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LETRAS PLURAIS - Crenças e Metodologias do Ensino de Línguas

CRENÇAS DE PROFESSORES SOBRE O PAPEL DO DICIONÁRIO

NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

Antônio Luciano Pontes1

Universidade Estadual do CearáMárcio Sales Santiago2

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

1 Considerações gerais

Segundo Auroux (1992, p. 65), o dicionário, como tecnologia, descreve

e instrumenta uma língua, sendo ainda hoje um dos pilares de nosso saber

metalinguístico. No Brasil, entretanto, a função do dicionário, enquanto

saber metalinguístico, não vem sendo cumprida de forma plena e tal fato

aparece de forma contundente. Já foi constatado, através de pesquisas3 em

sala de aula, que o aluno se frustra diante do dicionário por não ter sido

“treinado” para usá-lo adequadamente. Esta situação justifica-se

principalmente pelo fato de o professor não se formar bem teórica e

metodologicamente, para o trabalho com o dicionário em sala de aula.

  Para reverter este quadro, coloca-se, primordialmente, uma boa

formação do professor de língua em Lexicografia Pedagógica, pois a ele

cabem várias tarefas, entre elas, manusear todos os tipos de dicionários,

compará-los criticamente assinalando as vantagens de uns e as

insuficiências de outros, informar e guiar o aluno no oceano lexicográfico.

Logo, ensinar pressupõe uma boa formação teórico-metodológica na área

para poder atingir um dos objetivos principais da didática de línguas, qual

seja o de orientar adequadamente o aluno no manuseio do dicionário,

cabendo inclusive a tarefa de programar esse ensino (SALVADOR, 1983).

Ademais, há de esgotar o potencial de informações que o dicionário

possa oferecer ao aluno, não o resumindo na simples função de tira-dúvidas,

o que limita extremamente seus usos em sala de aula. Deve-se, sim, reconhecer

o dicionário como texto, que obviamente pressupõe outras leituras.

1 Doutor em Letras pela UNESP. Professor do Programa de Pós-Graduação em Linguística

Aplicada da UECE. Coordenador do Grupo LETENS. E-mail: [email protected] Mestre em Linguística Aplicada pela UNISINOS. Doutorando do Programa de Pós-Graduaçãoem Letras da UFRGS. Bolsista do CNPq. Pesquisador do Grupo TERMILEX. E-mail:[email protected] Para tomar conhecimento sobre pesquisas na área da Lexicografia Pedagógica, leia relatos emWelker (2008).

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LETRAS PLURAIS - Crenças e Metodologias do Ensino de Línguas

Prova 01

CBJE

Diante disso, o dicionário, como feramenta didática, exige estratégias

particulares de leitura no intuito de atingir vários objetivos, entre outros, o

de levar o aluno à consulta voltada para uma enormidade de questões

relativas à língua, à cultura e aos conhecimentos científicos.Diante das especificidades desse gênero e de sua importância, é

preciso que o professor se municie de informações sobre o dicionário para

orientar bem o aluno no momento de seu uso. Para tanto, é necessário

incluir nos currículos dos cursos de formação de professor (Letras e

Pedagogia) uma disciplina que discuta questões relativas ao léxico e às

ciências do léxico, conhecimentos fundamentais que um professor de línguas

deve possuir.

Tomamos como base, para desenvolver a análise, os trabalhos deHernández (1989), Maldonado (1998, 2001), Garcia (1999), Boulanger (1986),

Madeira (2005, 2008), Kudiess (2005) e Krieger (2005)4. O objetivo desta

análise, então, é desconstruir as crenças do professor e do aluno sobre o

dicionário, algumas delas apontadas em trabalhos anteriores.

 Neste capítulo, após estas considerações gerais, apresentamos três

seções: na primeira, tecemos rápidas observações conceituais sobre crença;

na segunda, discutimos as crenças sobre o dicionário; e nas considerações

finais, sintetizamos alguns pontos discutidos e apresentamos alguns

comentários relativos à organização do dicionário.

2 Fundamentação teórica

A ideia de crença que apresentamos é entendida conforme Carvalho

(2000), Kudiess (2005) e Madeira (2005, 2008). Carvalho (2000) afirma ser

“concepções errôneas e estereotipadas, passadas de geração para geração

sem que as pessoas parem para pensar ou mesmo buscar na literaturaespecializada elementos que justifiquem ou não estes mitos”. De modo

mais objetivo, Madeira (2005, p. 19) define crença como sendo aquilo “que

se ‘acha’ sobre algo – o conhecimento implícito que se carrega, não calcado

na investigação científica”. De acordo com Kudiess (2005), as crenças não

são isoladas uma das outras; ao contrário, formam um sistema em que se

relacionam entre si, segundo o grau de importância. Segundo Madeira (2008,

p.171), as crenças têm causas bem definidas, motivadas, principalmente por

hábitos arraigados, conceitos equivocados, fatores socioculturais equestões afetivas.

