cotidiano, espaço e tempo de um antigo bairro paulistano

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GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 15, pp. 77 - 103, 2004 COTIDIANO, ESPAÇO E TEMPO DE UM ANTIGO BAIRRO PAULISTANO: TRANSFORMAÇÕES DA CIDADE E A DIMENSÃO DO VIVIDO Aluísio Wellichan Ramos * * Mestre e Doutorando em Geografia Humana pelo Departamento de Geografia da FFLCH da Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected] ou [email protected] RESUMO: Este artigo procura discutir as diversas espacialidades de uma porção da cidade de São Paulo conhecida por Água Branca, procurando ressaltar a importância da interação constante entre a observação e análise empíricas e as teorias sobre a indústria e o urbano. Neste sentido, há uma tentativa de mergulho na dimensão do vivido para compreender de forma mais ampla a realidade objeto deste estudo. O foco da discussão é o bairro e a sua concepção, o que, na verdade, é o ponto de partida da análise. Como tentaremos mostrar, o bairro aqui é descoberto e redescoberto, a partir do movimento inseparável do espaço-tempo. No entanto, tal movimento de suas espacialidades, que vão do rural (localidade) ao urbano (porção imersa na metrópole), passando pelo industrial (bairro), não pode negligenciar a dimensão do vivido. PALAVRAS-CHAVE: Bairro, cidade, metrópole, urbanização, modo de vida. ABSTRACT: This article tries to discuss some of the spacialities of a sector of São Paulo City, known as Água Branca. We will try to put in evidence the importance of the constant interaction between the empirical analysis and the theories about the industry and the urban. In this sense, there is a tentative to go deep in the lived dimension, in order to understand better the reality of this study. The focus of the discussion is the neighborhood and its conception, which is, actually, the starting point of the analysis. As we will try to show, the neighborhood is discovered and rediscovered, starting from the inseparable movement of the space-time. But the movement of its spacialiaties, which goes from the rural (local) to the urban (portion immersed in metropolis), passing through the industrial (neighborhood), can not council the lived dimension. KEY WORDS: Neighborhood, city, metropolis, urbanization, way of life. I - Introdução O ponto de partida deste artigo é a discussão sobre as transformações de um local da cidade de São Paulo, conhecido por “Água Branca”, localizado em seu oeste próximo, o qual tem sua gênese enquanto bairro paulistano vinculado ao início da industrialização da cidade no final do século XIX. Tal local, no entanto, deixa de ser um bairro a partir de meados do século XX, devido à combinação de um duplo processo:

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GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 15, pp. 77 - 103, 2004

COTIDIANO, ESPAÇO E TEMPO DE UM ANTIGO BAIRROPAULISTANO: TRANSFORMAÇÕES DA CIDADE E A DIMENSÃO DO

VIVIDO

Aluísio Wellichan Ramos*

* Mestre e Doutorando em Geografia Humana pelo Departamento de Geografia da FFLCH da Universidade de São Paulo.E-mail: [email protected] ou [email protected]

RESUMO:Este artigo procura discutir as diversas espacialidades de uma porção da cidade de São Pauloconhecida por Água Branca, procurando ressaltar a importância da interação constante entre aobservação e análise empíricas e as teorias sobre a indústria e o urbano. Neste sentido, há umatentativa de mergulho na dimensão do vivido para compreender de forma mais ampla a realidadeobjeto deste estudo.O foco da discussão é o bairro e a sua concepção, o que, na verdade, é o ponto de partida daanálise. Como tentaremos mostrar, o bairro aqui é descoberto e redescoberto, a partir do movimentoinseparável do espaço-tempo. No entanto, tal movimento de suas espacialidades, que vão do rural(localidade) ao urbano (porção imersa na metrópole), passando pelo industrial (bairro), não podenegligenciar a dimensão do vivido.PALAVRAS-CHAVE:Bairro, cidade, metrópole, urbanização, modo de vida.

ABSTRACT:This article tries to discuss some of the spacialities of a sector of São Paulo City, known as ÁguaBranca. We will try to put in evidence the importance of the constant interaction between theempirical analysis and the theories about the industry and the urban. In this sense, there is atentative to go deep in the lived dimension, in order to understand better the reality of this study.The focus of the discussion is the neighborhood and its conception, which is, actually, the startingpoint of the analysis. As we will try to show, the neighborhood is discovered and rediscovered,starting from the inseparable movement of the space-time. But the movement of its spacialiaties,which goes from the rural (local) to the urban (portion immersed in metropolis), passing through theindustrial (neighborhood), can not council the lived dimension.

KEY WORDS:

Neighborhood, city, metropolis, urbanization, way of life.

I - Introdução

O ponto de partida deste artigo é adiscussão sobre as transformações de um localda cidade de São Paulo, conhecido por “ÁguaBranca”, localizado em seu oeste próximo, o qual

tem sua gênese enquanto bairro paulistanovinculado ao início da industrialização da cidadeno final do século XIX. Tal local, no entanto, deixade ser um bairro a partir de meados do séculoXX, devido à combinação de um duplo processo:

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por um lado, o avanço e transformação daurbanização, com a formação da metrópole, e,por outro lado, o recuo da indústria na área apartir de um processo de desindustrialização.

Iniciamos este artigo procurando, emprimeiro lugar, fazer uma breve reconstituiçãohistórica deste local, para em seguidatentarmos trazer a dimensão do vivido comoum elemento de suma importância nacompreensão do movimento histórico dasespacialidades1 deste local.

Cumpre esclarecer que toda areconstituição histórica aqui realizada e a

compreensão desta história têm como ponto departida o presente. A nosso ver, o passado só épotente para a compreensão da realidadepresente quando analisado tendo como início opróprio presente, isso porque temos como basedesta pesquisa o método regressivo-progressivo,que será elucidado mais adiante.

II - Um Local de Movimento

A Água Branca, tida numa concepçãomais ampla2 , está situada administrativamente,em sua porção leste, no subdistrito de Perdizes,

Mapa I: MAPA TOPOGRÁFICO DA ÁGUA BRANCA E IMEDIAÇÕES – 1971

Mapa Topográfico do Instituto Geográfico e Geológico de São Paulo (IGGSP). Trecho da folha 4. Escalaaproximada: 1:14.125

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e em suma porção oeste, no subdistrito da Lapa.Localiza-se, portanto, no setor oeste de SãoPaulo, entre a Vila Romana a oeste (subdistritoda Lapa) e a Barra Funda ao norte e nordeste;ao sul, encontra-se com a Vila Pompéia(subdistrito de Perdizes) e a leste e sudestecom o bairro de Perdizes.

Sem nos preocuparmos com a infrutíferatarefa de estabelecer limites fixos, podemosdizer que a Água Branca compreende uma área(na verdade uma estreita faixa) ao longo dotrecho final da Avenida Francisco Matarazzo (apartir das imediações da Avenida Antarctica atéseu término no Largo Pompéia), da Rua CarlosVicari e do trecho inicial da Rua Clélia, seguindoainda por um trecho dos arredores da RuaGuaicurus e da Avenida Santa Marina, a partirda Praça dos Inconfidentes.

O entendimento do local passa,necessariamente, pela reconstituição ecompreensão de sua história e de sua inserçãono conjunto da cidade. Nesse sentido,buscaremos fazer uma síntese da inserção daÁgua Branca na história da cidade de São Paulo.Com esse intuito, recuamos até meados doséculo XIX, momento no qual localizamos asprimeiras menções à este local sob a designaçãode Água Branca, quando este espaço integravaos arredores rurais da pequena São Paulo, quecontava por essa época com cerca de 20.000habitantes.

A Água Branca como uma porção urbanada cidade (como bairro integrado à cidade) temsua gênese por volta de meados da década de1880. Por sua vez, é difícil precisar quando alocalidade rural da Água Branca passou a serdenominada e reconhecida como determinadaporção rural dos arredores do oeste do“município” de São Paulo. No entanto, peloestudo retrospectivo que empreendemos,consultando variada série de mapas, cartas,croquis, documentos e textos, podemos concluirque essa porção oeste de São Paulo passou aser conhecida como Água Branca por volta doinício do século XIX, em algum momento de suasduas primeiras décadas, tendo aí seestabelecido um pouso de tropas, mencionadopor viajantes (Auguste de Saint-Hilaire e Luiz

D’ Alincourt)3 em descrições de viagens em 1819/1821, além de ter sido constatada, algum tempodepois, a instalação de chácaras, que passarama dar vida ao local.

O ponto principal que explica osurgimento da localidade (e suas funções –pouso de tropas e chácaras) é o fato destaestar situada às beiras do antigo caminho deJundiaí4 , o que desde logo lhe trouxe omovimento das tropas de muares que sedirigiam para a região de Jundiaí e Campinas etambém para o núcleo colonial de NossaSenhora do Ó5 , uma vez que a estrada do Ótinha seu início numa bifurcação a partir doantigo caminho de Jundiaí, exatamente no localdenominado Água Branca6 . Tratava-se,portanto, de um local de convergência de duasimportantes estradas.7 Além disso, é importantesalientar, que o núcleo inicial da Água Brancaestá situado em torno da confluência doscórregos da Água Branca e da Água Preta,confluência na qual situa-se hoje o LargoPompéia, onde terminam as avenidas Pompéiae Francisco Matarazzo.8

Quanto às funções sócio-econômicas quea localidade desenvolvia antes de serincorporada como bairro à cidade de São Paulo,podemos citar duas como as principais: ofornecimento de produtos primários à cidade deSão Paulo, através de alguns sítios e chácarasformados ao longo do século XIX e o apoio àcirculação extra-regional, através da existênciade um pouso de tropas na localidade.

O mapa II, a seguir, é uma reconstituiçãogeral de como seria São Paulo em 1840, feitapor Frederico H. Gonçalves em 1937 e na qualvemos a Água Branca já figurar como umalocalidade, a oeste da cidade de São Paulo naconfluência dos córregos da Água Preta e ÁguaBranca. Vemos também, passando pelalocalidade, as estradas de Jundiaí e do Ó. Oponto a oeste da dita confluência, de ondedivergem as estradas é o local em queencontramos hoje a Praça dos Inconfidentes,também conhecido anteriormente como Largoda Água Branca. Como se vê, a designação“Água Branca” é bem anterior ao aparecimentodo bairro e, portanto, à urbanização da área.

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Vale insistir que a localidade era cortadapor uma importante estrada, a de Jundiaí/Campinas e ali ainda iniciava-se a estrada paraa Freguesia de Nossa Senhora do Ó, portantoum local de interesse para os chacareiros, namedida em que tinham a comunicação e otransporte facilitados.

No entanto, o interesse pela localidadepassou a ser ainda maior quando da construçãoda antiga São Paulo Railway. A estrada de ferro,inaugurada no início de 1867, e que teve desdeo seu princípio uma estação intermediária, entrePerus e Luz, na Água Branca, sem dúvida fez

Mapa II: RECONSTITUIÇÃO DE COMO SERIA SÃO PAULO EM 1840

Fonte: GONÇALVEZ, Frederico H., São Paulo em 1840 – reconstituição geral feita em 1937, In: BARRO,Máximo, História dos Bairros de São Paulo: Nossa Senhora do Ó, v. 13, São Paulo, Divisão do ArquivoHistórico do Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura doMunicípio de São Paulo, 1977, modificado por Aluísio Wellichan Ramos.

com que diminuísse, até cessar, o movimentode tropas pelas estradas da localidade.Portanto, sua função de abrigar um pouso detropas, provavelmente, logo chegou ao fim,antes do início (meados da década de 1880)daquilo que podemos chamar propriamente debairro da Água Branca. Outra importante ferroviaconcorreu para a ocupação da localidade,sobretudo para a formação do emergente bairroda cidade, a E.F. Sorocabana, inaugurada em1874, situando-se paralela à São Paulo Railwayneste trecho da cidade.

