corrupção cultura política brasil - filgueiras

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  • 7/24/2019 Corrupo Cultura Poltica Brasil - Filgueiras

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    Revista de C. Humanas,Vol. 10, N 2, p. 318-334, jul./dez. 2010318

    Corrupo, cultura poltica e reformasno Brasil1

    Corruption, political culture and reforms in Brazil

    Fernando Filgueiras1

    Ana Maria Montandon2

    Brbara Magalhes Aguiar de Oliveira3

    Ivna Mascarenhas Abreu4

    PALAVRAS-CHAVE:Corrupo. Cultura poltica. Democracia. Controle da corrupo.KEYWORDS: Corruption. Political Culture. Democracy. Corruption control.

    1. PREMBULO ANALTICOA definio do conceito de corrupo s possvel por meio de uma

    observao histrica balizada em contextos lingusticos altamente diferenciados notempo. No h uma nica abordagem ou uma lei capaz de definir a corrupo de umamaneira totalizante, estando ela referida a contextos de linguagens e interlocuesprticas que se modificam em funo dos diferentes problemas que configurarama histria poltica.

    RESUMO: Este artigo investiga a relaoentre corrupo e democracia, enfocandoalgumas questes relativas experincia de-mocrtica brasileira ps-1988. Pretendemosmostrar como, apesar de um sentimentoexistente na opinio pblica brasileira deque a corrupo se faz mais presente nacena pblica, houve avanos no que tange

    gesto e administrao da coisa pblica. Esteartigo se baseia em dados de pesquisas desurvey realizadas pelo Centro de Refernciado Interesse Pblico da Universidade Federalde Minas Gerais. Argumentamos que uma

    viso culturalista pode encobrir avanosconquistados na dimenso do controle,alm de um tratamento fatalista que poucocontribui para o aprimoramento institucionalda democracia.

    ABSTRACT:This article investigates the re-lation between and democracy, emphasizingsome questions related to the Brazilian de-mocratic experience after 1988. We intend

    to show how, despite of a existent feeling inthe Brazilian public opinion that corruptionis more present at the public scene, progresshas been made regarding the managementand administration of the public affairs. Thisarticle is based on data of survey researchespromoted by Public Interest Reference Cen-

    ter of the Minas Gerais Federal University.We argue that a culturalist view may coverup achieved advances in the control dimen-sion, besides a fatalist treatment which has

    given little contribution to the institutionalimprovement of democracy.

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    Nesse sentido, o regresso experincia do mundo antigo e medievalrevela que a corrupo estaria ligada a processos mais amplos de degenerao dasinstituies polticas, relacionando-se com o sentido da palavra diaphtora, no grego, ecorrumpere,no latim, que tm sua significao em torno de ideias como putrefao,

    destruio, runa. A corrupo estaria relacionada aos momentos de decadncia deimprios e reinos, representando o momento no qual o governo se degenera paraformas injustas ou eticamente consideradas ruins. Esta compreenso da corruporelacionada a processos mais amplos de decadncia uma marca forte da heranado pensamento grego no pensamento ocidental, em especial se considerarmos asfilosofias de Plato e, principalmente, de Aristteles (FILGUEIRAS, 2008).

    O que importante observar, ademais, que no mundo antigo e nomundo medieval a noo de democracia teria uma valorao inversa se comparadacom o pensamento poltico contemporneo. A democracia representaria o regimeda corrupo, o que no aristotelismo significaria a existncia de um povo desejoso,marcado, sobretudo, pela indistino e pela igualdade. A marca do aristotelismoest no modo como a afirmao de uma racionalidade baseada em uma cosmologiaassentada em uma ordem do mundo configura um entendimento da corrupo comouma decadncia dos valores, especialmente das mais altas virtudes dos cidadosda polis. Por esta concepo, diferentes historiadores do mundo antigo narram omundo dos vcios em suas diferentes comunidades como o elemento primordial paraa decadncia poltica. Por esta maneira que Ccero torna-se ctico com o futurode Roma, descrevendo a corrupo da Repblica como a ascenso da injustia ede um povo desobediente lei. Ou ao modo como Salstio descreve a corrupo

    da Repblica romana por uma decadncia de virtudes tais como a honestidade.Ou mesmo, mais tardiamente, Santo Agostinho descrevendo a corrupo como oprocesso da decadncia da prpria condio humana.

    conhecida a ideia de Aristteles segundo o qual a vida se dividiria entreapolise o oikos, sendo a primeira o espao da aparncia onde as decises da co-munidade seriam tomadas; e a segunda, o espao das necessidades, da privao e da

    1 O presente texto foi discutido na mesa Corrupo e cultura poltica no Brasil, realizada em 24 desetembro de 2010 no auditrio do Centreinar/UFV, durante as atividades da I Semana Acadmica deCincias Sociais da UFV Cincias Sociais e vida pblica. Participaram do debate os professores RaulMagalhes (UFJF), Diogo Tourino de Sousa (DCS/UFV) e Marcelo Jos Oliveira (DCS/UFV).

