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C824 Correia, Messias Nunes. Lugares de papel : os coronéis na cidade de Ilhéus e no romance Gabriela, cravo e canela / Messias Nunes Correia. Ilhéus, BA: UESC, 2013. 86 f. ; anexos. Orientador: Cláudio do Carmo Gonçalves. Dissertação (mestrado) Universidade Estadual de Santa Cruz. Programa de Pós-graduação em Letras: Linguagens e Representações. Referências: f. 79-81. 1. Amado, Jorge, 1912-2001. Gabriela, cravo e canela. 2. Lugares imaginários. 3. Memória na literatura. 4. Literatura brasileira História e crítica. I. Título. CDD 869.93

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C824 Correia, Messias Nunes. Lugares de papel : os coronéis na cidade de Ilhéus e no romance Gabriela, cravo e canela / Messias Nunes Correia. – Ilhéus, BA: UESC, 2013. 86 f. ; anexos. Orientador: Cláudio do Carmo Gonçalves. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Santa Cruz. Programa de Pós-graduação em Letras: Linguagens e Representações. Referências: f. 79-81.

1. Amado, Jorge, – 1912-2001. – Gabriela, cravo e canela. 2. Lugares imaginários. 3. Memória na literatura. 4. Literatura brasileira – História e crítica. I. Título.

CDD 869.93

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ - UESC

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

MESTRADO EM LETRAS: Linguagens e Representações

MESSIAS NUNES CORREIA

LUGARES DE PAPEL: OS CORONÉIS NA CIDADE DE ILHÉUS E

NO ROMANCE GABRIELA, CRAVO E CANELA

Ilhéus - 2013

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Messias Nunes Correia

LUGARES DE PAPEL: OS CORONÉIS NA CIDADE DE ILHÉUS E NO

ROMANCE GABRIELA, CRAVO E CANELA

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Letras:

Linguagens Representações da Universidade

Estadual de Santa Cruz, como requisito para

obtenção de título de Mestre em Letras.

LINHA DE PESQUISA: Literatura e

Cultura: representações em perspectiva.

ORIENTADOR: Prof. Dr. Cláudio do Carmo

Gonçalves.

Ilhéus - 2013

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ

MESTRADO EM LETRAS: Linguagens e Representações

Dissertação “LUGARES DE PAPEL: OS CORONÉIS NA CIDADE DE ILHÉUS E

NO ROMANCE GABRIELA, CRAVO E CANELA”

BANCA EXAMINADORA

___________________________________

Prof. Dr. Claudio do Carmo Gonçalves

Orientador

____________________________________________

Profª. Drª. Adriana Maria Abreu Barbosa Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB

____________________________________________ Prof. Dr. Carlos Alberto Oliveira

Universidade Estadual de Santa Cruz- UESC

Ilhéus - 2013

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À minha mãe, Maria Nunes, pelo amor e

dedicação. Minha esposa Eliane Lima e

meu filho Tarcísio, a vocês, minha vida e

poesia.

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AGRADECIMENTOS

É num percurso silencioso que as vozes se erguem; que o conhecimento expande,

feito de melodias das noites, de escombros do passado, das memórias que se ajeitam ao

cotidiano. Em parte, foi assim! Em parte... Pois ao todo, o que resta é gratidão, uma

leveza de um trajeto percorrido com mãos que acenavam, com vozes que teciam cores,

de uma humanidade possível e nas entrelinhas da vida, a grandeza debruçada no

cotidiano, nos gestos, que de tão belos, redimensionam a existência.

Por isso, agradeço ao Grande Escritor que reescreve, com amor e ternura, seu

rosto, seu olhar em minha vida.

Em memória do meu pai Manoel Humberto Correia, ausência que respiro.

A minha mãe, imagem atualizada de um deus-mulher.

A minha esposa Eliane Lima causadora incomparável dos mais belos

desassossegos.

Ao meu filho Tarcísio, medidas infinitas do amor que em mim possuo.

Aos amigos e colegas do Mestrado em Letras, em especial Miguel e Nadson, que

compartilham comigo o amor ao conhecimento e a vida.

Ao professor e orientador Cláudio do Carmo Gonçalves, meus agradecimentos pela

paciência e cuidado na construção deste trabalho.

As professoras Inara Rodrigues e Vânia Lúcia Torga, obrigado pelas presenças.

Ao Colegiado do Mestrado, à professora Dr. Maria D‟Ajuda, Josy e demais

funcionários.

Ao Centro de Documentação da UESC- CEDOC, meus agradecimentos.

Por fim, agradeço o apoio financeiro da Fundação do Amparo à Pesquisa do

Estado da Bahia – FAPESB que financiou esse projeto, tornando possível sua

concretização.

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É o Progresso! Diziam-no orgulhosamente, conscientes de concorrerem todos para as mudanças tão profundas na fisionomia da cidade e nos seus hábitos (Jorge Amado).

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LISTA DE ANEXOS

Figura 01: Intendência Municipal de Ilhéus.................................................................... 83

Figura 02: Antigo Porto de Ilhéus....................................................................................83

Figura 03: Praia de Copacabana, Ilhéus ..........................................................................83

Figura 04: Vesúvio e antiga igreja São Sebastião............................................................84

Figura 05: Bataclan (atualmente).....................................................................................84

Figura 06: Ladeira da Vitória...........................................................................................84

Figura 07: Palacete do coronel Misael Tavares................................................................85

Figura 08: Casa do coronel Pessoa...................................................................................85

Figura 09: Sartre e Simone Beauvoir ...........................................................................85

Figura 10: Sartre e Jorge Amado .....................................................................................86

Figura 11: Simone Beauvoir em entrevista na Rádio Clube de Itabuna...........................86

Figura 12: Sartre em entrevista na Rádio Clube de Itabuna.............................................86

Figura 13: Jorge Amado em solenidade na Câmara de Vereadores de Ilhéus.................87

Figura 14: Fazenda Harmonia. Wilson Rosa Jean Paul Sartre, Simone Beauvoir e Jorge

Amado..............................................................................................................................87

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SUMÁRIO

Agradecimentos..................................................................................................................5

Resumo..............................................................................................................................ix

Abstract...............................................................................................................................x

Introdução.........................................................................................................................11

Capítulo 1: História e Ficção Literária.............................................................................15

1.1 Entre historiografia e narrativa ficcional: discursos, convergências e

impasses ............................................................................................................15

Capítulo 2: Lugares de papel - os coronéis na Cidade de Ilhéus e no romance Gabriela,

Cravo e Canela.................................................................................................................33

2.1: Os coronéis do cacau e os lugares - na história, na ficção.........................33

2.2: Gabriela - do lugar de Jorge à memória local............................................46

Capítulo 3: Lugares de memória - As memórias do progresso no romance de Jorge

Amado..............................................................................................................................54

3.1 Vozes dissonantes: Progresso, Lugares e Memórias em Gabriela, Cravo e

Canela................................................................................................................54

3.2 Costumes em trânsitos - tensões sociais e decadências nas bases do

coronelismo.......................................................................................................63

Considerações finais.........................................................................................................76

Referências.......................................................................................................................80

Anexos..............................................................................................................................83

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LUGARES DE PAPEL - OS CORONÉIS NA CIDADE DE ILHÉUS E NO

ROMANCE GABRIELA, CRAVO E CANELA

Autor: Messias Nunes Correia1

Orientador: Prof. Dr. Cláudio do Carmo Gonçalves2

RESUMO

A abordagem assenta-se sobre os lugares dos coronéis do cacau em Ilhéus e no romance Gabriela, Cravo e Canela. A Pesquisa evidencia a metamorfose estética da arquitetura

da cidade e os discursos de progresso associados ao coronelismo. Objetiva-se a identificação dos lugares, construídos, ocupados e transitados pelos fazendeiros no

cenário urbano e político. Nesse aspecto, a partir da obra em estudo, analisa-se a crítica de Jorge Amado a uma visão hegemônica do discurso de progresso sob o signo dos coronéis. Assim, através da ficção literária, o romancista baiano contribuiu para a

formação dos lugares pondo em relevo novos atores sociais e vozes que problematizam a referida hegemonia por meio do reposicionamento dos costumes morais, ideológicos e

de contestação ao modelo social e político da burguesia do cacau. Para tanto, percorre-se a análise da obra de Jorge Amado em diálogo com a historiografia regional, da investigação dos jornais Gazeta de Ilhéos, Jornal de Ilhéos e Correio de Ilhéos, que

circulavam na cidade na primeira metade do século XX.

Palavras-chave: Lugares, Memória, História, Literatura, Jorge Amado.

1 Mestrando em Letras: Linguagens e Representações pela Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC;

Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia – FAPESB. 2 Orientador; Professor Doutor em Ciências da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro;

docente do mestrado em Letras: Linguagens e Representações - UESC e Professor Titular da Universidade

Estadual de Santa Cruz – UESC.

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PLACES OF PAPER - COLONELS ILHÉUS THE CITY OF ROMANCE AND

GABRIELA, CLOVE AND CINNAMON

Author: Messias Nunes Correia

Advisor: Prof. Dr. Cláudio do Carmo Gonçalves

ABSTRACT

The approach rests on the seats of the colonels of the cocoa Islanders and the novel

Gabriela, Clove and Cinnamon. Research shows the metamorphosis of aesthetic

architecture of the city and the discourses of progress associated with the Colonels. The

objective is to identify the places, built, occupied and retained by farmers in the urban

scene and politician. In this respect, from the work study, analyzes the critical Jorge

Amado a hegemonic vision of discourse progress under the sign of the colonels. Thus,

through literary fiction, the novelist Bahia contributed to the formation of the places

while emphasizing new social actors and voices that question the hegemony that by

repositioning of morals, and ideological challenge to the social and political model of the

bourgeoisie cocoa . To do so, runs the analysis of the work of Jorge Amado in dialogue

with the regional historiography, research Ilheos Gazette newspapers, newspaper and

mail Ilheos, which circulated in the city in the first half of the twentieth century.

Keywords: Place, Memory, History, Literature, Jorge Amado.

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INTRODUÇÃO

Mudanças que foram registradas pela literatura, mas sobretudo mudanças que se transformaram em literatura (Nicolau Sevecenko).

Gabriela, Cravo e Canela, romance de relevância na produção literária de Jorge

Amado por suas extensas abordagens imagéticas, de personagens, de dinâmicas sociais e

políticas, configura-se, de um lado, a partir dos elementos históricos da região cacaueira

e emerge das complexas relações em um ambiente marcado pelo coronelismo, pela

violência e a riqueza gerada pelo fruto de “ouro”, o cacau. Em outro aspecto, o romance

possui características próprias da construção literária, a ficção e o compromisso estético,

que embora faça uso dos círculos, dos contextos da cidade de Ilhéus, demonstra a

criatividade, a imaginação e as metáforas que enriquecem, significativamente, a

compreensão do cenário em que se desenvolvem as tramas, os dramas e os amores de

Gabriela.

A cidade de Ilhéus remonta às Capitanias Hereditárias, portanto, participa da longa

trajetória no cenário histórico brasileiro. Situada numa região de extensas riquezas

naturais compostas por manguezais, rios, praias e matas, a vila de Ilhéus convivia com a

estagnação econômica, apesar dos engenhos de açúcar e das outras formas de agricultura

que eram produzidas na região, mas não se faziam perceber mudanças significativas na

então vila. Associam-se às mudanças expressivas na cidade a lavoura cacaueira, que

atinge seu auge nas duas primeiras décadas do século XX antecedida pelas conquistas

das terras, muitas vezes, por meio da força e da violência.

Grande parte da arquitetura da cidade de Ilhéus e as mudanças em sua

fisionomia, o alargamento das ruas, a iluminação pública, os palacetes, o porto, a

ferrovia estão relacionados ao período compreendido entre 1904 e 1925. De igual modo,

predomina o discurso que associa o progresso da cidade à atuação dos coronéis do

cacau, seja pela imprensa local, seja pelos lugares de memória que eles atuaram.

Apesar das particularidades da administração dos municípios do sul da Bahia em

relação às outras regiões do Brasil, sobretudo, pela economia cacaueira, Ilhéus

encontrava-se imersa no fenômeno que caracterizou o cenário político da Primeira

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República, o coronelismo e o poder oligárquico os quais Jorge Amado crítica como os

responsáveis pela exploração, miséria e violência nas terras do cacau.

O romancista grapiúna é conhecedor desse cenário e, portanto, convive com a

realidade social e política e isso marca diretamente sua compreensão de mundo e sua

literatura, sobretudo, as primeiras obras Cacau (1933), Terra do Sem fim (1942), São

Jorge dos Ilhéus (1944) e Gabriela (1958). Em função disso, a literatura amadiana

contribui para a interpretação e formação do imaginário histórico da população regional

e brasileira. Dada a proeminência de sua obra e a trajetória do autor, a história e a ficção

dialogam e constroem os mitos e as representações mnemônicas e históricas da região

cacaueira. Nesse sentido, as personagens e as cenas descritas no romance são

recorrentes, em muitos aspectos, na historiografia regional, seja pelo poder político dos

coronéis exercido nas cidades do sul baiano, seja pela violência e exploração dos

trabalhadores rurais, ou ainda, as discussões e embates em torno do ideal de progresso

associado aos intendentes e mandatários do cacau na cidade de Ilhéus. Dessa maneira, as

narrativas históricas e literárias se ordenam para um profícuo diálogo e revelam os

lugares de papel que comportam os discursos de progresso na cidade romance.

O que se pretende, amparado nesses campos epistemológicos, é analisar os

lugares e as memórias nos discursos oficiais e literários sobre o ideal de progresso

vinculado ao coronelismo. Esses são indicativos importantes à medida que evidenciam o

questionamento de quais eram os lugares de papel construídos, transitados e ocupados

pelos coronéis na cidade de Ilhéus e, em que medida, o romance Gabriela, Cravo e

Canela suscita e reconfigura, por meio das vozes dissonantes das personagens, as

memórias do progresso associado ao coronelismo.

Acredita-se que história e ficção literária, apesar das expressivas diferenças dos

métodos e objetivos de suas produções, podem discorrer e servirem como meios de

interpretação da sociedade, “uma vez que tanto a literatura quanto a história lidam com a

mesma matéria-prima que é a palavra, as relações certamente existem entre as duas

disciplinas” (BERND, 1998, p. 127). Nesse aspecto, ambas constroem memórias e são

imprescindíveis quanto à formação e auto-representação social. Nesse aspecto é que se

enfatiza os lugares de papel, uma vez que há uma tensão na obra amadiana entre os

lugares ficcionais e os reais, entre literatura e história, ou seja, entre os lugares reais e os

lugares de memória.

Ao discorrer sobre história e ficção literária é preciso perceber suas

especificidades, distinguir os métodos de produção, os sentidos e as atribuições teóricas

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e investigativas, bem como, a liberdade em que se fundamenta a arte literária. Às vezes,

os discursos históricos e literários estão tão próximos que é difícil demarcar ou perceber

suas nuances (BERND, 1998). Nesse sentido, a relevância e a atribuição dada a esse

estudo consistem na importância da temática para a investigação científica do

coronelismo no sul da Bahia.

Assim, a pesquisa traz uma contribuição não só aos estudos literários, mas à

historiografia regional, uma vez que se estabelece um diálogo entre Gabriela, Cravo e

Canela e a historiografia. Por isso, manuseia-se o romance como documento para

evidenciar ou refutar o problema em questão e para compor o arsenal das fontes;

dispõem-se dos Jornais Gazeta de Ilhéos, publicado entre 1903 a 1914; Jornal de Ilhéos

(1922 a 1924) e o Diário de Itabuna(1960 e 1967).O exame dos documentos visa

identificar e analisar os lugares dos referidos coronéis no espaço urbano em que se

desenvolve o enredo literário de Jorge Amado, bem como, os eventos relacionados ao

escritor grapiúna.

No primeiro capítulo apresentam-se os discursos entre história e ficção literária a

fim de que se percebam as convergências e os impasses entre ambas, mas, sobretudo,

como campos em que se instalam as memórias sociais e individuais. A respeito da

história, é pertinente uma abordagem dos processos de mudança teóricos e

metodológicos, especialmente a partir do século XIX e da escola dos Annales.

Evidenciam-se, a partir da revista francesa, novos posicionamentos historiográficos e,

especialmente, com ênfase nas pesquisas culturais e literárias nos últimos anos. Por

outro lado, discute-se a respeito da ficção literária, sua autonomia, mudanças teóricas e

sua relação com a história.

O segundo capítulo se dirige à análise direta dos lugares ocupados, e construídos

e transitados pelos coronéis, no romance em estudo e o que se pressupõe como discursos

reais presentes na historiografia e na imprensa ilheense. Nesse sentido, confrontam-se os

documentos com o intuito de responder os pontos em que se distanciam e se aproximam

os lugares dos coronéis na história e na ficção. Além disso, busca-se analisar os lugares

associados ao escritor baiano, Jorge Amado, na cidade de Ilhéus e no sul da Bahia e a

contribuição deste na formação da memória local sobre coronelismo.

O terceiro capítulo aborda, a partir dos discursos de progresso que predominaram

na cidade de Ilhéus, sob o ícone do coronelismo, as críticas tecidas por Jorge Amado por

meio de algumas personagens que contribuem para apontar as mudanças e permanências

da sociedade ilheense e, assim, a decadência moral e política da burguesia do cacau.

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Nesse sentido, é que se constitui seu posicionamento político por meio do romance

Gabriela, Cravo e Canela à medida que desloca do centro político da cidade de Ilhéus, o

coronel Ramiro Bastos e, em seu lugar impõe a presença do Mundinho Falcão. Além

disso, o escritor tece uma linha narrativa, através das rebeldias de algumas personagens,

em que corrobora os motivos pelos quais houve o declínio do coronelismo na região.

Diante disso, esses enfoques se inserem numa reflexão sobre a literatura de Jorge

Amado e ressalta sua importância simbólica, imagética e ficcional, sobretudo, como

conhecimento que permite (re) pensar, à luz dos lugares de memória, as problemáticas

próprias da sociedade ilheense no auge do coronelismo regional.

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CAPÍTULO 1

HISTÓRIA E FICÇÃO LITERÁRIA

1.1 Historiografia e literatura: discursos e convergências

A literatura, tal como a história, também constitui uma socialização das memórias, das narrativas e dos discursos (Pesavento; Leemhardt).

O conceito de história é polissêmico e abrange correntes e tendências diversas;

deste modo, busca-se sua delimitação enquanto disciplina, especialmente, a partir das

discussões e embates que surgiram no âmbito das ciências humanas a partir do século

XIX. De igual modo, os extensos debates a respeito das teorias literárias apontam para a

falta de consenso sobre o que é literatura, e assim, o percurso que segue, não tem por

pretensão dar uma resposta determinante, mas, pontuar as convergências e divergências

entre história e ficção literária e seus desdobramentos quanto à formação das memórias.

Na antiguidade grega, a narrativa histórica se encontrava vinculada ao testemunho

e a percepção do narrador pelo fato de ter visto ou ouvido o que se narra; em

contrapartida, este narrador utiliza-se de uma forte influência mítica e ficcional, por não

ter a preocupação, no estabelecimento de fronteiras, de separar ou diminuir a fusão entre

o conhecimento mítico do conhecimento real.

Assim,“os gregos desconheciam o conceito de „literatura’ e utilizavam o de

poesis (fazer). Literatura só entra mais tarde remetendo a littera, isto é letra, portanto aos

letrados, aos intelectuais que detinham grande saber” (BERND, 1998, p. 128). É a

escrita que instaura, gradativamente, um conjunto de transformações radicais e

reconfigura o posicionamento e a percepção de mundo dos indivíduos e dos grupos

sociais. Assim, no mundo grego, a história, a filosofia, a poética e o mito

caracterizavam-se como meios de desvelar e fazer conhecer a realidade. Por isso, no

pensamento grego subsiste uma valorização da memória como parte imprescindível de

acesso à verdade.

Platão, em sua filosofia idealista contrapunha-se ao uso da técnica para a

memória e considerava sua prática uma contradição, visto que a memória, para o

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filósofo, era inata; sendo apenas uma realidade de um mundo superior e as lembranças

que permeiam o homem são apenas reflexos desse mundo ideal.

Aristóteles, por sua vez, parte das experiências sensoriais que, para ele, são

fontes de todo o conhecimento, onde a memória depende dessas impressões sensoriais e

do uso dos sentidos e intelecto. Há assim, pontos divergentes entre os pensadores que

contribuem para a complexidade da mnemônica no mundo grego. Além disso, de acordo

com Le Goff (1996), os gregos fizeram da memória uma deusa (Mnemosine) que tinha a

missão de relembrar aos homens os grandes feitos dos heróis. Cabia ao poeta, enquanto

possuído pela memória, ser uma das testemunhas dos homens e dos deuses.

É possível identificar nesse cenário, a forma como o mito foi sendo submetido à

mudança, seja pela força do logos, da racionalização do pensamento filosófico; seja pela

tentativa de aproximá-lo às esferas da “politização” com Atenas como cidade que

convergia às personalidades heróicas; seja nos combates aos deuses, feito por Demócrito

“que procurava libertar o homem do temor dos deuses e da necessidade inexorável da

Moîra” (Brandão, 1999, p. 30).

Assim, a obra de Homero é resultado de um arsenal que estava à sua disposição,

resguardado pela memória, anteriormente transmitida pela oralidade e que com isso,

passou por várias alterações. Consequentemente, os poemas homéricos expressam estas

variáveis, desenvolvidas em gerações anteriores, com as quais o poeta manteve contato.

O que se percebe até este momento é uma recorrência da memória na composição

poética e mitológica, onde esta capacidade mnemônica desenvolve um papel relevante

no arranjo religioso, nas relações dos homens com os deuses, nas batalhas, com os

heróis, e, sobretudo, com a representatividade aristocrática na obra de Homero.

O surgimento da imprensa se torna o fator preponderante de mudança

sociocultural, uma vez que delimitou, de maneira acentuada, a diferença entre a

oralidade e a escrita. “Com o impresso [...] não só o leitor é colocado em presença de

uma memória coletiva enorme, cuja matéria não é mais capaz de fixar integralmente,

mas é frequentemente colocado em situação de explorar textos novos” (LE GOFF, 1996,

p. 457).

Sendo assim, essa prerrogativa se formula, com maior expressividade, a partir do

ideal civilizatório e nacionalista, na modernidade ocidental. A força da escrita constrói,

entre outros fatores, uma consciência de ocidente, notado também, por seu caráter de

exclusão dos grupos, que são mantidos por meio da tradição oral ou que não dividem os

mesmos códigos e costumes da referida civilização.

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Tanto a história quanto a poética, que em suas diferenças compõem os conteúdos

de criação humana e de prática comum no mundo grego, referem-se, de acordo com

Aristóteles, ao testemunho e a imitação. Em Poética, ao fazer uma análise minuciosa da

poesia e os aspectos que a diferenciam quanto à composição e à atuação do poeta,

Aristóteles discute a epopéia, a tragédia e a comédia, e esta última, inferior por

representar homens inferiores.

