corridas no hipódromo - ii

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Crónica de Costumes: As Corridas no Hipódromo (Cap. X) O episódio das corridas no hipódromo, situa-se no décimo capítulo da obra Os Maias sendo mais um dos ambientes a destacar, integra- se na obra como uma sátira à tendência portuguesa de imitar aquilo que se faz nos países estrangeiros e uma caricatura da sociedade burguesa que vive das aparências, uma sociedade provinciana. Este episódio representa também um novo contacto de Carlos com a alta sociedade lisboeta (incluindo o Rei) e representa o seu olhar crítico sobre essa mesma sociedade. Acaba por ser mais uma tentativa frustrada de igualar Lisboa às capitais europeias, sobretudo a Paris, a capital francesa o que denunciava a mentalidade provinciana do povo português. Apresenta o cosmopolitismo (falso) da sociedade e mostra a desilusão de Carlos que acabara por não encontrar a figura feminina que vira à entrada do Hotel Central (Maria Eduarda). Essa imitação é sintomaticamente reprovada, por Afonso da Maia, para quem “o verdadeiro patriotismo, talvez (...) seria, em lugar de corridas, fazer uma boa tourada”. Este episódio tem lugar num domingo à tarde, em que Carlos no seu faetonte com Craft decidem ir ver as corridas que decorrem durante dois dias no Hipódromo em Belém. Para os lados do Hipódromo, supunha-se um ambiente festivo “...já estalando foguetes”. Era um dia quente, ensolarado com uma massa poeirenta no ar, “Era um dia já quente, azul-ferrete, com um desses rutilantes sóis de festa que inflamam as pedras da rua, douram a poeirada baça do ar, põem fulgores de espelho pelas vidraças, dão a toda a cidade essa branca faiscação de cal, de um vivo monótono e implacável, que na lentidão das horas de Verão cansa a alma, e vagamente entristece.”.. Carlos mostrava-se nervoso e impaciente, “...raspando com o chicote as ancas das éguas...”, “Desde o Ramalhete viera assim governando, irritadamente, sem descerrar os lábios.”, porque estivera toda a semana à espera da resposta de Dâmaso, que ficara de convidar Castro Gomes em nome de Carlos para uma visita aos Olivais, resposta que ainda não lhe tinha chegado, “É que toda aquela semana, desde a tarde em que combinara com o Dâmaso a visita aos Olivais, fora desconsoladora. O Dâmaso tinha desaparecido, sem mandar a resposta dos Castros Gomes. Ele, por orgulho, não procurara o Dâmaso.” Ansiava assim, por conhecer a Madame Gomes (Maria Eduarda), que nunca mais tornara a ver e duvidava que a fosse encontrar nas corridas, “Os dias tinham passado, vazios; não se realizara o alegre idílio dos Olivais; ainda não conhecia Madame Gomes; não a tornara a ver; não a esperava nas corridas.”.. As pessoas pela rua, vestidas de casimiras e de sedas de missa, alegres apreciando o Domingo de sol, “E aquele domingo de festa, o grande Sol, a gente pelas ruas, vestida de casimiras e de sedas de missa, enchiam-no de melancolia e de mal-estar.”, mulheres às janelas e municipais a cavalo patrulhando as ruas. O Hipódromo apresentava-se a eles, “...elevava-se suavemente em colina, parecendo, depois da poeirada quente da calçada e das cruas reverberações de cal, mais fresco, mais vasto, com a sua relva já um pouco crestada pelo Sol de Junho, e uma ou outra papoula vermelhejando aqui e além. Uma aragem larga e repousante chegava vagarosamente do rio.”. A visão caricatural é dada pelo Hipódromo, parecendo um arraial, as pessoas que não sabiam ocupar os seus lugares, as senhoras de vestidos de missa e o buffett que apresentava mau aspecto. Fisicamente o espaço era degradado, com o recinto parecendo uma quintarola, as bancadas improvisadas, cheias de tinta com palanques de arraial. O bufete debaixo da tribuna “sem dobrado, sem um ornato”, onde os empregados apareciam sujos e até a tribuna real se encontrava mal decorada. Colégio do Amor de Deus – Cascais Português 11º ano Ano letivo 2013/2014

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Page 1: Corridas no Hipódromo - II

 

 

Crónica de Costumes: As Corridas no Hipódromo (Cap. X)

O episódio das corridas no hipódromo, situa-se no décimo capítulo da obra Os Maias sendo mais um dos ambientes a destacar, integra-

se na obra como uma sátira à tendência portuguesa de imitar aquilo que se faz nos países estrangeiros e uma caricatura da sociedade

burguesa que vive das aparências, uma sociedade provinciana.

