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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÀO EM EDUCAÇÃO THAYS ANYELLE MACÊDO DA SILVA RAMOS CORPOS DO AFETO: ensaio sobre dança, estesiologia e educação NATAL 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÀO EM EDUCAÇÃO

THAYS ANYELLE MACÊDO DA SILVA RAMOS

CORPOS DO AFETO: ensaio sobre dança, estesiologia e educação

NATAL

2017

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THAYS ANYELLE MACEDO DA SILVA RAMOS

CORPOS DO AFETO: ensaio sobre dança, estesiologia e educação

Tese apresentada no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Educação. Área de Concentração: educação, comunicação, linguagens e movimento.

ORIENTADORA: Prof.ª Dr.ª Terezinha Petrucia

da Nóbrega

CO-ORIENTADORA: Prof.ª Dr.ª Karenine de

Oliveira Porpino

NATAL

2017

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THAYS ANYELLE MACEDO DA SILVA RAMOS

CORPOS DO AFETO: ensaio sobre dança, estesiologia e educação

Tese apresentada no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Educação. Área de concentração: educação, comunicação, linguagens e movimento.

------------------------------------------------- -------------------------------------------------

Prof.ª Dr.ª Terezinha Petrucia da Prof.ª Dr.ª Karenine de Oliveira

Nóbrega Porpino

Universidade Federal do Rio Grande Universidade Federal do Rio Grande

do Norte- Orientadora do Norte- Membro titular interno

------------------------------------------------------ --------------------------------------------------------

Prof. Dr. Iraquitan de Oliveira Caminha Prof. Dr. Raimundo Nonato Assunção

Universidade Federal da Paraíba - Viana

Membro titular externo Universidade Federal do Maranhão-

Membro titular externo

------------------------------------------------ -----------------------------------------------

Prof.ª Dr.ª Rosie Marie Nascimento de Prof. Dr. Arão Nogueira Paranaguá de

Medeiros Santana

Universidade Federal do Rio Grande Universidade Federal do Maranhão- Membro

do Norte- Membro titular interno suplente externo

--------------------------------------------

Prof. Dr. José Pereira de Melo

Universidade Federal do Rio Grande do Norte-

Membro suplente interno

NATAL

2017

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Divisão de Serviços Técnicos.

Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Setorial do NEPSA /

CCSA

Ramos, Thays Anyelle Macedo da Silva.

Corpos do afeto: ensaio sobre dança, estesiologia e educação / Thays Anyelle Macedo da Silva Ramos. - Natal, 2017.

250f.: il.

Orientador: Profa. Dra. Terezinha Petrucia da Nóbrega.

Co-orientador: Profa. Dra. Karenine de Oliveira Porpino.

Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Educação. Programa de Pós-graduação em Educação.

1. Educação Estesiologica – Tese. 2. Dança – Tese. 3. Corpo – Tese. 4. Afeto - Tese. 5. Lecuona - Tese. I. Nóbrega, Terezinha Petrucia da. II. Porpino, Karenine de Oliveira. III. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

RN/UF/BS CDU 37:793.3

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Aos meus pais.

Elo inquebrável

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AGRADECIMENTOS

William Shakespeare já dizia que a gratidão é o tesouro dos humildes.

Pensando assim, tomo na mão este tesouro e agradeço a todos que diretamente ou

indiretamente construíram comigo esse corpo de afeto que é esta pesquisa.

Primeiramente, agradeço ao meu Deus, minha fonte de devoção, inspiração,

paz e força. Aspectos que foram importantíssimos para eu encontrar o equilíbrio

para produzir.

À minha família, minha base, minhas preciosidades. Eles são meu sustento

de amor que me ajudaram sobremaneira nesse processo, entendendo minhas

ausências e me apoiando nesse projeto. Obrigada meus pais, Maria José Macêdo

da Silva e Edmilson Pereira da Silva, obrigada meu marido, Marcus Vinícius Correa

Ramos, obrigada meu irmão, Edmilson Pereira da Silva Junior, obrigada minha

cunhada Paula Gracielly e minha sobrinha Lívia e meus sogros Mariléa Correa

Ramos e Paulo Roberto Ramos. Obrigada por estarem ao meu lado.

Às minhas orientadoras, Terezinha Petrucia da Nóbrega e Karenine Porpino,

por acreditarem - em muitos momentos mais até do que eu mesma- que eu

conseguiria concluir e contribuir com meus conhecimentos. Obrigada, professora

Petrucia, por me apresentar a fenomenologia de Merleau-Ponty desde a graduação,

pela generosidade de partilhar conhecimentos com essa tese em cada leitura, por

ser essa referência de seriedade e comprometimento com a pesquisa. Obrigada

professora Karenine pela gentileza de aceitar ser minha co-orientadora e contribuir

de forma tão preciosa com essa tese.

