pão e padarias: são paulo, cidade moderna:...
TRANSCRIPT
XV SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO
A Cidade, o Urbano, o Humano Rio de Janeiro, 18 a 21 de setembro de 2018
Pão e padarias: São Paulo, cidade moderna:
1890/1930
Paisagem Cultural e Patrimônio
Ana Lucia Duarte Lanna
Professora Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
Universidade de São Paulo
RESUMO
Pretende-se colocar em relação as transformações nas práticas alimentares e vida urbana de forma a
compreender a formação da cidade moderna. O estudo está focado na produção e comercialização
do pão na cidade de São Paulo em inicio do século XX. As conexões entre vida urbana e presenças
estrangeiras são decisivas para a análise proposta.
Propõe-se uma reflexão sobre aspectos relacionados à produção e consumo do pão que explicita e
concretiza muitas das transformações da cidade. Seja no que se come, no como se convive ou como
se constituem disputas sociais. Elaborar esta análise a partir do pão e seus lugares de produção e
consumo permitiu reconhecer as diferenças e especificidades de múltiplos grupos sociais e suas
interfaces entorno de um item alimentar essencial para todos.
palavras chave: cidade,mercantilização e memória, pão
Bread and bakeries: São Paulo, modern city: 1890/1930
Abstract
This article propose to relate the transformations in food practices and urban life in order to
understand the formation of the modern city. The study is focused on the production and marketing of
bread in the city of São Paulo in the early 20th century. The connections between urban life and
foreign presences are decisive for the proposed analysis.
It is proposed a reflection on aspects related to the production and consumption of bread that explains
and concretizes many of the transformations of the city. Whether it is what you eat, how you live
2
together, or how social disputes arise. Elaborating this analysis from the bread and its places of
production and consumption allowed to recognize the differences and specificities of multiples allowed
to recognize the differences and specificities of multiple social groups and their interfaces surrounding
an essential food item for all.
Key words: city, merchandasing and memory, bread
3
4
Pão e padarias: São Paulo, cidade moderna: 1890/1930
Dos viajantes e naturalistas que percorreram o Brasil aos estudos e ensaios sobre a sociedade
brasileira são recorrentes os registros de que até finais do século XIX praticava-se uma dieta
alimentar pouco variada tendo como principais ingredientes o feijão, a farinha (de mandioca ou o
milho) e a carne, de porco, boi ou galinha. A cidade de Sao Paulo não se diferenciava deste padrão
alimentar e sua expansão ao longo do século XIX não alterou substancialmente este regime
alimentar.
A expansão urbana decorrente da chegada de milhares de imigrantes e a crescente mercantilização
da produção de alimentos contribuíram para mudança destes padrões de alimentação. Mudanças
marcadas por novos ítens alimentares, por novas formas de comer e por uma ampliação das
diferenças sociais expressas no que e no como se comia. Especificamente, ao que interessa neste
texto, novas formas de produzir e comer um alimento que se constituirá central para todos os grupos
sociais: o pão de trigo. Este pão foi nomeado de pão francês denotando uma pluralidade de
significados que iam desde sua novidade como item alimentar até a filiação dos que o ingeriam ao
mundo civilizado.
O crescimento vertiginoso de São Paulo, seja no seu centro aburguesado seja nos diversos bairros
traduziu-se no aparecimento de centenas, talvez milhares, de novos e diversos estabelecimentos
comerciais e fabris criados, de forma mais ou menos permanente: fábricas, importadores e
exportadores, prestadores de serviços. Não se trata apenas de dimensão quantitativa ou da
introdução de novos alimentos, mas também de como esta expansão urbana introduz novas práticas
e formas de viver, dentre as quais incluíam-se as formas de comer: mercados, armazéns,
confeitarias, leiterias e padarias dentre muitos outras.
As mudanças na cidade traduziam-se em novos e variados lugares de abastecimento, numa
mercantilização dos alimentos, numa variedade dos itens disponíveis e num crescente controle do
Estado sobre o que se vendia e como se comia. Marisa Midori mostra que
“os ramos que contribuíram em maior número e com maiores quantias(para o crescimento do
comércio), entre os anos de 1905 e 1925, foram aqueles ligados à alimentação, como no caso dos
mercadores de gêneros alimentícios em grosso e no varejo, dos botequins, restaurantes, açougues, etc1
A expansão urbana decorrente da chegada de milhares de imigrantes e a crescente mercantilização
da produção de alimentos foram decisivas para a mudança dos padrões de alimentação. Mudanças
marcadas por novos ítens alimentares, por novas formas de comer e por uma ampliação das
diferenças sociais expressas no que e no como se comia. Especificamente, no que nos interessa,
novas formas de produzir e comer um alimento central para todos: o pão.
Os estrangeiros que chegaram em São Paulo, mudando de forma radical as diversas dimensões da
vida urbana eram originários sobretudo da Itália e de Portugal.
1 Marisa Midori Daecto. Comércio e vida urbana na cidade de São Paulo (1889-1930) São Paulo, SENAC, 2002
p123
5
IMIGRAÇÃO ESTADO DE SÃO PAULO
nacionalidade 1890/1909 1910/1929 total no periodo
portugueses 116.108 246.048 362.156
italianos 604.877 180.612 785.489
espanhois 175.518 199.140 374.658
japoneses 825 84.278 85.103
Fonte: Secretaria da Agricultura Sao Paulo
Foram também expressivas as presenças de alemães e sírios libaneses. Na expansão das padarias
foram também portugueses e italianos os grupos majoritários seja entre os proprietários seja entre os
empregados. Nos países de origem destes imigrantes a cultura alimentar incluía o consumo cotidiano
do pão, quase nunca de trigo.