O mesmo processo não ocorreu com aschácaras que conviveram por algumas décadas

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com o bairro nascente. Em realidade, aschácaras aumentaram a partir de 1870/80, nãodevido à instalação da ferrovia, mas aocrescimento demográfico da cidade de SãoPaulo. Segundo LANGENBUCH (1971), os“chacareiros portuguêses” foram instalados “emáreas que estavam sendo difusamente ocupadaspela expansão urbana, tais como Água Branca, VilaPompéia, Lapa, Tatuapé, Penha, Itaim-Bibi,Santana, Casa Verde, etc. Êstes chacareirosprodutores de legumes e verduras após 1920passariam a se deslocar, em sua maioria, paraáreas mais afastadas da cidade.”(p.118)

De maneira explícita ou, por vezes,implícita, mostramos até aqui a importância dasvias de circulação para a gênese da localidade.A conformação tanto da localidade, quanto dobairro nascente está vinculada aos caminhos.Se fôssemos classificar a Água Branca, quantoà forma, falaríamos em “localidade/bairro debeira de estrada”. Este fato perdura de certaforma até os dias atuais, na medida em que,quanto mais nos afastamos, para o sul ou parao norte, das citadas vias (que formavam osantigos caminhos), mais distantes ficamos daÁgua Branca. Nos dias atuais, muito emconseqüência das características queapontamos até aqui, a Água Branca não temuma área core, um coração, mas uma artéria, equanto mais longe dela, mais longe do bairro.Por vezes, basta andar um ou dois quarteirõesdistanciando-se da artéria para que a ÁguaBranca se mescle com outros bairros: Perdizes,Vila Romana, Vila Pompéia, Barra Funda ouLapa.

A partir de 1870/1880, na localidade ruralpassa a se configurar o bairro da Água Brancano momento em que a cidade de São Paulo,impulsionada pela industrialização e pelaexpansão da cafeicultura no Oeste Paulista,passa a crescer como se tivesse acordado deum sono profundo.9

A ocupação mais intensa da área, oparcelamento do solo através de loteamentose o conseqüente início do processo deurbanização da área, dão-se a partir de 1880,com a instalação de inúmeras fábricas, em razãoda disponibilidade de terrenos amplos, planos

e relativamente baratos e da presença das duasimportantes ferrovias citadas, principal meio detransporte, sobretudo em âmbito regional, daépoca.

O ponto chave para o entedimento daformação do bairro nascente é a industria-lização. Foi a instalação de inúmeras fábricas(dentre as quais grandes estabelecimentospara a época, como a Cia. Antarctica Paulista em1885, a Vidraria Santa Maria em 1896, aIndústrias Reunidas Francisco Matarazzo em 1920,entre outras) que levou à formação do bairro.Este abrigou, ao longo de sua história, variadostipos de indústrias, de diversos setores, porém,predominaram largamente as de bens deconsumo não duráveis, indústrias típicas daprimeira fase da industrialização na cidade deSão Paulo durante o período aproximado de1880 a 1930, ou seja, o do início do processode industrialização, o qual, cumpre notar, vemacompanhado nesta fase por um intensoprocesso de imigração, o que concorre tambémpara a ocupação do nascente bairro.10

Do final do século XIX até meados doséculo XX, a área vai industrializando-se eurbanizando-se, paralelamente ocorrendo aformação e o desenvolvimento do bairro e davida de bairro. A partir de meados do séculoXX, no entanto, a urbanização assume uma novadimensão, com a formação da metrópolepaulistana.

Assim, com o avanço da urbanização, coma formação da metrópole, a Água Branca é“reincorporada” à cidade, assumindo novasfunções, novas formas e conseqüentementenovas estruturas. A área é revalorizada emrelação à cidade, ocorrendo um processo dedesindustrialização e um paralelo avanço dosetor terciário, isso em razão de inúmerosfatores que vão desde os macroeconômicos atéàs transformações significativas no modo devida de seus habitantes, conforme veremos aseguir, processo esse pautado em larga medidana grande valorização imobiliária que vemocorrendo no local.

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III- O Movimento do Local – Água Branca: deLocalidade a porção imersa na metrópole

Antes de avançarmos na compreensãodas espacialidades da Água Branca é importantetecermos algumas considerações sobre adefinição de bairro que util izamos nestetrabalho. Um primeiro ponto que deve serlevado em conta no que concerne ao bairro, éque este só pode ser definido a partir da cidadeenquanto totalidade (LEFEBVRE, 1975). Ou seja,o bairro não existe enquanto uma unidadeisolada e autônoma. Trata-se, pois, de uma“unidade sociológica relativa”, que não pode sertida como a base ou essência da vida urbana.Ao contrário, a base da vida urbana paraLEFEBVRE (1975) é o centro. É a noção decentralidade que constrói, que torna possível acidade e seus bairros. Por isso, a centralidadeé a essência da cidade. Assim, o bairro só existediante da cidade, não podendo ser pensadodela desvinculado. Segundo SEABRA (mimeo),“a todos quantos vivam a qualquer distância docentro mas se reconheçam nele pertence acidade.”(p.2)

Por isso, o bairro não pode ser pensadode forma a-temporal, ou seja, ignorando ahistória da cidade, pois ele não tem um grau derealidade constante ao longo dela e suaexistência histórico-concreta depende daconjunção de vários aspectos da sociabilidadede um local ao longo de um dado período11 . Daíafirmar LEFEBVRE (1975), que o bairro não é aessência da vida urbana, sendo umaorganização espacial mais conjuntural do queestrutural. De acordo com SEABRA (2000: 11),“torna-se, portanto, necessário compreender qualé o estatuto do bairro na história urbana e porquetanto se evoca o bairro. Afinal, é preciso não deixarmargem às ontologias e nem às nostalgias.Impõe-se compreender a historicidade do bairro.”

Assim, os bairros terão graus de realidadediferentes para momentos diferentes de suahistória, de acordo com as suas singularidadesno interior de uma cidade. Lefebvre apontaalgumas características e idéias que podemorientar o estudo metódico dos bairros: a)existem bairros que podem ser definidos como“uma pura e simples sobrevivência (que) se

mantém por inércia” devido ao peso da história;b) os bairros também podem ser tidos como“uma unidade sociológica relativa, subordinada, quenão define a realidade social, mas que é necessária.Sem bairros, assim como sem ruas, pode haveraglomeração, tecido urbano, megalópoles. Mas nãohá cidade.” c) O bairro pode ter “uma existênciapela metade, simultaneamente para o habitante epara o sociólogo. Constituem-se relaçõesinterpessoais mais ou menos duradouras eprofundas. É o maior dos pequenos grupos sociaise o menor dos grandes.” Ao bairro, corresponde,pois, “um equipamento mais ou menos suficientee completo. Não só um monumento (igreja), masuma escola, uma agência dos correios, uma zonacomercial, etc. Um determinado bairro, destaforma, não é por si só auto-suficiente. O equipa-mento depende de grupos funcionais mais amplos,ativos à escala da cidade, da região, do país. Aestrutura do bairro depende estreitamente deoutras estruturas mais vastas: municipa-lidades,poder político, instituições.” Porém, é ao nível dobairro que “o espaço e o tempo dos habitantestomam forma e sentido no espaço urbano.”(LEFEBVRE, 1975:201-202)

Por outro lado, o bairro também pode serentendido como uma mediação entre o espaçoprivado (da casa, da família) e o público, entrea vida familiar e as relações societárias maisamplas. De tal forma que ele é o locus de umasociabilidade intermediária, baseada em largamedida no compartilhamento de referenciaisespaciais comuns, como o espaço do encontro,construído no nível da vida cotidiana.

Além disso, segundo Marcelo de SOUZA(1989), o bairro é definido, ao mesmo tempo,por uma existência concreta-objetiva e por umaexistência subjetiva-intersubjetiva. Ou seja, obairro é definido a partir de critérios objetivos,apurados objetivamente diante do espaçosensível e, simultaneamente, a partir de critériosque mergulham na intersubjetividade do gruposocial que nele vive e o aceita enquanto bairro.Estas duas dimensões interpenetram-se,condicionam-se, não se separam e definem obairro ao longo do processo histórico. Assim,segundo SOUZA (1989), “a rigor, a realidade socialcomo um todo estabelece-se como uma dialética

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entre o objetivo e o subjetivo. No entanto, o bairropertence àquela categoria de ‘pedaços da realidadesocial’ que possuem uma identidade mais oumenos inconfundível para todo um coletivo; obairro possui uma identidade intersubjetivamenteaceita pelos seus moradores e pelos moradoresdos outros bairros da cidade, ainda que comvariações. (...) A atribuição de um significado aobairro, a formação de uma imagem mental forte,a construção da identidade do bairro na mente doindivíduo, a própria bairrofilia, dependem dediversas circunstâncias”, as quais estãocompreendidas nos meandros que percorrem osdiversos aspectos da relação dialética objetivo-subjetivo (p. 149). Sem esta interaçãomutuamente determinada (objetivo-subjetivo),os bairros ou são coisificados, pela objetividadeextrema, ou, por outro lado, fantasmagorizados,através da subjetividade extrema.

SOUZA (1989) esclarece ainda que “aspessoas inconsciente ou conscientemente sempre‘demarcam’ seus bairros, a partir de marcosreferenciais que elas, e certamente outras antesdelas, produzindo uma herança simbólica quepassa de geração a geração, identificam comosendo interiores ou exteriores a um dado bairro.Os limites do bairro podem ser imprecisos, podemvariar um pouco de pessoa para pessoa. Mas seessa variação for muito grande, dificilmente estar-se-á perante um bairro, porque dificilmente haveráum suporte para uma identidade razoavelmentecompartilhada, ou um legado simbólicosuficientemente expressivo. Para existir um bairro,ainda que na sua mínima condição de referencialgeográfico, é necessário haver um considerávelespaço de manobra para a intersubjetividade, parauma ampla interseção de subjetividadesindividuais.” (p. 150)

Este breve entendimento sobre o bairrofoi nosso ponto de partida para a busca dacompreensão da realidade do bairro nalocalidade designada Água Branca. Nessesentido, o bairro deve ser entendido como umaespacialidade que tem sua existênciadeterminada pela relação dos processoshistóricos mais amplos com os processos sociaisque ocorrem na escala local e portanto tem umaexistência datada, ainda que resíduos dessa

existência, conforme discutiremos a seguir,permaneçam.

No entanto, se o bairro e a vida de bairrotêm uma existência que é datada, isso querdizer que existiram outras espacialidades queo precedem e outras que são posteriores à suadesestruturação. Quais são estas outrasespacialidades? O que nos levou a constatar areal existência do bairro? Como ocorreu agênese do bairro e o que explica a suadissolução?

Tendo-se em mente a breve reconstituiçãohistórica feita anteriormente, podemos concluirque este espaço, denominado de Água Branca,surgiu, num primeiro momento enquanto umalocalidade, o que, nos limites deste estudo,significa, um espaço rural, amplo, no qual ospoucos moradores estavam dispersos emfazendas, sítios e chácaras. O tempo era lento,o ritmo era mais ditado pela natureza, pelachuva, pelo sol. A despeito de provavelmenteserem menos freqüentes, devido as distânciasque separavam as famílias, as relações erampossivelmente mais pessoais (primárias). Alémdisso, tratava-se de uma localidade importante,na medida em que por ela passava uma dasprincipais estradas que demandavam o interiorda Província. Era, pois, um local de movimento,de passagem, de um último descanso antes dese chegar no centro da Capital da Província edali seguir para o porto de Santos ou para aCapital do Império.

Não se trata de um espaço bucólico,calmo, livre de conflitos, mas de um espaçopermeado de um tempo lento, que marca umaforma datada e específica de espacialidade: ada localidade.

Num segundo momento, a industrializaçãoe a urbanização por ela induzida marcam umanova passagem, que não é linear e tampoucoisenta de novos conflitos e contradições. É otempo da formação e da estruturação do bairro.Um bairro específico, que nasce com aindustrialização, mas que permite umadeterminada sociabil idade que podemosentender como associada ao sentimento devizinhança, determinando uma outra forma

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predominante de espacialidade: a do bairro.

O tempo, já não é mais o tempo lento dalocalidade, embora, persistam resquícios destetempo lento de outrora. O tempo agora, é otempo do apito das fábricas, do turno detrabalho ininterrupto, do homem que bate deporta em porta por volta da meia-noite parachamar, em suas casas, para o trabalho nafábrica, os operários que entram no turno quecomeça a uma hora da madrugada.12 É o temporápido dos bondes lotados, do trabalho árduoe sem perspectivas, da corrida diária pelasobrevivência.