A tragédia configura-se como mais elevada, pois esta imita ações de homens

superiores e nobres. Desse modo, de acordo com o filósofo, a poética surge da mimese,

imitação, pois imitar é próprio do ser humano e difere-se “dos outros animais, em ser

capaz de imitar e de adquirir dos primeiros conhecimentos por meio da imitação - e

todos têm prazer em imitar” (ARISTOTELES, 1981, p. 22).

Essa compreensão aristotélica fundamenta toda sua explanação a respeito da arte

poética, uma vez que sob a imitação, permite-se a criação e a representação das ações

dos homens. É possível identificar, dentre outros fatores, a divergência entre Aristóteles

e seu mestre Platão, pois este centra sua atenção na figura do poeta que é expulso da

polis, por representar uma ameaça à ordem social e, por não ter utilidade à vida social,

certamente se conforma numa ameaça à sociedade ideal, defendida pelo filósofo.

Em outro momento, Horácio, que em Arte Poéticas enfoca a constante busca pela

perfeição artística e afirma que a poética se fixa numa composição que se consuma por

meio da harmonia, da unidade, da ordem que favoreça o alcance de tal objetivo. Nesse

sentido, sua compreensão do processo do fazer poético, passa, inevitavelmente, pela

coesão que valorize o requinte da obra. Horácio tem a preocupação de evidenciar que há

uma lógica interna que deve ser favorecida pela disciplina. Ao poeta, por sua vez, cabe

entender que não é permitido à insignificância, pois “aos poetas, nem os homens, nem os

deuses, nem as colunas das livrarias perdoam a mediocridade” (HORÁCIO, 1981, p.

66).

Para Longino (1981), é preciso descobrir, através da busca constante, como elevar

ao sublime a criação poética. Considera-se o caráter natural da aptidão à arte e o talento

que se desenvolve em determinados indivíduos, mas este, por sua vez, deve ser

acompanhado pela sistematização, pelo trabalho e orientação metódica que favoreçam

sua elevação ao sublime, já que este constitui “o ponto mais alto e a excelência, por

assim dizer, do discurso e que, por nenhuma outra razão senão essa; primaram e

cercaram de eternidade a sua glória dos maiores poetas e escritores” (LONGINO, 1981,

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p. 71). Essa elevação provoca nos ouvintes e leitores o “arrebatamento” e desperta o

sentimento de admiração que não se encontra naquilo que é trivial e improvisado.

Com o advento do Cristianismo, principalmente, no período medieval com forte

influência da igreja no campo intelectual, instaura-se o processo mnemônico através das

práticas de culto, das teologias, das evocações das palavras de Jesus Cristo e dos seus

seguidores. A religião cristã se insere numa radical busca pela memória, herdeira do

judaísmo que se assenta na tradição entre escrita e oralidade.

Tomás de Aquino e Alberto Magno deslocam a memória ao campo moralizante

do discurso religioso que permeou o período medieval; esse período determinou tais

pensamentos e, muitas vezes, transitava de maneira antagônica entre paraíso e inferno,

virtude e pecado, bem e mal. Nesse sentido, só é possível compreender a memória no

medievo tendo como referência a mentalidade religiosa da Igreja: as festas e as histórias

dos santos, o ano litúrgico, os momentos fortes de simbolismos, os túmulos dos mártires,

as igrejas, as celebrações eucarísticas. Em particular, conformam-se pelo uso da

memória, pois esses elementos, não apenas apontam o passado, mas sinalizam e

instruem para uma escatologia e, assim, a abrangência histórica se reveste de um sentido

pautado em subsídios religiosos e passa a ser submetida à teologia.

Nesse aspecto, a mentalidade histórica medieval “fixa-se em três pontos: a

Criação, início absoluto da história, a Encarnação, início da história cristã e da história

da Salvação, o juízo final, fim da história” (LE GOFF, 1996, p. 64). Nessa perspectiva,

não há uma delimitação clara entre história e ficção. O sentido da história se move numa

relação com a transcendência e com intervenção da divindade no tempo.

Não há pretensão em se ater nesse período, mas demarcaras mudanças na

mentalidade histórica e na literatura, pois durante longo período medieval e moderno a

literatura não esteve relacionada às artes, mas se conformava numa amplitude de

conhecimento, isto é, no que se produzia no campo da filosofia, matemática, gramática e

história. Nesse caso, literatura enquanto capacidade de fazer leitura está diretamente

relacionada a uma demanda que goza de privilégios sociais e políticos.

Com as grandes mudanças sociais, políticas e artísticas a partir do Renascimento,

Iluminismo e a Reforma protestante, é possível classificar esse período como um marco

para a História, haja vista os interesses reais absolutistas, a ascensão da burguesia, as

atenções que se voltam ao novo modelo de homem, e ao lado disso, os próprios

experimentos científicos e metodológicos que se direcionam à ideia de progresso que se

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sustenta na força da razão. Assim, a história se desloca do centro teológico para uma

ética moderna de progresso global.

O historiador, ou aquele que narra os fatos, encontra-se inserido nesse projeto, em

alguns casos, sendo membro de uma burguesia que cresce em poder econômico e social.

Destacam-se nessa produção histórica, os heróis, os feitos militares e reais, enfim, a

evidência de personagens que representam parte da sociedade e que são assimilados pela

política.

No campo religioso, as divergências instauradas pelo movimento reformista

protestante fez surgir uma preocupação com a história da Igreja Católica, usada como

meio de acusá-la ou defendê-la e desse modo, os documentos eram revisitados para

respaldar os discursos e a manutenção da fé.

Ainda sob o signo dessas mudanças, o que se compreende por literatura a partir

da modernidade se dá por meio da diferenciação “da música, da pintura, da arquitetura,

enfim como uma categoria específica de criação artística que resulta num determinado

conjunto de textos que só veio a ser formulado a partir da segunda metade do século

XVIII” (ZAPPONE; WIELEWICKI, 2009, p. 20). Predominam-se as convenções de

“gostos”, “sensibilidades” e conhecimentos que estão imersos nas próprias dinâmicas

das mudanças sócio-culturais, bem como, a formulação de diferenciações entre os vários

grupos. Assim, história e literatura se desenvolvem como saberes, seguindo esses

pressupostos sem se colocar à revelia das demandas sociais e políticas da época.

A literatura, gradativamente, passa a integrar o rol das artes com fins estéticos e

a história das “ciências” com pressupostos documentais (BERND, 1998). De acordo

com Zappone e Wielewicki (2009), a mudança do que se entende por literatura nos

séculos XVIII e XIX se dá, entre outros fatores, a partir da emergência do capitalismo

industrial que em suas técnicas de produção e força de trabalho, geraram necessidade de

criar meios de desafiar as novas ordens repressivas.

Desloca-se do texto a predominância do “gosto” e da “sensibilidade”, para os

substituir pelo “imaginativo” e o “criativo” (ZAPPONE; WIELEWICKI, 2009, p. 21).

Eagleton (1994) também discorre sobre a literatura na Inglaterra no século XIX desse

mesmo modo. Para ele, no contexto de crises sociais, das falências das “verdades”

religiosas e o advento do capitalismo industrial burguês, instaura-se uma concepção de

literatura que, além de suas características de criatividade, é fortemente ideológica.

Assim, muitos escritores se encontram numa posição clara de ativismo político e de

discussões que permeiam o contexto histórico inglês, pois

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A literatura habituaria as massas ao pensamento e sentimentos populares,

persuadindo-as a reconhecer que há outros pontos de vista além do seu- ou

seja, o dos seus senhores. Transmitia a eles a riqueza moral da civ ilização

burguesa, a reverência pelas realizações da classe média e, como a leitura da

obra literária é uma atividade essencialmente solitária, contemplativa,

sufocaria nelas qualquer tendência subversiva de ação política coletiva

(EAGLETON, 1994, p. 28).

Os conflitos ideológicos que Eagleton discute, não comprometem uma abordagem

minuciosa das mudanças inauguradas na Primeira Revolução Industrial na Inglaterra,

mas localizam, sobremaneira, os lugares e as finalidades da literatura em tempos de

incertezas e de profundas transformações políticas, econômicas e sociais.

Nessa disposição, “a literatura deveria transmitir verdades atemporais, dessa forma

distraindo as massas de seus interesses imediatos, alimentado neles um espírito de

tolerância e generosidade, e assegurando, com isso, a sobrevivência da sociedade

privada” (EAGLETON, 1994, p. 29).

A essas induções se junta o problema da definição do que seja literatura e, se há, e

em que medida, para além da estética contemplativa e emotiva, uma força discursiva que

aproxima texto ficcional e realidade como dínamos propulsores de sentidos.

Longe de uma resposta ampla e definitiva, tendo em vista as dificuldades em

conceituar o que seja literatura, debate movediço que atravessa os séculos XIX e XX,

estendendo-se à atualidade, parte-se do que afirmam, por um viés da linguística, os

Formalistas Russos:

Busca-se definir literatura enquanto dado objetivo, concreto, observável [...]

Nessas propostas, observa-se a ideia de que os textos literários teriam certas

características estruturais ou textuais muito peculiares, as quais os tornariam

diferentes dos demais textos, considerados, portanto, não-literários.

Trata-se de uma tentativa de trazer a discussão sobre o que é literatura para

um campo mais objetivo, utilizando métodos que se distanciavam da

subjetividade que permeara a definição do termo até então [...] Essa

concepção objetiva da literatura disseminou-se fortemente nos estudos

literários nas primeiras décadas do século XX através do Formalismo Russo,

do New Cristicism e da Estilística [...] (ZAPPONE; WIELEWICKI, 2009, p.

22).

Assim, como pode-se observar, a linguagem literária distancia-se daquela

linguagem que é aplicada nas relações sociais comuns. Ou seja, a linguagem cotidiana é

automatizada, em oposição à literária subverte a lógica comum e se resguarda na estética

desautomatizada e, portanto, no nível mais profundo de sua manifestação. A literatura,

então, torna mais densa a linguagem e a afasta ordenadamente de sua função banal.

Em contrapartida, afirma-se que a literatura se ampara no convencional, em

acordos que são formulados para que este ou aquele texto seja aceito ou não, como obra

literária. Desse modo, a literatura

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É meu argumento, é uma categoria convencional. Aquilo que será, a qualquer

tempo, reconhecido como literatura é função de uma decisão comum sobre

aquilo que contará como literatura. Todos os textos têm potencial para isso,

naquilo que é possível considerar qualquer trecho de linguagem de tal forma

que ele revelará aquelas propriedades presentes entendidas como literárias.

[...] A conclusão é que enquanto literatura é ainda uma categoria, é uma

categoria aberta, não definida por ficcionalidade, ou por descaso com uma

verdade proposicional, ou uma predominância de tropos e figuras, mas

simplesmente por aquilo que decidimos colocar ali. E a conclusão dessa

conclusão é que o leitor é quem „faz‟ a literatura. Isso soa como extremo

subjetivismo, mas é qualificado quase imediatamente quando o leitor é

definido não como um agente livre, fazendo literatura de alguma forma

antiga, mas um membro de uma comunidade cujas assunções sobre literatura

determinam o tipo de atenção que ele presta e, assim, o tipo de literatura que

“ele” faz. (Aspas indicam que „ele‟ e„ faz‟ não estão sendo entendidas como

seriam de acordo com uma categoria de agência individual autônoma). Assim,

o ato de reconhecer literatura não é compelido por algo no texto, nem emerge

de uma vontade independente e arbitrária; em lugar disso, procede de uma

decisão coletiva acerca do que contará como literatura, uma decisão que estará

em vigor somente enquanto uma comunidade de leitores ou crentes continuar

a sustentá-la (FISH apud ZAPPONE; WIELEWICKI, 2009, p. 28).

De modo geral, destacam-se da citação alguns pontos que podem contribuir para a

discussão sobre o que seja literatura. Dentre esses, a perspectiva de que „o leitor é quem

faz a literatura‟ e „procede de uma decisão coletiva acerca do que contará como

literatura‟, ou seja, há uma centralização na figura do leitor como instância fundamental

no que se entende por literatura.

Essas afirmativas, embora pareçam radicais, podem ser interpretadas à luz de

Chartier (1991), quando este afirma que nenhum texto é inocente e desprovido de

sentido, mas que, de um modo geral, articula em sua composição e no contato com o

leitor, os trâmites dos tempos, dos espaços e das representações.

Nesse sentido, observa-se que Chartier contribuiu tanto para a história, quando

para a literatura, confirmando este processo quando afirma que:

O estudo crítico dos textos, literários ou não, canônicos ou esquecidos,

decifrados nos seus agenciamentos e estratégias; de outro lado, a história dos

livrose, para além de todos os objetos que contém a comunicação; por fim, a

análise das práticas que diversamente, se apreendem dos bens simbólicos,

produzindo, assim, usos e significações diferenciadas [...] entre os séculos

XVI e XVIII, a circulação multiplicada do escrito impresso modificou as

formas de sociabilidade, autorizou novos pensamentos, transformou as

relações com o poder [...] considera-se que as significações múltiplas e

móveis de um texto dependem das formas por meio das quais é recebido por

seus leitores (ouvinte) (CHARTIER, 1991, p173-191).

A partir da década de 1960, começa-se a enfatizar nos meios literários e

historiográficos a importância do ato de leitura, pois é esta a finalidade do texto, sua

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relação com o leitor que amplia e reinterpreta de várias maneiras, dando vida e

atualizando a escrita.

Nesse sentido, a produção e reprodução da escrita literária se encontram num lócus

de diálogo e no jogo das representações simbólicas, dentro da esfera social que por sua

vez, transmite seus conteúdos criativos e ficcionais. No entanto, há uma relação

intrínseca entre o texto produzido e essas dinâmicas que vão fazer com que o texto não

se conforma em uma norma fixa e rígida, mas as interpretações são variadas dentro das

próprias diligências dos leitores; ao que Chartier (1991) assegura que a leitura deve ser

vista sempre como uma prática encarnada nos gestos, espaços, hábito.

Por conseguinte, há uma co-relação entre o texto produzido e as convenções

sociais, que serve para justificar e testemunhar essa convencionalidade literária, que por

sua vez, está imbuída de um juízo de valor e frequentemente sujeita a mudanças.

Eagleton (1994) considera não haver garantia de que uma obra permaneça com um

valor literário; ou seja, conquistar a admiração e o respeito do leitor e da sociedade ou

apenas ser considerada uma obra de má qualidade ou ainda, não literária, pode ser uma

fator ligado a mudanças temporais e espaciais que sempre existirão e farão parte dos

atributos dispensados à crítica.

No campo historiográfico, o século XIX herda os princípios iluministas que

privilegiam o raciocínio lógico, o empirismo, a racionalidade da investigação e o

positivismo marcam, consideravelmente, todas as ciências naturais e sociais. O que se

busca nas ciências sociais é a imparcialidade científica, uma absoluta neutralidade entre

o pesquisador e o objeto de análise.

Nessa linha teórica, afirma-se que a história, enquanto campo de conhecimento, é

regida por leis gerais que servem de medidas para toda e qualquer sociedade. Os

historiadores que se pautam no sistema positivista da história, pois partem do

pragmatismo seguido de uma análise lógica dos documentos e fontes, podem dispor da

reconstrução do passado real e da clareza histórica contida nessas fontes.

Bloch (2001) busca direcionar para dois pontos que parecem decisivos para muitos

historiadores que vieram depois dele. Primeiro ao afirmar que a história é a ciência da

ação do homem, demonstrando o protagonismo do ser humano na construção dessa

história, onde não se pode pensar em sua construção como coisas inanimadas, mas é

sempre a partir da ação humana sobre si mesmo e sobre o mundo que se permite falar

em história.

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Em seguida, Bloch acrescenta outro fator de relevância: o tempo. Portanto, a

história é entendida como ciência da ação do homem no tempo. É no fenômeno

temporal, em suas variantes, na percepção e relação dos indivíduos e grupos sociais, nas

articulações que são feitas no âmbito do tempo é que se assenta a história.

O tempo se organiza de forma complexa, assegurando-se na compreensão das

mudanças e permanências da história e na maneira como o homem se relaciona com o

passado/presente/futuro; esses são fenômenos relativos e que não se sustentam como

padrões universais. Não possuem força suficiente para permanecer erguido sem

sustentação.

Algumas definições sobre estas vertentes nos defrontam com a complexidade da

estrutura do tempo. “Como o presente não se pode limitar a um instante, a um ponto”.

(LE GOFF, 1996, p. 203), mas de forma que caminha tanto para o futuro, quanto para o

passado, sem que subsista em si mesmo a um referencial isolado e fixo; o que Agostinho

chama de “o presente das coisas passadas, o presente das coisas presentes, o presente das

coisas futuras” (AGOSTINHO apud LE GOFF 1996, p. 205). Desse modo, pode-se

inferir sobre as várias manifestações ou formulações do passado/presente entre as mais

diversas culturas, sociedades e indivíduos.

Assim, a produção literária e historiográfica, em suas variantes, faz uso das

memórias que estão à sua disposição, por meios dos instrumentos ligados pelos feitos

humanos, sejam estes materiais ou imateriais, ao passo que produz novas memórias ao

legar por meio da escrita, dos símbolos, das mensagens, o amplo discurso do seu tempo.

Bloch, também mapeia outro problema: a história quanto ciência. Entre os

historiadores, ainda hoje, parece haver divergências se a história é ou não ciência. Não

se tem por pretensão fazer uma apologia à sua cientificidade, mas apontar as mudanças e

as divergências a que a história tem se submetido e os métodos aplicados na produção

historiográfica.

Entende-se por ciência, a investigação objetiva que busca a verdade das coisas, e

para tal fim, empregam-se métodos usados para verificar, comprovar, refutar, corrigir o

objeto da pesquisa por meio de observações sistemáticas e disciplinares dos

experimentos, submetendo-os à falseabilidade e à repetição dos resultados.

Apesar disso, a ciência não se caracteriza pelo caráter dogmático e fixo, mas

distingue o conhecimento como transitório dos postulados que se tem como verdadeiros.

Seus paradigmas tendem a ser questionados e, por frequência, substituídos no processo

de investigação.

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Alguns críticos da cientificidade histórica são discutidos por Cardoso (1992), tal

como: Petterson, Pierre Jeaglé e Pierre Roubaud que afirmam que a história não pode ser

considerada ciência, haja vista, que os acontecimentos são irrepetíveis e não é possível

formular leis gerais sobre os eventos, por serem singulares.

Ainda de acordo com Cardoso (1992), há de considerar que o caráter puramente

empírico da ciência foi criticado por Galileu, Newton e Leibniz, que somaram, ao lado

do empirismo, a importância das hipóteses e das teorias para o conhecimento científico.

Talvez, nesse aspecto, a história se aproxime de sua pretensa cientificidade.

Outro ponto de apoio para se pensar a história enquanto ciência foi levantado pelo

marxismo ao considerar que:

Desde suas origens até meados do século XIX, se caracterizou pela busca de

leis do desenvolvimento histórico-social (leis dinâmicas), e que determinem,

para cada, organização sócio-histórica, específica, os seus fatores invariantes e

os seus processos reiterativos ou repetitivos (leis estruturais, ou de

organização). Por outro lado, sendo a história considerada pelos marxistas

como um desenvolvimento auto dinâmico ou auto determinado, o marxismo

expulsa do âmbito explicativo quaisquer entidades ou enteléquias metafísicas,

externas ao próprio processo histórico: Deus, o „Espírito‟, o „gênio nacional‟

(Volksgeist), determinismos de tipo geográfico, ecológico ou racial, a visão da

história como realização de alguma lei biológica („darwinismo social‟)

(CARDOSO, 1992, p. 40).

Desse modo, a história para Marx e Engles encontra-se nessa dinâmica em que os

grupos humanos, em tempos e espaços diferenciados, lutam pelo controle dos meios de

produção e das diferenciações e controles sociais, econômicos e políticos. Com isso, a

noção de história no marxismo rejeita a religiosidade interpretativa, a fatalidade e se

fundamenta nos acontecimentos que têm duração na vida econômica, social e que se

expressam pelas ações conscientes dos grupos humanos.

Já no século XX, assistiu-se a uma reviravolta no campo da história. A Escola

dos Annales, movimento iniciado na França em 1929, por Lucien Febvre e Marc Bloch,

que se posicionaram contra a mentalidade histórica positivista por esta se apoiar numa

análise factual e se apresentar numa vertente política e de exaltação aos “grandes

homens”. Desse modo, iniciam-se grandes mudanças na produção historiográfica, mas

também, nos métodos de investigação documental.

De acordo com Cardoso (1992), a geração dos Annales aprofunda as abordagens

através de Fernand Braudel, defendendo uma noção de estrutura e de transformações que

ocorrem na “longa duração”. Contudo, é na terceira fase que emerge uma ampla abertura

por onde se inserem novas temáticas que, até então, eram excluídas da historiografia.

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Outros enfoques passam a compor o cenário investigativo do historiador. Seguem-

se a História Cultural, a Micro História, História das Mentalidades, do Imaginário,

enfim, outras tendências e personagens se destacam, porém, um dos aspectos que

atravessam as várias gerações dos Annales é a interdisciplinaridade, na qual a história

dialoga com outros campos epistemológicos, a antropologia, a sociologia, psicologia,

geografia, que passam a contribuir incisivamente à pesquisa do historiador.

Assim, “a história se apresenta, hoje, em plena evolução. As certezas, ou

verdades „definitivas‟ da historiografia positivista, pertencem ao passado” (CARDOSO,

1983, p. 39). Com o advento dos Annales, a história política é suplantada pela ênfase na

história social e econômica e, nesse termo, é que prevalecem dois modelos distintos para

a produção historiográfica: a própria escola francesa e, ainda atuante, as teorias

econômicas marxistas.

Em contrapartida, alguns pesquisadores, apontados por Hunt (2001), se deslocam

para os estudos culturais da história e rejeitam as explicações tradicionais marxistas,

como é o caso do historiador britânico E.Thompson, que embora, pertença a este grupo,

prefere aproximar-se da cultura e se distanciadas formulações de base e superestrutura e

dedica ao que chama de mediações culturais e morais.

A disciplina histórica está diante de uma evolução e se depara com novas bases

de pesquisas, onde não há espaço para a rigidez positivista. Desse modo, alguns

intelectuais contribuíram para essa mudança, como é o caso do filósofo francês Michel

Foucault (1997), que em suas genealogias, não põe de lado questões como economia,

guerras, civilizações, mas atem-se a outros modos de análises que se manifestam nas

micro práticas, nas intrigas, na sexualidade, no corpo, poder, loucura e que são

perpassadas pelas tecnologias discursivas.

Em Foucault, a história se aproxima da filosofia (o que pode oferecer para os

historiadores profissionais grandes desconfortos) e dessa maneira, a história passa a

atuar também como filosofia, se colocando cada vez mais distante da vocação empirista

tradicional que lhe é atribuída.

A austeridade positivista de uma verdade científica absoluta dá lugar à

ambiguidade, aos equívocos, às singularidades, à busca pelas vozes e pelos silêncios dos

documentos. Assim, a contribuição de Foucault à história cultural se dá por sua análise

das tecnologias de poder que se situam no discurso, fazendo com que se perceba, na

compreensão do filósofo, uma certa incoerência, quando se trata das especificidades do

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poder, das redes que se espalham, dos mecanismos com que este se apresenta, em geral,

dos micros poderes em todas as relações sociais.