Os italianos que se estabeleceram na cidade de Sao Paulo, sobretudo a partir dos primeiros anos do
século XX tinham por origem principalmente as regiões meridionais do país. Foram cerca de 70.000
calabreses a maioria dos quais(cerca de 45.000) chegados entre 1892 e 1901, permanecendo na
cidade de São Paulo2.
O processo migratório significou uma profunda transformação no que e no como se comia, seja para
os que chegavam seja para os nativos. Os imigrantes italianos sofreram uma primeira grande
transformação em seus hábitos alimentares já durante a travessia atlântica. O consumo cotidiano de
carne nos navios, independente da qualidade ou quantidade da mesma, indicava, como afirma P.
Bevilacqua, a radicalidade da experiência migratória. No tempo de espera da travessia os contatos
com os outros eram transformadores. Algum aprendizado da língua da nova terra, a imensidão do
oceano, o reconhecimento de que uns e outros, nas suas diferenças seculares, seriam nomeados
como italianos por aqueles que os receberiam eram indicadores potentes, muitas vezes
ameaçadores, indicando muitos dos sentidos do "fazer a América”. Todos estes contatos e misturas
acentuavam-se ao longo da experiência migratória.
"A origem, o local de partida, as identidades das pessoas que viajam são reconhecíveis naquilo que
comem, em como tratam os alimentos, desde como segurar ou cortar um pão ou uma fruta, pela
forma de mastigar a comida (... ). A linguagem da comida é inconfundível. As práticas alimentares revelam
imediatamente a origem das pessoas, mesmo quando eles querem escondê-la ou disfarçá- la”.3
As novas práticas alimentares expressavam o sucesso e fortuna dos imigrantes que abandonaram o
mundo da penúria alcançando a fartura do ‘pais da cocanha' . Mas também nos informam sobre como
o lugar de acolhimento mobiliza o estrangeiro como indicador de modernidade e mudança.
A comida dos grupos estrangeiros foi em São Paulo, como de resto nos demais países da América,
resultado de muitas trocas e instrumento eficaz de identificação e redescoberta ou invenção de
etnicidade4.
2 Giuseppe Scalise, L’emigrazione dalla Calabria, Istituto di studi storici Gaetano Salvemini, Messina, 2005.
3TETI, Vito. “Emigrazione, alimentazione, culture popolari”. In: BEVILACQUA, Piero [org.]. Storia dell’emigrazione italiana.
Roma: Donzelli, 2001, v.1, p. 589. 4. Cinotto. Una famiglia che mangia insieme: cibo ed etnicità nella comunità italoamericana di New York 1920-
1940Torino, Otto Editore 2001 afirma que a cozinha italiana na América apesar de resistente a mudanças, é, ela
6
“Nos Estados Unidos reconstruíram o que percebiam ser a dieta dos ricos no paese de origem. Através
da transformação da comida de festa em comida cotidiana estes imigrantes italo-americanos
inventaram um modelo étnico de sociabilidade e convivialidade que foi central na definição de sua
identidade coletiva”.5
A fartura alimentar associada à quantidade mais do que a diversidade de itens alimentares foi
elemento recorrente para indicar o sucesso do processo imigratório, seja porque o país de
acolhimento era por si lugar de fartura(terra disponível na cidade e no campo, clima etc) seja por
revelar que o imigrante era trabalhador e sabia aproveitar as oportunidades oferecidas. Neste sentido
a idéia de fartura associa-se a uma idéia positiva do trabalho.
Em São Paulo podemos reconhecer o encontro entre diversas “comidas italianas” e,
simultaneamente, destas com a comida “brasileira”6. As mudanças na alimentação resultam no
escambo, trocas, com outras culturas alimentares e através da mesma cozinha entre a “classe alta”e
a “classe baixa”.
Os italianos introduziram aqui um comida que nunca foi de fato aquela do seu cotidiano.
Assumem como culinária típica um modelo de dieta ao qual não tinham acesso na Itália, que
figurava apenas nos sonhos e fantasias das classes camponesas, sendo reservada a ocasiões
especiais. Os italianos encontram, na comida, uma forma de vivenciar a riqueza reservada, em
sua terra na tal, aos donos de terras, mercadores e membros do clérigo. A imigração para a
América possibilita aos camponeses uma aproximação ao modelo de luxo italiano personificada pela
comida…As sim, passam a figurar na mesa do italiano pratos como os antipasti, o ragú de carne, as
almôndegas, as braciole, trazendo a comida antes consumida apenas nos dias de festa para a mesa do
cotidiano. Ao migrarem para a América, as cozinheiras italianas reinterpretaram as comidas dos dias
de festa e, numa expressão da abundância da nova vida na América, fazem destes pratos uma
parte constante da mesa de domingo.7
Em São Paulo a comida dos dias de semana mantinha itens da dieta camponesa, consistindo de sopas, pasta e
saladas, mas agora acrescidos de carne e o pão de trigo”.8 Simultaneamente os nacionais passaram a
frequentar o mercado de verduras, a comer embutidos, pastas variadas e novos tipos de pão até
então ausentes do regime alimentar paulistano. Esta mistura configurou em São Paulo uma dieta
alimentar ao longo do século XX que incluía carne, massas e verduras. Dieta esta inexistente seja
nas regiões originárias dos imigrantes, seja no Brasil. A mistura colocou a todos em uma situação de
novos hábitos alimentares. Para os italianos foi a base da invenção de uma a comida
nacional,verdadeiramente inexistente na sua origem migratória.
