAS que iSSo pode implicAr

Page 13: Criatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana ... · identitária, dos egos dos seus autores ou uma delimitação territorial de “tribos” urbanas. Há uma parte exibicionista

arqa 1.º trimestre 2018

uma ordem de signos

Page 14: Criatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana ... · identitária, dos egos dos seus autores ou uma delimitação territorial de “tribos” urbanas. Há uma parte exibicionista

arqa 1.º trimestre 2018

ontornando a redundância dos meros labels, acha que se pode encontrar uma definição actual para a “street art”?, ou, pelo menos, encontrar uma forma de reconhecer o que á “arte” no espaço público?A street art tornou-se um mero rótulo. Quando falamos de arte no espaço público, temos que dis-tanciar-nos desse rótulo da street art. Geralmente referimos a street art ao que aconteceu nos anos 60, 70 e 80. Desde então, perdeu grande parte do seu potencial subversivo. Hoje, a imagem associ-ada à street art foi reconhecida pelas corporações como um potente veículo de marketing. Além disso, a street art tornou-se um conceito formalista que se aplica a certas formas de arte que foram esta-belecidas nos anos decisivos do que chamamos “arte de rua”, nomeadamente, o graffiti.

O que é interessante sobre o conceito de street art, ou “arte de rua”, no entanto, é que abre a possibilidade de considerar algo como arte fora do contexto institucional do museu. Enquanto os ready made de Duchamp precisavam que o contexto do museu fosse declarado como arte, a street art, permite que a arte possa existir fora desses limites institucionalizados. A street art, abre a possibilidade de a arte existir fora dos limites do museu. O que devemos reter do conceito de street art, é o questionamento da fronteira entre o museu e o espaço público. O que devemos abandonar é a street art como um rótulo que agrupa certas práti-cas, como os graffiti, os stencils, arte de colagem, os cartazes etc., uma certa estética reconhecível que fecha novamente o que poderia ser arte.

A arte urbana é individualista? – expressão singular, até hedonista, dos indivíduos, ou pode encerrar conteúdos colectivos para além das “tribos” urbanas? Pode ser ambos dependendo da intenção do artista. Na cultura atual da street art, não é incomum ver artistas preocupados com uma forma de au-

to-expressão narcisista. Ou seja, o espaço público torna-se uma demonstração da própria identidade. Isso, no entanto, não equivale a uma supressão do próprio espaço público. Se a arte de rua está no compromisso de criar identidades encerradas, torna-se ela própria problemática se aceitarmos o facto de o espaço público se definir como um espaço onde o indivíduo encontra outros, onde o indivíduo está inevitavelmente exposto à troca e interação com outros indivíduos e identidades.

Enquanto a arte de rua continuar a ensaiar as mesmas antigas fórmulas, ela nunca poderá expli-car a mutabilidade do espaço público. Enquanto o artista se preocupar com sua própria identidade ou identidade de grupo, não poderá entrar em diálogo com o espaço público. Consequentemente, ele não poderá questionar a sua própria arte e identidade e permanecerá cego ao fato de que é ,ele próprio, parte do espaço público em que trabalha e que sua própria posição dentro desse espaço está sujeita à mutabilidade.

Arte e identidade não vão bem juntos . A arte sempre desafia o conceito de identidade e de in-divíduo. O artista nunca controla o seu trabalho, os efeitos interpretativos desse trabalho sempre excederão a sua própria consciência. Numa obra, o artista está dividido contra si mesmo. O espaço público apenas ressalva essa radical deslocação de identidade.

Existe uma dimensão ideológica e social no graffiti? – ou pelo contrário, ele esgota-se na simples acção subversiva, undeground?O Graffiti pode muito bem ser considerado o epí-tome da “arte de rua”. Parece ser essa a ideia que foi repetida até à exaustão. Qualquer potencial subversivo que possa ter tido, já foi explorado pelas forças do mercado. Nada vende melhor que um graffiti de pintura a pistola bem feito.

Certamente, há uma dimensão social para a arte no espaço público, mas na medida, porém,

studio urma

cdo contexto inStitucionAl do muSeu. enquAnto oS reAdy mAde de duchAmp preciSAvAm que o contexto do muSeu foSSe declArAdo como Arte, A Street Art, permite que A Arte poSSA exiStir forA deSSeS limiteS inStitucionAlizAdoS

Page 15: Criatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana ... · identitária, dos egos dos seus autores ou uma delimitação territorial de “tribos” urbanas. Há uma parte exibicionista

arqa 1.º trimestre 2018

Page 16: Criatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana ... · identitária, dos egos dos seus autores ou uma delimitação territorial de “tribos” urbanas. Há uma parte exibicionista

arqa 1.º trimestre 2018

em que abre outras possibilidades da cidade como espaço social. Permite uma outra interpretação do espaço público. Pode transformar esse espaço em outra coisa.

