filgueiras, fernando. a tolerância à corrupção no brasil- uma antinomia entre normas morais e...

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  • 8/6/2019 Filgueiras, Fernando. A tolerncia corrupo no Brasil- uma antinomia entre normas morais e prtica social. Opin.

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    OPINIO PBLICA, Campinas, vol. 15, n 2, Novembro, 2009, p.386-421

    A tolerncia corrupo no Brasil:

    uma antinomia entre normas moraise prtica social.

    Fernando Filgueiras

    Departamento de Cincia PolticaUniversidade Federal de Minas Gerais

    Resumo: Este artigo aborda o tema da corrupo no Brasil e trata da antinomia existente, no mbito daopinio pblica brasileira, entre normas morais, que regulam os significados polticos da corrupo, eprtica cotidiana na esfera pblica. O artigo aborda o conceito de corrupo e o modo como ele construdo no Brasil, alm de construir uma perspectiva terica balizada em anlise emprica. Estbaseado nos resultados do survey sobre corrupo, realizado no ano de 2008.

    Palavras-chave: corrupo, democracia, moralidade, prticas sociais

    Abstract: This article addresses the issue of corruption in Brazil and comes from the contradiction,existing within the Brazilian public opinion, between moral obligations and the meanings of politicalcorruption. The article discusses the concept of corruption and how it is built in Brazil, and also builds a

    theoretical perspective on corruption through empirical analysis. It is based on the results of the surveyon corruption, conducted in year 2008.

    Keywords: corruption, democracy, morality, social practices

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    Introduo

    Quando se abre o jornal, no Brasil, raro no nos defrontarmos com

    escndalos no mundo poltico. Casos de malversao de recursos pblicos, usoindevido da mquina administrativa, redes de clientelas e tantas outras mazelasconfiguram uma sensao de mal-estar coletivo, em que sempre olhamos de modomuito ctico os rumos que a poltica, no Brasil, tem tomado. Criam-se, dessaforma, um clamor moral e um clima de caa s bruxas que geram instabilidade eum muro de lamentaes e barreiras a projetos de polticas pblicas. Contudo,apesar dessa sucesso de escndalos no Brasil, existe uma sensao de impotnciapor parte da sociedade; a corrupo tolerada e os cidados ficam apenasaguardando qual ser o prximo escndalo que circular nos jornais.

    Essa sensao de mal-estar coletivo com a corrupo cria concepes desenso comum acerca de uma natural desonestidade do brasileiro. Um dos traoscaractersticos do senso comum no Brasil que o brasileiro tpico tem um carterduvidoso e que, a princpio, no se nega a levar algum tipo de vantagem no mbitodas relaes sociais ordinrias. Por isso, vrios indicadores de confiana apontam oBrasil como um pas onde a desconfiana impera. Para alm do senso comum, essetipo de leitura da realidade social brasileira converge para termos centrais dasinterpretaes do pas e a produo de conceitos no mundo acadmico tambmincorpora esse tipo de viso, sendo o brasileiro tpico um cidado voltado para seusdesejos agonsticos, que se expressam em formas sociais tais como o jeitinho e amalandragem.

    Culpa-se, sobremaneira, nossa herana histrica deixada pelo mundo ibrico,

    que teria feito com que o Brasil no conhecesse o processo de racionalizao tpicodo Ocidente e incorporasse, os valores e princpios do mundo protestante, ascticoe voltado para uma tica dos deveres e do trabalho. O projeto de interpretao doBrasil fornecido pela vertente do patrimonialismo tende a tomar esse pressupostocomo caracterstica antropolgica, alicerado em uma viso muitas vezes derivadade outras experincias sociais. Afinal, a herana do patrimonialismo ibrico deixoualgumas mazelas na constituio da sociedade brasileira, o que acarretaria,sempre, projetos de ruptura com o passado.

    Este artigo analisa o problema da corrupo no Brasil a partir da antinomiaentre normas morais e prtica social, defendendo a hiptese de que a prtica decorrupo no est relacionada a aspectos do carter do brasileiro, mas

    constituio de normas informais que institucionalizam certas prticas tidas comomoralmente degradantes, mas cotidianamente toleradas. A antinomia entre normasmorais e prtica social da corrupo no Brasil revela uma outra antinomia: acorrupo explicada, no plano da sociedade brasileira, pelo fosso que separa os

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    aspectos morais e valorativos da vida e a cultura poltica. Isso acarreta umatolerncia corrupo que est na base da vida democrtica ps-1985.

    Na primeira seo do artigo, apresentamos o lugar da corrupo nos projetos

    de interpretao do Brasil. Na segunda seo, discutimos o conceito de corrupo eos diferentes marcos metodolgicos para seu estudo. Na terceira seo, tratamosde uma perspectiva analtica alternativa, na dimenso da cultura poltica. Na quartaseo do artigo, tratamos da anlise emprica da corrupo.

    O lugar da corrupo no Brasil

    No h, no mbito do pensamento social e poltico brasileiro, uma teoria dacorrupo no Brasil. Pode-se dizer, grosso modo, que esse tema foi deixado de ladonas reflexes acadmicas e tericas sobre o Brasil, no havendo, nesse sentido,uma abordagem que d conta do problema da corrupo no mbito da poltica, daeconomia, da sociedade e da cultura de forma abrangente. Os estudos sobrecorrupo no Brasil so recentes, realizados a partir de abordagens comparativas einstitucionalistas, sem a pretenso de uma teoria geral, de cunho interpretativo.

    Todavia, quando nos deparamos com o tema da corrupo, h, comumente,uma vertente interpretativa do pensamento poltico e social brasileiro que mobilizada para explicar os casos de malversao de recursos pblicos e umasuposta imoralidade do brasileiro. O problema do patrimonialismo comumentemobilizado para descrever a corrupo, tendo em vista a cultura poltica, aeconomia, a poltica e a sociedade, de acordo com o problema da modernizao, dosurgimento das modernas burocracias e da legitimao da poltica moderna. A

    incorporao do conceito weberiano de patrimonialismo, no mbito de algumasinterpretaes do Brasil, normalmente o foco analtico para o problema dacorrupo, o qual recortaremos a fim de compreender o modo como o conceito decorrupo construdo no contexto das disputas intelectuais do pensamento sociale poltico brasileiro.

    Supe-se que a tradio poltica brasileira no respeita a separao entre opblico e o privado, no sendo, o caso brasileiro, um exemplo de Estado modernolegitimado por normas impessoais e racionais. O patrimonialismo a mazela daconstruo da Repblica, de maneira que ele no promoveria a separao entre osmeios de administrao e os funcionrios e governantes, fazendo com que essestenham acesso privilegiado para a explorao de suas posies e cargos. Dado o

    patrimonialismo inerente construo da cena pblica brasileira, a corrupo umtipo de prtica cotidiana, chegando mesmo a ser legitimada e explcita no mbitode uma tradio estamental e tradicional herdada do mundo ibrico.

    O patrimonialismo, nosso vcio de origem, fruto de um Estado que intervmna sociedade e coordena e comanda, pelo alto, a explorao do mundo produtivo e

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    mercantil. Tal vcio de origem nossa herana do mundo ibrico (FAORO, 2000). Deacordo com Faoro, a sociedade ibrica subordinou-se ao Estado, de modo que emPortugal formou-se um absolutismo precoce, que alojou os estamentos da

    sociedade nos rgos da burocracia. O estamento burocrtico do mundo ibricocomportava-se como proprietrio da soberania, criando um sistema de explorao edominao que se reproduziu como marca fundamental de nossa tradio polticapor meio de uma corrupo sistmica1.

    Ainda segundo Faoro, o patrimonialismo no Brasil o resultado de umarelao entre Estado e sociedade em que o primeiro oprime a segunda pelareproduo de um sistema de privilgios e prebendas, destinadas aos estamentosalojados na burocracia estatal. Esse estamento burocrtico coordena e administra oEstado sem conhecer regras impessoais e racionais, que separem os meios deadministrao e a funo burocrtica propriamente dita. O resultado dopatrimonialismo que a corrupo faz parte de um cotidiano de nossa constituiohistrica. O clientelismo, a patronagem, o patriarcalismo e o nepotismo constituemtipos de relao do Estado com a sociedade em que a corrupo a marcafundamental; afinal, sociedade nada resta seno buscar o acesso aos privilgiosdo estamento burocrtico mediante a compra de cargos pblicos e ttulos dehonraria, favores da burocracia e a participao no errio do Estado. O conceito depatrimonialismo tem uma rigidez histrica que caracteriza um elemento estruturalda sociedade brasileira. Dessa forma, a corrupo fruto da herana deixada peloscolonizadores portugueses, que confere ao Brasil um forte carter de sociedadetradicional, onde a corrupo prtica corriqueira em funo da ausncia decapitalismo, em particular do mercado. Como destaca Faoro:

    Tudo acabaria - mesmo alterado o modo de concesso do comrcio em

    grossa corrupo, com o proveito do luxo, que uma gerao malbaratara,

    legando estirpe a misria e o fumo fidalgo, avesso ao trabalho. A corte,

    povoada de senhores e embaixadores, torna-se o stio preferido dos

    comerciantes, todos, porm, acotovelados com a chusma dos pretendentes

    - pretendentes de mercs econmicas, de cargos, capitanias e postos

    militares. (...) A expresso completa desta comdia se revela numa arte,

    cultivada s escondidas: a arte de furtar. A nota de crtica e de censura flui

    1 A vertente do patrimonialismo, no mbito do pensamento social e poltico brasileiro, derivada de Os

    donos do poder, de Raymundo Faoro. De acordo com essa vertente, formou-se, no Brasil, um Estadocentralizador e expropriador da riqueza, que estaria assentado na existncia de um estamento que sealojou na burocracia estatal, de modo a construir todo um sistema de privilgios. Como destacaCampante, o conceito de patrimonialismo em Faoro dista do conceito original, presente na obra deWeber. De acordo com Campante, em Weber, o conceito de patrimonialismo um princpio delegitimao, baseado em um mundo tradicional, em que, nem sempre, o Estado centralizado, como,por exemplo, no sistema feudal. A recepo do conceito de patrimonialismo em Faoro, nesse sentido,obedece a uma ampla confuso conceitual e metodolgica. A esse respeito, conferir Campante (2003).

