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19/11/2015 Revista eletrônica de musicologia http://www.rem.ufpr.br/_REM/REMv11/06/06correadahlhaus.html 1/10 Revista eletrônica de musicologia Volume XI Setembro de 2007 home . sobre . editores . números . submissões . versão em pdf Dahlhaus e a análise de segunda ordem Antenor Ferreira Corrêa (USP) Resumo: Neste artigo tive um duplo objetivo: apresentar a análise de segunda ordem, abordagem esboçada pelo musicólogo alemão Carl Dahlhaus e explanar a respeito dessa proposição analítica, buscando seu entendimento e avaliando suas possibilidades de aplicação. Justificase essa empreitada pela disponibilização de conhecimento na disciplina de análise musical, área de estudo indispensável à formação do músico. Introdução O musicólogo alemão Carl Dahlhaus (19281989) é uma personalidade de grande notoriedade e relevância na história da música. Autor de vastíssima bibliografia (entre estas alguns verbetes para o Grove’s Dictionary) é considerado uma das maiores autoridades dentre os estudiosos que buscaram reunir música e filosofia, e seus escritos têm influenciado músicos e teóricos ao redor do mundo. Embora seja mais conhecido dos brasileiros pelos seus textos em estética,[1] Dahlhaus também realizou aprofundadas pesquisas nas áreas de historiografia, teoria e análise musicais. Um de seus livros mais destacados sobre análise musical é Analysis and Value Judgment (originalmente publicado em 1970), em que Dahlhaus discute acerca da possibilidade de fundamentar a apreciação musical em critérios objetivos, tendo, assim, a análise musical como seu princípio de sustentação. Este livro é dividido em três partes: Premissas, Critérios e Análises. Na primeira parte, Dahlhaus se atem à diferenciação entre julgamentos de valor subjetivos e objetivos. No segundo capítulo, elenca uma série de critérios que podem sustentar um juízo estético. Entre outros, ele discorre sobre princípios formais, diferenciação e integração, analogia e compensação, abundância de relações (temáticas, motívicas, etc) e audibilidade. Na parte final, Dahlhaus oferece uma exemplificação de suas propostas ao elaborar críticas estéticas para algumas obras do repertório, tendo por base sua abordagem analítica. Nesse trabalho, Dahlhaus mencionou en passant um tipo de abordagem analítica que gostaria de ver empregada na confrontação das obras musicais, uma espécie de hermenêutica da própria análise musical, ou seja, uma análise de segunda ordem. Esta idéia foi apenas

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CORRÊA - Dahlhaus e a Análise de Segunda Ordem

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Revista eletrônica demusicologia

Volume XI ­ Setembro de 2007

home . sobre . editores . números . submissões . versão em pdf

Dahlhaus e a análise de segunda ordem

Antenor Ferreira Corrêa (USP)

Resumo: Neste artigo tive um duplo objetivo: apresentar a análise desegunda ordem, abordagem esboçada pelo musicólogo alemão CarlDahlhaus e explanar a respeito dessa proposição analítica, buscando seuentendimento e avaliando suas possibilidades de aplicação. Justifica­seessa empreitada pela disponibilização de conhecimento na disciplina deanálise musical, área de estudo indispensável à formação do músico.