Este episódio representa também um novo contacto de Carlos com a alta sociedade lisboeta (incluindo o Rei) e representa o seu olhar

crítico sobre essa mesma sociedade. Acaba por ser mais uma tentativa frustrada de igualar Lisboa às capitais europeias, sobretudo a Paris,

a capital francesa o que denunciava a mentalidade provinciana do povo português. Apresenta o cosmopolitismo (falso) da sociedade e

mostra a desilusão de Carlos que acabara por não encontrar a figura feminina que vira à entrada do Hotel Central (Maria Eduarda).

Essa imitação é sintomaticamente reprovada, por Afonso da Maia, para quem “o verdadeiro patriotismo, talvez (...) seria, em lugar de

corridas, fazer uma boa tourada”.

Este episódio tem lugar num domingo à tarde, em que Carlos no seu faetonte com Craft decidem ir ver as corridas que decorrem

durante dois dias no Hipódromo em Belém.

Para os lados do Hipódromo, supunha-se um ambiente festivo “...já estalando foguetes”. Era um dia quente, ensolarado com uma massa

poeirenta no ar, “Era um dia já quente, azul-ferrete, com um desses rutilantes sóis de festa que inflamam as pedras da rua, douram a

poeirada baça do ar, põem fulgores de espelho pelas vidraças, dão a toda a cidade essa branca faiscação de cal, de um vivo monótono e

implacável, que na lentidão das horas de Verão cansa a alma, e vagamente entristece.”..

Carlos mostrava-se nervoso e impaciente, “...raspando com o chicote as ancas das éguas...”, “Desde o Ramalhete viera assim

governando, irritadamente, sem descerrar os lábios.”, porque estivera toda a semana à espera da resposta de Dâmaso, que ficara de

convidar Castro Gomes em nome de Carlos para uma visita aos Olivais, resposta que ainda não lhe tinha chegado, “É que toda aquela

semana, desde a tarde em que combinara com o Dâmaso a visita aos Olivais, fora desconsoladora. O Dâmaso tinha desaparecido, sem

mandar a resposta dos Castros Gomes. Ele, por orgulho, não procurara o Dâmaso.”

Ansiava assim, por conhecer a Madame Gomes (Maria Eduarda), que nunca mais tornara a ver e duvidava que a fosse encontrar nas

corridas, “Os dias tinham passado, vazios; não se realizara o alegre idílio dos Olivais; ainda não conhecia Madame Gomes; não a tornara a

ver; não a esperava nas corridas.”..

As pessoas pela rua, vestidas de casimiras e de sedas de missa, alegres apreciando o Domingo de sol, “E aquele domingo de festa, o

grande Sol, a gente pelas ruas, vestida de casimiras e de sedas de missa, enchiam-no de melancolia e de mal-estar.”, mulheres às janelas e

municipais a cavalo patrulhando as ruas.

O Hipódromo apresentava-se a eles, “...elevava-se suavemente em colina, parecendo, depois da poeirada quente da calçada e das

cruas reverberações de cal, mais fresco, mais vasto, com a sua relva já um pouco crestada pelo Sol de Junho, e uma ou outra papoula

vermelhejando aqui e além. Uma aragem larga e repousante chegava vagarosamente do rio.”.

A visão caricatural é dada pelo Hipódromo, parecendo um arraial, as pessoas que não sabiam ocupar os seus lugares, as senhoras de

vestidos de missa e o buffett que apresentava mau aspecto. Fisicamente o espaço era degradado, com o recinto parecendo uma quintarola,

as bancadas improvisadas, cheias de tinta com palanques de arraial. O bufete debaixo da tribuna “sem dobrado, sem um ornato”, onde os

empregados apareciam sujos e até a tribuna real se encontrava mal decorada.

