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XV SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO A Cidade, o Urbano, o Humano Rio de Janeiro, 18 a 21 de setembro de 2018 Pão e padarias: São Paulo, cidade moderna: 1890/1930 Paisagem Cultural e Patrimônio Ana Lucia Duarte Lanna Professora Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Universidade de São Paulo RESUMO Pretende-se colocar em relação as transformações nas práticas alimentares e vida urbana de forma a compreender a formação da cidade moderna. O estudo está focado na produção e comercialização do pão na cidade de São Paulo em inicio do século XX. As conexões entre vida urbana e presenças estrangeiras são decisivas para a análise proposta. Propõe-se uma reflexão sobre aspectos relacionados à produção e consumo do pão que explicita e concretiza muitas das transformações da cidade. Seja no que se come, no como se convive ou como se constituem disputas sociais. Elaborar esta análise a partir do pão e seus lugares de produção e consumo permitiu reconhecer as diferenças e especificidades de múltiplos grupos sociais e suas interfaces entorno de um item alimentar essencial para todos. palavras chave: cidade,mercantilização e memória, pão Bread and bakeries: São Paulo, modern city: 1890/1930 Abstract This article propose to relate the transformations in food practices and urban life in order to understand the formation of the modern city. The study is focused on the production and marketing of bread in the city of São Paulo in the early 20th century. The connections between urban life and foreign presences are decisive for the proposed analysis. It is proposed a reflection on aspects related to the production and consumption of bread that explains and concretizes many of the transformations of the city. Whether it is what you eat, how you live

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XV SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO

A Cidade, o Urbano, o Humano Rio de Janeiro, 18 a 21 de setembro de 2018

Pão e padarias: São Paulo, cidade moderna:

1890/1930

Paisagem Cultural e Patrimônio

Ana Lucia Duarte Lanna

Professora Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

Universidade de São Paulo

RESUMO

Pretende-se colocar em relação as transformações nas práticas alimentares e vida urbana de forma a

compreender a formação da cidade moderna. O estudo está focado na produção e comercialização

do pão na cidade de São Paulo em inicio do século XX. As conexões entre vida urbana e presenças

estrangeiras são decisivas para a análise proposta.

Propõe-se uma reflexão sobre aspectos relacionados à produção e consumo do pão que explicita e

concretiza muitas das transformações da cidade. Seja no que se come, no como se convive ou como

se constituem disputas sociais. Elaborar esta análise a partir do pão e seus lugares de produção e

consumo permitiu reconhecer as diferenças e especificidades de múltiplos grupos sociais e suas

interfaces entorno de um item alimentar essencial para todos.

palavras chave: cidade,mercantilização e memória, pão

Bread and bakeries: São Paulo, modern city: 1890/1930

Abstract

This article propose to relate the transformations in food practices and urban life in order to

understand the formation of the modern city. The study is focused on the production and marketing of

bread in the city of São Paulo in the early 20th century. The connections between urban life and

foreign presences are decisive for the proposed analysis.

It is proposed a reflection on aspects related to the production and consumption of bread that explains

and concretizes many of the transformations of the city. Whether it is what you eat, how you live

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together, or how social disputes arise. Elaborating this analysis from the bread and its places of

production and consumption allowed to recognize the differences and specificities of multiples allowed

to recognize the differences and specificities of multiple social groups and their interfaces surrounding

an essential food item for all.

Key words: city, merchandasing and memory, bread

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Pão e padarias: São Paulo, cidade moderna: 1890/1930

Dos viajantes e naturalistas que percorreram o Brasil aos estudos e ensaios sobre a sociedade

brasileira são recorrentes os registros de que até finais do século XIX praticava-se uma dieta

alimentar pouco variada tendo como principais ingredientes o feijão, a farinha (de mandioca ou o

milho) e a carne, de porco, boi ou galinha. A cidade de Sao Paulo não se diferenciava deste padrão

alimentar e sua expansão ao longo do século XIX não alterou substancialmente este regime

alimentar.

A expansão urbana decorrente da chegada de milhares de imigrantes e a crescente mercantilização

da produção de alimentos contribuíram para mudança destes padrões de alimentação. Mudanças

marcadas por novos ítens alimentares, por novas formas de comer e por uma ampliação das

diferenças sociais expressas no que e no como se comia. Especificamente, ao que interessa neste

texto, novas formas de produzir e comer um alimento que se constituirá central para todos os grupos

sociais: o pão de trigo. Este pão foi nomeado de pão francês denotando uma pluralidade de

significados que iam desde sua novidade como item alimentar até a filiação dos que o ingeriam ao

mundo civilizado.

O crescimento vertiginoso de São Paulo, seja no seu centro aburguesado seja nos diversos bairros

traduziu-se no aparecimento de centenas, talvez milhares, de novos e diversos estabelecimentos

comerciais e fabris criados, de forma mais ou menos permanente: fábricas, importadores e

exportadores, prestadores de serviços. Não se trata apenas de dimensão quantitativa ou da

introdução de novos alimentos, mas também de como esta expansão urbana introduz novas práticas

e formas de viver, dentre as quais incluíam-se as formas de comer: mercados, armazéns,

confeitarias, leiterias e padarias dentre muitos outras.