Introdução

O musicólogo alemão Carl Dahlhaus (1928­1989) é uma personalidadede grande notoriedade e relevância na história da música. Autor devastíssima bibliografia (entre estas alguns verbetes para o Grove’sDictionary) é considerado uma das maiores autoridades dentre osestudiosos que buscaram reunir música e filosofia, e seus escritos têminfluenciado músicos e teóricos ao redor do mundo. Embora seja maisconhecido dos brasileiros pelos seus textos em estética,[1] Dahlhaustambém realizou aprofundadas pesquisas nas áreas de historiografia,teoria e análise musicais. Um de seus livros mais destacados sobreanálise musical é Analysis and Value Judgment (originalmentepublicado em 1970), em que Dahlhaus discute acerca da possibilidadede fundamentar a apreciação musical em critérios objetivos, tendo,assim, a análise musical como seu princípio de sustentação. Este livroé dividido em três partes: Premissas, Critérios e Análises. Na primeiraparte, Dahlhaus se atem à diferenciação entre julgamentos de valorsubjetivos e objetivos. No segundo capítulo, elenca uma série decritérios que podem sustentar um juízo estético. Entre outros, elediscorre sobre princípios formais, diferenciação e integração, analogiae compensação, abundância de relações (temáticas, motívicas, etc) eaudibilidade. Na parte final, Dahlhaus oferece uma exemplificação desuas propostas ao elaborar críticas estéticas para algumas obras dorepertório, tendo por base sua abordagem analítica.Nesse trabalho, Dahlhaus mencionou en passant um tipo deabordagem analítica que gostaria de ver empregada na confrontaçãodas obras musicais, uma espécie de hermenêutica da própria análisemusical, ou seja, uma análise de segunda ordem. Esta idéia foi apenas

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esboçada, não merecendo posteriores desdobramentos textuais.Contudo, acredito que por meio da investigação detida de seus escritose da maneira com que apresentou suas análises musicais, sejapossível lograr um maior entendimento dessa proposta. E este é,portanto o objetivo deste trabalho: apresentar o conceito dahlhausianopara análise musical e refletir sobre a mesmo, além de exemplificá­locom análises realizadas pelo próprio Dahlhaus e verificar suaspossíveis aplicações.

Dentre a ampla bibliografia considerada, dois livros constituíram­secomo a fundamentação teórica principal: Analysis and Value Judgment,no qual o autor mencionou seu conceito e desenvolveu uma série deanálises musicais, e Schoenberg and The New Music, em que aproblemática da tradição versus vanguarda é tratada tendo por base,critérios técnicos, estéticos, históricos e poéticos da linguagemmusical.

Análise de Segunda Ordem

Uma análise pode comportar, entre outras, finalidades teórica ouestética. Pode ser empregada para sustentar a edificação de umsistema de organização de fenômenos musicais e, também,fundamentar uma apreciação crítica.[2] Dahlhaus conhecia a fundoessas facetas e, além de escrever muito a esse respeito, valeu­se deanálises para promover juízos críticos sobre obras do repertório.Também observou que análises realizadas tanto por críticos quanto pormúsicos consistiam, em sua maior parte, de indicações de graus ou defunções dos acordes. O plano formal era tratado de modo semelhante,havendo apenas uma espécie de relato de seções e regiões tonaisexploradas pelo compositor. Estes tipos de abordagens, além decarecer de profundidade, têm pouca utilização prática. Na opinião deDahlhaus não passavam de tautologias já que “frequentemente,análises musicais ou fragmentos analíticos (em sua maior partedescrições de harmonias e tonalidades) sofrem da obscuridade de suaspropostas e consequentemente provocam a suspeita de que sãodesnecessárias” (DAHLHAUS, 1983, p. 9).

Ao deparar com esses tipos de análises descritivas, percebe­se queestas revelam mais acerca da teoria analítica do que a respeito daprópria obra. Isto deve­se ao fato da análise constituir­se de umprocedimento taxionômico, em que um dado observado é reportadoe/ou classificado segundo um modelo prévio. Isto fez com queDahlhaus apontasse para a inutilidade desse procedimento, porqueuma análise não deveria funcionar como demonstração ou prova deuma teoria nem como tradução para outro idioma de umaparticularidade da obra. Argumentava que não bastava apenas isolar eenumerar os acordes, abstraindo­os de elementos rítmicos; outrossim,era preciso que o caráter individual da estrutura e das relaçõesharmônicas fosse “expressamente demonstrado e articulado por umainterpretação da análise: uma análise de segunda ordem” (p. 9. Grifomeu). De outro modo, as análises tornar­se­ão meras aplicações de

