criança problema

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    Estilos da Clínica, 2006, Vol. XI, no 21, 126-149126

    Professora na Escola de Artes, Ciências eHumanidades da USP.

    Artigo

    A “CRIANÇA-PROBLEMA” E OGOVERNO DA

    FAMÍLIA

    A na L au r a God inho L ima

    Introdução

    Afirmar que se pretende estudar docu-mentos relativos à “criança-problema” sob a pers-pectiva da governamentalidade significa dizer que

    se está considerando o governo como a “condutada conduta” ou como “uma correta disposição dascoisas de que se assume o encargo para conduzi-lasa um fim conveniente”. (Guillaume de La Perrière,citado por Foucault, 1996, p. 282) O autor conside-ra que a palavra “conduzir” possui um duplo signi-ficado. Conduzir tanto pode ser levar os outros aagir de determinada maneira, empregando-se paraisso métodos mais ou menos coercitivos, comopode significar o controle das próprias atitudes numespaço de possibilidades relativamente abertas.

    Para Foucault (1995, p. 244), “o exercíciodo poder consiste em ‘conduzir condutas’ e emordenar a probabilidade. O poder, no fundo, é

    R ESUMO

     Neste texto pretende-se discutir as seguintes questões: 

    Como se chegou a denominar uma parte dos alunos das escolas primárias “crianças- 

     problema”? De que maneira uma série de pequenas dificuldades comuns na infância, tais como timidez,ciúme ou medo do escuro,tornaram-se problemas de comportamento a serem investigados e tratados pelos educadores? Quais os efeitos do emprego da expressão

    “criança-problema” nos discursos educacionais? Oartigo baseia-se no exame de textos sobre educação e 

     psicanálise escritos por  Arthur Ramos e publicados na década de 1930. Para a análise, emprega-se o conceitode “governamentalidade”, tal como formulado por Michel Foucault.Descritores: criança- 

     problema; higiene mental; 

     governo da família;  psicanálise da criança;  Arthur Ramos

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    menos da ordem do afrontamento entre dois adversários ou do vínculo de um com relação ao outro, do que da ordem do ‘gover-no’.” O autor atribui ao governo o significado mais amplo quepossuía no século XVI, quando esse termo não se referia apenas aoEstado, mas a diversas formas de organizar a atuação de grupos

     variados: as crianças, as famílias, os doentes, as almas.“Governar, neste sentido, é estruturar o eventual campo de

    ação dos outros. O modo de relação próprio ao poder não de- veria, portanto, ser buscado do lado da violência e da luta, nemdo contrato e da aliança voluntária (que não podem ser mais doque instrumentos); porém do lado deste modo de ação singular

     – nem guerreiro nem jurídico – que é o governo”. (Foucault,1995, p. 244).

    Essa maneira de entender o governo tem diversas implica-

    ções. Em primeiro lugar, significa destituir o Estado de um papelcentral no exercício do poder. Foucault fala em “relacionamentosde poder” para referir-se a todas as situações em que um indiví-duo, grupo ou instituição procura interferir na conduta de outro(1988, p. 11-2). Sendo assim, muitas pessoas podem governar, ten-do em vista objetivos diversos: o pai governa a conduta da família,a professora a de seus alunos, o patrão governa seus empregadosetc. “Existem portanto muitos governos, em relação aos quais odo príncipe governando seu Estado é apenas uma modalidade.”(Foucault, 1996, p. 280)

    Neste artigo, procura-se examinar as condições que favorece-

    ram o surgimento da expressão “criança-problema” nos discursoseducacionais e discutir os efeitos de sua utilização nos textos espe-cializados sobre os problemas de comportamento na infância. Dessamaneira, busca-se propiciar uma reflexão sobre um aspecto daeducação escolar que, de tão freqüente, parece natural: a presençade um contingente de alunos problemáticos que enfrentam dificul-dades de adaptação ao ambiente escolar. Às indagações recorren-tes: “Como tratar as dificuldades das crianças-problema no pro-cesso de adaptação à escola?” ou mesmo “Como evitar que umacriança se torne um problema na escola?” pretende-se acrescentaroutras, anteriores a essas: Como se chegou a delinear a categoria

    “criança-problema”? Que questões práticas e que teorias levaramao seu aparecimento nos estudos sobre educação? Que mudançaso uso da expressão “criança-problema” provocou nos discursoseducacionais? Trata-se, portanto, de verificar como, historicamen-te, a “criança-problema” foi produzida nos discursos especializa-dos. Para isso, analisam-se textos de Arthur Ramos sobre educaçãoe psicanálise, publicados na década de 1930, com base no conceitode “governamentalidade”, em Michel Foucault.

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    Embora tenham como princípio geral dirigir o comporta-mento de outros, os objetivos do governo não são sempre osmesmos. Assim como há múltiplos governos, há múltiplos objeti-

     vos. Basta retomar os exemplos do pai de família, da professora edo patrão para verificar que suas metas ao procurar intervir naconduta dos outros não são as mesmas. Além disso, se há finalida-des específicas para dispor as coisas e as pessoas de maneira con-

     veniente, é preciso adquirir conhecimentos sobre elas. O exercíciodo poder requer, portanto, formas de saber. Assim, conformeafirma Foucault, nos séculos XVI e XVII a arte de governo come-ça a estruturar-se em torno de uma “razão de estado”, que se fun-damenta no conhecimento racional sobre o funcionamento dopróprio estado e de seus componentes: “O Estado se governasegundo as regras racionais que lhe são próprias, que não se dedu-

    zem nem das leis naturais ou divinas, nem dos preceitos da sabe-doria ou da prudência; o Estado, como a natureza, tem sua racio-nalidade própria, ainda que de outro tipo.” (Foucault, 1996, p. 286).

    Pensar a educação da “criança-problema” como uma questãode governo apresenta-se, portanto, como uma perspectiva fértil,na medida em que permite compreender como foi possível asso-ciar os discursos sobre a importância do conhecimento das indivi-dualidades infantis e o respeito às tendências naturais do aluno aocontrole cada vez mais sofisticado da conduta das crianças na es-cola. As múltiplas interferências formuladas pelos educadores apartir da década de 1930 com o objetivo de resolver os problemas

    de comportamento que as crianças apresentavam na escola nãotiveram o sentido de cercear as liberdades. Ao contrário, forampropostas como formas de promover a individualidade e remo-

     ver os entraves emocionais ou de outra natureza, que impediam asua livre manifestação. A criança bem ajustada era aquela capaz dese conduzir com autonomia na escola, ou seja, aquela que sabiacomo agir num espaço de liberdade regulada. Simultaneamente,no âmbito da Escola Nova, a escola adequada era aquela na qualos alunos tinham a oportunidade de expressar a própria identida-de, de descobrir e realizar o seu próprio potencial, aquela em queos professores estavam preparados e sentiam-se dispostos a aten-

    der às necessidades individuais dos alunos.É preciso considerar, no entanto, que, como bem demons-trou Jorge Ramos do Ó em seu estudo sobre o ensino liceal por-tuguês, a identidade do aluno não consiste em algo à parte, inde-pendente de sua inserção escolar, mas constitui o produto de umaelaboração que depende, entre outras coisas, das relações nas quaiso indivíduo se vê implicado como estudante: “Estas práticas deidentidade são, portanto, relacionais. O ser ou a alma só têm subs-

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    tância se entendidos como trabalho,como atividade. A grande interro-gação que o indivíduo livremente seobriga a fazer é esta: a partir de quel  fondement tr ou ve rai -je mon id ent ité ? (1988b, p. 791). O conhecimento queum elemento pode ter e fazer de sipassa pela comparação ou articula-ção com um outro semelhante. Ocuidado de si organiza-se, invaria-

     velmente, pela realidade do espelho.Sendo certo que tal prática não seesgota apenas nas crianças e nos jo-

     vens em processo de socialização – 

    apresenta-se, ao contrário, antescomo uma incumbência, um deverpermanente de toda a vida – não émenos verdade que a relação a sipróprio é especialmente treinada ereiterada pela relação pedagógica.”(Ó, 2003, p. 42, grifos do autor).