As mudanças na cidade traduziam-se em novos e variados lugares de abastecimento, numa

mercantilização dos alimentos, numa variedade dos itens disponíveis e num crescente controle do

Estado sobre o que se vendia e como se comia. Marisa Midori mostra que

“os ramos que contribuíram em maior número e com maiores quantias(para o crescimento do

comércio), entre os anos de 1905 e 1925, foram aqueles ligados à alimentação, como no caso dos

mercadores de gêneros alimentícios em grosso e no varejo, dos botequins, restaurantes, açougues, etc1

A expansão urbana decorrente da chegada de milhares de imigrantes e a crescente mercantilização

da produção de alimentos foram decisivas para a mudança dos padrões de alimentação. Mudanças

marcadas por novos ítens alimentares, por novas formas de comer e por uma ampliação das

diferenças sociais expressas no que e no como se comia. Especificamente, no que nos interessa,

novas formas de produzir e comer um alimento central para todos: o pão.

Os estrangeiros que chegaram em São Paulo, mudando de forma radical as diversas dimensões da

vida urbana eram originários sobretudo da Itália e de Portugal.

1 Marisa Midori Daecto. Comércio e vida urbana na cidade de São Paulo (1889-1930) São Paulo, SENAC, 2002

p123

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IMIGRAÇÃO ESTADO DE SÃO PAULO

nacionalidade 1890/1909 1910/1929 total no periodo

portugueses 116.108 246.048 362.156

italianos 604.877 180.612 785.489

espanhois 175.518 199.140 374.658

japoneses 825 84.278 85.103

Fonte: Secretaria da Agricultura Sao Paulo

Foram também expressivas as presenças de alemães e sírios libaneses. Na expansão das padarias

foram também portugueses e italianos os grupos majoritários seja entre os proprietários seja entre os

empregados. Nos países de origem destes imigrantes a cultura alimentar incluía o consumo cotidiano

do pão, quase nunca de trigo.

Os italianos que se estabeleceram na cidade de Sao Paulo, sobretudo a partir dos primeiros anos do

século XX tinham por origem principalmente as regiões meridionais do país. Foram cerca de 70.000

calabreses a maioria dos quais(cerca de 45.000) chegados entre 1892 e 1901, permanecendo na

cidade de São Paulo2.

O processo migratório significou uma profunda transformação no que e no como se comia, seja para

os que chegavam seja para os nativos. Os imigrantes italianos sofreram uma primeira grande

transformação em seus hábitos alimentares já durante a travessia atlântica. O consumo cotidiano de

carne nos navios, independente da qualidade ou quantidade da mesma, indicava, como afirma P.

Bevilacqua, a radicalidade da experiência migratória. No tempo de espera da travessia os contatos

com os outros eram transformadores. Algum aprendizado da língua da nova terra, a imensidão do

oceano, o reconhecimento de que uns e outros, nas suas diferenças seculares, seriam nomeados

como italianos por aqueles que os receberiam eram indicadores potentes, muitas vezes

ameaçadores, indicando muitos dos sentidos do "fazer a América”. Todos estes contatos e misturas

acentuavam-se ao longo da experiência migratória.

"A origem, o local de partida, as identidades das pessoas que viajam são reconhecíveis naquilo que

comem, em como tratam os alimentos, desde como segurar ou cortar um pão ou uma fruta, pela

forma de mastigar a comida (... ). A linguagem da comida é inconfundível. As práticas alimentares revelam

imediatamente a origem das pessoas, mesmo quando eles querem escondê-la ou disfarçá- la”.3

As novas práticas alimentares expressavam o sucesso e fortuna dos imigrantes que abandonaram o

mundo da penúria alcançando a fartura do ‘pais da cocanha' . Mas também nos informam sobre como

o lugar de acolhimento mobiliza o estrangeiro como indicador de modernidade e mudança.

A comida dos grupos estrangeiros foi em São Paulo, como de resto nos demais países da América,

resultado de muitas trocas e instrumento eficaz de identificação e redescoberta ou invenção de

etnicidade4.

2 Giuseppe Scalise, L’emigrazione dalla Calabria, Istituto di studi storici Gaetano Salvemini, Messina, 2005.

3TETI, Vito. “Emigrazione, alimentazione, culture popolari”. In: BEVILACQUA, Piero [org.]. Storia dell’emigrazione italiana.

Roma: Donzelli, 2001, v.1, p. 589. 4. Cinotto. Una famiglia che mangia insieme: cibo ed etnicità nella comunità italoamericana di New York 1920-

1940Torino, Otto Editore 2001 afirma que a cozinha italiana na América apesar de resistente a mudanças, é, ela

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“Nos Estados Unidos reconstruíram o que percebiam ser a dieta dos ricos no paese de origem. Através

da transformação da comida de festa em comida cotidiana estes imigrantes italo-americanos

inventaram um modelo étnico de sociabilidade e convivialidade que foi central na definição de sua

identidade coletiva”.5

A fartura alimentar associada à quantidade mais do que a diversidade de itens alimentares foi

elemento recorrente para indicar o sucesso do processo imigratório, seja porque o país de

acolhimento era por si lugar de fartura(terra disponível na cidade e no campo, clima etc) seja por

revelar que o imigrante era trabalhador e sabia aproveitar as oportunidades oferecidas. Neste sentido

a idéia de fartura associa-se a uma idéia positiva do trabalho.

Em São Paulo podemos reconhecer o encontro entre diversas “comidas italianas” e,

simultaneamente, destas com a comida “brasileira”6. As mudanças na alimentação resultam no

escambo, trocas, com outras culturas alimentares e através da mesma cozinha entre a “classe alta”e

a “classe baixa”.

Os italianos introduziram aqui um comida que nunca foi de fato aquela do seu cotidiano.