C o l é g i o d o A m o r d e D e u s – C a s c a i s P o r t u g u ê s 1 1 º a n o

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As corridas, apesar das críticas e da pouca dimensão comparativamente ao estrangeiro, continuavam a ter lugar, o que permitia uma

visão panorâmica sobre a alta sociedade lisboeta, o que incluía o próprio Rei, e onde encontramos Carlos e Craft em convívio directo com

esse universo social dominado pela monotonia e pelo improviso, “No centro, como perdido no largo espaço verde, negrejava, no brilho do

Sol, um magote apertado de gente, com algumas carruagens pelo meio, donde sobressaíam tons claros de sombrinhas (...) Por vezes a

brisa lenta agitava no alto dos dois mastros o azul das bandeirolas. Um grande silêncio caía do céu faiscante.”.

Um cenário que deveria ostentar a exuberância e o colorido de um acontecimento mundano como as corridas de cavalos, demonstra,

uma imagem provinciana indesmentível. Isto torna-se mais significativo, se pensarmos que no clima humano do Hipódromo predominava

uma carência de motivação e vitalidade, “No recinto em declive, entre a tribuna e a pista, havia só homens, a gente do Grémio, das

Secretarias e da Casa Havanesa; a maior parte à vontade, com jaquetões claros, e de chapéu-coco; outros mais em estilo, de sobrecasaca

e binóculo a tiracolo, pareciam embaraçados e quase arrependidos do seu chique. Falava-se baixo, com passos lentos pela relva, entre

leves fumaraças de cigarro. Aqui e além um cavalheiro, parado, de mãos atrás das costas, pasmava languidamente para as senhoras. Ao

lado de Carlos dois brasileiros queixavam-se do preço dos bilhetes, achando aquilo uma «sensaboria de rachar”.

As mulheres estavam todas na tribuna, “...as senhoras que vêm no High Life dos jornais, as dos camarotes de S. Carlos, as das terças-

feiras dos Gouvarinhos.”, todas elas, a maioria de vestidos de missa, sérios, algumas delas com chapéus emplumados que se começavam a

usar, “Aqui e além um desses grandes chapéus emplumados à Gainsborough, que então se começavam a usar...”.

O comportamento da assistência feminina, “que nada fazia de útil” e a sua vida são no seu todo caricaturados. O traje escolhido não era

o mais correto face à ocasião, daí até alguns dos cavalheiros se sentirem embaraçados no seu chique. As senhoras de “vestidos sérios de

missa”, acompanhados “..chapéus emplumados” da última moda, que não se adequavam ao evento, muito menos à restante toilette.

Assim, o ambiente que deveria ser requintado, mas ao mesmo tempo ligeiro como compete a um evento desportivo era deturpado, pela

falta de gosto e pelo ridículo da situação que se queria requintada sem o ser.

Carlos começou a cumprimentar as senhoras da tribuna, sem ver a Madame Gomes por quem tanto ansiava, nem a condessa de

Gouvarinho. Cumprimentou a sua amiga D.Maria de Cunha que o olhava insistentemente, a única que se ousava sentar entre os homens.

É também criticada a falta de à-vontade das senhoras da tribuna que não falavam umas com as outras e que de forma a não

obedecerem às regras de etiqueta, como D.Maria da Cunha ao abandonar a tribuna, permaneciam no seu posto mas constrangidas.

Os homens surgem desmotivados “numa pasmaceira tristonha”. A assistência não revelava grande entusiasmo tendo ido somente pelo

desejo de aparecerem no “High Life” dos jornais e/ou para mostrar a extravagância do vestuário.

Aparecia depois, El-Rei na tribuna, “...de quinzena de veludo, e chapéu branco.”.

Começava a 1ª corrida, a do 1º prémio dos “Produtos”, e aparecia Alencar, o poeta, “Com um fato novo de cheviote claro que o

remoçava, de luvas gris-perle...”.