    Sem dúvida, essa identidade cons-trói-se também a partir da relação queo aluno estabelece com o espectro dairregularidade que o acompanha des-

    de o início de sua jornada escolar. Arelação com o outro se dá tanto como professor e os colegas mais próxi-mos quanto com a média estabeleci-da para a população na qual está inse-rido, uma vez que a nota de cada umnos exames fixa sua posição em rela-ção aos demais, estabelecendo suacondição de normal, subnormal ousupernormal. Assim, o conhecimen-to do indivíduo só é possível em rela-

    ção a padrões populacionais estabele-cidos exteriormente. Isto é verdadetanto para a instituição quanto para opróprio aluno, encarregado de des-

     vendar-se ao longo do seu processode socialização escolar.

    Escrito mais de vinte anos de-pois da aula de Foucault no Collège

    de France sobre a governamentali-dade, o livro Governmentality: power and rule in modern society , de Mitchell Dean(1999), apresenta em sua introduçãoalgumas considerações sobre o em-prego desse conceito em diversosestudos produzidos principalmente apartir da década de 1990, enfatizan-do a multiplicidade desses investi-mentos. Afirma-se que a “governa-mentalidade” caracteriza-se atualmen-te como um projeto coletivo, umcampo de investigações heterogêne-as, mas que possuem suficientes ca-

    racterísticas em comum para quepossam ser entendidas como perten-centes a uma espécie de subdiscipli-na na área das ciências humanas esociais, cujo objeto é o “como” dogoverno; ou seja, procura respondera questões sobre como nós governa-mos e como somos governados. Oautor registra duas características im-portantes comuns às pesquisas sobrea governamentalidade: a primeira é a

    presença de uma dimensão empíricae a segunda é a orientação para o tem-po presente. A esse respeito, consi-dera-se particularmente fértil a pers-pectiva defendida por Nikolas Rose(1999) sobre essas questões. Esse au-tor considera importante que o pen-samento procure ser verificado noreal, para que possa ser submetidoao juízo da crítica e a correções.

    “Eu defendo que o trabalho his-

    tórico é inventivo quando – talvezapenas quando – está ligado a algoparecido com o ethos experimental;quer dizer, quando a escrita da histó-ria é o momento de reflexão, de for-malização e abstração sobre uma prá-tica empírica, experimental, e quandoessa prática é orientada por uma nor-

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    ma de verdade, atenta ao erro e, por-tanto, aberta à crítica e à correção.(Rose, 1999, p, 56, tradução nossa).

    No entanto, isso não significadefender a existência de fatos a prio-ri, independentes de uma teoria, masentende-se a prática científica simul-taneamente como representação eintervenção. Além disso, Rose esta-belece uma distinção entre o tipo deanálise empírica defendida por ele ea interpretação hermenêutica, quebusca encontrar numa estratégia uminteresse oculto, que precisa ser ex-

    plicitado para que os objetivos reaisde determinada prática possam serconhecidos. O tipo de empirismo queo autor defende é um que procuraentender as estratégias e argumentosem seus próprios termos, tendo em

     vista o que esses declaram como sen-do suas identificações, as alianças queprocuram estabelecer, os inimigos queidentificam, a linguagem e as catego-rias que utilizam para descrever a si

    próprios, as formas de coletivizaçãoas divisões que operam. “Contra ainterpretação, portanto, eu defendoa superficialidade, um empirismo desuperfície, de identificação das dife-renças naquilo que é dito, como é dito,e o que permite que seja dito e quetenha eficácia” (Rose, 1999, p. 57, tra-dução nossa).

     Analisar os discursos educacio-nais sobre a “criança-problema” a

    partir dessa perspectiva significa, por-tanto, procurar compreendê-los apartir de sua própria lógica, verificarcomo apresentam seus problemas,como tecem seus argumentos, a quetipos de saberes recorrem, quais osrecursos teóricos, técnicos, instituci-onais e identitários de que dispõem

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    para se pronunciarem dessa maneira. Em vez de tentar identificar onão dito ou procurar intenções não declaradas, sugere-se examinaras condições de possibilidade de construção desses discursos talcomo são proferidos, bem como seus efeitos nas maneiras de pen-sar sobre as crianças e o que suas consideradas dificuldades de adap-tação à escola.

    Quanto à orientação para o tempo presente, tanto quanto Fou-cault e Mitchell Dean, Rose entende a investigação histórica comoum recurso que permite questionar aquilo que, em geral, tomamoscomo certo, natural, necessário. Assim, retomando as perguntas ini-cialmente propostas, pensar a respeito da “criança-problema” apartir da perspectiva da governamentalidade leva-nos a buscar com-preender como se tornou natural, e até mesmo esperado, que umaparte das crianças que freqüentam as escolas apresente dificuldades;

    complicações que exigem determinadas providências quanto à pró-pria organização da escola, ao atendimento especializado à “crian-ça-problema”, e a intervenções na família. E, ainda, a compreen-der como se passou a considerar relevantes uma série de informa-ções sobre a criança, tais como a posição ocupada no interior dafamília, os hábitos de sono e de alimentação, os medos e angústias.

    “Diagnosticar a historicidade das nossas maneiras contempo-râneas de pensar e agir é torná-las contestáveis, é apontar a necessi-dade de outros experimentos de pensamentos que permitem pen-sar em outras formas de ser e agir. Houve e haverá ouras maneirasde falar a verdade sobre nós mesmos e agir em relação a nós mes-

    mos e aos outros em nome daquela verdade.” (Rose, 1999, p. 59,tradução nossa).O autor acredita que a revelação do caráter contingente dos

    conhecimentos disponíveis sobre nós mesmos e sobre nossas ma-neiras de ser pode ajudar-nos a questionar as reivindicações daque-les que nos governam em nome do nosso próprio bem; pode le-

     var-nos a indagar, por exemplo, com que direito sabem tantas coi-sas a nosso respeito – até mesmo o que é melhor para nós. Simul-taneamente, pode levar-nos a refletir sobre os saberes em que nosbaseamos, o tipo de decisão que tomamos e as interferências quefazemos na escolaridade e no comportamento das crianças. Isso

    não significa defender o abandono das tentativas de conhecer acriança ou de procurar fazer o que é melhor para elas. Nem mes-mo se trata da desistência de interferir no comportamento infantil

     – o que seria negar a própria possibilidade da educação –, mas detomar consciência dos riscos e dos custos implicados em nossasoperações de governo; operações que nos levam a avaliar as crian-ças segundo certos regimes de verdade e de acordo com critériosde normalidade de classificam, selecionam, incluem e excluem. De-

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    lineia-se, assim, uma proposta críticaorientada pela concepção de Fou-cault: “Uma crítica não é uma ques-tão de dizer que as coisas não estãocertas desta maneira. É uma questãode apontar em que tipos de concep-ções, que tipos de pensamentos fa-miliares e não questionados as nossaspráticas se baseiam.” (1988a, p. 154,tradução nossa).