Michael Foucault busca analisar esses níveis em que o poder atua, observando os

discursos que o engrenam e as problemáticas em que o saber se constitui. Assim, o poder

não é algo que exista naturalmente, mas é construído no âmbito social. Desse modo, a

prática de poder, os mecanismos que o produz, não se localizam em um único ponto,

mas se mistura, se institucionaliza, investindo-se e materializando-se, sobretudo, no

corpo; desse modo, atravessa todas as relações sociais, não dando margem a um pôr-se

fora, como se fosse possível demarcar um espaço de preservação, ao contrário, atua em

todas as dimensões.

Assim, desconsidera-se uma hegemonia do estado como único propulsor do

poder e os demais interesses sendo apenas subordinados a uma prática superior. O micro

poder se dá em níveis diferenciados como uma teia que articula o cenário social. O ponto

que nos interessa nesse momento é o fato de que o filósofo articula poder/saber como

componentes discursivos e, nesse sentido, a literatura, também, se apresenta nesse jogo

de discurso.

Desse modo, as explicações históricas tradicionais são abaladas por uma análise

que não se pauta nas origens, centros e margens dos eventos, mas nas disseminações de

poderes. As críticas aos métodos ou anti métodos de Foucault, feitas pelos historiadores

de profissão, não invalidam a importância deste para a mudança e proeminência da

história cultural, mesmo porque, “em sua tentativa de reescrever a história da civilização

ocidental, Michel Foucault desafiou-nos a questionar nossos pressupostos e legou-nos o

método e os instrumentos de análises para a crítica de uma história da cultura nova e

política” (HUNT, 2001, p. 62).

Diante do perigo de reduzir a história à ficção, cabe ao historiador a objetividade

investigativa que não o ausenta das experiências pessoais, mas pondo-se a distância

necessária, busca a aproximação da verdade pela forma que trata o documento. Lucien

Febvre, ao discorrer sobre o uso dos documentos pelos historiadores parte do seguinte

princípio:

A história fez-se, sem dúvida, com documentos escritos. Quando há. Mas

pode e deve fazer-se sem documentos escritos, se não existirem... Faz-se com

tudo que a engenhosidade do historiador permite utilizar para fabricar o seu

mel, quando faltam as flores habituais: com sinais, paisagens e telhas; com

formas de campos e com más ervas; com eclipse da lua e arreios; com

peritagens de pedras feitas por geólogos e análises de espadas de metal, feita

por químicos. Em suma, com tudo que, sendo próprio do homem, dele

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depende, lhe serve, o exprime, torna significante a sua presença, atividade,

gostos e maneira de ser (FEBVRE apud LE GOFF, 1996, p. 107).

Embora, ainda hoje, reconheça-se o valor das fontes escritas, a pesquisa

historiográfica recolhe, no arsenal dos documentos, qualquer vestígio ou sinal da ação do

homem. Esses resquícios documentais são submetidos ao rigor do historiador, que não se

confunde com uma revisão puramente narrativa, mas que se sustenta em seus métodos

próprios. Assim, Cardoso (1992), diz ser a história, uma ciência em construção.

Toda essa discussão é para situar os campos epistemológicos, história e ficção

literária, uma vez que no interior dos estudos culturais, a literatura passa a ser objeto de

interesse dos historiadores em dialogar com esta área do saber.

Não que seja esta uma preocupação exclusiva da atualidade, pois a literatura, de

uma forma ou de outra, tem acompanhado os passos da história, assim como a história

simultaneamente, acompanha a literatura.

De acordo com Besselaar (1994), as literaturas, “muitas vezes, nos informam

incidentalmente sobre um acontecimento do passado; além disso, possibilitam-nos um

contacto quase direto com as ideias, problemas, esperanças e preconceitos de uma

época” (BESSELAAR, 1974, p.124). A partir desse quadro argumentativo se reconhece

que:

O estudo da literatura conduzido no interior de uma pesquisa historiográfica,

todavia, preenche-se de significados muitos peculiares. Se a literatura

moderna é uma fronteira extrema do discurso e o proscênio dos desajustados,

mais do que o testemunho de uma sociedade, ela deve trazer em si a revelação

dos seus focos mais cadentes e tensão e a mágoa dos aflitos. Deve traduzir no

seu âmago mais um anseio de mudança do que os mecanismos de

permanências. Sendo um produto do desejo, seu compromisso é maior com a

fantasia do que com a realidade. Preocupa-se com aquilo que poderia ou

deveria ser a ordem das coisas, mais do que com seu estado real. Nesse

sentido, enquanto a historiografia procura o ser das estruturas sociais, a

literatura fornece uma expectativa do seu vir-a-ser (SEVCENKO, 1999, p.

20).

À esteira de Sevcenko é possível perceber que as fronteiras entre história e

ficção, longe de serem intransponíveis, às vezes, tornam-se o elo onde se transitam,

atrelam, criam, recriam, compõem e decompõem práticas e discursos. Toda esta teia se

desenvolve a partir de signos, textos, ideias, imaginação, experiências subjetivas, o

posicionamento temporal e espacial em que as narrativas são construídas.

Edward Said salienta que “nem o passado, nem o presente, como tampouco

qualquer poeta ou artista, tem pleno significado sozinho” (SAID, 1995, p. 34), isto é, a

produção literária está dentro de um arcabouço sócio cultural e como expressão artística

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e estética, delineiam-se os discursos e em sua aproximação com a história e evidencia o

trânsito e as incertezas dos tempos e espaços.

Não obstante, a veracidade novecentista da pesquisa histórica cede lugar a uma

crescente perspectiva de que esta é, também, ficcional. As bases epistemológicas da

história, apesar da recorrência às fontes, permeiam-se no lócus de imaginação do

historiador, dos recursos simbólicos, das lacunas preenchidas pela subjetividade e as

representações que comportam documentos e pesquisador.

As fontes disponíveis são formuladas em contextos temporais, sociais e culturais

e seus manuseios por parte do historiador se fazem a partir do distanciamento referencial

que se configura nas ambiguidades das representações. “A representação, seria, pois,

um miseen forme, uma presentificação criada pelo historiador, que teria por ofício

representar o já representado ou imaginar o imaginado” (PASAVENTO; LEENHARDT,

1998, p. 10).

Diante disso, a narrativa historiográfica não dispensa a ficção como parte de

criação, invenção ou interpretação do passado. A literatura, por sua liberdade artística

goza do estatuto simbólico, estilístico e estético (ou não), em suma,poética, portanto, não

comprometida com a veracidade documental disponível e com a investigação sistemática

das fontes, isto é,“a historiografia se preocupa com uma visão objetiva da realidade, o

romance se atem à subjetividade e à imaginação, ou seja, a diferença entre um romance

histórico e a História oficial está na maneira com que ambos olham o mesmo objeto”

(MELLO, 2008, p. 130).

O fenômeno literário acompanha o homem em tempos e espaços diferenciados e

constitui, assim, um esboço de grande produção cultural e intelectual. Do mesmo modo,

os historiadores que se interessam pela temática se defrontam com o problema do limite

entre sua disciplina e a ficcionalidade literária.

O termo ficção, por si só, sugestiona uma reflexão sobre o que é aceito como tal

e, em contrapartida, o que se entende por real. “Numa primeira dimensão, a ficção

implica o formar, dar formas, e como tal nos remete para o dado mais elementar e, por

isso, mais profundo da própria ficcionalidade, da póiesis (fazer criativo)” (SAMUEL,

1998, p. 44).

Implica-se, portanto, o caráter imaginativo que subverte o que comumente é

aceito como real, criando, por meio da imaginação, o novo real a partir de uma

desrealização do que é usualmente aceito como tal. Por isso, Samuel (1998) afirma que o

real imanente é formado pelos sentidos a que lhe são atribuídos pela sociedade, essa,

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muitas vezes, ao atribuir-lhe sentido, mascara, mitifica, falseia e põe o real imanente na

condição da representação.

Nota-se que na mesma dinâmica social, os discursos que significam o mundo,

também estão atrelados às exclusões, alienações e inserções de grupos e indivíduos.

Pondera-se, que não se trata de uma ditadura do discurso, uma vez que há expressiva

tendência contemporânea em submeter à realidade a mera construção discursiva. Nota-

se, com isso, um perigo iminente a um reducionismo como se o discurso fosse em si

capaz de conter a realidade, ou seja, os problemas sociais, fome, guerras, violência, etc.,

embora sejam atravessados por interesses discursivos, não cabem simplesmente nas

alocuções e conceitos.

A ficção literária “é quase autônoma da realidade. Ela denuncia a realidade de

fora [...] A literatura desrealiza a realidade, para quebrar o monopólio da realidade”

(SAMUEL, 1998, p. 14). Então, o real se configura numa apreensão das coisas e do

mundo por meio do intelecto, tornando cada vez mais difícil estabelecer um critério

válido a respeito do real sem que seja por meio de uma significação do homem às coisas,

através das formulações discursivas, simbólicas e representacionais.

O aspecto “quase autônomo” da ficção literária se dá pelo fato de não ser

independente do real, pois o “mundo ficcional não está „acima‟ senão „ao lado‟, paralelo

da realidade ambiente, com ela realizando um permanente intercâmbio e nela se

integrando inextricavelmente” (MOISÉS, 1967, p. 17).

Essa observação vista em Moisés (1967) é pertinente para situar o valor que a

ficção literária tem para a história, ao passo que a interação com os elementos reais

sugerem uma interferência na própria concepção de mundo do leitor, onde “a ficção não

seria, pois, o avesso do real, mas uma outra forma de captá-lo, em que os limites de

criação e fantasia são mais amplos que aqueles permitidos ao historiador”

(PESAVENTO, 1998, p. 21).

Porém, há um ponto comum em ambas as epistemologias narrativas: a busca pela

verossimilhança, uma vez que tanto o historiador quanto o escritor partem de

pressupostos vividos, de experiências e hipóteses do presente/passado. Reis (1998)

afirma que todo texto é produzido dentro de um contexto e circunstâncias históricas, e

que o intelectual e artista encontra nesse arsenal que está à sua disposição, bem como as

influências, composições e informações a que faz uso.

Sem pretensões reducionistas sobre o papel do historiador, Reis analisa que para a

literatura tem uma função disciplinadora que parte de posições sociais e ideológicas.

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“Um texto absorve o histórico mesmo quando aparentemente o rechaça” (REIS, 1998, p.

235). Esta citação aproxima-se do exemplo histórico-literária da formação da sociedade

brasileira. Antes, porém, contribui para tal análise as questões levantadas pelo próprio

Reis (1998), quando afirma:

O discurso literário brasileiro engendrou em termo de escalões dominante e da

esfera da „alta‟ cultura está centrada no conceito de família patriarcal-não

estou enfocando o patriarcalismo enquanto existência empírica, mas enquanto

inscrição simbólica; tal inscrição não é contudo inventada, partindo de uma

base por assim dizer plantada na realidade social e histórica; isto é, a família

patriarcal de fato existiu ao mesmo tempo em escrita na ordem dos símbolos,

servil como mediadora na apreensão do real (REIS, 1998, p.236).

Essa compreensão entre história e produção literária no Brasil a partir do século

XIX, permite entrever, nas várias nuances, pontos convergentes de interpretação e

narração da sociedade brasileira. Há quase de se considerar que a escrita da história, no

período colonial, encontrava-se restrita aos administradores, missionários e viajantes,

não tendo, portanto, uma investigação de forma científica com métodos mais eficientes.

É a partir do Império que se começa a formulação de uma historiografia com certo rigor

científico, sobretudo amparado pelo Instituto Histórico Geográfico Brasileiro- IHGB,

aliado a este órgão, tem-se um projeto de nacionalidade que se evidencia tanto na

narrativa histórica quanto literária.

A criação do IHGB em 1938 se dá em um contexto de conflitos internos, de

revoltas em várias regiões do país, num clima de fragmentação que comprometia o

governo central. A função de Instituição era mapear geograficamente o país, ao mesmo

que formular uma política de nação e isso está diretamente relacionado à elaboração da

historiografia brasileira. O modelo a ser seguido nesse projeto estava fundamentado no

agente masculino, branco e na exclusão do negro e do índio no processo de civilização e

de nacionalidade.

A historiografia, por sua vez, assenta-se em bases positivistas e sofre fortes

influências do darwinismo social. Deste pensamento, destaca-se o historiador Vanrhagen

que desenvolve suas pesquisas a partir da Europa e sua obra assinala o estatuto científico

que, muitas vezes, preenche as lacunas por uma interpretação religiosa, valendo-se da fé

para explicar determinadas nuances do país.

Vanrhagen (1845) propõe a construção de monumentos históricos em

homenagem aos grandes homens que fizeram a nação brasileira, uma história elitista em

que excluía parte da população formada por negros, índios e populares. Não se tem por

pretensão aprofundar a especificidade do pensamento do historiador, mas pontuar seu

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discurso num contexto em que se objetiva demarcar os espaços de controle social por

uma política nacionalista branca e que exclui outros atores sociais, índios e negros.

A mesma questão racial estava presente em grande parte do que se produzia no

campo literário, haja vista, “o romantismo tardio de Castro Alves, que resgata a figura

do negro como mártir do cativeiro” (PESAVENTO, 1998, p. 26).

Ao lado dessa inferência, o historiador Capistrano de Abreu traz uma abordagem

sócio-econômica do Brasil, atendo-se a uma escrita que insere, de igual modo, a

relevância desses personagens para a construção da sociedade brasileira, demarcando os

espaços a fim de historicizar as questões relacionadas aos grupos subalternos.

Temas como mestiçagem, monarquia, república, branqueamento, coronelismo e

progresso compõem a narrativa histórica e literária no Brasil império e republicano, e

ainda, demonstram os diálogos epistemológicos entre saberes históricos e literários. Ao

analisar a literatura de Lima Barreto e Euclides da Cunha, juntamente com outras fontes,

chega-se à seguinte definição do Brasil nas primeiras décadas do século XX:

Inspiradas nas linhas intelectuais da Belle Époque – utilitarismo, liberalismo,

positivismo, humanitarismo,-faziam assentar toda a sua energia sobre

conceitos éticos bem definidos e de larga difusão em todo esse período.

Assim, abstratos universais como os de humanidade, nação, bem,

verdade,justiça operavam como os padrões de referência básicos, as unidades

semânticas constitutivas dessa construção artística. O dilema entre o impulso

de colaborar para a produção de um acervo literário universal e o anseio de

interferir na ordenação da sua comunidade de origem assinalou a crise de

consciência maior desses intelectuais.

A leitura dos seus textos literários nos levou a perscrutar o seu cotidiano,

familiarizando-nos com o meio social em que conviviam: a cidade do Rio de

Janeiro no limiar do século XX. As posturas, as ênfases, as críticas presentes

nas obras nos serviram como guias de referências para compreendermos e

analisarmos as suas tendências mais marcantes, seus níveis de

enquadramentos sociais e suas escalas de valores [...] Dess a forma, os textos

narrativos nos ajudaram a iluminar a realidade que lhes eram imediatamente

subjacentes, e o conhecimento desta contribuiu para deslindar os interstícios

da produção artística (SEVCENKO, 1999, p. 22).

Nicolau Sevcenko, afirma que as narrativas literárias partem de uma familiarização

com os meios sociais, com as marcas e as atribuições, os eventos, as experiências e os

dilemas da sociedade em questão. Nesse sentido, os lugares ficcionais narrados no texto,

bem como, os lugares reais compõem, nas tramas, nas vozes, na imaginação, na

investigação empírica e documental, a compreensão de uma sociedade e sua época.

Portanto, evidencia-se que tanto a história quanto na literatura caminham pari

passu e, que o dualismo, real/ficção, história/arte é aparente, isto é, o ficcional é, em

parte, histórico e o histórico não dispensa o ficcional. A partir dessas formulações é que

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se discutem os lugares de memórias dos coronéis na cidade de Ilhéus de no romance

Gabriela, Cravo e Canela.

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CAPÍTULO 2

LUGARES DE PAPEL - OS CORONÉIS NA CIDADE DE ILHÉUS E NO

ROMANCE GABRIELA, CRAVO E CANELA

2.1. Os coronéis e os Lugares- na história, na ficção

Assim era Ilhéus, naqueles idos de 1925, quando floresciam as roças nas terras adubadas com cadáveres e sangue e multiplicavam-se as fortunas, quando o progresso se estabelecia e transformavam-se a fisionomia da cidade (Jorge Amado).

Nesse capítulo, analisa-se os lugares de memória dos coronéis na cidade de Ilhéus

e no romance Gabriela, Cravo e Canela. É importante perceber os diálogos entre as

narrativas literárias e históricas nas descrições desses lugares. Para tanto, compreende-se

a categoria de lugar enquanto instância física que se configura, altera, ganha sentido por

meio das relações antropológicas de identificação, assimilação, demarcação e vínculo de

coexistência.

Alguns conceitos, na contemporaneidade, são movediços e, em algumas situações,

se abrem a outros significados, haja vista as mudanças nas instâncias sociais,

econômicas, culturais e, especialmente, nos âmbitos tecnológicos a partir da segunda

metade do século XX. A ideia de território, espaço, lugar e fronteira têm sido alvo de

questionamentos e revisões nos estudos contemporâneos, principalmente na conjuntura

atual de globalização.

As categorias aplicadas nessa análise, embora não desconsidere essas novas

abordagens, não têm o compromisso com as formas atuais de globalização, uma vez que

se discute o lugar sob o signo das transformações urbanas e seu desenvolvimento a partir

da burguesia do cacau, das investidas do progresso dos coronéis na cidade de Ilhéus

entre o final do século XIX e primeiras décadas do século XX.

Nesse sentido, as alterações físicas estão inseridas num ideal de civilização que se

constrói à luz da modernidade, confirmando a hipótese de que, os lugares construídos e

ocupados pelos representantes do poder local se apresentam tanto na literatura de Jorge

Amado, quanto na historiografia.

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Para Certeau (2001) lugar implica uma configuração de posições que se articula

instantaneamente e alude estabilidade; desse modo, os elementos que o compõem situam

em seu “próprio” lugar que é, por sua vez, distinto; único. Em outras palavras, o lugar se

mostra de maneira mais unívoca e estável e, em certos sentidos, diferencia-se dos

espaços que são formados pela ocupação transitória, momentânea e móvel.

A perspectiva de lugar segundo Augé (1994), define-se como identitário,

relacional e histórico e é, por sua vez, formado por vínculo, também, afetivo que se dá

no conjunto de elementos que coexistem dentro de certa ordem. Para ele, o lugar é

entendido como realidade antropológica e “é simultaneamente princípio de sentido para

aqueles que o habitam e princípio de inteligibilidade para quem os observa. [...] Ele é,

antes de mais nada, geométrico” (AUGÉ, 1994, p. 51,55). A ação sobre o geométrico,

sobre o lugar, o movimento e o trânsito fazem dele um espaço, ou seja, um lugar

animado.

Outra análise importante sobre o problema do lugar é feita por Santos (2005), para

o qual existe uma relação dialética entre o mundo, enquanto instância totalizante e o

lugar que o torna perceptível empiricamente. Do mesmo modo, o que se entende por

lugar se dá pela existência da tecnosfera ou os objetos materiais que o comportam e ao

seu lado, a psicosfera, ou seja, as ações e as relações estabelecidas pelos grupos

humanos.

O mundo totalizante, suas condições, normas e leis, são vistas como estranhas em

âmbitos sociais mais restritos. Cabe ao lugar, que de antemão é próximo, restituir o

mundo e traduzi-lo à esfera de um recorte espacial. Assegura-se que há o constante

diálogo entre o mundo totalizante e o lugar, de modo que “cada lugar é ao mesmo

tempo, objeto de uma razão global e de uma razão local, convivendo dialeticamente”

(SANTOS, 2005, p. 170).

Essas induções comprovam que as transformações dos lugares urbanos de Ilhéus

dialogam nas esferas de maiores dimensões do projeto moderno de proporções

universais. Sendo assim, a cidade passa por profundas alterações, tanto no cenário físico

das suas ruas, das praças, das construções, da arquitetura, como diante dos símbolos que,

erguidos, expressam e demarcam os lugares associados aos donos do cacau.

Simultaneamente a essas alterações estão às instâncias e as complexas relações

sociais, além do crescimento da lavoura cacaueira e o valor impetrado ao fruto na pauta

de exportações da Bahia.

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O romance Gabriela, Cravo e Canela ressalta a expectativa em torno da grande

produção de cacau e, por sua vez, associa ao êxito das safras à prosperidade e

desenvolvimento da cidade de Ilhéus. A voz do narrador abre o enredo com a

expectativa da elite ilheense pela promessa de uma promissora colheita de cacau a que

“falavam da safra anunciando-se excepcional, a superar de longe todas as anteriores.

Com o preço do cacau em constante alta, significava ainda maior riqueza,

prosperidade, fartura, dinheiro a rodo”(AMADO, 2002, p. 7). O tempo da narrativa,

1925, confunde-se com a hegemonia da produção cacaueira em larga escala no sul da

Bahia. O período compreendido entre as duas primeiras décadas do século XX assinala

o apogeu das exportações do produto, principalmente, a partir de 1904, com a excelente

valorização do fruto no âmbito das exportações:

O produto assumiu a liderança da pauta estadual, assegurando a performance

até o final da primeira república, chegando em alguns anos a contribuir com

mais da metade do total arrecadado pelo estado, sem que em nenhum

momento, tinha registrado participação inferior a 30% (FALCÓN, 1995, p.

41).

Essa hegemonia na pauta estadual se fazia evidente nas dinâmicas sociais, políticas

e econômicas, pois “a cultura do cacau dominava todo sul do estado da Bahia, não havia

lavoura mais lucrativa, as fortunas cresciam, crescia Ilhéus, capital do cacau” (AMADO,

2002, p. 13). Essa conjuntura regional se caracteriza pelos acirrados conflitos que

persistem desde a conquista das terras pelo uso da força, da violência, “homens

matando-se traiçoeira e cruelmente pela posse de vales e colinas, de rios e serras,

queimando as matas, plantando febrilmente roças e roças de cacau” (AMADO, 2002, p.

9) e se desdobra nas relações políticas impetradas na cidade de Ilhéus. De tal modo, a

ocupação dos lugares urbanos pelo coronelismo é precedida da ocupação das terras,

portanto, a alteração da cidade é, significativamente, marcada pelo desenvolvimento

dessas conquistas e da produção do cacau. As posses das terras são, gradativamente,

reconhecidas pelo Estado, que na concessão das escrituras se beneficia economicamente

com os novos ricos:

Convidam-se todos os invasores da Sesmaria Jacarecica que não tiveram

escriptura das terras que ocupam, a legalisar as posses, entendendo-se nessa

cidade com o dr. Ruy Penalva ou em Cachoeira com major José Pereira da

Cruz, afim de receber a escriptura (Jornal de Ilhéos, 1913).

O governo regional, apesar das especificidades, está diretamente associado ao

Estado e pari passu à fragmentação política da Primeira República, nos deslocamentos

de poderes nas mãos das oligarquias agrárias que instaura o coronelismo. De acordo com

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Leal (1997), o coronelismo atua no reduzido cenário do governo local e o isolamento é

uma das características desse fenômeno. Porém, existe uma relação entre os municípios

e os governos estaduais e federais, à medida que esses últimos utilizam de maior

representatividade, usa as atribuições da máquina para favorecer aos candidatos e

recompensar os municípios dando-lhes maior autonomia em troca de apoio aos

candidatos.