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    de duas direes, ao caracterizar o enriquecimento no cargo como

    atividade ilcita: a tica medieval, adversa cobia, e a tica burguesa,

    timidamente empenhada em entregar o comrcio ao comerciante (FAORO,

    2000. p. 99-100).

    Na linhagem do pensamento poltico brasileiro derivada de Faoro, o

    patrimonialismo um problema tpico do Estado, conforme uma rigidez estrutural

    na sociedade brasileira (CARVALHO, 1997). A herana deixada na organizao do

    Estado e da atividade econmica por Portugal explica a corrupo do presente. A

    partir desse conceito de patrimonialismo a corrupo no Brasil resultado da

    constituio histrica do Estado e da sobreposio do estamento burocrtico

    sociedade. Acreditamos, por outro lado, que a corrupo no pode ser explicada,

    hoje, pelo conceito de patrimonialismo de Faoro, porque no h, no Brasil, um

    sistema de legitimao tradicional e as prticas de corrupo no so apenasderivadas do poder estatal, mas tm, tambm, uma ressonncia na cultura poltica.

    Srgio Buarque de Hollanda ressalta que o problema do patrimonialismo no

    se resume ao Estado, mas , tambm, um problema societal. De acordo com

    Hollanda, o patrimonialismo o resultado de uma cultura da personalidade, na qual

    no existem regras impessoais de relao no plano da sociedade e entre a

    sociedade e o Estado. No Brasil imperaria (...) certa incapacidade, que se diria

    congnita, de fazer prevalecer qualquer forma de ordenao impessoal e mecnica

    sobre as relaes de carter orgnico e comunal, como o so as que se fundam no

    parentesco, na vizinhaa e na amizade (HOLLANDA, 1995, p.137). Essa seria a

    herana deixada pelo mundo ibrico e sua cultura da cordialidade, marcadas pelainaptido do brasileiro para construir uma ordem pblica e tambm uma

    democracia2. O problema dessa abordagem reconhecer que a cultura poltica

    brasileira assenta-se apenas no mundo dos sentimentos, sem reconhecer um trao

    de modernidade e racionalizao da sociedade. Esse tipo de leitura empobrece a

    anlise e engessa a possibilidade de mudana social. Alm disso, enquadra a

    explicao da corrupo formao do carter do brasileiro e sua natural

    desonestidade, com o risco de naturalizar a corrupo a partir da existncia da

    famlia patriarcal, como expressa Hollanda:

    2No ponto pacfico nas interpretaes do Brasil a vinculao de Srgio Buarque de Hollanda vertentedo patrimonialismo. Essa vinculao surge a partir da interpretao de Razes do Brasil feita por AntnioCndido, que vinculou as leituras do autor em relao obra de Weber a partir do conceito depatrimonialismo. Hollanda tratava, na verdade, do conceito de patriarcalismo, que est centrado mais naexistncia de uma privatizao do poder, na dimenso da famlia patriarcal, do que propriamente naexistncia do Estado ou de qualquer tipo de legitimao. A esse respeito, confrontar Cndido (1995).

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    No era fcil aos detentores das posies pblicas de responsabilidade,

    formados por tal ambiente [organizao patriarcal de sociedade],

    compreenderem a distino fundamental entre pblico e privado. Assim,

    eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionrio

    patrimonial do puro burocrata conforme a definio de Max Weber. Para o

    funcionrio patrimonial, a prpria gesto pblica apresenta-se como

    assunto de seu interesse particular; as funes, os empregos e os benefcios

    que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionrio e no a

    interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrtico, em

    que prevalecem a especializao das funes e o esforo para se

    assegurarem garantias jurdicas aos cidados. (...) Falta a tudo a ordenao

    impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrtico (HOLLANDA,

    1995, p. 145-146).

    O patrimonialismo o inimigo privilegiado do pensamento social e polticobrasileiro, de forma que todos os projetos de modernizao do Estado, da economiae da sociedade passam pela ideia de ruptura com nosso passado ibrico eafirmao de um modelo de organizao estatal moderna, pautado pelaimpessoalidade e pela racionalidade na relao entre Estado e sociedade (VIANNA,1999). A ruptura com o passado significa a afirmao de um modelo weberiano deEstado, fundamentado em uma concepo modernizante capaz de fazer submergirnossos vcios de origem, balizados no patrimonialismo.

    Ao longo do sculo XX, o Brasil assumiu uma postura modernizadora,centrada na busca dos elementos de racionalizao e transformao cultural,

    capazes de balizar um projeto de formao da ordem pblica conforme os ditamesdo capitalismo e do desenvolvimento poltico. De um lado, seria possvel afirmarque essa ruptura jamais se processou no caso brasileiro, j que o patrimonialismono Brasil no teria o mesmo matiz do conceito de patrimonialismo presente emWeber. O patrimonialismo brasileiro passou a olhar para o futuro, assumindo umprojeto modernizante que o ocultasse, no se legitimando, dessa forma, pelopassado (SCHWARTZMAN, 1982). Por outro lado, o projeto modernizador no Brasilteria no Estado seu elemento de concretizao, medida que se consolidasse aseparao entre os meios de administrao e o exerccio de cargos e funesgovernamentais. O Estado, dessa forma, assumiu, acima da sociedade, o papel desujeito republicano, capaz de criar uma ordem pblica e um projeto de democracia

    que passasse pela transformao da sociedade (VIANNA, 1999). Isso acarretou ofato de vincularmos, historicamente, o problema da corrupo a uma viso estatal,em que a correo das delinquncias do homem pblico brasileiro passaria pelamudana da mquina administrativa, e no dos valores e prticas presentes nasociedade.

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    Dessa maneira, a partir dos anos 1930, tendo em vista esse projeto

    modernizador conduzido pelo Estado, o tema da administrao e da gesto pblica

    tornou-se central. A partir desse momento, produziu-se, no Brasil, uma srie de

    reformas no aparato administrativo do Estado, tendo como finalidade a imploso de

    nosso passado patrimonialista, a afirmao de uma racionalidade tpica do

    Ocidente e o fim da corrupo como prtica cotidiana e corriqueira3. A corrupo,

    como um problema do Estado brasileiro, seria combatida se a ruptura com o

    passado patrimonialista e estamental da administrao pblica se concretizasse

    mediante a modernizao da mquina administrativa.

    Esse projeto de ruptura com o passado quer renegar nossa histria a um

    segundo plano, direcionando o olhar a um porvir colocado nos horizontes de

    interpretao do Brasil. Sendo o patrimonialismo um problema estatal (FAORO,

    2000) e societal (HOLLANDA, 1995), nossos vcios de origem - a corrupo em

    particular - so explicados por um trao distintivo de carter do brasileiro, que

    estaria relacionado a uma histria de parasitismo social explcito, tendo em vista

    uma sociedade estamental e patriarcal, pouco afeita ao capitalismo e ao mundo dos

    interesses. Uma outra via de abordagem da corrupo no Brasil seria considerar os

    aspectos da cultura poltica, tomando uma condio antropolgica do brasileiro e

    pela anlise de seu carter.

    Esse trao de carter propenso corrupo na poltica seria uma

    caracterstica antropolgica, que explicaria nossa cultura imoral e degenerada.

    Bonfim trata o parasitismo social brasileiro a partir de uma homologia com um

    organismo biolgico doente (BONFIM, 2002). Para Bonfim, o parasitismo social

    brasileiro e a degenerao moral so explicados pela hereditariedade do mundo

    ibrico, que sempre esteve associado, em sua histria, explorao do alm-mar e

    de civilizaes no-europias, e seu efeito seria o fato de a corrupo estar

    incrustada na sociedade, definindo um mundo cotidiano de vcios. Para o autor:

    Nos grandes, a corrupo faustosa da vida da corte, onde os reis so os

    primeiros a dar o exemplo do vcio, da brutalidade, do adultrio: Afonso VI,

    Joo V, Filipe V, Carlos IV. Nos pequenos, a corrupo hipcrita, a famlia

    3 Interessante notar, como mostra Jos Murilo de Carvalho, que nos diferentes momentos de rupturas deregimes, no Brasil, sempre esteve presente o tema da corrupo no interior do debate poltico e nodiscurso das foras polticas. Vale lembrar, como mostra o autor, o modo como os revolucionrios de1930 acusavam a Primeira Repblica e seus representantes de carcomidos, o papel do udenismo nadenncia do mar de lama do Catete, o modo como o golpe de 1964 foi dado contra a subverso e contraa corrupo, as denncias contra a corrupo do regime militar, j no incio do perodo da NovaRepblica. A esse respeito, conferir Carvalho (2008).

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    do pobre vendida pela misria aos vcios dos nobres e dos poderosos

    (BONFIM, 2002, p. 694).

    Assim, a corrupo no poupa nem o mundo popular nem os estamentossuperiores da sociedade, definindo uma concepo centrada em uma formaodistorcida pelos eventos do passado, sendo o brasileiro um desconhecedor dasartes, da cincia e dos interesses, que delimitam a sociabilidade do capitalismo esuas instituies. Como no fomos protagonistas da modernidade, criou-se noBrasil um senso permanente de irresponsabilidade e indolncia, que definem ostraos de uma cultura dos sentimentos, de uma cordialidade intrnseca, incapaz deincorporar o mundo impessoal e de regras formais.