    Sendo assim, procura-se, no exa-me das fontes indicadas, pistas paracompreender como se tornou tãonatural que parte da população esco-

    lar seja constituída de alunos-proble-ma e quais os efeitos do uso da cate-goria “criança-problema” dos discur-sos educacionais.

    Uma série de textos publicadosnas décadas de 1930 a 1960 sobre aindisciplina na escola indica que fre-qüentemente o mau comportamen-to era associado a um problema doaluno. Considerava-se a indisciplinauma anomalia, decorrência de um

    transtorno presente na criança. Comoexemplos de títulos que indicam essaperspectiva, podem ser citados: “Oensino dos anormais” (Norberto deSouza Pinto em Revista de Educação,1933); “A educação dos anormais edos débeis mentais” (Norberto deSouza Pinto em Revista de Educação,1935); “Problemas de adaptação so-cial da criança” (Elise H. Martens emRevista de Educação, 1938); “Alguns Pro-

    blemas de Perturbação do Caráter”(Ofélia Boisson Cardoso em Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP),1945); “Problemas de ajustamento àescola” (Elisa Dias Veloso em RBEP ,1958); “Causas dos desajustamentosinfantis” (Túlio Expedito Liporoniem Revista do Professor , 1960).

    Havia basicamente dois conjun-tos de causas às quais as dificuldadeseram atribuídas: o primeiro continhaos defeitos biológicos; o segundo, asinadequações do ambiente em que

     vivia a criança. Encontram-se descri-ções e classificações dos desvios decomportamento nas crianças, semprede acordo com a divisão causa bio-lógica / causa ambiental. Em um ar-tigo publicado na Revista do Professor ,em 1960, apresentam-se as seguintescategorias:

    1. Normais – crianças física,

    moral e intelectualmente sadias, o quenão constitui problema.2. Anormais – (a) defeito físi-

    co, puramente externo, sem afetar ainteligência, mas podendo acarretarà criança complexos de inferiorida-de, dificultando o seu aprendizadoe o seu comportamento; (b) aparen-temente anormais, de constituiçãofraca, sistema nervoso deprimidoou exaltado, instável, emocional ou

    apática, crianças muitas vezes vítimasindefesas do ambiente familiar pre-cário ou desajustado; (c) anormais:(1) físicos, como a cegueira e mu-dez; (2) mentais: taras, conseqüênciahereditária de sifilíticos, alcoólatras,loucos e etc. (Castiglioni, 1960, p. 39).

     Assim como na determinaçãodas causas, a divisão biológico /ambiental também aparecia nas re-comendações aos educadores sobre

    como enfrentar os problemas. Ad-mitia-se freqüentemente que as crian-ças que apresentassem anomalias de-

     vidas a fatores internos não podiamser educadas nas escolas comuns edeviam ser encaminhadas a institui-ções especializadas. Quanto àquelesalunos cujas deficiências eram consi-

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    deradas produto de um ambienteinadequado, entendia-se que sua rea-daptação era possível e poderia serfeita na escola regular. Mesmo assim,cumpria separá-los dos alunos nor-mais, para que estes não fossem pre-judicados. Sugeria-se que essas crian-ças fossem educadas em classes es-peciais, tão logo a percepção inicialdo professor sobre as dificuldadesdo aluno fosse confirmada pelo di-agnóstico especializado: “Identifica-do pelo professor em aula, o ‘alunoproblema’ deverá ser encaminhado,

    sem alarde, para o médico, o psico-logista escolar ou o orientador edu-cacional, que pesquisarão o seu pro-blema e traçarão o plano de recupe-ração”. (Mattos, 1966, p. 413).

    O aluno-problema aparecia nosdiscursos educacionais como um casointermediário entre o aluno anormale o aluno normal. Suas dificuldadesna escola eram geralmente atribuídasà inadequação do ambiente domésti-

    co e não a características mórbidas deorigem biológica. Sendo assim, admi-tia-se que esse aluno poderia ser trata-do e reajustado na própria escola, des-de que houvesse uma intervenção es-pecializada do médico ou psicólogono sentido de corrigir a conduta dospais e professores em relação à crian-ça. Por definição, portanto, a “crian-ça-problema” surge nos discursospedagógicos como uma questão es-

    pecificamente educacional. Trata-se daeducação escolar da criança, da orien-tação educacional dos pais, do escla-recimento dos professores sobre apsicologia infantil.

    Entre os textos educacionais de-dicados ao estudo da “criança-pro-blema”, merecem consideração espe-

    cial aqueles escritos na década de1930 por Arthur Ramos, que procu-rou compreender os desajustamen-tos infantis à luz da psicanálise.

     A criança-problema comoproduto da famíliadesajustada

    No ano de 1939 surgia A crian-  ça problema:   A higiene mental na escola  primária , escrito pelo Dr. Arthur Ra-

    mos, médico formado pela Facul-dade de Medicina da Bahia. Discí-pulo de Raimundo Nina Rodrigues,Ramos integrava uma geração de ci-entistas dedicados a buscar soluçõesmédicas para os males da sociedade(Lopes, 2002). Assim como grandeparte dos intelectuais brasileiros dofinal do século XIX e início do XX,empenhava-se em participar do mo-

     vimento internacional e em contri-

    buir para a incorporação no país dopensamento moderno divulgado nospaíses europeus e nos Estados Uni-dos. Arthur Ramos exerceu um pa-pel importante na área da psicolo-gia educacional no Brasil e no mo-

     vimento de higiene mental infantil,tendo colaborado para divulgar, nocampo educacional, as idéias da psi-canálise. O livro  A criança problema foi escrito a partir da “experiência

    acumulada por Ramos e sua equipeno Serviço de Higiene Mental daSeção de Ortofrenia e Higiene Men-tal do Instituto de Pesquisas Educa-cionais, fundada quando da refor-ma do Ensino Municipal do Distri-to Federal e instalada em 1934”.(Patto, 1990, p. 80)

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    com as suas observações dos “escolares difíceis” nas escolas expe-rimentais do Distrito Federal, na maior parte dos casos os desviosnão poderiam ser apropriadamente designados como anomalias.Para o autor, “somente uma percentagem insignificante destascrianças mereceria, a rigor, a denominação de ‘anormais’, isto é,aqueles escolares que, em virtude de defeitos constitucionais here-ditários, ou de causas várias que lhes produzissem um desequilí-brio das funções neuropsíquicas, não poderiam ser educadas noambiente da escola comum. A grande maioria, porém, podemosdizer os 90% das crianças tidas como ‘anormais’ verificamos narealidade serem crianças difíceis, ‘problemas’, vítimas de uma sé-rie de circunstâncias adversas, que analisaremos neste livro, e entreas quais avultam as condições de desajustamento dos ambientessocial e familiar.” (Ramos, 1939, p. XI).