Outro fator importante é que muitos municípios, sem receita suficiente,

dependem do estado para a realização de obras de maior proveito. Essa falta de

alternativa não deixa de se caracterizar como uma forma de submissão dos municípios

em relação aos estados.

Diante disso, o compromisso das instâncias maiores do governo está nos

retornos, atribuições e benefícios que as demandas municipais podem oferecer. De

antemão, o coronelismo no sul baiano é uma forma de incursão e exercício do poder

privado sobre o que é público e sua autoridade e o status advêm do reconhecimento da

propriedade e da produção de cacau, já que grande parte desses proprietários não possui

qualificação educacional e muitos são analfabetos ou semi-analfabetos. Assim, o

movimento político local está intrinsecamente associado à patente.

A maior parte dos coronéis não eram coronéis. Pouco, em realidade, os

fazendeiros que, que começos da República e da lavoura do cacau, haviam

adquirido patente de coronel da Guarda Nacional. Ficara o costume: dono de

roça de mais de mil arrobas passava normalmente a receber o título que ali

não implicava em mando militar e, sim, no reconhecimento da riqueza

(AMADO, 2002, p. 22).

É em torno dos coronéis e da riqueza gerada pelo cacau que circulam os demais

grupos sociais, tanto as camadas menos favorecidas, como os trabalhadores rurais que

vivem em constante temor, por não ter a quem recorrerem suas reivindicações; quanto

aos comerciantes, advogados, padres e cabarés.

O apogeu do cacau que dinamiza a cidade de Ilhéus é antecedido por grandes

problemas econômicos e sociais que se arrastam desde o período colonial. O

povoamento das terras se dá a partir de 1532, período de investidas dos colonizadores no

extenso território litorâneo precedida da recém chegada dos portugueses em 1500.

Numa convergência historiográfica e literária, Falcón (1995), afirma que Dom

João IV doa a Jorge de Figueiredo Correa parte de terras do litoral sul do Estado. Fato

descrito na ficção amadiana por ocasião da procissão realizada em promessa a São Jorge,

padroeiro da cidade, que faça chover afim de não perder a safra cacaueira:

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Como poderia são Jorge ficar indiferente a tanta aflição? Vinha ele dirigindo,

bem ou mal, os destinos dessa terra, hoje do cacau, desde os tempos

imemoriais da Capitania. O donatário, Jorge de Figueiredo Correia, a quem o

rei de Portugal dera, em sinal de amizade, essas dezenas de léguas povoadas

de silvícolas e de pau-brasil (AMADO, 2002, p. 9).

A esta doação não significa um expressivo desenvolvimento, mas acena para

uma incapacidade por parte dos donatários em administrar suas terras e promover o

crescimento econômico e social da pequena vila. Identificam-se alguns engenhos de

açúcar, mas que não traduzem um efetivo comércio. Essa timidez contribui para a

divisão das terras em sesmarias e isso não constitui em avanços para o povoado.

Desse modo, “até o começo do século XIX, Ilhéus não passava de um pequeno

povoado fundado pelos jesuítas, cujas edificações mais importantes eram uma igreja e

um colégio” (FALCÓN, 1995, p. 38). Sobre isso, o coronel Ribeirinho, personagem do

romance, sob a égide do progresso, afirma: “quando eu desembarquei aqui, em 1902,

para o mês faz vinte e três anos, isso era um buraco medonho. Um fim de mundo, caindo

aos pedaços [...] Ponte para atração não havia, umas ruas sem calçamento, movimento

pequeno” (AMADO, 2002, p. 16-17).

Então, a cultura do cacau se configura como um marco e a transição de um

período de estagnação à euforia do discurso civilizador, uma vez que a partir de 1904,

Ilhéus passa por mudanças significativas em seus espaços urbanos e sociais. “Hoje é o

que se vê. Cada dia é uma rua nova. O porto entupido de embarcação” (AMADO, 2002,

p. 16-17).

De acordo com Santos (1997), o fenômeno de transformação desses espaços

dialoga com a conjuntura e as instâncias econômicas, políticas e emerge das atribuições

e dos sentidos que são inferidos à própria cidade em questão.

Os lugares e os espaços em interfaces estão inseridos nos discursos do

coronelismo; o primeiro enquanto conjuntos de objetos, de materialidade; o segundo

enquanto atividade, dinamismo e significados que lhe são dados pelo homem. Esses

espaços são compostos pelos elementos: homens, firmas, infra-estruturas e instituições.

Em outras palavras, os lugares e os espaços são intercambiados pelo social, pelas forças

que agem dialeticamente nessas instâncias.

Nesse sentido, a égide do progresso difundido pela elite cacaueira convive,

inevitavelmente, com alguns resquícios do passado recente, uma vez que a cidade de

Ilhéus enfrenta graves problemas de limpeza pública, espaço para as necessidades

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básicas dos transeuntes, comerciantes, trabalhadores urbanos e visitantes, que utilizam

das ruas e, até mesmo, os lugares mais “nobres” como mictórios e latrinas:

O mais triste espetáculo e o maior escândalo, que se pode presenciar n‟uma

cidade, que em foros de civilisada, e que é sede de umas das mais importantes

comarcas do Estado, pela população, extensão, por seu comércio e lavoura

[...] A parede do lado lesta da capela de são Sebastião está transformada em

mictório: já não se pode ouvir missa e assistir a quermesse [..] É de quem a

culpa senão do srs. Presidente do conselho e intendente municipal [...] De

quem é a culpa senão dos srs. Domingo Adame e Ernesto Sá, que assaltam

municipalidade, pelo direito da força, pela prepotência, e nela só agem de

acordo com suas conveniências (Gazeta de Ilhéos, 1903).

Essa reportagem, além de oferecer fortes indícios do cenário urbano de Ilhéus

sugere, de igual modo, a compreensão dos impasses entre dois grupos que disputam o

poder político e econômico. De um lado, a família de Domingos Adami de Sá, do outro,

a de Antonio Pessoa da Costa e Silva; “o coronel Adami herdeiro político da família

extensa Sá. Latifundiários e escravocratas, os membros dessa família ocuparam o poder

municipal quase que ininterruptamente durante o século XIX e início do século XX”

(RIBEIRO, 2005, p. 40).

A crítica deferida pelo jornal Gazeta de Ilhéos traz um teor de contestação e de

posicionamento antagônico, já que o jornal inaugurado em 1901tem, em sua

composição, os interesses dos fazendeiros ligados a Antonio Pessoa que aproveitam o

espaço impresso para acusar a família Adami de ser a responsável pelo atraso da cidade

de Ilhéus e, além disso, de serem escravocratas.

Antônio Pessoa exerce cargos importantes na sociedade ilheense, como promotor

público e deputado da província e, de acordo com Ribeiro (2005), centraliza seu discurso

para uma alternativa moral, por ser este abolicionista e de origem humilde. Tática

adotada pelos adamistas no Jornal Lucta, articulado, principalmente, por Rui Penalva,

que assegurava a propaganda política do grupo adamista.

A divisão territorial e de influência política de Ilhéus a partir da República se

configura da seguinte maneira:

Quatro distritos eleitorais: um urbano (Cidade) e três rurais (Itaipé, Cachoeira

de Itabuna e Almada). Os distritos de Itaipé e Almada eram dominados

politicamente pelo coronel Adami de Sá, enquanto o distrito de Cachoeira

sofria a influência do coronel Pessoa (RIBEIRO, 2005, p. 44).

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A essas divergências políticas se somam investidas para que os nomes das famílias

da aristocracia ilheense se perpetuem por meio dos feitos arquitetônicos e das mudanças

nos lugares públicos da cidade.

Ainda de acordo com Ribeiro (2005), o exercício do poder se dá em âmbito

familiar, vínculos de amizade e herança política tradicional. A permanência no cenário

de governo faz com que grande parte dos coronéis deixem de residir em suas fazendas

para construir e ocupar os palacetes na cidade, com objetivo explicito de demonstrar seu

lugar de poder, prestígio social e econômico.

Essas disputas políticas e econômicas entre as famílias Adami e Pessoa compõem

o arsenal historiográfico da região cacaueira, mas, por outro lado, dialoga e se aproxima

da narrativa ficcional em Gabriela, à medida que confirma que o personagem, o coronel

Ramiro Bastos faz alusão ao coronel Pessoa e Adami, porém, de maneira mais ampla

personifica o coronelismo regional e o uso da máquina pública como equiparação e

extensão de suas propriedades.

Ao coronel Ramiro soma-se vários outros fazendeiros, comerciantes, advogados,

homens de status na cidade, que a cada eleição confirmam a fidelidade ao mandatário

municipal. “Amigos incondicionais, parentes seus revezavam-se no cargo, não moviam

uma palha sem a sua aprovação” (AMADO, 2002, p. 58).

As distâncias entre os personagens históricos e literários se encurtam, sobretudo

quando se confirma no romance a inauguração do ficcional Jornal Diário, antes

contestada pelo coronel Ramiro Bastos, mas patrocinado por Mundinho Falcão. Sobre o

perigo político de ter um jornal, o coronel afirma: “essa coisa de Jornal Diário é um

perigo. Bastava não satisfazer um pedido de Clóvis para ter o jornal fazendo oposição,

metendo-se nos negócios municipais, esmiuçando, arrastando a reputação na lama”

(AMADO, 2002, p. 60).

As críticas políticas dos pessoístas aos Adamistas se evidenciam nos noticiários do

jornal Gazeta de Ilhéus, a exemplo da acusação feita por falta de mictórios na cidade que

atribuem a culpa aos Domingo Adami e Ernesto Sá, e que os apontam de assaltarem a

municipalidade e de fazerem uso da força e prepotência.

De igual modo, na trama do romance se atribui ao Jornal Diário “uma série de

artigos [...] desmascarando o governo, a intendência” (AMADO, 2002, p. 69) e é um

veículo por meio do qual se busca enfraquecer a imagem emblemática do respeitado

coronel Ramiro Bastos.

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Ao demarcar os lugares de atuação e influência na cidade, os coronéis do cacau

atraem para si o referencial do progresso, o agente provedor da transformação urbana de

uma Ilhéus colonial para o progresso civilizador que assemelha à cidade do interior

baiano ao Rio de Janeiro e cidades européias. Segundo Ribeiro (2005), Domingos

Adami inicia em 1904 várias obras portuárias, esgotos, estradas e pavimentação de ruas.

Mangabeira-Lavigne 1908-1912, de igual modo, realiza trabalhos nas redes de esgoto,

calçamentos e alargamentos de ruas, demolições e estradas, investimentos nas

residências com

Móveis de luxo mandados vir do Rio, piano de caudas para compor as salas,

as lojas sortidas, multiplicando-se o comércio, bebidas correndo nos cabarés,

mulheres desembarcando dos navios, o jogo campeando nos bares e nos

hotéis, o progresso enfim, a tão falada civilização (AMADO, 2002, p. 7).

É esse discurso de civilização que permeia atuação dos coronéis para a mudança

estética dos lugares e, seguia, sobremaneira, pela perpetuação dos seus nomes nas ruas,

nos monumentos e arquitetura que tinham a incumbência de fazer memória dos grandes

feitos familiares que administravam a cidade.

Os edifícios de que se destacam são o Palácio das Figuras, esse nome é atribuído as

estátuas que existiam em sua ornamentação e pertencia ao coronel Domingos Fernandes;

a casa de João Alfredo Amorim, com frente de azulejo e as casas de José Amaral

Pacheco e Rodolfo Vieira, Ribeiro (2005). Além do Palácio da Intendência de (Fig.01)

estilo neoclássico que prefigurou esteticamente as demais construções erguidas no

período. Segundo o Jornal de Ilhéus de 29 de novembro de 1912, o coronel Antonio

Pessoa autoriza a iluminação pública com 23 lampiões no arraial de S. João da Barra do

Pontal; essa obra foi inaugurada no dia do trabalho, pelo intendente interino Misael

Tavares, noticiada pelo mesmo jornal em 27 de abril de 1913.

O Correio de Ilhéos, por sua vez, traz uma matéria sobre as obras de saneamento e

de estruturação do porto (fig.02), como um dos marcos do progresso que veio ao

encontro dos anseios da população, pois,

Ao longo do cais do nosso porto e as que iniciaram no aprazível arrabalde de

Copacabana. As obras de mais urgências, no referido subúrbio, que estão no

cargo da Stateof Bahia que mediante certa contribuição do Município, tomou

a executá-la, de acordo com o tratado da engenharia municipal, assim como os

do caes têm a cooperação do coronel Bento Berillo, na qualidade de

concessionário do porto da cidade (Correio de Ilhéos, 1922).

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O nome Copacabana (Fig. 03) tem relação com o cenário estético carioca que

influencia a estrutura urbana de Ilhéus. De acordo com Ribeiro (2005), a construção da

réplica do Cristo Redentor, no governo de Mário Pessoa (do final da década de 30 até

1942) confirma a influência carioca na cidade de Ilhéus. A ressignificação urbana, a

tentativa de construir nova memória, agora promissora, em detrimento da vila colonial,

demonstra que os elementos que compõem esses espaços estão sempre variando pelo

movimento da História.

Segundo Santos (1997), em um mesmo lugar os elementos se modificam e cada

elemento do espaço, homens, firmas, infra-estruturas estão em relação com as demais

instâncias, ainda que subordinadas ao movimento do todo, ou seja, do conjunto dos

lugares. Têm-se novos valores, novas regras e leis. Assim, das ruínas das capitanias,

Ilhéus surge como a “capital do cacau”. “É o progresso! Dizia-nos orgulhosamente,

conscientes de concorrerem todos para as mudanças tão profundas na fisionomia da

cidade e nos seus hábitos” (AMADO, 2002, p. 13).

Todavia, o romance ironiza e crítica aos discursos de progresso que predomina nos

partidos e nas famílias dos coronéis que se perpetuam no poder e que se constroem no

cotidiano, nas mesas do Bar Vesúvio, nas praças e nos cabarés.

Entre os espaços transitados e animados pelos coronéis de cacau, na ficção e na

história se destacam o Vesúvio (fig. 04) e o Bataclan (Fig.05). O Vesúvio, com a

culinária diversificada torna-se ponto de encontro e, muitas vezes desentendimentos

entre seus frequentadores. A propaganda do estabelecimento era difundida nos anúncios

de jornais que circulavam na cidade:

completo e variado sortimento de doces seccos e caldos, nacionais e

estrangeiros. Bebidas finas, conservas, leite, café, chocolate, pasteis, comidas

frias, todas as noites. Especial sorvete com creme e de frutas. Encarrega-se em

preparar doces para casamentos, batizados e banquetes, etc. Garantimos

refeição e asseio nos seus trabalhos, assim como aceita encomendas para fora

da cidade por preços razoáveis (Jornal de Ilhéos, 1912).

A respeito da importância do Vesúvio para a elite ilheense, a narrativa literária

reconhece ser o bar um bom negócio em Ilhéus. Confirma-se na literatura amadiana que

o espaço oferece “variedades de sortimentos de bebidas, sorvete para as famílias na hora

do passeio à tarde pela nova avenida na praia e nas saídas dos cinemas [...] e, mais que

tudo, os salgados e os doces para as horas do aperitivo” (AMADO, 2002, p. 43).

Assim, na ficção, o bar é transitado pelos coronéis Amâncio, Melk, Ribeirinho, e

demais coronéis, além de outros ricos como Osnar Farias, Maluf etc. Nomes que fazem

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alusão à elite social da “Capital do cacau”. As famílias de renome na cidade frequentam,

as distrações cinematográficas, a exemplo do Cinema São João inaugurado em 1913 e

divulgado no Jornal de Ilhéos:

Começou a funcionar ontem no Hotel Coelho, exhibindo novas e magníficas

fitas, o Cinema São João propriedade da empreza Maluf &Mastregelo. –Hoje

haverá nova funcção cinematogaphica com programma inteiramente diverso

do de hontem. Falta de diversão como se encontra a nossa população, é de

esperar que Ella acolha bem o novo cinema dando boas casas aos emprezarios

(Jornal de Ilhéos, 1913).

Porém, toda essa movimentação não se equipara aos cabarés, a exemplo do

Bataclan, principal espaço de diversão e expressão da macheza dos fazendeiros. Ilhéus,

em fama de progresso, recebe pessoas de outras regiões que desembarcam na cidade,

mulheres que vinham animar a vida noturna dos coronéis e da elite ilheense e é assim

que se instala em “1913 num amplo sobrado na praça José Marcelino e ganharia fama

em toda a região sul: o Bataclan” (FALCÓN,1995, p. 46).

Com seus ilustres frequentadores “exportadores, fazendeiros, comerciantes,

viajantes de grandes firmas. Mas na rua do canto havia outros, onde se misturavam

trabalhadores do porto, as mulheres mais baratas [...] a orquestra animava a noite

(AMADO, 2002, p. 124). A esses lugares, o Vesúvio e Bataclan, como recortes de vários

outros, compõem os espaços de atividade lúdica e de prazer dos coronéis e da elite social

da cidade de Ilhéus. Assim, com a produção do cacau e a escalada discursiva do

progresso movimenta, desde a arquitetura urbana, às noites animadas pelos espetáculos,

bebidas e sexo.

Desse modo, Gabriela faz referência ao progresso que é construído nos discursos

da elite e nos lugares- espaços que são ocupados e animados pelos novos ricos, ou que a

eles favoreçam política e economicamente. Esses discursos progressistas tonificam os

noticiários impressos, o cotidiano e a produção de textos encomendados a respeito da

história da cidade de Ilhéus, que segundo Ribeiro (2001), tinha a incumbência de

reafirmar posição política e social. Eusínio Lavigne é um exemplo a ser considerado, já

que patrocina o escritor Epaminondas Berbert, líder político e intelectual para favorecer

em sua escrita seu grupo político com a explícita intenção de perpetuar seu poder

familiar e dos correligionários por meio das demarcações dos lugares.

Se o lugar, como pensa Augé (1994), consuma-se pelo uso da palavra, pelo

referencial simbólico compactuado na convivência e na intimidade dos locutores, ao que

chama de lugares antropológicos e implica que os códigos partilhados se classificam em

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lugares - memórias. Isso significa que os lugares não se encerram em si mesmos, mas

têm sentido pela presença e ação humana, portanto, os lugares reais e ficcionais, até aqui

descritos, da cidade de Ilhéus, devem ser vistos num prisma mnemônico do coronelismo.

As ruas e seus alusivos nomes, os palacetes, a ferrovia, o porto, as iluminações públicas

em São João do Pontal, a réplica do Cristo Redentor são elementos que contribuem para

a construção da memória local

Porque, pela experiência, sabemos que um lugar traz associações à memória.

Ao usar signos como uma âncora ou uma arma para as „coisas‟, ou ao evocar

uma única palavra como signo por meio do qual a frase como um todo virá à

mente, o sistema que ele descreve torna-se plausível e compreensível. É o que

de fato, poderíamos chamar de mnemônica (YATES, 2007, p. 42).

A memória organiza-se em mecanismos que lhe permitem a instauração e a

manutenção de forças e controles coletivos. Essas manifestações são imprescindíveis

para o conhecimento das várias organizações sociais e seus processos de transformações,

bem como suas permanências ao logo dos tempos. Em outras palavras, há expansão da

memória através desses monumentos, os símbolos, as figuras e as construções

perpetuam as ações e possibilitam novos sentidos sociais. Imortalizam-se nessas

representações, tornam-se lembrados através dos lugares e dos ícones erguidos.

A partir dessas deduções, merecem atenção os jazigos como lugar de “eterna”

memória dos coronéis. A morte do Ramiro Bastos é momento inaudito na cidade, no

romance Gabriela. Noticia-se no ficcional Diário de Ilhéus:

Nessa hora de luto e dor cessam todas as divergências. O coronel Ramiro

Bastos foi um grande homem de Ilhéus. A ele deve a cidade, o município e a

região muito do que possuem. O progresso de que hoje nos orgulhamos e pelo

qual nos batemos, sem Ramiro Bastos não existiria (AMADO, 2002, p. 333).

O fato mobiliza grande multidão que preenche as ruas, a ladeira da Vitória (Fig.

06) e o enterro se realiza às cinco horas. À noite, a cidade em luto, pois “os cinemas

fechados, os cabarés apagados, os bares vazios, a cidade parecia deserta como se todos

tivessem morrido” (AMADO, 2002, p. 333). A narrativa do romance de Jorge Amado,

sobre a morte do coronel Ramiro Bastos, permite entrever, que além das mudanças dos

lugares dos vivos, o culto à morte, na configuração dos novos ricos do cacau, ganha

relevância no século XX na cidade de Ilhéus.

Os lugares dos mortos compõem o ornamento e o rearranjo simbólico de

manifestação do poder político e de status social. Sobre o cemitério da cidade, havia

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uma precariedade, uma vez que era cercado de estacas, apenas uma parede em sua

entrada, o que possibilitava o acesso de muitos animais (Ribeiro, 2005).

Portanto, até o inicio do século XX não há preservação pública ou privada do

espaço e esse aspecto só começa a conquistar uma mudança, concomitantemente, com a

euforia do progresso e as ações dos políticos e das famílias de prestígio na sociedade

ilheense, como noticiado no Jornal de Ilhéos,

O sr. coronel Misael Tavares da Silva, honrado intendente interino, em

companhia do engenheiro do município e de outras pessoas, se dirigiram na

quinta -feira última ao alto da Vitória afim de examinar as obras do novo

cemitério voltando d‟alli satisfeito pelo bom andamento que vão tendo as

mesmas (Jornal de Ilhéos, 1912).

As obras realizadas no cemitério passam a compor os discursos políticos ligados

à Pessoa e se torna uma extensão das construções de relevância estética da cidade, a

exemplo das novas residências da burguesia do cacau e dos acintosos palacetes. Assim,

pode-se estabelecer, por verossimilhança, o evento-morte de Ramiro Bastos, com dois

momentos que marcam, significativamente, a vida política de Ilhéus. Primeiro, a morte

do coronel Misael Tavares, maior produtor de cacau do mundo, que assim é descrito no

Diário da Tarde:

O coronel Misael Tavares era um lutador incansável, apesar da sua idade

avançada. Tendo uma origem humilde, vivendo uma mocidade laboriosa e

obscura, conseguiu uma fortuna que é cada vez maior de mais sólida da

Bahia, ultrapassando seu nome as fronteiras da nossa terra como o „rei do

cacau‟ por sem dúvida o mais opulento dos proprietários agrícolas da região.

O seu nome ficou definitivamente ligado a todos os empreendimentos no

sentido do maior progresso desta terra, onde aplicou sistematicamente seus

capitais, como por exemplo, em construção urbana que são as mais

importantes da cidade [...] Todo o comércio fechou as portas em sinal de

pesar, havendo as instituições de classe a que pertencia, hasteado a bandeira

em funeral, e o prefeito encerrado o expediente municipal (Diário da Tarde

apud RIBEIRO, 2005, p. 158).

