cosmÓpolis, anos 1930; sÃo paulo, anos...
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XV SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO
A Cidade, o Urbano, o Humano Rio de Janeiro, 18 a 21 de setembro de 2018
COSMÓPOLIS, ANOS 1930; SÃO PAULO, ANOS 1930
REPRESENTAÇÕES, SUBJETİVİDADES E SABERES SOBRE A CİDADE
Clovis Ultramari Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana, Pontifícia Universidade Católica do Paraná [email protected]
Manoela Massuchetto Jazar Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana, Pontifícia Universidade Católica do Paraná [email protected]
Isabela I. Moura Curso de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Tecnológica Federal do Paraná [email protected]
RESUMO
Este artigo tem como contexto maior o diálogo interdisciplinar entre urbanismo e literatura, referindo-se ao segundo campo como fonte investigativa sobre a cidade. A partir da geografia apresentada por Guilherme de Almeida em sua obra Cosmópolis (1929), recorrentemente considerada na sua relação com a metrópole de São Paulo, tem-se material para potencializar um debate sobre a cidade, sugerir linhas de investigação e de se ter, na literatura, uma fonte de informações para cenários urbanos específicos. O debate se faz a partir da descrição de Guilherme de Almeida de oito compartimentos urbanos em São Paulo habitados cada qual por um grupo distinto de imigrantes. Tal descrição é tomada como provocadora, apenas, de um debate sobre questões urbanas. Ficam explícitos a visão fractal do autor, as razões para que isso ocorra e possíveis distinções entre o relato não-ficcional e a realidade. Essa realidade é a da década de 1930, sempre considerada como modernizante e já sugerindo ares de globalização para São Paulo. O artigo conclui pela potencialidade da literatura como ferramenta investigativa para estudos da cidade, podendo contribuir para a redução de vazios investigativos e mesmo para um já sinalizado esgotamento dos modos tradicionais de se entender a cidade.
PALAVRAS-CHAVE: Guilherme de Almeida. Literatura e Cidade. Epistemologia e História Urbanas.
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COSMÓPOLIS, 1930’S; SÃO PAULO, 1930’S
ABSTRACT
The context of this article is the interdisciplinary dialogue between urbanism and literature; second investigative field is taken as a primary source for the debate. Such dialogue is restricted to the sole use of literature as a source of urban information. It refers to the book Cosmopolis (1929), by the Brazilian poet and essayist Guilherme de Almeida, mostly considered as reference of his relation with the city of São Paulo. Article uses Almeida´s interurban geography, its references to this city´s elements and compartments, and possible temporal relations between his text and urban changes implemented in the 1930´s. Guilherme’s work is taken solely as a provocative tool to discuss a debate on urban questions. It reiterates the author´s fractal consideration of the city and the potentiality of literature as a tool to understand specific and more general urban scenarios and processes. It also concludes for the possibility of taking literature as a tool to reduce investigative voids and as additional perspectives to old approaches already demonstrating scientific fatigue.
KEY-WORDS: Guilherme de Almeida. Literature and City. Urban Epistemology and History.
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INTRODUÇÃO
A obra selecionada de Guilherme de Almeida é aquela em que a cidade ainda chama a atenção pela
modernidade e globalização. A primeira pelo simples crescimento demográfico urbano, neste período
com aproximadamente um milhão de habitantes e São Paulo já consolidada como a maior cidade
brasileira, por transformações urbanas significativas e por um significativo processo de industrialização.
A segunda é anunciada pela polarização que essa cidade exerceu sobre distintas etnias. Assim
entendida - moderna e global -, sobretudo a partir da virada do século XIX para o XX, vê-se, no campo
cientifico, o surgimento de um novo campo de estudos: o urbanismo. No Brasil, tardia, perifericamente,
mas, do mesmo modo que nos países centrais, este campo de estudo em formação se faz sob o
impacto de processos em níveis diversos de industrialização. Conforme Choay (2010), tal campo se
constituiria muito menos pela clara constatação de uma modernidade, mas sim pela confirmação de
um problema que demandava enfrentamento técnico. Deste mesmo contexto histórico, em sua origem,
é também a aproximação entre a literatura e a cidade, sendo a primeira reconhecedora das
transformações ocorridas na segunda. Nascimento (2014), por exemplo, localiza neste período um
estreitamento de relações entre esses dois campos, conectados por uma modernidade desejada e
explicitada: “A urbe moderna foi captada pelos discursos político e artístico, tornando-se, assim, o lócus
do mundo contemporâneo. Dessa forma, as cidades foram imortalizadas por escritores como Charles
Baudelaire, que escreve a Paris do século XIX” (p. 81), citando também Dickens com Londres, Borges
com Buenos Aires, Lisboa com Eça de Queiroz e Cesário Verde, e Rio de Janeiro com Machado de
Assis, João do Rio e Lima Barreto. O binômio modernidade e cidade atrairia também a intenção de um
novo campo da sociologia, onde, dentre outros, a Escola de Chicago, com nomes como Ernest
Burguess, Robert E. Park e Louis Wirth que dariam atenção à “patologia social”, criminalidade,
segregação e migração campo-cidade; Walter Benjamin, com sua Berlim da infância ou a Paris das
reformas haussmanniènes, que discutiria a sociedade do começo do século. No Brasil, a noção de
modernidade guardaria particularidades, sendo incorporada como algo que vem de fora e que deveria,
obrigatoriamente, ser apreciada e adotada (Siqueira, 2008).