    Uma antropologia do Brasil, nessas condies, apenas pode definir a buscadesenfreada por vantagens, a malandragem e o jeitinho como condicionantes docarter do brasileiro. De acordo com Da Matta (1980), o jeitinho e a malandragemrespeitam a um processo moral definido no plano de uma cultura da personalidade.O dilema brasileiro, segundo Da Matta, seria explicado por dicotomias entre o certoe o errado, entre o grande e o pequeno, entre a elite e a massa. Essas dicotomiasexplicariam a situao em que o voc sabe com quem est falando? se torna umasituao tpica da sociedade brasileira. Nesse quadro antropolgico, a corruposeria resultado do jeitinho e da malandragem, que representam estratgias desobrevivncia em meio a uma moralidade social marcada pela distino.

    O problema desse tipo de leitura da realidade brasileira que o uso dedicotomias especifica muito mais um trao de carter do que opera nos doisextremos. A corrupo e o jeitinho, dessa forma, so uma estratgia para minimizar

    os efeitos da distino entre indivduo e pessoa. A corrupo, portanto, assumiriauma forma cotidiana, em que esse tipo de interpretao no consegue superar ofato de que o brasileiro teria um carter de malandro, que sempre usa do artifcioda corrupo para obter algum tipo de vantagem. Como observa Souza (2001),interpretaes realizadas a partir de dicotomias, como faz Da Matta, tendem asimplificar excessivamente a realidade, sem perceber que a sociedade se constituide processos mais amplos que configuram a realidade social.

    O fato que diferentes projetos de interpretao do Brasil tomam a corrupocomo algo inerente cultura da personalidade e a diferena entre indivduo epessoa e a afirmao de uma cultura da personalidade no Brasil ocorre pelaincorporao da sociologia weberiana para interpretar. Do ponto de vista

    interpretativo, essa cultura delimita um carter sempre voltado para os vcios e asimoralidades cometidas pelo brasileiro, sem se atentar, contudo, para os processosmais amplos de configurao de uma sociologia poltica da corrupo no Brasil. Ocarter do brasileiro, como muitos intrpretes procuram delimitar, termina porestabelecer uma armadilha analtica e conceitual, incapaz de perceber que

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    dicotomias mais obscurecem nossas imoralidades do que propriamente asesclarecem. Ao se centrarem no carter do brasileiro, seja o da cordialidade, o damalandragem ou o da busca estratgica por privilgios, no compreendem a

    corrupo por seu real alcance no plano da sociedade.Dessa forma, no h, em uma real sociologia poltica do Brasil, espao para

    anlises dicotmicas. No caso da corrupo no Brasil, seu lugar o da existncia deuma antinomia entre o mundo moral e o mundo da prtica, porquanto ambos sejamregidos por princpios diferentes que definem uma tenso entre os valores e omundo real da sociedade brasileira. A anlise da corrupo no Brasil, portanto,demanda a construo de mecanismos analticos capazes de compreender eincorporar essa natureza antinmica da corrupo na poltica brasileira, capaz deexplicar porque o brasileiro tolera a corrupo. A corrupo no est relacionada aocarter do brasileiro, mas a uma construo social que permite que ela sejatolerada como prtica.

    A construo do conceito de corrupo

    Afirmamos anteriormente que a temtica da corrupo recente, e que noh uma teoria da corrupo no Brasil, no plano dos pensamentos social e polticobrasileiros. No caso da literatura especializada, pode-se dizer que o tratamentosistemtico sobre a corrupo remonta aos anos 1950, com a emergncia de umaperspectiva funcionalista para os estudos das cincias sociais. Os estudos maissistemticos sobre o tema da corrupo surgem nos Estados Unidos, tendo emvista o problema da modernizao e abordagens comparativas tomando o tema do

    desenvolvimento (FILGUEIRAS, 2006).Ao relacionar o problema do desenvolvimento poltico e econmico ao tema

    da corrupo, a abordagem funcionalista procura compreender o modo como elapode contribuir ou emperrar o desenvolvimento de sociedades tradicionais esubdesenvolvidas. Como pano de fundo, h uma preocupao com os processos demodernizao, de acordo com um carter sistmico que a corrupo assume emsociedades tradicionais. Como j observava Merton (1970), a corrupo umafuno manifesta e latente de sociedades tradicionais, onde a corrupo a prprianorma, em comparao com a modernidade. Como funo manifesta, a corrupotem por consequncia fomentar ou impedir a modernizao, representando, emmuitos casos, eventuais benefcios para a constituio de uma ordem moderna,

    balizada, principalmente, nas iniciativas do esprito capitalista. Para a sociologia damodernizao, h uma relao necessria entre corrupo e modernizao, umavez que cenrios de larga corrupo definem uma baixa institucionalizao polticae, por sua vez, uma ordem fraca para a mediao e a adjudicao de conflitos(HUNTINGTON, 1975).

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    Pela abordagem funcionalista, a corrupo seria tpica de sociedadessubdesenvolvidas, representando um tipo de prtica aceita diante da baixainstitucionalizao poltica. Os momentos de mudana social favorecem a

    corrupo pelo hiato existente entre modernizao e institucionalizao, tornando-atpica de sociedades em processo de mudana social. Em cenrios de baixainstitucionalizao poltica, como nota Huntington, a corrupo tende a ser um tipode ao mais acentuada, porquanto a modernizao implique novos atores na cenapoltica, ensejando clivagens sociais e um comportamento pouco conducente norma.

    Pela abordagem funcionalista, que se tornou dominante na dcada de 1960, acorrupo poderia cumprir uma funo no desenvolvimento. Se mantida sobcontrole, a corrupo pode ser uma forma alternativa, encontrada pelos agentespolticos, de articular seus interesses junto esfera pblica. Por exemplo, aconstruo de mquinas polticas visa a influenciar o contedo das decisestomadas na arena legislativa, por meio da persuaso das elites partidrias. Aconstituio dessas mquinas polticas, nas quais a corrupo o elemento chave,colabora para o arrefecimento da disputa entre clivagens sociais que surgem com amodernizao, servindo, dessa forma, para o desenvolvimento poltico, econmico esocial (SCOTT, 1969). A corrupo explicada, portanto, como desfuncionalidadeinerente de uma estrutura social de tipo tradicional, que, no contexto damodernidade, gera instabilidade no plano poltico e econmico. A corrupo, dessaforma, pode cumprir uma funo de desenvolvimento, uma vez que ela fora amodernizao. Porm, sua funo de desenvolvimento cumprida desde que elaesteja sob o controle das instituies polticas, de tipo moderno. Do ponto de vista

    dos benefcios, a corrupo pode agilizar a burocracia, ao tornar mais rpida aemisso de documentos e autorizaes formais por parte do Estado. A corrupoazeita o desenvolvimento ao estabelecer um lao informal entre burocratas einvestidores privados que favorece o desenvolvimento econmico (LEFF, 1964).

    Ao absorver o problema da modernizao como ncleo central para explicar acorrupo, a vertente funcionalista busca compreender os custos e os benefcios dacorrupo para o desenvolvimento, de acordo com uma premissa de que seuentendimento considere os aspectos funcionais e disfuncionais dos sistemaspolticos. A partir dos anos 1970, a literatura sobre o tema da corrupo deu umaguinada metodolgica, direcionando-se para o tema da cultura e o tema dodesenvolvimento passou a ser considerado na dimenso da cultura poltica,

    partindo da premissa de que a cultura proeminente em relao ao poltico e aoeconmico, ao definir os valores dentro da estrutura social. Apesar de essa vertenteter rompido com a questo dos benefcios da corrupo, ao incorporar o problemados valores, ela no rompeu com a estrutura metodolgica do funcionalismo.

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    Os trabalhos ligados conotao da cultura poltica ligam a corrupo sinteraes construdas pelos atores sociais, refletindo experincias e valores quepermitem ao indivduo aceitar ou rejeitar entrar em um esquema de corrupo. Ao

    lado do sistema institucional e legal, o sistema de valores fundamental paramotivar ou coibir as prticas de corrupo no interior de uma sociedade. Amodernizao implica a mudana dos padres de valores e de ao por parte dosatores sociais. A corrupo, nessa lgica, representa, antes de tudo, a permannciade elementos tradicionais que utilizam, especialmente, o nepotismo, a patronagem,o clientelismo e a penetrao junto autoridade poltica para obter vantagens eprivilgios. Os trabalhos ligados vertente da cultura poltica receberam ainfluncia do trabalho de Edward Banfield sobre culturas locais (BANFIELD, 1958).Nessa vertente, o tratamento da corrupo parte de uma concepo metodolgicacomparativa, decorrente de culturas locais tradicionais contrapostas a uma culturauniversal moderna. Dessa forma, a corrupo dependeria de uma mudana devalores bsicos da sociedade que demandariam processos mais lentos de mudanainstitucional (LIPSET e LENZ, 2002).

    Dos anos 1980 para c, ocorreu uma virada metodolgica das pesquisassobre a corrupo, ao incorporar uma abordagem econmica para um problemapoltico, centrada, principalmente, na anlise dos custos da corrupo para aeconomia de mercado em ascenso. Isso se deve ao fato de, a partir da dcada de1980, o tema da corrupo florescer junto com os processos de liberalizaoeconmica e poltica, especialmente nos pases perifricos, como os da AmricaLatina e da sia, e nos pases do Leste-Europeu e na Rssia (JOHNSTON, 2005).Ademais, a literatura de vis econmico sobre o tema da corrupo percebeu que

    os custos superam os benefcios apontados pela teoria funcionalista. A literaturaespecializada sobre o tema da corrupo, dos anos 1980 para c, tem sidodominada pela economia, de maneira a compreend-la como o resultado deconfiguraes institucionais e o modo como elas permitem que agentes egostasautointeressados maximizem seus ganhos burlando as regras do sistema poltico(ROSE-ACKERMAN, 1999). O problema da corrupo explicado de acordo comconceitos derivados de pressupostos econmicos como o rent-seeking e a aoestratgica de atores polticos no contexto de instituies que procuram equilibraresses interesses com noes amplas de democracia (FILGUEIRAS, 2008b).