O segundo exemplo é a morte de Pessoa, que reúne, no ato fúnebre, peculiar

identificação com o do personagem Ramiro Bastos, descrito no Diário da Tarde:

Apesar das chuvas que caíram à hora do enterro, grande multidão, onde se

viam autoridades civis, militares, representantes de todas as classes sociais e o

povo geral, já se achavam às 17 horas em frente à residência do ilustre extinto

aguardando o saimento do féretro. Poucos minutos depois da hora marcada o

rico ataúde era retirado do cadafalco armado no salão principal da residência

por pessoas da família, formando longo préstito a caminho do cemitério da

Vitória. Na ladeira que leva à necrópole os postes de iluminação pública e as

árvores ostentavam grandes laços negros de crepe. À frente do cortejo seguia

o vigário da cidade, ladeado por membros da irmandade da Santa Casa de

Misericórdia do qual o coronel Pessoa era o provedor há muitos anos [...]

Antes do corpo descer à sua última morada, usou a palavra em primeiro lugar,

o advogado Heitor Dias que em comovente discurso traçou, em síntese, a vida

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do morto, focalizando sua atuação na direção política deste município,

tecendo merecidos elogios à velhice augusta que agora desaparecei e que bem

poderia servir como um exemplo aos moços (Diário da Tarde apud RIBEIRO,

2005, p. 173).

Os lugares tumbários dos coronéis de cacau, sua ostentação imagética, suas

dimensões e descrições atualizam na posteridade sua estatura política e social por meio

dos discursos mnemônicos. Por isso, não é difícil constatar que o indivíduo é inserido

numa memória sem que dela participe diretamente de determinado evento, mas a esta

aderiu por meio de terceiros formando uma lembrança através de instrumentos que lhe

servem de abertura ou baliza, esses instrumentos estão depositadas em um conjunto

social.

As imagens dos acontecimentos adentram nossa consciência refugiadas nas nossas

vivências pessoais, mas há sempre o fora de si, o qual impele o individuo para que passe

a ver sob o ponto de vista do grupo e os atos, por sua vez, são quase sempre

referenciados pela memória social. Para isso, os lugares e as imagens são

imprescindíveis. “Um lócus é um lugar facilmente apreendido pela memória. Imagens

são formas, signos distintivos, símbolos (formae, notae, simulacra) daquilo que

queremos nos lembrar” (YATES, 2007, p. 23).

De acordo com Ribeiro (2005) o túmulo do coronel Misael Tavares, o maior do sul

da Bahia, é um bom exemplo a ser considerado como lugar de memória que contribui na

construção do mito do progresso de Ilhéus, pois oferece rico acervo estético e de poder

econômico através das temáticas variadas, da aproximação entre o sagrado e o profano,

símbolos cristãos e pagãos, figuras de crianças, mulheres e homens, além do painel de

bronze assinalado pelo artista italiano De Chirico; tudo para enaltecer a lendária figura

do mais rico produtor de cacau e político de destaque no sul da Bahia.

Portanto, o coronelismo do cacau faz parte da memória e da história local,

primeiro por meio dos lugares construídos e ocupados pelas famílias e seus herdeiros

políticos, como também, os documentos, a demarcação nominal das ruas, a arquitetura,

os túmulos e, além disso, pela extensa descrição narrativa da obra de Jorge Amado que

contribui, em larga escala, na formação e identificação da história da cidade com a

produção do cacau e a atuação dos coronéis na região.

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2.2 Gabriela- do lugar de Jorge à memória local

eu fui buscar entre o povo da Bahia e, para a moldura do quadro, do painel, do mural, não quis outra paisagem, outro casario, outro mar senão o da Bahia (Jorge Amado).

A obra de Jorge Amado é composta por elementos que contribuem para a história

e memória regional por possuir força simbólica e representacional; também por fazer

parte da compreensão de mundo da população sul baiana. O diálogo com o real na

literatura amadiana tem se confirmado e é “verdade” que os documentos apontam para

influência de Jorge Amado na formação do imaginário de “baianidade” ou de “cultura

baiana” e até mesmo como marco importante na interpretação das dinâmicas sociais e

políticas do Brasil no século XX.

De igual modo, sua literatura contribui para a representação de “brasilidade”,

sobretudo nos países em que sua obra foi traduzida. Assim, o autor grapiúna se tornou

um dos principais nomes interpretativos do coronelismo na região do cacau. Isso em

decorrência da sua identificação com a realidade, o povo e os lugares do sul da Bahia,

por isso, afirma que “nossa força [...] consiste em sermos parte de um todo, em termos

os pés plantados na terra” 3, e por isso, “só aquele conhecimento que se vive dia a dia,

minuto a minuto, no erro e no acerto, na alegria e na tristeza” (Ibid), é capaz de dar

suporte para a literatura.

Alguns dos temas abordados ultrapassam o regionalismo e fazem com que seus

escritos estejam em acordo com os debates impetrados pelos intelectuais, sobretudo, os

da geração de 1930. Se em alguns dos seus romances, como Tocaia Grande, São Jorge

dos Ilhéus, Cacau predominam os conflitos pela posse da terra, a exploração dos

trabalhadores rurais, as tocaias e a opulência do cacau, de outro viés, sua obra traz à tona

os problemas mais peculiares do ser humano, a liberdade, a sexualidade, a religiosidade

e, particularmente, as questões de gêneros e fatores raciais.

Assim, Jorge Amado discute alguns dos temas recorrentes dos escritores da

geração de 30 que buscam interpretar o Brasil contemporâneo a partir das discussões de

nacionalidade, de identidade e das questões étnico raciais, culturais e do cotidiano. “O

escritor [...] será mais universal quanto seja nacional e que sua obra ganhará

3 Citação extraída da carta de Jorge Amado a uma leitora sobre romance e personagens . Publicada pela

Fundação Jorge Amado, 2003.

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imortalidade à proporção que exibe a marca de seu tempo, seja testemunha e

participante” (Ibid).

O nacionalismo não é especifico da sociedade política brasileira, mas, tem se

estabelecido, sobretudo a partir do séc. XIX como parte constitutiva da política

expansionista do capitalismo, haja vista que é um dos fatos para se pensar os grandes

conflitos mundiais no século XX.

Nos governos de Vargas o projeto nacionalista ganha dimensões consideráveis,

uma vez que sua política de centramento do poder, opunha-se a um Brasil de oligarquias

e fragmentação. Pretendia-se “desenvolver” o país e, para tanto, era necessário, na visão

do governo, estabelecer uma política em que os interesses do governo se atrelasse ao da

população. Não por uma preocupação com as camadas populares e trabalhadoras, mas

como meio de manipular o povo, fazendo-o defensor e companheiro do governo. Nota-

se que anos anteriores a governo de Vargas, sobretudo na década de vinte, greves,

manifestações eram constantes.

A utilização da propaganda, dos palanques, dos meios de comunicação, de

medidas administrativas, tinha por objetivo tornar Vargas o defensor dos pobres e

oprimidos. Nota-se que o Populismo era parte constituinte do seu governo. “Pai dos

Pobres” era o slogan que se estampava nos meios de divulgação dos feitos do presidente.

No governo de Vargas, o Brasil passa por considerável processo de industrialização e de

produção eminentemente rural, agrícola para grandes centros urbano e industrial.

Diante disso, é que se pode compreender que tanto o nacionalismo como o

populismo têm em suas bases características do autoritarismo, pois é o estado soberano

que numa aparência de protetor ou provedor das massas, mantém-se a distância,

manipula, conquista objetivando preservar seu domínio e prestígio.

Desse modo, o desenvolvimento do capitalismo brasileiro: rural, industrial e

político, apresenta-se intermediado por estas práticas e é nessa conjuntura que Jorge

Amado está inserido com “a aliança entre o projeto estético e o projeto ideológico que

se manifesta mediante uma atitude intervencionista do escritor participante, quando

enfatiza [...] problemas sociais” (BERBAMO, 2008, p. 56).

Nesse período, Prado (1979), ao fazer uma análise marxista, aborda e evolução

política do Brasil. Segundo o historiador, é preciso pensar o Brasil a partir de uma

divisão internacional do trabalho, portanto, o Brasil só pode ser pensado a partir de

elementos que estão em pauta na economia externa. Destaca que a história deve ser

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analisada com um conjunto de acontecimentos que não podem ser vistos de maneira

fragmentada ou isolada.

Assim, os acontecimentos tidos como secundários ou menos significante, na

concepção do historiador ganha um papel importantíssimo, pois o mesmo é perpassado

por informações que permite uma compreensão mais ampla da realidade.

Com base no marxismo, analisa a sociedade a partir do fator econômico, segundo

ele, a sociedade colonial é dinamizada por essa conjuntura econômica, Prado (1979), faz

uma análise que parte do pressuposto estruturalista e ao mesmo tempo teleológica, já que

visa um fim numa síntese destas diversidades que compõe a formação da história

brasileira.

O sentido da colonização é, então, a exploração da colônia em beneficio de

Portugal. Em relação à questão racial, mantêm algumas noções conservadoras próprias

da historiografia tradicional, um exemplo a ser considerado é sua visão eurocêntrica no

que tange à cultura e à civilização. O autor faz dura crítica à atuação da esquerda no

Brasil e distingue algumas falhas das políticas esquerdistas e que isso tenha resultado no

comprometimento da política nacional esquerdista e como isso comprometeu o destino

nacional. Desse modo, o referido historiador aborda a importância do povo na sociedade

e história nacional.

Freire (1996) se diferencia por apresentar uma história do cotidiano, bem como

de cunho cultural. Seu trabalho se pauta na antropologia cultural. Casa Grande e

Senzala nos aponta para certa visão harmônica entre senhor e escravo, fazendo menção a

uma democracia racial presente nas relações do povo brasileiro. A Casa Grande

representa o modo de organização da administração política da colônia, enquanto a

senzala seria o seu complemento. Assim destaca a miscigenação como fato positivo em

que reafirma a idéia de que há certa harmonia nas relações entre brancos e negros.

Na mesma linha da história cultural e do cotidiano, Holanda (1995) apresenta o

“Homem Cordial” como característica do Brasil, numa utilização das influências

políticas, dos improvisos que driblam algumas normas para se obter resultados. De

acordo com o autor apontado, o Brasil oscila entre o arcaico e a chegada da civilização.

Portanto, Jorge Amado, que se firma a partir de 1932 na militância de esquerda e

se identifica com o ideal comunista, não faz do seu escrito mero desdobramento do

posicionamento político, porém esse fator ideológico não pode ser descartado, pois

compõe os discursos e a compreensão do romancista da sociedade brasileira. Isto é, a

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amplitude da sua obra possui as idiossincrasias, seus descontentamentos sociais e

políticos.

Ora, se Jorge Amado não abaliza sua narrativa literária em ideologia política,

tampouco a desconsidera na composição do seu trabalho artístico-literário, pois como ele

mesmo afirma, “sou, como todo romancista deve ser, apenas romancista e se há qualquer

ideia de bolchevismo em minha obra, é que todas as ideias revolucionárias do homem

trazem sempre em si- boas ou más que sejam – a marca do social e do humano”

(AMADO apud TÁTI, 1961, p. 43).

Jorge Amado tem a preocupação com as procedências populares do Brasil, com a

perspectiva de que é preciso um país diferente e diverso, mas que encontre no

regionalismo um constante diálogo com o nacional. Assim, grupos que estão à revelia da

sociedade burguesa, passam a compor o quadro social de um país mestiço e diverso. A

Bahia de Jorge Amado é lugar onde acontece a síntese, a convivência, a multiplicidade

étnica e religiosa, o placo dos mal afamados, dos bêbados, das prostitutas, dos excluídos

e dos vagabundos. Nesse sentido, o escritor baiano insere, de certo modo, a Bahia no

cenário peculiar nos âmbitos do nordeste e do resto do país

O ser baiano, que contraditoriamente vai ser a forma de conhecer todo

nordestino que chega a São Paulo, foi, durante muito tempo considerado

como tendo uma identidade divergente da nordestina. A Bahia era pensada,

inclusive, quase como sendo a região do Recôncavo, polarizada por Salvador.

Será a própria obra de Amado uma das responsáveis pela inclusão da região

do cacau na geografia imaginária da Bahia (ALBUQUERQUE, 2011, p. 245).

Mediante a amplitude de sua produção literária e as representações de

“baianidade” e “brasilidade”, o escritor afirma, em Carta a uma leitora sobre romance e

personagens, que deve à Bahia e ao povo Baiano tudo o que é e o que fez:

Nessas relações de mais de meio século, o escriba autor destas pálidas linhas e

a Bahia, e o povo da Bahia, o devedor sou eu, quem tem gratidão a declarar,

homenagem a render sou eu e somente eu, que, na vida desse povo, em seu

saber, em sua dura luta, em sua obstinada decisão de viver apesar de todos os

pesares e dos inumeráveis, invencíveis obstáculos, em sua grandeza, aprendi

quanto sei. Se algo fiz e realizei, eu devo ao povo da Bahia, à Bahia

(AMADO, 2003).

É desse lugar de memória de Jorge Amado, por ele vivido e reinventado e,

particularmente, a cidade de Ilhéus, que as personagens de Gabriela ganham vida, pois

fazem parte dos subsídios mnemônicos do autor. “Cheguei do universo primário e bravio

do cacau. Vivi, Senhora, a meninice entre tiroteios, na era da conquista da terra para o

plantio das árvores de fruto de ouro” (Ibid). Permite-se, pelo grau de abstração das

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informações reais, inferir que o romance, em certa medida, confunde-se com as

experiências de Jorge Amado que traz, nos interstícios do povo, na dinâmica social, na

compreensão do ser humano e na genialidade literária, o diálogo com seu tempo e

espaço. Por isso, o escritor, numa identificação afetiva com o seu lugar de origem,

afirma:

Sou itabunense, sou grapiúna da região do cacau. Mas Ilhéus também é minha

cidade no sentido de que é o lugar onde eu vivi minha infância-, um tempo

muito importante na vida da gente. E também minha adolescência, as férias.

Ilhéus é uma cidade extremamente ligada à minha vida, como todo sul da

Bahia (AMADO; ESPINOSA, 1981, p. 4).

Desse modo, a escrita de grande parte de sua obra está relacionada, em muitos

aspectos, à sociedade sul baiana e, especialmente, à cidade de Ilhéus no auge da

produção do cacau. Amado reconhece que as personagens ganham vida, se movem e às

vezes são construídos nas afluências e incidentes reais, de experiências que o autor

presencia, sugestionando a elaboração do romance; pois o “conhecimento necessário

para recriar gente, paisagem e vida não pode ser de ver e olhar, de observação fria e

prudente, de notas em caderno, de apontamentos por mais minuciosos e externos”

(AMADO, 2003) mas é consequência da experiência e envolvimento com o povo.

As marcas do passado, suas experiências, sua cultura, os discursos aos quais Jorge

Amado teve acesso compõem o cenário de sua identificação e que se põe ao lado de

outros diferentes discursos. É nesse jogo que se enredam as relações sociais e o princípio

de alteridade presentes em sua escrita, numa intermediação da linguagem e que se

reconhece em função e a partir do outro.

A contemplação do outro, a capacidade de colocar-se em seu lugar ratificam a

alteridade nas relações entre estes sujeitos, Bahktin (1997). Tal fato é evidente na vida e

na obra do escritor baiano. Assim, compreender a forte ligação com o seu tempo e

espaço é parte fundamental para uma crítica mais profícua sobre a literatura de Jorge

Amado.

De acordo com Bahktin (2002), o cronotopo pode ser entendido como tempo e

espaço que se deparam como uma unidade indissolúvel, sendo que o tempo é histórico e,

portanto, atravessado por sentidos e condicionantes; o espaço é social e, deste modo, a

unidade apresentada no cronotopo é capaz de internalizar nos indivíduos, fazendo parte

de sua estrutura psicológica.

Assim, a ideologia é introduzida através do tempo e espaço determina os gêneros

literários. De tal modo, nos permitem conhecer a construção do romance, analisar seu

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conteúdo e sentido. Isso significa que o cronotopo determina o gênero e seus variantes e,

por consequência, é inseparável da arte literária.

Imerso na realidade baiana, Jorge Amado soube projetar para o campo da ficção

literária a diversidade e a riqueza cultural de sua terra. Ao fazer uso das imagens da

cidade de Ilhéus, seus lugares, aspectos arquitetônicos e cultuarias percorre um cenário

do coronelismo local. Nesse sentido, em decorrência do expressivo patrimônio cultural

(material e imaterial) à disposição dos nativos e visitantes da terra de Gabriela, Jorge

Amado tornou Ilhéu se a região sul baiana, mundialmente conhecidas e de igual modo,

sua imagem e obra ressignificam a região servindo de lente para se pensar o coronelismo

local; isto é, os lugares apropriados por Jorge e por ele reinventados na literatura

compõem, em grande parte, o imaginário regional.

O autor é referência, sobretudo nas principais cidades, Ilhéus e Itabuna, e seu

nome é imortalizado em escolas, ruas, nas avenidas, rodovia Ilhéus Itabuna, nos

estabelecimentos comerciais, bairro, escultura e, de modo especial, na Casa Jorge

Amado em Ilhéus (Fig.05), que guarda, para visita ao público, um considerável acervo

biográfico e sua obra.

Em Gabriela, Cravo e Canela é possível percorrer as ruas de Ilhéus e,

simultaneamente, os lugares apropriados pelos coronéis. Em contrapartida, o romance e

seus personagens têm seus lugares construídos, à medida que a cultura local e a

exploração desta, pelos órgãos de turismo, recriam os lugares, associando-os à imagem

de Jorge Amado. Ou seja, os lugares de papel se fazem incorrer nas reconfigurações dos

lugares reais, adaptando-os à literatura. “Assim, há [...] Mercado do artesanato onde as

ruas e as avenidas homenageiam Jorge Amado [...], Centro de Convenções cujo

auditório principal é chamado de Jorge Amado e suas ruas batizadas de Nacib, Jerusa,

Malvina, Tonico Bastos, coronel Ramiro Bastos” (MENEZES, 2004, p. 77).

Portanto, materializam-se as personagens literárias e se forma uma síntese da

cidade codificada no romance e no ícone do romancista. Um exemplo a ser considerado

é o “Quarteirão Jorge Amado”:

foi idealizado pela Secretaria de Turismo de Ilhéus SETUR, juntamente com a

Fundação Cultural de Ilhéus- FUNDACI, que delimitaram a área,

selecionaram os prédios e monumentos ligados, em sua maioria, a obra

amadiana e elaboraram folhetos contendo informações sobre cada patrimônio.

Os prédios forma selecionados de acordo com a sua importância histórica e

estão espalhados pelo centro da cidade. O Quarteirão foi dividido em dois

circuitos, o Cravo e o Canela, fazendo alusão ao famoso romance

(MENEZES, 2004, p. 80).

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O romance Gabriela, apesar de a crítica apontar para certa ruptura na escrita, na

temática e no estilo, quando se tem por referência os livros anteriores que se centram em

grandes conflitos e violências, o autor prefere usar o conceito de evolução e considera

que sua obra passou pelo processo de amadurecimento humano-literário. Seu realismo é

marcado pela cosmovisão e pela inserção social, sobretudo, na vida e na história de sua

região.Isso significa que seus romances tocam a sociedade brasileira e nascem do

cotidiano.

É o caso de Tieta que surgiu em decorrência da instalação de uma fábrica

poluente em Estância, próximo ao Rio Piautinga. O jovem deputado que apóia a

implantação, afirma que “se deve pagar o preço do progresso” (HAZIN, 2003, p.15).

Frase que marcou o autor e o levou à escrita do romance.

Já a obra de Qincas Berro d´água está associado a Calos Penaque foi casado com

Tância, filha de um prefeito de Olinda, esposo de Otália. Ele era apelidado por Berro,

Berro d’água, pois bebia muito. Contavam que certo dia ele tenha bebido água pensando

ser aguardente e teria gritado: “água!” (HAZIN, 2003).

Assim também, o romance Dona Flor está relacionado com a juventude do autor

em ocasião de uma visita ao amigo Álvaro Moreira.

Na saída, este me contou sobre uma senhora com quem tinha conversado o

tempo todo, irmã do dono da casa, e que estava muito preocupada porque

tinha sido casada em primeira núpcias com um boêmio que morrera deixando -

a viúva, havia se casado novamente com um português, homem de vida

correta agora dera para sonhar com o primeiro marido, a qual chegava a

querer dormir com ela que, sendo mulher honesta, não queria trair o segundo

marido, mas que gostava do primeiro marido, enfim aquele drama todo que

depois transpus para a Dona Flor [...] Um dia eu ia caminhando com

Mirabeau [...] quando vi duas coisas que me chamaram a atenção [...] A

primeira delas foi um rapaz bem vestido, todo de branco [...] Estirado na

escadaria , devia ter bebido muito [...] e nos lembrou um amigo de juventude,

o Vadinho, que era jogador e que terminou sendo o Vadinho mesmo do livro

(HAZIN, 2003, p. 14).

Considera-se, na escrita de Jorge Amado, a partir desses exemplos, a aguçada

percepção da vida do ser humano, seus dramas, seu cotidiano e ludicidade. Nesse

sentido, o romance Gabriela evidencia um momento importante de transição social e

política de Ilhéus, uma vez que a morte de Ramiro Bastos, símbolo do período de

violência, de conquista e de disputa à sangue, dá lugar à novidade que se ergue por um

jovem forasteiro, o Mundinho Falcão. Gabriela encarna esse momento de transição

social e política:

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a mulata cozinheira foi o símbolo do povo na plenitude da força e da

sabedoria, foi o instrumento para que todos entendessem a significação dos

novos tempos. Gabriela sobrepõe-se à realidade ambiente, sua presença vem

dar uma nota lírica à pequena luta política de quando em vez rompida por um

tiro ainda disparado pelos coronéis em derrota (AMADO, 2003, s/p).

A cidade de Ilhéus, em suas ruas, suas gentes, costumes, economia e,

especialmente, na atuação dos coronéis do cacau inspirou a literatura amadiana, mas de

modo diverso, esta literatura tem reconfigurado a cidade com base na ficção literária e,

do mesmo modo, continua a perpetuar a história associada ao fruto de “ouro”, o cacau.

Jorge Amado reconhece a importância da cidade de Ilhéus e da região cacaueira em sua

vida pessoal e em sua literatura, e mesmo residindo em outras cidades brasileiras e no

exterior, quando possível, visitava seus conterrâneos.

Pode-se citar, de modo especial, o ocorrido em 1960, quando trouxe para Itabuna e

Ilhéus dois grandes nomes do pensamento do século XX, o filósofo existencialista, o

francês Jean Paul Sartre e sua esposa que teorizou sobre a liberdade da mulher, Simone

Beauvoir, além de Zélia Amado.

Depois de recebido no Lord Hotel foram ver de perto uma boa fazenda de

cacau, como a Progresso, do cel. Nicodemos Barreto, ali entraram em contato

com todo o processo de nossa lavoura, desde a colheita até o ensacamento.

Visitaram plantações [...] e Sartre fez questão de falar ao nosso assalariado,

conhecer o operário agrícola, sua vida, moradia, família (Diário de Itabuna,

1960).

Os escritores percorreram algumas ruas de Itabuna, fizeram visita à feira livre, ao

bairro Ferradas, onde Jorge Amado nascera. À noite no Lord Hotel receberam vários

visitantes e deram autógrafos e, além disso, participaram de algumas entrevistas na

Rádio Clube onde falou sobre as motivações e impressões da terra romance e do escritor

Jorge Amado.