Este artigo busca inserir-se nesta potencialidade investigativa, arriscando o enfrentamento dos
chamados vazios investigativos. Tal empreitada integra estudos interdisciplinares, servindo-se das
convergências entre os campos do Urbanismo e da Literatura, onde o segundo é fonte investigativa
para o primeiro e jamais sua intenção precípua. De um lado, não se discute aqui a fonte literária pelo
viés dos estudos literários; de outro, os estudos sobre a cidade e seu urbanismo são entendidos como
prática social e cultural, no extremo oposto do seu entendimento pelos campos mais restritos à
arquitetura, à engenharia ou a aspectos físico-naturais, conforme a “primeira porta” descrita por
Bresciane (1991), na tentativa de se entender a cidade.
Outro contexto do presente artigo é o da própria escolha metodológica para se compreender a cidade,
empreitada cada vez mais consciente da importância não apenas de novas interpretações, mas
também de novas fontes. Tal escolha não resulta de uma mera opção pessoal ou desilusões frente a
uma realidade com restritos avanços positivos em termos de qualidade de vida e apropriação coletiva
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daquilo que a cidade produz. Há, sim, uma constatação de que o objeto – a cidade - altera-se mais
profundamente em tempos recentes. Esta é uma constatação, aliás, recorrente na literatura científica
sobre o tema: “As cidades e as metrópoles exigem hoje uma revisão conceitual e propositiva,
proporcionalmente tão profunda e abrangente quanto às próprias transformações que estão alterando
seus atributos” (Meyer, 2006: s/p). Do mesmo modo, Bresciani (2004, p. 9) afirma: “a cidade que tão
bem conhecíamos mudou, [...] a ideia (ou idealização) de cidade se [apresenta] em constante
descompasso”. Se se reconhece a dificuldade em entender o espaço urbano, ainda mais árduo é tentar
transformá-lo – principalmente por meio de ferramentas usuais; despertando, então, um interesse pela
busca de novos caminhos para auxiliar nessas transformações.
A fonte aqui analisada é, do mesmo modo que suas similares no campo acadêmico, limitada de verdade
completa. O objetivo precípuo da escrita de Guilherme de Almeida não é o da descrição de um
determinado processo urbano ou mesmo de uma cidade específica: as oito “leituras” que o autor faz
de compartimentos urbanos de São Paulo respondem a uma demanda muito explícita: descrever os
bairros estrangeiros da capital. A veracidade, universalidade e eventual descompromisso com a
exatidão daquilo descrito na obra de Guilherme de Almeida assumem papel secundário neste artigo,
deixando que se valorize a perspectiva por ele adotada e o que ela pode provocar em termos de debate
sobre a cidade. De fato, “Apenas na aparência a cidade é homogênea” (Benjamin, 2006: 127).
Usar um texto - como propomos no estudo interdisciplinar urbanismo/literatura - é distinto de interpretá-
lo (Eco, 2008). A despeito de isso parecer limitação no uso desta fonte, o próprio Umberto Eco já havia
explicado que interpretação não é limitação e sim opção de perspectiva interpretativa:
Poderíamos objetar que a única alternativa a uma teoria radical da interpretação voltada para o leitor é aquela celebradas pelos que dizem que a única interpretação válida tem por objetivo descobrir a intenção original do autor. E, alguns dos meus escritos recentes, sugeri que entre a intenção do autor (muito difícil de descobrir e frequentemente irrelevante para interpretação de um texto) e a intenção do interprete que (para citar Richard Rorty) simplesmente “desbasta o texto até chegar a uma forma que sirva a seu propósito” existe uma terceira possibilidade”. Existe a intenção do texto (2005: 29).
Braz e Bulhões (2016) inserem as publicações de Guilherme de Almeida nas tentativas "apaziguadoras
e mesmo idealistas do convívio entre estrangeiros e na relação destes com os chamados "nativos" da
metrópole paulistana. Para esses autores, a obra Cosmópolis está de costas para a metrópole,
constituindo um agrupamento de pessoas que vivem apenas entre seus pares, são exóticos e
despertam a curiosidade. Guilherme de Almeida, ele mesmo parece concordar: “São Paulo parece que
está tão longe, tão longe, lá, muito além desta planura cor de barro", [diferenciando-se pelos seus]
"cubos altos” (Almeida, 2004, em Rapsódia Húngara, p. 14). Não estaria presente nesta discussão, por
exemplo, a lembrança trazida por Morse (1970) de que essa unidade identificada por Guilherme se
dava mais por razões profissionais ou de emprego e trabalho que necessariamente por razões étnicas.
Do mesmo modo, a identificação genérica de “típicos-subempregos” identificados por Guilherme de
Almeida nos seus bairros estrangeiros não seriam absolutamente corretos, havendo inserções mais
diversificadas de sua população na economia da cidade, para além da simples homogeneização, por
exemplo, de turcos para além da venda de bugigangas, conforme atestado por Hall (2004, apud Braz
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e Bulhões, 2016). Para Lesser (2001), há na obra de Guilherme de Almeida uma ambiguidade entre a
simpatia e o receio e uma sátira ao descrever os estrangeiros: “O Oriente mais que próximo” caçoava
do orientalismo, falando dos árabes não como pessoas, mas como “bigodes, apenas bigodes. Bigodes
contemplativos [...] bigodes esperançosos [...] bigodes esfumaçados [...] bigodes sonoros. Bigodes” (p.