4 Boulanger (1993) denomina crença de mito; Maldonado (1998, 2001), de clichê; Madeira (2005,

2008), de crença; Carvalho (2000), de mito.

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LETRAS PLURAIS - Crenças e Metodologias do Ensino de Línguas

Acreditamos que as formas de pensar dos professores e dos alunos

sobre dicionário originam-se de suas próprias experiências; da incorporação

de ideias de lexicógrafos tradicionais; da metodologia usada pela escola; e

de textos didáticos adotados em sala de aula.Sem dúvida, as crenças dos professores sobre dicionário influenciam

as práticas de ensino voltadas para o uso desse instrumento em sala de

aula. Como consequência, obviamente, influenciam o processo de aquisição

de novos conhecimentos pelo aluno e reforçam as crenças que ele já trás.

Nespor (1987, citado por Madeira, 2005, p. 19) “relaciona diretamente a

definição das tarefas escolhidas por professores com as crenças que

carregam consigo”. Essas, dificilmente, são substituídas, a menos que sejam

provadas insatisfatórias.Sendo assim, as discussões sobre esse tema poderão promover uma

reconsideração do modo como os professores vêm trabalhando o dicionário

em sala de aula. Em decorrência desse aspecto, os alunos passam a ver o

potencial do dicionário e a ter um olhar mais crítico diante dessa obra. As

mudanças de atitudes, segundo Kudiess (2005, p.78), “ocorrem quando o

professor se vê diante de uma situação que desafia a crença que possui [...].

Também, podem vir combinadas com informações que o professor adquiriu”.

3 Discutindo as crenças sobre dicionário

Discutir sobre crenças do professor em relação ao dicionário constitui

uma contribuição efetiva à sua formação, pois só assim se é possível apontar

caminhos para a construção de novas metodologias para um ensino

produtivo, no que diz respeito ao uso do dicionário para os fins de ler e

escrever. As crenças sobre o dicionário são várias, algumas das quais já

foram apresentadas pelos metalexicógrafos e aqui discutidas maislongamente.

3.1 Um dicionário é para toda a vida

A crença de que um dicionário é para toda a vida é cultivada por

grande parte de seus usuários:  professores, estudantes, pais de alunos.

Boulanger (1986) a denomina  “mito da permanência do dicionário”, justificando tal crença com base no fato de o consulente acreditar que o

dicionário é eterno, único, insubstituível.

 Para perceber essa verdade ingênua, basta compararmos as várias

edições de um mesmo dicionário, que seguramente, chegaremos à conclusão

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LETRAS PLURAIS - Crenças e Metodologias do Ensino de Línguas

Prova 01

CBJE

de que, entre elas, as diferenças são mínimas. Também se observa essamesma crença quando em uma análise mais acurada se constata que váriosdicionários escritos na mesma época realizam verdadeiras cópias de outros

mais antigos, considerados completos e consagrados pela tradição. Ora, seo dicionário é eterno, é suficiente que as novas edições sejam idênticas àsedições antigas, ou que os dicionários sejam cópias daqueles que a tradiçãoconsagrou como o melhor e o mais completo. Deve-se a essa crença o fatode as escolas não se preocuparem em adquirir novas edições do dicionário,somada à falta de formação do professor em Lexicografia. Por esta ótica, odicionário, se constitui sempre das mesmas entradas e das mesmas acepções,ou seja, o dicionário é concebido como um texto fechado, não se podendo

inserir novas entradas em sua nomenclatura bem como, novas acepções emseus verbetes.

Ao contrário, o dicionário é uma obra aberta, suscetível demodificações em sua constituição, pois as palavras nascem, desaparecem,transportam-se de uma língua para outra, movimentam-se de uma áreacientífica para outra, modificam-se continuamente, uma vez que representaa cultura e o conhecimento de um povo. Por isso, é necessário que serenove continuamente o dicionário, para registrar palavras novas e

empréstimos. Desse modo, segundo Lara (1979, citado por Hernández, 1989),“o dicionário não pode ser visto como uma obra de referência atemporal eneutra; mas, como demonstra a história dos dicionários, um documento deseu tempo e de seus autores”. Fernández-Sevilla (1974, p.17), nessa mesmalinha de raciocínio, assinala:

Por mais que se pretenda, um dicionário não é – não pode nem

deve ser – uma obra intemporal nem atemporal. Há de levar emconta não só a evolução das palavras e de suas acepções,mas também a evolução da mentalidade de que empregam aspalavras e de quem há de consultar o dicionário. O lexicógrafodeve ser o porta-voz do sentir da comunidade, ainda que àsvezes – no caso do dicionário oficial, por exemplo – se escondano anonimato. É a própria língua que deve falar pela boca dolexicógrafo.