Sartre afirma que entre os países da América Latina, seu interesse era conhecer,

particularmente, o Brasil, por sua importância, diversidade, pela literatura do seu amigo

Jorge Amado, mas também, por seus problemas (Diário de Itabuna, 1960). Simone

Beauvoir afirmara que em apenas oito dias não era possível antever todos os aspectos

dessa terra, mas que estava fascinada e que o Brasil e, especialmente a região cacaueira

lhe pareceu interessante e bela (Diário de Itabuna, 1960).

Percebe-se que todo este evento gira em torno da figura de Jorge Amado e da sua

relação com a história local. A visita dos filósofos franceses sintetiza, como um recorte,

a extensão do trabalho literário do escritor baiano e do reconhecimento fora do Brasil da

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história do cacau e, particularmente, das cidades de Ilhéus e Itabuna, sobretudo, por

meio do romance Gabriela.

O romance evidencia o declínio do coronelismo regional, de igual modo, permite

entrever os lugares que os coronéis ocupavam na cidade de Ilhéus, mas, sobretudo,

fornece fortes subsídios para se analisar a região cacaueira, seja na linguagem dos

personagens, nos ambientes, costumes e na popularização da cidade, com tudo que

comporta, por meio da ficção literária. Isto é, Jorge Amado ao fazer uso do que tem à

sua disposição, ressignifica, e cria, em certa medida, o imaginário do coronelismo do

cacau no sul da Bahia

A relação da população de Ilhéus à obra de Jorge Amado foi muito

interessante. No início eles odiavam a situação. O escritor havia “maculado” a

honra da nação grapiúna. Quando o sucesso tomou conta e, segundo o próprio

autor, a partir da novela realizada pela televisão das obras Gabriela e Terra

do Sem Fim, para cada personagem sobravam vários modelos. Todos queriam

ser Mundinho Falcão, Ramiro Bastos ou coronel Horácio (HEINE, 2004, p.

96).

A adaptação das suas obras à televisão contribui por “democratizar” o acesso à

narrativa e aos personagens dos romances.

Quando foi adaptado para a televisão tinha vendido 600 mil exemplares no

Brasil. A novela não só fez a Editora Record vender mais 80 mil , como foi

vista por 25 milhões de pessoas. E depois ela foi reprisada! São pessoas que

receberam certas ideias colocadas no romance; essas ideias atingiram uma

massa muito maior, inclusive muitas pessoas analfabetas, outras semiletradas,

e também aqueles que não tinham dinheiro para comprar o livro (AMADO;

ESPINOSA, p. 32).

À popularização televisiva do romance se soma o conjunto de elementos culturais

que dizem a realidade de muitas famílias, sejam urbanos, sejam rurais que tiveram suas

vidas marcadas pelas cantigas, lutas, exploração e, sobretudo, pela economia do cacau.

A primeira edição da novela Gabriela que foi ao ar pela Tv Globo em 1975

mobilizou o público ilheense, uma vez que a cidade de Ilhéus recebeu a visita de atores

como “Paulo Gracindo (Ramiro Bastos), Armando Bórgus (Nacib), Marcos Paulo

(Rômulo Vieira), Jorge Cherque (padre Basílio), Elisabeth Savalla (Malvina), Ana Maria

Magalhães (Glorinha) e Sônia Braga (Gabriela)” (Diário de Itabuna, 29 de agosto de

1975).

Além do próprio Amado, como o grande homenageado, a quem no sábado

receberia título de cidadão Benemérito em Ilhéus. Entretanto, a cerimônia realizada na

Câmara de Vereadores (Fig. 13), que contou com a presença dos artistas globais, não

logrou êxito, dada a multidão que invadiu o recinto provocando grande tumulto “a

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invasão do público que queria ver a qualquer custo, os atores da TV Globo integrantes

da novela Gabriela [...] até que o vereador resolveu entregar o título de qualquer

maneira sem mesmo abrir a sessão” (Diário de Itabuna, 02 de setembro de 1975).

Entre outras questões possíveis de serem analisadas nesse evento, é importante

perceber que a adaptação do romance pela TV massificou a trama e os personagens,

enfim, o conjunto da obra de Jorge Amado. “Ingenuidade talvez de sua diretoria que ao

não solicitar um esquema de segurança de testemunho desconhecer que „Gabriela‟

continua tão popular em Ilhéus, como nos anos 20” (Diário de Itabuna, 02 de setembro

de 1975). Talvez por desconhecimento do fato ou pela constrangedora cerimônia de

titulação de cidadão ilheense ocorrido em 1975, Jorge Amado recebe tal reconhecimento

em 1997, no qual, em seu pronunciamento, ressalta a importância de Ilhéus em sua vida

pessoal e em sua trajetória de escritor. De acordo com o autor, poucas vezes se sentiu tão

honrado em sua vida e que seus livros, significam, antes de tudo a cidade de Ilhéus.

Numa reafirmação de seu vínculo ao lugar, diz o romancista:

Aqui transcorreu minha adolescência, vivi minha infância, corri nas ruas

solto, livre, capaz de amar a liberdade sobre todas as coisas [...] Ilhéus não é

apenas uma bela cidade do sul da Bahia, com tradição de luta, de violência, de

vida espantosamente vivida. Ilhéus é bem diferente, é bem mais que isso. É a

transformação de tudo isso em viva e translúcida realidade [...] Quero dizer

que em nenhum momento desses acontecimentos que me tornaram conhecido,

deixei de lembrar que foi aqui onde tudo começou. Foi aqui em Ilhéus, na

praça do Vesúvio, não foi noutro lugar (AMADO, 1997, s/p).

Portanto, toda essa teia discursiva, as atribuições dos lugares romanceados formam, em

larga escala, a memória local. A literatura amadiana, como também, o mito Jorge

Amado, constrói, em muitos aspectos, a memória regional, mas que, não menos, formou

ou ajuda a formar a auto-imagem dos seus conterrâneos à medida que evidencia a crítica

ao progresso da burguesia do cacau e evidencia a decadência dos costumes e da

moralidade hipócrita da sociedade ilheense. Sobre isso, dedica-se o próximo capítulo.

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CAPÍTULO 3

LUGARES DE MEMÓRIA- AS MEMÓRIAS DO PROGRESSO NO ROMANCE

DE JORGE AMADO

3.1 Vozes dissonantes: Progresso, Lugares e Memórias em Gabriela, Cravo e Canela

No entanto se misturava em suas ruas esse impetuoso progresso, esse futuro de grandeza, com restos dos tempos da conquista das terras (Jorge Amado).

Os contrastes entre as mudanças estéticas e sociais da cidade de Ilhéus acenam às

permanências e as marcas visíveis que religam a cidade ao passado ao qual se busca,

pelo discurso de progresso e das alterações dos lugares urbanos, obscurecer o vínculo ao

tempo de estagnação a partir da euforia futurista.

Nesse sentido, o signo que gradativamente se ergue como provedor dessa

transformação é do coronel, seja pela imprensa local, seja pelos lugares de memória que

fazem referências aos seus feitos. “A construção dessa imagem de Ilhéus se fez por uma

rede de narrativas, que enfatizava lugares e aspectos urbanos que melhor traduziram a

ideia de progresso e modernidade” (RIBEIRO, 2005, p. 89).

Com essas discussões, esse capítulo desenvolve-se, a partir do romance Gabriela,

Cravo e Canela e das memórias literárias, analisando os discursos de progresso,

associado ao coronelismo, a partir da inserção de outras vozes e de outros personagens

que compõem o enredo ficcional.

O projeto moderno advém do ideal iluminista com pressupostos de um progresso

racional e universal que marcam profundamente a sociedade ocidental. Considera-se que

os grandes eventos entre os séculos XIX e XX, repousam e afluem nos ideias da

burguesia e nas teorias que lhes faziam frente, como é o caso do pensamento marxismo.

O período novecentista é marcado pelo levante técnico-científico e se ampara nos

discursos civilizatórios em que se observa a ocupação, no presente, com o futuro. Isto é,

a modernidade parte de uma ética universalista que enquadra o homem numa definição

moral burguesa, na padronização dos costumes e na diferenciação de civilidade e

barbárie e, para isso, gradualmente, erguem-se memórias associadas a este projeto onde

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se visa os discursos pertinentes ao coronelismo em detrimentos das outras memórias e

atores sociais.

De acordo com Ribeiro (2005), as transformações urbanas são parte do projeto

capitalista e da nova perspectiva de pensar e viver a cidade, que se faz notar nos lugares

públicos compostos por elementos que visam homenagear datas e personalidades por

meios dos nomes e imagens, de maneira que se erguem verdadeiros símbolos de culto a

esses indivíduos como lugares de memórias. Ainda na análise de Ribeiro (2005), a

região baiana que experimentou o sentido de mudança material no início da Primeira

República, foi o litoral sul da Bahia, mas precisamente o eixo Ilhéus-Itabuna.

A ênfase que se segue no presente capítulo tem por base as personagens de

Gabriela, Cravo e Canela, numa perspectiva de que o romance compõe-se de lugares de

memórias. Para isso, buscam-se maiores esclarecimentos sobre o fenômeno mnemônico

e sua intervenção no comportamento e visão de mundo dos grupos sociais.

Em anos recentes, tem-se presenciado a evocação das memórias como fenômeno

que permite, de modo eficiente, repensar as sociedades e as problemáticas próprias da

contemporaneidade, tanto nos aspectos políticos, quanto culturais e econômicos. Toda a

proeminência dada à memória na atualidade é sintomática, uma vez que os discursos não

são despretensiosos, e se abrem como construção ou desconstrução de sentidos.

Para Le Goff (1996), a memória nos leva ao conjunto de funções de ordem

psíquicas, com as quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou

o que ele representa como passadas. Desse modo, é possível diferenciá-la da História,

uma vez que esta última ampara-se em métodos científicos, enquanto o fenômeno

mnemônico associa-se, em sua composição à maior espontaneidade, fluência social e

individual. Porém, a História reconhece seu status, como subárea da investigação

historiográfica e podem ser entendidas como coletiva e individual.

De outro modo, para Halbwachs (2006), a memória tem sempre de empréstimo

as ideias e sentidos forjados pela vivência em sociedade. Tanto as memórias

autobiográficas ou pessoais, quanto à histórica e social se auxiliam, uma de maneira

mais densa e a outra mais extensa e esquematizada pelas organizações sociais,

institucionais, seja pelos livros, datas e calendários fixos e etc. Não é difícil constatar

que o indivíduo é inserido numa memória sem que houvesse participado diretamente de

determinado evento, mas a este se aderiu por meio de terceiros formando uma lembrança

através de instrumentos que lhe servem de abertura ou baliza, esses instrumentos estão

depositadas em um conjunto social.

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As imagens dos acontecimentos adentram nossa consciência refugiadas nas

nossas vivências pessoais, mas há sempre o fora de si a qual é impelido o individuo para

que passe a ver sob o ponto de vista do grupo e os atos, por sua vez, são quase sempre

referenciados pela memória social.

A burguesia do cacau surge em associação ao paradigma moderno das políticas

liberais, em sua versão agrária e, consequentemente, sob a agremiação do progresso e,

portanto, numa preocupação constante em manter vivas as memórias familiares e

políticas. Nessa perspectiva, de acordo com Bergamo (2008) é no contexto da expansão,

consolidação do capitalismo, suas contradições políticas e sociais, que emerge o

romance como gênero literário que conquista espaço como meio de retratar essa nova

etapa do desenvolvimento humano e se caracteriza pelas representações do cotidiano da

vida social e individual da sociedade moderna.

Jorge Amado reconhece que a cidade de Ilhéus passa por mudanças estéticas e

sociais significativas e chega a discorrer a respeito das alterações urbanas nas vozes de

algumas personagens “é como eu lhe digo: nuns quantos anos, um lustro talvez, Ilhéus

será uma verdadeira capital. Maior que Aracaju, Natal, Maceió [...] Não existe hoje, no

Norte do país, cidade de progresso mais rápido” (AMADO, 2002, p. 16). Essa tônica

progressista, pauta de políticos e famílias de renome na sociedade ilheense,

gradualmente conquista status de discurso oficial. Porém, os contrastes urbanos e os

costumes ainda indicavam fortes vínculos com o passado de estagnação que ainda eram

constantes, pois as

Tropas de burros, conduzindo cacau para os armazéns dos exportadores,

invadiam o centro comercial, misturavam-se aos caminhões que começavam a

fazer-lhes frente [...] Era esse passado que ainda estava presente em detalhe da

vida da cidade e nos hábitos do povo (AMADO, 2002, p. 13-14).

Amado, ao analisar essas variações e permanências sugere ao leitor os confrontos

discursivos e assenta, em caminhos opostos, dois grandes personagens: o coronel

Ramiro Bastos e Raimundo Falcão. O primeiro, em evocação ao passado e de

resistências as inovações, do qual Ramiro Bastos e seu grupo político se sustentam no

uso do poder local; o segundo defende profundas mudanças na cidade de Ilhéus, seja nas

vias urbanas, seja nos costumes da sociedade ilheense.

Ilhéus passa, nas três décadas no início do século XX, por significativas alterações,

porém, em mão oposta ao discurso oficial de que o progresso esteja associado

categoricamente aos coronéis, o escritor desarticula, de maneira progressiva tal

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associação e evidencia Mundinho Falcão como referencial crítico ao coronelismo

regional. “Os coronéis não compreendem que não estão mais naquele tempo, que hoje as

coisas são diferentes. Que os problemas não são mais os de vinte ou trinta anos

passados” (AMADO, 2002, p. 42).

É certo que a narrativa amadiana, segundo Bergamo (2008), parte de uma

orientação política que foi que se aprofundou nas décadas de 1930 e 1940 e que visa,

numa recorrência estético-social, denunciar as disparidades e as ideologias atuantes no

coronelismo regional. Por isso, Jorge Amado vincula o atraso, ao poder centrado em

mãos da burguesia do cacau, que no exercício do poder não se sentia ameaçada

politicamente. Assim, Clóvis Costa, proprietário do semanário de notícias ao procurar

Ramiro Bastos sobre a intenção de criar um Jornal Diário presenciou a crítica e o

posicionamento hostil de Ramiro Bastos, a quem a ideia não agradou, já que segundo o

coronel, não havia oposição a fazer uso do impresso que pudesse atingi-lo. “Quem

ameaçava Ilhéus? O Governo, por acaso? A oposição era coisa à toa, desprezível. Jornal

Diário parecia-lhe um luxo supérfluo” (AMADO, 2002, p. 60).

O fato é que a região e, especialmente, a cidade de Ilhéus são exemplos

consideráveis da apropriação ideológica, política partidária e familiar da imprensa.

Assim, todos os jornais que circulavam na cidade de Ilhéus pertenciam diretamente aos

coronéis. Se os lugares rurais foram palco de disputas sangrentas, o cenário político

urbano era arena de debate discursivo através da imprensa jornalística e que muitas

vezes provocava conflitos diretos com violência proporcional aos tempos das conquistas.

Esses fatos históricos saltam a todo instante a obra em estudo, sobretudo no que

tange a importância da criação do Jornal Diário que foi patrocinado por Mindinho

Falcão, antecedido pelo descaso de Ramiro Bastos que em sua postura conservadora,

desconfiava dos novos hábitos e empreendimentos e não via no impresso uma efetiva

ameaça ao seu prestígio político que até então era indescritível, mas que gradativamente

seria abalado pela própria dinâmica social, o crescimento da população com a chegada

de forasteiros, mas, especialmente, com os empreendimentos de Mundinho Falcão e as

mudanças dos costumes que ocorriam à revelia dos coronéis e, desse modo, sugestiona o

enfraquecimento do coronelismo.

Mundinho Falcão chegou aqui outro dia, como diz Amâncio. E veja quanta

coisa já realizou: abriu a avenida na praia, ninguém acreditava, foi um

negócio de primeira, e, para a cidade, uma beleza. Trouxe os primeiros

caminhões, sem ele não sairia o diário de Ilhéus nem o clube Progresso. -

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Dizem que emprestou dinheiro ao russo Jacob e a Moacir para a empresa de

marinete (AMADO, 2002, p. 42).

Somam-se a esses feitos, a obra da estrada de Ilhéus a Itabuna, a vinda do

engenheiro para o trabalho de ampliação do porto, a equiparação antecipada do Colégio

Enoch e, além disso, as críticas de Mundinho aos costumes que se transformaram em

“leis” na sociedade ilheense e que sustentaram social e politicamente o coronelismo.

Os lugares reais, construídos e ocupados pelos fazendeiros na cidade,

comportam-se de memórias que perpassam a compreensão do fenômeno político

regional e, de igual modo, a literatura de Jorge Amado se abre como importante marco

discursivo, principalmente, numa evidente oposição à “memória oficial” do progresso,

ao que distingue tal fato ao descentro ou alheamento do coronel e, em seu lugar, põe-se o

visionário empreendedor, Mundinho Falcão, pois o

progresso era a palavra que mais de ouvia em Ilhéus e em Itabuna naquele

tempo. Estava em todas as bocas, insistentemente repetida. Aparecia nas

colunas dos jornais, no cotidiano e nos semanários, surgia nos discursos na

Papelaria Modelo, nos bares, nos cabarés. Os Ilheenses repetiam-na a

propósito das novas ruas, das praças ajardinadas, dos edifícios no centro

comercial e das residências, das marinetes saindo pela manhã e à tarde para

Itabuna, dos caminhões transportando cacau (AMADO, 2002, p. 12).

Se o discurso progressista ocupa o cotidiano da elite do cacau isso significa que

as memórias se abrem em várias perspectivas, seja embasada na força da tradição oral,

na estrutura simbólica das famílias. Mas também, na opulência dos monumentos e no

discurso escrito.

Le Goff (1996) apresenta dois pontos para se pensar os aspectos mnemônicos na

sociedade: uma embasada na oralidade e outra na escrita. Essas vertentes são, na visão

do historiador, manifestações imprescindíveis ao conhecimento das várias organizações

sociais e seus processos de transformações, bem como as permanências de tradições e

símbolos de coesão de vários grupos sociais.

Com isso, nas comunidades em que não há o uso da escrita é possível identificar

um aparato mítico rico em simbologias e que evoca as origens, numa organização em

que a tradição oral resguarda uma teia de informações, de segredos, quase sempre

relacionado a uma expressão religiosa do grupo ou àquele que representante ou que é

encarregado de manter as tradições e assegurar a concordância interna. Esses fatores são,

a todo instante, tecidos pela memória coletiva do grupo assegurada pela oralidade.

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A escrita, por sua vez, instaura um conjunto de transformações radicais nas

sociedades e modifica o posicionamento e a percepção de mundo dos indivíduos e da

coletividade e a memória tende a expandir de mais fixa e rigorosa, porém ambas através

perpetuam as ações e possibilitam novos sentidos e transformações coletivas.

A literatura amadiana é atravessada pelos “regimes de discursos: um popular,

agenciado das narrativas orais da beira de cais, dos cegos de feira, dos cantadores de á-

bê-cê, das conversas de bares e cabarés, de canções e versos populares”

(ALBUQUERQUE, 2011, p. 243). Isso faz o escritor acessar a comunicação com grande

público, mas também, com um teor que se afasta do trivial e que transita por uma

postura política e busca falsear o discurso oficial e revelar suas fragilidades. “O que ele

quer é restabelecer uma narrativa verdadeira, usando a ficção para denunciar a ficção dos

discursos oficiais. Sua linguagem ficcional se submete, pois, a este imperativo de dizer a

verdade, de revelar o falseamento da ideologia burguesa” (ALBUQUERQUE, 2011, p.

243). Para isso, Jorge Amado insere vozes “silenciadas” numa posição ativa na dinâmica

social e, portanto, faz uso das memórias não oficiais para resguardar a crítica a hipocrisia

burguesa, pois para o escritor baiano

A literatura discute questões fundamentais do ser e da vida político -social e

procura desenvolver estratégias discursivas tendo em vista romper com a

alienação do cotidiano que, na sociedade massificante, leva a minimização da

própria significação (BERGAMO, 2008, p. 55).

Nesse sentido, o romance coloca em relevo a crítica ao progresso da burguesia do

cacau, por meio de uma postura humana diferenciada do Mundinho Falcão, em sua

elegância discursiva, na gentileza, pelas obras que transformam a cidade de Ilhéus e,

notadamente, pela voz que se eleva com o ideal de justiça em terras em que a lei sempre

esteve à margem das decisões públicas e privadas.

A proeminência política do coronel Ramiro Bastos na cidade de ilhéus permeia a

narrativa do romance, ao que vai, gradativamente, sendo desconstruída, ao passo que há

uma ascensão do Mundinho Falcão. Primeiro pela restrição da atuação do coronel

Bastos aos lugares próximos ao seu convívio, aos quais ilhéus encontra-se reduzida,

“mas Pirangi, Rio do Braço, Água Preta? O povo ta reclamando, ta exigindo” (AMADO,

2002, p.209).Em compensação, Mundinho amplia sua atuação, em acordo político com

Aristóteles, a outros lugares “olhe por Itabuna, a zona do cacau é uma só. Olhe por esse

interior abandonado”(AMADO,2002, p. 269).

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Ou seja, Jorge Amado aponta e critica o reduto político que atende aos interesses

da menor parte da população, uma vez que as demandas sociais eram mais amplas e,

portanto, o projeto político e o difundido progresso atende, em larga escala, a burguesia

local em detrimento de grande parte da população da zona do cacau, pois “nenhum deles

teve uma preocupação efetiva, embora muitas vezes declarada, de trabalhar a cidade

como um todo, isto é, incluindo nas suas análises e proposições, soluções para a pobreza

urbana” (RIBEIRO apud SOUSA, 2005, p. 107).

Ainda de acordo com Ribeiro (2005) as alterações dos lugares urbanos sob o

signo do progresso produziu um espaço privilegiado da elite ilheense e deixou de fora

grupos menos favorecida, ao passo que a burguesia passou a realizar investimentos nos

imóveis que ocupavam as principais ruas da cidade. Assim, a população mais modesta

era expulsa e se alojava nas periferias como os morros da Conquista, Unhão e Malhado.

Porém, fazia-se sentir a influência do mandonismo em todo o corpo social, pois

permeava as mais diversas instâncias da vida municipal, most rando-se

presente em quase todas as manifestações sociais. Não seria exagero afirmar

que os coronéis possuíam o poder de vida e de morte sobre a sociedade

(FALCÒN, 1995, p. 92).

Jorge Amado critica essa difusão do poder ao narrar o desfecho político, o

declínio de uma estrutura de governo dos coronéis e elabora a imagem de transição e de

mudanças e, por sua vez, falseia o discurso e a memória de progresso, pois sua intenção

como romancista engajado não visa

exclusivamente produzir um objeto de arte esteticamente válido, mas realizar

uma obra que contenha um sentido revolucionário, em uma conjugação que

entrose radicalidade estética e radical idade ideológica. A posição requerida

consiste em afirmar a necessidade de que ela atue como veículo de

conscientização e de esclarecimento público, sem prescindir dos efeitos

estéticos (BERGAMO, 2008, p. 51).