Assumem como culinária típica um modelo de dieta ao qual não tinham acesso na Itália, que

figurava apenas nos sonhos e fantasias das classes camponesas, sendo reservada a ocasiões

especiais. Os italianos encontram, na comida, uma forma de vivenciar a riqueza reservada, em

sua terra na tal, aos donos de terras, mercadores e membros do clérigo. A imigração para a

América possibilita aos camponeses uma aproximação ao modelo de luxo italiano personificada pela

comida…As sim, passam a figurar na mesa do italiano pratos como os antipasti, o ragú de carne, as

almôndegas, as braciole, trazendo a comida antes consumida apenas nos dias de festa para a mesa do

cotidiano. Ao migrarem para a América, as cozinheiras italianas reinterpretaram as comidas dos dias

de festa e, numa expressão da abundância da nova vida na América, fazem destes pratos uma

parte constante da mesa de domingo.7

Em São Paulo a comida dos dias de semana mantinha itens da dieta camponesa, consistindo de sopas, pasta e

saladas, mas agora acrescidos de carne e o pão de trigo”.8 Simultaneamente os nacionais passaram a

frequentar o mercado de verduras, a comer embutidos, pastas variadas e novos tipos de pão até

então ausentes do regime alimentar paulistano. Esta mistura configurou em São Paulo uma dieta

alimentar ao longo do século XX que incluía carne, massas e verduras. Dieta esta inexistente seja

nas regiões originárias dos imigrantes, seja no Brasil. A mistura colocou a todos em uma situação de

novos hábitos alimentares. Para os italianos foi a base da invenção de uma a comida

nacional,verdadeiramente inexistente na sua origem migratória.

mesma uma inédita mistura de ingredientes e modos de preparação regional. Todavia esta cozinha era distintiva e graças à estrutura da comunidade italiana vista como uma forma de resistência à americanização. p 340 5 Hasia Diner. Hungering for America. Italian, Irish, and Jewish Foodways in the Age of Migration. Harvard Press,

2009 6 são frequentes os relatos de imigrantes dizendo que apenas aqui conheceram comidas de outras regiões

italianas. a imprensa ainda hoje noticia que a comida italiana em São Paulo não existe na Itália ."Sardella no couvert, rondelli de prato principal e bife à parmegiana de acompanhamento. Por aqui, essa parece uma refeição típica de cantina, mas muitos italianos se assustariam, já que nenhum desses pratos existem dessa maneira na Itália. São diversas as receitas atribuídas ao "país da bota" que, na verdade, foram inventadas ou adaptadas no Brasil.... De acordo com Gerardo Landulfo, delegado da Accademia Italiana della Cucina, organização com sede em Milão, dois dos pratos comumente atribuídos à Itália são totalmente brasileiros. "O filé a parmegiana com arroz e fritas foi todo criado aqui. Outros pratos podem ter uma diferença ou outra, mas nada é tão chocante como essa composição", afirmou à ANSA https://comidasebebidas.uol.com.br/noticias/ansa/2017/06/27/conheca-7-comidas-italianas-que-so-existem-no-brasil.htm acessado em 12/02/2018 7 Jane Zielgeman Jane. 97 Orchard: An edible history of five immigrant families in one New York tenement. New

York: Harper Collins, 2010, p. 197. Luce Giard, “quando alguém é forçado ao exílio pela conjuntura política ou pela situação econômica, o que subsiste por mais tempo como referência à cultura de origem é a comida, se não para a refeição cotidiana, pelo menos para os dias de festa. É uma maneira de mostrar a pertença a outro solo” “Cozinhar”. In: CERTEAU, Michel de et al [org.]. A invenção do cotidiano, v. 2: morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 250. 8 Nina Giglio Relatório de Iniciação Científica, FAUUSP 2013

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A forma de preparo das comidas também se transformou. O pão item essencial da dieta alimentar

dos imigrantes portugueses e italianos transformou-se no processo migratório em pão de trigo. Comer

pão de trigo cotidianamente fez parte das mudanças que sinalizavam novos tempos e o sucesso do

ato migratório. Em menos de duas décadas comer pão de trigo transformou-se em "direito” e sua

ausência era capaz de mobilizar greves e revoltas.

No momento de sua criação as padarias eram alguns dentre outros estabelecimentos comerciais

pertencentes a estrangeiros. Transformaram-se em padarias, étnicas, sobretudo italianas, a partir dos

anos 1970 quando procuravam para si este distintivo como forma de revitalização e inserção numa

leitura turística , associada às questões de patrimônio cultural, da cidade de Sao Paulo. A partir dos

anos 1970 existiu um esforço articulado de grupos de moradores e poderes públicos municipais em

recuperar, na perspectiva de uma invenção das tradições, a ideia de bairros e comidas étnicos.

S Cinotto afirma que comida ou cozinha étnica não significa a reprodução de uma “cultura originária”.

Se a cozinha italiana na America era resistente a mudanças, ela era também uma inédita mistura de

ingredientes e modos de preparação regional. Estudando os italianos no East Harlem em Nova York

dos anos 1920/1930 nos mostra que a cultura alimentar dos italoamericanos não era um

inerte legado de um passado rural. Não se constituía em uma tradição preservada com sucesso, mas

em uma tradição criada e mobilizada como parte de estratégias simbólicas de socialização e disciplina,

(expressando) necessidades de mudança no presente que ocorreram tanto no interior quanto no

exterior da família emigrada9.

Os imigrantes italianos, sobretudo os camponeses, encontraram na comida um código preferencial

para articular sua complexa identidade- camponeses, meridionais, setentrionais e italianos e

comunicarem aos outros o que eram e ao que aspiravam ser… A disponibilidade de ingredientes

desconhecidos na Itália assim como a forma de prepará-los e em particular a interação com italianos

de outras regiões, irrealizável na Itália, mas norma de vida cotidiana no estrangeiro, favoreceram a

hibridização culinária em um único modelo nacional imigrante. Na América, pela mistura, criou-se o

que chamamos da cozinha tradicional italiana.