mesma uma inédita mistura de ingredientes e modos de preparação regional. Todavia esta cozinha era distintiva e graças à estrutura da comunidade italiana vista como uma forma de resistência à americanização. p 340 5 Hasia Diner. Hungering for America. Italian, Irish, and Jewish Foodways in the Age of Migration. Harvard Press,
2009 6 são frequentes os relatos de imigrantes dizendo que apenas aqui conheceram comidas de outras regiões
italianas. a imprensa ainda hoje noticia que a comida italiana em São Paulo não existe na Itália ."Sardella no couvert, rondelli de prato principal e bife à parmegiana de acompanhamento. Por aqui, essa parece uma refeição típica de cantina, mas muitos italianos se assustariam, já que nenhum desses pratos existem dessa maneira na Itália. São diversas as receitas atribuídas ao "país da bota" que, na verdade, foram inventadas ou adaptadas no Brasil.... De acordo com Gerardo Landulfo, delegado da Accademia Italiana della Cucina, organização com sede em Milão, dois dos pratos comumente atribuídos à Itália são totalmente brasileiros. "O filé a parmegiana com arroz e fritas foi todo criado aqui. Outros pratos podem ter uma diferença ou outra, mas nada é tão chocante como essa composição", afirmou à ANSA https://comidasebebidas.uol.com.br/noticias/ansa/2017/06/27/conheca-7-comidas-italianas-que-so-existem-no-brasil.htm acessado em 12/02/2018 7 Jane Zielgeman Jane. 97 Orchard: An edible history of five immigrant families in one New York tenement. New
York: Harper Collins, 2010, p. 197. Luce Giard, “quando alguém é forçado ao exílio pela conjuntura política ou pela situação econômica, o que subsiste por mais tempo como referência à cultura de origem é a comida, se não para a refeição cotidiana, pelo menos para os dias de festa. É uma maneira de mostrar a pertença a outro solo” “Cozinhar”. In: CERTEAU, Michel de et al [org.]. A invenção do cotidiano, v. 2: morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 250. 8 Nina Giglio Relatório de Iniciação Científica, FAUUSP 2013
7
A forma de preparo das comidas também se transformou. O pão item essencial da dieta alimentar
dos imigrantes portugueses e italianos transformou-se no processo migratório em pão de trigo. Comer
pão de trigo cotidianamente fez parte das mudanças que sinalizavam novos tempos e o sucesso do
ato migratório. Em menos de duas décadas comer pão de trigo transformou-se em "direito” e sua
ausência era capaz de mobilizar greves e revoltas.
No momento de sua criação as padarias eram alguns dentre outros estabelecimentos comerciais
pertencentes a estrangeiros. Transformaram-se em padarias, étnicas, sobretudo italianas, a partir dos
anos 1970 quando procuravam para si este distintivo como forma de revitalização e inserção numa
leitura turística , associada às questões de patrimônio cultural, da cidade de Sao Paulo. A partir dos
anos 1970 existiu um esforço articulado de grupos de moradores e poderes públicos municipais em
recuperar, na perspectiva de uma invenção das tradições, a ideia de bairros e comidas étnicos.
S Cinotto afirma que comida ou cozinha étnica não significa a reprodução de uma “cultura originária”.
Se a cozinha italiana na America era resistente a mudanças, ela era também uma inédita mistura de
ingredientes e modos de preparação regional. Estudando os italianos no East Harlem em Nova York
dos anos 1920/1930 nos mostra que a cultura alimentar dos italoamericanos não era um
inerte legado de um passado rural. Não se constituía em uma tradição preservada com sucesso, mas
em uma tradição criada e mobilizada como parte de estratégias simbólicas de socialização e disciplina,
(expressando) necessidades de mudança no presente que ocorreram tanto no interior quanto no
exterior da família emigrada9.
Os imigrantes italianos, sobretudo os camponeses, encontraram na comida um código preferencial
para articular sua complexa identidade- camponeses, meridionais, setentrionais e italianos e
comunicarem aos outros o que eram e ao que aspiravam ser… A disponibilidade de ingredientes
desconhecidos na Itália assim como a forma de prepará-los e em particular a interação com italianos
de outras regiões, irrealizável na Itália, mas norma de vida cotidiana no estrangeiro, favoreceram a
hibridização culinária em um único modelo nacional imigrante. Na América, pela mistura, criou-se o
que chamamos da cozinha tradicional italiana.
O que hoje nomeamos como padarias italianas em São Paulo são estabelecimentos comerciais que
integram este processo. O pão que produzem está investido de história e ancestralidade. No
momento em que estas padarias foram abertas como negócio de panificação nenhum dos
proprietários tinha formação ou prática profissional relacionada aos diversos negócios do pão. Ao
chegarem em São Paulo transformaram um saber cotidiano em negócio. Uma parte expressiva da
população emigrante das regiões do sul da Itália, fossem trabalhadores ou pequenos proprietários,
tinham origem em regiões marcadas por uma rede de pequenos núcleos urbanos que constituíam
uma sociedade agrária. Estes trabalhadores, proprietários ou não, desenvolveram um conjunto de
saberes fundamentais para a sobrevivência. Foram estes os italianos que chegando às cidades
brasileiras se transformaram em alfaiates, sapateiros, costureiras, padeiros, etc. Enfim, aqueles que
ocuparam as cidades com suas "artes e ofícios". Desta forma os "artesãos" que povoaram nossas
cidades distanciavam-se enormemente de uma tradição artesanal fundada no ensinamento e na
prática ligada à transmissão de saberes específicos, regidos por normas e processos de aprendizado
escolarizado. Ao contrário, tratavam-se de saberes ligados à sobrevivência e que eram realizados no
âmbito da casa. Foi o processo migratório que transformou estes saberes em possibilidades
autônomas de sobrevivência. Padarias de italianos e portugueses estavam presentes em toda a
cidade mas não foram necessariamente, ao longo das duas primeiras décadas do século XX,
associadas a uma marca de comida étnica. Aparentemente o sucesso, falência ou permanência
destes estabelecimentos comerciais não estava, pelo menos diretamente, associado à origem étnica
9 Cinotto op.cit. p. 117
8
seja dos proprietários, seja dos produtos, seja dos consumidores. Muitas delas transformaram-se em
confeitarias….outras faliram….ou permaneceram como pequenos estabelecimentos…houve uma
pluralidade de caminhos.