    A corrupo explicada por uma teoria da ao informada pelo clculo queagentes racionais fazem dos custos e dos benefcios de burlar uma regra

    institucional do sistema poltico, tendo em vista uma natural busca por vantagens.Basicamente, a configurao institucional define sistemas de incentivos quepermitem aos atores acumularem utilidade. Uma postura rent-seeking, que esperada quando as instituies permitem que um agente burle as regras dosistema, ocorre quando ele maximiza sua renda privada em detrimento dos

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    recursos pblicos (KRUEGER, 1974; TULLOCK, 1967). Dessa forma, situaes demonoplio de poder e de recursos favorecem situaes em que os agentes preferemcometer a corrupo do que seguir as regras do sistema.

    As proposies de reformas institucionais, derivadas dessa vertenteeconmica de anlise da corrupo, tendem a ver o Estado - que detm omonoplio do uso da fora - como uma instituio naturalmente corrompida, olugar privilegiado dos vcios e da malversao de recursos, e devem caminhar nosentido de minimizar seu papel na sociedade e reduzir os incentivos para a prticada corrupo, por meio da reduo do poder da burocracia (ANECHIARICO eJACOBS, 1996). Pelo postulado econmico, a democracia e os sistemas deprobidade, devem seguir as regras do mercado, porquanto seja esse o mundo daimpessoalidade e uma estrutura competitiva que minimiza os sistemas de incentivo corrupo. A par disso, a literatura contempornea tem se dedicado a pensar ossistemas de integridade pblica na dimenso da sociedade civil, da mdia e deoutros atores importantes no controle da corrupo. Afirma-se, em confrontaocom os aspectos econmicos da corrupo, um aspecto pblico e mais orientado aopoltico. Refora-se a ideia de accountability pela via da democracia, em que oproblema do controle da corrupo demanda um processo de democratizao doEstado que est alm da questo administrativa e burocrtica (WARREN, 2004).

    O problema dessa abordagem econmica que ela tende a naturalizar acorrupo na rbita dos interesses materiais, sem perceber que ela estrelacionada a processos sociais e, por conseguinte, simblicos. Assim, a corrupo,para alm da questo propriamente monetria e contbil, est relacionada aprocessos sociais que levam em considerao valores e normas que, alm do

    institucional e do formal, consideram aspectos informais e culturais. A anlise dacorrupo deve atender a esses aspectos sociolgicos implicados noreconhecimento de normas formais e informais, porquanto a passagem do privadoao pblico ocorre em meio a configuraes de valores e normas. Ou seja, fundamental pensar o aspecto normativo envolvido no conceito de corrupo,porque ele tem uma natureza fugidia, j que depende de concepes normativas arespeito das prprias instituies sociais, em que pesem, dessa forma, os valoresque definem a prpria noo do que vem a ser o interesse pblico.

    fundamental pensar a corrupo em uma dimenso sistmica que alie amoralidade poltica - pressuposta e que estabelece os significados da corrupo -com a prtica social propriamente dita, na dimenso do cotidiano. Resgatar uma

    dimenso de moralidade para pensar o tema da corrupo significa buscar umaviso abrangente que d conta dos significados que ela pode assumir na esferapblica. a partir dessas significaes que podemos observar as formas que elapode assumir na sociedade, de acordo com aspectos polticos, sociais, culturais eeconmicos. Na prxima seo, apresento um modelo de anlise da corrupo.

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    Um modelo analtico para o estudo da corrupo no Brasil

    A corrupo, dessa forma, pode ser compreendida levando-se em

    considerao aspectos morais que esto pressupostos na prtica social ordinria. fundamental considerar os aspectos normativos envolvidos no tema da corrupo eo modo como a construo de sua significao social depende de valores quecirculam no plano da sociedade. A legitimidade da ao poltica apenas construda com a pressuposio desses valores fundamentais que configuram o que e o que no corrupo; ou seja, valores que configuram uma antinomia entreinteresse pblico e corrupo, tendo em vista concepes de mundo e valoresdiferentes na moralidade poltica4. Por esse postulado, a corrupo deve seranalisada em uma dimenso sistmica que considere, de um lado, a existncia devalores e normas que tenham uma conformao moral e, de outro lado, a prticasocial realizada no mbito do cotidiano de sociedades.

    Argumento que esses valores nascem de um processo deliberativo e tm umanatureza consensual no interior da ordem poltica, porquanto representamcategorias com as quais todos possam concordar e que consideram importantespara a configurao de um bom governo (FILGUEIRAS, 2008a). Ou seja, acompreenso da corrupo nasce de concepes consensuais definidas comovalores normativos fundamentais, que tm uma natureza lingustica originadacomunicativamente de acordo com concepes de bom governo e s pode ocorrerno mbito de uma sociologia das relaes de poder, de acordo com as significaesque ela pode assumir na sociedade. Essas significaes so derivadas de umprocesso hermenutico realizado na esfera pblica, de acordo com consensos

    normativos estabelecidos deliberativamente, os quais definem contedossubstantivos de valores - no plano da moralidade poltica - e definem suacontraparte normativa da corrupo.

    A corrupo, no plano da moralidade poltica, deve ser compreendida a partirde valores pressupostos, conforme concepes normativas de interesse pblico queconfiguram o que e o que no corrupo, tendo em vista normas que tm umcarter formal ou informal. Por esta assertiva, a corrupo espelha, sobretudo, umanatureza moral que depende dos juzos que atores relevantes fazem a respeito daordem poltica. Assim, a corrupo , consequentemente, um juzo moral

    4 Importante frisar que me refiro moralidade como valores sociais bsicos, que definem a

    responsabilidade do indivduo frente sociedade. No trato, neste artigo, de termos ticos, porque nopressuponho a existncia de valores particulares. Dessa forma, a confrontao entre tica e moralperpassa o argumento, medida que o conceito de corrupo tem uma conotao normativa, tendo emvista a questo da correo de normas morais. Nesse sentido, termos como decoro, honestidade,confiana e respeito tm um carter normativo de posies corretas do indivduo frente sociedade, quenem sempre sero ticas, do ponto de vista de definies do bem. Tratar da moralidade, portanto, nosignifica uma abordagem moralista, uma vez que no questiono se a corrupo boa ou ruim, se temcustos ou benefcios. A esse respeito, conferir Habermas (2004).

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    (FILGUEIRAS, 2008a), com base no qual consideramos determinada ao polticacorreta ou incorreta, de acordo com valores pressupostos que definem um contedonormativo da moralidade. Dessa forma, quando dizemos, no plano do discurso

    poltico, que determinado agente A desonesto, usou indevidamente os recursospblicos, cometeu uma improbidade administrativa, usou de clientelismo para seeleger ou simplesmente utiliza seu poder para obter alguma vantagem, julgamosque ele cometeu um ato de corrupo.

    O modelo analtico parte de uma concepo habermasiana da questo damoralidade, em que a construo da ao poltica legtima depende da justificaoe aplicao racional de valores e normas (HABERMAS, 2004). Os consensosnormativos constituem-se como expectativas normativas e so fundamentados naprxis pblica de justificao racional de valores por parte de uma comunidade decomunicao, visando estabelecer a verdade de enunciados normativos em funode razes justificadoras, as quais asseguram um processo de aprendizado moral.Isso , as convices normativas partilhadas intersubjetivamente tm uma funocognitiva que levam as partes conflitantes a um constante experimentar de normascolocadas deliberao. O saber moral sempre empregado na construo dosconsensos normativos, tendo em vista o fato de a justificao racional de normasocorrer em paralelo sua constante crtica. A moralidade, desse modo, tem umafuno epistmica e uma natureza de correo, que opera com justificaesracionais dadas ao entendimento. A fundamentao de normas morais, de acordocom Habermas, ocorre por uma atitude autocrtica nos contextos de aplicao, apar de uma troca emptica das perspectivas de interpretao oferecidas porcontextos de justificao. Os juzos envolvem uma moralidade configurada em torno

    de uma justificao racional de valores dados aplicao por meio de normas queassumem uma natureza jurdica no plano formal, e cultural no plano informal5.

    Portanto, quando dizemos que um agente A cometeu um ato de corrupo,tomamos como contedo do juzo moral expectativas normativas, que tm umanatureza consensual na esfera pblica. Espera-se que esse mesmo poltico A sejahonesto, aja com decoro e respeito aos deveres cvicos, atenda s necessidades dasociedade, seja capaz de legislar e executar normas que visem segurana dacomunidade, aloque recursos da maneira o mais eficiente e trate a coisa pblica demodo exemplar. Ao contrrio disso, julgamos a ao desse mesmo poltico comoum ato de corrupo. Por essa assertiva, o conceito de corrupo no se resumeaos interesses dos agentes, nem mesmo s normas jurdicas do ordenamento

    poltico, assumindo um carter plstico que apenas pode ser definido no contextolingustico, em que esses juzos so realizados (FILGUEIRAS, 2008a).

    5 A respeito do contedo da moralidade poltica e dos consensos normativos, conferir Filgueiras (2008a).

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    O fato que a distino entre a vida por excelncia e a vida cotidiana, e, porsua vez, a distino entre os juzos de valor e os juzos de necessidade permitemespecificar uma antinomia da moralidade poltica, que tenciona o conceito de

    corrupo no plano da prtica social. A corrupo tem uma natureza moral eprtica, que nem sempre so conexas, o que no quer dizer que ela deva sertolerada em funo de sua natureza complexa.

    At agora, especificamos o aspecto moral da corrupo, sem nos atermos aoaspecto propriamente prtico. Tratar da moralidade poltica significa especularsobre os significados lingusticos da corrupo (FILGUEIRAS, 2008a). Contudo,esses significados necessitam de uma teoria da prtica que os assente em umarealidade emprica. Os juzos morais de valor e de necessidade entrelaam-se naprtica social, representando situaes de crtica ordem poltica e suasinstituies. Contudo, como toda forma de julgamento, os juzos morais dacorrupo representam situaes contraditrias e posies contingentes,espelhando um processo permanente de confrontao da livre opinio formada naesfera pblica e nas instituies (FILGUEIRAS, 2008a).