Terceiro momento: a desindustrialização,acompanhada pela intensa valorização dosterrenos da Água Branca e, sobretudo, aexpansão da metrópole com a intensificação daurbanização, marcam um novo tempo e tambémuma nova espacialidade: a da porção imersa nametrópole. O bairro e a vida de bairro sucumbemdiante da explosão-implosão da cidade e a partirdo novo modo de vida e da nova sociabilidadeengendrada pela intensa urbanização (LEFEVRE,1991). Neste momento, “a vizinhança se esfuma,o bairro se esboroa; as pessoas (os ‘habitantes’)se deslocam num espaço que tende para a isotopiageométrica, cheia de ordens e de signos, e ondeas diferenças qualitativas dos lugares e instantesnão têm mais importância.” (LEFEBVRE, 1991:76-77). É o tempo de acentuação das relaçõesimpessoais, mediadas pela mercadoria, triunfodo capitalismo em sua fase monopolistaavançada, do consumo em massa em templosfechados: os shopping centers. Sem dúvida queneste novo momento os conflitos nãodesaparecem e, como tentaremos mostrar aolongo deste item, mostram que as contradiçõesdo espaço são produzidas e reproduzidasconstantemente pelo capital. GOTTDIENER(1997), em sua tentativa de propor uma teoriapara a explicação da produção social do espaçourbano, entre outros pontos, também chega amesma conclusão ao afirmar que “a ação doespaço abstrato fragmenta todos os grupossociais, e não apenas o menos poderoso, de talforma que a vida da comunidade local perde a ruae áreas públicas de comunhão em favor daprivacidade do lar. Os vizinhos se tornam cada vez

mais estranhos devido à falta de experiênciascomuns, apesar da aparência superficial decivilidade entre eles, à medida que a rede pessoalde transportes substitui a comunidade localizadado passado com suas relações sociais outroradensas. As novas áreas de comunhão sãoenclausuradas dentro de mundos sociaisengendrados pela lógica do consumo – os shoppingcenters, bares de solteiros, parques de diversão equintais suburbanos.”(p.271-272)

O bairro e a vida de bairro que estesuporta não resistem ao avanço da urbanização,a partir do momento que este processo passaa configurar esta imensa aglomeração urbana,a metrópole. Segundo LEFEBVRE (1991), acidade explode, ou seja, a sociedade urbana segeneraliza, entra em todos os lugares e tendea se tornar universal. E ao mesmo tempo, elaimplode, é destruída, restando apenasfragmentos dispersos. A cidade que se expandena explosão não é a cidade obra, apropriadapelos seus cidadãos, mas a cidade produto, acidade do capital, aquela em que os valores detroca predominam sobre os valores de uso, umacidade fragmentada, recortada, reconstruídasobre si mesma constantemente para maximizara reprodução do capital. Ao comentar a obra deLefebvre, KOFMAN & LEBAS (1996), sintetizamque suas análises sobre este tema, “giram emtorno da profunda contradição da desestruturaçãoda cidade e da intensificação e extensão dourbano.” (p.18)

Diante disso, quando falamos da ÁguaBranca enquanto porção imersa na metrópolecomo uma nova espacialidade, isto significa, alémdo mais, que tal espacialidade, ao contrário dobairro, não é mais individualizada com facilidadediante do todo (metrópole). A porção imersa nãose comporta como um todo no todo, como obairro. Trata-se simplesmente de uma fração,uma porção do todo, e uma fração que é com-posta de fragmentos. Claro que uma porção comcaracterísticas próprias, diferentes das outrasporções que também compõem o todo metropoli-tano. O antigo bairro foi destruído, inclusivefisicamente, foi recortado por viadutos, grandesavenidas, muros, enfim, obras que a confi-guração da grande metrópole demandava. O

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bairro foi assim recortado, fragmentado pelasobras demandadas pela metrópole e deixou deexistir, pois perdeu sua vida.

Um outro nível de entendimento destapassagem do bairro a porção imersa na metrópolenos leva a pensar que houve uma centralizaçãodo antigo bairro. Ou seja, com o avanço daurbanização e a conseqüente configuração dametrópole, o centro “tradicional” se amplia, aomesmo tempo que novos centros sãoproduzidos. Como sabemos, o bairro só existediante da cidade. Para haver bairros énecessário que haja um centro. Assim, ametrópole é policêntrica e, no caso da ÁguaBranca, ao mesmo tempo em que o local deixade ser um bairro, ele passa a ser parte docentro. Portanto, nesse caso, a porção imersa écentro, comportando-se sócio-espacialmentecomo tal.

No entanto, essas espacialidadesdatadas estão sobrepostas. Uma não significao fim da outra. Ou seja, tanto a localidade quantoo bairro ainda permanecem como resíduos detempos passados na porção imersa na metrópole.Em suma, o movimento do local13 apurado aquirevelou três espacialidades (pelo menos trêsmomentos do movimento da história): a dalocalidade, a do bairro e a da porção imersa nametrópole.

No que concerne ao questionamentosobre a existência do bairro na Água Branca,pode-se concluir que este local vive o conflito ea contradição de ter sido um bairro, cuja gênesese encontra no final do século XIX, no sentidode ter tido vida de bairro, e estar atualmenteimerso na metrópole, configurando-se como umaporção desta metrópole, não somente comoporção física, mas sobretudo por causa dassignificativas mudanças no seu modo de vida,marcado cada vez mais pelo individualismo, pelaimpessoalidade e pela diminuição das relaçõesface a face, etc.

O que possibilitou aqui este entendimentodas espacialidades diversas e sobrepostas foio método regressivo-progressivo14 , proposto porHenri Lefebvre, e no qual procuramos nosapoiar. Em breves palavras, SEABRA (mimeo)

resume o preceito que está por trás destemétodo: “o que existiu sempre existe, ainda queseja nos seus fragmentos.” (p.4)

Tal método supõe os seguintesmomentos: primeiro faz-se uma descriçãohorizontal da realidade presente, observando,ouvindo, levantando elementos, descrevendo,sem nos preocuparmos ainda com a análise dasdiversas temporalidades existentes esobrepostas.

Num segundo momento, com os olhos dopresente, voltamos ao passado paracompreendê-lo, desvendá-lo, elucidá-lo. Trata-se do momento analítico-regressivo, que partedo preceito formulado inicialmente por Marx, deque “o atual permite compreender o passado e asociedade capitalista as sociedades anteriores,porque desenvolve as categorias essenciaisdessa”(LEFEBVRE, 1975:17)15 . É neste momentoanalítico que procuramos compreender asdiversas temporalidades da história quecontinuam presentes no atual, mas que datamde outros tempos. Trata-se, pois, de ummergulho vertical na realidade social. “O que noprimeiro momento parecia simultâneo econtemporâneo é descoberto agora comoremanescente de época específica”(MARTINS,1996:17).

O terceiro momento é o histórico-genético,“no curso do qual o proceder do pensamento voltaaté o atual, a partir do passado já decifrado,apreendido em si mesmo.”(LEFEBVRE, 1975:17)Daí, a partir deste reencontro com o presentejá elucidado pelo realizado, pode-se entendero possível, o virtual (futuro). “Tendências evirtualidades são sempre plurais, e o que éimpossível hoje pode tornar-se possível no futuroe vice-versa.” (KOFMAN & LEBAS, 1996:9)

Este método permite, como se vê, umaampla compreensão da realidade vista em suacomplexidade, não a partir de uma história dasimples sucessão linear de fatos. O tempo nãoé definido somente por linearidades, mastambém por seus desencontros e desconti-nuidades. Além disso, segundo LEFEBVRE (1997)esse método deixa lugar para estudos locais(como o aqui realizado), em diversas escalas,inserindo-os na análise geral, na teoria geral.

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Atualmente vivemos, segundo HenriLefebvre, numa sociedade que tende para aurbanização completa, da qual ainda nãoconseguimos compreender bem a lógica e ascontradições concretas, porque um “campo cego”se define, ou seja, olhamos para o urbano comos olhos e a perspectiva da sociedade industrial(sua antecessora). Assim, olhamos e nãoenxergamos o que está diante dos olhos narealidade sensível em sua turva transparência.(LEFEBVRE, 1999b) Daí, também, a dificuldadede entender o processo de desestruturação dosbairros, que nas condições atuais daurbanização transformam-se no que aquidenominamos de porção imersa na metrópole.

Agora, discutidos ainda que brevementeo método e a teoria que dão sustentação a estapesquisa, é possível afirmarmos que é a porçãoimersa na metrópole que revela o bairro e as suascaracterísticas, assim como a porção imersa e obairro revelam a localidade rural. Como dissemosna Introdução, devemos partir sempre dopresente. A regressão sempre parte dopresente, em enorme complexidade.

Tais espacialidades (localidade, bairro eporção imersa) comportam-se, em realidade,como camadas superpostas, interpenetradas e,eventualmente, absorvidas umas nas outras.Essas espacialidades podem ser compreendidasa partir da teoria do espaço diferencial, segundoa qual “as diferenças que emergem e seinstauram no espaço não provém do espaçoenquanto tal, mas do que nele se instala, reunido,confrontado pela/na realidade urbana. Contrastes,oposições, superposições e justaposiçõessubstituem os distanciamentos, as distânciasespaço-temporais” (LEFEBVRE, 1999b:117).

Além disso, cumpre esclarecer que essasespacialidades diversas da Água Branca estãovinculadas a um movimento mais amplo (quese dá em escala planetária, não ao mesmotempo e no mesmo ritmo em todos os lugares),decifrado por Lefebvre, que vai do rural aourbano, passando pelo industrial. “Nessepercurso, (há uma) complexificação da sociedade,quando ela passa do rural ao industrial e doindustrial ao urbano” (LEFEBVRE 1999b:153). Oespaço e a sociedade têm esse movimento, que

não se dá de forma linear, mas com passagenscríticas (zonas ou pontos críticos), repletos deconflitos e contradições, além do que, valeinsistir, tais passagens não se dão de formaabsoluta, na medida em que a sociedade urbanasempre vai trazer consigo resíduos das erasindustrial e agrária. “A cidade, sua explosão, asociedade urbana e ‘o urbano’ em emergência,superpõem suas contradições às da era industriale da era agrária” (LEFEBVRE, 1975:12).

Pois bem, tendo-se em conta a definiçãode bairro e a teoria exposta neste item, bemcomo a reconstituição histórica da Água Branca,propomo-nos agora, retomar algumas questõescentrais expostas neste artigo, a partir do planopropriamente empírico, restabelecendo adiscussão em outro patamar, ensaiando ummergulho no cotidiano. Isso porque é aperspectiva do cotidiano que irá fundamentarcom mais clareza as descobertas deste trabalho.

IV- O Cotidiano como Base da Compreensãodas Espacialidades

O cotidiano implica, ao mesmo tempo, norepetitivo e no criativo, na alienação e nadesalienação, nas manutenções e nas possíveistransformações. Ambigüidades apenas apa-rentes, já que estamos debruçados nummovimento dialético que revela a todo instanteunidades de contrários. É, pois, na vida cotidianaque estão as possibilidades de apropriação dotempo e do espaço pelo cidadão. Simultanea-mente o lugar da pobreza e da miséria, a coti-dianeidade revela a criatividade e a renovaçãoincessante do homem. (LEFEBVRE, 1975)

Por isso, neste estudo, a dimensão dovivido tem importância fundamental para asconclusões a que chegamos no que diz respeitoao movimento das espacialidades da ÁguaBranca, isso porque os espaços assumemdiferentes significados e são diversamenteutil izados pelos moradores/usuários emdiferentes momentos históricos.

Daí a importância das entrevistas. Aliásforam os relatos de alguns moradores antigosda Água Branca que ajudaram de formapreponderante para a conclusão de que aquele

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espaço foi durante um determinado períodoefetivamente um bairro, do qual, hoje, somentesobraram resíduos. Foram estes depoimentostambém que nos ajudaram a compreender adissolução do bairro e da vida de bairro eentender, portanto, a configuração da metrópolea partir das transformações nas relações sociaisdaqueles moradores que viram a passagem daÁgua Branca de bairro a porção imersa nametrópole.16

Assim, a diversidade, o caos aparente, asmúltiplas formas, funções e estruturas que oespaço urbano nos apresenta diante dos olhosnão podem ser entendidas somente comoresultado de fatores naturais como o revela, ahidrografia, o solo, etc., ou infra-estruturaiscomo os equipamentos urbanos, as vias decirculação e seus traçados, enfim por aquilo quepodemos chamar de espaço físico, sejaproduzido social ou naturalmente. Na verdade,tal diversidade é, sobretudo, resultado dasvárias formas de utilização desse espaço, bemcomo dos significados a ele atribuídos pelosmoradores/usuários.