Assim o que se produzia nas padarias não estava exclusivamente ligado a uma cultura originária. A
evocação de uma etnicidade como identidade de diferenciação positiva é posterior ao período da
grande leva de imigrantes nas décadas iniciais do século XX. Apenas quando os estrangeiros
dissolveram-se identitariamente nas práticas e espaços da cidade foi possível e desejável constituir
uma tradição alimentar que valorizasse suas origens étnicas.
MUDANÇAS NA CIDADE: O QUE E ONDE COMER
O crescimento das cidades a partir dos finais do século XIX implicou na constituição de toda uma
rede de serviços. Em São Paulo, fosse no seu centro aburguesado fosse nos diversos bairros que
cresciam em ritmo espetacular eram centenas os novos e diversos estabelecimentos criados, de
forma mais ou menos permanente. Não se tratava apenas de dimensão quantitativa mas de como
esta expansão se fazia com novas práticas e formas de viver, nas quais incluíam-se as formas de
comer.
Cada vez mais, todos- independente de sua posição social, compravam os ingredientes da comida,
que tinham se transformado, em sua quase totalidade, em mercadoria. Os moradores da cidade
abasteciam-se nos mercados localizados na Avenida São João e no Mercado da Rua 25 de março.
Além desses mercados, novos equipamentos urbanos relacionados à comida encontravam-se
espalhados pela cidade.
Confeitarias, casas de chá e restaurantes vão configurar o espaço urbano junto a armazéns e
vendas. Estes pequenos estabelecimentos, localizados em geral na frente das milhares de novas
casas construídas a cada ano, cresciam, tal qual a cidade, em velocidade vertiginosa. Eram, a cada
ano, registrados às centenas, marcando sua presença em toda a cidade. Vendedores ambulantes
que percorriam a cidade a pé ou nas carrocinhas puxadas, em geral, a cavalo podiam estar ou não
vinculados a estes estabelecimentos comerciais. Também apareceram os grandes empreendimentos,
como a Fundição Brás10
, que vendiam insumos assim como os muitos importadores de produtos
alimentares em grande escala. Era uma multiplicidade de formas de comprar e vender, todas
indicando a mercantilização da vida cotidiana.
A cidade fabrica um novo comedor, reduzido ao estatuto de consumidor, muito distante das fontes de
aprovisionamento.O consumidor urbano desestabilizado, separado do campo, não sabe mais o que ele
come e não come mais as mesmas coisas:a economia urbana cria um novo tipo de consumo.11
Em paralelo à ampliação das práticas mercantis ligadas à alimentação ocorria uma crescente
diversificação do que se comia. O trigo foi um item essencial nas transformações em curso. Essencial
pela novidade e pela variedade de alimentos com ele preparados. As pastas e o pão branco,
nomeado pão francês, foram os ítens mais rapidamente popularizados.
A partir do último quartel do século XIX começaram a ser registradas a existência de pequenas
fábricas de massas, localizadas em geral junto às casas de seus proprietários. Para atender às novas
demandas da população, em permanente expansão, era necessário dispor de farinha de trigo e
muitos italianos se dedicaram à sua importação, bem como de outros gêneros alimentícios. Ante essa
oportunidade, Egidio Pinotti Gamba e os irmãos Puglisi Carbone, bem como Nicola Scarpa,
10
fundada em 1892 por F Amaro produzia desde grandes equipamentos para ferrovias e fazendas de café como
cilindros para as máquinas das padarias 11
Madeleine Ferrières. Histoire des peurs alimentaires. Paris, Ed Seuil, 2007 p. 69.
9
Alessandro Siciliano e Rodolfo Crespi, além de Francesco Matarazzo se envolveram com a
importação de alimentos ou sua fabricação. Os moinhos Matarazzo e Gamba, localizados nos bairros
do Brás e Mooca, eram os maiores produtores de farinha de trigo e as dimensões de seus negócios
relacionados à panificação indicavam claramente a importância do consumo de trigo na cidade de
São Paulo. O trigo materializado na presença industrial dos grandes moinhos dava visibilidade ao
sucesso de imigrantes italianos. Esses mesmos moinhos também davam concretude às enormes
distâncias sociais, econômicas e políticas existentes entre os milhares de estrangeiros que
construíram a cidade.
Neste processo apareceram novos lugares destinados ao consumo alimentar. Mais ou menos
sofisticados confeitarias, casas de chá e restaurantes passaram a integrar a paisagem urbana. Estes
novos lugares de sociabilidade, relacionados à comida a ao ato de “comer fora de casa”
conformavam uma experiência e eram a expressão de um novo modo de vida que se desejava
cosmopolita e moderno. Esses estabelecimentos comerciais localizavam-se, em geral, em lugares da
cidade onde estavam sendo empreendidos os chamados “melhoramentos urbanos”12
. Sentados à
mesa dos recém inaugurados salões os clientes eram transformados a uma só vez em espectadores
da vida urbana que se descortinava além das vidraças e em atores fundamentais no processo de
transformação de hábitos e costumes13
.