    Seguindo a teoria das prticas de Bourdieu, procura-se superar o fosso quesepara a ao dos agentes e a estrutura social, bem como superar o problema daconscincia e da racionalidade. A prtica social, segundo Bourdieu, correlacionaconscincia e inconscincia, racionalidade e irracionalidade, no sentido de rebaixaro poder da razo e do sujeito na produo do conhecimento (BOURDIEU, 2005). Doponto de vista de uma teoria das prticas, o estudo sociolgico concentra-se nasestruturas estruturantes, fazendo com que o estudo da ao ocorra pelasdisposies dos atores conforme os espaos sociais e seu capital cultural. Ou seja,

    de acordo com o autor, o estudo da razo prtica demanda o estudo doconhecimento social pressuposto e do modo como ele representado na sociedade.

    A cincia social, como atesta Bourdieu (2005), deve recusar as alternativas daconscincia e da inconscincia, da racionalidade e da irracionalidade, visto quedicotomias conceituais encobrem os processos pelos quais os fatos sociaisocorrem. O conceito de habitus, nesse sentido, procura superar as dicotomias emteoria social, atrelando s prticas cotidianas o conhecimento moral da sociedade.No que diz respeito poltica, a ao no nem intencional nem espontnea, e simdepende do conjunto de interaes e do capital cultural acumulado, que vincula osfenmenos polticos s manifestaes pblicas e ao ato pblico no contexto dasinstituies. A sociologia da poltica no deve estar assentada na dicotomia ao e

    estrutura, mas no conjunto das prticas sociais que no so nem racionais nem

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    irracionais, porm, localizadas no habitus criado no conjunto do mundo cotidiano dasociedade6.

    Analisar a corrupo em seu sentido prtico, seguindo a trilha de Bourdieu,

    no significa dissoci-la dos valores fundamentais da moralidade poltica. Significa,de acordo com o autor, atestar as antinomias do mundo social e suas contradies,no sentido de perceber uma estrutura onde essa prtica ocorre. De acordo comBourdieu, no caso da poltica, fundamental pensar os elementos prticosinformados pelo teste moral de universalizao. Como aponta o autor:

    Colocar a questo da moral na poltica ou da moralizao da poltica em

    termos sociologicamente realistas significa interrogar-se, de modo muito

    prtico, a respeito das condies que deveriam ser preenchidas para que as

    prticas polticas fossem submetidas, permanentemente, a um teste de

    universalizabilidade; para que o prprio funcionamento do campo poltico

    imponha aos agentes a engajados em tempo integral limitaes e

    controles tais que eles sejam obrigados a seguir estratgias reais de

    universalizao. Vemos que se trataria de instituir universos sociais no

    quais, como na repblica ideal de Maquiavel, os agentes teriam interesse

    na virtude, no desinteresse, no devotamento ao servio pblico e ao bem

    comum.

    A moral poltica no cai do cu; ela no est inscrita na natureza humana.

    Apenas uma Realpolitik da Razo e da Moral pode contribuir para

    implementar a instaurao de um universo no qual todos os agentes e seus

    atos estariam submetidos - especialmente pela crtica - a uma espcie de

    teste de universalizabilidade permanente, institudo praticamente naprpria lgica do campo. (BOURDIEU, 1996, p. 221).

    A moralidade poltica especifica os valores que fundamentam o julgamentomoral da corrupo que significam, dessa forma, pressupostos que informam ocontedo do julgamento moral, como demandado por Bourdieu. A tolerncia corrupo, portanto, ocorre exatamente no espao entre os juzos de valor e os

    6 O conceito de habitus um tipo de operao terica preocupada com as disposies, os modos deperceber, de pensar e de sentir que levam os atores a agirem de uma maneira, em uma circunstnciadada. Essas disposies para a ao, como circunscreve Bourdieu em relao ao conceito de habitus, no

    so determinadas nem mecnicas. So produtos de uma aprendizagem social, flexvel e plstica,porquanto constituem o modo de valorizar e julgar o mundo. O habitus conforma a ao a certosprincpios construdos pelos valores em estado prtico e, portanto, no conscientes. Como afirma oautor, o habitus estruturado e estruturante, visto que so disposies interiorizadas pelos indivduos, noplano da estrutura, e geradoras de prticas e representaes coletivas, no plano da estruturao. Ohabitus no depende de uma conscincia ou de um clculo racional dos fins, porque o princpio de umconhecimento social no consciente, adquirido cognitivamente conforme mecanismos de percepo evalorao do mundo cotidiano.

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    juzos de necessidade, ou seja, entre o limite dos valores e o limite dasnecessidades, representando uma antinomia prpria das sociedadescontemporneas. Por essa assertiva, nota-se que moralidade e prtica social tm

    um aspecto contraditrio, uma vez que podemos concordar com valores moraisuniversais, como por exemplo, o valor da honestidade, ao mesmo tempo em quepodemos agir de forma desonesta. Isso explica o fato de criarmos a expectativa deque os polticos e cidados sejam honestos, mas o sujeito, ao mesmo tempo, quererentrar em um esquema de corrupo, tendo em vista interesses bem determinados,na esfera econmica e social. A antinomia entre juzos de valor e juzos denecessidade permite compreender a antinomia existente entre moralidade e prticasocial, explicando a tolerncia corrupo nas sociedades contemporneas.

    A antinomia entre normas morais e prtica social cria um contexto detolerncia corrupo que explica o fato de atores, consensualmente, concordaremcom a importncia de valores fundamentais como respeito, honestidade, decoro evirtudes polticas, mas, ao mesmo tempo, concordarem que, na poltica, um poucode desonestidade pode cumprir uma funo importante. Em um sentido bastantemaquiaveliano, importante distinguir a poltica do mundo real e os valoresnormativos que so passveis de acordo racional, o que explica esse contexto detolerncia. dessa forma que a corrupo normal poltica, apesar de todos osesforos para impedi-la7. Os juzos morais de valor - pautados pela vida pelaexcelncia - e os juzos de necessidade - pautados pela vida cotidiana - explicam aantinomia existente entre normas morais e prtica social da corrupo, de acordocom a definio de limites tericos que a circunscrevem. Ou seja, de acordo esseslimites, possvel definir uma taxonomia da corrupo conforme seu alcance na

    prtica social. A corrupo pode ser controlada, tolerada ou endmica, de acordocom seu alcance prtico na sociedade. A figura a seguir procura representar,graficamente, essa taxonomia da corrupo:

    7 O carter de normalidade da corrupo no significa que ela possa trazer benefcios para odesenvolvimento ou algo parecido. Seguindo a linha de Durkheim (2003), a corrupo normal desdeque no represente um processo de decadncia institucional (patologia) da sociedade. Por ser normal,ela precisa ser combatida e punida, porquanto se sair de controle, pode contribuir para a decadncia deinstituies.

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    Figura 1

    Os Patamares da Corrupo na Poltica

    Corrupo controlada(A)

    Corrupo tolerada(B)

    Corrupo endmica(C)

    No caso da corrupo controlada (A), no h antinomia entre normas morais eprtica social, representando uma situao ideal em que valores e necessidadesconvergem em uma razo prtica que mantm a corrupo sob controle. Esse tipode corrupo pressupe uma sociedade estica e dirigida pelos deveres,funcionando como uma espcie de modelo normativo perfeito, mas que noencontra efetividade no mundo real. No caso da corrupo tolerada (B), estpresente a antinomia entre valores e necessidades, em que os atores sociais socapazes de concordar com os valores fundamentais da poltica, mas, no planoprtico, no transformam esses significados morais em uma prtica efetiva. A

    tolerncia corrupo est relacionada a contextos sociais marcados pelo mundodos interesses cotidianos, em que a atividade poltica realizada na dimenso darepresentao. Finalmente, no caso da corrupo endmica (C), a antinomia entrevalores e necessidades desaparece pela ausncia de significados morais para a vidasocial e uma prtica predatria, marcada por baixa solidariedade. Esse cenrioocorre em contextos pouco comuns, mas empiricamente encontrados,representando situaes de rupturas polticas e decadncia institucional.

    Taxonomias semelhantes a essa, que especulam sobre a tolerncia dacorrupo no contexto de sociedades democrticas, j foram produzidas, como notrabalho de Heidenheimer (2001). O autor buscou os critrios de tolerncia corrupo pela anlise de variveis atitudinais que revelem o modo como oscidados percebem e combatem a corrupo, ao mesmo tempo em que ela podeser encarada como uma prtica corriqueira no cotidiano da vida social. Nessesentido, de acordo com Heidenheimer (2001, p. 152), a corrupo pode ser negra,cinza ou branca: negra quando as elites polticas e a opinio pblica formam umconsenso de que a corrupo deve ser punida por razo de princpio; cinza

    Limite das necessidades

    Limite dos valores

    Patogenia

    das

    instituies

    polticas

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    quando as elites e a opinio pblica no formam esse consenso a respeito dapunio da corrupo, fazendo com que alguns concordem com sua punio porprincpio e outros no e, finalmente, branca quando a corrupo ganha um

    aspecto tolervel, em que no existe apoio pblico punio.A taxonomia de Heidenheimer leva em considerao o fato de que a tolerncia

    corrupo espelha o apoio pblico imputao de punies a casos de corrupo.A tolerncia corrupo explicada por Heidenheimer (2001) pelo carteratitudinal de apoio das elites polticas e da opinio pblica de massas a umacultura da punio e da criao de sistemas de vigilncia corrupo. Ou seja, oautor procura equilibrar variveis de percepo da corrupo com a prtica depunio no interior de sociedades. Especulo, ao contrrio, que a tolerncia corrupo, como expusemos acima, nasce de antinomias existentes na culturapoltica de fundo, tendo em vista as contradies espelhadas na avaliao daopinio pblica de casos de corrupo. O objetivo da taxonomia exposta,considerando a corrupo controlada, a corrupo tolerada e a corrupoendmica, no contrastar o apoio pblico punio da corrupo, mas contrastaro modo como os indivduos avaliam a corrupo em confrontao com os aspectosmorais - de acordo com valores e normas - e prtica social - no mbito do cotidiano.Pensar a corrupo negra significa especular sobre um sistema de vigilncia corrupo muito prximo de formas autocrticas de poder. Isso , nas democracias normal alguma tolerncia corrupo, desde que ela no se torne um tipo deendemia social.

