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Departamento de Letras CORRESPONDÊNCIAS LITERÁRIAS Aluno: Keli de Mendonça Freitas Orientador: Marília Cardoso Rothier Introdução Correspondências Literárias é um projeto de pesquisa desenvolvido com material de meu acervo particular, pois venho colecionando cartas, escritas nas décadas passadas por pessoas anônimas. Tais cartas foram compradas, nos últimos anos, em feiras de antiguidade. Resquícios íntimos de existências destinadas a não deixar rastro, estes documentos fazem sobreviver até nós não apenas uma forma de comunicação que praticamente desapareceu na vida contemporânea, como nos abrem caminho para olhar o passado através de textos tornados invisíveis para a história oficial. A coleção começou a se formar há 9 anos, quando tomei conhecimento de que era possível encontrar à venda cartas e diários antigos na feira da Praça XV, que acontece aos sábados no centro do Rio de Janeiro. Fascinada pela possibilidade de ser a leitora não prevista da comunicação epistolar de desconhecidos, a partir de então, passei a frequentar o local, sempre em busca de novas aquisições. Como atriz, dramaturga e diretora teatral que, no momento é aluna de Letras e bolsista de Iniciação Científica, encontrei a situação ideal para trabalhar com a dimensão artística a ser resgatada da escrita utilitária de pessoas, em princípio, sem ambições literárias, mas interessadas no uso da língua e na atividade de comunicar-se consigo mesmo e com seus próximos. A experiência, como atriz, de dar vida a textos de outros, de certa forma também tem orientado o meu trabalho como escritora: através da leitura das cartas, foi-se revelando a possibilidade de construir um retrato imperfeito e fragmentário do outro, esse desconhecido; uma maneira nova de caminhar em direção à construção desse possível outro. A busca por formas sobre como poderia apropriar-me desse material para além da sua função original havia orientado, nos últimos anos, a minha pesquisa até então solitária. Iniciada, portanto, de maneira inteiramente casual e despretensiosa, minha pesquisa pessoal sobre a escrita ordinária cotidiana foi-se ampliando e ganhando profundidade à medida que o acervo crescia. Seu valor universal de memória coletiva foi-se tornando evidente, além da importância social e política de ter acesso a escritas anônimas do passado na elaboração de outros pontos de vista sobre nossa história. Outra janela aberta por este interesse, além da preservação desses documentos únicos, foi a de como apropriar-se desse material na produção de uma escrita contemporânea capaz de dar conta das múltiplas vozes contidas neste “cidadão anônimo” universal. Aqui discorreremos sobre as etapas deste processo. Materiais e Método O deslocamento da escrita do homem comum para ambientes artísticos a priori não destinados a recebê-la tem-se revelado uma operação de grande potência artística, social e política. Pela confirmação de que estas vozes do passado podem ser lidas, sempre, como atuais, o projeto de pesquisa CORRESPONDÊNCIAS LITERÁRIAS

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Departamento de Letras

CORRESPONDÊNCIAS LITERÁRIAS

Aluno: Keli de Mendonça Freitas Orientador: Marília Cardoso Rothier

Introdução

Correspondências Literárias é um projeto de pesquisa desenvolvido com material de meu acervo particular, pois venho colecionando cartas, escritas nas décadas passadas por pessoas anônimas. Tais cartas foram compradas, nos últimos anos, em feiras de antiguidade. Resquícios íntimos de existências destinadas a não deixar rastro, estes documentos fazem sobreviver até nós não apenas uma forma de comunicação que praticamente desapareceu na vida contemporânea, como nos abrem caminho para olhar o passado através de textos tornados invisíveis para a história oficial.

A coleção começou a se formar há 9 anos, quando tomei conhecimento de que era possível encontrar à venda cartas e diários antigos na feira da Praça XV, que acontece aos sábados no centro do Rio de Janeiro. Fascinada pela possibilidade de ser a leitora não prevista da comunicação epistolar de desconhecidos, a partir de então, passei a frequentar o local, sempre em busca de novas aquisições. Como atriz, dramaturga e diretora teatral que, no momento é aluna de Letras e bolsista de Iniciação Científica, encontrei a situação ideal para trabalhar com a dimensão artística a ser resgatada da escrita utilitária de pessoas, em princípio, sem ambições literárias, mas interessadas no uso da língua e na atividade de comunicar-se consigo mesmo e com seus próximos.