Também em José de Souza MARTINS(2000) encontramos sustentação para aabordagem aqui perseguida. Lembra este autorque “a explicação do todo concreto é incompleta epobre se não passa pela mediação do insignificante.(...) O relevante está também no ínfimo. É na vidacotidiana que a História se desvenda ou se oculta.”(p.13) Além disso, “é no âmbito local que a Históriaé vivida e é onde, pois, tem sentido para o sujeitoda história.(...) A História não será corretamentedecifrada pelos pesquisadores se não estiverreferida a esse âmbito particular que é o do sujeitoe o da história local, isto é, ao modo de viver aHistória” (p.132-133)

Por isso, por mais cabível que seja a críticaao fato de que a memória dos entrevistadosmais oculta do que revela, na medida em que“revela omitindo e deformando”, é por meio delaque os sujeitos excluídos têm a oportunidade“de fazer História. (...) Por meio da memória (idéiase lembranças) dão ao pequeno fato a dimensãodo acontecimento.” (MARTINS, 1992:19) Econforme lembra BOSI (1979), na verdade,

durante o processo de relato da memória,“sempre fica o que significa.” (p.27)

Enfim, de acordo com MARTINS (2000) énecessário dar voz ao silêncio, dando, assim,vida à História. Ou, talvez seria melhor darouvido às “vozes do silêncio”, que a nosso ver,são as que mais falam, porém são as menosouvidas.

Antes deste pretendido mergulho nocotidiano, vejamos, brevemente, quais sãoexatamente os elementos que justificam aafirmação do movimento do local quepropusemos anteriormente (localidade, bairro eporção imersa na metrópole), trazendo maisadiante trechos dos relatos dos moradorescomo importantes fontes.

Segundo SIMMEL (1967), a vidametropolitana nos remete à idéia de um espaçodo indivíduo, do solitário imerso na multidão,tornando-se as antigas relações face a face maisresiduais (não que tais relações de proximidadedeixem de existir, mas não são maispredominantes). O que se impõe cada vez maisé a impessoalidade. Assim, hoje é possível fazeras compras do supermercado sem sair de casa,sem ter que ir à rua, este local inóspito, violento,feio e perigoso. Parece que o modo de vidametropolitano acentua de maneira brutal aoposição entre a rua e a casa, entre o público eo privado, entre o social e o individual.Oposições que marcam atualmente relações desociabil idade bem diversas, espacial etemporalmente bem delimitadas.

A esse respeito SEABRA (mimeo)esclarece: “A urbanização contemporâneaentendida como processo de transformaçãoqualitativa no modo de viver segue continuamentee coloca no horizonte a possibilidade de umasociedade urbana. Nessa sociedade estariamprofundamente alterados os modos de vida emrelação a situações precedentes, pois, o sentidoda urbanização tem conduzido ao domínio daimpessoalidade implicando na alteração de todosos vínculos, na sujeição do tempo, do espaço, docorpo, aos ritmos e sentidos prescritos pela lógicado mercado. Tudo se compra, tudo se vende.”

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Aqui entramos numa questão queconsideramos de suma importância, a partirdesta idéia das mudanças nos modos de vida,na medida em que não há dúvida de que acidade de São Paulo, por exemplo, teve seumodo de vida profundamente alterado desde ofinal do século XIX (quando era uma cidadepequena) até os dias atuais (uma metrópolemundial).

Em primeiro lugar, para tentarmoscompreender esta idéia, vejamos o que Simmelescreveu. Este autor, partindo da clássicaoposição entre comunidade e sociedadeformulada por Tönnies, caracteriza o modo devida metropolitano e o sujeito metropolitanocomo alguém calculista, individualista, guiadopor convenções e relações secundárias eimpessoais. Em contrapartida, nas relaçõescomunitárias, que são primárias, prevalece oconsenso e há um rígido controle social. Estasse aproximariam do que Simmel mostra comomais marcantes dos pequenos grupos, onde ossujeitos têm um relacionamento emocional maisprofundo, menos calculista, as pessoas seconhecem, são mais solidárias, compartilham deforma mais aguda o bem comum, há vínculos devizinhança, enfim, tipo de relação possível numapequena cidade, mas residual nas grandesmetrópoles.

Pode-se dizer que Simmel utilizando-se daoposição entre relações comunitárias esocietárias de Tönnies, formulou por aproxi-mação a oposição entre os modos de vida naspequenas cidades e nas grandes metrópoles.Como veremos, há também uma mudançasignificativa nos tipos de relações que sedesenvolvem no bairro antes do processo deurbanização configurar a metrópole e o quechamamos de porção imersa na metrópole. Ouseja, no bairro, entendido como parte da cidadede São Paulo antes da consolidação dametrópole, encontramos, com mais facilidade,com mais predominância, relações sociais maispróximas das comunitárias e na porção imersa,ao contrário, as relações comunitárias são muitomais residuais. É claro que não estamosafirmando que o bairro é uma comunidade, no

bairro desenvolvem-se, é claro, relaçõessocietárias. A propósito, lembramos aqui, maisuma vez, a crítica à ideologia comunitária dobairro apontada por LEFEBVRE (1975), a qualprocura separar o bairro da cidade, da suatotalidade e por extrapolação tem apenassentido de idealismo político.

Também em MARTINS (1973) buscamosapoio para pensar a comunidade. Segundo esteautor “as objetivações do capitalismo, queaparecem sob o conceito de sociedade, nãoenvolvem a totalidade das ações humanas nemdefinem todos os aspectos da vida coletiva.”(MARTINS, 1973:28) Esclarece, ainda, que anoção de comunidade pode ser util izadabasicamente de três formas que podem serelacionar. Na primeira, enquanto um conceitosociológico que contrasta com o de sociedade eque traz as características apontadas anterior-mente. Na segunda, enquanto uma forma socialutópica, que não tem uma contrapartida real,mas que é supostamente captada pelo teórico,portanto, nesse sentido a comunidade só existeenquanto uma utopia. Por fim, a noção decomunidade pode ser vista enquanto ummétodo, uma forma de investigação que levaem conta esta perspectiva utópica.

Assim, é importante insistir que “éenquanto utopia que a comunidade estipula umamaneira de conhecimento da realidade e decontraposição ao presente. A utopia comunitáriaconstitui uma perspectiva de avaliação da sociedadee das relações do grupo que a vivencia com asociedade. A utopia ‘explica’ o todo, as relações eos seus resultados. A comunidade como unidadede investigação é, pois, constituída por essaperspectiva utópica.” (MARTINS, 1973:36) Ésomente nestas condições, pensando nacomunidade como uma utopia, que podemosutilizar os conceitos de comunidade e sociedadee fazer aqui a aproximação que propusemosanteriormente.

Além disso, tais oposições entrediferentes modos predominantes de vida nãopodem ser consideradas como uma evoluçãolinear. Na grande metrópole há elementoscomunitários, assim como há, na atualidade,

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elementos do modo de vida metropolitano tantonas pequenas cidades, quanto nascomunidades agropastoris, isso porque há umacoexistência das diversas formas desociabilidade de maneira sobreposta; o queMARTINS (1992) chama de diversastemporalidades que são datadas, porém,contemporâneas e que aqui estamos chamandode espacialidades coexistentes. Magnanitambém ressalta, no que diz respeito àsrelações “societárias” e “comunitárias”, a suacoexistência, notando que não existem espaçoscomunitários de um lado e societários de outro;na verdade, todos os espaços estão imbricadospelos dois tipos de relações. “Trata-se de doispadrões, dois tipos ideais de interação social:sociedade implica relações secundárias, vínculosimpessoais, visão racional, atitudes utilitaristas,enquanto comunidade evoca relações face a face,sentimento de solidariedade, obediência à tradição,rígido controle social etc. Relações ‘societárias’ e‘comunitárias’ não constituem característicasexclusivas de uma forma determinada deorganização social: coexistem, imbricam-se.”(MAGNANI, 2000:47)

Em suma, diante do caso aqui abordado,como vimos, há resíduos da localidade tanto nobairro quanto na porção imersa, assim como háresíduos também do bairro na porção imersa. Talsobreposição de diversas espacialidades torna-se um princípio explicativo fundamental dasrelações sócio-espaciais na Água Branca aolongo da história e torna possível também oentendimento mais amplo da complexidade darealidade presente.

Vejamos, pois, o que as entrevistasmostraram sobre a constituição aí de uma vidade bairro antes da consolidação da metrópole.

As palavras da Sra. Shirley Grané de Luca,nascida em 1936, cujo pai foi operário da VidrariaSanta Marina, ao referir-se à sua infância(quando morava na Praça dos Inconfidentes,numa casa que não existe mais, bem no inícioda rua Guaicurus e da avenida Santa Marina)mostra estas mudanças:

“Era uma delícia. Era assim, aquelesvizinhos que nós fazíamos festa na rua, era

um..., assim um ambiente divino. Então eraassim, por exemplo, festa junina cercava-se a rua, pra fazer a festa junina na rua,cada um levava um prato, dançava-se narua, vinha conjunto, era uma delícia, erauma coisa assim que unia. Todo mundo seconhecia, todo mundo ajudava uns aosoutros. Era assim, a mamãe, por exemplo,ia ajudar uma vizinha que era, passavaroupa pra fora, engomadeira, que falavamantigamente, e eu e o meu irmão íamospra escola, íamos no Grupo Escolar. Quandoa gente voltava do Grupo Escolar, ela àsvezes não tinha terminado o trabalho,apesar de ser em casa pegada, a vizinha dolado nos dava almoço, e isso era umaconstante entre a gente. Era um pessoalmuito ligado, muito... (...) Aqui o bairro eraassim; pelo menos onde eu morava eraassim: se um pai ficava desempregado, ooutro se matava pra arrumar um empregopra ele. Coisa que ultimamente não existe.Não existe mais essa afinidade, mas a gentequando morava era uma maravilha. Aamizade era... excepcional.” (Shirley Granéde Luca, em 23/03/2000)

Outra entrevistada, Sra. Neusa MariaIsola D’allevo, cujo pai era um dos proprietáriosda Serraria Água Branca, nascida em 1938, narua Guaicurus, onde morou até os dezoito anose que atualmente mora na rua Padre AntônioTomás, rua atrás da S.E. Palmeiras e próximodo Shopping Center West Plaza (ver mapa I),faz o seguinte comentário sobre a sua infância:

“A infância foi maravilhosa, porqueera tudo tão diferente. (...) A gente sentavano portão, era aquela coisa deliciosa, vocêtinha a liberdade de sair na rua, de brincar,de pular corda... O meu neto não sabe oque é brincar numa rua. Ele foi assaltadohá pouco tempo aqui nessa esquina (da ruaPadre Antônio Tomás e rua Embaixador LeãoVeloso). Ele foi até o jornaleiro, aí nãodeixaram ele sem roupa porque... Mas veiosem sapato, sem meia, sem blusa... Nãodá mais pra deixar. Naquele tempo não, agente sentava na calçada, cada um levava

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a sua cadeira... As crianças brincando, osadultos batendo papo... Piqueniques eratoda semana. (...) E na rua Guaicurus, noCine São Carlos17 , você ia pular carnaval,você conhecia todo mundo no salão, sabe?(...) Então todo mundo se conhecia. Hojeem dia eu não conheço mais ninguém.”(Neusa Maria Isola D’allevo, em 06/04/2000)

Lembranças semelhantes também sãoapontadas pela Sra. Shirley Bonini Paladino, filhade operários, que morou na rua Guaicurus e naRua Duílio e que mudou-se no final da décadade 1960 para a Rua Barão de Tefé, (ver mapa I)para um dos primeiros prédios da região, naesquina com a avenida Antarctica.:

“Imagina que tinha até um homemque passava com as cabras. Toda manhãele passava com as cabras pra vender o leite.Então ele tirava o leite da cabra na porta dagente, né? Hoje em dia você não vai vernunca isso, né?” (Shirley Bonini Paladino,em 03/05/2000)

Outro entrevistado, o Sr. Joaquim Guedes,nascido em 1905 na região do atual MorroGrande, onde trabalhava em plantações decana-de-açúcar e na produção de aguardentee que reside na Água Branca desde 1931,considerava o bairro como uma família18:

“Então nisso que nós vamos entraragora com a Lapa. Trabalhei quatorze anose meio na Polícia, como guarda civil. (...)Sabe que a Lapa é o lugar que tem menosocorrências de crimes, de roubos, de tudo.Era uma família. Que honra seja feita à essepovo! (...) Essa família Lapa, é de paz, nãoé?” (Joaquim Guedes, em 12/07/2000).

Como pode-se notar, a solidariedade, ocompadrio e o sentimento de vizinhança afloramde forma constante nas falas. Era importanteser um bom vizinho e estar bem relacionado comos outros. As oportunidades de participação ede convívio que alimentam a vida de bairro eramgrandes, a rua era apropriada como local dasfestas, brincadeiras, encontros, conversas, etc.

Assim como constatou SEABRA (2000) aoestudar os bairros além-Tietê, também na ÁguaBranca houve um incremento da sociabilidadeda vida de bairro com o aparecimento do“futebol de várzea” e do cinema.