A arte urbana é sempre subversiva? E até que ponto a subversão, como ideário artístico se articula com a mera expressão de signos individuais ou mesmo marginais do graffiti?Se a arte no espaço público tiver alguma hipótese de realizar algum potencial subversivo, será apenas fora dos limites de qualquer forma estabelecida como “arte de rua”, e bem fora da prática “bem-vestida” do graffiti. É precisamente na sua forma comercializável que a“street art” se tornou num rótulo formalista fechado, que busca definir uma identidade formal dentro de uma determinada prática artística. É esse encerramento que deve ser evitado.

O potencial radical da arte no espaço público urbano para questionar os limites da arte além das paredes do museu, pode ser sustentado se, e apenas se, ultrapassar os limites do rótulo street art. Isso permitirá transcender as formas tradici-onais e abrir novas formas de representação. Só então, pode estabelecer uma relação com o espaço público entendido como um não-lugar. O não-lugar não deve ser percebido aqui através do estafado conceito inventado por Marc Augé, uma zona de trânsito social (aeroportos e estações de trem), mas como uma inter-zona, uma zona fronteiriça entre os limites, ou melhor, uma arte-fronteira no seu limite, se quisermos. Mas isso significa imediatamente que nunca podemos ter certeza de seu status como arte, pois questiona os próprios limites do conceito de arte em si. Assim que uma obra é exibida dentro dos limites do museu, a instituição assegura sua aceitação pública como arte. Quando a obra ocorre fora desses limites, nada pode garantir o seu status como arte.

Sabendo que o graffiti é ilegal em muitos sítios, o que pensa sobre os “tags”, os “bombings”, os “trains” e outras manifestações grafiteiras que utilizam a propriedade privada (em alguns casos com valor patrimonial) como suporte?Operar fora dos limites institucionalizados implica necessariamente uma certa ilegalidade. Usar a cidade como espaço de exposição interfere neces-sariamente nas relações de propriedade, seja ela privadas ou pública. É por isso que o não-lugar no sentido que Marc Augé lhe dá, é um alvo tão popular para street art.

Ainda assim, quando se trata do limite entre legal e ilegal, encontramos qualquer coisa de pa-radoxo. Ao mesmo tempo que desejamos ver obras em espaços públicos consideradas como arte, isto é, aceitá-las nos limites do conceito de arte, queremos também que elas mantenham esses limites abertos de modo a permitir algo novo para acontecer dentro desses limites.

A ilegalidade não é um sinal de qualidade, seria ingénuo pensar nisso. No entanto, é uma característica que é inseparável do espaço urbano. Quando se trata de “tags” e “bombings”, existe sempre a questão de saber se isso é vandalismo ou outra coisa qualquer, e esta questão não pode ser respondida em geral. O mérito da “street art” é que ela permite-nos colocar essa questão logo em primeiro lugar.

Que relação se pode estabelecer entre a “street art” e a arquitectura? Existe alguma hipótese de colaboração entre estas duas disciplinas, ou acha que a street art é uma expressão autónoma, não compatível com normal perenidade da arquitectura?Não iríamos ao ponto de dizer que a street art é uma disciplina.

A cidade é, podemos dizer, um poderoso meio de comunicação. Que futuro antevê para a street art? – Continuará a ser um fenómeno urbano?O único futuro que esperamos ver no que hoje é ainda denominado como street art é vê-la como um impedimento ao fechamento dos limites da arte no espaço público. O que esperamos ver no futuro é um diálogo crescente com o espaço público e um reflexo mais crítico do papel do artista e da sua prática. Eventualmente isso significa questionar o conceito do próprio espaço público. Hoje, o limite entre privado e público tornou-se fractal como nunca antes. As duas esferas já estão entrelaçadas em todos os níveis mais íntimos e detalhados. •

Se A Arte no eSpAço público tiver AlgumA hipóteSe de reAlizAr Algum potenciAl SubverSivo, Será ApenAS forA doS limiteS de quAlquer formA EstabElEcida como “artE dE rua”, E bEm fora da prática “bEm-vEstida” do graffiti