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nomenclaturas ou rotulações “que não dizem nada pois sãoinobjetivas” (p. 9). Se os elementos observados no plano musical sãoconsiderados como fatos ou dados empíricos, deve haver, então, umainterpretação desses dados. Esta hermenêutica da análise estaria acargo da análise de segunda ordem, preconizada por Dahlhaus, eindicaria a maneira organizacional subjacente ao relacionamentodesses fatos, sua forma de integração e conexão, seu contexto e seumodus operandi.

O problema que se apresenta de imediato é saber como realizar essainterpretação da análise. Seria útil, portanto, primeiramente adefinição de seus termos. Uma análise harmônica é uma comparaçãode um fato constatado com um modelo sugerido por alguma teoria.Por teoria entende­se uma proposição para o funcionamento,organização e ordenação das relações existentes nos fatos observados.Nesse sentido, uma teoria da harmonia, ao propor um modelo deordem para o relacionamento sonoro, é que possibilita a compreensãodos chamados fatos harmônicos e permite que o entendimento dessasrelações seja transmitido. No entanto, para a consecução teórica nãobasta apenas indicar os elementos comuns, mas sim, promover aexplicação das possibilidades de combinações feitas destes fenômenos.A harmonia não é uma instituição auto­suficiente, validada em simesma, ela só tem seus aspectos comunicativo e significativovalorados se estiver amparada por uma teoria que organize e torneinteligíveis os fenômenos harmônicos por ela contemplados.

Imagine­se, por exemplo, uma análise em que foram descritos osgraus de um determinado encadeamento harmônico. Uma daspossíveis maneiras de prosseguir para um nível interpretativo posteriorseria considerar as relações que os acordes mantém entre si e paracom o centro tonal, isto é, avaliar sua dimensão sintática. Ao combinarsons de maneira lógica e expressiva, a música liga­se ao aspecto dacomunicação, permitindo ser considerada como linguagem, decorrendodai a possibilidade de ser analisada em termos de seus elementosbásicos de construção e estruturação, ou seja, elementos sintáticos.

O relacionamento funcional já é, de fato, conhecido há tempos poraqueles que empregam o método de análise preconizado por Riemann.[3] Nesta teoria os acordes são considerados segundo o tipo de vínculoque mantém para com a tônica. As relações existentes entre asprogressões acórdicas, isto é, de acorde para acorde, remontam aospostulados de Rameau no seu tratado de harmonia (1722). A noção deprogressão de fundamentais implicava que as notas reais escritas nobaixo contínuo não eram as verdadeiras fundamentais dos acordes,pois estes, independentemente de encontrarem­se invertidos ou não,possuíam um baixo (ou nota fundamental natural e racional)subentendido. Este baixo implícito, por seu turno, era o elementoviabilizador das conexões entre os acordes. Esta formulação deRameau foi por ele mesmo denominada de basse fondamentale, quena visão de Dahlhaus é uma teoria de progressões acórdicas. Note­sea correspondência deste princípio com o cartesianismo, que substituía

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a ordem real pela racional, ficando a cargo da razão a competênciapara organizar as sensações. A diferença entre as propostas deRiemann e Rameau é que este se concentrava nas distintas tendênciasque os acordes têm para progredir (descer ou subir uma quinta, porexemplo), enquanto aquele definia estados ou estatutos harmônicosdas tríades (T­D­S).Tomando­se como exemplo o Prelúdio n°. 1 (em dó maior) do Cravobem Temperado de Bach, observa­se que o mesmo possui umaconcatenação entre acordes baseada, majoritariamente, em grausconjuntos diatônicos. A concepção harmônica dessa movimentação,entretanto, é funcional, pois sempre faz referência à tônica principal daobra (dó maior). Mesmo em passagens com ligeiros afastamentos datonalidade inicial, em que ocorrem tonicizações no nível estruturalsecundário (comp. 6, 10 e 12), a idéia básica do relacionamentoharmônico continua, encontrando sua fundamentação no ciclo dequintas.