Nesse sentido, as falas dos entrevistadostambém estão permeadas de referências àssuas idas ao cinema e, muitas vezes, estaseram feitas em grandes grupos. Conhecia-se osdonos dos cinemas e tais cinemas eram umareferência do bairro.

O cinema na cidade de São Paulo surge,ao que parece, de maneira dispersa por suaárea. Mais tarde, é que eles deixam de estarnos “bairros”, concentrando-se na área centralda cidade e em shopping centers. Atualmente,são poucos os cinemas que existem dispersospela cidade em antigos bairros e podem serconsiderados como resquícios.

O cinema da Água Branca era o Cine SãoCarlos, antigo Cine Santa Marina, montadoinicialmente pela Vidraria Santa Marina e situava-se na rua Guaicurus.

Quanto ao futebol, inúmeros timesexistiram na localidade, tanto na várzea, quantoum pouco acima das linhas férreas naproximidades das ruas Guaicurus e Clélia. Oscampos, que ficavam na grande várzeadesocupada do Tietê, eram utilizados pordiversos times que surgiam em grandequantidade. A maior parte deles teve duraçãocurta, e apenas três destes times, surgidos nofinal do século XIX e durante a primeira metadedo século XX, continuam a existir; dois delestiveram sua origem vinculada a uma empresa.Um deles é o Santa Marina Futebol Clube, formadopor funcionários da Vidraria Santa Marina e ooutro é o Nacional Atlético Clube, antigo São PauloRailway Athletic Club, formado em 1895 porfuncionários desta ferrovia. O terceiro é oPalestra Itália, atual Palmeiras, que não sócontinua existindo, como trasformou-serapidamente num dos maiores clubes de futeboldo país. Trata-se portanto de um caso bemespecífico, tanto por sua origem, vinculada àimigração italiana, quanto por sua trajetória.19

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Outros times que existiram e quepermaneceram na lembrança de algunsentrevistados foram o Lapeano Futebol Clube(lembrado com muito carinho como “OLapeaninho” pela Sra. Edith Fragoso) e o JacaréFutebol Clube, tendo sua origem ligada àempresa petrolífera de distribuição Standard Oil(Esso).20 BARCELOS (1983) ainda faz menção,além destes quatro times que poderiam serconsiderados os principais, ao Flor da ÁguaBranca F.C., ao Água Branquinha F.C., aoCorinthians Pompeano, ao Rugerone F.C. e aoEstrella da Água Branca Foot-ball Club.

Importante notar que o “futebol devárzea” tinha um duplo papel para ofortalecimento da vida de bairro, tanto porpromover a sociabilidade, quanto por acentuara identidade do bairro. Todos sabiam de ondeeram os times, já que eram espacializados,tinham um lugar de origem e tanto os seusjogadores quanto os seus torcedores eram, emgrande medida, do mesmo lugar.

Portanto, tanto o futebol, quanto ocinema, a rua, as festas, a solidariedade entreos vizinhos, etc., contribuíam no sentido depromover a vida de bairro. Segundo conclusãode BOSI (1979), “São Paulo era familiar como apalma da mão quando as suas dimensões eramhumanas. Seus velhos habitantes dizem: ‘ali noGasômetro, ali na ponte do Bom Retiro, ali naEstação’, como se estivessem vendo taislogradouros, ali adiante... É com satisfação quedizem de muitos desses locais que ‘ainda estãolá’.” (p.367)

Além disso, alguns dos entrevistados,trouxeram uma questão interessante: a daconvivência de diversas classes sociais, nointerior do bairro, dividindo os mesmosequipamentos, ainda que, dentro deste micro-espaço social, houvesse uma clara hierar-quização, ainda que não absoluta, de algunsespaços, havendo, pois, uma clara segregaçãosócio-espacial.

Pensando-se na porção ocidental dobairro, a oeste da avenida Pompéia, onde têminício as ruas Carlos Vicari-Guaicurus e Clélia, eonde localiza-se, mais ao norte, a estação ÁguaBranca da estrada de ferro e a Vidraria Santa

Marina, enfim, na porção mais antiga do bairro,nota-se que havia uma hierarquização que erainclusive topograficamente marcada (ver mapaI).

O lado norte das ferrovias, onde está aestação da estrada de ferro e a Vidraria SantaMarina, ou seja, das estradas de ferro emdireção ao rio Tietê, a parte mais baixa do bairro(planícies aluviais sujeitas a inundaçõesperiódicas), era considerado a parte mais pobre,onde havia uma grande concentração defábricas e operários. O outro setor, aindaconsiderado dos pobres, mas com umaconcentração, ao que parece, um pouco menorde operários, ficava da linha da estrada de ferropara o sul, até a rua Faustolo, numa pequenafaixa que tem como centro a rua Guaicurus. Estaárea é topograficamente um pouco mais alta,mas ainda considerada pelos moradores comoa parte baixa do bairro. Por fim, o setor dos“ricos”21 , a parte de cima do bairro, na faixaonde está a rua Clélia.

Na parte baixa, ou seja, a que inclui tantoas redondezas da Vidraria Santa Marina quantoa rua Guaicurus, nas imediações das ferrovias,as moradias eram, no geral, mais simples,havendo inclusive muitos cortiços. Além, é claro,das vilas de operários da Vidraria Santa Marina.Já na parte de cima, a saber, na rua Clélia,haviam casas maiores, com quintal, jardim nafrente, espaçamento entre uma casa e outra,enfim, eram imóveis considerados bemmelhores.

É importante deixar claro que tal divisão,inclusive a topográfica, não foi idealizada pormim, ela apareceu espontaneamente nasentrevistas e, como se verá a seguir, foielaborada pelos entrevistados, em especial pelaSra. Shirley Grané de Luca, que nasceu e morouaté os quatro anos na vila de operários daVidraria Santa Marina, depois morou na Praça dosInconfidentes, entre a rua Guaicurus e avenidaSanta Marina até casar-se, quando foi morar narua Clélia, ou seja, ela passou ao longo da vidapor todos os setores do bairro, do pobre ao rico,subindo tanto na escala social quantotopograficamente22 . Vejamos algumaspassagens de seu depoimento:

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“Mas era uma loucura. Não, era umaloucura a desigualdade. Dizem queatualmente você faz restrição a preto, a isso,a aquilo. Não. Naquela época a parte de baixoeram os pobres. A parte de baixo, era a partede pobre. Onde eu morava (rua Guaicurus),eram os pobres. Aqui, a rua Clélia, eram osricos.(...) Era a rua dos pobres e a rua dosricos. Então, até pra você tomar ônibus,você era esnobado. Era incrível, se você saíada parte de baixo, onde a gente morava,pra parte de cima, pra rua Clélia, pra pegaro ônibus, era impressionante como você eraesnobado. (...) Eu lembro que quando eucomecei a trabalhar na cidade, eu ia tomarônibus na rua Clélia, e elas ficavam comaquele grupinho, fazendo caçoada da gente.‘Ah, olha a roupa! Olha pra ela e vê se issoé jeito! Parece maloqueira’ Sabe aquelascoisas que você acaba...(...) Até na missa,era coisa de doido o que a gente aturava. Agente às vezes ajoelhava e já ouvia osbuchichos. Teve dias de eu levantar e falar:‘Vocês vieram à missa ou vieram prareparar?’ Porque, realmente, nós éramosum povo mais simples. E elas se achavamas donas do pedaço. (...) E você vê, depoisque eu casei, que eu fui pra Clélia, é que eucomecei a fazer amizade com essa turmamais nojenta, como eu diria, né? (risos)”(Entrevistador: Então tinha a parte debaixo dos pobres e a parte de cima dosricos... e aquela parte da Santa Marina,depois que passava a porteira dasestradas de ferro?) Era pior ainda. Piorainda. Lá era tido assim como favelado.Falava que morava na Santa Marina, eratido como a escória do bairro.” (ShirleyGrané de Luca, em 23/03/2000)

Dona Maria Lygia Suriano, que moravana rua Clélia, incluída na parte “rica” do bairro,ao ser questionada sobre a parte da SantaMarina, disse:

“Eu nem podia ir naqueles lados delá! (Entrevistador: Mas dava pra falar quehavia um lugar de ricos e outro de pobresou acabava misturando?) Dava. Era bem...

Era bem separado. Era bem delineado.”(Maria Lygia Suriano, em 23/03/2000)

Ainda no tocante ao lado norte dasferrovias, nas proximidades da Vidraria SantaMarina, a Sra. Neusa Maria Isola D’allevo, filhado proprietário, durante muitos anos, daSerraria Água Branca e proveniente de umafamília tida como “uma das mais ricas do bairro”(Família Isola), ao ser questionada se elaconhecia ou freqüentava aquela parterespondeu que:

“Não. O meu pai era um poucoesnobe viu. Pra falar a verdade... Ele eraum pouco esnobe. Ele não gostava que agente tivesse amizade, porque era umpessoal muito simples, sabe, operariado.(...) Ele tinha um certo preconceito. (...) Maslá na Santa Marina não era uma coisa bemvista.... ir pra lá. Também não sei te dizerpor que. Só lembro que era... Não era umacoisa legal. (...) Era assim bem, sabe, essacoisa de indústria mesmo? Não tinha carade bairro de moradia. Eram só casas deoperários, de gente simples. Era muito, eramuito simples ali.” (Neusa Maria IsolaD’allevo, em 06/04/2000)

Voltando ao “contraste” entre as ruasClélia e Guaicurus, a Sra. Shirley Grané de Lucacomplementa:

“Eu era pobre. Era. Nós éramosconsiderados a ralé. Lá embaixo era opessoal da ralé. Porque nós éramos gentemais de rua. Nossas brincadeiras eram derua, ninguém tinha uma casa grande,suficiente pra pôr alguém dentro de casa.Então nós brincávamos aonde? Na rua. Dequeimada, barra manteiga, saía briga.... Erabriga mesmo, era briga terrível, de pai terque separar... Mas, passava aqueles cincominutos, era todo mundo amigo. Agora agente fala que existe gangue, antigamenteera igual. Era a gangue daqui contra agangue de lá, né? Se a turma de lá(Guaicurus) vinha pra Clélia, era um inferno.E se a turma da Clélia tentasse descer, nãodescia. (Entrevistador: E todo mundo sabia

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diferenciar na hora, quem morava em quelugar?) Na hora. Na hora. Você sabiaexatamente de onde vinha. Até dentro daigreja existia essa diferença. É incrível comoexistia.” (No interior da igreja São João MariaBatista Vianey, algumas cadeiras tinham osnomes gravados das famílias maisimportantes e eram, pois, reservadas àelas.) (Shirley Grané De Luca, em 23/03/2000)

Por fim, a Sra. Neusa Maria Isola D’allevo,fala que as antigas casas de sua família na ruaGuaicurus contrastavam com a simplicidade e apobreza da rua:

“A nossa casa era considerada umpalacete. (...) As únicas casas boas quetinham ali eram as nossas. A nossa casanão era pra estar na Guaicurus. Era umacasa pra rua Clélia naquela época, vocêentende? Porque ela destoava ali. São casaslindas, né, na época que nós éramosmeninas ali. (...) Então era uma diferençamuito grande, a nossa casa. As nossascasas destoavam do lugar. Agora, subia umquarteirão mudava a coisa. Na Clélia, naCoriolano. A Faustolo nem tanto... Tinhaque subir dois quarteirões, né? (...) O tipode pessoas que moravam (na Guaicurus)já era muito mais simples, as casinhaspequenas, e existem até hoje lá na frente.(Entrevistador: Tinham muitos cortiços?)Tinha. Tinha. Bastante. Na Vidraria tinhamuito. Naquela rua Carijós, ali tinha muito.Perto da linha do trem tinha muito. Emfrente de casa, eu me lembro, tinha umafamília que morava num cortiço, né? Vocêfalou ‘cortiço’, era um nome que eu nemlembrava mais. A gente entrava num portãoe tinha um degrau alto, assim, cheio deportinhas... As pessoas moravam ali. Umaem cada cômodo. (...) Então não era umavizinhança agradável, sabe? Não por causadas pessoas, mas eu digo de lugar, comolugar. Não era agradável ali. (Entrevistador:E na Clélia não tinha essa...?) Não. Não.Não tinha. Que eu lembre não.” (NeusaMaria Isola D’allevo, em 06/04/2000)

Como se vê, esta questão dos “ricos”de um lado e dos “pobres” de outro, destaconvivência e desta segregação sócio-espacial,engendradas no cotidiano, era algo quepodemos afirmar como mais uma característicada vida dos bairros industriais/operários. É nobairro que tal cotidiano é produzido da formacomo foi relatado. Atualmente, não existe maisna Água Branca essa divisão tão nítida entre osda parte de cima e os da parte de baixo, mesmoporque, os muros imaginários do antigo bairroindustrial/operário foram derrubados pelaurbanização, pela implosão da cidade, e outrosmuros apareceram. Além disso, a dita parte decima, da rua Clélia, degradou-se muito, fazendocom que os “ricos” mudassem para os prédiospróximos da S. E. Palmeiras e do ShoppingCenter West Plaza ou para outros bairros,normalmente próximos, como Pompéia ouPerdizes.