111).
Ora, para atenuar críticas referentes a uma eventual parcialidade ou restrição analítica, Barthes (2004)
afirma que “é impossível falar de literatura sem se referir a uma psicologia, a uma sociologia, a uma
estética ou a uma moral” (p. 38). A sujeição da veracidade ao intento literário - ou jornalístico, neste
caso - seria também explicada por Rulfo (1995) quando declara que todo escritor seria um mentiroso. A
“verdade” sobre um processo urbano ou sobre um momento de uma cidade seria então buscada na
diversidade de fontes e, mais importante ainda, no debate que essa busca possa gerar.
Este artigo insere-se em pesquisa ampliada dos autores e trata da dificuldade de se encapsular a
realidade complexa de uma cidade por meio de sínteses e conceitos. O debate aqui apresentado tem
como pressuposto a tomada de determinados elementos fractais pela obra literária ou outra fonte como
inerente do exercício de discussão sobre ou explicitação da cidade. A obra Cosmópolis atende a uma
demanda específica feita a Guilherme de Almeida por um jornal e com um propósito. Estavam lançadas,
neste momento, as imposições de uma clara limitação de sermos nós e nossas circunstâncias (Ortega
y Gasset, 1914).
Porque um amigo me disse, faz pouco tempo: - Lembra-se daquela série de artigos sobre bairros estrangeiros de São Paulo, que você publicou no Estado, se não me engano em 1929, sob o título de Cosmópolis? Você deve ter guardado os recortes. Nunca pensou em por isso em livro? Olhe que valeria a pena [...] (Almeida, 2004: 10).
Na justificativa de nossa escolha da obra de Guilherme de Almeida estaria então a limitação intrínseca
a qualquer fonte de análise, sua opção por explicitar a temática do urbano ou da grande cidade, e a
intenção primeira do artigo que é a de servir-se de textos provocatórios para discutir nosso objeto de
interesse. Nuanças urbanas não explicitadas por Guilherme de Almeida em seu texto não serão aqui
lembradas no intuito de correção ou crítica e sim de geração de debate. Vale, apenas, a partir dessa
eventual ausência, a provocação para o debate sobre o urbano, deixando para outros trabalhos a
discussão sobre se ela é intencional, se resulta de uma observação imprecisa, e se traduz um
distanciamento intelectual, por exemplo.
A leitura de Cosmópolis para este artigo, acredita-se, permite discutir elementos catalisadores
escolhidos pelo autor para resumir a imagem de uma cidade. A São Paulo aí descrita está restrita à
perspectiva do autor e à intenção e interpretação de quem a lê. Para o leitor mais geral ter-se-ia uma
cidade com recortes geográficos limitados e uma grande população dividida em dois grandes grupos;
a dos imigrantes, tema da obra selecionada e moradora de bairros, e a dos nativos, moradora na área
ainda mais central. Mesmo para a cidade dos anos 1930 (vide cartografia a seguir), essa clara distinção
de moradores e de sua espacialização parece reducionista frente à metrópole com mancha urbana já
ampliada e para além de seu perímetro político-administrativo. O próprio Guilherme de Almeida, ao
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retomar suas reportagens escritas em 1929, 33 anos depois, perguntaria desconfiado sobre a exatidão
ou veracidade daquilo que viu e escreveu.
Por isso desentulhei do passado as longas tiras de papel de jornal, amarelas de idade e esquecimento. Desdobrei-as. Fui lendo. Como um estranho. Sensação de novidade. Então essa cidade existiu, de fato? Assim fácil e pitoresca, com apenas 900 mil habitantes tão afeiçoados a ela e entre si mesmos, bem diferenciados, pela origem e costumes [...]? (Almeida, 2004: 10, Introdução).
De fato, na análise cartográfica que se obteve para a época, a relação entre a somatória dos espaços
ocupados por esses dois grupos (tomados como síntese da cidade de então por Guilherme de Almeida)
e a cidade formalmente parcelada é muito pequena. Satisfazendo o segundo objetivo deste artigo, a
leitura desta obra, de imediato, aporta elementos para uma possível discussão sobre processos
urbanos contemporâneos: crescimento demográfico, intervenções urbanas, assimilação de imigrantes
e, sobretudo, a constante oscilação entre fascínio e medo. Love (1982), expressando esse fascínio pela
São Paulo do período que se inicia com a República e prossegue até o Estado Novo de Getúlio Vargas
não hesita em usar a expressão “locomotiva do Brasil” para descrever essa cidade. Santos (2005)
atesta um crescimento demográfico para essa cidade entre 1910 e 1930 de 136%. Silva (2007), analisa
as benesses vividas ali por conta da política nacional de industrialização de substituição de importações
e da recuperação econômica que seguiu a crise de 1929 e a Segunda Grande Guerra.