    2 Professor do Departamento de Cincia Poltica da Universidade Federal de Minas Gerais (DCP/UFMG). Autor de Corrupo, democracia e legitimidade (Editora UFMG, 2008). Email: [email protected]

    3 Discente do curso de Cincias Sociais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bolsista deiniciao cientfica da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). Email:[email protected]

    4 Discente do curso de Cincias Sociais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bolsista deiniciao cientfica da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). Email:[email protected]

    5 Discente do curso de Cincias Sociais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e de Adminis-trao Pblica da Escola de Governo Paulo Neves de Carvalho da Fundao Joo Pinheiro. Emaail:[email protected]

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    opacidade (ARISTTELES, 2002). A vida napolisexigiria, de acordo com o estagirita,uma vida dedicada s virtudes da cidadania, o que demandaria o fato de os cidadosserem distintos dos demais. A distino seria o trao fundamental para a vida dapolis, porquanto a existncia da comunidade estaria confiada a cidados de bem. A

    vida no oikos, entretanto, no exigiria virtudes mais aguerridas ou pr-existentes. Avida no oikos marcada pelos desejos, pelas necessidades e pela reproduo, o queno necessariamente contribui para a grandeza da comunidade. O que importanteobservar um ponto de quase acordo, no mundo antigo: a democracia seria umadas piores formas de governo, representando um estgio elevado da decadnciaporque promoveria a igualdade de condies e a prevalncia do oikossobre apolis.

    As revolues burguesas proporcionaram, por outro lado, uma guinadana compreenso dos valores fundamentais da poltica. Um dos mais relevantes,sem dvida, o fato da igualdade como um pressuposto fundamental da condioda cidadania. Alxis de Tocqueville observou que o feito principal da modernidade a constituio de sociedades regidas pela igualdade. Igualdade esta que no deveser compreendida como uma igualdade substancial entre os homens, mas comoo fim das hierarquias que organizavam objetivamente a tradio do ocidente peladistino. Nas democracias no h distino entre os cidados, sendo o individualis-mo um dos traos marcantes da modernidade poltica (TOCQUEVILLE, 1998). Seassociarmos a ideia da igualdade com a ascenso da sociedade burguesa, percebe-seque a democracia inverte a constituio da moralidade poltica. O que antes eraa ao poltica pautada nas virtudes do carter, na modernidade tornou-se a aodirigida e racionalizada pelos interesses. No qualquer interesse, mas um interesse

    bem compreendido, segundo Tocqueville (1998), ou interesse como a amarra daspaixes (HIRSCHMAN, 1997).O conceito de interesses representou um momento de ruptura realiza-

    do pelo pensamento poltico moderno, sem que a poltica estivesse presa a umaconcepo de virtudes (HIRSCHMAN, 1997). A democracia, por outro lado, um arranjo institucional em que a ideia de interesse central para a construoda legitimidade. Como se trata de uma vida institucional, a democracia separa oscorrelatos funcionais do interesse privado e do interesse pblico, fazendo com quea construo da legitimidade esteja assentada no segundo como princpio heurs-tico. Ou seja, o interesse pblico a construo de um princpio de legitimidade,

    porquanto envolve o consentimento que indivduos morais do para a origem daautoridade poltica. A rigor, o conceito de interesse pblico rido o bastante parano se ter uma noo emprica do que realmente . Da o conceito de interessepblico espelhar muito mais um consentimento em torno de valores e normas doque propriamente um dado emprico.

    O consentimento um princpio de legitimao, que permite a passagemdo privado ao pblico, de acordo com uma separao radical entre a vida institucionale o cotidiano dos cidados. O interesse, como indica Hirschman, um domestica-dor das paixes e permite a construo de um critrio de legitimidade, visto quemoraliza as concepes polticas de sociedades comerciais marcadas pela diviso

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    do trabalho (HIRSCHMAN, 1997). O consentimento a capacidade de constru-o de um acordo motivado por regras, sendo a representao a capacidade doindivduo de vocalizar suas preferncias no mbito dos sistemas administrativos dasociedade, tendo em vista a formao de uma autoridade poltica. A representao,

    nesse sentido, um imperativo da vida democrtica moderna, sendo a poltica umaesfera de articulao legtima dos interesses, diminuindo a dimenso dos valoresno mbito da moralidade.

    A modernidade poltica configurou o fim de uma comunidade hierarqui-zada, introduzindo o individualismo e os interesses como elementos fundamentais ao da cidadania. No cabe, nesse sentido, pensar uma vida poltica assentadaem virtudes incondicionais do poltico. A corrupo, nessa chave do pensamentopoltico moderno, quando a passagem do privado ao pblico ocorre de maneirailegal. Ou seja, quando o interesse privado se sobrepe ao interesse pblico. Comoo conceito de interesse est relacionado construo de sociedades comerciais, avida institucional est balizada no imperativo da representao e na capacidade doindivduo de ver reconhecido seu interesse no mbito da civitas. O Direito, nessesentido, cumpre o papel, na modernidade, de garantir os equivalentes funcionaisdo interesse privado e do interesse pblico, diferenciando esferas de juridificaodos interesses e sobrepondo barreiras que separem ambas as dimenses do mun-do poltico (WEBER, 1978). A proteo do Estado contra a corrupo demanda arepartio de papis entre a administrao pblica e a sociedade, implicando uminevitvel distanciamento formatado pela engenharia jurdica, de modo a tutelar,judicialmente, os interesses privados e o interesse pblico.