Em geral eram os imigrantes europeus que geriam esses novos espaços. Dentre esses, talvez o mais
célebre tenha sido Daniel Antoine Sousquieres que dirigiu o Grand Hôtel de la Rôtisserie Sportsman, ícone
da modernidade paulistana de então.14
Comer e comprar pão de trigo como dieta cotidiana era uma novidade para todos que habitavam São
Paulo, ricos e pobres, nacionais e estrangeiros. A expansão das padarias, que apareciam por toda a
cidade, sinalizava a importância crescente do consumo do pão, bolos e biscoitos feitos de trigo. Mais
ainda indicava a transformação do alimento em mercadoria e a inserção do país em um mercado
global que introduzia novos itens alimentares, gostos e práticas. Os moradores da cidade,
transformados paulatinamente em consumidores, iam às ruas para comprar produtos que
gradativamente deixavam de ser produzidos em casa15
. Em 1873 “o Almanack Administrativo da
cidade relacionava 12 estabelecimentos que se autodenominavam padarias” dentre eles a ainda hoje
existente Padaria de Santa Tereza16
, Dez anos mais tarde o Almanach da Província de São Paulo
indicava a existência de 05 confeitarias e 30 padarias na capital. Se as confeitarias , naquele
momento, concentravam-se na área central da cidade as padarias espalhavam-se por todas as
regiões da cidade17
.
Consumir ou não pão de trigo, chamado de pão francês, passava a ser, gradativamente , sinal de
prosperidade pessoal e urbana.
As padarias eram fundamentalmente lugar de produção e venda do pão e sobre elas incidiam
severas restrições higiênicas que procuravam normatizar desde a fabricação do pão até as condições
de comercialização. Ao procurarem controlar as condições de produção e comercialização, população
12
Maria Stella Bresciani desenvolveu em inúmeros trabalhos a categoria de melhoramentos urbanos 13
Carlos Eduardo Collet Marino. Ócio, lazer e distincão. Vilegiatura marítima e a invenção do Guarujá 1893-1913.
Dissertação de mestrado- FAUUSP. São Paulo, 2018 14
Heloisa Barbuy. A cidade-exposição. Comércio e cosmopolitismo em São Paulo, 1860-1914. Sao Paulo,
EDUSP, 2006. 15
os registros de obras particulares no Bexiga indicam a existência de fornos nos quintais utilizados para a
preparação das comidas. Seja pela a introdução do fogão industrial e da nova organização das cozinhas e interiores domésticos, seja pelos novos hábitos de consumo que gradativamente alteram a forma de preparação dos alimentos e das refeições estes fornos e as práticas alimentares a eles relacionadas desaparecerão ao longo da primeira metade do século XX. 16
Joana Monteleone. Sabores urbanos p 158 17
N. Perissini Da união à fundação. A história da panificação de São Paulo
10
e autoridades faziam incidir sobre o pão os processos de construção de uma cidade marcada pelos
preceitos higienistas.
Instaladas nos mais diversos tipo de edificações, cresceram de forma expressiva, ao longo dos anos
pesquisados, as exigências técnicas e sanitárias para que o negócio pudesse funcionar. Ao exigirem
melhores condições de ventilação nos lugares de produção, separação de homens e animais no
quintais da cidade que serviam de moradia a ambos ou ainda o controle na forma de exposição e
venda dos produtos os agentes sanitários acabavam por criar condições para que se transformassem
também as condições de trabalho. Toda a prática da cidade higiênica incidia sobre o fazer o pão.
As noções de limpeza e higiene foram rapidamente assumidas como argumento em defesa da
qualidade do pão o que ocasionou mudanças nas padarias que compreendiam desde a introdução
de máquinas até um controle sobre as condições de produção e moradia dos trabalhadores. Assim
como em relação aos cortiços a estrita vigilância não significou o desaparecimento dos problemas
identificados pelas comissões sanitárias. Mas implicou, como veremos para as padarias, na
construção de práticas e motivações que incluíam a legitimidade da questão sanitária e higiênica
dentre seus argumentos.
No processo de associação entre modernidade e industrialização, expressando ambos o que seriam
aspirações e desejos individuais e coletivos, O Correio Paulistano ao visitar a padaria do industrial F.
Lanci localizada na Rua Amazonas, 12 no distrito de Santa Iphigenia informava aos seus leitores que
o estabelecimento chamado Os 3 Abruzzi (antigamente Periquita) correspondia aos novos ideais de
urbanidade. Os anúncios, publicados sistematicamente a partir da visita realizada pelo jornal
,informavam:
Aos 3 Abruzzi Grande Fabrica de macarrão, bolacha e padaria. Esta casa possui máquinas perfeitas,
trabalha diariamente 100 sacos de farinha das melhores marcas existentes na praça. Tem sempre um
variado estoque de sortimento de macarrão especializando no de semolina com ovos18
.
A introdução de processos mecânicos para a fabricação dos pães foi estimulada e associada aos
processos higiênicos. Os que comprassem os equipamentos teriam isenção de impostos por 5 anos.
Equipamentos mecânicos, como as amassadeiras industriais, tornaram-se de uso obrigatório em
meados dos anos 1910. Vários artigos afirmavam que o preparo mecânico da massa não alterava o
gosto final do produto. A Padaria e Confeitaria Bijou anunciava que ao usar o sistema mecânico
garantia maior qualidade aos seus produtos sem alterar o paladar19
. Procurava-se associar a
produção de um “pão higiênico” com qualidades relacionadas ao sabor e saúde.
A mecanização do fabrico do pão pode ser acompanhada não só pela legislação, sempre passível de
ser burlada, que a impunha aos estabelecimentos comerciais. Mas, a frequência com que eram
registrados acidentes com amassadeiras mecânicas e cilindros20
resultando em esmagamento ou
perda de dedos dos trabalhadores é claro indicador da rápida introdução destas máquinas nas
diversas padarias da cidade.
A população da cidade também utilizava os preceitos higienistas ao formular suas queixas e
reivindicações contra os estabelecimentos de panificação fosse pela (má) qualidade dos produtos ou
pelas péssimas condições de trabalho.