    Do ponto de vista terico, esse modelo analtico permite investigar as razespelas quais indivduos toleram a corrupo, sendo esse o cenrio tpico das

    sociedades contemporneas. Na modernidade, a corrupo tolerada como umaprtica normal, o que no quer dizer que ela seja correta. A corrupo controlada um tipo ideal em que moralidade poltica e a prtica social coincidem, pressupondouma sociedade homognea - e porque no autocrtica - onde no h divergncia arespeito dos valores polticos bsicos e das prticas sociais corretas e incorretas.Seria, grosso modo, uma cidade platnica, governada por um demiurgo. Acorrupo endmica parte da assuno de que possvel a corrupo representaros momentos de decadncia institucional porquanto no h consenso a respeito dosvalores polticos bsicos e muito menos a respeito de quais prticas so permitidasno mbito da sociedade. Ou seja, representa uma situao em que a corrupoesteja associada a uma possvel falta de sociabilidade. A prxima seo cuida de

    analisar, empiricamente, a corrupo a partir desse modelo de anlise, tomando ocaso do Brasil, de acordo com os resultados do survey Os brasileiros e a corrupo8.

    8Survey realizado pelo Centro de Referncia do Interesse Pblico (CRIP) da Universidade Federal de

    Minas Gerais (UFMG) aplicado amostra nacional entre 10 e 16 de maio de 2008, pelo instituto VoxPopuli. A amostra foi estratificada pelas regies do territrio brasileiro e aplicada a um universo de 2421

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    A tolerncia corrupo no Brasil

    Boa parte das pesquisas relizadas a respeito do tema da corrupo tem

    considerado como elemento primordial para sua compreenso a percepo quecidados comuns tm a respeito dela. Como destaca Abramo (2005), o problemade abordar a corrupo empiricamente o fato de no haver uma forma demedio direta desse fenmeno, o que pode significar o fato de ser possvel queessas pesquisas apresentem vieses e controvrsias interpretativas, que poucoesclarecem o seu real alcance na sociedade.

    Abramo crtica o ndice de Percepo da Corrupo da TransparnciaInternacional (TI), que faz um ranking da corrupo para diferentes pases, tendocomo primeira objeo o fato de permitir inclinaes ideolgicas. A segundaobjeo est no fato de haver uma impreciso estatstica dada por uma escala de 0a 10 com intervalos de confiana que podem chegar a 2. Como o autor mostra,casos como o do Suriname, em que o ndice equivale a 3,6, um intervalo deconfiana de 2,0 pode coloc-lo numa posio de corrupo sistmica ou, aomesmo tempo, de razovel controle. A terceira objeo ideia de percepo est nofato de os dados de cada pas serem escalonados em um ranking. A rigor, se umpas melhora n posies no ranking, isso significa que outro descendeu n posies,podendo haver a hiptese de a corrupo nesse segundo pas no ter se alterado,apesar de ele cair no ranking. A quarta objeo que a montagem de um rankingno oferece uma compreenso mais ampla a respeito dos sistemas de integridadedos diferentes pases. Isso no permite uma comparao entre eles, nem mesmo deboas experincias de controle da corrupo. Por fim, o autor formula uma quinta

    objeo, subsidiria, que estaria na possibilidade de uso instrumental do ranking(ABRAMO, 2005, p. 34-35).

    As crticas apresentadas apontam para a vulnerabilidade do conceito depercepo, uma vez que coletar uma medida de corrupo pela percepo significacompreend-la por algo que volvel e suscetvel exposio por parte da mdia.Governos normalmente justificam um suposto aumento da corrupo pelo modocomo ela desvelada pela mdia e sua influncia na opinio pblica.Acertadamente, Abramo aponta a cautela que devemos adotar com relao aoconceito de percepo, uma vez que ele no significa uma medida direta dofenmeno emprico, mas uma medida indireta que no permite uma concluso arespeito da corrupo existente em determinado pas. No caso brasileiro, as sries

    indivduos maiores de 16 anos. As cotas utilizadas para a seleo dos entrevistados foram: situao dodomiclio, gnero, idade, escolaridade, renda familiar e situao perante o trabalho, calculadasproporcionalmente a cada estrato de acordo com os dados do IBGE, Censo 2000 e PNAD 2006. O surveytem um nvel de confiana de 95% e margem de erro de +/- 2,0%. A pesquisa constou da aplicao dequestionrios estruturados a essa populao.

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    histricas realizadas pela Transparncia Internacional, em parceria com o IBOPE,demandam esse cuidado porque no revelam o tamanho da corrupo no pas, masaspectos que podem ser considerados na compreenso que a sociedade tem da

    corrupo.Apesar de ser uma medida indireta, consideramos que a questo da

    percepo pode revelar traos dos elementos culturais da corrupo. nessadimenso que o conceito de percepo da corrupo pode ser til, ou seja, poderevelar uma cultura poltica de fundo informada por perspectivas atitudinaisdelimitadas por variveis abrangentes e indiretas. Por percepo da corrupocompreendemos uma medida indireta balizada no modo como os indivduosdescrevem o fenmeno. A percepo, nesse sentido, tem dois elementos queprecisam ser considerados: (1) o elemento propriamente descritivo em que oindivduo delineia certo objeto; (2) os parmetros utilizados para realizar adescrio. Um indivduo percebe algo quando formula impresses a respeito doobjeto com base em parmetros pressupostos para a sua compreenso. Nessecaso, partimos da premissa de que a percepo da corrupo por parte do cidadocomum significa sua capacidade de descrever e avaliar a corrupo com base emparmetros morais definidos previamente. Como afirmamos anteriormente, naterceira seo deste artigo, a corrupo expressa um juzo moral, em que oindivduo avalia a ao praticada por um agente com base em uma moralidadepressuposta, fundamentada em consensos a respeito de valores e normas queorganizam concepes de bom governo.

    Do ponto de vista da anlise emprica da tolerncia da corrupo no Brasil,nos pautamos em uma pesquisa de percepo, tomando o cuidado de recortar o

    modo como ela percebida no mbito da cultura poltica. Os dados expostos norevelam uma medida direta da corrupo, mas uma medida indireta que procura aforma como ela percebida na dimenso da opinio pblica brasileira. A anliseemprica da corrupo no Brasil, com base no modelo analtico apresentado, estbaseada em um survey realizado pelo Centro de Referncia do Interesse Pblico(CRIP), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

    A pesquisa procurou compreender o modo como o brasileiro percebe oproblema da corrupo na poltica, de maneira a configurar uma viso geral quepermita compreender noes gerais de conceitos polticos e o modo como essapercepo construda no sentido de tornar a corrupo tolerada. importanteressaltar que o modo como a corrupo se torna aparente nos meios de

    comunicao pode alterar a sua percepo, sendo voltil e suscetvel mdia, bemcomo marcada por muitos aspectos subjetivos. Contudo, neste artigo, analisoaspectos relacionados tolerncia corrupo na poltica brasileira, tendo emvista, uma antinomia entre normas morais e prtica social. O tratamento segue umrecorte na dimenso da cultura poltica,atravs do qual procuro pelas normas

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    morais que funcionam como parmetro da percepo da corrupo emcontraposio ao modo como os indivduos descrevem algumas prticas sociais. Atolerncia corrupo, baseada na noo que apresento de percepo, deriva do

    modo como o brasileiro compreende determinadas normas morais em confrontaocom concepes prticas. No esgoto as possibilidades do survey, mas apresentoalguns dados relacionados dimenso da cultura poltica.

    Em primeiro lugar, chamo a ateno para os modos de acordo com os quais obrasileiro compreende o conceito de interesse pblico. Procuro contrastar noesde interesse pblico que se ligam exclusivamente a uma noo de Estado comconcepes de interesse pblico ligadas a uma noo de responsabilidade coletivaou utilitria, sendo, nesse ltimo caso, o interesse pblico compreendido comoaquilo que interessa ao maior nmero de pessoas. As noes de interesse pblicoexpostas influenciam no modo como o brasileiro pensa a corrupo. De acordo comos dados, a corrupo no Brasil est ligada a atos ilcitos praticados porfuncionrios pblicos, no percebendo a possibilidade de a corrupo poder serpraticada na dimenso privada (Tabela 1):

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    Tabela 1Concepes de interesse pblico

    Categorias N % % Vlido qualquer coisa que interessa maioriadas pessoas

    483 20,0 20,9

    Alguma coisa que responsabilidade doEstado resolver

    548 22,6 23,8

    Alguma coisa que de responsabilidade detodos ns resolvermos

    961 39,7 41,7

    Todas as frases explicam do mesmo modoo que interesse pblico.

    298 12,3 12,9

    Nenhuma das frases explica o que interesse pblico

    16 0,7 0,7

    No sabe112 4,6

    No respondeu 3 0,1

    Total2421 100,0

    Fonte: Centro de Referncia do Interesse Pblico / Vox Populi, 2008

    No mbito do survey, perguntou-se qual tipo de corrupo prejudicaria mais oEstado, se aquela praticada exclusivamente por funcionrios pblicos, ou aquelaque pode ser praticada por qualquer pessoa. Ao analisar a Tabela 2, verifica-se que45,4% da amostra pensam que Um ato que prejudica o Estado praticado por umfuncionrio pblico ou poltico a mais corrupta das situaes. 29,1% acreditamque a situao mais corrupta Um ato que prejudica o Estado praticado porqualquer pessoa e 21,9% creem que As duas situaes so igualmentecorruptas.