    a categoria interesse que se torna, portanto, chave para se pensar ostermos da representao e da corrupo na poltica. Tomando a ideia de interessecomo constitutiva da representao, a teoria democrtica est assentada em umaviso econmica, que produz, por sua vez, uma interpretao funcionalista do Estado,de acordo com a qual seu papel a manuteno do sistema de produo atravs deum sistema de administrao racional da vida social. Acredita-se, dessa forma, que acorrupo esteja ligada ao problema dos interesses e que seu controle depende desistemas racionais de administrao da sociedade, no sentido de distribuir papis,funes e direitos. O essencial que esses sistemas administrativos procuram afastara vida cotidiana da poltica, garantindo, por meio de normas racionais, a proteo

    ao interesse pblico. Contudo, a possibilidade da corrupo no afastada da vidainstitucional. No que tange democracia, uma sociedades de indivduos indistintosentre si no significa o fim da corrupo, mas uma rotinizao dela nas estruturasde poder. Como aponta Tocqueville:

    (...) nas aristocracias, como os que querem chegar direo dosnegcios pblicos dispem de grandes riquezas e o nmero dos quepodem lev-los a tanto costuma ser circunscrito em certos limites,o governo se acha de certa forma em leilo. Nas democracias, aocontrrio, os que disputam o poder quase nunca so ricos e o nmerodos que contribuem para proporcionar o poder enorme. Talvez

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    nas democracias no haja menos homens a vender, mas quase no seencontram compradores de resto, seria necessrio comprar gentedemais ao mesmo tempo para alcanar o objetivo. (...)O povo nunca penetrar no labirinto obscuro do esprito corteso;

    sempre descobrir com dor a baixeza que se oculta sob a elegnciadas maneiras, o requinte dos gostos e as graas da linguagem. Masroubar o tesouro pblico, ou vender a preo de dinheiro os favoresdo Estado, coisa que o primeiro miservel compreende e pode

    gabar-se de fazer igual, chegando a sua vez.O que se deve temer, por sinal, no tanto a vista da imoralidadedos grandes quanto a da imoralidade que conduz grandeza. Nademocracia, os simples cidados veem um homem que sai de entreeles e que alcana em poucos anos a riqueza e o poder; procuramsaber como aquele que ontem era igual a eles v-se hoje investidodo direito de dirigi-los. Atribuir sua elevao a seu talento ou a suas

    virtudes incmodo, porque confessar que eles mesmos so menosvirtuosos e menos hbeis do que ele. Assim do como causa principalalguns de seus vcios, e muitas vezes tm razo de faz-lo. Produz-sedesta forma no sei que odiosa mistura entre as ideias de baixezae de poder, de indignidade e de sucesso, de utilidade e de desonra.(TOCQUEVILLE, 1998, p. 256-257).

    Ora, a corrupo, como aponta Tocqueville, comum democracia. Setemos sociedades que buscam a frugalidade dos bens como um valor fundamental sua prpria constituio, de se esperar a existncia de cidados pautados por

    seus interesses. O problema quando atualizamos a distino entre a polise ooikosde maneira a distinguir a ao do Estado como fundamental vida pblica e omercado como o espao da vida privada. Na chave liberal do pensamento poltico,a corrupo representa os vcios dos agentes pblicos, praticados na dimenso doEstado. No se trata de pensarmos sociedades pautadas na virtude, mas sociedadesque so regidas pelos interesses.

    Tomando essa premissa dos interesses, a corrupo analisada a partirde trs ngulos diferentes: (1) a corrupo realizada pelos polticos profissionais,na dimenso da representao, envolvendo, especialmente, governantes e parla-mentares; (2) a corrupo de funcionrios pblicos, que usam seu poder e prestgio

    para auferir vantagens indevidas, isto , a corrupo da burocracia e do aparatoadministrativo do Estado; e (3) a corrupo de membros de instituies centraisdo Estado, como a polcia e o Judicirio. O ponto de partida destes trs ngulosdiferentes de anlise da corrupo a contestao da eficincia do Estado comoprodutor de bens pblicos.

    A corrupo, dessa forma, vista de acordo com a concretizao doegosmo auto-interessado dos agentes que buscam a maximizao de sua rendaburlando as regras do sistema. A corrupo na poltica, de acordo com SusanRose-Ackerman, ocorre justamente na interface dos interesses pblico e privado(ROSE-ACKERMAN, 1999). Os esquemas de corrupo dependem do modo como

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    a organizao institucional permite o uso de recursos pblicos para a satisfao deinteresses privados, tendo em vista o modo como o arranjo institucional produz aodiscricionria por parte das autoridades polticas. Esta discricionariedade ensejadapelo arranjo institucional incentiva o uso de pagamento de propinas e de suborno

    e refora a corrupo no mbito do setor pblico e do setor privado.Trs ordens de questes so importantes a respeito da corrupo na

    modernidade poltica: (1) a democracia torna a corrupo mais transparente aopblico; (2) a corrupo vista, sobretudo, na atuao do Estado e na ao dosagentes pblicos, e no como processo de decadncia moral; e (3) a democraciaexige, para sua concretizao, a existncia de instituies de controle, de mecanis-mos de checks and balancese a existncia de regras burocrticas para gerir os benspblicos. Isto significa o fato de a institucionalizao do controle ser fundamental aosucesso da democracia, tendo em vista uma concepo de responsabilidade polticabalizada na existncia de leis racionais, porquanto vinculantes da ao e impessoais.