Os desafios de construção de uma cidade higiênica perpassavam todas as falas: dos médico-
sanitaristas, às autoridades municipais aos donos e trabalhadores de padarias. Em todas elas a
noção de limpeza, ainda que nunca claramente definida, vinha associada a uma prática positiva e
desejável, associada à modernidade. Apesar de ausente nas condições de moradia dos
18
. Era este o estabelecimento que representava as amassadeiras mecanicas Pensotti 19
Publicado no Correio Paulistano diversas vezes ao longo de 1916 o anúncio da Padaria e Confeitaria Bijou
afirmava “esmero na fabricação do pão pelo sistema mecânico. Emprega só farinhas de primeira qualidade, pão de excelente paladar. Também faz bolo para festas. Rua Marechal Deodoro 24”cp 1916 20
em registros diários o jornal O Correio Paulistano informava de acidentes com os cilindros das amassadeiras
onde eram decepados ou esmagados os dedos da mão, em geral da mão direita indicando a forma de manuseio do equipamento. Assim aconteceu com Manuel de Paiva Brito, morador da Rua Marques de Itu 32 que teve os dedos esmagados pelo cilindro de amassar pão, Correio Paulistano 1910 ed 17287
11
trabalhadores e fabrico e comercialização do pão a limpeza será sempre mobilizada para qualificar
positivamente os produtos, os lugares e as pessoas. Para os fiscais sanitários razão de multas e
interdições, para os donos dos comércios atributos de qualidade e modernidade. Vale lembrar toda a
discussão sobre a produção do pão higiênico associado à mecanização da produção que levou em
1913 à já referida obrigatoriedade de uso das amassadeiras pelas padarias.
Entretanto às práticas de produção e consumo do pão nos revelam uma cidade de múltiplos odores
que misturam o limpo e o sujo, a civilização e a natureza(sic). Assim sabemos que nos mesmos
endereços temos padarias com fornos modernos, máquinas de amassar, biscoitos finos e pães
variados assados várias vezes ao dia. Mas também somos informados da existência de cocheiras e
cavalos ao lado dos fornos. Sabemos que o forno que assa o pão também recebe o suor e todos os
odores corporais de padeiros que trabalhando de torso nu reclamam cotidianamente das altas
temperaturas a que são submetidos em suas longas jornadas de trabalho.
Os trabalhadores mobilizavam com frequência os conteúdos dos discursos higienistas para
denunciarem as precárias condições de trabalho às quais estavam submetidos. Procuravam assim
constituir vínculos entre suas reivindicações e as (más) qualidades de um produto alimentar que
integrava a dieta cotidiana de todos. Afirmavam que melhorar suas condições de trabalho deveria ser
entendido como melhorar as condições de vida e alimentação de todos. A Comissão de Higiene,
criada nos anos finais do século XIX, tinha papel fiscalizador em todas as instâncias da vida. O
combate às epidemias implicava controle das casas, dos lugares de trabalho, dos corpos.
Perseguidos e criminalizados pelos fiscais, impedidos de morar em cortiços e porões,
responsabilizados pelas doenças os trabalhadores também mobilizaram estas regras para
negociarem melhores condições de vida e trabalho. Em 4 de outubro de 1918 um empregado de
padaria oferecia uma descrição pormenorizada das suas condições de trabalho, destacando a
ausência dos requisitos higiênicos. A longa entrevista publicada no jornal O Combate sintetiza muitas
das falas das primeiras décadas do século XX. Dizia o trabalhador
falta escrúpulos aos patrões. Arranje um jeito de entrar num ateliê, sem dar na vista, e dir-me-á depois
se fica ou não espantado com o que presenciou. E note que não é só mixórdias que se misturam na
farinha. O asseio, a higiene também são ali coisas nulas. Os amassadores, por exemplo, envergam
aventais nauseabundos que servem para tudo : seja para limpar o rosto e as mãos, seja para pegar as
massas e esfregar os instrumentos de labor. Os forneiros, esses andam às vezes com as mãos
sebentíssimas e no entanto mexem em todo o pão que sai ou entra no forno. Mas o que de mais grave
acontece é isto: a maior parte das padarias, ainda mesmo as de maior luxo, tem seus atelies de
panificação em lugares imundos, onde os insetos de toda a qualidade superabundam
sossegadamente.21
As falas sobre as condições higiênicas, assim como as notícias envolvendo padarias e padeiros e
publicadas cotidianamente nos diversos jornais da capital, revelam a superposição entre locais de
trabalho e moradia assim como indicam jornadas de trabalho muito extensas. Revelam-se os muitos
significados da liberdade do trabalho e da formação das classes trabalhadoras em São Paulo de
finais do século XIX e início do XX. A precariedade e instabilidade do mundo do trabalho livre podem
ser reconhecidas nas dinâmicas apresentadas e nos pequenos fragmentos da vida cotidiana
relatados pelos jornais. "Sangue : um morto e dois feridos”, com este título o Correio Paulistano
noticiava um assassinato ocorrido no Brás em 17 de novembro de 1899. A longa noticia nos informa
sobre o cotidiano dos trabalhadores da Padaria do Bom Peso, situada à rua Caetano Pinto 85-B,
similar a tantos outros, entrevistos nas diversas noticias. O proprietário Antonio Paschoa morava com
sua família no mesmo endereço da padaria. Os pais de sua esposa, Maria Francisca Arusso,
residiam próximo, na mesma rua no número 20. Antonio contratou dois jovens Domingos de 20 anos
e José de 18. Os irmãos Lascalla passaram a morar na padaria pois sua família residia em Santo
21
a entrevista foi realizada no âmbito das disputas e tensões acerca da cobrança ou não de valores diferentes para o pão a ser entregue em domicilio O Combate, 1918 ed 01020
12
Amaro. Exerciam as funções de vendedor e amassador e rapidamente conquistaram a confiança e
simpatia do patrão. Mas a esposa insistia com o marido para que também contratasse, para trabalhar
na padaria, seu irmão Rafael. Antonio resistia aos pedidos porque o cunhado era muito turbulento.