O que hoje nomeamos como padarias italianas em São Paulo são estabelecimentos comerciais que

integram este processo. O pão que produzem está investido de história e ancestralidade. No

momento em que estas padarias foram abertas como negócio de panificação nenhum dos

proprietários tinha formação ou prática profissional relacionada aos diversos negócios do pão. Ao

chegarem em São Paulo transformaram um saber cotidiano em negócio. Uma parte expressiva da

população emigrante das regiões do sul da Itália, fossem trabalhadores ou pequenos proprietários,

tinham origem em regiões marcadas por uma rede de pequenos núcleos urbanos que constituíam

uma sociedade agrária. Estes trabalhadores, proprietários ou não, desenvolveram um conjunto de

saberes fundamentais para a sobrevivência. Foram estes os italianos que chegando às cidades

brasileiras se transformaram em alfaiates, sapateiros, costureiras, padeiros, etc. Enfim, aqueles que

ocuparam as cidades com suas "artes e ofícios". Desta forma os "artesãos" que povoaram nossas

cidades distanciavam-se enormemente de uma tradição artesanal fundada no ensinamento e na

prática ligada à transmissão de saberes específicos, regidos por normas e processos de aprendizado

escolarizado. Ao contrário, tratavam-se de saberes ligados à sobrevivência e que eram realizados no

âmbito da casa. Foi o processo migratório que transformou estes saberes em possibilidades

autônomas de sobrevivência. Padarias de italianos e portugueses estavam presentes em toda a

cidade mas não foram necessariamente, ao longo das duas primeiras décadas do século XX,

associadas a uma marca de comida étnica. Aparentemente o sucesso, falência ou permanência

destes estabelecimentos comerciais não estava, pelo menos diretamente, associado à origem étnica

9 Cinotto op.cit. p. 117

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seja dos proprietários, seja dos produtos, seja dos consumidores. Muitas delas transformaram-se em

confeitarias….outras faliram….ou permaneceram como pequenos estabelecimentos…houve uma

pluralidade de caminhos.

Assim o que se produzia nas padarias não estava exclusivamente ligado a uma cultura originária. A

evocação de uma etnicidade como identidade de diferenciação positiva é posterior ao período da

grande leva de imigrantes nas décadas iniciais do século XX. Apenas quando os estrangeiros

dissolveram-se identitariamente nas práticas e espaços da cidade foi possível e desejável constituir

uma tradição alimentar que valorizasse suas origens étnicas.

MUDANÇAS NA CIDADE: O QUE E ONDE COMER

O crescimento das cidades a partir dos finais do século XIX implicou na constituição de toda uma

rede de serviços. Em São Paulo, fosse no seu centro aburguesado fosse nos diversos bairros que

cresciam em ritmo espetacular eram centenas os novos e diversos estabelecimentos criados, de

forma mais ou menos permanente. Não se tratava apenas de dimensão quantitativa mas de como

esta expansão se fazia com novas práticas e formas de viver, nas quais incluíam-se as formas de

comer.

Cada vez mais, todos- independente de sua posição social, compravam os ingredientes da comida,

que tinham se transformado, em sua quase totalidade, em mercadoria. Os moradores da cidade

abasteciam-se nos mercados localizados na Avenida São João e no Mercado da Rua 25 de março.

Além desses mercados, novos equipamentos urbanos relacionados à comida encontravam-se

espalhados pela cidade.

Confeitarias, casas de chá e restaurantes vão configurar o espaço urbano junto a armazéns e

vendas. Estes pequenos estabelecimentos, localizados em geral na frente das milhares de novas

casas construídas a cada ano, cresciam, tal qual a cidade, em velocidade vertiginosa. Eram, a cada

ano, registrados às centenas, marcando sua presença em toda a cidade. Vendedores ambulantes

que percorriam a cidade a pé ou nas carrocinhas puxadas, em geral, a cavalo podiam estar ou não

vinculados a estes estabelecimentos comerciais. Também apareceram os grandes empreendimentos,

como a Fundição Brás10

, que vendiam insumos assim como os muitos importadores de produtos

alimentares em grande escala. Era uma multiplicidade de formas de comprar e vender, todas

indicando a mercantilização da vida cotidiana.

A cidade fabrica um novo comedor, reduzido ao estatuto de consumidor, muito distante das fontes de

aprovisionamento.O consumidor urbano desestabilizado, separado do campo, não sabe mais o que ele

come e não come mais as mesmas coisas:a economia urbana cria um novo tipo de consumo.11

Em paralelo à ampliação das práticas mercantis ligadas à alimentação ocorria uma crescente

diversificação do que se comia. O trigo foi um item essencial nas transformações em curso. Essencial

pela novidade e pela variedade de alimentos com ele preparados. As pastas e o pão branco,

nomeado pão francês, foram os ítens mais rapidamente popularizados.

A partir do último quartel do século XIX começaram a ser registradas a existência de pequenas

fábricas de massas, localizadas em geral junto às casas de seus proprietários. Para atender às novas

demandas da população, em permanente expansão, era necessário dispor de farinha de trigo e

muitos italianos se dedicaram à sua importação, bem como de outros gêneros alimentícios. Ante essa

oportunidade, Egidio Pinotti Gamba e os irmãos Puglisi Carbone, bem como Nicola Scarpa,

10

fundada em 1892 por F Amaro produzia desde grandes equipamentos para ferrovias e fazendas de café como

cilindros para as máquinas das padarias 11

Madeleine Ferrières. Histoire des peurs alimentaires. Paris, Ed Seuil, 2007 p. 69.