    Pensar a corrupo nesse quadro sociolgico da modernidade significainterrogar seu alcance na dimenso dos valores e dos interesses dos cidados, qualo lugar da corrupo na democracia e quais as aes possveis para control-la noquadro do Estado. As sees seguintes trataro a questo da corrupo a partir daexperincia democrtica brasileira.

    2. CORRUPO E CULTURA POLTICA NO BRASIL: A DIMENSODOS VALORES E DAS NECESSIDADES

    No se pode dizer que haja no mbito do pensamento social e poltico

    brasileiro uma teoria da corrupo. Seria um equvoco supor que o problema dacorrupo teria alguma exclusividade em relao ao caso brasileiro.Entretanto, fundamental observar que a ascenso do pensamento

    social e poltico brasileiro ocorre em conjuno com um compromisso pblico daselites intelectuais com o tema do desenvolvimento. Desde, pelo menos, a dcadade 1930, o pensamento poltico brasileiro assumiu o compromisso com a moder-nidade, com o objetivo de retirar o Brasil das condies do atraso, rompendo coma tradio colonial que o legava a uma posio pequena no quadro das modernasnaes capitalistas. Para essa empreitada, o pensamento social e poltico brasileiroprecisaria identificar as razes do atraso como o elemento primordial para pensar

    os desafios da modernidade e as condies e etapas que precisariam ser cumpridaspara proporcionar o desenvolvimento. Nesse sentido, a tarefa da sociologia e dacincia poltica nascentes no Brasil do sculo XX seria revisitar o passado e a tradioe identificar as barreiras fundamentais ordem do progresso.

    nesse sentido que Oliveira Vianna (1985) denuncia o esprito de clregente na sociedade brasileira, acreditando que um Estado autoritrio pudesselevar o Brasil modernidade por meio da centralizao da autoridade poltica e dorespectivo aniquilamento do poder local fortemente clientelista, autorreferido eprivatista e, por conseguinte, corrompido. A passagem do atraso para a modernidadeexigiria um Estado forte, capaz de romper com o idealismo reinante na Constitui-

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    o de 1891, que abria o fosso entre o pas legal e o pas real. O pensamentoautoritrio contribuiu para consolidar a concepo segundo a qual o combate corrupo dependeria de um estado forte, capaz de eliminar a corrupo praticadana esfera do poder local.

    Mas no caso brasileiro recente, uma das linhas interpretativas mais usuaispara entender a corrupo que nos assola est ligada ao conceito de patrimonia-lismo de Raimundo Faoro (2000). O problema do patrimonialismo comumentemobilizado para descrever a corrupo no Brasil, tendo em vista a cultura poltica,a economia, a poltica e a sociedade, de acordo com o problema da modernizao,do surgimento das modernas burocracias e da legitimao da poltica moderna. Aincorporao do conceito weberiano de patrimonialismo, no mbito de algumasinterpretaes do Brasil, normalmente o foco analtico para o problema da cor-rupo, o qual recortaremos a fim de compreendermos o modo como o conceitode corrupo construdo no contexto das disputas intelectuais do pensamentosocial e poltico brasileiro.

    Supe-se que a tradio poltica brasileira no respeite a separao entreo pblico e o privado, no sendo, o caso brasileiro, um exemplo de Estado modernolegitimado por normas impessoais e racionais. O patrimonialismo a mazela daconstruo da Repblica no Brasil, de maneira que ele no promoveria a separaoentre os meios de administrao e os funcionrios e governantes, fazendo com queestes tenham acesso privilegiado explorao de suas posies e cargos. Dadoo patrimonialismo inerente construo da cena pblica brasileira, a corrupo um tipo de prtica cotidiana, chegando at mesmo a ser legitimada e explicitada

    no mbito de uma tradio estamental e tradicional herdada do mundo ibrico. Opatrimonialismo, como nosso vcio de origem, fruto de um Estado que intervmna sociedade e coordena e comanda, pelo alto, a explorao do mundo produtivoe mercantil.