Page 17: Criatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana ... · identitária, dos egos dos seus autores ou uma delimitação territorial de “tribos” urbanas. Há uma parte exibicionista

arqa 1.º trimestre 2018

Arte na cidade e arte urbana. confusão injustificada

Page 18: Criatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana ... · identitária, dos egos dos seus autores ou uma delimitação territorial de “tribos” urbanas. Há uma parte exibicionista

arqa 1.º trimestre 2018

ontornando a redundância dos meros labels, acha que se pode encontrar uma definição actual para a “street art”?, ou, pelo menos, encontrar uma forma de reconhecer o que é “arte” no espaço público?Tende a haver uma confusão injustificada en-tre arte na cidade e arte urbana, ou street art. A arte na cidade, e nos edifícios que a compõem, existe desde que existem cidades, dos monumen-tos históricos que organizam praças e largos, às esculturas e pinturas que decoram os edifícios por dentro e por fora. A chamada arte urba-na (street art) e a arte pública são, no entanto, coisa diferente da convivência entre a cidade e as artes da arquitetura, da pintura, da escultura, e as artes decorativas em geral (nomeadamente as manifestações de arte efémera que têm lugar, por exemplo, em festividades como o Carnaval, as Festas dos Santos na Cidade de Lisboa, ou as Fallas de Valéncia). A emergência da street art e da public art deriva sobretudo daquilo a que poderíamos chamar uma reivindicação artística e democrática do espaço público face à sua exponencial privatização e ocupação comercial, nomeadamente pela indústria da construção imobiliária e da publicidade. Esta exigência crítica das artes face à expropriação do espaço público pelo Capitalismo é também uma resposta ao deserto artístico que caracteriza sobretudo as zonas residenciais urbanas e suburbanas que emergiram do pós-guerra, na década de 50 do século passado, e continuam a proliferar por esse mundo fora à medida em que as populações migram aos milhar de milhões para as cidades. O espaço público tem sido literalmente devorado pelo imobiliário residencial e pelas estradas por onde circulam os automóveis. Raramente os poderes públicos conseguiram resistir à pressão especulativa imobiliária que faz com que cada metro quadrado de cidade se torne demasiado valioso (nomeadamente em receitas fiscais) para

nele deixar crescer uma árvore, quanto mais uma obra de arte! Ou seja, os movimentos de arte pú-blica e de arte urbana são movimentos de crítica a um estado de coisas inaceitável. E é enquanto movimentos críticos que são interessantes. Deixam de o ser quando são capturados por estatégias de consenso e cinismo políticos, transformamndose por esta via em mais uma diversão pirosa (kitsch) e populista da cidade. Nalguns casos, sobretudo nos novos centros urbanos, a lógica da especulação imobiliária estende-se à especulação das artes, e assim, convidam-se os ‘grandes artistas’ e os ‘gran-des arquitetos’ a posarem juntos, pousando as suas obras no espaço-ouro da cidade. Aqui retoma-se, por assim, dizer, o modelo antigo da harmonia entre a cidade e os seus monumentos, ainda que estes últimos já não celebrem vitórias militares mas, mais modestamente, na sua abstração ou formalismo, as grandes empresas e os grandes especuladores, em suma, o novo poder económico. A relação entre arte, arquitetura, construção e especulação é de tal modo estreita que raramente vemos na cidade nova um monumento ideológico – e quando vemos, o mesmo é, regra geral, medíocre. Seja como for, quer os blue chips da arquitetura e da arte que merecem pisar o solo urbano mais valioso, quer as encomendas oriundas do populismo democrático a que são destinadas espaços menos nobres ou os subúrbios, pequenas cidades, etc., correspondem ao que podemos em rigor chamar arte pública. Em-preiteiros e políticos cedem aos arquitetos e artistas na medida em que estes últimos, ao resgatarem algum do espaço público para as artes, em vez de o deixar morrer na especulação financeira, o fazem em nome de um valor intrinsecamente pú-blico: o usufruto estético da cidade. A beleza, ou o agenciamento, da arquitetura e da arte evanescem para lá do perímetro da propriedade, e como tal é coisa pública, ao contrário do betão, do metal e da borracha que atravancam o que é de todos (com-mons) com o peso da mera propriedade. Por fim,

caNtóNio cerVeira PiNto

Page 19: Criatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana ... · identitária, dos egos dos seus autores ou uma delimitação territorial de “tribos” urbanas. Há uma parte exibicionista