No campo interdisciplinar literatura e cidade, a obra de Guilherme de Almeida pode ser tomada como
um “poeta em ação” meio a uma metrópole que se transforma. De sua ação, tem-se, minimamente, a
participação no Movimento Modernista Brasileiro, a partir de 1922, na Revolução Constitucionalista de
São Paulo de 1930, como combatente, na Academia Brasileira de Letras, na Comissão para as
festividades do IV Centenário da cidade de São Paulo, e em cargos públicos diversos (ABL, 2018). Do
cenário urbano por ele vivido, tem-se uma cidade capaz de representar a transformação nacional, da
economia agrária para urbana e industrial, com o chamado desenvolvimento “para dentro”, conforme
lembrado por Cano (2012).
A literatura como fonte histórica primária, em tese, não é profícua, mas nela podemos encontrar a
cidade que se quis ou a que se rejeitou numa determinada época. Tem-se então um caminho para se
identificar a cidade idealizada ou criticada, os agentes sociais que comungam essas posições e a
priorização de recursos adotada. A cosmópolis descrita por Guilherme de Almeida reflete o mito de um
mundo que se acredita modernizar-se, dentre outros caminhos, pela industrialização e urbanização.
Cidades passam a ser mitificadas no campo do urbanismo, como a arquitetura e o desenho urbano de
Paris em nível global até meados do século XX (Ultramari; Ciffoni, 2015) e no campo da literatura (vide
Brocca, 1993). Esses mitos, sejam enganosos ou fractais, revelariam idealizações, mas também,
sujeições entre grupos sociais de uma cidade e de uma época.
[...] as palavras trazidas pelo autor são um conjunto um tanto embaraçoso de evidências materiais que o leitor não pode deixar passar em silêncio, nem em barulho [...]. Interpretar um texto significa explicar por que essas palavras podem fazer várias coisas (e não outras) através do modo pelo qual são interpretadas (Eco, 2005: 28).
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Para ler e interpretar Cosmópolis pela perspectiva da questão urbana serve-se, prioritariamente, da
cartografia da época em que atua. Reconhece-se a crítica de Virginia Woolf sobre a limitação de se
estudar obras e autores por meio de cartografias. A autora rejeitaria essa ferramenta por não acreditar
na possibilidade de relacionar ficção com realidade: “A writer’s country is a territory within his own brain,
and we run the risk of disillusionment if we try to turn such phantom cities into tangible brick and mortar”
(apud Tachker, 2017: 416). Turchi (2004, apud Kokula, 2016), no entanto, diria que a cartografia da
ficção é uma ferramenta para se adentrar num mundo desconhecido. No caso de Cosmópolis, os
trajetos e locais são facilmente identificáveis; permanece a dúvida sobre os atributos que lhes são
dados e a representatividade que lhes computa no contexto da cidade maior, já nos anos 1930.
O estudo empírico deste artigo reconhece essas possibilidades investigativas, esses pressupostos e
essas limitações como instigadoras de um debate sobre a cidade. Mais que reconstituir a cidade do
passado, julgar o autor ou o urbanismo da época, o que se busca é a provocação do debate urbano.
TÍMIDOS CIRCUITOS DE GUILHERME DE ALMEIDA
A despeito de Cosmópolis resultar de uma demanda específica de um jornal ou mesmo da
recomendação de um amigo para sua publicação em livro posteriormente - fatos que circunscreveriam
a geografia da cidade descrita - pode-se falar numa aderência entre o circuito relatado na obra e o
circuito vivido pelo autor. Na obra, o compromisso de se relatar oito compartimentos estrangeiros em
áreas da cidade de São Paulo; na vida, uma trajetória reduzida aos níveis urbano e regional.
Tais geografias, entretanto, não devem ser tomadas como explicações às críticas de “visão de mundo”
em Guilherme de Almeida. Mário de Andrade (apud Ulrich, 2007) requer que Guilherme se liberte de
suas intenções bairristas no seu amor incondicional a São Paulo e mesmo saudosista frente a um forte
processo de urbanização; críticas que avançam para a identificação de um Guilherme de Almeida
pouco nacionalista frente à constante valorização de uma São Paulo cosmopolita. Guilherme assimila
essas críticas e em parte revê ou reitera seu próprio discurso. Ulrich (2007), por exemplo, o vê optar
posteriormente pela defesa de uma São Paulo cafeeira, sob o comando histórico de portugueses e com
um passado de conquistas.
O próprio Guilherme de Almeida reconheceria as críticas recebidas - meio a outras, inúmeras,
demonstrações de respeito, como a sua condecoração como Príncipe dos Poetas, em 1958 - quando
de entrevista pouco antes de morrer:
Hoje, meus livros aparecem sem merecer uma só referência: e, talvez, por isso mesmo, esgotou-se mis depressa. Agentes do meu intelligence service já me revelaram que, entre literatos de hoje, diz-se que “não é “bem” citar ao poeta Guilherme de Almeida. Compreendo, trata-se de um poeta “vendido” (Almeida, 1955: 41, em entrevista ao Jornal Diário Nacional).
Guilherme de Almeida nasce em Campinas, passa sua infância em Limeira, Araras e Rio Claro. Chega
a São Paulo em 1902, e, com poucas idas e vindas, aí se estabelece e permanece até a morte, em
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1959. Períodos curtos fora de São Paulo ocorreram: viagens pelo Brasil para divulgar o Movimento
Modernista; Montevideo, em homenagem a Olavo Bilac; Rio de Janeiro, ao casar com Baby de Almeida;
interior do estado de São Paulo como promotor público; Cunha/SP, como combatente da Revolução
Constitucionalista; e Portugal, como exilado, por exemplo. Nenhuma dessas ausências pode ser
comparada em termos de tempo e de volume de produção intelectual como aquela de seu retorno
definitivo a São Paulo, de 1933 a 1969, cidade que se confirma como polo regional/nacional e já sugere
a constituição de uma grande aglomeração metropolitana.