No relacionamento acórdico, por sua vez, as conexões ocorrem a partirda movimentação linear de entidade para entidade envolvidas napassagem em questão. O cromatismo é o agente de integração desseartifício, já que a condução acórdica não implica a primazia de algumpólo de atração. Os Prelúdios de números 2 e 4 do opus 28 de Chopinsão exemplos do relacionamento acórdico, cuja movimentação érealizada, predominantemente, por meio de cromatismos. No Exemplo2 é mostrada uma progressão baseada no relacionamento acórdico.Trata­se de uma sucessão iniciada em um acorde de F com sétima nobaixo cuja movimentação é realizada, predominantemente, por meiode cromatismos, fazendo com que o sentimento tonal, ou seja, aindução para um pólo de atração, seja enfraquecido. Nota­se que asharmonias usadas não pertencem exclusivamente ao campo harmônicode F, este é estendido pelo acréscimo de acordes de outras regiõestonais.

Exemplo 1: J. S. Bach, Cravo Bem Temperado,Prelúdio n. 1 em dó maior, compassos 5­19(verticalização da movimentação linear).

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Exemplo. 2: Camargo Guarnieri,Sonata n. 3 para violoncelo e piano,II movimento, compassos 16­28

(parte do piano).

A partir, principalmente, do pós­romantismo, o relacionamentofuncional foi sendo substituído pelo acórdico. Não era interesseprincipal dos compositores manter vínculos com um único pólo tonal,mas sim, expandir o discurso harmônico por regiões inusitadas, ouseja, explorar tonalidades cada vez mais afastadas do ponto departida. Em médio prazo, esta tendência conduziria à fragmentação dosistema tonal e impulsionaria o engendramento de diversos artifícioscomposicionais, como pandiatonicismo; tonalidades expandida,suspensa e flutuante; atonalidade e pantonalidade; entre outros.[4]Essa situação demandaria a criação de outras proposições analíticaspara explicar as relações entre as entidades acórdicas, pois estas nãomais comportavam explicações nos modelos teóricos vigentes. Umaquestão a ser considerada seria, por exemplo, que princípio de basepermite a articulação entre entidades acórdicas ou aglomeradossonoros envolvidos no discurso musical pós­tonal? Qual a lógica, oupsicológica, subjacente a essas progressões?Sobre esse estado de coisas, Dahlhaus verifica que:

Na Música Nova do século XX, a idéia de processo harmônico foiuniversalmente degradada em favor da noção de sistema harmônico,mas sem abolir a relação dialética existente entre sistema e processo. Avariação de ênfase é tão claramente aparente no dodecafonismo deSchoenberg e, mais especialmente, Webern quanto é nos métodos decamadas ou de estratificação desenvolvidos por Stravinsky. (DAHLHAUS,1990, p. 69).

Enquanto desenvolvimento continuado, o discurso harmônicoconsistiria de um conjunto de etapas ordenadas com um objetivo a seratingido: a consecução tonal. Além disso, compreendidohistoricamente, isto é, no conjunto seqüencial do fluxo do pensamentomusical, a harmonia deixa transparecer a concomitância entre opensamento de época e as modificações ocorridas no decursotemporal. A passagem de um estágio para outro (por exemplo, no