Aos professores que participaram dos meus seminários doutorais que

também de forma generosa contribuíram nessa construção de conhecimento: Rosie

Marie Nascimento de Medeiros, Iraquitan Caminha, Claude Imbert e Bernard

Andrieu.

Ao Grupo Estesia pela partilha de conhecimentos.

.

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Ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRN pelo investimento

em minha formação.

Aos amigos e amigas que diretamente ou indiretamente ajudaram nesse

processo como fonte de apoio e carinho.

À todos, meus sinceros agradecimentos.

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Trago dentro do meu coração,

Como num cofre que se não pode fechar de cheio,

Todos os lugares onde estive,

Todos os portos a que cheguei,

Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,

Ou de tombadilhos, sonhando,

E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.

CAMPOS, Álvares - Livro de Versos. Fernando Pessoa. Lisboa: Estampa, 1993, p. 26.

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RESUMO

Na tese, vestimos o afeto de um entendimento fenomenológico, a possibilidade de um corpo que por sua capacidade afetiva se abre ao outro para interrogar sua própria existência, criando e recriando a cultura, ampliando o processo de conhecer, sentir, pensar, agir, ser, transformar-se. Nesse contexto, a presente tese afirma o corpo e sua possibilidade de afeto em Lecuona, obra coreográfica da Companhia de Dança Grupo Corpo, como uma educação estesiológica. Os objetivos da pesquisa transcorrem entre lançar um olhar fenomenológico sobre as tramas de amor dançadas em Lecuona; estabelecer conexões entre as expressões filosóficas e artísticas. Sendo a primeira em busca de uma compreensão do corpo, da estesia e do afeto e a segunda, mediante o envolvimento da pesquisa nas poéticas da dança. Conexão que oportuniza a reflexão sobre uma educação estesiológica. O percurso metodológico dessa pesquisa se encoraja em uma atitude fenomenológica de Maurice Merleau-Ponty. Neste aspecto, destacamos a redução fenomenológica para interrogar a experiência vivida em busca de novos sentidos e significados relativos ao corpo e sua possibilidade de afeto nesta pesquisa. Como referência para descrever as cenas de Lecuona, fizemos uso do roteiro para apreciação de obras coreográficas ―A dança como carta do visível, do corpo e do movimento humano‖, desenvolvido pelo Grupo Estesia/DEF/UFRN. Os critérios das cenas escolhidas para descrição foram pautados na significação, no que nos fazem pensar sobre a estesia do corpo, as poéticas do movimento, os fluxos estéticos, e a relação da dança com a existência e com a educação e a arte, conforme nos orienta o roteiro em questão para apreciação de obras coreográficas. Fizemos uso do vídeo da dança, das imagens, entrevistas com o coreógrafo e com os bailarinos. A tese em questão se divide em quatro capítulos. No primeiro, construímos um pensamento sobre o afeto, cujas principais referências são: Maurice Merleau-Ponty, com sua ontologia, suas noções de sensível e corpo estesiológico – este corpo capaz de sensação que através do movimento do olhar que é significação, abre-se ao mundo das relações, expressa- se e inaugura as possibilidades de conhecimento–, como também Michel Maffesoli e sua convocação a uma ―ordo amoris‖ de Max Sheler, esse buscando o irrefletido dessa noção como uma ordem aos afetos como ligame societal. No segundo capítulo, convocamos Georges Didi-Huberman para desenhar uma dimensão estética que se encontra na imagem dos ―vagalumes‖ e, assim, pensarmos a dança e seus fluxos estéticos como capacidade afetiva e interrogativa da existência. Assim, refletimos sua potência para um estado de performance (bailarino-espectador) como criação de campos afetivos. Dentro desses pressupostos, pensamos as poéticas do Grupo Corpo nesse cenário da dança brasileira. No terceiro, trilhamos com o olhar os gestos dançados dos bailarinos de Lecuona, descrevemos suas tramas amorosas repletas de afeto e conhecimento. Por fim, no quarto capítulo, mediante o pensamento afetivo construído nos três capítulos antecedentes, refletimos sobre uma educação estesiológica que se configura no corpo e pelo afeto. Uma educação que vai além de instrução e técnica, uma educação que emerge das sensações, que vê no corpo e em suas possibilidades de afeto, um espaço de aprendizados significativos, envolvidos por uma dimensão estética do existir, articulando, criando e recriando sentidos nas diversas relações da existência. Neste entendimento, Lecuona reverbera as potencialidades educativas dessa pesquisa ao nos incendiar com seu amor: ao nos fazer experimentar as sensações da dança e nos envolver em seus sentidos, operando em nós campos de reflexões sobre nossa própria existência.