Figura 1: O Circuito regional de Guilherme de Almeida: formação, atuação e moradia.
Fonte: Autores mencionadas ao longo do texto, sob base cartográfica do estado de São Paulo, 1929, disponível em: http://www.sp-turismo.com/mapas/mapa-antigo.htm
O circuito intraurbano de Guilherme de Almeida na cidade de São Paulo representa o percurso imposto
pelo interesse do capital imobiliário, o qual viria a se acentuar nas décadas seguintes também em outras
cidades brasileiras. Já na década de 1930, via-se a migração das elites para aquilo que viria ser
denominado de bairros novos - conforme literatura científica do campo urbanístico nos anos 1990 - e o
abandono das áreas centrais de São Paulo. No caso específico do autor, tem-se a moradia com os pais
no bairro da Luz (rua Conselheiro Nebias, 97), residência na rua Pamplona, nos Jardins, e residência
definitiva no Perdizes/Pacaembu (rua Macapá, 187).
Figura 2: GA e o espraiamento de áreas centrais de São Paulo / 1930.
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Fonte: Organização dos autores a partir de fontes mencionadas ao longo do texto. Obs.: Quando não se contou com endereço preciso, fez-se por aproximação. O avanço da ocupação urbana (círculos a partir da Sé) respeita descrição história, elaborada por Caio Prado Júnior (2012), em estudo denominado O fator geográfico na formação e no desenvolvimento da cidade de São Paulo.
A figura acima sugere - mas não confirma - um conhecimento vivido restrito do espaço urbano por
Guilherme de Almeida, se comparado com o da verdadeira mancha urbana de São Paulo dos anos
1930. Sugere também um trajeto intraurbano pessoal que reproduz a valorização de novos
compartimentos, a partir de um reuso ou mesmo abandono da área central tradicional. O abandono de
áreas centrais para os novos bairros é tema recorrente ainda hoje no urbanismo brasileiro e reflete não
apenas o funcionamento do capital imobiliário que atende aos interesses de uma elite, mas também o
papel do estado em financiar infraestruturas urbanas nessas novas áreas. Guilherme de Almeida não
pode ser avaliado pela perspectiva do interesse imobiliário, sem dúvida; a relação que se faz aqui é a
de servir-se de uma experiência pessoal com farto volume de informações e análises, para demonstrar
sua potencial utilização no debate urbanístico e iniciar uma sobreposição analítica entre o escrito, a
temática da escrita e a realidade urbana vivida.
Figura 3: Espraiamento a partir do centro / Loteamento Pacaembu.
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Fonte: Cartografia de 1956, destaque para a Chácara Pacaembu (Companhia Sumarezinho para o caso do terreno em questão,
vizinha portanto das áreas parceladas pela empresa Light), in PACHECO, José Aranha de Assis. Perdizes, história de um
bairro. Prefeitura de São Paulo, 1982.
Ainda que de modo pouco dialético a respeito dos principais agentes que constroem, se apropriam e
usam a cidade, Guilherme de Almeida reconhece que seu percurso intraurbano segue a trajetória de
uma cidade que, inocentemente, cresce. Em conhecida citação sobre a construção e mudança para
sua Casa da Colina, reconhece:
Rua curva, corcovada, de um só quarteirão e com três casas somente [...] era apenas uma estrada rústica. [...] aí assentei a minha casa, porque o lugar era tão alto e tão sozinho, que eu nem precisava erguer os olhos para olhar o céu, nem baixar o pensamento para pensar em mim. Fiquei vivendo a vida daquele suposto fim de mundo, que era de fato um começo. Começo de um pequeno mundo que eu vi, dia a dia, ir-se fazendo em torno de mim. [...] (Almeida, 2004a : s/n, sobre A Casa da Colina).
No período em que a Casa da Colina era construída, São Paulo já contava com quase dois milhões de
habitantes (IBGE, 2018) e já possuía traços que viriam caracterizar a urbanização brasileira de modo
geral, por meio da verticalização e ocupação extensiva com grande demanda por serviços públicos
(Silva, 2007). Também neste período, se iniciavam as formações irregulares, que, para São Paulo
apareceriam na década de 1940 (Taschner, 2005) abrigando então uma diversidade de classes sociais,
“barões do café, industriais, operários, comerciantes, artesãos” (Zanirato, 2000, p. 241).
Para o caso específico de Cosmópolis, chama à atenção, na década de 1930, a retomada da
imigração de estrangeiros ao país, e, no caso de São Paulo, a divisão do espaço urbano com migrantes
de regiões como o Nordeste (Barros, in Zanirato, 2000), ausentes da obra de Guilherme de Almeida.
Eram igualmente distantes do autor moradores que formavam o espraiamento metropolitano da cidade,
fenômeno que, conforme Bógus e Véras (2000), se confunde com a própria história de São Paulo.