    O autor defendia, assim, a substituição do conceito de criançaanormal pelo de criança-problema e estabelecia uma relação diretaentre esta e seus pais problemas. Ramos, assim como grande partedos seus contemporâneos, afirmava que a “família é a unidadesocial fundamental” (1939, p.16), principal responsável pela for-mação da personalidade das crianças, e era a partir da orientaçãoda família que se poderia corrigir ou, melhor ainda, prevenir oaparecimento dos problemas infantis. Apoiando-se nos autoresnorte-americanos Benson e Altender, autores da obra Mental Higie- ne in Teacher Institutions, in the United States:  a survey (1931), afirmavaque “A maior tarefa da higiene mental em educação é conservar

    normal a criança normal” privilegiando, assim, a função preventi- va, em relação à corretiva (Ramos, 1939, p. XXII). Provavelmentea origem da expressão “criança-problema” está relacionada ao sur-gimento das clínicas de higiene mental infantil nos Estados Unidos,pois, em seu livro  A criança problema , Ramos dá notícia da obraProblem child , de John Edward Bentley (Nova York, 1936), a qualdescrevia o funcionamento dessas clínicas.

     A partir do momento em que assumiu a chefia do Serviço deHigiene Mental e Ortofrenia da Secretaria da Educação do Rio de

     Janeiro, em 1934, Arthur Ramos fundou diversas clínicas com oobjetivo de avaliar as crianças nas escolas: clínicas de hábitos nos

    jardins de infância, com o objetivo de estudar as crianças normais,orientar as suas famílias e assim prevenir os desajustamentos; clíni-cas ortofrênicas, associadas às escolas primárias, destinadas à pre-

     venção e à correção das perturbações mentais. Essas iniciativas in-tegravam um movimento maior de ampliação das instituições, oqual, por sua vez, contribuiu para a expansão dos saberes sobreos desvios de personalidade. Não se tratava mais apenas de estu-dar as anomalias de conduta e elaborar recomendações higiênicas

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    aos delinqüentes internados ou aosdeficientes impedidos de freqüentaras escolas regulares, mas sim de ori-entar essas atividades em direção aofilho ou ao aluno comum; aquele quefreqüentava a escola pública e even-tualmente poderia apresentar algumtipo de “desajustamento” em rela-ção ao normal esperado. Tratava-se,sobretudo, de buscar prevenir essesdesajustamentos mediante as inter-

     venções dos especialistas junto às fa-mílias das crianças.

     Assim como seus contemporâ-

    neos, Arthur Ramos considerava quea educação escolar deveria atender àscaracterísticas individuais dos alunos.Por outro lado, e também de acordocom o pensamento que circulava naépoca, o autor frisava que o objetivoúltimo desse investimento não era oindivíduo, mas a sociedade. Em seulivro Educação e Psicanálise  (1934), de-clarava: “Dirigindo-se ao indivíduo,a educação visa, porém, a sociedade.

    E o seu esforço último estará emobter o máximo rendimento social”(Ramos, 1934, p. 14). A prevençãodos problemas das crianças era, por-tanto, não apenas uma providênciaque tinha em vista resolver as dificul-dades do indivíduo, mas, simultane-amente, uma medida de governo to-mada em defesa da sociedade.

    Baseando-se em Adler, Ramosafirmava que a função da escola era

    corrigir nas crianças os excessos da“vontade de poder” e desenvolverno aluno o “sentimento de comuni-dade”. As crianças com “inferiorida-de de órgãos”, as “mimadas” e as“odiadas” eram aquelas que represen-tavam os maiores problemas nessesentido, na medida em que não tinham

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    esse “sentimento de comunidade”suficientemente desenvolvido. O au-tor entendia que, para intervir no esti-lo de vida, era preciso corrigir o “pro-pósito” que a criança estabelecera parasi ainda nos primeiros anos de vida.Para ele, a importância da psicologiaindividual para a pedagogia consistiaem sua contribuição na tarefa de cor-rigir problemas familiares e escolares(1934, p. 54-56). Tratava-se, portanto,de mais um recurso teórico que per-mitiria ajustar as expectativas indivi-duais às necessidades sociais.

    No livro A criança problema , a par-te dedicada às causas, que examina-remos a seguir, é composta de novecapítulos referentes aos temas: “Acriança mimada”; “A criança escor-raçada”; “As constelações familiares”;“O filho único” e “Avós e outrosparentes”. Já na introdução da obra,Ramos atribuía os problemas infan-tis encontrados nas escolas às condi-ções adversas do meio em que vivia

    o aluno, as quais prejudicavam o seudesenvolvimento. Na parte do livroque explicita as causas dos desajusta-mentos, o autor procurava mostrarque as dificuldades eram originadas,sobretudo, pela dinâmica familiar emque estava inserida a “criança-proble-ma”. Recorrendo ao referencial teó-rico da psicanálise e à psicologia ad-leriana, e citando autores franceses,norte-americanos, alemães e outros,

     Arthur Ramos mostrava que os cui-dados dispensados à criança em casa,sobretudo pela mãe, eram determi-nantes de sua adaptação à escola eao meio social mais amplo. Em Edu- cação e Psicanálise , afirmava que: “Amãe deve ser naturalmente a primei-ra educadora, com a colaboração do

    pai; ela deve colocar-se ante seu filhocomo o primeiro próximo, depoisdespertar o interesse da criança paraos demais: pai, irmãos e pessoas daambiência familiar, a princípio, e so-cial, em seguida”. (Ramos, 1934, p. 58)

    Se fosse atendida excessivamen-te em suas necessidades e desejos, acriança se tornaria mimada e sofreriade problemas de dependência exa-gerada da mãe, tornar-se-ia inseguraou, ao contrário, autoritária, e apre-sentaria atraso no crescimento nor-mal, pois teria dificuldade em transi-

    tar da afetividade captativa (egoísta)à afetividade oblativa (altruísta). Nouniverso das organizações familiarespossíveis, havia aquelas que favoreci-am a aparição da “criança mimada”:“Dentro das constelações familiares,são várias as categorias de criançasmimadas: o filho único, a que consa-graremos um capítulo especial, o ca-çula, o primogênito, a criança comdotes físicos ou intelectuais, o irmão,

    em determinadas condições, o filhode viúva, o filho de pais abastadosetc.” (Ramos, 1939, p. 29)

     Acreditava-se que as atençõesdispensadas às crianças pelos avós,madrinhas, tias solteironas e amascostumavam produzir crianças mima-das e constituíam motivo de preocu-pação para os higienistas, tanto queo autor dedicava um capítulo aos“avós e outros parentes”, como cau-

    sas dos problemas infantis. Assim,evidenciava-se a preocupação do au-tor inclusive com as crianças muitobonitas, muito inteligentes, muito ri-cas ou muito amadas. Havia, portan-to, uma justa medida das atenções,dos agrados e dos elogios, a qualdeveria ser observada sob pena de

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    se estragarem as novas gerações. Noentanto, essa observação não deveobscurecer o fato de que a preocu-pação com esses excessos, emborafosse mencionada em diversas par-tes da obra, era menor do que aqueladirigida ao problema da carência,sofrido pelas “crianças escorraçadas”,às quais o autor dedicava quatro ca-pítulos do livro.