    O patrimonialismo brasileiro pressupe a existncia de um estamentoburocrtico que centraliza o poder poltico e os privilgios auferidos a partir dele.O patrimonialismo acarretaria, segundo Faoro, uma cultura autoritria e estatista,pouco afeita ao interesse pblico. Sendo o patrimonialismo um problema estatal(FAORO, 2000), nossos vcios de origem a corrupo, em particular soexplicados por um trao distintivo de carter do brasileiro, que estaria relacionado

    a uma histria de parasitismo social explcito, tendo em vista uma sociedade esta-mental e patriarcal, pouco afeita ao capitalismo e ao mundo dos interesses. Umasociedade, portanto, regida pela distino entre o estamento burocrtico, deten-tor dos privilgios, e o povo, expropriado em seu trabalho pelo Estado. A moralpblica reinante, no contexto do patrimonialismo brasileiro, seria a moralidade doestamento burocrtico, que dirige e controla, de cima, a sociedade e o mercado.Entretanto, o Brasil alou uma posio relativamente desenvolvida no contextodo capitalismo contemporneo. Segundo Schwartzman (1982), o patrimonialismobrasileiro assumiu um carter modernizador, capaz de romper com a tradio paraatualiz-la. A ao do Estado e da burocracia foi criar o capitalismo brasileiro pelo

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    alto, mantendo uma constelao de valores conservadores, capaz de preservar osistema de dominao tradicional pelo avano do desenvolvimento. Por conseguinte,a vertente do patrimonialismo permite identificar uma cultura poltica da corrupo,identificada por um trao fortemente conservador dos valores, associado a um

    contexto de demandas e necessidades ampliadas.Como um problema de Estado, a corrupo acaba por ser reificada em

    uma cultura poltica que considera a atuao quase naturalizada dos agentes pbli-cos, vistos com enorme desconfiana pela prpria sociedade. Em pesquisa nacionalrealizada pelo Centro de Referncia do Interesse Pblico (CRIP), da UniversidadeFederal de Minas Gerais (UFMG), em parceria com o Instituto Vox Populi, com ci-dados, constata-se o modo segundo o qual a corrupo percebida como prticacorriqueira dos agentes pblicos. Muito disso ocorre no modo como os cidadosbrasileiros percebem o Estado como a instituio central para a realizao do inte-resse pblico, como especifica o Grfico 1 abaixo:

    Grfico 1. Interesse pblico e responsabilidade do Estado

    Fonte: Centro de Referncia do Interesse Pblico / Vox Populi, 2009.

    Pelo fato de, na percepo dos cidados brasileiros, o Estado ser ainstituio central para canalizar e realizar o interesse pblico algo que Faorodenunciou como nosso estatismo ibrico natural que o Estado seja o espao

    68%

    53%

    72%

    65%69%

    65%

    23%

    40%

    18%

    22%

    20%

    31%

    3 %2 % 3%

    4 %4 %

    2 %

    6 % 5 % 6 %9 % 7 %

    2 %

    BRASIL Centro Oeste Nordeste Norte Sudeste Sul

    O interesse pblico algo de responsabibilidade do estado resolver

    O interesse pblico nem sempre algo de responsabibilidade do estado resolver

    O interesse pblico no algo de responsabibilidade do estado resolver

    NS/NR

    Base: 2.400 400 500 400 651 450

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    onde a corrupo ocorra. A juzo do cidado brasileiro, a corrupo uma aopraticada por agentes do Estado. Quando perguntados se ocupantes do alto escalodo governo aceitariam ou no entrar em um esquema de corrupo, os entrevistadosresponderam da seguinte forma (Grfico 2).

    Os agentes pblicos, de um modo geral, so vistos com enorme descon-fiana por parte da cidadania, que v o Estado como o espao dos vcios, onde acorrupo, como prtica natural a esse campo, impera. Quando perguntados ondea corrupo se faria mais presente, os cidados brasileiros afirmam estar ela maispresente nas instituies pblicas, especialmente aquelas vinculadas ao Estado. Acorrupo se faz mais presente nas instituies legislativas e nas instituies doPoder Executivo, como aponta o Grfico 3.

    Grfico 2. Percepo sobre a atuao de ocupante de cargos de alto escalono governo e sua relao com esquemas de corrupo (%)

    Fonte: Centro de Referncia do Interesse Pblico / Vox Populi, 2008 e 2009.

    Vista na dimenso do Estado, a princpio a corrupo est relacionadacom o espao pblico, tendo em vista a vida institucional da democracia. Apesar de

    a democracia ser regida pelo mundo dos interesses, como tratamos anteriormente,o cidado no v a corrupo em sua prtica cotidiana. Ou seja, a corrupo vistana dimenso da vida pblica, em que o cidado transfere ao Estado e aos agentespblicos o cometimento de atos ilcitos contra o interesse pblico. O cidado nov a corrupo praticada na dimenso do mundo privado, porquanto no percebeque ele prprio pode ser um agente que comete corrupo.

    comum na democracia o cidado assumir uma posio de cinismo,em que seus interesses individuais importam mais que o interesse pblico. Nessesentido, o cidado brasileiro v a corrupo na dimenso do Estado, acredita noformalismo da lei como elemento de redeno pblica e no percebe a corrupo

    14%

    35%

    48%

    3 %

    15%

    34%

    46%

    4 %

    NS/NR

    Mai/08 (Base: 2.421) Jul/09 (Base: 2.400)