Bosque (1982, p.123) é da mesma opinião, ao afirmar:

[...] o dicionário não é uma obra atemporal, já que está ligado,muito mais que a gramática, a evolução cultural da sociedade,

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LETRAS PLURAIS - Crenças e Metodologias do Ensino de Línguas

a outras ciências e disciplinas e, o que é mais importante, aos

fundamentos mesmos dessa cultura.

Enfim, o dicionário não pode ser considerado um texto estático,como o concebiam lexicógrafos tradicionais, professores, pais e membros

da sociedade. Ao contrário, reflete uma cultura que se move dinamicamente

no tempo. Não há como conceber o dicionário como um produto acabado,

fechado, insensível às transformações, pois se sabe que as influências

culturais e linguísticas entre os povos existem e novas experiências

humanas surgem.

Haensch e Omenãca (2004, p. 33), falando dos dicionários espanhóis,

colocam: “Um bom dicionário deveria atualizar-se, pelo menos cada cincoanos e revisar-se profundamente cada oito ou dez anos”. Isso hoje só é

possível graças ao advento da informática e de programas voltados para a

organização e a elaboração de dicionários. Para os mesmos autores: “[...]

com o uso do computador o texto se acha armazenado em sua memória e a

modificação do texto é relativamente fácil e pouco custosa em termos

financeiros”. Assim, pode-se buscar um equilíbrio entre a qualidade do

dicionário e os fatores econômicos.

De fato, nenhum dicionário poderá ser usado por toda a vida. Alémdisso, segundo Maldonado (1998, p.12): “não se pode esquecer de que o

dicionário é documento de uma época: pouco vai servir um dicionário de

mais de trinta anos para resolver dúvidas de linguagem que surgem hoje,

porque as línguas mudam, transformam-se”. Seria, pois, impossível encontrar

num dicionário antigo termos novos, como os da área da Informática, por

exemplo. Também as contribuições das novas teorias linguísticas, dos

pacotes computacionais concorrem para uma mudança de paradigma no

domínio da Lexicografia, transformando os dicionários em ferramentasimportantes para formação do leitor e produtor textos em contextos escolares

e profissionais.

3.2 Um dicionário perfeito serve para tudo

Essa é outra crença sem sustentação científica, porque tem base na

concepção de que o dicionário representa a imagem monolítica de umcompêndio alfabético de toda uma língua. Em outras palavras, julgamos

que tal crença deriva da origem do termo dicionário (do latim dictionarium),

cunhado por Calepino, em 1502, que significa o lugar em que são depositadas

e guardadas as palavras (KRIEGER, 2006).

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LETRAS PLURAIS - Crenças e Metodologias do Ensino de Línguas

Prova 01

CBJE

Para Maldonado (2001, p. 120), o dicionário perfeito “que serve paratudo”, que dá resposta para todas nossas dúvidas sobre a linguagem, nãoexiste. Existem, sim, muitos dicionários diferentes, classificados sob várias

perspectivas. Todos os tipos são úteis, mas devemos entender que cadaum atende a uma função específica, aquela a que se destinou o produto. Porisso, temos que buscar o tipo de dicionário mais conveniente segundo asnecessidades de cada momento.

Na base desse nosso raciocínio, está Fernández-Sevilla (1983, p.70),quando afirma:

Embora um dicionário ideal fosse abarcador do léxico total deuma língua, se tornaria inacessível – e incômodo – para ousuário. Por isso se impõem estabelecer divisões no léxico eno enfoque, com o que se justificam os diferentes tipos dedicionário.

Assim, um tipo determinado assume uma função específica, ditodicionário monofuncional. Em oposição a esse tipo de dicionário, Haensch

(1982) propõe o multifuncional (ou dicionário polivalente), para odicionário que pretende servir para tudo ou quase tudo, ou seja, o leitorespera que o dicionário possa atender a todas as suas necessidades edirimir todas as suas dúvidas. Uma obra desse tipo, que persegue o idealda completude, provavelmente não satisfará plenamente o usuário emsuas consultas. A esse respeito, Hernández (1989, p.274) tece críticas aosdicionários espanhóis:

Existe em Lexicografia escolar uma tendência cada vez maiscrescente em elaborar dicionários polivalentes, isto é,dicionários que são, de uma só vez, descritivos, etimológicos,de sinônimos, de antônimos etc. Haveria que realizar estudospara avaliar o grau de eficácia dos dicionários polivalentes eos dicionários unifuncionais. Provavelmente, convenhalimitar as funções dos dicionários para que assim possamcumpri-las melhor.