A multiplicidade de fenômenos urbanos constitui, pois, um processo de difícil identificação e síntese
presentes na urbanização paulistana, e de complexa assimilação em circuitos mais restritos. A julgar
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pela geografia intraurbana vivenciada por Guilherme de Almeida, estariam ausentes de seu cotidiano
grandes mudanças que a metrópole experimentava.
O percurso do centro antigo para a área em formação Pacaembu/Perdizes realizado por Guilherme de
Almeida atesta processo comum em nossas cidades, de uso, transformação, desuso, desvalorização
e eventual revalorização de suas partes. Primeiramente, morador da Rua Pamplona, de 1933 a 1946,
e da Rua Macapá, desta data até 1969, Guilherme reproduziria aquilo que Villaça (2001) descreve
como novos centros. Como parte desse processo destaca-se a utilização de recursos públicos para a
construção de novas áreas, ao mesmo tempo em que se abandonam áreas tradicionais, consolidadas
também com grande aporte de recursos públicos em infraestruturas e serviços. Vistos sobre essa
perspectiva, esses fenômenos seriam apenas muito mais tarde compreendidos; destacando-se, no
Brasil, os trabalhos de Castells (1983), Lipietz (1982), Lojkine (1981) e Harvey (2006).
Tais processos comumente integram a chamada questão urbana naquilo que diz respeito ao uso e
ocupação do solo das cidades, aqui entendido como prática social. Neste artigo, são processos
lembrados a partir de relações observadas em um autor, sua obra e, no caso de Guilherme de Almeida,
sua relação específica com São Paulo. O item seguinte discute informações encontradas na obra
Cosmópolis que igualmente instigam o debate sobre a cidade.
O CIRCUITO DE COSMÓPOLIS
Guilherme de Almeida, mais conhecido como poeta, destaca-se também por suas crônicas de jornal;
sendo a cidade e o cinema seus temas mais recorrentes e para os quais dedicou colunas seriadas. Em
1926, ingressa no Jornal O Estado de São Paulo e, em 1929, publica as colunas A Sociedade, com
destaques da então elite paulistana e Cosmópolis sobre os bairros estrangeiros da cidade. A partir de
1927, no jornal Diário Nacional, publica também a coluna Pela Cidade, com pseudônimo de Urbano
(Vieira, 2014). Para o caso das duas últimas colunas, tem-se a versão posterior em livro: Pela Cidade
(Almeida, 2004a) e Cosmópolis (Almeida, 2004b).
Seguida de uma introdução onde explica a origem da obra, Cosmópolis conta com oito pequenos
capítulos, cada qual referente à uma etnia encontrada em São Paulo: “Rapsódia Húngara”, “O bazar
das bonecas” (japoneses), “Chope duplo” (alemães), “O ’gueto’” (judeus), “A confusão báltica”, “Um
carvão de Goya” (espanhóis), “Os simples” (portugueses), e “O Oriente mais que próximo” (árabes e
turcos). Está excluído dessa lista o grupo de italianos, mais numeroso, porém ocupando a cidade de
forma mais dispersa - conforme avaliado pelo próprio autor -, dificultando a observação de um bairro
especificamente como tal.
O cenário dos oito compartimentos para uma cidade de quase um milhão de habitantes forma um
mosaico geográfico que se sobrepõe a uma malha urbana significativamente maior que aquela que se
visualiza em cartografia de São Paulo para 1929. Nesta época, conforme figura 4 a seguir, São Paulo
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contava com loteamentos formais (e considerados pela cartografia do município) distantes do centro
superiores a 20 quilômetros e também sobre municípios vizinhos. A se considerar a possibilidade de
ocupações irregulares ou clandestinas ou minimamente não informadas pela cartografia oficial, essa
grande mancha é ainda mais significativa se comparada ao grande mundo descrito por Guilherme de
Almeida.
Aos olhos do autor, a diversidade estaria no indivíduo morador de uma metrópole, mas integrante de
uma grande sociedade pretensamente homogênea. Ao descrever um de seus oito compartimentos
“estrangeiros” de São Paulo, em 1929, diz: “amigos ou inimigos ou indiferentes todos. Todos.
Entretanto, que harmonia, e que equilíbrio e que igualdade! O grande milagre do trabalho. Harmonia,
equilíbrio e igualdade feitos de diferenças” (2004b: 14).
O contexto urbano vivenciado seria o da busca e explicitação da modernidade, ao modo já ocorrido,
por exemplo, em Paris em meados do século XIX. Ainda sob o impacto das obras implementadas por
Antônio Prado (último de seus quatro mandatos, em 1911) e considerado um Haussmann paulistano
(Santos, 2012), Guilherme de Almeida identificaria uma metrópole em formação e em transformação,
tal qual um cosmopolitismo à paulista (ibid.), recém-saída de um longo período de escravidão e
economia agrária.
Para a identificação dos oito compartimentos estrangeiros apresentados em Cosmópolis procedeu-se
a uma seleção e posterior inserção em mapa de menções com maior aderência à ocupação e uso do
espaço urbano, conforme apresentado no quadro 1. Anteriormente a esse quadro, para guia-lo na
leitura, tem-se a figura 4.
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Figura 4: Os compartimentos estrangeiros de Cosmópolis.
Fonte: os autores, a partir da obra Cosmópolis.