Alencar considerava aquele acontecimento como muito nobre, “confessou que aquilo tinha realmente um certo ar de elegância, um

perfume de corte... Depois, lá em baixo, aquele maravilhoso Tejo... sem falar na importância do apuramento das raças cavalares...”.

Carlos começava a pensar em desistir das corridas e regressar ao Ramalhete, porque não via a mulher que lhe ocupava os

pensamentos nem sequer a condessa de Gouvarinho lá estava, “...Começava a invadi-lo uma grande lassitude.”. Continuava a procurar com

os olhos, Dâmaso, querendo saber porque razão ainda não lhe tinha dito nada acerca da ida aos Olivais, “O desejo de Carlos agora era

achar Dâmaso, saber porque falhara a visita aos Olivais — e depois ir-se embora para o Ramalhete, esconder aquela melancolia que o

enevoava, estranha e pueril, misturada de irritabilidade, fazendo-lhe detestar as vozes que lhe falavam, o ratatã da música, até a beleza

calma da tarde...”.

Assim, para além das características de conjunto das corridas, verifica-se um desinteresse geral pelo próprio fenómeno desportivo, de

tal forma, que “no silêncio que se fez, de lassidão e de desapontamento”, acaba por nem se saber quem ganha uma das corridas.

Page 3: Corridas no Hipódromo - II

Nessa altura aparecia Craft que lhe apresentava Clifford, que Carlos conhecera num jantar em Madrid, “...grande sportman de Córdova”,

dono de cavalos e amigo de Rei de Espanha, reunia as atenções dos presentes, gerando uma certa desordem que era um sintoma de falta

de educação.

Enquanto uns consideravam “Aquela corrida insípida, sem cavalos, sem jóqueis, com meia dúzia de pessoas a bocejar em roda...”, e

que em França e em Inglaterra isso sim, eram corridas, outros defendiam o apuramento das raças.

Começava uma desordem perto ao pé da tribuna real, onde um grupo de homens se juntava, e um dos jóqueis protestava face à sua

derrota, e acusava que aquilo era uma intrujice, “Por entre o alarido vibravam, furiosamente, os apitos da polícia; senhoras, com as saias

apanhadas, fugiam através da pista, procurando espavoridamente as carruagens — e um sopro grosseiro de desordem reles passava sobre

o hipódromo, desmanchando a linha postiça de civilização e a atitude forçada de decoro...”, sendo este um dos acontecimentos mais

importantes, deixando estas últimas palavras, perceber mais uma vez o contraste existente entre o ser e o parecer e a inadequação da

atmosfera mundana e cosmopolita das corridas no universo social português.

O acontecimento reforçava a ideia de alguns, em como “Isto é um país que só suporta hortas e arraiais... Corridas, como muitas outras

coisas civilizadas lá de fora, necessitam primeiro gente educada. No fundo todos nós somos fadistas! Do que gostamos é de vinhaça, e

viola, e bordoada, e viva lá seu compadre! Aí está o que é!”.

Carlos acabara de ver a Gouvarinho, à conversa com D. Maria da Cunha, “Estava com uma toilette inglesa, justa e simples, toda de

casimira branca, de um branco de creme, onde as grandes luvas negras à mosqueteira punham um contraste audaz: e o chapéu preto

também desaparecia sob as pregas finas de um véu branco, enrolado em volta da cabeça, cobrindo-lhe metade do rosto, com um ar oriental

que não ia bem ao seu narizinho curto, ao seu cabelo cor de brasa.”. Atraía as atenções dos homens ao seu redor. Ao vê-lo não disfarçou a

alegria, e convidou-o a ir com ela até ao Porto, onde ia visitar o pai que já não via há muito tempo.