Na verdade, dispondo de um único dicionário, não será possívelatender a todas as necessidades do consulente. É preciso saber que hádicionários mais apropriados para determinados usos e necessidades. Dessemodo, há os que ajudam na produção textual, outros mais adequados paraconsulta do significado das palavras, e assim por diante.

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LETRAS PLURAIS - Crenças e Metodologias do Ensino de Línguas

Para atender a necessidades específicas, há vários tipos de dicionário,

estruturados de formas diferentes, constituídos por informações que se

diversificam para atender os interesses do usuário conforme seus objetivos

de consulta, visto que dificilmente encontramos no mesmo dicionáriosolução para as questões como as que se seguem: dúvidas que giram em

torno do significado de um termo antigo e desusado que aparece nas páginas

de um romance do século XIX; dúvidas sobre pronúncia de determinadas

palavras não usuais; dúvidas sobre a origem de uma palavra; dúvida sobre

o plural de palavras; dúvida sobre o gênero feminino de palavras; entre

outras. Problemas como estes nem sempre são resolvidos em um mesmo

dicionário, porque cada tipo tem uma utilidade prática diferenciada.

Por esse motivo é que diante de uma variedade de tipos de dicionárioso consulente deverá selecionar aquele que se adéque às suas necessidades

no momento da pesquisa. Em consequência, os dicionários polivalentes,

ou multifuncionais, os quais se prestam a vários usos, devem ceder lugar

aos dicionários unifuncionais, que se compõem de informações específicas,

necessárias ao que o usuário quer buscar.

Numa frase, Maldonado (1998, p.27) desconstrói o mito “o dicionário

serve para tudo”, quando coloca: “a distintos alunos e a distintas épocas

lhes correspondem, sem dúvida, dicionários distintos, porque são distintas

também as necessidades dos alunos”.

Diante disso, devemos incentivar a publicação de dicionários que

tenham uma finalidade específica, na medida do possível, monofuncional,

frente à proliferação de dicionários gerais, polivalentes ou multifuncionais.

3.3 O bom dicionário é o mais conhecido

Tal crença, denominada por Boulanger “mito da univocidade” apóia-

se no fato de que o dicionário não tem concorrente. Os bons dicionários

são os citados e os reconhecidos por todos. A ilusão da univocidade,

segundo Boulanger (1986) é orquestrada por uma boa publicidade e uma

excelente reputação que uma obra tem na história de um idioma. Seria o caso

do Dicionário Aurélio, tido como o melhor, motivado pela propaganda que

se faz em torno do seu nome, tornando-se hoje o protótipo de dicionário.

Não é por acaso que o nome “Aurélio” é usado como sinônimo de dicionário.Para demonstrar o poder que um dicionário exerce sobre o leitor,

Welker (2006) cita, ao lado de Aurélio, Houaiss e Michaellis, e os denomina

de G3 ou grupo dos três grandes dicionários da língua portuguesa. Esses

dicionários representam o parâmetro, isto é, o meio pelo qual decidimos se

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LETRAS PLURAIS - Crenças e Metodologias do Ensino de Línguas

Prova 01

CBJE

um item léxico pertence ou não à língua portuguesa. Para o consulente, se aunidade lexical está em um dos dicionários do grupo dos três, já é consideradaintegrada à língua portuguesa, ou seja, existe na língua.

No entanto, tal mito não se sustenta à luz da Lexicografia, pois, comoassinala Alves (1990, p. 85), “há arbitrariedades manifestadas pelosdicionários, sobretudo quando não baseados em corpora sistemáticos erepresentativos de uma língua”. Assim uma determinada palavra estáregistrada no dicionário e não pertence a uma norma de uso e há outras queestão e que não deveriam compor a nomenclatura do dicionário, por não teruma frequência representativa nos textos.

“O bom dicionário é o mais conhecido” tem traços inerentes àscrenças anteriormente citadas, pois o fato de ser conhecido acarreta emser o melhor e, por conseguinte, é único e para toda vida. Aliás, sepensarmos bem, todas as crenças aqui apresentadas possuem traçoscomuns, não sendo possível isolar uma das outras, formandoverdadeiramente um sistema de crença.

3.4 O dicionário com uma nomenclatura imensa é o melhor

É um equívoco entender que um bom dicionário é aquele cujaqualidade tem relação direta com o número de entradas que registra. Issotem a ver com a noção de que poderá resolver quaisquer dúvidas doconsulente. Muitos dicionários são considerados completos pelo númerode entradas que apresentam, motivo pelo qual se pensou por muito tempoque seria conveniente manter a maior parte do material herdado dosdicionários anteriores, por mais antiquados, com a finalidade de manter nalíngua o maior número possível de palavras.