Quadro 1: Compartimentos estrangeiros e citações descritivas
Compartimento Citações
Húngaro “Rosa-dos-ventos. Alto da Mooca. É aqui em cima que moram todos os ventos de São Paulo. Rua do Oratório: que não é rua e não tem nenhum oratório. Uma subida alongada, cansada, arrastada. Vai, não vai [...]. O bairro húngaro de São Paulo (p.13).
Japonês
“Uma corrida rente aos paredões antigos da Rua da Glória. Uma esquina, dobrada à esquerda. Outra, derrapada à direita [...] Japão” (p. 20).
“Um avanço mais pela Rua Conselheiro Furtado: e a Rua Conde de Sarzelas rasga, sobre os telhados pretos, velhos, tristíssimos, da Rua da Boa Morte, lá embaixo, o se corte íngreme e reto” (p. 20).
“Aqui, onde começa e acaba o Japão. Começa e acaba de repente, porque é pequeno, pequenininho este Japão: e assim são todos os japões possíveis. Concentração absoluta: Rua Conde de Sarzedas, toda de casas sem fisionomia, como as caras da multidão” (p.20).
Alemão “Rua Vitória, da Rua dos Gusmões, de todas as travessas da Rua Santa Efigênia [...]. É o bairro rasteiro dos bares. É o bairro dos pianos. É o bairro alemão. É o bairro do chope” (p.26/27).
Judeu
“[...] Rua José Paulina. Baixa, comprida e cheia” (p.31).
“[...] povo de Israel, correndo entre as alas de casas da Rua José Paulino, como antigamente entre as muralhas da água miraculada do Mar Vermelho. [...]. A judia alva explica: esse é um convite para um baile da colônia israelita; aquele, para uma reunião de alfaiates numa cooperativa, à Rua Amazonas [...]” (p.32).
“A Rua Sólon não existe, naquele momento do dia: naquele momento do dia, ela é apenas um amontoado de auto-ônibus ‘Bom Retiro’. Rua Barra do Tibagi. O auto tem que parar, atolado no que a enchente do Tietê andou fazendo por ali. [...] À direita, a Travessa dos Aimorés... Enquanto vai subindo devagar a Rua Capitão Matarazzo” (p.33).
Báltico “Rua Alvarenga Peixoto [...] A vocação deste nome triste de um brasileiro que fez versos num presídio africano bastou para produzir a tirada lírica desse ‘Noturno da Agência do Correio do Bairro Báltico de São Paulo’ [...]” (p.39).
Espanhol
“Tarde de noroeste na Rua Santa Rosa. Rosa? Cheiro de aniagem e cebola” (p.43).
“É a hora do barbeiro. Fígaro mora ali, na Rua Benjamim de Oliveira [...] Raspa, e a cara freguesa emerge, toda azul, do seu gesto de ópera ... Rua Lucas. As calçadas estão cimentadas de crianças brincando com tranças de cebola [...]” (p.45).
Português “Um riso fino de guizos no ar arrepiado da manhazinha.
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Na rua rica, entre palacetes de aventais brancos no portão, vai indo, com uma solenidade assustada, o rebanho das cabras. Pardas e malhadas, fincam o casco, bifurcado nas pedras e nos cimentos [...]. Onde moram, quem são eles, os bons cabreiros da manhazinha? Vou num declínio da tarde, pela Rua Correia Dias. A rua é reta, plana e bem calçada. Mas, de repente, quebra-se e descamba numa ladeira brusca e trôpega, de terra estorricada e despenca, de buraco em buraco, até uma estrada transversal, vermelha, calma, repousante, que se chama Rua Jurubatuba. [...]. Desço ao vale, espremido entre o recorte alto de Vila Mariana e o apinhado baixo do Cambuci. Uma frescura serrana. [...] E de onde são vocês? Somos de Bringança [...] Portugal” (p.50).
“Olhei um pouco a velhinha que, de cima da Rua Jurubatuba, acenou para baixo com um ramo verde na mão [..]. Olhei um pouco a velhinha que, de cima da Rua Jurubatuba [....]. Olhei um pouco a rapariga que vinha toando uma cabrita por um atalho vermelho escorrido da Rua Paula Ney” (p.51).
Para árabes e turcos
“A coisa começa ali, naqueles cafés comerciais da Praça Antônio Prado. [...]. Vou pela Rua João Brícola. Aqui, escorrego no lodo preto do asfalto e escorro pela Ladeira Porto Geral, de pedra torta e molhada sob o rha-rha-rha dos bigodes que rodam por ali e dos gramofones que começam a rodar também por ali” (p.55).
“A Rua 25 de Março é um shaker de coquetel que São Paulo bate. Produz só um coquetel: turco. Receita para se fazer um turco: coloca-se no shaker da Rua 25 de Março um sírio, um árabe, um armênio, um persa, um egípcio, um curdo; bate-se tudo muito bem e, pronto! Sai um turco de tudo isso. Para São Paulo, é assim: quem mora ali é turco. Entretanto [...] Rua 25 de Março: o reino da bugiganga” (p.56).
“Vou, sob placas e tabuletas, até o fim da Rua 25 de Março, até o limite extremo do Oriente Mais que Próximo: o túnel do Anhangabaú, a Sublime Porta [...] Ali em cima estão os hotéis orientais e as pensões orientais da Rua Florêncio de Abreu” (p.58).
Fonte: os autores, a partir da obra Cosmópolis.