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temporal. A passagem de um estágio para outro (por exemplo, noacolhimento de dissonâncias ou uso funcional renovado) é entendidalinearmente e não de forma abrupta. Esse percurso teve nocromatismo seu principal elemento dinâmico, expressivo, integrador eimpulsionador. Essa condição processual, no entanto, foi substituídapela noção mais perene e atemporal de um conjunto de elementosinterconectados por atributos quaisquer, um sistema de interações.[5]A dinâmica implícita na resolução de tensões, pelos movimentos desensível, é suprimida nos sistemas não hierárquicos como o serial, emque as doze notas da gama temperada são similares no que se referea primazias funcionais. No discurso pós­tonal, de um modo geral, apropensão dinâmica dos cromatismos é nivelada, anulando aexpectativa gerada pela resolução das tensões cromáticas. Dahlhausaponta que isto é válido tanto para Stravinsky quanto paraSchoenberg, pois

Enquanto a tensão interna do que nós chamamos de harmonia estáticastravinskyana é devido a esse elemento dinâmico suprimido, a harmoniade Schoenberg (como a sistematização da técnica dodecafônica pode serinterpretada) é conseqüência [...] do cromatismo do Tristão, esimilarmente representa um fenômeno de neutralização. A conexão entreacordes, em que um segundo acorde apresenta as notas da escalacromática ausentes no primeiro, está baseada sobre o princípio dacomplementaridade, a adição de partes para compor um todo, etambém, sobre o movimento de sensível nas vozes, ou seja, sobre umelemento expressivo e dinâmico (DAHLHAUS, 1990, p. 69).

Dahlhaus acrescenta ser difícil identificar o momento em que esseaspecto dinâmico do movimento de sensível, que dominou inicialmenteesse tipo de harmonia baseada em complementaridade, foi relegadoem favor de relações acórdicas complementares subjetivas. “Ocromatismo dinâmico­processivo é substituído por umacomplementaridade estática­estrutural tais como as existentes entreas notas ou complexo de notas de uma série dodecafônica:complementaridade cuja característica estética essencial é poder, emprincípio, ser revertida no tempo” (p. 70). A possibilidade destareversão no tempo deve­se ao fato de que não há uma direcionalidadeimplícita nos agregados “atonais”como há no discurso tonal.

É possível notar que Dahlhaus não acreditava no retorno da formaprocessual:

Uma posterior objeção à tentativa de reviver uma forma dinâmica daharmonia é o simples fato de que a atmosfera de a­historicidade [...] éunida à tendência de considerar todas as coisas como utilizáveis e dejovialmente empilhar camada sobre camada de um todo heterogêneoconstituído de diferentes fragmentos estilísticos e citações. O resultadovirtualmente inevitável disto tudo é um efeito que em Stravinsky foi umatécnica precisamente calculada que claramente estabeleceu suposiçõesestéticas designadas para neutralizar o elemento processual, mas que nopresente geralmente parece não ser mais que um cego agarramento auma lata de biscoitos do passado (p. 70).

E ao mesmo tempo admitia a possibilidade dos novos complexosacórdicos serem compreendidos intelectual e perceptualmente:

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Certamente, se desejamos fazer justiça estética ao complexo de técnicasde superposição na Sagração da Primavera [...], devemos não falhar aoapreciar que a neutralização da funcionalidade tonal dos acordes nãodeve ser entendida como determinadas (um fato auto­contido que nóstemos que aceitar pelo que ele é), mas como um procedimento que podeser compreendido. Quando uma tônica é mutilada funcionalmente por teruma dominante colocada sobre ela, o ouvinte deve tornar­se conscienteque isto é o resultado de um conflito e não apenas um fato mudo. (p.69).

Essa articulação via complementaridade é demonstrada no exemplo aseguir (Ex. 3).

Exemplo 3. Webern, Gleich und Gleich. Op. 12, n. 4,compasso 18.