Com efeito, os dicionários assim produzidos sequer atendem acritérios de seleção das unidades lexicais para compor sua nomenclatura,incluindo assim em sua composição palavras desusadas, neologismos ouestrangeirismos de usos passageiros. Também se incluem paradigmas ouacepções que não são pertinentes aos objetivos, os quais nem sempre sãoexplicitados na obra.

 Avolumando o dicionário, a editora atende a uma expectativa do

consulente. A propósito, cabe citar Lagos (1998, p. 164):

[...] parece ser muito importante para o comprador do dicionárioque este lhe ofereça uma grande quantidade de palavras [...].É por essa razão que os editores se esforçam em destacar na

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LETRAS PLURAIS - Crenças e Metodologias do Ensino de Línguas

contracapa do dicionário o numero de entradas, e algumasvezes exagerando em grande medida.

No Brasil, essa crença é reforçada quando se comparam os dicionáriosescolares aos dicionários gerais, os quais são reduzidos sem critérios paraatender às necessidades dos usuários-aprendizes, que nem sempre sesatisfazem ao final da consulta. Como os dicionários escolares sãoconcebidos como livros de bolso, a redução simplesmente representa umaquestão de volume. A diferença no Brasil entre os dicionários, em verdade,se dá em termos de quantidade de entradas, reduzindo acepções usuais,

encurtando palavras no interior das definições e sobrecarregando-os dedefinições hipoespecíficas.

3.5 Os dicionários são todos iguais

É um absurdo afirmar que os dicionários são todos iguais. Mazière(1987, p. 47) explica a razão dessa crença, com base em seu estudo sobre oenunciado definidor:

O público, qualquer que seja, tem uma representação aindaingênua do dicionário. Pelo fato deste ser, antes de tudo, uminstrumento de consulta, a definição goza de um estatutoparticular: ela é sempre mais ou menos considerada como ‘boa’,‘sem restrições de uso‘, intercambiável de um dicionário aoutro. Nós sempre temos um dicionário,  e apesar das

diferenciações teóricas importantes reivindicadas pelos

lexicógrafos desde há duas décadas. [grifo do autor]

Sabe-se, no entanto, que “existem grandes distinções entre osdicionários, quer pelo registro e tratamento dos dados lexicais, gramaticaise os diferenciados enfoques semânticos, quer pelas marcas ideológicasque contém como qualquer outro texto” (KRIEGER, 2005, p. 105). Um tipode dicionário classificado como escolar pode mudar em sua linguagem e emsua estrutura de obra para obra, dependendo da finalidade de cada uma, donível de usuário a que se destina, dos fundamentos teóricos que subjazema elas, pois cada autor pode ter assumido decisões diferentes, a partir desuas orientações teóricas e pedagógicas. Obviamente, há convençõesuniversais nos dicionários, mas há características distintivas em cada umdeles. Isto é dito em Maldonado (2001, p. 122):

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LETRAS PLURAIS - Crenças e Metodologias do Ensino de Línguas

Prova 01

CBJE

O dicionário é uma invenção muito antiga. E, desde o início de

sua historia, a técnica de elaboração de dicionários vem

perpetuando no tempo uma série de convençõestradicionalmente aceitas, mas nunca obrigatórias. Na

elaboração de um dicionário, portanto, se dispõe sempre de

uma margem na escolha de determinados critérios de trabalho.

E esses critérios devem explicar-se nas páginas iniciais do

dicionário, a fim de que o usuário saiba orientar-se ao navegar

no texto lexicográfico.

Assinala Krieger (2005, p. 105):

[...] a errônea ideia de que os dicionários […] não se diferenciam

está também, em muito, vinculada à arraigada concepção de

que a organização de uma obra lexicográfica corresponde a

uma simples tarefa compilatória, que se resume a reunir dados

 já estabelecidos e convencionados socialmente. Nessa

perspectiva, trata-se apenas de sistematizar as informações

coletadas, apresentando-se sob a forma do código

dicionarístico, convencionado pelas entradas ortográficas e a

organização interna dos verbetes.

Com efeito, uma obra lexicográfica, que pretenda ser científica, reflete

um embasamento teórico, pois o dicionário não é produzido de qualquer

 jeito. Subsediam a ele uma teoria lexical, gramatical e linguística. Biderman(2002, p. 87) justifica alguns problemas teóricos nas obras de Aurélio e

Houaiss, pelo fato de revelarem “desconhecimento da Teoria Lexical,

Gramatical e Linguística”. Mas, além do embasamento teórico, os dicionários

deverão representar uma proposta lexicográfica específica, para adequar-se

à compreensão do usuário visado. São essas as verdadeiras causas das

distinções entre os dicionários.