Palavras-chaves: Corpo. Afeto. Dança. Lecuona. Educação Estesiologica.

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ABSTRACT

In the thesis, we do not think of affection as a classification of positive and fraternal emotions. However, we clothe the affection of a phenomenological understanding, the possibility of a body that by its affective capacity opens itself to another to interrogate its own existence, creating and recreating culture, broadening the process of knowing, feeling, thinking, acting, being, becoming. In this context, the present thesis affirms the body and its possibility of affection in Lecuona, choreographic work of the Dance Company Grupo Corpo, as a esthesiological education. The objectives of the research run between throwing a phenomenological look at the love plots danced in Lecuona; to establish connections between philosophical and artistic expressions. The first one in search of an understanding of the body, of the estesia and the affection and the second, by means of the research involvement in the poetics of the dance. Connection that facilitates the reflection on a esthesiological education. The methodological approach of this research is Maurice Merleau-Ponty's phenomenological attitude. In this respect, we emphasize a phenomenological reduction to interrogate a lived experience in search of new meanings and meanings related to the body and its possibility of affection in this research. As a reference to describe the scenes of Lecuona, we made use of the script for appreciation of choreographic works ―A dança como carta do visísivel do corpo e do movimento humano‖. The criteria of the scenes chosen for description were based on meaning, on what makes us think about the body's esthetics, the poetics of the movement, the aesthetic flows, and the relationship of dance with existence and with education and art, according to Guides the script in question for appreciation of choreographic works. We made use of the video of the dance, of the images, interviews with the choreographer and with the dancers. The thesis in question is divided into four chapters. In the first, we construct a thought about affection, whose main references are: Maurice Merleau-Ponty, with his ontology, his notions of sensitiveness and the body of the estesia. Also we are Michel Maffesoli and his call to an "ordo amoris" by Max Sheler, who sought the unreflective of this notion as an order to affections. In the second chapter, we called Georges Didi-Huberman to draw an aesthetic dimension that is found in the image of the "fireflies" and, thus, to think of dance and its aesthetic flows as the affective and interrogative capacity of existence. Thus, we reflect its potency for a state of performance (dancer-spectator) as the creation of affective fields. Within these assumptions, we think about the poetics of Grupo Corpo in this scene of Brazilian dance. In the third, we look at the danced gestures of the dancers of Lecuona, we describe their amorous plots full of affection and knowledge. Finally, in the fourth chapter, through the affective thinking built up in the three previous chapters, we reflect on a esthesiological education that is configured in the body and by affection. An education that goes beyond instruction and technique, an education that emerges from the sensations that it sees in the body and its possibilities of affection, a space of meaningful learning, involved by an aesthetic dimension of existing, articulating, creating and recreating meanings in the diverse relations of existence. In this understanding, Lecuona reverberates the educational potential of this research by burning us with his love: by making us experience the sensations of dance and engaging in his senses, operating in us fields of reflection on our own existence. Keywords: Body. Affection. Dance. Lecuona. Esthesiological Education.

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LISTA DE IMAGENS

Imagem 01: Grupo Corpo: Missa do Orfanato.......................................................90

Imagem 02: Grupo Corpo: Primeira parte de 21....................................................94

Imagem 03: Grupo Corpo: Segunda parte de 21 ..................................................94

Imagem 04: Grupo Corpo: Espetáculo Bach ….....................................................99

Imagem 05: Grupo Corpo: Lecuona/cenário para os duos ................................107

Imagem 06: Grupo Corpo: Lecuona/cenário com os espelhos ….....................107

Imagem 07: Espetáculo Onqotô/cena Bicho Tão Pequeno ................................112

Imagem 08: Lecuona - Te he visto pasar .............................................................118

Imagem 09: Lecuona - Te he visto pasar II ..........................................................119

Imagem 10: Lecuona - Te he visto pasar III .........................................................121

Imagem 11: Lecuona - Te he visto pasar IV .........................................................122

Imagem 12: Lecuona - Mariposa ...........................................................................128

Imagem 13: Lecuona - Mariposa/fuga Mariposa .................................................131

Imagem 14: Lecuona - Mariposa/ gesto de mariposa .........................................131

Imagem 15: Lecuona - Mariposa II …....................................................................133

Imagem 16: Lecuona - Yo te quiero siempre .......................................................138

Imagem 17: Lecuona - Yo te quiero siempre II ....................................................139

Imagem 18: Lecuona - Yo te quiero siempre III ...................................................141