Por outro lado, contrastando com o antigobairro, o novo modo de vida urbano próprio dametrópole também foi relatado pelosentrevistados, notando que é sempreressaltada a questão dos que vêm de fora, dosestranhos que vêm de longe e freqüentam olocal, como um espaço disponível e incorporadoà grande estrutura metropolitana, da qualatualmente a Água Branca é uma porção. A vidade bairro ou “o bairro como uma família” comodisse o Sr. Joaquim Guedes, já não é maispossível. A Sra. Neusa Maria Isola D’allevo teceuas seguintes considerações nesse sentido:

“São Paulo pra mim é o máximo. Comtudo que nós temos de ruim, não é? Aquimesmo, esse shopping (West Plaza) pioroumuito a nossa qualidade de vida aqui. Aquisó tem moleque malandro, nessas ruasaqui. Dizem que foi o shopping que trouxeisso, né? Não sei se foi o shopping ou se...(...) O movimento de carro também. Assim,em época de Natal, Páscoa, Dia das Mães,dos Pais, isso aqui fica horrível. Mas eu digo,em questão de segurança, tem muita genteque roda pelo bairro. Vem muita gente daperiferia pra conhecer o shopping. (...) Vemmuita gente, de sábado, você vê os ônibuspararem ali na Francisco Matarazzo, desce

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aquela multidão... É pro shopping. De todosos bairros. Como acontece no ShoppingNorte. Os outros eu não conheço. Oshopping Norte é um movimento terrível.Aqui de sábado também é.” (Neusa MariaIsola D’allevo, em 06/04/2000)

Dona Mirela Suriano, também apontapara o intenso movimento de rostos estranhos:

“Então você ia pra esquina, vocêsabia que tinha uma segurança, que vocêconhecia o dono do bar, você conhecia osdiretores do clube (Palmeiras), vocêconhecia todos, sabe? Então você estavanum lugar seguro... à vontade. Agora não.(...) Aliás teve muitos assaltos depois queconstruíram... Eu tenho a impressão quedepois que fizeram esse viaduto (referindo-se ao viaduto Antarctica sobre as linhasférreas, inaugurado no início da década de1970) e o West Plaza (inaugurado em1991), a favela que tinha do outro lado,sabe, eles tiveram mais acesso pra cá.Tiveram muito acesso pra cá. Então o queacontece: a molecada fica pedindo dinheiro,tomando conta de carro, dentro do shopping,vieram todos da favela. Então, isso aqui, oambiente deu uma piorada. Você olha ascaras muito tortas e você tem muito medoe muito receio de andar por aqui (...) Euacho que com o viaduto isso aqui deu umaboa caída. Porque o pessoal não tinhacondições de vir pra cá, fácil. E com o viadutoeles tiveram, sabe? Veio todo povo pra cá.”(Mirela Suriano, em 14/03/2000)

Por sua vez, a Sra. Shirley Grané de Luca,que morou na rua Clélia até por volta de 1992,aponta como razão para as mudanças na rua achegada do SESC Pompéia, que trouxe pessoasde todos os lugares, enchendo os pontos deônibus de visitantes e as ruas de assaltantes,guardadores de carro, etc. Segundo ela:

“Na rua Clélia era divino morar,entrou o SESC, acabou com a Clélia. O SESCacabou com o bairro. (...) O pessoal vem defora pra conhecer o SESC, né. Eu saí de láporque não tinha mais condições de

morar.(...) A Clélia tava um desperdício,terrível, muito ruim. Eu era uma daspessoas que mais ligava pra polícia pra irpegar drogado na porta. Era uma coisaimpressionante. Depois que o SESC abriu,verdade seja dita, foi depois que o SESCabriu. (...) A gente não tinha mais sossegona Clélia. Eu estava predisposta a sair. (...)Porque não tinha mais condição demorar.”(Shirley Grané de Luca, em 23/03/2000)

Opinião semelhante foi dada por sua filha,Mariângela:

“No tempo que eu morei lá (ruaClélia), que eu morei lá desde um ano deidade até vinte e quatro anos, hoje, eu nãoteria coragem de morar lá com uma família.(...) Colocar meus filhos naquele ambiente!?Não dá mais. Lá tem muito bar, né, barmesmo, boteco mesmo.(...) Chegou umahora que não dava mais, com o SESC... daío movimento foi terrível. Porque o SESC éaberto, né, ao público. Você não sabe comquem está lidando.” (Mariângela Grané deLuca, em 23/03/2000).

Importante notar nas falas dasentrevistadas “a chegada do estranho”, do quevem de fora e que amedronta, que leva o antigomorador pra dentro de casa, o tira da rua e vaitornando a rua um espaço inóspito e a casa umrefúgio, porque “você não sabe com quem estálidando.” Dona Mirela Suriano e sua mãe MariaLygia Suriano, que moraram na rua Clélia atépor volta de 1965, sustentam a mesma opinião:

“É, ali também piorou muito com oSESC, né? Aliás, a rua Clélia deu uma boacaída, porque era uma rua muito, sabe,classe A. Depois virou C, D, E, e agora jádeve estar no F, porque a maioria daspessoas que moram ali mudaram, temmuita gente que mora ali na Clélia, que temreceio, porque moram sozinhosatualmente, né? E com o SESC, aquilo ládeu uma boa caída, né? (...) E a PraçaCornélia era uma praça que nós íamos

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brincar, que era gostoso, né? Agora vocênão pode ficar. Agora não dá pra ficar ali naPraça Cornélia. Na minha época dava pragente brincar, namorar, ficar, tudo ali. (...)Agora você vai lá, só tem bebum, só temmaloqueiro.” (Mirela Suriano, em 14/03/2000)

Como se vê, nestes últimos depoimentosque colocam a rua Clélia em questão, nestatransformação do bairro em porção imersa nametrópole, a rua deixa de ser apropriada comoespaço do bairro, de suas sociabil idadesespecíficas, como um espaço de convivência, doencontro, de intensificação dos vínculos devizinhança para se tornar um espaço dametrópole, espaço privilegiado da circulação depessoas, veículos e mercadorias, espaço detodos, daí a presença constante dos estranhos.Segundo LEFEBVRE (1999b), “a rua converteu-se em rede organizada pelo/para oconsumo.”(p.31) A função de sociabilidade darua, de local de encontro tem desaparecidodiante da urbanização atual, tanto quanto obairro. A nova rua, local de tráfego de veículos,de comunicação entre os diversos setores dametrópole, passa a ter uma existência acima dobairro, recortando-o, fragmentando-o,contribuindo para a sua destruição. Às vezesnovas e largas avenidas são construídas,destruindo o espaço construído que haviaantes, mas, outras vezes, as mesmas ruas deoutrora, que eram fundamentais para aformação e desenvolvimento da vida de bairro,tornaram-se mais tarde, na metrópole, as basesde sua destruição. Contraditoriamente, a ruaque criou o bairro, também o destruiu.

Nesse sentido, uma das entrevistadas, aSra. Léa Francesconi23, nascida em 1948, naÁgua Branca, e que viveu a diluição do bairro,tem a visão clara da fragmentação do espaço enão vivenciou a antiga vida de bairro, a não sercomo resquício. Vejamos um trecho de seudepoimento:

“Então, o que eu estava falando daÁgua Branca, é que eu acho que tempedaços tão diferentes, né? A minha ruaeu achava muito particular, né? Depois ela

foi mudando de cara também, né? Ficoumais passagem, mais do que o lugar dasfábricas. Até porque as fábricas foramacabando. (...) Esses pedaços, né, o trajetopela Praça Cornélia é uma Água Branca, né?Esse loteamento atrás do Palmeiras é outro,né? Essa parte da baixada, no limite com aPompéia, onde tem o córrego, é outro. (...)Então tinham todos esses pedaços assim.Pra mim era um monte de pedaços a ÁguaBranca. Depois da estrada de ferro, temaquela Santa Marina, entre as duasestradas de ferro, né? Era um outro pedaçotambém. A Guaicurus era um outro, umoutro mundo, né? (...) É muito interessanteisso aí, de pensar nos pedaços.” (LéaFrancesconi, em 11/07/2001)

Ao ser questionada sobre o papel da rua,sobre a convivência com os vizinhos, asbrincadeiras de rua, ela nos disse que:

“Não vivi isso. Na minha rua eraimpossível, né? Não tinha isso. Acho quenão tinha gente e não tinha calçadaagradável pra isso. Não tinha, essa relaçãocom os vizinhos não tinha, né? (...) Nãotinha esse hábito. Brincava nos quintais, agente tinha os quintais, mas na rua não. Emesmo o vizinho, sair na porta praconversar, acho que até tinha uma coisa,mas já meio assim de... meio... de acharmeio esquisito. Meio... ver pejorativamenteisso, de chegar no vizinho pra fofocar. Coisadesse tipo.” (Léa Francesconi, em 11/07/2001)

Depois ela complementa seu relato a esserespeito fazendo uma comparação entre a ÁguaBranca e uma pequena cidade do interior quecostumava freqüentar:

“Porque depois que eu casei, nadécada de oitenta, no interior, a gentetinha... A gente ia pra Jaú, Itapuí... Itapuíera muito pequenininho, então tinhamesmo. Só era a rua. Então numa épocabem mais, duas décadas depois, né, dessetempo que eu estava na Água Branca, nointerior se tinha esse costume. De pôr a

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cadeira na calçada e conversar com aspessoas, né? (...) Mas aqui não tinha. Nãotinha, né?” (Léa Francesconi, em 11/07/2001)

Hoje, já não é mais possível colocar a“cadeira na porta de casa ao cair da tarde”,porque o modo de vida metropolitano chamaas pessoas cada vez mais para dentro de casa,para o espaço privado, para o espaço individual,para a frente da televisão. Os moradores, apartir desse novo modo de vida, recolhem ascadeiras da calçada, fecham as janelas e nãocompram mais no armazém da esquina (localem que encontravam os vizinhos e no qualmantinham, com o dono, uma relação deafinidade, confiança e até, de afeto). Hoje,diferentemente, as pessoas entram no carro evão às compras num grande supermercado deuma rede transnacional ou num shopping center,locais privilegiados de consumo, onde não seconversa com o dono, encontrar um vizinho seriamera coincidência e tudo é organizado parapotencializar o consumo.

Com relação ao SESC, é interessantenotar como a questão pode ser lida de diversosmodos e como há diversas contradições. OSESC, de um certo ponto de vista, é tido comoum patrimônio do bairro, espaço privilegiado dolazer, da educação, ponto de encontro etranqüilidade, portanto, como algo muito bemvindo e bem aceito, sobretudo se levarmos emconsideração que o SESC foi construído no lugarem que funcionava uma indústria (CONFAB/IBESA), tipo de atividade que normalmente ébastante repelida pelos moradores vizinhos. Poroutros, ele traz o estranho, os “de fora”, abagunça, enfim, alteram negativamente ocotidiano, mais atrapalham do que ajudam.

Com esses depoimentos a idéia não éfazer uma apologia da vida de bairro nem afirmarque antes era melhor ou pior, mas mostrar quehouveram mudanças e que o modo metropo-litano de vida, independentemente de qualquerjuízo de valor, implica mudanças profundas noespaço, eliminando aos poucos aspossibilidades da vida de bairro. Atualmente, oindividualismo, as relações distanciadas, a

indiferença com relação ao outro, a multidão quedivide os mesmos espaços e onde os estranhos,os diferentes, os de fora são aceitos, issoporque a metrópole abriga a todos, estas sãoas características predominantes. Acrescente-se a isso, a explosão no número de edifícios deapartamentos a partir de meados da décadade 1960 e que foi acentuando-se com o passardos anos, alterando não somente a paisagem,mas também aumentando consideravelmente onúmero de pessoas que dividem o mesmoespaço.

O aumento da população e o avanço doprocesso de urbanização começam a demandaruma série de obras de infra-estrutura, sobretudoviária, tornando a Água Branca um espaço dametrópole, integrado e para ela disponível.