Como as obras não são iguais, é necessário, como já mencionado,

que o lexicógrafo apresente todas as características e finalidades específicas

do dicionário em suas páginas iniciais. Também se faz necessário apresentar

em tais páginas as decisões tomadas pelo lexicógrafo no intuito de encorajar

o consulente a usá-lo com segurança, com mais agilidade e com mais

proveito, sem jamais decepcioná-lo.

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Nestas páginas iniciais, deverão, além das várias decisões tomadas,

fazer aparecer prefácio, introdução, guia de uso, lista de abreviaturas e lista

de símbolos carregados de conteúdo descritivo, porque não são universais5.Compartilha desse ponto de vista Maldonado (1998, p.122), quando observa

que “é importante, pois, considerar que cada dicionário tem sua própria

estrutura e que em todos eles – se são de qualidade – essas características

especiais vão explicadas nas páginas preliminares”.

3.6 O dicionário representa uma única norma

Essa crença se refere à falsa ideia de que o dicionário representa anorma, ou seja, a forma correta da língua, o modelo do “bom uso”. Com base

nesta verdade, só se usa uma palavra, na sua forma e no seu sentido, se

estiver registrada no dicionário. Diga-se de passagem, este registro é

condição para reconhecer sua existência.

Dentro desta visão, o melhor dicionário é aquele que se tornou uma

autoridade e representa o padrão. Nele se registra uma norma correta e pura,

a norma mais adequada ao uso culto da língua. Sobre isso, afirma Welker

(2004, p.187):

[…] professores e alunos erigem as informações constantes

de determinado dicionário em norma, exigindo dos alunos e

filhos que obedeçam a essa norma, ou o próprio usuário já

internalizou tal obediência, acreditando que um certo dicionário

– geralmente o mais usado – representa a ‘verdade’, o ‘certo’,

no que concerne ao léxico.

Para reforçar essa crença, alguns dicionários não apresentam as

normas regionais que existem na realidade de fala dos usuários cultos da

língua; não dão conta dos neologismos, esquecendo que a cultura é

dinâmica e que, por isso, o léxico de uma língua é aberto.

Seguramente, a cada dia a ciência lexicográfica tem dado respostas

a estas questões, fazendo do dicionário uma obra que reflete uma

realidade linguística e uma cultura mutável, aberta e dinâmica, comoantes demonstrado.

5 Os símbolos usados nos dicionários variam de obra para obra.

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Prova 01

CBJE

3.7 O dicionário indica competência intelectual de quem o lê

O professor que consulta dicionário em sala de aula ou que tira

dúvidas de aluno tomando por base o dicionário pode passar a falsa ideia

de que não sabe plenamente a língua portuguesa. Consequentemente,

aquele que age assim não é um profissional competente. Essa crença tem

base no que Nascimento (2002) coloca: “Há quem pense que o dicionário

tenha sido idealizado para ser consultado, exclusivamente, por aqueles

que possuem parcos conhecimentos sobre o funcionamento da língua”.

Há também quem entenda que o professor, quando bem qualificado, não

precisa mais consultar dicionário.

Mas como querer que um falante, sendo ele professor ou não, dominetodo o léxico de uma língua? A resposta para esta questão está nas palavras

de Biderman (1984), afirmando que “nenhum falante de uma língua por mais

competente que seja em matéria vocabular, jamais conseguirá incluir no seu

léxico ativo e passivo grandes parcelas do léxico geral das línguas”.

Originam-se dessa crença os clichês “o dicionário é o pai dos burros”,

“o dicionário é amansa burro”.  Tais expressões apontam para um forte

preconceito contra o dicionário e contra quem o usa, em sentido inverso ao

que Nascimento (2002) lucidamente retruca: “paradoxalmente, são os doutosda língua e da linguagem os que mais se utilizam do dicionário”. Para

confirmar isso, Costa (1996) informa ter o escritor Carlos Drummond de

Andrade o hábito de consulta tão frequente ao dicionário, que fazia isso

com “mão diurna e noturna, num exercício para a conquista da visão do

homem e do mundo”.

Cabe aqui, a propósito, ainda citar Costa (1996, p.129), ao referir-se

às intuições de Drummond para os estudos lexicográficos: “o dicionário

constitui [...] obra de leitura paciente e metódica capaz de fornecer umasíntese histórico-cultural da comunidade, testemunha de uma determinada

civilização”. Esta citação intuitiva do escritor vai ao encontro daquilo que

Sobrinho (2000, p.81) afirma como lexicógrafo pedagógico: “o dicionário

não é apenas um livro de consulta, mas também um livro de leitura”.