Interrompidos por Teles da Gama, aceitaram o convite para entrarem nas apostas. Vendo a condessa rodeada, Carlos afastou-se, mas

esta voltou a ir ter com ele insistindo no plano de se encontrarem no Porto, “Em lugar de partir na terça-feira para o Porto — ia na segunda à

noite, só com a criada escocesa, sua confidente, num compartimento reservado. Carlos tomava o mesmo comboio. Em Santarém, desciam

ambos, muito simplesmente, e iam passar a noite ao hotel. No dia seguinte ela seguia para o Porto, ele recolhia a Lisboa...”, mas Carlos

mostrava-se surpreendido pela exuberância daquele encontro.

Aparecia o conde, querendo saber a opinião de Carlos acerca das corridas, que ele considerava como muito animadas, belas toilettes,

um toque de luxo, “E bonitas toilettes, certo ar de luxo... Enfim, não envergonhavam. E aí estava provado o que ele sempre dissera, que

todos os requintes da civilização se aclimatavam bem em Portugal!...”

Carlos foi então apostar nas corridas, enquanto um grupo de pessoas se mostrava muito entusiasmada, à espera que lhes saísse o

melhor cavalo, Rabino. Os números foram dobrados e iam sendo tirados à sorte, enquanto os cavalos iam partindo, “Então todo o rumor de

vozes caiu; e no silêncio a bela tarde pareceu alargar-se em redor, mais suave e mais calma. Através do ar sem poeira, sem a vibração dos

raios fortes, tudo tomava uma nitidez delicada: defronte da tribuna, na colina, a relva era de um loiro quente: no grupo de carruagens

cintilava por vezes o vidro de uma lanterna, o metal de um arreio, ou de pé, sobre uma almofada, destacava em escuro alguma figura de

chapéu alto; e pela pista verde, os cavalos corriam, mais pequenos, finalmente recortados na luz. Ao fundo, a cal das casas cobria-se de

uma leve aguada cor-de-rosa: e o distante horizonte resplandecia, com dourados de Sol, brilhos de rio vidrado, fundindo-se numa névoa

luminosa, onde as colinas, nos seus tons azulados, tinham quase transparência, como feitas de uma substância preciosa...”.

Carlos tirara no poule o número de Vladimiro, e apostara neste, enquanto os outros se aproveitavam daquele ataque de confiança,

“Então, em roda, foi uma surpresa; e todo o mundo quis apostar, aproveitar-se daquela fantasia de homem rico, que sustentava um potro

verde, de três quartos de sangue, a que o próprio Darque chamava pileca.”, Carlos começava a divertir-se.

A corrida ia disputada, Rabino tinha ficado para trás, e a corrida ia acesa entre Minhoto e Vladimiro. Tudo se precipitava para ver a

corrida, na ânsia de ainda ganharem as suas apostas. Enquanto uns se mostravam desiludidos outros, estavam cada vez mais ansiosos por

saber quem iria ganhar.

Page 4: Corridas no Hipódromo - II

Ganhava assim Vladimiro, e à volta de Carlos era um sentimento de desilusão, enquanto este ficava bem alegre, “Então em volta de

Carlos foi uma desconsolação, um longo murmúrio de lassidão. Todos perdiam; ele apanhava a poule, ganhava as apostas, empolgava

tudo. Que sorte! Que chance! Um adido italiano, tesoureiro da poule, empalideceu ao separar-se do lenço cheio de prata: e de todos os

lados mãozinhas calçadas de gris-perle, ou de castanho, atiravam-lhe com um ar amuado as apostas perdidas, chuva de placas que ele

recolhia, rindo, no chapéu.”, “A gente, agora, ia dispersando pela colina. As senhoras tinham retomado a imobilidade melancólica, no fundo

das caleches, de mãos no regaço. Aqui e além um dog-cart, mal arranjado, dava um trote curto pela relva. Numa vitória estavam as duas

espanholas do Eusebiozinho, a Concha e a Cármen, de sombrinhas escarlates. E sujeitos, de mãos atrás das costas, pasmavam para um

char-à-bancs a quatro atrelado à Daumont, onde, entre uma família triste, uma ama de lenço de lavradeira dava de mamar a uma criança

cheia de rendas. Dois garotos esganiçados passeavam bilhas de água fresca.”. Essa vitória era um indício de uma futura desgraça.