A Sra. Shirley Bonini Paladino nos relatousuas impressões das mudanças quetestemunhou:

“Bom, tinha a Sears aqui. Já tinha aSears (no local onde foi posteriormenteconstruído o Shopping Center West Plaza).Não tinha o Bradesco e era uma avenida...uma rua larga só (referindo-se à avenidaAntarctica). Não era uma avenida cortadano meio (não tinha sido alargada e nãotinha um canteiro central), não tinha oviaduto (viaduto Antarctica). Então depoisé que foi se formando... Fizeram o viaduto,foi logo depois que eu mudei. Alargaram aavenida aqui. Aí começaram a fazer aSumaré, que pra lá também era tudo mato.Começaram a fazer a avenida Sumaré.Nossa, era muito mato, era muito... Sabe?(com ênfase). Sei lá, a gente olhava era sóverde. Agora a gente olha e é só prédios.”(Shirley Bonini Paladino, em 03/05/2000)

Tendo-se esses depoimentos em mente,podemos retomar a noção de bairro discutidaanteriormente com o intuito de melhorcompreendermos o movimento das espaciali-dades da Água Branca que vai da localidade aporção imersa na metrópole.

Como vimos, o bairro é uma unidaderelativa, porque faz parte de um todo maior que

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é a cidade, mas ainda assim pode serparticularizado, ao contrário do que chamamosde porção imersa, que não se comporta comouma unidade, misturando-se mais facilmentecom o todo e, por conseguinte, fica menosreconhecido como parcela individualizada dotodo que é a metrópole.

A existência do bairro só ocorre se grupossociais de forma objetiva e subjetiva têm osentimento de pertencimento a determinadoespaço. Em outras palavras, os grupos sociaisdevem existir e exteriorizar de alguma forma aquestão do pertencer a tal espaço e é estesentimento de pertencimento coletivo que dásentido e coesão ao bairro. Nesse sentido,segundo Pierre GEORGE (1983), “o moradorrefere-se ao seu bairro, quando quer situar-sena cidade; tem a impressão de ultrapassar umlimite quando vai a um outro bairro.” (p.76)

Deve haver, portanto, o compartilhamentode determinados referenciais espaciais comunspara existir o bairro. Quando a urbanizaçãocomeça a destruir tais referencias e em nãohavendo uma forma de resistência coletiva porparte dos moradores (exceto alguns esboçosde movimentos reivindicatórios, nenhum dosentrevistados participou ou ouviu falar de umaassociação de moradores ou sociedade deamigos do bairro na Água Branca) o bairro deixade existir. Referindo-se ao bairro, ainda quesomente na sua dimensão física, BOSI (1979)conclui que “só o grupo pode resistir e recomportraços de sua vida passada. Só a inteligência e otrabalho de um grupo (uma sociedade de amigosde bairro, por exemplo) podem reconquistar ascoisas preciosas que se perderam, enquanto estassão reconquistáveis. Quando não há essaresistência coletiva (parece ter sido esse o casoda Água Branca) os indivíduos se dispersam esão lançados longe, as raízes perdidas” (p.370), obairro é implodido, deixando apenas resíduosno espaço.

A esse respeito, SOUZA (1989)complementa afirmando que nos dias atuais (noquadro da cidade do capitalismo monopolistaavançado), o bairro “é um referencialcompartilhado muito superficialmente pelosmoradores. (...) A sobrevivência do bairro como

algo mais que um referencial vazio, em que pesemas dificuldades e a diluição relativas da vida dobairro, se deve, em grande parte, à resistênciavariável dos diferentes segmentos sociaisafetados.” (p.151)

O bairro, tido em sua concepção de locusde sociabilidade, como o espaço do encontro,enfim da vida cotidiana, pode ser pensado como“aquele espaço intermediário entre o privado (acasa) e o público, onde se desenvolve umasociabilidade básica, mais ampla que a fundada noslaços familiares, porém mais densa, significativa eestável que as relações formais e individualizadasimpostas pela sociedade.” (MAGNANI, 2000:32)Além disso, como fica claro pelas entrevistas, eletem sua história e vida muito ligadas aocotidiano. É, no nível da vida cotidiana que obairro é construído. Ele pode, pois, serconsiderado um espaço que traz a idéia decertos vínculos construídos cotidianamente.

O que se pode concluir, assim, no casoda Água Branca, é que este local vive o conflitoe a contradição de ter sido um bairro, cujagênese se encontra no final do século XIX, nosentido de ter tido vida de bairro, e estaratualmente imerso na metrópole, se configurarcomo uma porção desta metrópole, não somentecomo porção física, mas sobretudo por causa dassignificativas mudanças no modo de vida,marcado cada vez mais pela individualidade,pela impessoalidade e pela diminuição dasrelações face a face, etc.

No entanto, essa dissolução do bairro e oaparecimento do que chamamos de porçãoimersa na metrópole não se trata de umatransição simples e tampouco linear, pois a ÁguaBranca enquanto porção imersa na metrópolemantém espacialidades/temporalidades datadasde outros contextos históricos. Uma visão amplados depoimentos dos moradores e asobservações em campo permitiram entender queo bairro não existe mais enquanto unidaderelativa predominante, mas continua existindono interior desta porção imersa na metrópole,ainda que de maneira residual, comofragmentos. Em outras palavras, não existe maisno interior da metrópole, o bairro da ÁguaBranca, mas existe o bairro (mesmo que

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enquanto resquício ou resíduo) na cidade de SãoPaulo, como uma espacialidade datada e nãomais predominante. De uma maneira geral elevando-se em consideração todas asdiscussões empreendidas aqui, no que dizrespeito à definição de bairro podemos afirmarque a Água Branca não é mais um bairro, apesardo bairro não ter desaparecido totalmente,apesar dele continuar existindo no interior dametrópole.

A Água Branca, local identificado pelosseus moradores e usuários, onde todos seconheciam e tinham uma dinâmica própria e quepodemos chamar de bairro é atualmente umaporção, uma área potencialmente disponível àmetrópole como um todo. É como se suasfronteiras imaginárias tivessem sidoderrubadas.

Depois desta discussão, podemosrepensar a questão das transformações da ruae do bairro, também como decorrentes dessadissolução da vida de bairro.

O SESC Pompéia, por exemplo, apontadocomo o deflagrador da deterioração da ruaClélia, por trazer os “estranhos”, pode ser tidocomo um equipamento não do bairro, mas nobairro, ou seja, um equipamento que serve àmetrópole e não somente ao bairro. Por isso, aÁgua Branca passa a receber muitos“estranhos”, os “de fora”, o que a torna muitomais imersa na metrópole do que um bairro noqual antigamente todos se conheciam, iamjuntos à igreja e colocavam as cadeiras nacalçada. E o SESC Pompéia aqui, é somente umexemplo entre outros que mostram estamudança, esta inserção do local no modometropolitano de vida.

Raciocínio análogo poderia ser usado paraa compreensão das novas formas desociabilidade, através do entendimento dainserção do Shopping Center West Plaza,inaugurado em 1991, empreendimento degrandes proporções que atende uma demandametropolitana, localizado próximo da viamarginal do Tietê. Além do SESC e do ditoshopping a mesma lógica pode ser aplicada aoCentro Empresarial Água Branca (grande conjunto

de edifícios comerciais que estão sendoconstruídos na Av. Francisco Matarazzo); aoParque da Água Branca que tem um público maisamplo do que os seus arredores, atraindousuários de vários pontos da cidade, tanto demaneira regular quanto de maneira esporádicadevido a exposições e feiras nele realizadas.Em suma, como se vê, não se tratam deequipamentos do local, mas da metrópole,estando estes simplesmente no local.

V- Considerações Finais – Industrialização,Urbanização e Bairro

O processo de industrialização é o indutorda urbanização que, no caso de São Paulo,transforma a antiga e pequena cidade nagrande aglomeração de nossos dias, mudançaque longe está de ser somente quantitativa, elaé, como vimos, qualitativa. Portanto, aindustrialização é o processo indutor e aurbanização é o processo induzido. A vidaurbana e a cidade eram qualitativamentedistintas antes da industrialização. Assim, aindústria não cria a cidade e tampouco a vidaurbana, mas é responsável por sua ampliaçãoem escala mundial e sua transformaçãoqualitativa. Não são a cidade e a vida urbanapré-industriais com suas características queexplodem, que se generalizam, mas um novourbano, um modo de vida submetido àsexigências do processo indutor. As cidadesindustriais, tanto as novas, quanto as que jáexistiam e foram apoderadas pela indústria, sãoabsolutamente distintas da cidade medieval eda cidade antiga. (LEFEBVRE, 1991)

Contraditoriamente, é com a urbanizaçãoinduzida pela industrialização na cidade de SãoPaulo que surgem inúmeros bairros e que a vidade bairro na cidade se potencializa.Esclarecendo-se que não estamos nos referindoapenas aos bairros industriais, ou seja, aquelesque suportaram fisicamente a atividadeindustrial, mas a todos os bairros, com fábricasem seu interior ou não, mas que surgiram etiveram impulso por conta da industrialização.

Segundo SEABRA (2000), “em todo oocidente o bairro corresponde a uma espacialidade

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elementar, cujos nexos são a vizinhança, oparentesco e o compadrio. Foi pela articulaçãodestes três níveis que o bairro ganhou realidade,traduzindo-se como vida de bairro, produzindoprofundos enraizamentos. Mas, não obstante sero bairro um fenômeno pré-moderno, foi sob osimpulsos da industrialização que a vida de bairrose tornou mais ampla, difusa, diversa e rica. (...)Além disso, a vida de bairro, impulsionada pelaindustrialização em São Paulo, foi levada a umextraordinário sincretismo, porque reuniu matrizesculturais muito diversas. Reuniu aos negros,brancos e índios, estes que estavam na origemda ocupação e do povoamento da região de SãoPaulo, a imigração estrangeira.” (p.12)

Portanto, este duplo processo deindustrialização/urbanização, exerce um duploe contraditório papel: primeiro ao formar e darvida a inúmeros bairros e depois aodesestruturar tais bairros, tornando a vida debairro apenas residual diante das novasespacialidades produzidas. ANDRADE (2000), aoestudar os bairros do Brás, Moóca e Belenzinho,também constatou que “o mesmo processo queintegrava os bairros à cidade de São Paulo,dissolvia, desestruturava a realidade dos bairrosindustriais e operários das primeiras fases daindustrialização paulistana.” (p.9)

SEABRA (2000) expõe claramente ovínculo entre a industrialização e a gênese dosbairros em São Paulo ao afirmar que “aindustrialização é concentradora, maximizadora douso do tempo e do espaço. Por sua lógica reúneaquilo que está disperso e potencializaenormemente o que reúne. Foi assim que osprimeiros imigrantes, operários, artesãos dediferentes ofícios foram se estabelecendo em meioaos caipiras, relacionando-se com os caipiras semmesmo disporem ambos, de uma língua comum.Mas por suas práticas fortemente enraizadasacabaram criando o ethos da vida de bairro.” (p.13)

Em suma, a industrialização, entendidacomo processo indutor da urbanização, foi aresponsável pela formação dos bairros e, porconseguinte, da sociabilidade a este associada

e, ao mesmo tempo, foi responsável por suadissolução. Uma desestruturação que, aocontrário de sua estruturação, não foi repentina,mas anunciada em sua gênese, pois aconfiguração da metrópole que se anunciava iriadentro de algumas décadas destruir a vida debairro.

Foi nesse contexto que descobrimos nãosomente o bairro, mas o bairro como umaespacialidade deste local denominado ÁguaBranca, o qual foi antes uma localidade rural eatualmente é o que designamos de porçãoimersa na metrópole. Tentamos mostrar taisespacialidades, não como se estas fossemseparadas, desvinculadas, mas como umconjunto, uma antecipando e anunciando aoutra, num imenso e complexo movimento dahistória, que se dá num pequeno local. Este foio caminho seguido, sendo o ponto de partida arealidade presente. De seu questionamentosurgiram as perguntas e hipóteses que nosfizeram recuar na história para a compreensãodeste presente. Mas, tal recuo foi feito com osolhos do presente, do real, pois tempo e espaçonão se separam, assim como teoria e prática.De tal forma que os caminhos da pesquisa(inclusive os que foram abandonados) e ométodo utilizado nos mostraram um bairrodatado, compreendido em meio à complexidadenão somente da história em que se inscreve,mas também diante da complexidade do espaçoatual.