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Alessandro Siciliano e Rodolfo Crespi, além de Francesco Matarazzo se envolveram com a

importação de alimentos ou sua fabricação. Os moinhos Matarazzo e Gamba, localizados nos bairros

do Brás e Mooca, eram os maiores produtores de farinha de trigo e as dimensões de seus negócios

relacionados à panificação indicavam claramente a importância do consumo de trigo na cidade de

São Paulo. O trigo materializado na presença industrial dos grandes moinhos dava visibilidade ao

sucesso de imigrantes italianos. Esses mesmos moinhos também davam concretude às enormes

distâncias sociais, econômicas e políticas existentes entre os milhares de estrangeiros que

construíram a cidade.

Neste processo apareceram novos lugares destinados ao consumo alimentar. Mais ou menos

sofisticados confeitarias, casas de chá e restaurantes passaram a integrar a paisagem urbana. Estes

novos lugares de sociabilidade, relacionados à comida a ao ato de “comer fora de casa”

conformavam uma experiência e eram a expressão de um novo modo de vida que se desejava

cosmopolita e moderno. Esses estabelecimentos comerciais localizavam-se, em geral, em lugares da

cidade onde estavam sendo empreendidos os chamados “melhoramentos urbanos”12

. Sentados à

mesa dos recém inaugurados salões os clientes eram transformados a uma só vez em espectadores

da vida urbana que se descortinava além das vidraças e em atores fundamentais no processo de

transformação de hábitos e costumes13

.

Em geral eram os imigrantes europeus que geriam esses novos espaços. Dentre esses, talvez o mais

célebre tenha sido Daniel Antoine Sousquieres que dirigiu o Grand Hôtel de la Rôtisserie Sportsman, ícone

da modernidade paulistana de então.14

Comer e comprar pão de trigo como dieta cotidiana era uma novidade para todos que habitavam São

Paulo, ricos e pobres, nacionais e estrangeiros. A expansão das padarias, que apareciam por toda a

cidade, sinalizava a importância crescente do consumo do pão, bolos e biscoitos feitos de trigo. Mais

ainda indicava a transformação do alimento em mercadoria e a inserção do país em um mercado

global que introduzia novos itens alimentares, gostos e práticas. Os moradores da cidade,

transformados paulatinamente em consumidores, iam às ruas para comprar produtos que

gradativamente deixavam de ser produzidos em casa15

. Em 1873 “o Almanack Administrativo da

cidade relacionava 12 estabelecimentos que se autodenominavam padarias” dentre eles a ainda hoje

existente Padaria de Santa Tereza16

, Dez anos mais tarde o Almanach da Província de São Paulo

indicava a existência de 05 confeitarias e 30 padarias na capital. Se as confeitarias , naquele

momento, concentravam-se na área central da cidade as padarias espalhavam-se por todas as

regiões da cidade17

.

Consumir ou não pão de trigo, chamado de pão francês, passava a ser, gradativamente , sinal de

prosperidade pessoal e urbana.

As padarias eram fundamentalmente lugar de produção e venda do pão e sobre elas incidiam

severas restrições higiênicas que procuravam normatizar desde a fabricação do pão até as condições

de comercialização. Ao procurarem controlar as condições de produção e comercialização, população

12

Maria Stella Bresciani desenvolveu em inúmeros trabalhos a categoria de melhoramentos urbanos 13

Carlos Eduardo Collet Marino. Ócio, lazer e distincão. Vilegiatura marítima e a invenção do Guarujá 1893-1913.

Dissertação de mestrado- FAUUSP. São Paulo, 2018 14

Heloisa Barbuy. A cidade-exposição. Comércio e cosmopolitismo em São Paulo, 1860-1914. Sao Paulo,

EDUSP, 2006. 15

os registros de obras particulares no Bexiga indicam a existência de fornos nos quintais utilizados para a

preparação das comidas. Seja pela a introdução do fogão industrial e da nova organização das cozinhas e interiores domésticos, seja pelos novos hábitos de consumo que gradativamente alteram a forma de preparação dos alimentos e das refeições estes fornos e as práticas alimentares a eles relacionadas desaparecerão ao longo da primeira metade do século XX. 16

Joana Monteleone. Sabores urbanos p 158 17

N. Perissini Da união à fundação. A história da panificação de São Paulo

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10

e autoridades faziam incidir sobre o pão os processos de construção de uma cidade marcada pelos

preceitos higienistas.

Instaladas nos mais diversos tipo de edificações, cresceram de forma expressiva, ao longo dos anos

pesquisados, as exigências técnicas e sanitárias para que o negócio pudesse funcionar. Ao exigirem

melhores condições de ventilação nos lugares de produção, separação de homens e animais no

quintais da cidade que serviam de moradia a ambos ou ainda o controle na forma de exposição e

venda dos produtos os agentes sanitários acabavam por criar condições para que se transformassem

também as condições de trabalho. Toda a prática da cidade higiênica incidia sobre o fazer o pão.

As noções de limpeza e higiene foram rapidamente assumidas como argumento em defesa da

qualidade do pão o que ocasionou mudanças nas padarias que compreendiam desde a introdução

de máquinas até um controle sobre as condições de produção e moradia dos trabalhadores. Assim

como em relação aos cortiços a estrita vigilância não significou o desaparecimento dos problemas

identificados pelas comissões sanitárias. Mas implicou, como veremos para as padarias, na

construção de práticas e motivações que incluíam a legitimidade da questão sanitária e higiênica

dentre seus argumentos.

No processo de associação entre modernidade e industrialização, expressando ambos o que seriam

aspirações e desejos individuais e coletivos, O Correio Paulistano ao visitar a padaria do industrial F.