Drummond, entretanto, não era apenas um leitor de dicionário, também foi

um escritor que pretendeu auxiliar os dicionaristas quando fazia crônicas

que constituíam verdadeiros corpora, registrando nelas palavras novas,

palavras velhas, frases feitas. “Trazia para suas crônicas numerosas palavras

que neles [dicionários] não estavam registradas, muitas delas de sua própria

lavra” (COSTA, 1996, p.128).

Em razão dessa crença, alguns professores têm afastado do aluno o

dicionário e, ainda pior, o profissional despreparado faz o aluno desacreditar

de seu potencial e de sua importância como livro de consulta e de texto.

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3.8 O dicionário é uma obra objetiva e neutra

Em geral, o dicionário é entendido pelos seus consulentes comotextos objetivos e neutros. Muitos estudos já demonstraram que isso éantes de tudo um mito e, como tal, não se sustenta à luz de disciplinas comoa Lexicografia Discursiva, a Metalexicografia e a Semiótica. No contextodessas disciplinas, o dicionário é concebido como um texto ideológico,como qualquer outro. Sua autoria tampouco é anônima. Pascual (1996, p.75),a respeito dessa questão, coloca:

Embora hoje os dicionários sejam fabricados pelas máquinas,o homem está por trás, pensando os programas, administrandoo processo de construção do dicionário. Este homem, olexicógrafo, tem ideologia, orientação política e visão demundo. [...] a produção do dicionário não é uma produçãoinocente, nem pode sê-lo, pois cada lexicógrafo é um porta-voz de uma classe e um ser inserido em seu tempo.

Lima (2003, p.285) assim define esse sujeito-lexicógrafo:

[…] um sujeito cuja identidade não equivale a um indivíduo,mas um conjunto de posições que vão sendo assumidas nodiscurso e deixam pistas para interpretação. No dicionário nãose faz ouvir apenas a voz daquele que o escreve, mas a

diversidade de vozes sociais, constituindo-se no discurso umsujeito coletivo.

Com efeito, não há verdadeiramente dicionário neutro, nem ingênuo,pois quem o produz tem um posicionamento ideológico. Cabe uma nota dePérez (2000, p.51): “[...] ao menos os dicionários escolares deveriam ajustaros exemplos aos princípios constitucionais e à Declaração dos DireitosHumanos”, já que não é possível exigir neutralidade na redação dos seus

segmentos, porque, de fato, a neutralidade é um mito platônico.É desse mesmo ponto de vista Ezquerra (1993, p. 191), quando afirma:“as obras lexicográficas não expõem um modelo ideal de sociedade, mas oda sociedade da qual surgem”. Como assinala Berdet (2002-2004, p.408) “aideologia de um dicionário deve coincidir com o ideal da época real do

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Prova 01

CBJE

dicionário, a de sua edição”. Assim, a ideologia manifesta num verbete deum dicionário produzido na década de 1970, auge da didatura militar noBrasil, não é necessariamente a que deva aparecer na edição de 2005, época

em que vigora a democracia.O dicionário, comprendido dessa forma, produz discursos a partir derelações de interdiscursividade e de intertextualidade. Em outras palavras:no discurso do dicionário necessariamente outros discursos e outros textossão convidados a participar de sua construção, pois as informações sãoextraídas de outros textos, as quais, nos verbetes, se apresentam nosexemplos de uso (abonações) e nas definições. Mas esses diálogos tambémocorrem quando há remissão entre os segmentos do dicionário, formando,

pois, uma verdadeira rede semântica entre suas partes estruturais.Nunes (2003, p. 11) corrobora dessa mesma opinião, quando assinala

que o dicionário “coloca em circulação modos de dizer de uma sociedade”,manifestos, sobretudo, nas definições lexicográficas, nos exemplos de usoe, inclusive, nas decisões tomadas pelo lexicógrafo em relação à escolhados itens lexicais, que irão compor a macroestrutura do dicionário.

É por esse motivo que Berdet (1996, p. 77), pela natureza discursiva,reconhece dicionários considerados politicamente corretos, aqueles queaparentam neutralidade ou imparcialidade; outros reacionários e algunsengajados, “assumindo totalmente sua parcialidade ou dando conta de suaopinião acerca dos referentes definidos”.

Os aspectos ideológicos determinam a seleção dos termos paracompor a nomenclatura do dicionário, mas também são representados emmarcas de uso, em definições e em exemplos de uso. Nos exemplos abaixo,retirados de dicionários escolares,  percebemos manifestações de

preconceitos em relação às religiões, quando os autores escolheram ositens lexicais festa, ritual e culto como hiperônimo para introduzir definição.Ferreira, entre eles, é o único autor que reconhece candomblé como religião.Confira tal afirmação em Ferreira (2005), Kury (2001), Rocha (2005), Luft(2004), respectivamente:

can.dom.blé Religião introduzida no Brasil por escravos, na qual cren-tes novos e ancestrais, reais ou míticos, eram divinizados.

candomblé Festa religiosa do culto afro-brasileiro.

candomblé.Ritual animista afro-brasileiro, originário de Benin e Nigéria,que rende culto aos orixás.

candomblé. Culto afro-brasileiro que engloba as nações jeje, nagô,angola e congo.