Carlos voltava a tentar encontrar Dâmaso, o ofuscado do “chique a valer”, quando por mero acaso choca com este, “(...) afogueado,

flamante, na sua famosa sobrecasaca branca.”, que lhe confessa ter estado com uma mulher, muito bonita por sinal.

Ao perguntar-lhe pela ida aos Olivais e se tinha feito o convite a Castro Gomes, Carlos fica a saber que este vai embarcar para o Brasil,

deixando a Madame Gomes, a viver durante três meses, no prédio de Cruges, “Ia partir para o Brasil. Já partira mesmo, na quarta-feira. A

coisa mais extraordinária... Ele chega lá, para fazer o convite, e Sua Excelência declara-lhe que sente muito, mas que parte no dia seguinte

para o Rio... E já de mala feita, já alugada uma casa para a mulher ficar aqui à espera três meses, já a passagem no bolso. Tudo de

repente, feito de sábado para segunda-feira... Telhudo, aquele Castro Gomes.”.

Mal Dâmaso lhe dissera isto, Carlos pensara logo em ir visitá-la passando por lá, nessa tarde, “E imediatamente veio-lhe a tentação

pueril de ir lá, logo nessa mesma tarde, nesse instante, gozar como amigo do Cruges o direito de subir a escada dela, parar diante da porta

dela — e surpreender uma voz, um som de piano, um rumor qualquer da sua vida.”.

A condessa de Gouvarinho observava-o, e ele aproximou-se dela, embora contrariado, ele mostrava-se hesitante em aceitar o seu

convite, ela insistia e tentava argumentar de forma a que ele percebesse que não haveria qualquer perigo. Ele acabou por ceder, perante os

encantos daquela mulher, respondendo-lhe que sim, “Terminou por a olhar de certo modo; e, como se o desejo se lhe acendesse enfim de

repente à curta chama que faiscava nas pupilas dela, negras, húmidas, ávidas, prometendo mil coisas, disse, um pouco pálido: — Pois bem,

perfeitamente... Amanhã à noite, na estação.”.

Carlos depois de muito procurar Craft encontrou-o no bufete, disse que tinha de ir embora, que não o podia levar, este que arranjasse

quem o levasse, assim ele fez, “Eu tenho de ir ainda a Lisboa — disse-lhe ele — e vou no faetonte. Abandono-o torpemente. Você vá para o

Ramalhete como puder...”.

Daí a pouco, estava na Rua de S.Francisco, onde ela estava, no prédio de Cruges, “Ia numa perturbação deliciosa e singular, com

aquela certeza de que ela estava só na casa do Cruges: o último olhar que ela lhe dera parecia ir adiante dele, chamando-o: e um despertar

tumultuoso de esperanças sem nome atirava-lhe a alma para o azul.”.

Ficou a olhar, hesitante, inquietado, de forma ingénua, ansiando vê-la.

Decidiu subir e ir visitar o seu amigo maestro, Cruges, mas não sabia como explicar aquela visita invulgar, por isso voltou para trás, “Foi

subindo devagar até ao andar do Cruges. E mal sabia o que havia de dizer ao maestro para explicar aquela visita estranha, deslocada... Foi

um alívio quando a criadita lhe veio dizer que o menino Vitorino tinha saído.”.

Regressou ao Ramalhete, tendo encontrado Craft à entrada, cheio de pó que lhe contou que durante o Prémio de Consolação, Vargas já

um pouco bêbedo, tinha esmurrado um dos empregados, “No Prémio de Consolação, um dos cavaleiros tinha caído, quase ao pé da meta,

sem se magoar: e, por último, já à partida, o Vargas, que ia na sua terceira garrafa de champanhe, esmurrara um criado de bufete, com

ferocidade.”, ao que Carlos se riu.

Conclui-se deste episódio que houve um fracasso total nos objetivos a que se propunha a corrida, em comparação com outras cidades

no estrangeiro. Por este episódio temos uma ideia do atraso da sociedade lisboeta na época e a sua falta de civismo, em que a 1ª corrida

acabara numa cena de pancadaria e a 3ª e 4ª corridas tinham também terminado de forma grotesca.