Lanci localizada na Rua Amazonas, 12 no distrito de Santa Iphigenia informava aos seus leitores que

o estabelecimento chamado Os 3 Abruzzi (antigamente Periquita) correspondia aos novos ideais de

urbanidade. Os anúncios, publicados sistematicamente a partir da visita realizada pelo jornal

,informavam:

Aos 3 Abruzzi Grande Fabrica de macarrão, bolacha e padaria. Esta casa possui máquinas perfeitas,

trabalha diariamente 100 sacos de farinha das melhores marcas existentes na praça. Tem sempre um

variado estoque de sortimento de macarrão especializando no de semolina com ovos18

.

A introdução de processos mecânicos para a fabricação dos pães foi estimulada e associada aos

processos higiênicos. Os que comprassem os equipamentos teriam isenção de impostos por 5 anos.

Equipamentos mecânicos, como as amassadeiras industriais, tornaram-se de uso obrigatório em

meados dos anos 1910. Vários artigos afirmavam que o preparo mecânico da massa não alterava o

gosto final do produto. A Padaria e Confeitaria Bijou anunciava que ao usar o sistema mecânico

garantia maior qualidade aos seus produtos sem alterar o paladar19

. Procurava-se associar a

produção de um “pão higiênico” com qualidades relacionadas ao sabor e saúde.

A mecanização do fabrico do pão pode ser acompanhada não só pela legislação, sempre passível de

ser burlada, que a impunha aos estabelecimentos comerciais. Mas, a frequência com que eram

registrados acidentes com amassadeiras mecânicas e cilindros20

resultando em esmagamento ou

perda de dedos dos trabalhadores é claro indicador da rápida introdução destas máquinas nas

diversas padarias da cidade.

A população da cidade também utilizava os preceitos higienistas ao formular suas queixas e

reivindicações contra os estabelecimentos de panificação fosse pela (má) qualidade dos produtos ou

pelas péssimas condições de trabalho.

Os desafios de construção de uma cidade higiênica perpassavam todas as falas: dos médico-

sanitaristas, às autoridades municipais aos donos e trabalhadores de padarias. Em todas elas a

noção de limpeza, ainda que nunca claramente definida, vinha associada a uma prática positiva e

desejável, associada à modernidade. Apesar de ausente nas condições de moradia dos

18

. Era este o estabelecimento que representava as amassadeiras mecanicas Pensotti 19

Publicado no Correio Paulistano diversas vezes ao longo de 1916 o anúncio da Padaria e Confeitaria Bijou

afirmava “esmero na fabricação do pão pelo sistema mecânico. Emprega só farinhas de primeira qualidade, pão de excelente paladar. Também faz bolo para festas. Rua Marechal Deodoro 24”cp 1916 20

em registros diários o jornal O Correio Paulistano informava de acidentes com os cilindros das amassadeiras

onde eram decepados ou esmagados os dedos da mão, em geral da mão direita indicando a forma de manuseio do equipamento. Assim aconteceu com Manuel de Paiva Brito, morador da Rua Marques de Itu 32 que teve os dedos esmagados pelo cilindro de amassar pão, Correio Paulistano 1910 ed 17287

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trabalhadores e fabrico e comercialização do pão a limpeza será sempre mobilizada para qualificar

positivamente os produtos, os lugares e as pessoas. Para os fiscais sanitários razão de multas e

interdições, para os donos dos comércios atributos de qualidade e modernidade. Vale lembrar toda a

discussão sobre a produção do pão higiênico associado à mecanização da produção que levou em

1913 à já referida obrigatoriedade de uso das amassadeiras pelas padarias.

Entretanto às práticas de produção e consumo do pão nos revelam uma cidade de múltiplos odores

que misturam o limpo e o sujo, a civilização e a natureza(sic). Assim sabemos que nos mesmos

endereços temos padarias com fornos modernos, máquinas de amassar, biscoitos finos e pães

variados assados várias vezes ao dia. Mas também somos informados da existência de cocheiras e

cavalos ao lado dos fornos. Sabemos que o forno que assa o pão também recebe o suor e todos os

odores corporais de padeiros que trabalhando de torso nu reclamam cotidianamente das altas

temperaturas a que são submetidos em suas longas jornadas de trabalho.

Os trabalhadores mobilizavam com frequência os conteúdos dos discursos higienistas para

denunciarem as precárias condições de trabalho às quais estavam submetidos. Procuravam assim

constituir vínculos entre suas reivindicações e as (más) qualidades de um produto alimentar que

integrava a dieta cotidiana de todos. Afirmavam que melhorar suas condições de trabalho deveria ser

entendido como melhorar as condições de vida e alimentação de todos. A Comissão de Higiene,

criada nos anos finais do século XIX, tinha papel fiscalizador em todas as instâncias da vida. O

combate às epidemias implicava controle das casas, dos lugares de trabalho, dos corpos.