A experiência, como atriz, de dar vida a textos de outros, de certa forma também tem orientado o meu trabalho como escritora: através da leitura das cartas, foi-se revelando a possibilidade de construir um retrato imperfeito e fragmentário do outro, esse desconhecido; uma maneira nova de caminhar em direção à construção desse possível outro. A busca por formas sobre como poderia apropriar-me desse material para além da sua função original havia orientado, nos últimos anos, a minha pesquisa até então solitária.

Iniciada, portanto, de maneira inteiramente casual e despretensiosa, minha pesquisa pessoal sobre a escrita ordinária cotidiana foi-se ampliando e ganhando profundidade à medida que o acervo crescia. Seu valor universal de memória coletiva foi-se tornando evidente, além da importância social e política de ter acesso a escritas anônimas do passado na elaboração de outros pontos de vista sobre nossa história.

Outra janela aberta por este interesse, além da preservação desses documentos únicos, foi a de como apropriar-se desse material na produção de uma escrita contemporânea capaz de dar conta das múltiplas vozes contidas neste “cidadão anônimo” universal. Aqui discorreremos sobre as etapas deste processo. Materiais e Método

O deslocamento da escrita do homem comum para ambientes artísticos a priori não destinados a recebê-la tem-se revelado uma operação de grande potência artística, social e política. Pela confirmação de que estas vozes do passado podem ser lidas, sempre, como atuais, o projeto de pesquisa CORRESPONDÊNCIAS LITERÁRIAS

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representou um importante primeiro passo em direção a um estudo minucioso de caminhos, não apenas na literatura mas também nas artes plásticas, que pudesse dialogar com os objetivos aqui ambicionados.

Neste um ano de pesquisa, além da leitura de bibliografia sobre epistolografia e sobre o conceito de comum (ver Referências Bibliográficas), houve identificação com a técnica de collage e interesse por experimentar seu emprego (crítico e inventivo). A collage surrealista não é apenas uma técnica de arte plástica, mas um conceito, criado pelo surrealista Max Ernst (1891- 1976). Na colagem, os surrealistas apreciaram principalmente o processo no qual o uso da imagem do que é supostamente real a transforma numa outra realidade resultante da poesia plástica. Foi a partir desse princípio que Max Ernst iniciou suas experimentações com a técnica, percebendo que o processo passa pela relação com a imagem desde o momento da escolha, o recorte – que o distancia de seu cenário normal – e dá ao elemento outro significado na composição, utilizando-se de seu significado anterior.

A sobreposição, a dispersão de imagens, ou até mesmo a junção de imagens dispersas, são situações tornadas possíveis através a técnica de colagem, que foi desenvolvida há muito tempo atrás e incorporada às diversas linguagens artísticas, sendo interpretada de diferentes maneiras, principalmente a partir do século XX, com o cubismo, o dadaísmo, o surrealismo e outros movimentos artísticos. Porém é na collage, a colagem surrealista, que se encontra o processo de distanciamento provocado pela fragmentação e produzido através da recriação da realidade com a sua justaposição.

Como destacou Renato Cohen (2002, p.64), “A essência da collage é promover o encontro das imagens e fazer-nos esquecer que elas se encontram”. A codificação muito usada em obras contemporâneas da collage não se esgota como ato de colar, mas em sua essência, opera relacionando símbolos que antes estavam distantes. A junção do ideal surrealista com a essência da collage resulta na fascinante linguagem denominada collage.