Rapidamente Rafael e José Lascalla se desentenderam. O patrão, vendo as brigas, ameaçou
despedir Rafael que rompeu,imediatamente, as relações com o cunhado e parou de trabalhar na
padaria. Novamente a esposa interviu a favor do irmão e em nome da harmonia familiar Antonio o
convidou para ir à padaria onde ficaram bebendo ele, o cunhado e José para resolverem as disputas
anteriores. Dias depois da suposta reconciliação, José pediu ao patrão para ir à Rua Rangel Pestana
comprar uma corda para seu violão pois queria fazer uma serenata. Antonio autorizou a saída, pois
não havia dia ou período de descanso regulamentado e a jornada de trabalho era mais ampla que o
horário de funcionamento do comércio. José, seu irmão Domingos e Luiz, de 8 anos, filho de Antonio
e Maria Francisca, foram comprar a corda do violão. Na volta o menor decidiu parar na casa do avo
Luis, onde residia o tio Rafael. Ai começou a tragédia. Quando o menor entrou na casa do avô,
Domingos e José começaram a serenata, tocando violão e cantando. Subitamente, saíram de dentro
da casa Rafael e seu pai Luis. Rafael agrediu com uma arma José, gritando ”você provoca, agora não
se queixe”. Em seguida foi para cima de Domingos que, apesar de ferido, reagiu se defendo com um
cacete que trazia consigo. O agressor já tinha fugido e o avô foi agredido pela paulada desferida por
Domingos. José, que tinha “boa estatura, cabelos e bigodes ruivos, trajava calça preta, camisa
branca e botinas pretas. Não vestia paletó trazendo amarrado no pescoço um lenço de seda de cor”
jazia morto no chão.22
A ausência de regulamentações dos contratos de trabalho fazia com que muitas das discussões e
pendências fossem resolvidas a partir de brigas e confrontos físicos. A volatilidade dos empregos, as
admissões e demissões feitas sem regulamentação legal, reiteravam a experiência da cidade a partir
da noção de mobilidade. Em 11 de abril de 1916 Antonio Rodrigues Ferreira, morador na Rua
Augusta 429 deixando o emprego que ocupava na Padaria e Confeitaria Siciliana, Rua Lavapés 75 foi
receber os salários correspondentes aos 26 dias trabalhados, à razão de 100$000 mensais. O
proprietário da padaria Gaspar Coelho sob pretexto de que Rodrigues abandonara o emprego sem
prévio aviso, pretendeu descontar 60$000 dos vencimentos a título de multa. Esta fato deu origem a
um conflito tendo Gaspar agredido a cacetadas seu ex-empregado.23
A forma de funcionamento dos estabelecimentos comerciais em São Paulo, incluíndo os de
panificação, associava moradia e trabalho. Estavam, em geral, instalados em lotes de usos múltiplos.
Em 24 de julho de 1898, um domingo a tarde, um incêndio de importante proporção foi percebido pelo
inspetor de quarteirão, o senhor Carmino Fiore que avisou rapidamente aos moradores e aos
bombeiros impedindo que as consequências fossem mais trágicas. Ficamos sabendo que o incêndio
teve início no prédio de no 72 na Rua Carneiro Leão, no Brás. Neste endereço, no mesmo lote,
estavam estabelecidos o senhor Alfredo Fiore com negócio de padaria e Salvador Natelli com
armazém de secos e molhados. Além disso "Os fundos do prédio eram sublocados a diversas
famílias italianas e tinha comunicação com o prédio no 70 daquela rua onde residia João Antonio dos
Santos que tinha ali depósito de perfumaria”.24
Os muitos editais de falência publicados nos jornais da época reiteram a permanente associação
entre moradia e trabalho que caracterizava a ocupação urbana de São Paulo. Através deles podemos
também entrever as precárias condições de produção do pão.
Em 190425
o despacho do Juiz de Direito da segunda vara sobre leilão de bens relativos à falência de
D Barbara Branca Fochon informava que os bens localizavam-se no bairro de Pinheiros e eram
22
O Correio Paulistano1899 ed13006 23
O Correio Paulistano 11/04/1916. Importante notar que a multa e aviso prévio foi uma deliberação do patrão e
não uma regulamentacão de legislação trabalhista 24
O Correio Paulistano 1898 edição 12570 25
Correio Paulistano 19/9/1904 ed 14745
13
integrados por terreno com sobrado e pequena casa medindo a propriedade 28metros de frente e 88
de fundos sendo o fundo pontudo. O sobrado de dois lances tem uma porta e 4 janelas no térreo e no
superior 4 janelas e as dependências de forno de padaria, barracão, cocheira tudo coberto de telhas
nacionais. confronta com os terrenos de Pedro Christe do Nascimento e Ana Rosa Estevam e nos
fundos Amaro Cavalheiro. Terreno e benfeitorias 9:700$ooo.
Na falência de Manfredo Meyer e sua esposa Elvira de Souza Queiróz Meyer podemos ler a longa
lista de bens espalhados por diversos bairros da cidade ( Rua dos Imigrantes, Rua Anhaia, Rua dos
Italianos, Rua Aimorés, Rua Tenente Pena, Rua Itaboia). Nas dezenas de imóveis listados
reconhecemos habitações coletivas e casinhas que ocupavam os longos lotes. Especificamente na
Rua dos Italianos n. 30 possuíam 7 casas em lote de 8,80m de frente e 50 de fundos. A frente do lote
a construção tinha “duas portas, portão para o quintal tendo uma sala com negócio de padaria, dois
quartos, varanda, um forno para padaria e dependências no valor de 12$ooo”.26
Uma década mais
tarde, no Brás, ocorre o pregão de venda, decorrente de divida hipotecária de João Pujós. O objeto
da ação é
casa assobradada n.98 e respectivo terreno, sita à Rua oriente, freguezia do Brás, com duas portas na
frente e um portão de ferro ao lado medindo 6m de frente por 45m de frente-fundo contendo no andar
assobradado 5 dormitórios varanda e cozinha; no porão que é habitável e destinado à padaria
contem loja com balcão e armação com vidraça, dois quartos e um cômodo onde trabalham na
masseira de pão com um bom forno tendo um grande quintal com dependências tais como: um
grande barracão, w.c. e o tanque confinado 12:500$ooo27
.