Imagem 19: Lecuona - Yo te quiero siempre IV ...................................................142

Imagem 20: Lecuona - Cena final de Yo te quiero siempre ................................143

Imagem 21: Lecuona - Recordar ...........................................................................148

Imagem 22: Lecuona - Recordar II ........................................................................151

Imagem 23: Lecuona - Recordar/ arrastados …...................................................154

Imagem 24: Lecuona - Recordar/cruz ..................................................................154

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Imagem 25: Lecuona - Recordar/pose final .........................................................157

Imagem 26: Lecuona - Celos .................................................................................161

Imagem 27: Lecuona - Celos II ..............................................................................163

Imagem 28: Lecuona - Celos III .............................................................................168

Imagem 29: Lecuona - Celos IV ............................................................................169

Imagem 30: Lecuona - No me Niegues/virada dos espelhos .............................170

Imagem 31: Lecuona - No me Niegues ................................................................171

Imagem 32: Lecuona - No me Niegues/beijo final ...............................................174

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LISTA DE ANEXOS

Anexo 1: Roteiro para apreciação das obras coreográficas: pesquisa “A Dança

Como Carta do Visível, do Corpo e do Movimento”...........................................221

Anexo 2: Imagem com Rodrigo Pederneiras na entrevista concedida a esta

pesquisa no Teatro Municipal do Rio de Janeiro (16/09/2016)..........................223

Anexo 3: O programa de Lecuona com assinatura do coreógrafo....................224

Anexo 4: Entrevista com o coreógrafo do Grupo Corpo Rodrigo Pederneiras

16/09/2016- Teatro Municipal do Rio de Janeiro..................................................228

Anexo 5: Entrevista com o bailarino do Grupo Corpo André Venceslau.

Realizada via rede social (facebook) em agosto de 2014..................................232

Anexo 6: Resumo das Tramas de Lecuona .........................................................235

Anexo 7: Artigos Jornalísticos ..............................................................................245

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SUMÁRIO

PRÓLOGO: AMOR À PRIMEIRA VISTA .................................................................14

Uma fenomenologia para afetar e ser afetado pela experiência................................26

As Tramas .................................................................................................................31

PRIMEIRA TRAMA: ELOGIO DO AFETO ...............................................................34

Estesia do corpo ........................................................................................................40

O Afeto ......................................................................................................................50

SEGUNDA TRAMA: O CORPO E AS POÉTICAS DA DANÇA ..............................60

Uma dimensão estética: a dança dos vagalumes......................................................62

Fluxos estéticos da dança .........................................................................................69

Poéticas do Grupo Corpo ..........................................................................................80

TERCEIRA TRAMA: O BALÉ DA PAIXÃO ...........................................................115

Te He Visto Pasar ...................................................................................................117

Mariposa ..................................................................................................................127

Yo Te Quiero Siempre .............................................................................................137

Recordar ..................................................................................................................147

Celos .......................................................................................................................162

No Me Niegues ........................................................................................................169

QUARTA TRAMA: OS PASSOS DE UMA EDUCAÇÃO ESTESIOLÓGICA ........177

Um beijo que revela horizontes educativos ............................................................178

Dançando fluxos estéticos que podem educar pela sensibilidade e pela estesiologia.......191

NO ME NIEGUES ....................................................................................................205

OS LAÇOS AFETIVOS ...........................................................................................214

Referências .............................................................................................................215

Anexos .....................................................................................................................220

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PRÓLOGO:

AMOR À PRIMEIRA VISTA

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De modo que é forçoso o Amor ser filósofo e, sendo filósofo, estar entre o sábio e o ignorante (PLATÃO, 2009, p. 107)

Em O Banquete, um dos diálogos mais célebres de Platão (428 - 347 a.C.), o

poeta Agatão promove um jantar em Atenas e põe em cena Sócrates, Fedro,

Erixímaco, Aristófanes e outros convivas. Eles se deliciam no banquete e logo após

se enfrentam em uma competição: cada um deve fazer um elogio do Amor. Chegada

a vez de Sócrates, o último a discursar sobre o tema, este diz que o Amor carrega

uma dubiedade, derivada de sua natureza: do mito de ser filho do deus Recurso e da

deusa Pobreza, concebido no dia do nascimento de Afrodite. Por essa condição,

primeiramente, o Amor é sempre pobre, deitando-se ao desabrigo, às portas e nos

caminhos porque tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a precisão. Por

causa do pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e corajoso, decidido e

enérgico, caçador terrível, sempre a tecer maquinações, ávido de sabedoria, a

filosofar por toda a vida: nem imortal é a sua natureza nem mortal, e, no mesmo dia,

ora ele germina e vive, quando enriquece; ora morre e de novo ressuscita, graças à

natureza do pai. Haja vista que aquilo que consegue sempre lhe escapa, de modo

que nem empobrece o Amor nem enriquece.