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    Tabela 2Situaes de corrupo

    Categorias N % % VlidoUm ato que prejudica o Estado praticado

    por funcionrios pblicos ou polticos1099 45,4 46,9

    Um ato que prejudica o Estado praticado

    por qualquer pessoa704 29,1 30,1

    As duas situaes so igualmente

    corruptas 530 21,9 22,6

    Nenhuma das situaes corrupta8 0,3 0,3

    No sabe 77 3,2

    No respondeu3 0,1

    Total2421 100

    Fonte: Centro de Referncia do Interesse Pblico / Vox Populi, 2008

    Cruzando as duas questes, obtm-se uma associao entre as duas variveis,em que concepes de interesse pblico influenciam o modo como os brasileirospercebem situaes de corrupo. Nesse caso, o modo como o brasileiro

    compreende a questo do interesse pblico, afirmando que ele deresponsabilidade do Estado, implica o fato de ele compreender a corrupo comopraticada por funcionrios pblicos. Como o interesse pblico representa, nadimenso do imaginrio coletivo brasileiro, uma ideia de interesse do Estado, esperarado que a corrupo seja compreendida na esfera estatal e no na dimensoda sociedade em seu conjunto. Nesse caso, a cultura poltica vincula, de algumamaneira, o tema da corrupo ao tema do Estado, sem perceber a corrupo que praticada na dimenso da sociedade.

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    Tabela 3Tabela de contingncia da associao entre concepes de interesse pblico e

    concepes de corrupo

    Qual das situaes a mais corrupta

    Qual das frases explica melhoro que interesse pblico

    Um ato queprejudica o

    Estadopraticado porfuncionriopblico ou

    poltico

    Um ato queprejudicaEstado,

    praticadopor qualquer

    pessoa

    As duassituaes

    soigualmentecorruptas

    Nenhumadas duas

    situaes corrupta

    Total

    N 284 126 67 0 477 qualquer coisa queinteressa maioria daspessoas

    % 59,5 26,4 14,0 0,0 100,0

    N 287 176 77 1 541Alguma coisa que responsabilidade doEstado resolver

    % 53,0 32,5 14,2 0,2 100,0

    N 445 332 175 2 954Alguma coisa que deresponsabilidade de todosns resolvermos

    % 46,6 34,8 18,3 0,2 100,0

    N 51 54 182 4 291Todas as frases explicamdo mesmo modo o que interesse pblico

    % 17,5 18,6 62,5 1,4 100,0

    N 3 3 4 0 10Nenhuma das frasesexplica o que interessepblico

    % 30,0 30,0 40,0 0,0 100,0

    N 1070 691 505 7 2273Total

    % 47,1 30,4 22,2 0,0 100,0Fonte: Centro de Referncia do Interesse Pblico / Vox Populi, 2008

    No teste do Qui-quadrado, constatamos uma alta associao entre as duasvariveis, sendo ela significativa na dimenso da amostra, revelando umadependncia entre concepes de interesse pblico e de corrupo. De uma formamuito superior esperada, aquelas pessoas que possuem uma definio maisampla de interesse pblico - Todas as frases explicam do mesmo modo o que interesse pblico - tendem a considerar que as duas situaes apresentadas soigualmente corruptas.

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    Tabela 4Teste do Qui-Quadrado

    Valor Graus de Liberdade Valor PPearson Chi-Square 360,81 12 0,0

    Likelihood Ratio 308,985 12 0,0

    Linear-by-Linear Association 175,828 1 0,0

    Casos vlidos 2273

    Fonte: Centro de Referncia do Interesse Pblico / Vox Populi, 2008.

    Os dados da Tabela 4 corroboram os dados e testes da Tabela 3.A Tabela 5 procura compreender o modo como o brasileiro percebe a

    corrupo na dimenso das instituies. Foi pedido ao entrevistado que desse umanota, variando em uma escala de 0 a 10, para a presena da corrupo em algunsambientes institucionais, tanto pblicos quanto privados. Nos extremos, a nota zeroexpe nenhuma corrupo e a nota dez expe muita corrupo. A tabela apresentaa anlise das mdias de notas atribudas pelos entrevistados, expressando que acorrupo est mais presente nas instncias representativas, em especial nasCmaras de Vereadores, na Cmara dos Deputados, nas Prefeituras e no SenadoFederal, e que tenham, de alguma forma, relao com o Estado. Importante notarque os ambientes institucionais que obtiveram indicadores mdios acima da mdiadas mdias, exceo da Polcia Federal, tm uma natureza pblica e estatal. Poroutro lado, os ambientes institucionais que obtiveram indicadores mdios abaixo da

    mdia das mdias tm uma natureza privada. Esse dado permite especular que obrasileiro exige excelncia das instituies pblicas e estatais, percebendo de formaum pouco mais branda a corrupo que praticada no mundo privado, ligado snecessidades cotidianas9.

    9 Testes estatsticos no mostraram significncia na correlao entre os dados e indicadores sociaiscomo educao, renda e gnero.

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    Tabela 5A presena da corrupo em ambientes institucionais

    Ambientes MdiaDesviopadro

    Limiteinferior

    Limite superiorCasosvlidos

    Cmara dos vereadores 8,36 2,03 8,27 8,44 n=2385Cmara dos Deputados 8,34 1,95 8,26 8,41 n=2397Prefeitura 8,07 2,16 7,98 8,15 n=2385Senado Federal 8,02 2,12 7,93 8,10 n=2366As pessoas mais ricas 8,02 2,01 7,94 8,10 n=2398Governo do Estado 7,56 2,32 7,47 7,66 n=2360Os empresrios 7,53 2,30 7,43 7,62 n=2355Presidncia daRepblica

    7,43 2,49 7,33 7,53 n=2322

    Polcia Militar 7,42 2,44 7,32 7,52 n=2369

    Polcia Civil 7,37 2,47 7,27 7,47 n=2359O Poder Judicirio 7,36 2,38 7,26 7,46 n=2331Clubes de Futebol 7,15 2,54 7,05 7,26 n=2313Os homens 6,88 2,29 6,79 6,97 n=2372Igrejas Evanglicas 6,67 2,71 6,55 6,78 n=2228O povo brasileiro 6,67 2,31 6,58 6,77 n=2348Polcia Federal 6,64 2,72 6,53 6,75 n=2299A classe mdia 6,59 2,23 6,50 6,68 n=2370A mdia 6,33 2,65 6,22 6,44 n=2273Movimentos Sociais 6,32 2,47 6,21 6,42 n=2262ONGs 5,84 2,66 5,72 5,95 n=2131Associao de Bairro 5,65 2,66 5,54 5,77 n=2127Igreja Catlica 5,57 2,80 5,46 5,69 n=2106

    As pessoas mais jovens 5,42 2,50 5,32 5,53 n=2223As mulheres 5,15 2,55 5,04 5,25 n=2196As pessoas mais velhas 4,85 2,70 4,73 4,96 n=2111As pessoas mais pobres 4,80 2,85 4,67 4,92 n=2016Mdia das mdias 6,80 1,45 6,75 6,86 n=2418

    Fonte: Centro de Referncia do Interesse Pblico / Vox Populi, 2008

    Na Tabela 6, foi pedido aos entrevistados uma nota de zero a dez paradeterminados casos, sendo zero a representao de casos de nenhuma corrupo edez para casos de muita corrupo. O objetivo foi medir a intensidade com que osentrevistados consideram determinadas situaes como muito ou poucocorrompidas ou corruptoras. Os entrevistados consideraram os casos apresentadoscomo de muita corrupo, com mdias bastante altas, exceo dos casos desubornar um funcionrio pblico para tirar um documento mais rpidamente oupraticar grilagem de terras do governo. Existe, nesse sentido, um parmetro moral,pressuposto de acordo com concepes normativas de certo e errado, em que acorrupo condenvel do ponto de vista dos valores da sociedade. Contudo, os

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    dados da Tabela 7 revelam que os mesmos entrevistados concordam com situaesem que a corrupo pode ser praticada.

    Tabela 6Mdias da intensidade da corrupo em situaes concretas

    Casos MdiaDesviopadro

    Limiteinferior

    Limitesuperior

    CasosVlidos

    Um policial usar seu poder para tirarvantagem ou dinheiro de algum

    9,25 1,38 9,20 9,31 n=2413

    Um empresrio financiar a campanha deum poltico esperando receber algo emtroca

    9,12 1,47 9,06 9,18 n=2408

    Um poltico receber dinheiro parafavorecer uma empresa em uma

    licitao

    9,08 1,61 9,01 9,14 n=2397

    Um promotor de justia fazer "vistagrossa" aos erros cometidos por outropromotor

    8,95 1,70 8,88 9,02 n=2405

    Um poltico financiar uma ONG,esperando apoio em eleies

    8,75 1,82 8,68 8,83 n=2383

    Um funcionrio pblico deixar dedenunciar as fraudes cometidas por seuchefe

    8,67 1,87 8,60 8,75 n=2409

    Pagar um funcionrio pblico para tirarum documento que precisa mais rpido

    8,43 2,05 8,35 8,51 n=2394

    Uma pessoa (ou famlia) invadir terrasdo governo e explorar essa terraeconomicamente

    7,94 2,35 7,84 8,03 n=2320

    MDIA DAS MDIAS 8,76 1,31 8,70 8,81 n=2418

    Fonte: Centro de Referncia do Interesse Pblico / Vox Populi, 2008.