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Para o verbete greve, Ferreira (2001) formula uma definição cujos

fundamentos se materializam no discurso dito autoritário. Bueno (2000), por

outro lado, adota um posicionamento ideológico mais aberto. Comparemos

os verbetes:

gre.ve s.f. Acordo de operários, funcionários, estudantes, etc., que se

recusam a trabalhar ou a cumprir suas obrigações, enquanto não

forem atendidas em certas reclamações.

GREVE, s.f. Suspensão coletiva do trabalho por iniciativa de em-

pregados que reivindicam melhores condições de trabalho, melho-

res salários, etc.

Como podemos observar, sob uma análise crítico-comparativa, o con-

teúdo ideológico nas definições lexicográficas é distinto. Ferreira (2001),

pelo seu lado, assume uma postura autoritária. Aliás, a definição apresenta-

da para greve vem se repetindo em todas as edições de seu dicionário, desde

a ditadura militar. Parafraseando Berdet (1996), diríamos que o lexicógrafo

impõe porque foi imposto; só que, ao transmitir, consagra. Bueno (2000), ao

contrário, coloca-se no lugar de um trabalhador. Concebe greve como umaatitude política legítima, longe de qualquer conotação irresponsável ou in-

consequente em um Brasil hoje tido como democrático.

No verbete abaixo, retirado de Mattos (2005), a ideologia aparece em

um exemplo de uso:

Abocanhar v. 2. Tomar alguma coisa para si: abiscoitar, apoderar-se,

apossar-se -  A nova direção da fábrica de brinquedos espera

abocanhar em breve a maior parte do mercado.

O exemplo de uso acima ilustrado, situado após a definição, reflete

o poder que a empresa quer lograr, abafar ou, porque não dizer, eliminar suas

concorrentes, sobretudo as menores, mais fracas, no âmbito de seu campo

de atuação.

4 Considerações finais

Do exposto, podemos concluir que, apesar das convenções, os tex-

tos dos dicionários não são tão estáveis como aparentam, pois são sujeitos

a um processo de transformação contínua. As transformações resultam pelo

fato de haver uma lista numerosa de tipos de dicionários, ocorrendo entre

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Prova 01

CBJE

eles, aproximações e variações na sua constituição. Isso favorece a mesclagem

entre os dicionários existentes: um novo tipo nasce a partir de tipos já exis-

tentes. Assim é que surgiu há pouco tempo, o dicionário escolar, híbrido do

dicionário de produção, do dicionário de compreensão, do dicionárionormativo e da enciclopédia.

Os suportes também geram tipos de dicionários distintos. Os

eletrônicos, em relação aos aspectos composicionais, retóricos e estilísticos,

distinguem-se enormemente em relação aos impressos, propiciados pelas

invenções tecnológicas. Assim é que o dicionário eletrônico, caracterizado

como hipertexto, com sua organização não linear, mudou as organizações

textuais, obrigando-as a adotar novas formas para resultar em uma comuni-

cação eficiente, dinâmica e mais interativa. Daí entendermos que o dicionário Macmillan Essential for Leaners of English (2003), na versão CD, não seja

o mesmo que em sua versão impressa, apesar de pertencerem ambos à mes-

ma autoria e terem as mesmas finalidades e funções.

Deste modo, entre os exemplares do mesmo tipo, os dicionários so-

frem variações motivadas pela influência das inovações tecnológicas da

pós-modernidade, como o advento da Internet e o avanço nas Ciências da

Informação. Essas inovações, conforme Silva (2006), são responsáveis pe-

las mudanças em nosso cotidiano e, de forma ainda mais marcante, nas

práticas de linguagem escrita, uma vez que as construções dos textos passa-

ram a articular recursos de diversas ordens semióticas para a transmissão da

informação. Além dessa causa, os exemplares de um mesmo tipo de dicioná-

rio são marcados por outras características, heterogêneas e dinâmicas, moti-

vadas por crenças pedagógicas, teorias lexicográficas, estilos do autor e

invenções tecnológicas (PONTES, 2009).

As crenças discutidas neste trabalho se inter-relacionam, daí a difi-

culdade de categorizá-las de forma estanque, pois características de um tipo

de crença, em geral, encontram-se entrelaçadas umas nas outras, configu-rando-se as diversas categorias em um sistema de crenças.

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