Fazendo uso de suas formações arquetípicas, Webern apresenta trêsagregados sonoros (clave de sol, mão direita do piano) que juntoscompõe­se de nove notas do total cromático. As três notas ausentessão articuladas na voz mais grave (clave de fá, mão esquerda dopiano), completando o total cromático. Percebe­se então, quediferentemente da teoria funcional, na qual os acordes distinguiam­see relacionavam­se pelas funções que cumpriam (T­S­D), nasconcepções sistêmicas (sobretudo após a emancipação da dissonânciae conseqüente neutralização do dinamismo implícito no cromatismo)as relações passam a ser de complementaridade e não dialéticas, emque a formação posterior complementa a anterior ao invés de se oporfuncionalmente. Nota­se, também, que a abordagem de Dahlhaus estásempre atrelada ao entendimento histórico, conforme tratado a seguir.

Análise e Contexto Histórico

Espécie de consenso entre os biógrafos de Dahlhaus é a influência queele recebeu de duas escolas do pensamento histórico: “oshistoriadores estruturalistas franceses ligados a Fernand Braudel e ateoria crítica do círculo de Frankfurt” (Robinson, 2000). De acordo comRobinson, dos estruturalistas Dahlhaus formou sua concepção dehistória enquanto sucessão de complexas interações de estratos,enquanto teria emprestado da escola de Frankfurt as imagens deconstelação e de campo de força como princípios para a históriaescrita. Desta escola teria herdado, também, sua atitude analítica,

que não era empregada primariamente para revelar conexões musicaisocultas em uma obra, mas para sondar a história sedimentada dentro

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dela. Brilhante analista, Dahlhaus preferia não apresentar os passos desuas análises, nem mesmo os resultados, mas as conclusões históricasadvindas destas descobertas (Robinson, 2000).

Este vínculo absoluto com a historicidade pode ser demonstrado emvárias das análises feitas por Dahlhaus, porém, a seguir tomarei comoexemplo a análise do Quarteto de Cordas n. 3, opus 30, deSchoenberg.Dahlhaus, de saída, apresenta uma questão estética: o conceitoschoenberguiano de analogia. De acordo com esta idéia, todas aspartes de uma composição deveriam estar igualmente desenvolvidas,isto é, nenhum dos parâmetros do discurso musical devia apresentarmenor cuidado na sua composição. Os elementos temáticos, porexemplo, não receberiam um grau maior de elaboração em detrimentodos elementos rítmicos. Schoenberg, no entanto, era acusado decontraria o seu próprio princípio, pois os fatores intervalares da técnicaserial mereciam maior importância que os componentes rítmicos,dinâmicos e formais. Com isso, as composições dodecafônicasacabavam por apresentar um ritmo “tonal” ao lado de formastradicionais.

No Quarteto n. 3, Schoenberg faz uso da forma sonata em ambienteatonal, o que na visão de Dahlhaus “é um desejo historicamenteatrasado que não logrará êxito, pois sua substância (tonalidade) foidesintegrada, e a marca da esterilidade histórica ou filosófica é ofracasso estético” (DAHLHAUS, 1983, p.83). Ao encontro desse juízo,Dahlhaus oferece uma descrição dos procedimentos técnicos utilizadospor Schoenberg, descrevendo a série, suas inversões e retrogradações,bem como a maneira como estão associados às suas respectivascélulas rítmicas, para ao final concluir:

O princípio básico da forma sonata restaurado pelo dodecafonismo –após o declínio da disposição tonal – é o desenvolvimento técnico, aelaboração temática, que no Terceiro Quarteto de Cordas, contudo, estáexposto ao criticismo por ser tautológico. Dodecafonismo, a rede deinversões, transposições e fragmentações da série – o criticismocontinua – é em si mesmo nada mais que uma conseqüência extrema (ehistoricamente, o último passo) da elaboração temática que nacomposição com 12 sons, na qual cada nota é deduzida da série,estende­se no movimento inteiro ao invés de restringir­se à parte dodesenvolvimento da exposição e ao desenvolvimento, enquanto seção emsi. Elaboração temática, como Theodor Adorno expressava, é “pushedback into the material”;[6] porque a “deformação” do materialgeralmente consiste de elaborações temáticas a todo o momento,elaboração temática como uma técnica específica da composição torna­se uma duplicação supérflua. A forma sonata, o criticismo continua, édesprovida de substância, porque a única substância deixada após adissolução da tonalidade, ou seja, a elaboração temática, é anulada pelatécnica serial propriamente dita – antes do ato composicional – e nãopode, assim, ser constitutiva de uma forma particular. (DAHLHAUS,1983, p. 85).