Quais serão as novas espacialidades queo processo de urbanização engendrará? O queacontecerá no futuro com a metrópole? Até queponto a sociedade urbana efetivamente segeneralizará por todos os espaços? Quais asconseqüências que acorrerão a partir de então?A Água Branca efetivamente vingará como umespaço terciário? Até que ponto e de quemaneira se dá a sua (re)valorização no contextoda cidade? Estas são algumas questões queficam em aberto sobre as quais apontamosapenas alguns indícios para uma futurainvestigação.

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1 Entendemos por “espacialidades” a coexistênciade formas de organização espacial datadas dediversos momentos históricos. Assim, umaespacialidade é uma certa forma de organizaçãogeral do espaço social que apresentacaracterísticas predominantes que a qualificam ea diferenciam historicamente das outras. A noçãode espacialidade traz consigo a idéia de processoem permanente movimento, ou seja, não se tratado espaço em si, como objeto analítico, mas doespaço na história, pensado como processohistórico, incluindo tanto o realizado quanto opossível, num constante movimento dialético.Mesmo porque não existe espaço a priori, ele sópode ser pensado como espaço social, não sendouma categoria independente da realidade. Nessesentido, a noção de espacialidade, conformedefinimos anteriormente, é mais potente comoobjeto analítico.

2 Uma concepção mais ampla significa aqui, a maisabrangente, ou seja, aquela que engloba toda aárea que possa ser ou ter sido um dia consideradasob a designação “Água Branca”. Isso porquequando nos referimos à Água Branca não nosremetemos a um local definido política ouadministrativamente, de forma que este não tem,portanto, limites fixos, sendo considerado demaneira muito distinta pelos diferentes grupossociais que vivem em seus diversos espaços, emdiferentes momentos de sua história.

3 As menções dos viajantes foi encontrada em:LANGENBUCH, 1971:37-38.

4 A atual cidade de Jundiaí já era um núcleo em 1615e foi elevada à categoria de Vila em 1655.(PETRONE, 1995) Segundo Sérgio Buarque deHOLANDA (1957), em 1667, Jundiaí, “a nascenteVila da borda da Mata, produzia e vendiaaguardente de milho”. (p. 220). Em seu passadoremoto, Jundiaí era uma Vila de onde partiam asbandeiras para Goiás. Segundo ABREU (1988),“prosperava à volta de São Paulo grande númerode vilas: Moji das Cruzes, Parnaíba, Taubaté,Guaratinguetá, Itu, Jundiaí, Sorocaba, são todasanteriores a 1680. (...) Cada uma das vilasextremas demandava destino diverso: as vilas doParaíba do Sul apontavam para as próximas MinasGerais, como Parnaíba e Itu apontavam para MatoGrosso, como Jundiaí apontava para Goiás, e

Sorocaba para os campos de pinheiros em que jásurgia Curitiba.” (p.45, grifos nossos).

5 Segundo PETRONE (1995), o núcleo de Nossasenhora do Ó, teve seu início na primeira metadedo século XVII, sendo a capela de Nossa Senhorado Ó de 1610.

6 A tal bifurcação ainda existe e é a atual Praça dosInconfidentes, local onde hoje inicia-se a AvenidaSanta Marina (antiga estrada do Ó), termina a RuaCarlos Vicari e tem inicio a Rua Guaicurus (as quaiseram um trecho da antiga estrada de Jundiaí/Campinas). Por longo tempo, o núcleo de NossaSenhora do Ó, tinha como principal meio decomunicação com o centro de São Paulo, o caminhode Nossa Senhora do Ó (por ser o caminho maiscurto/direto), depois designado de Avenida SantaMarina (nesta última havia uma ponte de madeiraque atravessava o ainda meândrico rio Tietê. Talponte foi desativada e extinta em 1956, após aconstrução da atual ponte da Freguesia do Ó, poucomais a oeste). Assim, quem do núcleo do Ó sedeslocasse para o Centro de São Paulo, passavausualmente pela Água Branca, seja enquantolocalidade (uma denominação de um local que nãoera urbano ainda), seja enquanto bairro (mais oumenos a partir de 1880).

7 O caminho/estrada de Jundiaí (também estrada deCampinas), recebeu primitivamente os nomes decaminho da Emboaçava (possivelmente algoparecido com uma trilha) e depois, no bandeirismo,a denominação de caminho dos Goiazes. Com ostropeiros é que a estrada passou a ser conhecidacomo estrada de Jundiaí. A mesma estrada, como crescimento da localidade da Água Branca,passou a ser conhecida, por um certo período,como estrada da Água Branca. Trata-se,atualmente, da radial formada pelas seguintes vias,do centro em direção a Lapa: Av. São João, Av.Francisco Matarazzo/Rua Turiassú, Rua CarlosVicari, Rua Guaicurus, Rua Trindade e RodoviaAnhanguera.

8 De acordo com alguns mapas e através daobservação da topografia da área, o córrego daÁgua Branca tem sua nascente nas colinas doSumaré, na extremidade oeste do Espigão Central,próximo do início da Rua Cardoso de Almeida. Daliseguia, aproximadamente, pelo que é atualmenteo canteiro central da Avenida Sumaré (zona nonedificandi). Aliás, assim como o fundo do vale do

Notas

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Água Branca foi aproveitado para a construção daavenida Sumaré, o vale do Pacaembú (Av.Pacaembú), o do Anhangabaú (Av. Nove de Julho),entre muitos outros foram utilizados também paraa construção de avenidas. No término da AvenidaSumaré, na Praça Marrey Jr., o curso do córregodesviava-se para oeste, seguindo pela ruaTuriassu, passando em frente à entrada principaldo estádio Palestra Itália (da Sociedade EsportivaPalmeiras), encontrando o córrego da Água Preta,onde hoje está o Largo Pompéia. O córrego daÁgua Preta, mais ao ocidente do Água Branca,nasce no bairro do Sumarezinho, na altura da RuaHeitor Penteado e segue, canalizado, pelos bairrosda Vila Anglo-Brasileira, Bairro Siciliano, VilaRomana, Vila Pompéia e Água Branca, passandopor entre os edifícios novos do SESC Pompéia, atéreceber as águas do córrego Água Branca, noreferido Largo.

9 O crescimento demográfico de São Paulo no finaldo século XIX e início do XX nos dá uma noção da“explosão” sofrida pela cidade: em 1872 a cidadetinha 23.253 hab., em 1886 passa a 44.033 hab.,em 1890 passa a 64.934 hab., em 1893 passa a192.409 hab., 1900 passa a 239.820 hab. e em1920 passa a 579.033 hab. Segundo LANGENBUCH(1971), houve uma aceleração impressionante noritmo de crescimento da cidade, bastando notarque no período de 1872 a 1886, “a população (...)pràticamente duplica, conhecendo destarte umaampliação relativa semelhante à verificadaanteriormente no decorrer de um período trêsvezes mais longo. Com efeito, desde o censo deMüller realizado em 1836, até o ano de 1872, apopulação em causa se elevara de 12.356 a 23.253habitantes.” (p.77). (Dados obtidos em:LANGENBUCH, 1971 e MORSE, 1970).

10 Há inúmeros outros elementos importantes para acompreensão do processo de industrialização/urbanização de São Paulo, vinculados àmacropolítica e à macroeconomia, cuja discussãoseria inviável nos limites deste artigo.

11 Segundo LEFEBVRE (1975), “a sociologia admiteníveis de realidade, como também de pensamento;não há um ‘tudo ou nada’ de existência, derealidade, de coerência sociológica, mas umaextensa gama” (p.201).

12 Tal situação ocorria na Vidraria Santa Marina, paraevitar que os operários atrasassem para o primeiroturno do dia. Estes funcionários eram conhecidos

como “despertadores”, eram os responsáveis pelapontualidade. Cf. BRANDÃO, op. cit., 1996, p.64 erelato da Sra. Edith Fragoso em 27/01/2000.

13 Local aqui é o modo mais genérico e “neutro” paranos referirmos à Água Branca.

14 Para a melhor elucidação deste método, ver, emespecial: (LEFEBVRE, 1997, p.65-67); (LEFEBVRE,1999 (b), p.33); (LEFEBVRE, 1975, p.17 e 61 a 76);(LEFEBVRE, 1999 (a), p.86); (MARTINS, 1996) e(KOFMAN & LEBAS, 1996, p.3-60).

15 Além disso, LEFEBVRE (1999b) em outro trabalhoacrescenta: “Conhece-se o passado a partir dopresente, mais do que o presente a partir dopassado. O que legitima uma historicidadesem historicismo.” (p.72, grifos nossos)

16 Foram realizadas nove entrevistas, nas quaisforam ouvidos moradores do bairro com idadesque variaram entre 53 e 95 anos. O procedimentopara o recolhimento dos relatos pessoais ocorreuda seguinte forma: elaboramos previamente umroteiro flexível, que servia somente para nortearas questões pelas quais gostaríamos de passar,com o intuito de termos alguns referenciais comunspara a comparação qualitativa entre os diversosentrevistados. Assim, a idéia principal era deixaro entrevistado conduzir a conversa. Procuramos,pois, fazer o mínimo possível de intervenções. Namedida em que a conversa ocorria, se as questõesnão fossem espontaneamente colocadas, aí sim,eram feitas. Todas as entrevistas foram gravadase logo após transcritas integralmente para aanálise.

17 O Cine São Carlos era o antigo Cine Santa Marina,montado pela Vidraria Santa Marina, em 1914, narua Guaicurus. Atualmente no local funciona umarevendedora de pneumáticos.

18 Conforme já discutido, o bairro da Água Brancaaqui é considerado de forma ampla e como foi visto,não há consenso no que se refere à designaçãode diferentes porções do bairro. Dependendo dolugar, ele é tido como Lapa, Barra Funda, Perdizes,Pompéia ou Vila Romana. Ao se distanciar de suaartéria central, a Av. Francisco Matarazzo, ruaCarlos Vicari e rua Guaicurus, a designação “ÁguaBranca” vai perdendo força. O Sr. Joaquim Guedesconsidera seu bairro como Lapa. Já sua antigavizinha na Rua Duílio (travessa da rua Clélia quetermina na Rua Guaicurus), Shirley Bonini Paladino,também entrevistada, considera seu bairro como

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Água Branca.19 Não cabe aqui uma análise extensa das

especificidades do Palestra Itália, sendo importantesalientar, entretanto, que este time surgiu de umagrande associação de imigrantes que envolvia,desde seu início, em 1914, a cidade como um todo.Era uma espécie de resposta dos imigrantes, quesofriam um grande preconceito por parte da elitepaulistana, e que, ao se associarem, poderiamvencer a elite, representada por alguns clubes,notadamente o Clube Atlético Paulistano, dentrode campo. Tanto que, apesar do nome PalestraItália e de seus fundadores serem italianos, muitosjaponeses, espanhóis, etc., torciam para o Palestra,pois era o “grande time vencedor”, embora não oúnico, dos imigrantes. Portanto, o Palestra Itália,apesar de sediado na Água Branca não era umtime do local, ele desde o princípio, foi um time dacidade toda, tendo muitos de seus torcedores, naBela Vista, no Brás, na Moóca, no Belenzinho,enfim, nos bairros que abrigavam grandesquantidades de imigrantes, sobretudo italianos. (Cf.ARAÚJO, J. R.C (2000) Imigração e Futebol: o casoPalestra Itália. São Paulo, Editora Sumaré/FAPESP)

20 O nome Jacaré F.C., faz menção ao símbolo

mascote da empresa naquela época que era umjacaré. Este time foi lembrado pelo Sr. HugoFrancesconi e pelas Sras. Cecília Francesconi eEdith Fragoso.

21 Ricos são considerados, pelo que foi possívelcompreender, o que classificaríamos como sendoclasses médias, formadas por pequenos e médiosempresários, donos de estabelecimentoscomerciais, profissionais liberais, pessoas commaior grau de escolaridade, enfim, por aquelesque possuíam um nível de vida melhor do que ospobres naquele determinado espaço, o do bairro.Este é o entendimento que faz com que os pobres,da parte de baixo do bairro, chamem de ricos osque moravam na rua Clélia e arredores, ou seja,na parte de cima.

23 Atualmente a Sra. Shirley Grané de Luca mora noBairro Siciliano, um bairro das proximidadesconsiderado melhor que a Água Branca nos diasde hoje.

24 Filha do Sr. Hugo Francesconi e da Sra. CecíliaFrancesconi, que eram proprietários da de umatorrefação de café e refinaria de açúcar,denominada Santa Ifigênia.

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Trabalho enviado em novembro de 2003.

Trabalho aceito em março de 2004.