Vale também lembrar a contribuição de Kurt Schiwetters e a arte Merz. Schwitters, que não era apenas dadaísta, pois esteve envolvido com muitos outros movimentos, criou a denominação Merz para uma nova estética, novo conceito artístico baseado no princípio da colagem e presente a partir daí em toda sua obra. Figurando como uma irmã mais velha da collage, a arte Merz também buscava remover as fronteiras entre as várias formas de arte e a vida cotidiana. O nome Merz, que não significa nada, foi tirado de um quadro seu, uma colagem na qual essa palavra aparecia, caco do recorte de um anúncio do Banco do Comércio (Kommerzbank).

A partir do surrealismo, a colagem passa a ser reconhecida como uma nova linguagem possível através de uma nova relação de imagens que já existem. “Se a collage evoca, por exclusão – e recusa, portanto, por definição -, o mundo codificado, ela impõe, por justaposição, - e, portanto, por síntese -, a releitura de tal mundo” (1984, citado por COHEN, 2002, p.64). Isso porque a síntese proposta pela collage não é um fim em si mesma, mas incita a desmembramentos infinitos, que são as possibilidades de reler o mundo. Resultados e Discussões

A collage parte, portanto, do uso de materiais diversos na construção de uma imagem formada por cacos, fragmentos de outras imagens. Foi apropriando-se deste conceito que, na presente pesquisa, empreenderam-se experiências de uma escrita autoral a partir deste material tão específico como as cartas escritas por anônimos em

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diferentes momentos do tempo. Neste processo, procurou-se evidenciar o valor da palavra escrita não apenas como signo da linguagem mas também utilizar-se da palavra como imagem.

No processo de colagem, dois elementos são fundamentais: primeiro, a fragmentação e, depois, a junção desses fragmentos.

No momento do recorte, isto é, quando fragmentos da imagem são retirados, deslocados, destacados, rasgados, ou melhor, raptados do cotidiano, é quando ocorre a rejeição do contexto e a aceitação de uma parte com significados particulares (símbolo, memória). Essa rejeição ou distanciamento, por si só, já dá para este elemento uma espécie de destaque. Retirar esse objeto (no caso deste trabalho, a palavra) da sua posição social e trazer seus significados para dentro de uma obra, sugerindo uma nova dinâmica, com novo contexto ou reflexão. Um ideal de “mudança de estado” do objeto original no sentido da sua representação e, portanto, da construção a partir da sua meticulosa educada destruição.

Já no processo de colagem, a articulação de elementos desconexos dá uma nova superfície e organização a esses planos e símbolos. Estes novos textos inesperados que emergem da junção de fragmentos que, se dependesse de encontros casuais, jamais se juntariam, é um fator de grande potência dentro dessa proposta de escrita. É aí que se dá a substituição do real verdadeiro pelo real imaginário.

Portanto, a composição de uma suposta voz única como resultado da conexão de falas distintas, assim como aponta Fuão (1996), obriga essas figuras a narrarem outras histórias, distintas daquelas a que foram destinadas ou representavam originalmente; “... a visão do outro, a minha e a dos demais podem coexistir em uma multiplicidade de referentes perceptivos espaço-temporal próprios das figuras fotográficas (distanciamentos, pontos de vista, profundidades, etc), sobre uma mesma superfície. (idem, 1996).

As experiências empreendidas durante a pesquisa nos permitem observar que uma collage aplicada a textos desta natureza nos convida fazer o exercício de perceber a articulação das imagens (palavras) e associá-las primeiro a seu contexto habitual e em seguida ao novo contexto proposto pelo artista. Metodologia

Tecnicamente muito simples, a metodologia utilizada (recorte e colagem) concentra sua maior complexidade nas infinitas possibilidades de articulação que se apresentam do seu desenrolar.

Trabalhando com cópias xerox coloridas, para que não fossem danificados os documentos originais, meus esforços, enquanto artista-pesquisadora, concentrou-se em criar uma organização temática dentre os fragmentos para que pudesse operar com alguma autonomia em meio a fragmentos dispersos e de difícil controle.