    Entre os fatores que contribuí-am para o surgimento desta catego-ria de crianças infelizes, estavam oscastigos corporais sofridos pela crian-

    ça em casa, aplicados geralmente pelopai ou, na escola, pelas professoras;a pobreza, a orfandade e o abando-no. Rigorosamente contra os castigoscorporais em casa e na escola, o au-tor afirmava, no entanto, que eramamplamente disseminados, especial-mente nas escolas rurais. Dava diver-sos exemplos de punições sofridaspelas crianças e explicava que essescastigos tinham efeitos prejudiciais

    para o organismo e a formaçãomoral da criança, de modo que ascrianças que costumavam ser castiga-das em casa apresentavam um com-portamento desajustado na escola.

    No segundo capítulo do livrodedicado à “criança escorraçada”, oautor examinava as condições físicase morais desfavoráveis da vida napobreza, que comprometiam a saú-de das crianças. Explicava que, na

    maior parte dos casos, os pequenos“escorraçados” eram pobres: “Opauperismo carrega em seu bojomúltiplas condições de desajusta-mento; a subalimentação, o alcoo-lismo, a doença, as reações anti-so-ciais… É por isso que os educado-res e psicólogos assinalam tanta im-

    portância ao estudo da criança vin-da de meios pobres”. (Ramos, 1939,p. 71)

    O trecho citado demonstra que,para Arthur Ramos, a pobreza eraentendida como fator determinantede desajustamentos, ou seja, era deesperar que as crianças pobres apre-sentassem dificuldades, até mesmoporque a falta de recursos financei-ros era invariavelmente associada aoutras faltas nos discursos dos espe-cialistas: falta de higiene, de saúde, demoralidade, de afetividade, de cui-

    dados. Se a constatação da pobrezapermitia prever o surgimento de pro-blemas, acreditava-se que a higienemental podia preveni-los, mediantea assistência e a orientação das famí-lias desfavorecidas.

     Antes, porém, de passar ao exa-me das recomendações fornecidaspor Ramos para a prevenção e a cor-reção dos problemas, interessa veri-ficar como se produziam os diagnós-

    ticos dos desajustamentos infantis emsuas clínicas. Na introdução do livroque se está examinando, Ramos ques-tionava a “extrema atividade ‘testo-logizante’ que vinha atravancando apedagogia da época” (  A criança pro- blema , p. XV). Entendia que os pro-blemas infantis eram fenômenoscomplexos demais para poderem serexplicados por testes quantitativos emedidas estatísticas, daí a necessida-

    de de recorrer à contribuição inesti-mável da psicanálise.Em Educação e Psicanálise , o autor

    expressava o seguinte ponto de vista:“Os pedagogos – e é a crítica de

     Jones em seu estudo sobre o incons-ciente da criança – são levados ge-ralmente a classificar os escolares

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    em duas categorias: os que possuem aptidões intelectuais e os quenão as possuem. Esquecem o dinamismo emocional subjacente.Esquecem o papel formidável do inconsciente, verdadeiramenteo motor das ações humanas. As inibições intelectuais estão aí pa-tentes, todos os dias, até na compreensão do mais simples silogis-mo quando há uma causa emocional atual ou remota. Todos ostestes de inteligência fracassarão aqui redondamente. Nos casospedagógicos mais complexos, nesta multidão de ‘difíceis’ escola-res, e principalmente quando há defeitos mais graves de caráter,então a psicanálise, só ela, poderá resolver a situação, mostrandoa decisiva influência que têm os acontecimentos da vida infantil,principalmente no domínio da sexualidade, em todos os atos da

     vida humana, na família, na escola e na sociedade”. (Ramos, 1934,p. 82-83)

     Valorizavam-se, portanto, avaliações mais aprofundadas, quelevassem em conta as condições físicas e emocionais do ambienteem que vivia a criança e outros exames complementares, médico-orgânicos e neuropsicológicos, os quais pudessem fornecer maio-res informações sobre as condições gerais de funcionamento doorganismo do indivíduo. Assim, no Serviço de Ortofrenia e HigieneMental dirigido por Ramos, recorria-se a diversos métodos para acompreensão dos problemas que surgiam.

    “Em nosso Serviço, não damos preferência exclusiva a qual-quer método. Recorremos a métodos combinados, ou a méto-dos especiais, conforme o caso: observação incidental, fragmen-

    tos biográficos, observação sistemática, questionário, história decasos, testes e medidas, experimentação etc. É, porém, o métodoclínico, que reúne a maior soma de processos de investigação dapersonalidade, o mais comumente empregado por nós. Podere-mos chamá-lo de método de observação ‘poligonal’, pois eleutiliza de todos os dados de observação da criança, fornecidospelo professor de classe, pelos pais etc., tudo isso devidamentecontrolado pelo pessoal técnico do Serviço”. (Ramos, 1939,pp. 23-4)

    Diversos tipos de saberes e procedimentos, bem como o cru-zamento de informações obtidas de múltiplos informantes que

     viviam ao redor da criança integravam-se, portanto, na formula-ção dos estudos de caso; estudos que inscreviam e fixavam a histó-ria e as características das crianças, permitindo a realização do diag-nóstico e as decisões sobre as terapias mais indicadas para resolvero problema. Nas diversas observações que ilustram as idéias doautor sobre os problemas infantis, os dados registrados sobre cadacriança eram, geralmente, os seguintes: sexo, idade e cor da criança.Em seguida, nacionalidade, ocupação e características físicas e psi-

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    cológicas dos pais; condições em que ocorreu a gestação da mãe;moléstias ou problemas relacionados ao crescimento, à fala, àmarcha; número de irmãos, idade e sexo de cada um; tipo dehabitação, se alugada ou própria, presença ou ausência de cômo-do e leito para a criança; atividades da criança em casa (brincadei-ras, tarefas, passeios, visitas); horário em que a criança se deita e selevanta, facilidade ou dificuldade em conciliar o sono, presença ouausência de medo da escuridão ou do isolamento, presença deenurese noturna; presença de lues congênita; comportamento emcasa e na escola: preferências, atitudes em relação aos pais, à pro-fessora, aos irmãos e aos colegas; memória, concentração e apren-dizagem. Tais eram, portanto, as informações geralmente solicita-das às famílias e aos professores para a investigação das causas dosproblemas das crianças, como se pode verificar a partir do exem-

    plo a seguir:« obs. 52 (Escola “Argentina”, ficha no. 151 do S.O.H.M.).B.V.F., menino de 12 anos, côr parda. O pai, brasileiro, faleceu

    há 5 anos. A mãe, brasileira, é dentista escolar. Um irmão de 9anos, freqüenta esta escola, 5 irmãos falecidos. Uma prima, de 42anos, mora em casa da criança, toma conta do menino, na ausênciada mãe; fala em voz alta e de modo áspero. Moram em casa alu-gada, situada em “avenida”, sem acomodação para a criança. Re-cebem poucas visitas. O menino gosta muito de cinema, “fita debriga e de sôco.” Poucas informações sobre a história obstétrica

    materna e a história pregressa da criança. O menino dorme às 22horas, levanta-se às 6 horas, dorme no mesmo quarto da mãe edo irmão. Brinca em casa e na escola; gosta de futebol e peteca;tendência a dominar os companheiros. É desobediente, atormentaos colegas, mente e tem o tique de piscar os olhos. É alegre, bu-lhento e agressivo. Funções psicológicas íntegras; aprendizagemboa. Tem 1m44 de altura e pesa 35 quilos e 800 gramas. Luescongênita; verminose, anemia secundária.» (Ramos, 1951, p. 128)

    Observa-se, portanto, que além das características biológicase psicológicas da criança e de seus pais, estava presente o interesse

    pelas condições sociais e econômicas da moradia e pelos hábitosda criança na família. Ou seja, pelos fatores que determinam ascondições de vida dos indivíduos, como parte de uma população.