É possível perceber que o teor das preocupações de Dahlhaus antes deessencialmente técnicos, são históricos, buscando avaliar não só osartifícios composicionais empregados pelo compositor, mas, sobretudo,

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a correspondência entre esses elementos e a época de onde surgiram.Do mesmo modo que é válido indagar a respeito dos motivos quelevaram Ravel a compor uma valsa em 1919, é lícito questionar o usodas formas tradicionais em ambientes atonais. E esse tipo dequestionamento é uma constante nas análises de Dahlhaus.

Considerações Finais

O intuito deste trabalho foi oferecer uma abordagem preliminar àproposta de análise de segunda ordem. Esta idéia vem da repulsa, porparte de Dahlhaus, às análises musicais de cunho meramentedescritivo, chamadas por ele de tautológicas; assim, na tentativa dedar um passo adiante, preconiza uma interpretação da análise.

A observação dos modos de relacionamento acórdico segundo suasintaxe serviu como uma maneira de dar prosseguimento às análises.Neste sentido, a explanação sobre a substituição ocorrida,principalmente no século XX, da concepção harmônica processual pelasistêmica mereceu uma apreciação mais detida. A seguir, a descriçãosumária do atrelamento histórico intrínseco ao discurso analítico deDahlhaus, também se apresentou como um importante material paraampliar o entendimento musical ao encontro do compreensão dahermenêutica da análise, ou seja, da análise de segunda ordem.

Notas

[1] Talvez isto se deva ao fato de que o único livro de Dahlhaus traduzido para oidioma português seja, justamente, um livro de estética: Estética Musical. Lisboa:Edições 70, 1983.

[2] Uma teoria pode ser pré­condição (é necessário que haja um sistema teórico quenorteie a realização de uma análise) e, também, resultado de análises musicais(quando um modelo teórico é obtido pelas deduções efetivadas a partir da análisedireta das obras).

[3] Sobre uma análise mais detida do conceito de função ver Função erefuncionalização em CORRÊA (2006).

[4] Sobre uma conceituação mais detida sobre esses procedimentos verEstruturações harmônicas pós­tonais (2006), capítulo 5.

[5] O acorde­centro de Scriabin é um exemplo deste tipo de pensamento harmônico.

[6] Redundar forçosamente no material (composicional).

Referências

CORRÊA, Antenor Ferreira. Estruturações harmônicas pós­tonais. São Paulo: Editorada Unesp, 2006.

DAHLHAUS, Carl. Analysis and value judgment. Trad. Siegmund Levarie. New York:Pendragon Press, 1983.

_____ Che cos’è la musica?. Trad. Angelo Bozzo. Bologna: Sociedade Editrice IL

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Mulino, 1988.

_____ Estética musical. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1991.

_____ Fundamentos de la historia de la música. Trad. Nélida Machain.Barcelona:Gedisa, 2003.

_____ “Harmony”. In:SADIE, Stanley (org.). The New Grove dictionary of music andmusicians. Londres: MacMillan, 1980, v. 8, p.175­188.

_____ Schoenberg and the new music. Trad. Derrick Puffett e Alfred Clayton. NewYork: Cambridge University Press, 1990.

_____ “Tonality”. In:SADIE, Stanley (org.). The New Grove dictionary of music andmusicians. Londres: MacMillan, 1980, v. 19, p. 51­55.ROBINSON, J. Bradford. “Carl Dahlhaus”. Grove Music Online. 2000. Disponível em:<www.grovemusic.com>

Antenor Ferreira Corrêa