Ainda nessa perceptiva de estética e ideologia no romance Gabriela, Cravo e

Canela, o autor recorre, no processo de transição e de reposicionamento político de

Ilhéus, ao personagem do coronel Jesuino Mendonça, que matara a tiros de revolver, sua

esposa Sinhazinha Guedes Mendonça e o jovem amante, Osmundo Pimentel. Os

assassinatos dos referidos personagens acenam para as “leis” não escritas, mas que

compunham a memória associada ao machismo, à demarcação clara e contundente da

figura masculina que deveria manter sua honra intacta. Porém, ao enfatizar a condenação

do coronel traído, Jorge Amado mais uma vez constrói o discurso mnemônico de

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transição e otimismo de que Ilhéus não é mais a mesma cidade, pois “pela primeira vez,

na história de Ilhéus, um coronel do cacau viu-se condenado à prisão por haver

assassinado esposa adúltera e seu amante” (AMADO, 2002, p.363).

Para conter qualquer medida legal de julgamento ou punição dos coronéis, o

município de Ilhéus tinha, ao longo do tempo, mais advogados que qualquer outro

profissional liberal e eram todos atrelados, de alguma forma, aos mandatários do cacau e

por eles agenciados (Falcón, 1995).

Então, com a condenação do coronel Jesuino Mendonça e a impotência dos seus

correligionários, frente ao julgamento, percebe-se que as memórias épicas e heróicas da

conquista da terra, a recorrência da violência impune dos fazendeiros, gradativamente,

perdem espaço às outras narrativas dos novos moradores da cidade, que não possuíam

vínculos com essa trajetória e que, portanto, não se enquadravam nos mesmo signos que

regiam o pensamento coronelista.

Para Albuquerque (2011), os tradicionais nomes da região do cacau eram

gradativamente substituídos pelos novos moradores e, desse modo, a sociedade de

sangue perdia espaço sem luta efetiva para sociedade do dinheiro, dos escritórios, dos

telefonemas, telegramas. Isto é, o difundido progresso seguia o curso da própria

dinâmica social e esteve, em grande parte, na compreensão de Jorge Amado, a revelia do

coronelismo. Nota-se que desde a segunda metade do século XIX e inicio do XX, Ilhéus

recebe, segundo o escritor, pessoas de várias partes do país e, até mesmo, do exterior.

Naquele tempo, no rastro do cacau dando dinheiro, chegavam à cidade de

alastrada fama, diariamente pelos caminhos do mar, do rio e da terra, nos

navios, nas barcas e lanchas, nas canoas, nos lombos dos burros, a pé abrindo

picadas, centenas e centenas de nacionais e estrangeiros oriundos de toda

parte: de Sergipe e do Ceará, de Alagoas e da Bahia, do Recife e do Rio, da

Síria e da Itália, do Líbano e de Portugal, da Espanha e de Ghettos variados

(AMADO, 2002, p. 32).

Essa confluência de nacionalidades e culturas enfraquece o discurso vinculado aos

coronéis como os detentores do progresso e, apresenta uma cidade atravessado por

outras vozes que não convergem para o mesmo ponto de coesão, o coronelismo. Nesse

sentido, Leal (1997), apresenta alguns fatores que podem contribuir para o

enfraquecimento do coronelismo, que é o processo de aperfeiçoamento eleitoral, o

crescimento dos meios de comunicação e transporte, que de certo modo, põem as

pessoas da zona rural num contato maior com a política. A população da zona urbana

havia crescido e com esta, a produção industrial tornou-se rival em referência à rural.

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Os monumentos, as ruas, os palacetes, as avenidas, os jardins e os jornais,

compõem-se dos lugares de memórias da elite, do mesmo modo, sugere um “silêncio”

dos grupos que não ocupam esses espaços e que, portanto, não participa do progresso ou

pelo menos de maneira positiva, pois

com o desenvolvimento das atividades portuárias e industriais, os

contingentes de trabalhadores que se incorporavam à vida urbana passaram a

ocupar o morro da Conquista e os terrenos alagadiços entre a antiga estação

ferroviária e os morros vizinhos, antiga ilhas das Cobras. Os extremos da

cidade, a ponta da Pedra, ao sul, e a ponta de Areia, ao norte, sofreram o

mesmo processo de ocupação e integraram o lócus da pobreza (RIBEIRO,

2005, p. 107).

Jorge Amado tece, no enredo do romance, uma cidade dinâmica em que os vários

atores sociais assumem posições e, dessa maneira, desconstrói a suposta predominância

mnemônica atrelada à elite ilheense. A ativa cidade é palco de contradições discursivas

e, nesse sentido, atravessada pelo inconformismo, pela subserviência, pela busca do

poder, da hipocrisia, dos prazeres sexuais, da sensibilidade poética, das traições, o

desprezo à civilidade, enfim, emerge em meio à narrativa “oficial” e heróica do

desbravamento, da mudança estética e arquitetônica da cidade, do rigor patriarcalista, da

coragem e dos grandes feitos; o cotidiano, a nudez e os dissabores humanos, mas que se

delineia na esperança de mudanças concretas.

Sendo assim, “em um mundo aparentemente sem saída, abalado por cataclismos

que desafiam o modelo civilizacional vigente, a ficção amadiana é a antecipação e a

promessa de concretização da utopia igualitária” (BERGAMO, 2008, p. 96) e essa

utopia faz-se ouvir na voz forte e contestadora do personagem de Gabriela, Cravo e

Canela, o sapateiro Felipe, homem de opinião anarquista que não ocultava seu

posicionamento social e político ao exclamar que havia chegado o tempo dos

trabalhadores e que, em suas mãos, estava o destino do mundo.

Portanto, o romance Gabriela, Cravo e Canela posiciona-se como marco

importante, lugar de memória não “oficial”, mas que força a reinterpretação do

fenômeno político local e acena para um otimismo social e político, visto que a

metamorfose da cidade estava comprometendo as velhas tradições e costumes que,

gradativamente, perdiam espaços no cenário social de Ilhéus, como será analisado a

seguir.

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3.2 Costumes em trânsitos- tensões sociais e decadências nas bases do coronelismo

Transformaram-se não apenas a cidade, as vilas e povoados. Modificaram-se também, os costumes, evoluíram os homens (Jorge Amado).

Gabriela, Cravo e Canela permite, além da abordagem do fenômeno político

regional, perceber os lugares de papel que são construídos nas tensões do cotidiano da

sociedade Ilheense. No plano geral, o autor amplia a visão e a imagem da decadência do

tradicionalismo, do heroísmo áspero e ergue, por meio do discurso literário e dos

elementos cotidianos, as memórias que transformam os lugares no jogo das

individualidades cotidianas e nas dinâmicas de proporções coletivas.

A poética e a narrativa de Jorge Amado visam contribuir, de maneira atemporal,

para o surgimento de novas posturas frente à espoliação, o mandonismo do coronelismo

aos grupos que se constituem a margem do projeto moderno. Por isso, segundo

Albuquerque (2011) Amado condenada a modernidade por significar a destruição de

natureza idílica, uma vez que torna o homem cada vez mais predatório. Em especial, a

obra do escritor baiano passa

a enfatizar um aspecto muito importante : a vida social e individual inserida

em circunstâncias cotidianas. Ganha relevância igualmente a propensão

cognitiva do gênero para o processo de apreensão da realidade objetiva, uma

vez que o método realista ou o „realismo formal‟ é um preciso instrumento de

análise histórica da sociedade (BARTHES apud BERGAMO, 2008, p. 38).

Isso significa que essa ênfase no realismo é parte do perigo moderno, que na

concepção de Jorge Amado, exige o imperativo de mudança e, para isso, é preciso

elaborar novos discursos que denuncie seus preconceitos e os mecanismos de

demarcação dos lugares de segregações. Assim, Gabriela, Cravo e Canela evoca e

apresenta no palco social figuras intocáveis ou que representam graus de inferioridade

mediante a elite da burguesia agrária. Isso se dá por meio da prescrição e do registro de

uma memória que conquista lugar a partir das personagens que são lidos num alto grau

de parentesco com o dia-a-dia da população da zona do cacau.

Seguem-se alguns exemplos de como Amado identifica a transição dos costumes

por meio das personagens que compõem o enredo de Gabriela, Cravo e Canela.

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Em tons poéticos, Gabriela traz a imagens do cotidiano, o apelo às coisas

simples, a inadequação às convenções sociais, ao ideal de civilidade e dos costumes

impostos pela nova burguesia do cacau. Seus gestos de generosidade são despretensiosos

frente à hipocrisia moral da sociedade ilheense e, sobretudo, impõem-se como um

contraponto a esta moral pelo recuso da sexualidade, do prazer sexual e da postura

despreocupada em referência às normas de funcionamento “harmonioso” das famílias e

dos “bons costumes” da elite local.

Os dramas se revestem do teor satírico, ainda que transmitem os problemas

humanos de sua época e, mesmo sem a predominância da violência no enredo, que se

mostram em momentos esporádicos, percebe-se o conflito entre a estagnação, o

progresso e a evocação da simplicidade e da liberdade na voz e no jeito de ser Gabriela

que “só desejava do sol, o calor para bem viver. Só desejava o luar de prata, pra

repousar. Só desejava o amor dos homens, pra bem amar” (AMADO, 2002, p. 241).

A inconformidade de Gabriela ao casamento formal, aos ambientes civilizados, as

vestes e ornamentos, a postura crítica e de reconfiguração do lugar da mulher na

sociedade ilheense subverte o “destino” feminino relegado ao casamento, ao labor

doméstico e a subserviência ao marido. Albuquerque (2011) diz que Gabriela, moça

simplória de Gabriela, Cravo e Canela, representa a possibilidade da conquista da

felicidade na pobreza, sem amarras da lógica burguesa.

Para Táti (1961), Gabriela não se civilizou e possui a alegria de vive livre, sem

sapatos, brinca de roda, rir alto, tem prazem em ir ao cinema, saborear as goiabas e

pitangas, ver as flores, os bichos, caminhar pelas ruas e desfrutar do amor, do amor do

“moço bonito”. Ela faz crer na bondade, mesmo em um ambiente de prisão e, justamente

por não ser civilizada transmite uma bondade natural que se estende

indiscriminadamente a todas as pessoas.

Nacib, por sua vez, ao casar-se com Gabriela, assume a obrigação de introduzi-la

no convívio das “boas famílias” e, para isso, submete Gabriela ao processo de civilidade,

reeducando seus costumes, fato que não logra êxito, como expresso no Cantar de Amigo

de Gabriela:

Oh! Que fizeste, sultão,

De minha alegre menina?

Manda de volta ao fogão

a seu quintal de goiabas

a seu dançar marinheiro

a seu vestido de chita

a suas verdes chinelas

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a seu inocente pensar

a seu riso verdadeiro

a sua infância perdida

a seus suspiros no leito a sua ânsia de amar.

Por que queres mudar!

(AMADO, 2002, p. 241).

O que está em questão nesse contexto é a vontade da mulher, sua autonomia e

seu reposicionamento social; sua inconformidade aos modelos da sociedade.

No evento de traição de Gabriela à Nacib, mais uma vez o escritor baiano busca

construir lugares mnemônicos a partir do discurso de transição, pois seu esposo Nacib,

não a puni com a morte, como a honra assinalava e, além disso, o próprio Nacib a perdoa

e retomam a relação à revelia das convenções sociais.

Aliada a essa postura crítica das normas morais da burguesia do cacau, tem-se

Malvina, jovem decidida a não incorrer sua vida na submissão ao marido, ao trabalho

doméstico, mas com pretensões incomuns às jovens da época foge em busca de

autonomia e de realização pessoal em detrimento à vontade dos seus pais e, esse fato

fora precedido dos vários confrontos ideológicos no âmbito familiar e da elite local

Malvina fugiu sem deixar rastros, aproveitando a confusão da partida para as

férias, o colégio em desordem. Mlek chamara a polícia, na Bahia não estava.

Comunicou-se com o Rio, não encontraram [...] Muitos meses depois, em

plena safra do ano seguinte, noticiou-se que ela trabalhava em São Paulo, num

escritório, estudando de noite, vivendo sozinha. A mãe reviveu, nunca mais

saíra de casa. Melk recusou-se a ouvir uma palavra sequer (AMADO, 2002, p.

297).

Nesse sentido admite-se analisar o lugar da mulher na sociedade burguesa e qual

o papel a ser desempenhado pela figura feminina na família e nos afazeres domésticos.

Ambiente que por muito tempo representou o mundo e o espaço de atuação da mulher e,

ainda, monitorado pelo olhar do provedor do lar, o marido. O que se percebe é uma

sociedade estruturada sob o viés androcêntrico e patriarcalista.

Assim, na modernidade, a mulher, em específico, foi negada e colocada apenas

como um complemento do masculino, não tendo vontades objetivas; não tendo nenhum

tipo de desejo pessoal; encontrava-se ancorada numa visão fatalista e destinada apenas à

procriação.

Jorge Amado chama a atenção para os coronéis que perdiam espaço e controle

até mesmo no seio familiar e se esgotavam, de maneira gradual, dentro dos símbolos

patriarcalistas que regiam a sociedade ilheense.

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Outro fato relevante para se pensar as mudanças dos costumes da cidade de

Ilhéus na narrativa de Amado são denunciados através da atitude do coronel Coriolano,

quando, ao flagrar sua protegida Glória com o professor Josué, em um ato de traição, ele

a abandona, mas poupa-lhe a vida.

Ou ainda, a participação das mulheres do Bataclan no evento religioso, em

ocasião da procissão, realizada pela igreja, a fim de intercederem juntos, em tom de

prece, para que a chuva voltasse a adubar as terras dos cacauais, mesmo em oposição ao

consenso das famílias de prestígios e que se punham como defensoras da moral cristã.

A presença explicita da homossexualidade no cenário geral, denuncia o

infortúnio da cidade, forjada na figura do macho, mas que se resguardava numa

ocultação da referida prática, uma vez que ainda predominava na cidade de Ilhéus, que

vivia sob o signo da macheza, a ideia de que não havia espaço para os requintes de

bunda. Nesse sentido, Jorge Amado (2002) enfatiza o posicionamento da elite burguesa

de que basta para a imoralidade da sociedade ilheense as presenças incômodas e

asquerosa dos homossexuais Machadinho e Miss Pirangi.

Amado (2002) diz que o aspecto ordeiro da cidade governada a força pelas

lendárias figuras do coronelismo se via abalada pelas insurgências dos malandros, dos

ladrões, vigaristas, gente pouco recomendável fugida da Bahia e que substituíam os

jagunços na paisagem humana da cidade.

Nesse aspecto, Bergamo (2008) afirma que o romance que nasce no contexto das

sociedades administradas capitalista, os indivíduos que não se integraram no todo a

manipulação do mercado colocando-se à margem é apresentado em Gabriela, Cravo e

Canela, como o novo herói que resignadamente forma uma fissura em o “eu” e o mundo

externo.

Em questão estão as negociações entre os lugares de memórias individuais e

coletivos, porém, há um impasse em se tratando da delimitação das fronteiras entre

memória coletiva e individual. Se por um lado identificam-se como particulares, de

outro, permeiam-se e confluem-se, pois “as lembranças permanecem coletivas [...] ainda

que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente

nós vimos. Isso acontece porque jamais estamos sós.” (HALBWACHS, 2006, p. 30).

Desse modo, a memória pessoal parte sempre de um grupo, lugares e imagens

como referências. E assim, na manifestação individual da memória há o reencontro os

pontos referenciais nas relações em grupo que se manteve em outros tempos e espaços.

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Assim, o estar só, não passa de uma aparente realidade que Halbwachs explica

recorrendo às imagens de

quando um homem entra em casa sem estar acompanhado por ninguém, sem

dúvida durante algum tempo „ele anda só‟, na linguagem corrente- mas ele

esteve sozinho apenas em aparência, pois, mesmo nesse intervalo, seu s

pensamentos e seus atos se explicam por sua natureza de ser social e porque

ele não deixou sequer por um instante de estar encerrado sem alguma

sociedade (2006, p. 42).

Ao revelar os segredos que sustentavam a moralidade hipócrita da sociedade de

Ilhéus e pôr em confronto as memórias individuais e coletivas, Jorge Amado parece

incidir por dentro, as bases que sustentavam a sociedade burguesa e, para isso, não se

detém meramente numa crítica a estrutura política do coronelismo, mas denuncia os

detalhes das histórias individuais e sociais, os segredos, as simulações, mas também, a

entusiasmo, o vigor, a autenticidade que são incorporados em muitos dos seus

personagens.

Ilhéus é uma metáfora de um alvo maior a que Amado combateu, mesmo sem

vínculo efetivo com o Partido Comunista, que foi a estrutura econômica, política e social

da modernidade liberal e que insidia sobre os costumes e o cotidiano através da

disparidade entre os grupos e suas legitimações mnemônicas.

É importante pontuar que a dinâmica social é permeada pelas negociações, os

acordos e desacordos, as harmonias e desarmonias, os embates ideológicos que regem o

comportamento dos indivíduos e grupos sociais. Nesse sentido, ergue-se monumento,

evoca-se heróis, mantém-se visíveis os “modelos” políticos, e essas inferências

preconizam-se nos monumentos, na espetacularização visual do coronelismo, e

particularmente, na escrita e na acomodação dos indivíduos ao programa próprio das

sociedades administradas e capitalistas.

O romance Gabriela, Cravo e Canela contribui para legitimar alguns valores do

povo ilheense que não eram contemplados com vivacidade e autenticidade nos veículos

de comunicação impresso, uma vez que atendiam aos interesses dos políticos e dos seus

correligionários. Assim, o romance em estudo encontra-se

habilitado a concentrar uma grande quantidade de informações sobre a vida

social e individual, destacando, sobretudo, os aspectos mais contraditórios da

realidade e suas principais conseqüências do sujeito histórico em interação

com o meio ano qual se insere (BERGAMO, 2008, p. 38).

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Jorge Amado enfatiza elementos populares, “Traíra, violeiro de fama, o moço

Batista, contador de modinhas e Mário Cravo, santeiro maluco, mágico de feira. Seu

Nilo apitava, a sala sumia, era terreiro de santo, candomblé e macumba” (AMADO,

2002, p. 346). Em sua maioria, festas subversivas ou mal vistas pela elite local, como é o

caso das rodas de capoeira e dos terreiros de candomblé. No escondido do cais, nos

bares dos portos por era onde se esperavam os jogadores de ronda, os mestres de angola,

os pais de terreiro e para isso, apenas esperavam-se a polícia esquecer.

A cozinha de Gabriela, bem como sua culinária, são molduras narradas pelas

mãos de um Jorge Amado artista, que desvela, dos escombros dos discursos

pretensiosamente oficiais da elite local, uma tela de culturas que se interagem, dialogam,

se alteram por meio das relações e sabores regionalistas e estrangeiros. Os elementos que

compõem as atrativas comidas de Gabriela, o milho, a farinha, os bolos, a canjica, a

banana-da-terra, os beijus, os vatapás, acarajés, tudo isso traduz a variedades de locais,

nas mais diversas influencias étnicas, mas que se abre para uma novidade árabe: o quibe.

Há um empenho do escritor baiano em reunir os lugares de memórias,

contrapondo-os entre si tendo em vista a captação do leitor numa reelaboração futurista,

numa busca constante de demonstrar ao povo baiano e brasileiro sua riqueza cultural.

Isto é, Jorge Amado recorre à literatura para questionar a desatenção social para aquilo

que compõe a realidade local e em extensão, ao Brasil.

Gabriela, Cravo e Canela conduz o leitor a pensar a região cacaueira em seu nível

local, de costumes, tradições, culturas e, do mesmo modo, as relações culturais das mais

variadas, sejam brasileiras ou dos imigrantes de vários países que contribuíram para

formação da população ilheense. Sua intenção é demonstrar que as transformações

urbanas e nos costumes da cidade de Ilhéus dirigem-se para um ideal de sociedade mais

complexo, dada a atuação dos vários sujeitos e memórias.

Sobre isso, Hall (2006) aponta para outra via que está sendo gerada a partir da

oposição ou aproximação entre global e local. Destaca-se aqui, que não é possível

evocar o triunfo de um e o aniquilamento de outro, mas, identificam-se novas

concepções de culturas permeadas por mecanismos simbólicos que alteram

significativamente nas tradições e nos costumes dos grupos sociais.

Para Canclini (1997), o desenvolvimento urbano foi um dos vetores importantes

para o que ele chamou de hibridismo cultural, uma vez que a sociedade deixou de ser

dispersas, formadas por várias comunidades com culturas tradicionais e locais e, em

algumas regiões com raízes indígenas e foram se aproximado do resto da nação e das

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tramas majoritárias urbanas e das suas ofertas simbólicas, e esses espaços urbanos se

entrecruzam as forças e as suas demandas culturais e mnemônicas. Nesse aspecto, a

exemplo do coronelismo que se impunha como distribuição de regra às esferas sociais, a

modernidade como seu habitat, classificou normas para lugares específicos e,

paradoxalmente, a vida urbana transgrediu a todo instante essa ordem.

Os lugares de memória em Gabriela, Cravo e Canela são conflituosos, seja pela

presença dos coronéis e as disputas entre si, seja pela diferenciação dos grupos das

recatadas mulheres, ou das damas do Bataclan e, ainda, as expressões das festas

populares, as ações dos xibungos e vagabundos, escorias da sociedade ilheense.

Jorge Amado ao abandonar o maniqueísmo que marcou suas obras anteriores à

Gabriela, Cravo e Canela com forte demarcação do bem e mal, explorador e explorado,

enfim, enredo eminentemente marxista permite ao leitor do romance em estudo percorrer

as várias forças que atravessam o convívio social. Por isso, o escritor grapiúna ampara-

se em concepções políticas, sociais e culturais, dos mais explícitos aos micros.

O mito do discurso homogêneo dos coronéis não se sustenta, pois, de acordo com

Foucault (2006), não há grupo que se encontre alijado do poder ou que desse não faça

uso, numa postura de vítima desprovida de mecanismo frente ao poder político

administrativo. Por isso, ele aponta para algumas formas de poder que são exercidos

sobre o indivíduo na conjuntura moderna que é a atuação disciplinar com que este estão

inseridos nos sujeitos.

Essas disciplinas não se restringem a alguns ambientes, mas atravessa toda

relação social. Porém, de maneira mais extensa e organizada as instituições as

representam com maior expressividade. Para isso, as demandas externas, as

organizações espaciais, o controle do tempo, o resultado e a visualização ou

materialização dessa disciplina, que desperta certo fascínio, gera corpos dóceis e,

concomitantemente, o acesso a um tipo de conhecimento pela constância e ordenamento

disciplinar.

A invenção disciplinar do indivíduo é um meio de enquadrá-lo dentro de

mecanismos de poder e monitoramento, para que este atenda de maneira eficiente aos

meandros do poder. Nessa perspectiva, é intercalado por construções discursivas

marcadas por jogos de interesses que se modificam, se ajustam e se conflitam em

determinados momentos. De acordo com o filósofo “numa sociedade como a do século

XVII, o corpo do rei não era uma metáfora, mas uma realidade política: sua presença

física era necessária ao funcionamento da monarquia” (FOUCAULT, 2006, p. 145).