Perseguidos e criminalizados pelos fiscais, impedidos de morar em cortiços e porões,

responsabilizados pelas doenças os trabalhadores também mobilizaram estas regras para

negociarem melhores condições de vida e trabalho. Em 4 de outubro de 1918 um empregado de

padaria oferecia uma descrição pormenorizada das suas condições de trabalho, destacando a

ausência dos requisitos higiênicos. A longa entrevista publicada no jornal O Combate sintetiza muitas

das falas das primeiras décadas do século XX. Dizia o trabalhador

falta escrúpulos aos patrões. Arranje um jeito de entrar num ateliê, sem dar na vista, e dir-me-á depois

se fica ou não espantado com o que presenciou. E note que não é só mixórdias que se misturam na

farinha. O asseio, a higiene também são ali coisas nulas. Os amassadores, por exemplo, envergam

aventais nauseabundos que servem para tudo : seja para limpar o rosto e as mãos, seja para pegar as

massas e esfregar os instrumentos de labor. Os forneiros, esses andam às vezes com as mãos

sebentíssimas e no entanto mexem em todo o pão que sai ou entra no forno. Mas o que de mais grave

acontece é isto: a maior parte das padarias, ainda mesmo as de maior luxo, tem seus atelies de

panificação em lugares imundos, onde os insetos de toda a qualidade superabundam

sossegadamente.21

As falas sobre as condições higiênicas, assim como as notícias envolvendo padarias e padeiros e

publicadas cotidianamente nos diversos jornais da capital, revelam a superposição entre locais de

trabalho e moradia assim como indicam jornadas de trabalho muito extensas. Revelam-se os muitos

significados da liberdade do trabalho e da formação das classes trabalhadoras em São Paulo de

finais do século XIX e início do XX. A precariedade e instabilidade do mundo do trabalho livre podem

ser reconhecidas nas dinâmicas apresentadas e nos pequenos fragmentos da vida cotidiana

relatados pelos jornais. "Sangue : um morto e dois feridos”, com este título o Correio Paulistano

noticiava um assassinato ocorrido no Brás em 17 de novembro de 1899. A longa noticia nos informa

sobre o cotidiano dos trabalhadores da Padaria do Bom Peso, situada à rua Caetano Pinto 85-B,

similar a tantos outros, entrevistos nas diversas noticias. O proprietário Antonio Paschoa morava com

sua família no mesmo endereço da padaria. Os pais de sua esposa, Maria Francisca Arusso,

residiam próximo, na mesma rua no número 20. Antonio contratou dois jovens Domingos de 20 anos

e José de 18. Os irmãos Lascalla passaram a morar na padaria pois sua família residia em Santo

21

a entrevista foi realizada no âmbito das disputas e tensões acerca da cobrança ou não de valores diferentes para o pão a ser entregue em domicilio O Combate, 1918 ed 01020

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Amaro. Exerciam as funções de vendedor e amassador e rapidamente conquistaram a confiança e

simpatia do patrão. Mas a esposa insistia com o marido para que também contratasse, para trabalhar

na padaria, seu irmão Rafael. Antonio resistia aos pedidos porque o cunhado era muito turbulento.

Rapidamente Rafael e José Lascalla se desentenderam. O patrão, vendo as brigas, ameaçou

despedir Rafael que rompeu,imediatamente, as relações com o cunhado e parou de trabalhar na

padaria. Novamente a esposa interviu a favor do irmão e em nome da harmonia familiar Antonio o

convidou para ir à padaria onde ficaram bebendo ele, o cunhado e José para resolverem as disputas

anteriores. Dias depois da suposta reconciliação, José pediu ao patrão para ir à Rua Rangel Pestana

comprar uma corda para seu violão pois queria fazer uma serenata. Antonio autorizou a saída, pois

não havia dia ou período de descanso regulamentado e a jornada de trabalho era mais ampla que o

horário de funcionamento do comércio. José, seu irmão Domingos e Luiz, de 8 anos, filho de Antonio

e Maria Francisca, foram comprar a corda do violão. Na volta o menor decidiu parar na casa do avo

Luis, onde residia o tio Rafael. Ai começou a tragédia. Quando o menor entrou na casa do avô,

Domingos e José começaram a serenata, tocando violão e cantando. Subitamente, saíram de dentro

da casa Rafael e seu pai Luis. Rafael agrediu com uma arma José, gritando ”você provoca, agora não

se queixe”. Em seguida foi para cima de Domingos que, apesar de ferido, reagiu se defendo com um

cacete que trazia consigo. O agressor já tinha fugido e o avô foi agredido pela paulada desferida por

Domingos. José, que tinha “boa estatura, cabelos e bigodes ruivos, trajava calça preta, camisa

branca e botinas pretas. Não vestia paletó trazendo amarrado no pescoço um lenço de seda de cor”

jazia morto no chão.22

A ausência de regulamentações dos contratos de trabalho fazia com que muitas das discussões e

pendências fossem resolvidas a partir de brigas e confrontos físicos. A volatilidade dos empregos, as

admissões e demissões feitas sem regulamentação legal, reiteravam a experiência da cidade a partir

da noção de mobilidade. Em 11 de abril de 1916 Antonio Rodrigues Ferreira, morador na Rua

Augusta 429 deixando o emprego que ocupava na Padaria e Confeitaria Siciliana, Rua Lavapés 75 foi

receber os salários correspondentes aos 26 dias trabalhados, à razão de 100$000 mensais. O

proprietário da padaria Gaspar Coelho sob pretexto de que Rodrigues abandonara o emprego sem

prévio aviso, pretendeu descontar 60$000 dos vencimentos a título de multa. Esta fato deu origem a

um conflito tendo Gaspar agredido a cacetadas seu ex-empregado.23

A forma de funcionamento dos estabelecimentos comerciais em São Paulo, incluíndo os de

panificação, associava moradia e trabalho. Estavam, em geral, instalados em lotes de usos múltiplos.

Em 24 de julho de 1898, um domingo a tarde, um incêndio de importante proporção foi percebido pelo

inspetor de quarteirão, o senhor Carmino Fiore que avisou rapidamente aos moradores e aos

bombeiros impedindo que as consequências fossem mais trágicas. Ficamos sabendo que o incêndio

teve início no prédio de no 72 na Rua Carneiro Leão, no Brás. Neste endereço, no mesmo lote,

estavam estabelecidos o senhor Alfredo Fiore com negócio de padaria e Salvador Natelli com

armazém de secos e molhados. Além disso "Os fundos do prédio eram sublocados a diversas

famílias italianas e tinha comunicação com o prédio no 70 daquela rua onde residia João Antonio dos

Santos que tinha ali depósito de perfumaria”.24

Os muitos editais de falência publicados nos jornais da época reiteram a permanente associação

entre moradia e trabalho que caracterizava a ocupação urbana de São Paulo. Através deles podemos

também entrever as precárias condições de produção do pão.