     A segunda parte da obra A criança problema  é dedicada ao estu-do dos problemas apresentados pelos alunos que, na década de1930, freqüentavam as escolas públicas do Distrito Federal atendi-das pelo Serviço dirigido por Arthur Ramos. “A criança turbulen-ta”; “Tiques e ritmias”; “As fugas escolares”; “Os problemas sexu-

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    ais”; “Medo e angústia”; “A pré-de-linqüência infantil: a mentira”; “A pré-delinqüência infantil: o furto” são ostítulos dos capítulos dessa parte dolivro. Conforme já se mencionou, ascausas dos distúrbios do comporta-mento costumavam ser atribuídas,em primeiro lugar, ao desajustamen-to do meio familiar em que vivia acriança. Em segundo lugar, e maisraramente, à inadequação do ambien-te escolar e aos erros de conduta dosprofessores. É curioso observar quetanto a carência afetiva, na criança

    escorraçada, como o excesso de cui-dados com as crianças mimadas eramapontados como causas possíveispara os mesmos problemas. Assim,as recomendações prescritas peloautor referiam-se sempre à busca doequilíbrio entre o consentir e o repri-mir. Para justificá-las, os argumentoseram encontrados na psicanálise: “Re-almente, muitas conquistas da civili-zação se fazem à força da repressão

    do instinto sexual. Os próprios psi-canalistas não o ignoram. Freud cos-tuma dizer que ‘a neurose é a flor dacivilização’. Mas quanto mal-estar,quantas angústias não carrega em seubojo essa atividade repressora! Apedagogia, porém, deve zelar, paraque a fase da latência e da sexualida-de não se hipertrofie em mecanismosperigosos para o equilíbrio da crian-ça. Nem consentir demasiado, nem

    reprimir demasiado.” (Ramos, 1939,p. 266)

    Observa-se, no trecho citado,como a recomendação trivial de se-guir o caminho do meio adquire sta-tus de conhecimento científico, pro-ferida pelo especialista que invoca aautoridade de Freud. Resta apenas

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    Conforme já se mencionou, ha- via comportamentos indesejáveis nascrianças que eram explicados tantopelo excesso quanto pela falta. A tur-bulência, por exemplo, tanto podiaser explicada pelo escorraçamentocomo pelo mimo excessivo. A crian-ça escorraçada, muito reprimida emcasa e portadora de sentimento deinferioridade, ao encontrar maior li-berdade na escola, acabaria expres-sando aí a sua revolta, reagindo con-tra a autoridade do adulto, tornan-do-se desobediente e indisciplinada

    para afirmar a sua personalidade. Poroutro lado, era possível encontrarcrianças mimadas que, acostumadasa serem atendidas em todas as suas

     vontades, reagiriam às primeiras res-trições impostas pela escola, tornan-do-se turbulentas. A correção do pro-blema precisava ser feita, portanto,mediante a orientação dos adultos,que não deviam ser nem muito seve-ros e nem excessivamente brandos na

    educação das crianças. Ao professor cabia conseguir atransferência do afeto da criança,corrigir a imagem equivocada que elatrazia da autoridade e dos outros, eoferecer “tarefas pedagógicas” espe-ciais, para aproveitar o “excedente deenergia motora” do pequeno turbu-lento. O problema das “fugas esco-lares” era, talvez, o único cujas cau-sas o autor localizava primeiramen-

    te na escola, entendendo que a au-sência às aulas era uma maneira de acriança ou o adolescente manifestaro seu desgosto. Ramos afirmava queera a falta de carinho e de atençãona escola que levava os alunos a fu-girem. Mesmo assim, entendia que,às vezes, as fugas eram motivadas

     verificar em que consiste, segundo ohigienista Arthur Ramos, esse meiotermo desejável. Para evitar o surgi-mento dos problemas de ordem se-xual, por exemplo, o autor apresen-tava uma lista de recomendações quediziam respeito à maneira adequadade organizar a intimidade familiar,em particular a relação entre a mãe ea criança: “Evitar mimos e afagoscontinuados, não amamentar a crian-ça além da época normal, evitar ouso de chupetas, separar o mais pre-cocemente possível a criança do quar-

    to dos pais, não consentir que dur-ma no mesmo leito, evitar as intimi-dades conjugais em presença dos fi-lhos, adotar uma atitude natural emface das manifestações de caráter se-xual, apresentadas pela criança…”(Ramos, 1939, p. 315)

    Para que pudesse, sem riscos aodesenvolvimento da criança, dispen-sar-lhe os cuidados cotidianos, a mãedeveria tornar-se uma “quase espe-

    cialista” em psicanálise infantil, rece-bendo esclarecimentos sobre s con-seqüências danosas que cada simplesatitude equivocada poderia provo-car. Portanto, ao mesmo tempo emque se descrevia o vínculo mãe-fi-lho como espontâneo e natural, pro-curava-se regular sua manifestaçãopor meio dos saberes especializados,que expressavam o significado decada gesto e indicavam a justa me-

    dida do afeto e dos cuidados. Paracada situação, os especialistas esta-

     vam preparados para oferecer asexplicações e os parâmetros do queera considerado natural, ou seja,normal e desejável, bem como asrecomendações sobre como corri-gir eventuais desvios.

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    por uma tentativa de afastamento,não da escola, mas dos pais. Esseseram os casos que exigiam maioratenção, pois podiam tornar-se gra-

     ves, evoluindo para quadros de “va-gabundagem”, caracterizada comofuga permanente, como rupturaduradoura com a família e a ordemsocial mais ampla. Ao final do capí-tulo, Ramos explicava que a soluçãodo problema estava simplesmente nacriação – em casa e na escola – deambientes acolhedores para as cri-anças que, dessa maneira, não senti-

    riam o desejo de fugir.Da mesma maneira, os proble-mas sexuais (onanismo, homosse-xualismo), o medo e a angústia, asmentiras e os furtos praticados pe-las crianças, relacionavam-se quasesempre a problemas ambientais eapenas raramente a uma patologiado organismo. Por isso mesmo, asolução estava na correção do am-biente e não em intervenções dire-

    tas junto à criança, como se verificana seguinte observação feita pelo au-tor a propósito das mentiras infantis:“A não ser nas categorias, raras, dementiras patológicas, em que deve serfeito o tratamento individual da cri-ança, a correção da reação mentiro-sa é mais do ambiente, dos adultos,do que da criança. E devemos evitar,mesmo, na grande maioria dos ca-sos, intervir diretamente na criança.

    Porque cessadas as causas do desa-justamento, cessarão os efeitos quedesembocam na mentira.” (Ramos,1939, p. 372)

    Na conclusão do livro, ArthurRamos defendia a idéia de que a “cri-ança-problema”, cujas dificuldadesderivavam, sobretudo, do meio fa-

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    miliar desajustado, deviam ser man-tidas nas escolas regulares, onde po-deriam ser assistidas e estudadas pe-los higienistas e outros profissionaisque pudessem auxiliar na sua recupe-ração como médicos, psicólogos eassistentes sociais. O autor explicavaque, no atendimento prestado pelasclínicas de Higiene Mental às criançasdesajustadas, o primeiro conjunto decausas a serem identificadas e elimi-nadas era o daquelas determinadaspor problemas “médico-orgânicos”,cuja resolução dependia do auxílio da

    escola e das organizações “peri-esco-lares”, tais como os “pelotões de saú-de”; as “cooperativas e caixas esco-lares”; as “ merendas e sopas escola-res”; as “organizações várias de ‘ami-gos da escola’; ‘círculos de pais e pro-fessores’ etc.” (Ramos, op. cit., p. 406).