Em Santa Efigênia repetia-se o mesmo padrão. Os quintais e fundos de lotes revelavam
complexidade e profusão de usos que incluíam cocheiras, alojamentos de empregados, quartos de
aluguel, casas de negócios, casas de moradia. Se encontramos padarias nos porões, nos fundos e
na frente dos lotes, não as localizamos como atividade de uso exclusivo em um lote.
As padarias eram ainda lugares de referência em uma cidade marcada pela precariedade dos
serviços públicos e de moradia e uma intensa mobilidade da população trabalhadora. Na década de
1880 as notícias e anúncios relacionados às padarias pouco mencionavam sobre os produtos
comercializados mas diziam muito sobre como elas se inseriam na vida da cidade. Assim, sabemos
que na Rua da Vitória, junto à Padaria Gaspar
vende-se uma rapariga prendada para todo o serviço de casa de família, sobre tudo engomar,
acompanhando- a uma filha de 7 anos. Também se vende um rapazinho de 7 anos28.
A escravidão acabou mas o uso dos endereços das padarias para localizar trabalhadores, obter
informações, entregar correspondências permaneceu. Muitos eram os anúncios, como este, que
diziam
Pede-se quem souber onde mora José Rocha do Amaral conhecido também por José
Fernandes natural de Villa Viçosa, frequezia de Sinfões, Portugal, negociante de carne verde
informar à Padaria e Confeitaria do Comércio, Rua Marechal Deodoro 24 São Paulo a
Victorino Rodrigues da Silva.29
A materialidade da cidade expressa na configuração dos seus lotes, suas construções e
equipamentos e formas de uso reafirma esta ocupação em tudo distante do modelo de cidade
burguesa e sua utópica separação de funções. Encontramos uma cidade que em quase todas as
suas práticas superpunha trabalho, moradia e lazer. As evidentes e impactantes mudanças na escala
da cidade concretizavam-se na pluralidade de negócios e empreendimentos ligados a produção e
comercialização do pão assim como nas tensões e disputas sociais a ele relacionados.
26
O Correio Paulistano15/3/1902 ed 13582. o edital é publicado inúmeras vezes 27
O Correio Paulistano 8 julho de 1917 ed 19395 28 O Correio Paulistano 1880 ed 07025 29 O Correio Paulistano1906 ed 15295
14
As sociabilidades reveladas nas portas das padarias, a importância e destaque dados aos
equipamentos e práticas de lazer a elas associados e as brigas e disputas travadas nos seus
espaços revelam uma cidade onde as práticas burguesas da belle époque estavam restritas a muito
poucos. Dimensões distintas e contrastantes constituíam a Sao Paulo moderna mas estavam todas
permeadas pelo consumo do pão.
REFERÊNCIAS
BARBUY, H. A cidade-exposição. Comércio e cosmopolitismo em São Paulo, 1860-1914. Sao
Paulo: EDUSP, 2006.
BRESCIANI, M. Stella(org) Palavras da cidade. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2001.
CINOTTO, S.. Una famiglia che mangia insieme: cibo ed etnicità nella comunità italoamericana di
New York 1920-1940. Torino: Otto Editore, 2001.
DAECTO, Marisa Midori. Comércio e vida urbana na cidade de São Paulo (1889-1930) São Paulo:
SENAC, 2002.
DINER, Hasia. Hungering for America. Italian, Irish, and Jewish Foodways in the Age of Migration.
Harvard Press, 2009.
FERRIÈRES, Madeleine. Histoire des peurs alimentaires. Paris: Ed Seuil, 2007.
GIARD, Luce. Cozinhar. in: CERTEAU, Michel de et al [org.]. A invenção do cotidiano, v. 2: morar,
cozinhar. Petrópolis: Vozes, 2008.
GIGLIO, Nina São Paulo, a alimentação através da análise das Pesquisas de Padrão de Vida
.Relatório (Iniciação Científica - FAUUSP, São Paulo, 2012.
MARINO, Carlos Eduardo Collet. Ócio, lazer e distincão. Vilegiatura marítima e a invenção do
Guarujá 1893-1913. Dissertação ( mestrado) - FAUUSP. São Paulo, 2018.
MONTELEONE, Joana. Sabores urbanos, sociabilidade, alimentação e consumo. São Paulo
1828-1910. Dissertação (Mestrado História Social) - FFLCH USP .São Paulo, 2008.
PERISSINI, Nilmara Cristina. Da união à fundação. A história da panificação em São Paulo. São
Jose do Rio Preto: Mundial, 2005 .
SCALISE, Giuseppe. L’emigrazione dalla Calabria. Messina: Istituto di studi storici Gaetano
Salvemini,, 2005.
TETI, Vito. Emigrazione, alimentazione, culture popolari. In: BEVILACQUA, Piero [org.]. Storia dell’emigrazione
italiana. Roma: Donzelli, 2001, v.1, p. 589.
ZIEGELMAN, Jane. 97 Orchard: An edible history of five immigrant families in one New York
tenement. New York: Harper Collins, 2010,
JORNAIS
O Correio Paulistano 1880,1898,1899,1902,1904,1906, 1910, 1916, 1917
O Combate 1918