arqa 1.º trimestre 2018

a arte urbana difere da arte pública, na medida em que a sua origem é distinta. A arte pública é o resultado de um regresso às origens, ou seja, é uma arte civilizada, negociada, democrática, que acaba por superar as próprias expectativas financeiras dos empreiteiros e políticos, geralmente pouco cultos, ajudando a amenizar a violência urbana da própria especulação imobiliária. Já a street art é outra coisa. A sua origem está na própria marginalidade económica e estética que a cidade em explosão demográfica gera. É por definição uma arte ilegal, ou que prospera nos vazios da legalidade

municipal. Que se confunde frequentemente com a street fashion, o outro lado dos fashion catwalks. É também a pop culture que deu passo a Arte Pop, ou seja, a arte urbana é composta pelas emergências estéticas muito diversas da cidade e dos seus subúrbios, que existe por definição fora das academias tradicionais, dos museus e as galerias de arte convencionais, em suma, fora da caixa do consenso burguês pós-moderno. Quando esta espontaneidade estética orgânica das cidades se vê apertada pelas dinâmicas da desigualdade exponencial e da injustiça, transforma-se numa

torrente imparável de graffiti e tags. Pretender domesticar esta torrente com doses de populismo barato é contraproducente, e gera o novo kitsch do graffitimunicipal.

A arte urbana é individualista? – expressão singular, até hedonista, dos indivíduos, ou pode encerrar conteúdos colectivos para além das “tribos” urbanas?A arte urbana é essencialmente uma arte essencialmente partilhada pela tribos urbanas, locais e globais. Quer seja nas livrarias, exposições

Page 20: Criatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana ... · identitária, dos egos dos seus autores ou uma delimitação territorial de “tribos” urbanas. Há uma parte exibicionista

arqa 1.º trimestre 2018

de Manga, nas salas de tatuagem, nas ações de graffiti, no Skate e no Surf, nos encontros e desfiles informais de moda urbana (Harajuku, etc.), ou ainda nas novas e sofisticadas galerias europeias de Kinbaku (a arte de amarrar um corpo humano suspenso).

Existe uma dimensão ideológica e social no graffiti? – ou pelo contrário, ele esgota-se na simples acção subversiva, undeground?O verdadeiro graffiti, e não as suas variantes pirosas consagradas pelo populismo político, é uma arte por definição subversiva, e como tal, política e socialmente pregnante. Na sua forma mais radical, críptica e destrutiva (tags) exibe propriedades muito semelhantes às pichagens políticas, só que pro-gramaticamente vazias. Há graffitis que são obras primas, mas na maioria dos casos não passam de exercícios de virtuosismo banal que não deixam rasto, embora sujem e danifiquem a propriedade. Por vezes roçam mesmo a boçalidade cultural e a estupidez, e assemelham-se a formas benignas mas incómodas de terrorismo urbano. Quando alguns ‹artistas› de graffiti resolvem passar a noite em Carcavelos a pintarem todas as janelas de um combóio obliterando literalmente a transparências dos vidros, obrigando os passageiros de classe média, de classe média baixa, ou de condição ainda mais modesta, a viajarem sem poderem ver o rio, o mar e o céu, a discussão deixa de se poder colocar no campo da arte, ou mesmo da anti-arte.

A arte urbana é sempre subversiva? E até que ponto a subversão, como ideário artístico se articula com a mera expressão

há grAffitiS que São obrAS primAS, mAS nA mAioriA doS cASoS não pASSAm de exercícioS de virtuoSiSmo bAnAl que não deixAm rASto, emborA Sujem e dAnifiquem A propriedAde por vezeS roçAm meSmo A boçAlidAde culturAl e A eStupidez.

de signos individuais ou mesmo marginais do graffiti?Não. A arte urbana pode ser subversiva, mas tam-bém submissa com aparência de subversiva. Nos casos subversivos, por não terem programa político que os distinga semioticamente do magma icónico da cidade, tendem a desenvolver estilos e a imitar. Mas como acima referi, a arte urbana é muito mais do que graffiti. Há, por exemplo, uma importante dimensão ideologicamente subsersiva na banda desenhada e no romance gráfico, ou na skate painting. Exemplos: Art Spiegelman, Robert Crumb, Banksy, Ed Templeton, Robert Williams, etc.