    A Tabela 7 mostra resultados obtidos quando os entrevistados foramquestionados a respeito de algumas situaes prticas que poderiam representar acorrupo. O objetivo desse questionamento era considerar antinomias possveisentre normas morais e prtica social, tendo em vista dados categricos queperguntavam se o entrevistado concorda ou no com a situao exposta. O cartersubjetivo de todo survey, dessa forma, pode subestimar se, de fato, diante de umasituao prtica, o indivduo entraria ou no em um esquema de corrupo, por

    exemplo. Contudo, os dados mostram que relativamente alto o percentual depessoas que concordam com situaes de corrupo e julgam que ela seja algonatural poltica. Pelo conceito de prtica de Bourdieu (2005), importantecompreender que essas representaes espelham situaes concretas relacionadasa um capital cultural acumulado na sociedade brasileira, definindo, dessa forma, os

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    elementos da ao social. Assim, essas consideraes a respeito da corrupo noBrasil carregam um sentido prtico definido em torno de concepes culturais e umconhecimento social latente. Os dados da Tabela 7 mostram que, apesar de as

    pessoas concordarem com determinadas normas morais, como, por exemplo, ovalor da honestidade, elas esto propensas a participar de esquemas de corrupo.

    Tabela 7Concepes a respeito da corrupo no Brasil (%)

    Fonte: Centro de Referncia do Interesse Pblico / Vox Populi, 2008.

    Concepes ConcordaNo concorda

    nem discordaDiscorda NS/NR Total

    Em algumas situaes, bobagem a pessoa no entrarem um esquema de corrupo, pois se ela no entrar,outro entra.

    30 7 60 3 100

    Qualquer um pode ser corrompido, dependendo do

    preo que for pago ou da presso que for feita.39 7 51 3 100

    Corrupo e honestidade vm de bero: ou a pessoa corrupta ou no .

    55 9 34 2 100

    Se for para ajudar algum muito pobre, muitonecessitado, no faz mal um pouco de corrupo.

    26 11 62 2 100

    Se voc ficar sabendo de algum esquema decorrupo, deve sempre denunciar s autoridades.

    73 11 13 2 100

    Algumas coisas podem ser um pouco erradas mas nocorruptas, como por exemplo sonegar algum imposto,quando ele caro demais.

    36 12 49 4 100

    Se as leis que existem fossem cumpridas e no

    existisse tanta impunidade, a corrupo diminuiria.84 5 9 2 100

    O conceito de honestidade relativo, depende dasituao.

    48 11 38 3 100

    Em qualquer situao, no interessa qual, existesempre chance da pessoa ser honesta.

    85 5 10 1 100

    No tem jeito de fazer poltica sem um pouco decorrupo.

    31 8 59 2 100

    Se for para proteger algum de sua famlia, est certofazer alguma coisa um pouco corrupta.

    25 11 61 3 100

    Se estiver necessitada e um poltico oferecer benefciosem troca do voto, no est errado a pessoa aceitar.

    26 10 62 2 100

    Dar um dinheiro para um guarda para escapar de uma

    multa no chega a ser um ato corrupto. 24 8 66 2 100Para diminuir a corrupo, esto faltando novas leis,com penas maiores e mais duras.

    82 6 11 1 100

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    As concepes apresentadas na Tabela 7 mostram elementos plsticos e

    bastante flexveis a respeito da corrupo. Mas por que poderamos dizer que existe

    uma tolerncia corrupo no Brasil? Ao mesmo tempo em que os entrevistados

    consideram as aes descritas na Tabela 6 muito corruptas, uma parte

    considervel deles concorda em entrar em um esquema de corrupo (30%),

    admite que qualquer um pode ser corrompido, dependendo do preo (39%), que a

    corrupo e a honestidade veem de bero (55%), que a corrupo vlida para

    ajudar os mais pobres (26%), que sonegar imposto vlido (36%), que o conceito

    de honestidade relativo (48%), que no tem jeito de fazer poltica sem um pouco

    de corrupo (31%), que a corrupo vlida para proteger algum da famlia

    (25%), que em casos de necessidade correto vender o voto (26%), que subornar

    um guarda no chega a ser um ato corruptor (24%). A Tabela 7, por sua vez expe

    concepes prticas comuns ao cotidiano e que envolvem o tema da corrupo.

    notvel que essas concepes prticas so passveis de avaliao por parte do

    entrevistado, que o faz tomando perspectivas morais de correo da ao, isso , se

    a ao descrita correta ou no com base em deveres morais do cidado. Nesse

    caso, contrastando com a Tabela 6, percebemos a posio dbia do entrevistado.

    Ele considera determinadas aes erradas, mas, diante de um cotidiano marcado

    por necessidades, ele tem uma propenso a tolerar certa corrupo. No h

    consenso sobre as situaes expostas na Tabela 7, porquanto as discordncias so

    elevadas. Na maior parte das vezes, foram colocadas situaes movidas por

    necessidades, como impostos, proteo da famlia, ajuda aos pobres, etc. esse

    contexto de necessidades que contradiz a imoralidade descrita para a corrupo,

    criando um contexto de tolerncia a esse tipo de prtica.

    O que os dados da Tabela 7 revelam, em contraposio Tabela 6, uma

    antinomia, existente no Brasil, entre normas morais e prtica social. Ou seja, a

    corrupo no pode ser explicada pelo carter do brasileiro, por sua cordialidade,

    malandragem ou esperteza, porque ele capaz de absorver contedos substantivos

    da moralidade poltica, ao discordar de situaes de corrupo. Os entrevistados

    consideram errado um poltico receber dinheiro para favorecer uma empresa em

    uma licitao, ou um empresrio financiar campanhas esperando receber algo em

    troca. Porm, quando para proteger a famlia, um pouco de corrupo tolervel

    ou, se houver necessidade, correto vender o prprio voto. Nesse caso, osentrevistados tm noo dos valores pblicos, mas os juzos de necessidade

    corrompem, frente a uma tolerncia da corrupo vista no outro, nunca em si

    mesmo. Existe uma disposio prtica do brasileiro a entrar em esquemas de

    corrupo, que contrasta com sua configurao moral. Somos capazes de,

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    consensualmente, concordar com determinados valores morais, mas toleramos

    certa corrupo porquanto ela esteja referida a um capital cultural que a torna

    cotidiana e latente, com uma natureza extremamente flexvel, sendo aplicada a

    situaes muito diferentes. no intermdio dos juzos de valor e dos juzos de

    necessidade - como na Figura 1 - que a tolerncia corrupo opera.

    A tolerncia corrupo no um desvio de carter do brasileiro, uma

    propenso e culto imoralidade, nem mesmo uma situao de cordialidade, mas

    uma disposio prtica nascida de uma cultura em que as preferncias esto

    circunscritas a um contexto de necessidades, representando uma estratgia de

    sobrevivncia que ocorre pela questo material. A tolerncia corrupo no uma

    imoralidade do brasileiro, mas uma situao prtica pertencente ao cotidiano das

    sociedades capitalistas. A confrontao entre excelncia e cotidiano cria uma

    antinomia entre valores e prtica, tornando a corrupo um tipo de estratgia de

    sobrevivncia, mesmo em um contexto onde a moralidade existe. Isso implica que a

    corrupo represente um desafio democratizao brasileira, no no plano formal,

    mas no plano da cultura poltica. No se pode dizer, portanto, que o brasileiro

    tpico represente um caso de ausncia de virtudes. As democracias no podem

    confiar apenas nas virtudes dos cidados, uma vez que fundamental pensar a

    efetividade das leis. As virtudes so necessrias, mas no representam uma

    condio suficiente para manter o funcionamento da democracia. necessrio

    pensar, porm, no caso brasileiro, um processo de democratizao no plano da

    sociabilidade e da cultura, tendo como horizonte uma democracia que no se

    resuma a seus ritos formais, mas que seja capaz de garantir a adeso do cidado

    comum s instituies democrticas, tendo em vista a efetividade da lei e

    mecanismos democrticos de controle da corrupo. O que poderia tornar a

    corrupo no Brasil endmica seria a possibilidade dos valores pblicos

    degenerarem.

    Consideraes finais

    A pesquisa apresentada carece de um sentido comparativo com experinciasinternacionais, bem como de uma srie histrica que permita inferncias maisconclusivas. Contudo, os dados apontam para o fato de que a democratizao

    brasileira ainda carece de efetivao de princpios e valores fundamentais quealicercem uma cultura poltica democrtica. Apesar de avanos nesse caminho,como demonstram Moiss e Carneiro (2008), ainda persistem posies cticas ecnicas entre os cidados em relao s instituies formais. O resultado aconstatao de uma sndrome de desconfiana e indiferena.

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    A posio contraditria do cidado comum em relao corrupo acarretaesse contexto de tolerncia, fazendo com que indivduos tomem atitudes em quepreferem aderir a esquemas de corrupo e afirmar que as pessoas tm um preo a

    seguirem a lei. Os dados mostram, entretanto, que esse mesmo cidado comum capaz de reconhecer valores morais fundamentais e, consensualmente, reconhecerque esses valores so importantes na dimenso da sociabilidade e da poltica. Issoocorre, do ponto de vista normativo, pela ciso entre valores e necessidades,configurando juzos muitas vezes assentados em uma viso agonstica da vida, semperceber a necessidade de concepes mais amplas de vida republicana. Essaposio da cidadania, tendo em vista o problema da corrupo, tem porconsequncia reduzir a accountability do sistema poltico, ao enfraquecer o sistemade fiscalizao em relao s atividades das instituies polticas. Falta, nessesentido, uma noo mais ampla de pblico a partir da qual se deve pensar o temada corrupo no apenas no plano das instituies formais da democracia, mas naideia de vida democrtica.

    No que diz respeito corrupo, constata-se que no basta uma mudana doaparato formal ou da mquina administrativa do Estado propriamente dita, masreforar os elementos de uma cultura poltica democrtica que tenha no cidadocomum, feito de interesses, sentimentos e razo, o centro de especulao terica eprtica para uma democratizao informal da democracia brasileira. Os avanosdas reformas da mquina pblica, nas duas ltimas dcadas, so inegveis, com oreforo da transparncia. Contudo, falta, democracia brasileira, um senso maiorde publicidade, pelo qual a transparncia esteja referida a uma ativao dacidadania, accountability e participao, sem os quais os esforos de combate e

    controle da corrupo ficaro emperrados em meio a uma cultura poltica tolerantes delinquncias do homem pblico.

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