    Apenas minoria destas

    pessoas aceitaria entrar no

    Mais ou menos a metade

    aceitaria entrar no

    A maioria destas pessoas

    aceitaria entrar no

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    que ele pratica na esfera privada, regida, sobretudo, por suas necessidades cotidia-nas (FILGUEIRAS, 2009). O Grfico 4 expe essa ideia. Sempre que se aproximado espao do oikos, o cidado brasileiro tende a ver a corrupo menos presente,representando uma situao de ambivalncia entre os valores, de um lado, e as

    necessidades, de outro. nesse sentido que a democracia exige certa tolerncia com relao

    corrupo. Isto no significa que ela deva ser aceita ou endossada publicamente,

    Grfico 3. A presena da corrupo em ambientes institucionais e sociais(mdias)

    Escala: 0 nenhuma corrupo; 10 muita corrupoFonte: Centro de Referncia do Interesse Pblico / Vox Populi, 2008 e 2009.

    mas que a estabilidade poltica e a prevalncia dos direitos individuais no condizemcom uma posio moralista da poltica, que defenda, sobretudo, uma moralizaoda poltica por meio de um combate corrupo. Uma posio moralista na po-ltica significa anteceder, nos termos de Weber (2002), uma tica dos fins ltimosa uma tica de responsabilidade, a qual deve imperar no quadro da poltica e daburocracia na modernidade. A democracia, nesse sentido, deve conviver com acorrupo, que em sua gramtica no significa a ideia de uma decadncia, mas

    Mai/08 (Base:2.421) Jul/09 (Base: 2.400)

    Mdia ds mdias 6,80 6,47

    %

    Cmara dos Deputados

    Senado Federal

    Cmara dos vereadores

    Prefeitura

    As pessoas mais ricas

    Governo do Estado

    Polcia Militar

    Polcia Civil

    O Poder Judicirio

    Os empresrios

    Polcia Federal

    Presidncia da Repblica

    A classe mdia

    Clubes de Futebol

    Os homens

    O povo brasileiro em geral

    A mdia (jornais, revistas, TVs)

    Movimentos Sociais

    Igrejas Evanglicas

    Associao de Bairro

    ONGs

    As pessoas mais jovens

    Igreja Catlica

    As mulheres

    As pessoas mais velhas

    As pessoas mais pobres

    8,34

    8,02

    8,36

    8,07

    8,02

    7,56

    7,42

    7,37

    7,36

    7,53

    6,64

    7,43

    6,59

    7,15

    6,88

    6,67

    6,33

    6,32

    6,67

    5,65

    5,84

    5,42

    5,57

    5,15

    4,85

    4,80

    8,54

    8,43

    8,34

    8,147,88

    7,72

    7,66

    7,58

    7,54

    7,48

    6,99

    6,89

    6,57

    6,39

    6,32

    6,22

    6,09

    5,73

    5,46

    5,34

    5,17

    4,74

    4,60

    4,26

    4,06

    3,74

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    um processo corriqueiro para o qual se deve assumir a posio do controle. Por-tanto, a democracia exige uma vida institucional calcada na existncia de regras eprocedimentos, com os quais todos possam concordar, para ser legtima. A medidada ilegitimidade, e nesse caso da corrupo, quando as instituies do lugar a

    interesses mal compreendidos.No caso brasileiro, a maturidade poltica alcanada com a Constituio de

    1988 reflete um quadro em que h razovel estabilidade poltica no contextoda ordem democrtica. Contudo, fundamental desvencilhar a interpretao da

    Grfico 4. Percepo sobre algumas ideias relativas corrupo (%)

    Fonte: Centro de Referncia do Interesse Pblico / Vox Populi, 2008 e 2009.

    corrupo de uma viso atvica ligada dimenso da cultura poltica. A tese dopatrimonialismo, portanto, pouco contribui para o avano da agenda da democra-tizao, que, mais do que olhar para o passado, exige uma compreenso de futurocapaz de romper com a viagem redonda descrita por Faoro. Na prxima seo,tratamos dos avanos recentes no mbito da gesto pblica brasileira.

    3. AVANOS RECENTES DA QUESTO DO CONTROLE DACORRUPO NO BRASIL

    Dentro desta linha de pensamento proposta, isto , na abordagem dacorrupo pelo vis da distino entre interesse pblico e privado no mbito da