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Este caráter discursivo centrado na figura corporal do rei passa a ser o ponto de

referência à política e sofre alteração com o advento da República, haja vista que o corpo

começa a ser inserido no âmbito da sociedade, especialmente, a partir do século XIX.

Assim, há um deslocamento do sujeito, uma ampliação do campo de atuação e de

monitoramento para moldá-lo em função de uma ordem social, e do corpo

comprometido com esta ordem. Estes mecanismos materializam o exercício do poder,

muitas vezes revestidos de ideais que aparentam o bem comum, a prática da justiça e da

liberdade.

Os discursos, ao longo da história, vem alterando, criando e dando utilidade ao

sujeito num jogo de representações, às vezes sutis, outras explicitas, mas em todo caso o

corpo materializa o que se normatiza como poder. É possível perceber que estas ações

impostas ao indivíduo provocam um movimento de reivindicação numa oposição, em

embates com o poder e, por isso, é preciso ressignificar a forma de adequá-lo em outros

investimentos.

Em Gabriela, Cravo e Canela, o coronelismo é datado e que, revestido de força

aparente, é corroído por outras forças que fogem do seu domínio. É, portanto, rico em

símbolos visuais e discursivos, mas barulhento, instável e incapaz de conter a

metamorfose da sociedade. Porém, não é algo à parte, um fenômeno que se desliza a

revelia das outras instâncias sociais, mas expressão de tempos e espaços históricos e,

portanto, sujeito às mudanças. Por isso, as vozes saudosistas dos coronéis Ramiro Bastos

e Melk, o inconformismo do coronel Jesuíno Mendonça ao ser levado a julgamento, a

insatisfação de Nacib com a indomada Gabriela.

Os fatores até aqui discutidos sobre o declínio do coronelismono sul da Bahia

sugere outro agravante: os coronéis foram perdendo espaço, sobretudo, por não

construírem herdeiros políticos vinculados diretamente a produção e administração do

cacau e das propriedades rurais. Seus filhos não criavam vínculo com o modo de vida

rural, pois quase sempre iam estudar nas capitais e apenas usufruíam das riquezas dos

pais, pois esses jovens chegavam à cidade de Ilhéus no

fim de ano, os meses das festas de Natal, de Ano-bom, dos Reis Magos, das

festas de formatura, das festas da igreja, com quermesses armadas na praça do

Bar Vesúvio, a cidade cheia de estudantes em férias , petulantes, vindos dos

colégios e faculdades da Bahia (AMADO, 2002, p.295)

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Desse modo, as gerações que sucediam as figuras emblemáticas do coronelismo

apoiavam-se, apensar da petulância, em outras posturas e ideologias desses jovens, que

não se configurava como uma reprodução dos modelos do coronelismo. Isso implica a

ideia de que o contato com outras esferas sociais, o convívio em grandes centros

urbanos, como Salvador e Rio de Janeiro possibilitava novos lugares de memórias e,

desse modo, um crescente desinteresse ou distanciamento das memórias dos seus

antepassados. Os espaços que eram transitados pelos filhos dos coronéis possuíam outras

categorias de experiência e valores que não àquelas circunscritas pela lógica do

coronelismo.

Para Canclini (1997) a contemporaneidade é marcada pelo intercruzamento das

várias culturas que compartilham os mesmos espaços e, portanto, se desmoronam as

fronteiras que haviam entre o subalterno e o hegemônico/ tradicional e o moderno, ou

seja, essa mova modalidade de culturas hibridas que pulveriza a modernidade e mudam

as dinâmicas nos urbanísticas, política e sociais, mas sobretudo, formula outras vias de

culturas.

Entre esses itinerários culturais, na cidade de Ilhéus no início do século XX

começou a despontar manifestações literárias com declamações públicas de poesias.

Jorge Amado reserva parte significativa da sua obra a retratar a presença e as

performances dos poetas na “Terra de Gabriela”, com a intenção explicita de provocar

uma mudança de percepção de mundo e da sensibilidade de uma sociedade em que o

prazer dos coronéis resumia-se aos bares e cabarés.

Assim, o romancista inicia a narrativa com a ideia de que o coronel Jesuíno

Mendonça era pouco afeito as leituras e as demonstrações artísticas. O coronel em

questão representa uma mentalidade em que a virilidade se mede pelo desprezo às coisas

do espírito, aos sentimentos que revelam fraqueza e, portanto, estão relacionados ao rol

das fêmeas. Por isso, no olhar de desconfiança, outro coronel afirma: “poeta, hum [...]

esses tais poetas na verdade não passam de eméritos facadistas” (AMADO, 2002, p.

243).

Essa afirmativa permite seguir a mesma linha de arguição, já que a transição dos

costumes foi, influenciada, na concepção do romancista pela presença e atividade

literária.

A maneira com que Jorge Amado evidencia o poeta e a poesia nos lugares de

memória diferencia mais uma vez o romance Gabriela, Cravo e Canela dos seus

precursores. Provoca-se, assim, em meios aos homens rudes, sanguinários e autoritários

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a sensibilidade poética que fala à sociedade através de outros recursos e que permitem a

ampliação de mundo e novos posicionamentos humanos. Formaliza-se, desse modo, a

força que a obra poética exerce, por ser esta carregada da alocução que significam e

ressignificam à dinâmica social e cultural. É importante pontuar que esta dinâmica é

permeada pelas negociações, os acordos e desacordos, as harmonias e desarmonias, os

embates ideológicos que regem o comportamento dos indivíduos e grupos sociais.

Jorge Amado percebe a materialização dos discursos, quer sejam nos veículos

utilizados sistemicamente pelos coronéis para a difusão de suas ideologias, quer sejam

nas artes literárias e na atuação dos poetas na cidade de Ilhéus, uma vez que a memória

tende a se fixar em eventos que, de maneira ou outra marcam os indivíduos e os grupos.

É nesse interstício de negociações que emerge a presença dos poetas que numa

linguagem incisiva e inovadora provocam percepções diferenciadas da sociedade.

Neste ínterim, os lugares de papel que se põem no palco do romance de Jorge

Amado são evocados, apreendidos e revestidos de metáforas e analogias por onde se

erguem novos discursos e memórias.

O jornal Correio de Ilheós noticia a inauguração e a importância do edifício da

Associação Comercial de Ilhéos, que além de enobrecer a estética da cidade por suas

formas elegantes, também propiciaria a população local um espaço luxuoso onde

pudesse participar das conferências públicas, sobretudo, das apresentações literárias,

pois

a sociedade de Ilhéos, sempre zelosa dos seus foros de cultura e civilidade,

compete munir-se, quando por quando, de uma sufficiente dóse de paciência,

para ir applaudir, em nome do “bom gosto”, os monótonos arengadores de

frivolidades. Entretanto, essas conferências literárias eram, entre nós, de todo

em todo impossíveis por nos faltar justamente um salão favorável (Correio de

Ilhéos, 1921).

O texto traz um posicionamento de que a adesão dos eventos literários, longe de

está associado ao prazer estético, se dava por uma reprodução de civilidade, mesmo que

não houvesse aceitação efetiva do que seja e representa a arte literária. Por isso, nesses

momentos “encontra remédio infalível para as suas graves crises de insônia” (Correio de

Ilhéos, 1921).

Jorge Amado situa a cidade no cenário literário brasileiro na voz e na adesão de

“Josué à famosa Semana da Arte Moderna de São Paulo, cujos ecos revolucionários

chegava a Ilhéus com três anos de atraso” (AMADO, 2002, p. 222). Isto é, a cidade é

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vista sob nova óptica e, a isso, somam-se novas narrativas que enfraquecem o discurso

do coronelismo.

O professor Josué, em paixão à jovem Malvina, atuava com frequência com

poemas “longos, de exaltação daquele amor que nem mesmo a morte e nem mesmo o

pesar dos séculos destruiriam jamais. Eterno como a própria eternidade, maior que os

espaços conhecidos e desconhecidos, mais imortal que os deuses imortais” (AMADO,

2002, p. 222).

Além do romântico e apaixonado professor Josué, Ilhéus recebe outro nome de

relevância no cenário literário baiano, o “Dr. Argileu Palmeira, eminente e inspirador

poeta, honra das letras baianas – o Doutor se apresentava como uma ponta de orgulho na

voz” (AMADO, 2002, p. 222). E no diálogo com Nacib, o poeta afirma que a poesia está

acima da política. Essa afirmava é portadora de extenso significado, uma vez que todo o

enredo do romance Gabreila, Cravo e Canela acontece sob o signo das disputas políticas

que marcaram a cidade de Ilhéus no tempo da narrativa.

Para Faoro (2000), o conceito de política pode ser entendido em dois aspectos: o

capitalismo político e o capitalismo moderno. O capitalismo político se pauta no

tradicionalismo, numa busca de permanecias das estruturas de poder institucionalizado.

Sua tônica consiste em limites individuais, já que a relação encurta a liberdade, e a

massa popular é vista como súdito e o estado como senhor, sem que tenha uma função

de promover as garantias de bem comum.

O capitalismo moderno traz em seu discurso a idéia de liberdade individual, de

produção de venda, de consumo, de contestação e, sobretudo, de uma produção

industrial, não mais respaldada na terra, como única fonte de riqueza. É nesta concepção

que o individuo passa de sua condição de súdito a cidadão, resguardado na autonomia

frente ao Estado.

Assim, é possível analisar criticamente essa conjuntura, pois esse discurso, na

concepção de Jorge Amado, não significou uma acessibilidade da maioria da população

à riqueza produzida pelo “fruto de ouro” e desse modo, pontuam-se que a atuação

política e a trajetória de Jorge Amado aludem que a citação poesia está acima da

política, não se trata de um demérito e da importância desta para a sociedade, porém, o

romancista crítica a forma como a política é praticada no país e, em especial, na cidade

de Ilhéus.

Sobre as bases em que se desenvolveu a política nacional Faoro (2000), identifica

o patrimonialismo que se caracteriza como a forma dos representantes da política

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conduz, comanda, supervisiona os negócios privados, seus na origem, como negócios

públicos. Nesse sentido, esta estrutura adota como movedor de suas engrenagens

econômicas o mercantilismo. O caráter patrimonialista, portanto, se assenta no

tradicionalismo, numa tentativa de fazer-se manter esta conjuntura.

Segundo Faoro (2000), o que predominou na história brasileira foi que seus

dirigentes, àqueles que detinham o poder estatal, utilizando de ideologias e outros meios,

tais como: a manipulação a agressividade, faziam calar as forças e expressões sociais ou

as amoldavam integrando-as a um sistema de maior envergadura e poder, que era o

Estado.

Desse modo, constata-se que há um distanciamento de Faoro, em alguns

momentos, da teoria marxista ao discorrer que estas formulações estruturais não

configuram em uma classe. Sua composição por diferentes indivíduos, advindos de

funções variadas, tais como: juristas, letrados, burocratas, apenas forma um pequeno

grupo, uma “corporação de poder” instalado no “núcleo decisório do estado”. No

patrimonialismo há uma tentativa de elevação e movimentação das classes, que surge em

contrapartida, uma apropriação e diluimento de toda esta prática na elite.

Para Faoro (2000), existe uma realidade paradoxal, a presença do estado como

sugadora da fortuna produzida, gera assim, o empobrecimento da maioria e ao mesmo

tempo uma adequação desta ao ritmo mundial por parte da população menos favorecida.

O paradoxo consiste justamente neste Estado patrimonial de capitalismo politicamente

orientado, explorador, mas ao mesmo tempo, amparado numa visão ideal e que tinha

como referência o capitalismo moderno, numa visão idealista de uma sociedade perfeita

a ser atingida. Todos estes fatores são agravados pela presença no Brasil de uma massa

desarticulada e analfabeta.

Em Gabriela, Cravo e Canela, a presença literária faz questionar o modelo

político e enraizado no Brasil e, assim, o resultado dessa intervenção cultural-literária

seria, pois, a renovação social, política e o reposicionamento da sociedade e seus

valores.

Torna-se relevante no conteúdo romanesco de Jorge Amado é sua preocupação

em fazer com que a literatura reflita “em grau variável de intensidade as grandes tensões

que caracterizam um determinado tempo histórico, quase sempre não fica imune aos

fluxos ideológicos que permeiam os impasses políticos mais significativos”

(BERGAMO, 2008, p. 54). Ainda na perspectiva de Bergamo (2008), o romance adquire

sua hegemonia nos moldes e nas estruturas capitalistas, surge para retratar o processo e a

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nova etapa em que estava a humanidade. Por isso, o compromisso de engajamento que

afetou, sobremaneira, a literatura de Jorge Amado e possibilitou o diálogo efetivo entre

ficção e realidade, entre literatura e história e evidenciou as fragilidades das fronteiras

dos grupos sociais de Ilhéus.

Portanto, neste percurso apresentado no presente capítulo foi possível identificar

o desenvolvimento discursivo do romance Gabriela, Cravo e Canela, no que tange a

crítica e a desconstrução do progresso de Ilhéus associado aos seus representantes

políticos, os coronéis do cacau.

Ao recorrer ao jovem Mundinho Falcão, a Gabriela, as mulheres de “má fama”,

os vagabundos, os grupos populares, as narrativas literárias, as forças externas que

insidiam sobre a cidade, Jorge Amado descentraliza e dissemina nas várias esferas

sociais e culturais as contribuições para as mudanças efetivas de Ilhéus e amplia a

interpretação da cidade do cacau, uma vez que não se centra nos monumentos, na

arquitetura urbana, mas questiona e discute as várias instâncias sociais e culturais, numa

preocupação efetiva com os dramas humanos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com este trabalho, analisou-se, por meio de um efetivo diálogo entre história e

literatura, o fenômeno do coronelismo na cidade de Ilhéus a partir do romance Gabriela,

Cravo e Canela. Para isso, a investigação transitou, através das referidas epistemes, nos

lugares de memórias e os alusivos discursos ideológicos e estéticos que provieram das

dinâmicas sociais, políticas, culturais e das complexas relações no auge da produção do

cacau no sul da Bahia.

Constatou-se a hipótese de que o romance em estudo, publicado em 1958, possui

forte vínculo com a realidade e o povo da zona do cacau e traduz, de maneira extensa, os

problemas que marcaram a região, sobretudo nas décadas iniciais do século XX,

especialmente advindos do mandonismo dos coronéis que ao conquistar as terras, muitas

vezes, com o recurso da força direcionaram-se, também, para a vida pública de Ilhéus a

partir da administração centralizadora, oligárquica e familiar.

Essa prática política é discutida na historiografia regional, principalmente, com

ênfase nas transformações arquitetônicas da cidade e na perpetuação do coronelismo.

Nesse sentido, verificou-se a importância mnemônica do romance Gabriela, Cravo e

Canela, uma vez que problematiza e amplia, por meio da arte e da ficção, a compreensão

da sociedade ilheense, que apesar das suas peculiaridades no cenário brasileiro, esteve

associada aos elementos políticos da Primeira República, com as fragmentações dos

poderes locais e de clientelismo.

Examinou-se os lugares de memórias que foram construídos, ocupados e

transitados pelos coronéis do cacau e os discursos que difundidos como oficiais,

sobretudo pelo Jornal de Ilhéos, Gazeta de Ilhéos e Correio de Ilhéos pertencentes aos

grupos políticos locais. Algumas das finalidades explicitas dos impressos era evidenciar

os feitos dos donos do cacau nos centros urbanos, e assim, perpetuar os nomes e os

grupos políticos, como também, expressare seus status sociais e econômicos.

De igual modo, Jorge Amado, com objetivo específico em tratar sobre a

atmosfera da cidade de Ilhéus e do sul baiano, buscou por meio da narrativa ficcional

suscitar outros lugares de memória, principalmente, por meio da crítica ao progresso

associado ao coronelismo e, por isso, promoveu outras personagens com vozes

dissonantes e, em alguns casos, como opositores incisivos à figura do coronel e a

hipocrisia moral que ocupava a sociedade ilheense.

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Observou-se que as narrativas históricas e literárias cursam, apesar das

diferenciações metodológicas, a um encontro ativo de interpretação dos dramas

individuais e sociais do ser humano, pois, ambas constituem-se em lugares de memórias.

Assim, a valorização das referidas áreas tem permeado o conhecimento humano e, tem o

acompanhado em tempos o lugares diversos. Nesse aspecto, foi possível constatar

algumas divergências entre esses saberes, sobretudo na afluência do Positivismo e do

Cientificismo no século XIX, com valorização dos resultados precisos e lógicos na

produção do conhecimento, porém, essa prerrogativa não invalidou o diálogo entre as

narrativas históricas e literárias.

Verificou-se que o aprofundamento dialógico entre real e ficção, história e

literatura, deveu-se, entre outros fatores, no campo historiográfico, a escola dos Annales,

em especial a terceira geração, por onde se inseriram outras reflexões no âmbito da

interdisciplinaridade e da investigação a partir das disposições documentais produzidos

pela ação humana e, nesse aspecto, a literatura confirma-se como ponto de relevância na

explicação do mundo e das idiossincrasias do ser humano, pois se constituem como

lugares de memórias, de modo que, a compreensão do coronelismo regional se dá, entre

outros fatos, por essas memórias.

Por isso, “não vacilamos em chamar Jorge Amado de o grande historiador dos

casos rudes e dos homens simples de nossa terra (TÁTI, 1961, p. 126). Essa afirmativa

não o compromete ao ofício de historiador, porém, é inequívoca a influência da literatura

amadiana na interpretação historiográfica da região, isso por que Jorge Amado é um

“artista que se renova: uma voz que disse muito, mas que não disse inteiramente tudo, e

ainda tem muito a dizer” (TÁTI, 1961, p. 173).

Identificou-se em Gabriela, Cravo e Canela o processo de apropriação das terras

e a expansão do coronelismo no sul da Bahia. Com proeminência na cidade de Ilhéus e

em alguns atores sociais que demarcaram as vias urbanas com as construções dos

símbolos arquitetônicos, os palacetes, os prédios públicos, a iluminação e alargamento

das ruas, a arquitetura tumbária que serviam como lugares de memórias para manter, no

presente e no futuro, uma imagem positiva do coronelismo associado ao progresso.

O romance Gabriela, Cravo e Canela percorre o cenário político e social de uma

cidade que atravessava mudanças significativas e, que no discurso de progresso

permeava-se por elementos que remetiam ao passado recente que se pretendia esquecer.

Constatou-se que Jorge Amado conduz ao itinerário dos lugares que passavam

por mudanças, descreve-os em detalhe, sugere seus valores, diferencia-os quanto aos

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seus usos e seus frequentadores e não desconsidera o fato de que Ilhéus esteve numa

vertigem de mudança. Porém, alude em suas personagens, os conflitos pela manutenção

e conquista do poder local que convergiam paras as mãos dos grupos e famílias que se

alternavam não poder.

Desse modo, confirmou-se que o personagem Ramiro Bastos faz alusão, como

uma síntese, ao sistema de governo da burguesia agrária que Jorge Amado crítica como

o responsável pela disparidade, pelo uso da violência e da máquina pública como

extensão das suas posses, mas que ao mesmo tempo, nutrem, por meio dos recursos da

força, dos lugares de memórias e do poder econômico à subserviência da população.

Nesse aspecto, constata-se que Jorge Amado contribui para a formação da

memória regional à medida que o romancista pode diagnosticar uma estrutura de poder,

evidenciar discursos e apontar suas fragilidades internas.

Ponderou-se que a imagem da região cacaueira no início do século XX, em larga

escala, foi construída a partir da literatura amadiana e, em especial, o romance Gabriela,

Cravo e Canela, especialmente em decorrência da adaptação televisiva da obra e de sua

aceitação popular.

A discussão e análise do romance evidenciaram a crítica de Jorge Amado aos

lugares de memórias que foram associados ao progresso e á atuação dos coronéis e,

assim, foi possível mapear outros espaços e vozes que fizeram romper a ideia de um

discurso hegemônico do coronelismo; isto é, o escritor grapiúna desconstrói essa

associação à medida que põe em relevo a presença e a atuação de Mindinho Falcão

como o nome por onde se ergueu a metamorfose da cidade. Além disso, o romancista

elaborou o discurso que tinha por finalidade revelar as bases internas em que o poder

patriarcalista se manifestava, sobretudo, em denúncia a sua hipocrisia, seus segredos e

seus anacronismos.

Personagens como o do coronel Jesuíno Mendonça, Gabriela, Malvina, Nacib,

Tuísca, o espanhol anarquista Felipe, os homossexuais Machadinho e Miss Pirangi, as

prostitutas, os ladrões e os batedores de carteiras, todos sinalizam para enfraquecimento

da memória de uma ordem gerada pelos mandatários do cacau.

Sobre os lugares construídos, detectou-se que a ocupação e o trãnsito pelos

coronéis de cacau representaram uma parte irrisória da cidade que compunha os seus

ambientes de convivências, mas que o progresso não atendeu as necessidades básicas da

população ilheense, ao contrário, pessoas que não possuíam poder aquisitivo eram

expulsas para os recantos da cidade e viviam de forma precária.

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Depois de percorrido o itinerário dessa pesquisa, chegou-se à conclusão de que a

narrativa literária, por seus recursos estéticos e artísticos ou pela interface com a história

possibilita um reforço no que tange as mudanças no âmbito social e serve, portanto,

como fonte discursiva que pode reposicionar os sujeitos através das abordagens que

traduzem os dramas, os anseios e os sentimentos que regem, para além, das estruturas

políticas e econômicas, os indivíduos e os grupos.

Portanto, o discurso amadiano pode contribuir para o que se ergueu e se tornou

aceito como representação da história baiana e moldou o estereótipo, principalmente,

vinculado ao sul do estado, à medida que reforçou e ampliou o campo imagético e

descritivo dos seus conterrâneos. Assim, sua obra continua a formar os lugares de

memórias na região e é referência literária e fonte inconfundível para a história local.

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(Fig. 03)- Copacabana Fonte: http://picasaweb.google.com/r2cpress/ILHUSFOTOSANTIGAS#5254503521179135586

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(Fig. 04)-Vesúvio e Antiga Igreja São Sebastião Fonte: www.ilheense.com.br

(Fig. 05)- Bataclan (atualmente) Fonte:http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1525285

(Fig. 06)-Ladeira da Vitória Fonte: www.ilheense.com.br

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(Fig 07)- Palacete do coronel Misael Tavares Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1525285

(Fig. 08)- Casa do coronel Pessoa Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1525285

(Fig. 09)- Sartre e Simone Beauvoir Fonte: (Diário de Itabuna, 20 de agosto de 1960).

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(Fig.10)-Sartre e Jorge Amado Fonte: (Diário de Itabuna, 20 de agosto de 1960).

(Fig.11)- Simone Beauvoir em entrevista na Rádio Clube de Itabuna. Fonte: (Diário de Itabuna, 20 de agosto de 1960).

(Fig.12)- Sartre em entrevista na Rádio Clube. Fonte: (Diário de Itabuna, 20 de agosto de 1960).

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(Fig.13)- Solenidade na Câmara de Vereadores de Ilhéus. Fonte: (Diário de Itabuna, 02 de setembro de 1975).

(Fig. 14)-Fazenda Harmonia. Wilson Rosa, Jean Paul Sartre, Simone Beauvoir e Jorge Amado. Acervo do Bar Vesúvio, Ilhéus.