Esta falta de controle sobre o todo do material foi aproveitada como positiva no processo de escrita e criação, uma vez que os materiais à disposição são limitados aos fragmentos selecionados ao mesmo tempo que ilimitados no que tange à maneira como poderiam ser articulados. Embora muito penoso, o processo de gerar novas narrativas pelo encontro de discursos originalmente afastados se mostrou uma operação de rara complexidade, devido à grande riqueza do material do qual se está partindo aqui.

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A seleção de trechos específicos de diferentes cartas, escritas por diferentes remetentes, faz-se evidente nas diferentes caligrafias apresentadas, e na própria coloração do papel (diferentes texturas e cores). Portanto, quando um fragmento maior é composto pela sucessão de fragmentos menores, torna-se visualmente expressiva a polifonia da composição; tal como apontado pelos estudiosos do conceito de collage, a composição parte do real para reinventá-lo, reinventa-se enquanto forma e conteúdo, dá visibilidade ao registro do banal do cotidiano, da passagem inexorável do tempo, da repetição dos sentimentos mais universais em vidas tão particulares.

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Conclusões Considerado profícuo e promissor, o processo de escrita investigado na

pesquisa demonstrou-se de extrema importância e beleza. Reconfigurar através de processos artísticos a fala de pessoas reais, que realmente se utilizaram de uma determinada escolha de palavras para expressar a sua realidade, acrescida pelo fato de que esta escrita tenha se perdido com o tempo, implica uma série de outros desdobramentos que é de interesse seguir investigando.

Os resultados atingidos pela pesquisa tocam pontos importantes do cenário literário atual como dar visibilidade a material coletado a partir de pesquisa pessoal sobre escritas pessoais de anônimos com o fim de promover a circulação e reflexão crítica acerca desse material.

Através deste processo, acreditamos poder trazer à luz o potencial poético de textos pessoais, escritos sem a intenção de publicação e que sobreviveram até nós por improváveis encontros; o projeto de pesquisa prova-se pertinente à medida que faz uso de procedimentos artísticos e críticos para preservar práticas comunicativas em declínio, além de rastrear a importância de relatos aparentemente insignificantes e compreendê-los por um viés de relevância histórica. Se a collage surrealista, que serviu de referência privilegiada para este experimento, buscava surpreender o fantástico no real cotidiano, o objetivo perseguido neste trabalho, sem descartar o eventual surgimento do fantástico, volta-se, antes, para a revelação de dimensões imaginárias e esteticamente inventivas da escrita informal despretensiosa – modo de aproximar-se do conhecimento de potências desconhecidas do outro. Nas novas articulações, produzidas pelo trabalho de colar, tornam-se legíveis sentidos que, na redação utilitária de uma cart6a informativa, dificilmente deixava-se perceber.

As experimentações aqui propostas voltam-se para um esforço de apagamento de fronteira entre a figura do escritor e o cidadão comum. O texto, aqui pensado não só enquanto conteúdo mas também como imagem, faz de seu autor um curador: aquele que seleciona as peças a compor o espaço, cuja autoria se dá pelas escolhas. Com isso, democratiza os domínios da palavra. Referências 1 - GUIMARÃES, Júlio Castañon. CONTRAPONTOS: notas sobre correspondência no modernismo. Rio de Janeiro: Fundação-Casa de Rui Barbosa, 2004. Coleção "Papéis avulsos. 2 - HAROCHE-BOUZINAC, Geneviève. L' ÉPISTOLAIRE. Paris: Hachette, 1995. 3 - KAUFMANN, Vincent. L' ÉQUIVOQUE ÉPISTOLAIRE. Paris: Minuit, 1990. 4 - MIRANDA, Wander Melo. A aventura europeia de Alexandre Eulálio. In: --------- (org.) A TRAMA DO ARQUIVO. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1995. 5 - SANTIAGO, Silviano. Suas cartas, nossas cartas. In: ANDRADE, Carlos 6 - Drummond de; ANDRADE, Mário de. CARLOS & MÁRIO. Correspondência completa. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2002. 7 - SOUZA, Eneida Maria de. Vozes de Minas nos anos 40. In: MIRANDA, Wander Melo (org.) A TRAMA DO ARQUIVO. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1995.