    %

    Para diminuir a corrupo, esto faltando novas leis, com penas

    maiores e mais duras

    Se as leis que existem fossem cumpridas e no existisse tanta

    impunidade, a corrupo diminuiria

    Em qualquer situao, no interessa qual, existe sempre chance da

    pessoa ser honesta

    Se voc ficar sabendo de algum esquema de corrupo, deve

    sempre denunciar s autoridades

    Corrupo e honestidade vm de bero: ou a pessoa corrupta ou

    no

    No tem jeito de fazer poltica sem um pouco de corrupo

    Qualquer um pode ser corrompido, dependendo do preo que for

    pago ou da presso que for feita

    O conceito de honestidade relativo, depende da situao

    Em algumas situaes, bobagem a pessoa no entrar em um

    esquema de corruo, pois se ela no entrar, outro entra

    Algumas coisas podem ser um pouco erradas mas no corruptas,

    como por exemplo sonegar algum imposto, quando ele e caro

    demais

    Se estiver necessitada e um poltico oferecer benefcios em troca do

    voto, no est errado a pessoa aceitar

    Dar um dinheiro para um guarda para escapar de uma multa no

    chega a ser um ato corrupto

    Se for para ajudar algum muito pobre, muito necessitado, no faz

    mal um pouco de corrupo

    Se for para proteger algum de sua famlia, est certo fazer alguma

    coisa um pouco corrupta

    BASE 2.400

    6 6

    6 5

    5 8

    4 6

    3 3

    1 6

    1 6

    1 5

    1 5

    1 3

    1 1

    1 1

    1 0

    9

    1 7

    1 9

    2 1

    2 5

    1 7

    1 2

    1 3

    1 7

    1 2

    1 6

    1 1

    1 2

    1 1

    1 2

    1 0

    1 0

    1 5

    1 7

    222

    1 9

    2 4

    2 6

    2 0

    2 6

    2 3

    1 8

    2

    2

    3

    4

    1 0

    1 8

    1 7

    1 4

    1 8

    1 8

    1 9

    1 6

    1 9

    4

    3

    2

    6

    1 6

    3 2

    2 7

    2 4

    3 4

    2 5

    3 5

    4 1

    3 3

    3 2

    1

    1

    1

    3

    2

    3

    2

    4

    2

    3

    2

    1

    2

    3

    Concorda totalmente Concorda em parte No concorda nem discorda

    Discorda em parte Discorda totalmente NS/NR

    2 5 2 0

    2 5

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    administrao pblica e na necessidade de instituies de controle como forma decombater essa prtica, apresentamos, a partir de pesquisa realizada pelo Centro deReferncia do Interesse Pblico da UFMG, em parceria com a Controladoria Geralda Unio (CGU), resultados que demonstram uma percepo do fenmeno mais

    ligada a essa perspectiva por parte dos servidores pblicos federais.Na pesquisa, os servidores foram questionados sobre o alcance dos

    mecanismos de controle da corrupo e sobre sua percepo em relao ao lugarque a ela ocupa no cotidiano do servio pblico. Procuramos compreender, prin-cipalmente, as causas de tal prtica. Os resultados apontam para a possibilidade deum combate pautado por uma postura profissional mais tica, impessoal e transpa-rente, alm da adoo de controle e tratamento judicial mais eficazes na puniodos culpados (Grficos 5, 6, 7 e 8).

    Grfico 5. O interesse pblico corresponde ao interesse do Estado ou aointeresse da sociedade?

    Fonte: Centro de Referncia do Interesse Pblico, 2010.

    Quando questionados a respeito do que entendem sobre interesse p-blico, sendo interesse do Estado ou da sociedade, os servidores pblicos, em suamaioria, 74,8%, entendem, ao contrrio dos cidados, que se trata de um assuntopertencente esfera da sociedade (Grfico 5). Isso significa que a questo da pu-blicidade em relao s aes do Estado e, portanto, de seus administradores, central, o que revela um alinhamento entre os valores fundamentais da democraciae a postura profissional dos servidores.

    No entanto, se os servidores absorveram em seu cotidiano o princpio

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    Grfico 6. Considera que as normas da administrao pblica so igualmenteaplicadas por todos os servidores, no cotidiano de seu rgo? (%)

    Fonte: Centro de Referncia do Interesse Pblico, 2010.

    Grfico 7. No exerccio de sua funo, j foi vtima de tentativa de suborno?

    Fonte: Centro de Referncia do Interesse Pblico, 2010.

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    administrativo da publicidade como necessrio ao seu trabalho, eles tambm per-cebem como uma causa de comportamentos corruptos a falta de regularidade naaplicao desse e dos outros princpios administrativos, os quais compem o conjuntode normas da Administrao Pblica, qual sejam, por exemplo, aqueles mencio-

    nados na Constituio de 1988, segundo Maria Zanela de Pietro, o da legalidade,impessoalidade, moralidade administrativa e eficincia (art. 37, caput, com redaodada pela Emenda Constitucional n19, de 4-6-98). De acordo com o Grfico 6,para 62% dos servidores no h igualdade de aplicao das normas, contra 38%que no percebem tal desigualdade.

    O fato de haver existncia dos mecanismos de controle internos e ex-ternos aos rgos administrativos, que objetivam exercer o poder de fiscalizao ecorreio sobre as aes pblicas dos servidores, poderia apontar para uma baixaincidncia de condutas imprprias ou irregulares no exerccio de suas funes. Noentanto, 22,6% dos servidores entrevistados afirmam j terem sido vtimas detentativas de suborno (Grfico 7). Isto pode estar relacionado tanto desigualdadede aplicao das normas, como visto anteriormente, quanto ao fato de que, paraos servidores, a impunidade o fator que mais contribui para a corrupo (Grfico8). Neste ltimo, os entrevistados atriburam ineficincia do sistema judicirio aresponsabilidade da existncia de prticas corruptas, o que transfere para a esferajurdica a necessidade de estabelecer as diretrizes para uma integridade poltica.

    Grfico 8. Principais fatores que contribuem para a corrupo (%)

    Fonte: Centro de Referncia do Interesse Pblico, 2010.