    Para Arthur Ramos, sem resol- ver esses problemas iniciais, a higie-ne mental pouco poderia ajudar,pois, no seu entender, “Não se pode

    ajustar psicologicamente uma crian-ça doente e desnutrida, fatigada edefeituosa, sem o trabalho prévio dacorreção das suas ‘inferioridadescorpóreas’” (p. 406-407). Era pre-ciso iniciar, portanto, pelos proble-mas mais aparentes, que se manifes-tavam no próprio corpo da criança,para depois atingir o plano mais sutilde sua emotividade e de sua alma.Em segundo lugar, cabia intervir na

    família e esclarecê-la quanto às cau-sas dos problemas de seus filhos equanto às medidas para a sua corre-ção. No entanto, para o autor, essaera uma tarefa extremamente difícil,uma vez que os pais custavam a ad-mitir que eram os responsáveis pelasdificuldades enfrentadas pelos filhos

    na escola. Assim, era preciso agir de- vagar, com cuidado, e até disfarçada-mente: “Quase sempre convidamosos pais a discutir questões de ordempuramente médico-orgânico dos fi-lhos, e por aí, insensivelmente, elesrecebem os influxos benéficos doServiço. Os resultados têm sido ex-celentes. A visita social, em muitoscasos, completa a obra.” (Ramos,1939, p. 412)

    Finalmente, restava intervir noambiente escolar. No caso das crian-ças “escorraçadas” , por exemplo, afir-

    mava-se que a escola e a professoratinham um papel vital no tratamento,cabendo-lhes a função de compreen-der a criança e de substituir o lar e amãe desajustados. A função da pro-fessora era, ainda uma vez, a de exer-cer um poder de tipo “pastoral”, res-ponsabilizando-se pela salvação daalma de cada um de seus alunos. E ofundamento para o exercício dessepoder era dado pelo conhecimento

    especializado da psicanálise.“A escola completará a obra,procurando compreender a criança,não como uma entidade isolada, por-tadora de ‘vícios hereditários’, de‘constituições delinqüenciais’ e outrascoisas cerebrinas, mas como um ser

     vacilante, afetivo, em formação, nomeio de constelações afetivas dosadultos. O papel fundamental da pro-fessora, como temos de repetir tan-

    tas vezes neste trabalho, será o de sesuperpor aos pais sádicos, principal-mente à mãe madrasta que não com-preende os problemas do seu filho.

     A professora conseguirá da criança a‘transferência afetiva’ e dará assim umacompensação a uma alma órfã deafeto. A compensação afetiva dos

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    problemas da criança é o primeiropasso para a sua correção educativa”.(Ramos, 1939, p. 125)

     A leitura de  A criança problema permite identificar, portanto, trans-formações importantes na maneirade tratar os problemas infantis. Osproblemas serão cada vez mais in-terpretados como pertencendo nãoao plano hereditário ou biológico,mas ao domínio emocional e social,e o tratamento será pensado princi-palmente em termos de uma terapiapara a família, em vez de correção

    da criança. Conforme já se mencio-nou, os higienistas defendiam a idéiade que a tarefa da higiene mental eraconservar normal a criança normal,ou seja, preservar a criança biologi-camente saudável, evitando o surgi-mento de vícios de conduta e favo-recendo, dessa maneira, a sua adap-tação ao meio social, a começar pelaescola. Nesse contexto, entendiam quegrande parte dos desajustamentos

    mais corriqueiros devia-se à má for-mação do ambiente familiar e, assim,era este que cumpria curar, mediantea transformação dos hábitos fami-liares, em especial no que se referiaàs relações entre pais e os filhos.“Resolvidas as causas, cessam osefeitos”, era o que não se cansavamde dizer os educadores. Nesse em-preendimento, todos os fatores queinfluenciavam as condições de vida da

    criança em sua família deveriam serobservados. O bem-estar da crian-ça, que incluía seu ajustamento emo-cional, estava conectado ao bom fun-cionamento da sociedade, de manei-ra que o que fosse proposto para aju-dar a “criança-problema” deveria fa-

     vorecer a organização social. A mes-

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    ma idéia pode ser encontrada em Edu- cação e Psicanálise .

    Nesse livro, o tema da educaçãosexual merecia um tratamento maisdetalhado. Recomendava-se que ospais tomassem para si a delicada ta-refa de instruir os filhos a respeito dequestões acerca do ato sexual e donascimento. De outra forma, as cri-anças acabariam sendo informadasda pior maneira possível, pelos cria-dos ou por colegas da escola. ParaRamos, além disso, a repressão vio-lenta da sexualidade infantil, em es-

    pecial do onanismo, acarretava seve-ro sentimento de culpa e era consi-derada a principal causa de diversostipos de angústia, que se refletiam nasdificuldades escolares das crianças.

    Com base nas indicações de Anna Freud e Mme. Bonaparte, oautor elaborava recomendações so-bre como lidar com o onanismo in-fantil. Explicava que era preciso nãoproibir e não estimular, mas apenas

    observar. Mesmo nos casos anor-mais, que despertavam preocupação,a solução não estava em reprimir, masem descobrir e resolver as causasprofundas, por meio da psicanáliseda criança e o esclarecimento oumesmo a psicanálise dos própriospais. Além disso, era preciso evitar es-timular as zonas erógenas das crianças“especialmente nas fases oral e analda libido”. Era preciso evitar tanto o

    excesso de rigor no recalcamento,como o mimo excessivo. Impunha-se ainda o cuidado de privar a crian-ça de presenciar as manifestações dasexualidade entre os adultos. Final-mente, recomendava-se “derivar aenergia libidinal para as atividades dejogo” por meio da sublimação (Ra-

    mos, 1934, p. 153). Esse processotornava possível canalizar os impul-sos agressivos para atividades com-patíveis com as exigências sociais,dentre as quais destacava-se o espor-te. Era ainda por meio da sublima-ção que a tarefa educativa poderia sercompletada, mediante a orientaçãodo indivíduo para um ofício útil àcoletividade: “Mas a sublimação maisperfeita deve ser para um trabalhode rendimento à comunidade. A ta-refa do educador é de adivinhar logocedo as sublimações para que tendem

    as forças instintivas de cada criança,qual será esse trabalho social, que deveser escolhido não como uma tarefapesada e desagradável, mas com ale-gria, com participação de toda a per-sonalidade, pois que ele tem raízes ins-tintivas, tendências elementares que setransformaram por via da sublima-ção. É todo um capítulo novo deorientação profissional.” (Ramos,1934, p. 157)

     Verifica-se, portanto, o valor pe-dagógico e social de que se revestia apsicanálise. Não se tratava apenas deuma nova maneira de compreenderas dificuldades de desajustamento in-fantil, mas de toda uma reorientaçãoda prática educativa, visando não ape-nas à correção, mas à prevenção dosdesajustamentos. Segundo declaraçãode Ramos (1934, p. 152), a psicanálise“tem alcance profilático, evitando a

    neurose, e pedagógico, modelandoum caráter normal. Em suma, a edu-cação de base psicanalítica não só com-pleta a análise, como deve precedê-la”. Dessa maneira, todas as crianças,e não apenas as desajustadas, deveriamser submetidas a uma educação debase psicanalítica, para se tornarem in-

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    divíduos bem ajustados emocional esocialmente.