Sabendo que o graffiti é ilegal em muitos sítios, o que pensa sobre os “tags”, os “bombings” , os “trains” e outras manifestações grafiteiras que utilizam a propriedade privada (em alguns

casos com valor patrimonial) como suporte?Sou contra. Defendo a repressão desta forma de terrorismo débil.

Que relação se pode estabelecer entre a “street art” e a arquitectura? Existe alguma hipótese de colaboração entre estas duas disciplinas, ou acha que a “street art” é uma expressão autónoma, não compatível com normal perenidade da arquitectura?Também há street architecture...

A cidade é, podemos dizer, um poderoso meio de comunicação. Que futuro antevê para a “street art”? – Continuará a ser um fenómeno urbano?A street art veio para ficar e crescer. Um dia acabará por ocupar o espaço hoje reservado às elites urbanas. •

Page 21: Criatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana ... · identitária, dos egos dos seus autores ou uma delimitação territorial de “tribos” urbanas. Há uma parte exibicionista

arqa 1.º trimestre 2018

criatividade urbanatópico internacional de pesquisa entre arte, arquitetura, investigação e acção

Page 22: Criatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana ... · identitária, dos egos dos seus autores ou uma delimitação territorial de “tribos” urbanas. Há uma parte exibicionista

arqa 1.º trimestre 2018

Pedro soares NeVes

tópico de pesquisa tem como ponto de partida o graffiti e a street-art observando-os a partir de perspectivas tão abrangentes quanto possível, procurando criar ligações intemporais e sem fronteiras profissionais e ou académicas.

Trata-se de investigação sobre sinais do uso existentes no espaço público, marcas, signos, frases e símbolos, discursos de comunicação, e também de construção, decorrentes de vários níveis de neces-sidade individual ou colectiva. Necessidades de comunicação, de expressão emocional, ou necessidade de adaptação a uma melhor funcionalidade e ou comodidade no uso dos elementos presentes nos ambientes exteriores onde coabitamos.

Assim, é importante deixar clara a importância da vasta abrangência de contexto de actuação do que se designa por Criatividade Urbana, simultaneamente usando como referência graffiti e street art, mas também abalando os seus conceitos pré estabelecidos. Sem colocar em causa esses pré-conceitos a implicação destes fenómenos será sempre muito limitada, e confinada a simples ciclos de moda e importação irreflectida, quando na realidade são algo que denunciam características bem mais profundas e intemporais do nosso comportamento individual e colectivo.

Existe um ponto de vista paternalista quando observando o graffiti e a street art como actividades dos campos estritos da juventude, do crime, ou da problemática social. Mas também se identificam pressupostos errados quando vista do ponto de vista estritamente cultural, como se de uma outra qual-quer prática artística contemporânea, ou de arte pública se trata-se, como se o destino final do sucesso destas práticas se confinasse à encomenda, ao mercado da arte, galerias, e museus, algo que em bom rigor nunca será sustentado somente pelas práticas plásticas per si, por muito qualificadas que elas sejam actualmente no contexto Português e global (como são).

Os comportamentos que geram esta vasta amalgama de signos visuais, que desde logo se podem distinguir entre intencionais e não intencionais, têm em si origens difíceis de decifrar, prova disso são as muitas reflexões (académicas e não académicas) a partir das quais se vão compondo diversas camadas de conhecimento de diferentes campos disciplinares. Convocadas estão sobretudo as ciências humanas mas também as exactas, principalmente quando implicam aspectos físico químicos do suporte e ou da acção. Por exemplo, se nos focarmos na taxonomia da palavra graffiti, invocamos especificamente a arqueologia e as escavações da cidade de Pompeia, um arco temporal do uso da expressão desde 18541 até à actualidade. Os graffiti de Pompeia invocam práticas de à mais de 2000 anos, mas se olharmos para a Foz do Rio Côa falamos de 30000 anos, enfim dos primeiros sinais.