A divisão social e étnica é claramente identificada por Guilherme de Almeida nesses compartimentos;
atentando para um comportamento social de várias nacionalidades distribuídas em um mesmo espaço
urbano, mas que, simultaneamente, estabelecem um “território” próprio, facilmente identificado,
descrito e delimitado pela leitura espacial de um observador/transeunte. Nesse caso, a literatura
explicita não apenas a formação física do espaço, mas também das variáveis socioeconômicas que ele
abriga. Essa interpretação - nossa - da obra de Guilherme de Almeida é exercitada estrategicamente
com o apoio de Umberto Eco (2005: 46): “o leitor deve suspeitar que cada linha esconde um outro
significado secreto; as palavras [do autor], em vez de dizer, ocultam o não-dito”.
Reintera-se a ideia de que narrativas urbanas são formas de transmissão de experiências e
subjetividades; cidades narradas são cidades produzidas, “montadas”, a partir da vivência e imaginação
incutidas por um escritor e, posteriormente, pelos caminhos de interpretação e análise previlegiados
por um leitor. Com isso, de um lado, tem-se a liberdade autoral e justificativas que explicam atributos e
entendimentos adotados, de outro, tem-se o objetivo da leitura.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo iniciou com o pressuposto de que a cidade rejeita conceitos generalizantes e não permite
sínteses a partir de seus fractais. Estabeleceu uma discussão sobre o urbano a partir de provocações
identificadas na figura e obra de Guilherme de Almeida, buscando responder ao seu objetivo: tomar a
literatura como fonte de discussão para o urbano, não necessariamente pelo atributo literário da obra,
mas tão somente por informações sobre a cidade que ela possa conter.
O objetivo principal desta discussão foi o de exercitar os potenciais que se acreditam existir na
aproximação interdisciplinar entre os campos de estudo do urbanismo e da literatura. Reconhece-se
que a pesquisa literária tem na cidade um de seus instrumentos de investigação; o contrário, o
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urbanismo buscar na literatura sua fonte ou estratégia de debate, no entanto, é pouco usual. O artigo
também contou com o pressuposto de que a interpretação do espaço urbano no mundo literário tem
suas bases nas construções analíticas de quem o escreve e, posteriormente, de quem o lê. A
experiência e a prática do espaço da cidade pelo autor e pelo leitor são fundamentais para a construção
e a transferência da ideia por meio da narrativa.
A metrópole que cresce, que assusta e que atrai está presente em Cosmópolis; a opção primeira de
Guilherme de Almeida, todavia, é de júbilo e celebração da vida urbana. Anuncia aquilo que mais tarde
resumiria no seu claro otimismo em poema encomendado para o dia da inauguração de Brasília, em
1960: “Agora e aqui é a Encruzilhada Tempo-Espaço; Caminho que vem do Passado e vai ao Futuro”
(Almeida, 1960, Prece Natalícia à Brasília).
A leitura de Cosmópolis, o que poderia também ser encontrado em Pela Cidade, confirma o uso de
visões fractais na descrição do complexo urbano, deixando a ser discutida a mirada que se adota nesta
parcialidade, a prioridade analítica praticada para fracassadamente estabelecer uma síntese. Há
também, no texto analisado, um desejo de universalidade das ideias, prática comum nas relações
sociais e políticas, assim como especificamente na prática urbanística. Modelos de um urbanismo ou
gestão urbana moderna, que sugiram inserção em economia internacional, mais comumente
eurocêntrica, estão presentes no modo como nossas cidades são pensadas desde o início do processo
de urbanização brasileiro. O mosaico de etnias descrito por Guilherme de Almeida é homogêneo em
um aspecto, o trabalho, conforme por ele mesmo atestado, e pela apropriação que fazem de espaços,
das infraestruturas urbanas ou dos serviços públicos, acreditamos nós. Nas passagens acima, há uma
dicotomia residual entre o mais e o menos urbano (como no caso dos portugueses descritos por uma
ruralidade meio à metrópole). Há também uma dicotomia entre o centro e os bairros, sendo o primeiro
já consolidado e ocupado pelos nativos paulistanos e o segundo por estrangeiros. Estão ausentes, no
entanto, as dicotomias que se julgam mais importantes no debate sobre a apropriação de uma cidade:
de renda, de qualidade de vida urbana, de oferta de serviços e de infraestruturas.
A inserção do autor no fenômeno urbano por ele descrito reduz sua perspectiva analítica. De falto, falta
a Guilherme de Almeida o necessário distanciamento analítico, temporal e geográfico, atributos que
devem ser considerados nas suas escolhas analíticas.
A grande disponibilidade de informações e publicações sobre o autor e cidadão Guilherme de Almeida
potencializa a intenção que se estabeleceu neste artigo: o uso da literatura como fonte para o estudo
do urbano, complementando aquelas tradicionalmente utilizadas. Ainda que o objetivo do jornalismo
literário de Guilherme de Almeida seja distinto daquele que aqui se tem, tais informações e publicações
nos levam - à revelia do autor - a questões importantes sobre processos urbanos. Real, ficcional ou
sabidamente fractal, Cosmópolis instiga dúvidas sobre a cidade e retrata cenários com os quais
compartilhamos ou rejeitamos ao serem idealizados, geridos, apropriados, abandonados e
transformados.
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REFERÊNCIAS
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