    Finalmente, um outro aspectoimportante a ser sublinhado na pas-sagem anterior consiste na idéia deempregar os conceitos da psicanálisepara promover a orientação profis-sional dos indivíduos. A psicologiaexperimental praticada na época ti-nha como uma das suas áreas demaior interesse a orientação profissio-nal, empenhando-se na elaboração detestes que permitissem identificar asaptidões naturais dos indivíduos. Es-

    ses instrumentos serviriam ao gover-no na medida em que permitiriampôr “o homem certo no lugar cer-to”, como se gostava de repetir naépoca. Por esse processo de ajusta-mento ganhava o indivíduo, que tra-balhava mais satisfeito, e ganhava opaís, que recebia de cada cidadão osseus melhores préstimos. Alternativa-mente, Ramos propunha que, em vezdo emprego de testes para verificar

    as aptidões naturais, os professoresutilizassem os conhecimentos da psi-canálise para identificar as “forçasinstintivas” das crianças com o mes-mo propósito, o de canalizar sua ener-gia para fins produtivos pelo processode sublimação e, assim, ajustar osdesejos dos indivíduos aos interessesda Pátria.

    Considerações finais

    Neste artigo tratou-se de exami-nar as maneiras pelas quais os discur-sos divulgados entre os educadoresa partir da década de trinta tornaram

     visíveis e governáveis as “crianças-

    problema”. Verificou-se como a cri-ança difícil de educar foi “mapeada”,mediante o recurso às observaçõesde suas atitudes na escola, o empre-go de testes psicológicos e a elabora-ção de estudos de caso que procura-

     vam registrar as múltiplas determi-nações dos desajustamentos escola-res. Aspectos cada vez mais profun-dos e sutis da personalidade passa-ram a ser descritos em categorias quese tornavam progressivamente maisnumerosas. As técnicas recomenda-das para administrar as crianças irre-

    gulares incluíam a identificação dascausas das dificuldades e a tentativade solucioná-las, conforme a expec-tativa de que suprimidas as causas,acabavam os problemas. Para preve-nir os desajustamentos, cabia intervirna família, cuja desorganização eraentendida como uma das principaiscausas das dificuldades escolares.

    Modificar a conduta da “crian-ça-problema” exigia, em primeiro

    lugar, transformar a conduta de suamãe, dos seus familiares e de sua pro-fessora. A partir da psicanálise, astransformações necessárias incluíammudanças não apenas na maneiracomo o adulto lidava com a crian-ça, mas também na forma como serelacionava consigo próprio, com asua história de vida, com as lembran-ças que tinha de sua infância, de seuspais etc. Nesse sentido, o governo

    da “criança-problema” era insepa-rável do governo das famílias e dasprofessoras.

    Eliane Lopes considera, comrazão, que “A grande contribuição de

     Arthur Ramos inscrita na década de30 foi ter voltado sua atenção para acriança dita anormal para tirá-la dessa

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    situação. Não foi pouco. Podemos,hoje, até dizer que a criação do termo“criança-problema” não é bom, já quenomear é fazer existir. Mas a revisãode casos de crianças registradas nas es-colas como anormais tirou 90% de cri-anças dessa condição e sobretudo dotratamento a elas imposto. As crian-ças com desempenho escolar insatis-fatório, inquietas, mentirosas, seriam‘crianças-problemas’ e a atenção querequeriam era outra muito diferentedaquela que obtinham (ou não obti-nham) quando portavam o título de

    anormais.” (Lopes, 2002, p. 334)Sem discordar da autora, gosta-ria, porém, de chamar mais uma veza atenção para outros efeitos do usoda expressão “criança-problema” nosdiscursos pedagógicos. Se, por umlado, parte das crianças anteriormenteexcluídas do sistema educacional porportarem o rótulo de anormais pôdeser preservada e, eventualmente, re-ceber algum auxílio para superar uma

    dificuldade; por outro lado, um tipode controle mais extenso e mais pro-fundo passou a ser recomendado.Esse controle dirigia-se aos aspectosmais íntimos da subjetividade, procu-rando avaliar e regular inclusive as fan-tasias, os desejos e as motivações in-conscientes da criança, dos seus pais eprofessores. Justificavam-se, em nomeda prevenção, interferências de diver-sos tipos da organização da família,

    antes mesmo que qualquer dificulda-de fosse percebida.É verdade que as crianças per-

    tencentes às camadas desfavorecidasda população continuaram sendoaquelas que se considerava necessá-rio vigiar mais de perto, pois as suascondições tornavam-nas especial-

    mente predispostas aos desvios. Mes-mo assim, o governo da “criança-problema” não teve em vista apenasuma parcela da população infantil,mas todos os indivíduos, na medidaem que incluía a prevenção dos de-sajustamentos e, em princípio, nenhu-ma criança estava livre do risco de setornar um “problema”. Mais do queisso, todas poderiam ser orientadas aum ajustamento não apenas normal,mas ótimo. Os conhecimentos e asrecomendações sobre a criança-pro-blema deveriam estender-se a todas

    as crianças com vistas a promoveruma boa adaptação à escola e, comodecorrência, o melhor ajustamentopossível entre as inclinações do indiví-duo e os interesses da sociedade.

     A BSTRACT

    THE “PROBLEM-CHILD” AND THEGOVERNMENT OF THE FAMILY This paper seeks to discuss the following questions: How did we start to designate part of the pupils in the elementary schools as “problem- 

    child”? By which means a series of minor difficulties common in childhood, such as shyness,

     jealousy or fear of darkness became behavioral  problems to be investigated and treated by educators? Which were the effects of the expression “problem-child” in the educational discourses? The article is based on the analysis of texts about education and psychoanalysis written by Arthur Ramos and published in the 1930decade. The theoretical frame is based on the concept of “governmentality”, by Michel Foucault.Index terms:   “problem-child”; mental hygiene; 

     government of the family; psychoanalysis of the child; Arthur Ramos 

    R ESUMEN

    EL “NIÑO PROBLEMA” Y ELGOBIERNO DE LA FAMILIA

     Este texto pretende discutir las siguientes cuestiones: Cómo se ha llegado a designar parte de los alumnos de las escuelas primarias como “niños 

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    Artigo

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     problema”? De que manera un conjunto de  pequeñas dificultades, comunes durante la niñez,como la timidez, los celos o el miedo a la oscuridad se convirtieron en problemas 

    comportamentales a ser investigados y tratados por los educadores? Cuales fueron los efectos del empleo de la expresión “niño problema” en los discursos educacionales? El análisis está basadoen el examen de textos sobre educación y 

     psicoanálisis de Arthur Ramos, publicados en la década del 1930. El marco teórico está basado en el concepto de “gubernamentalidad”, formulado

     por Michel Foucault.Palabras clave: niño problema; higiene mental; gobierno de la familia; psicoanálisis del niño; Arthur Ramos 

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    [email protected]

    Recebido em março/2006.

     Aceito em outubro/2006.