Estes gestos primeiros, estão em bom rigor na génese da nossa essência enquanto seres vivos. O facto de na actualidade, nascermos em contextos mais ou menos construidos, mais ou menos normativos e com mais ou menos dureza na interpretação destas normas implica uma modelação cívica dos comportamentos. Desde crianças somos educados a canalizar os impulsos de exploração e identificação territorial da parede de casa para o papel. Assim do ponto de vista dos praticantes intencionais sobram os marginais, e os marginais corrompidos que vivem vidas duplas ou abdicam de uma vida pela outra, dando importantes sinais de renovação de discursos, dando vós a causas (por exemplo sociais e ou ambientais) de resolução difícil que de outra forma estariam silenciadas. Porem para atingir o âmago da questão gostaria de chamar a atenção sobretudo para os signos visuais decorrentes de práticas não intencionais, ou intencionais mas decorrentes da necessidade do uso e da fruição do espaço. Serão estes para os quais convidaria o olhar atento dos projetistas, de quem desenha a cidade, do elemento urbano como o banco ao plano de pormenor. Falo por exemplo das empenas brancas que se impõem em locais de grande visibilidade e que o projetistas, sem uma análise atenta, consideram que é falta de civismo e não uma consequência expectável que alguém assine o seu nome, se expresse ou cole um cartaz anunciando “mudanças” e “toldos”.

o

Page 23: Criatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana ... · identitária, dos egos dos seus autores ou uma delimitação territorial de “tribos” urbanas. Há uma parte exibicionista

arqa 1.º trimestre 2018

O tópico de pesquisa serve precisamente para sensibilizar, dotar os decisores e projetistas de uma maior capacidade de entendimento de como funcionam estes fenómenos. Não só para entender o comportamento, as suas origens e características, mas sobretudo para saber trabalhar com ele, saber integrar a criatividade urbana, intencional ou não intencional. Para sensibilizar sobre o entendimento de que a melhor gestão dos recursos energéticos e ambientais passa sobretudo pelo alinhamento do projeto com as necessidades dos utilizadores, dando sempre uma particular atenção à capacidade adaptativa que os utilizadores podem desenvolver para a eficiência do uso, ou seja, no limite, o projeto mais completo é aquele que permite a sua finalização por parte dos utilizadores.

É esta a área de actuação desta rede internacional de investigadores (que envolve mais de uma centena de doutorados de mais de 20 países) dinamizada a partir de Lisboa desde 2014, com antecedentes prévios que recuam até aos anos 1990. Organizamos a publicação de livros e o único Journal cientifico da especialidade na sua 8ª edição2. Estamos associados à unidade de investigação da Faculdade de Belas da Universidade de Lisboa, e temos contado com o apoio entre outros da FCT, DGArtes, Câmara de Lisboa, ISCTE, UNova e FLAD.

Anualmente em Julho organizamos uma con-ferência e também um conjunto de actividades na área do Chiado em Lisboa. Em 2017 O impacto das atividades práticas foi muito positivo, desde logo junto dos “ecossistema” de criadores, gerando uma forte e franca ligação entre teoria e prática, efeitos que se fizeram também notar no desenvol-vimento da conferencia. Abordagens oriundas das práticas profissionais de arte pública e urbanismo diversificaram o debate assim como a presença dos principais responsáveis pelas políticas culturais que se desenvolvem na relação com o graffiti e street art, no contexto do município de Lisboa e no contexto nacional. A sua presença e a qualidade das contri-buições deixou claro o reconhecimento da análise e crescente importância destas práticas criativas para o panorama cultural de Lisboa e português. Em suma, na generalidade dos três dias de atividades, e em particulares momentos dos trabalhos, partilharam-se instantes únicos, de grande peso para o desen-volvimento da área em causa, pelos participantes presentes e ideias discutidas, conseguiu-se de facto estabilizar o conjunto de atividades Urbancreativity como um momento teórico prático de referência global com sede em Lisboa. •

1 Com a publicação pela primeira vez da palavra graffiti a propósito de multiplas incisões identificadas na cidade de Pompeia: Garruchi, Raphael, 1854, Les Murs de Pompéi – Calques et Interprétées, Librairie de J-B Mortier, Bruxelles2 Edições publicadas:street art & Urban Creativity Scientific Journal, ISSN: 2183-3869 (desde 2015, 8 fascículos)“Urban Art: creating the urban with art” na Humboldt University Berlim. ISBN: 978-989-97712-8-4“Urban interventions, street art and public space” Dinâmia ISCTE-IUL; Faculdade de Letras da Universidade do Porto. 2016. ISBN: 978-989-97712-6-0Lisbon street art & Urban Creativity 2014 International Conference, Lisboa, 2014 ISBN: 978-989-20-5138-3

Page 24: Criatividade Urbana/Urban CreativityCriatividade Urbana ... · identitária, dos egos dos seus autores ou uma delimitação territorial de “tribos” urbanas. Há uma parte exibicionista

arqa 1.º trimestre 2018