Em 190425

o despacho do Juiz de Direito da segunda vara sobre leilão de bens relativos à falência de

D Barbara Branca Fochon informava que os bens localizavam-se no bairro de Pinheiros e eram

22

O Correio Paulistano1899 ed13006 23

O Correio Paulistano 11/04/1916. Importante notar que a multa e aviso prévio foi uma deliberação do patrão e

não uma regulamentacão de legislação trabalhista 24

O Correio Paulistano 1898 edição 12570 25

Correio Paulistano 19/9/1904 ed 14745

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integrados por terreno com sobrado e pequena casa medindo a propriedade 28metros de frente e 88

de fundos sendo o fundo pontudo. O sobrado de dois lances tem uma porta e 4 janelas no térreo e no

superior 4 janelas e as dependências de forno de padaria, barracão, cocheira tudo coberto de telhas

nacionais. confronta com os terrenos de Pedro Christe do Nascimento e Ana Rosa Estevam e nos

fundos Amaro Cavalheiro. Terreno e benfeitorias 9:700$ooo.

Na falência de Manfredo Meyer e sua esposa Elvira de Souza Queiróz Meyer podemos ler a longa

lista de bens espalhados por diversos bairros da cidade ( Rua dos Imigrantes, Rua Anhaia, Rua dos

Italianos, Rua Aimorés, Rua Tenente Pena, Rua Itaboia). Nas dezenas de imóveis listados

reconhecemos habitações coletivas e casinhas que ocupavam os longos lotes. Especificamente na

Rua dos Italianos n. 30 possuíam 7 casas em lote de 8,80m de frente e 50 de fundos. A frente do lote

a construção tinha “duas portas, portão para o quintal tendo uma sala com negócio de padaria, dois

quartos, varanda, um forno para padaria e dependências no valor de 12$ooo”.26

Uma década mais

tarde, no Brás, ocorre o pregão de venda, decorrente de divida hipotecária de João Pujós. O objeto

da ação é

casa assobradada n.98 e respectivo terreno, sita à Rua oriente, freguezia do Brás, com duas portas na

frente e um portão de ferro ao lado medindo 6m de frente por 45m de frente-fundo contendo no andar

assobradado 5 dormitórios varanda e cozinha; no porão que é habitável e destinado à padaria

contem loja com balcão e armação com vidraça, dois quartos e um cômodo onde trabalham na

masseira de pão com um bom forno tendo um grande quintal com dependências tais como: um

grande barracão, w.c. e o tanque confinado 12:500$ooo27

.

Em Santa Efigênia repetia-se o mesmo padrão. Os quintais e fundos de lotes revelavam

complexidade e profusão de usos que incluíam cocheiras, alojamentos de empregados, quartos de

aluguel, casas de negócios, casas de moradia. Se encontramos padarias nos porões, nos fundos e

na frente dos lotes, não as localizamos como atividade de uso exclusivo em um lote.

As padarias eram ainda lugares de referência em uma cidade marcada pela precariedade dos

serviços públicos e de moradia e uma intensa mobilidade da população trabalhadora. Na década de

1880 as notícias e anúncios relacionados às padarias pouco mencionavam sobre os produtos

comercializados mas diziam muito sobre como elas se inseriam na vida da cidade. Assim, sabemos

que na Rua da Vitória, junto à Padaria Gaspar

vende-se uma rapariga prendada para todo o serviço de casa de família, sobre tudo engomar,

acompanhando- a uma filha de 7 anos. Também se vende um rapazinho de 7 anos28.

A escravidão acabou mas o uso dos endereços das padarias para localizar trabalhadores, obter

informações, entregar correspondências permaneceu. Muitos eram os anúncios, como este, que

diziam

Pede-se quem souber onde mora José Rocha do Amaral conhecido também por José

Fernandes natural de Villa Viçosa, frequezia de Sinfões, Portugal, negociante de carne verde

informar à Padaria e Confeitaria do Comércio, Rua Marechal Deodoro 24 São Paulo a

Victorino Rodrigues da Silva.29

A materialidade da cidade expressa na configuração dos seus lotes, suas construções e

equipamentos e formas de uso reafirma esta ocupação em tudo distante do modelo de cidade

burguesa e sua utópica separação de funções. Encontramos uma cidade que em quase todas as

suas práticas superpunha trabalho, moradia e lazer. As evidentes e impactantes mudanças na escala

da cidade concretizavam-se na pluralidade de negócios e empreendimentos ligados a produção e

comercialização do pão assim como nas tensões e disputas sociais a ele relacionados.

26

O Correio Paulistano15/3/1902 ed 13582. o edital é publicado inúmeras vezes 27

O Correio Paulistano 8 julho de 1917 ed 19395 28 O Correio Paulistano 1880 ed 07025 29 O Correio Paulistano1906 ed 15295

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As sociabilidades reveladas nas portas das padarias, a importância e destaque dados aos

equipamentos e práticas de lazer a elas associados e as brigas e disputas travadas nos seus

espaços revelam uma cidade onde as práticas burguesas da belle époque estavam restritas a muito

poucos. Dimensões distintas e contrastantes constituíam a Sao Paulo moderna mas estavam todas

permeadas pelo consumo do pão.

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