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    Eles ainda acreditam que transparncia e fiscalizao so de extremarelevncia para evitar a corrupo, diferenciando a eficcia dessas aes rigidezde normas de controle, que para eles no influem no fenmeno. Os servidores,seguindo o senso comum, tambm acreditam na existncia de uma cultura do jei-

    tinho, isto , a ideia de que a corrupo est enraizada nos costumes e no Estadobrasileiro, e tambm atribuem aos impulsos individuais e falta de tica grandesresponsabilidades pelas prticas irregulares.

    Fica claro, portanto, que, para os servidores pblicos federais, a matu-ridade poltica, no que tange a uma conduta profissional tica, passa tanto por umaprimoramento do sistema judicirio, enfrentando mais eficientemente a questoda impunidade, quanto pela uniformizao do conhecimento e ateno s normasde trabalho sem deixar de lado a necessidade de fiscalizao constante das aesde todos os agentes pblicos.

    Nesse caso, observam-se avanos no que tange mquina administrati-va, mesmo observando a sucesso de escndalos que assolam a Repblica desde atransio para a democracia. Ora, a democracia tornou a corrupo no Brasil maistransparente opinio pblica, mas fundamental percebermos o modo como oscidados reconhecem um cotidiano da corrupo no Brasil na condio de servi-dores pblicos federais que aprimoram uma cultura democrtica. fundamental,portanto, manter a atualidade da agenda de reformas, especialmente na dimensodo sistema poltico.

    4. CONSIDERAES FINAIS

    Tratamos de abordar o tema da corrupo mais referido a um problemainstitucional, cujas causas se do na ilegalidade de sobrepor o interesse privado aointeresse pblico no exerccio das funes pblicas, do que entend-lo como umtrao do carter brasileiro que, portanto, no possui uma sada palpvel, dando-secomo fenmeno inevitvel. Uma abordagem culturalista e moralista da corrupono Brasil pode encobrir avanos na gesto pblica e contribuir para o sentimentoatvico que cerca o imaginrio brasileiro.

    Nesse sentido, repassamos os entendimentos histricos acerca do temae descrevemos como se deu, no Brasil, a formao das explicaes, em nosso pen-samento social, referentes existncia da corrupo, o que nos levou aos avanos

    recentes de tal entendimento a partir da pesquisa realizada com os servidorespblicos federais. As concluses apontadas reafirmam o objetivo desse artigo: huma necessidade de reformas institucionais na direo de uma concretizao dediretrizes mais eficientes na construo da integridade pblica do pas, o que passapela fiscalizao e punio mais efetiva dos agentes pblicos e privados que insistemem transgredir as fronteiras entre pblico e privado.

    No entanto, o que fizemos foi apontar um caminho para os futuros estu-dos que pretendem seguir essa mesma linha, pois entendemos que so necessriaspesquisas que tenham como finalidade o estudo mais aprofundado das aes ereformas especficas para o estabelecimento e concretizao de instituies mais

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    eficientes no que tange ao controle da corrupo, alm daqueles que possam avaliara ao dos controles j existentes, como os tribunais de contas e auditorias, tantono mbito federal, como estadual e municipal, principalmente nestes ltimos, sobreos quais, no Brasil, temos to poucas informaes.

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    RELATRIOS DE PESQUISACENTRO DE REFERNCIA DO INTERESSE PBLICO. Relatrio do

    projeto corrupo, democracia e interesse pblico. Belo Horizonte: Universidade

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    Federal de Minas Gerais, 2010.CENTRO DE REFERNCIA DO INTERESSE PBLICO; INSTITUTO

    VOX POPULI. Relatrio de pesquisa. Belo Horizonte, 2009.

    APNDICE METODOLGICOOs dados expostos nesse artigo tratam de duas pesquisas de survey

    realizadas pelo Centro de Referncia do Interesse Pblico da UFMG.A primeira pesquisa refere-se a duas baterias desurveyrealizadas em 2008

    e 2009, em parceria com o Instituto Vox Populi, sobre o tema da corrupo. As duaspesquisas basearam-se em uma amostra por cotas, referente ao territrio nacional,de 2421 indivduos, na pesquisa de 2008, e 2400 indivduos, na pesquisa de 2009.As cotas foram estabelecidas a partir dos dados do Censo 2000 e da PNAD 2006,tendo em vista a distribuio por zona residencial (rural e urbana), renda familiar,regio, grupos etrios, escolaridade e atividade econmica (PEA e no PEA). O nvelde confiana obtido nessa amostra de 95,5%, com margem de erro de +/- 2,0%.

    A segunda trata de umsurvey com servidores pblicos federais, em umapesquisa realizada pelo Centro de Referncia do Interesse Pblico da UFMG, emparceria com a Controladoria Geral da Unio (CGU), financiada pelo Escritriodas Naes Unidas Sobre Drogas e Crime (UNODC). A pesquisa partiu de umaamostragem de 1115 servidores pblicos federais, civis, do Poder Executivo, es-tratificada por ramos da administrao pblica (administrao direta, autarquiase fundaes), por escolaridade e sexo. O nvel de confiana obtido de 95,5% emargem de erro de +/- 3,0%.