Neste mito contado por Sócrates, o amor, representado pelo deus Eros, não é

o próprio belo e o próprio bem. Eros surge das oposições, estando numa situação

intermediária sem estar em qualquer oposto e extremo como entendíamos. O Amor,

assim, está entre dois pólos e une em sua natureza o que antes era apropriado que

continuasse separado. Assim, também está no meio da sabedoria e da ignorância,

articulando as antinomias. A posição intermediária do amor no mito atribui-lhe

movimento, sendo o mesmo movimento do homem em busca do outro (outro

humano, o mundo, a natureza, cultura, linguagem, história), inaugurando o

acontecimento. Segundo Maffesoli (2014), uma vez evacuada toda conotação

açucarada para uso dos romances da coleção ―Harlequin‖, o amor tem seu lugar na

existência, no fogo das efervescências que ele impulsiona, no ordenamento plural

das coisas da vida sem síntese abstrata, mas em constante disseminação. Não se

trata, é claro, de um amor que se pode reduzir à esfera privada. Nem de um amor

que se designa apenas ao sentimento experimentado por duas pessoas. O amor em

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questão é o pathos (as emoções, paixões e os afetos). Assim, convocamos as

coisas do amor, do afeto, que entendemos que ultrapassam qualquer marginalização

de uma lógica positiva, configurando um campo de saber potente no qual esta

pesquisa em questão se desenvolve.

Aprendemos com a filosofia de Merleau-Ponty que as relações afetivas são

saberes do corpo que ensinam sobre a existência. Neste entendimento, o corpo

como ser sexuado faz as coisas existirem para nós pelo desejo ou pelo amor, e esse

sentido afetivo aviva nossa relação com o outro e com nossa existência, um

conhecimento que ultrapassa a ordem da consciência. A afetividade, nesse sentido,

não é um mosaico de estados afetivos, prazeres e dores fechados em si mesmos,

mas abertura ao mundo das relações. Segundo Nóbrega (2016), trata-se de uma

compreensão erótica que é da ordem do desejo e que liga um corpo ao outro pelos

afetos, como podemos observar nesta citação de Merleau-Ponty (1945):

Portanto, se queremos pôr em evidência a gênese do ser para nós, para terminar é preciso considerar o setor de nossa experiência que visivelmente só tem sentido e realidade para nós, quer dizer, nosso meio afetivo. Procuremos ver como um objeto ou um ser põe-se a existir para nós pelo desejo ou pelo amor, e através disso compreenderemos melhor como objetos e seres podem em geral existir (MERLEAU-PONTY, 1945/2011, p. 213).

Nesse contexto, Merleau-Ponty na Fenomenologia da Percepção nos fala de

afetividade, meio afetivo e não estabelece uma noção ao afeto, mas nos deixa

ferramentas para compreendermos o afeto a partir de sua fenomenologia da

afetividade. Em nossas breves palavras introdutórias, Merleau-Ponty (1945) diz que

não tem como separar o sentir da afetividade, ele estabelece uma relação de sentido

entre o sujeito (sua capacidade de sentir ligada ao corpo) e o mundo exterior, posto

que no sentir do corpo já carrega a percepção (não há separação), que nos faz

compreender a experiência vivida, ou seja, a sensação não é apenas um dado físico,

pois já aporta um sentido afetivo.

Nas aberturas desse pensamento de Merleau-Ponty, Deleuze e Guattari

(1992) em O que é a Filosofia estabelece uma noção ao afeto e diz que não são

afecções ―repertoriadas‖, distintamente denominadas, ao contrário, os afetos

―transbordam a força daqueles que são atravessados por eles‖ (p. 213). Para

Deleuze e Guattari (1992) os afetos revelam as forças que modulam as sensações

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que nos afetam e nos impulsionam. Eles dizem que o homem é um composto de

afetos, composto de devires. Nesse sentido, os afetos potencializam a relação

sujeito-mundo, portanto, possibilita devires humanos que arrancam toda

representação. Ou seja, o afeto não é a passagem de um estado vivido a um outro,

mas é dado ao devir do corpo, não é uma imitação, uma simpatia vivida, nem

mesmo uma identificação imaginária, mas arbitrariedade, partilha, retornos e desvios

que sustentam o acontecimento.

Nesse entendimento do afeto, tecendo relações entre Merleau-Ponty e

Deleuze e Guattari, temos no primeiro a afetividade como a expressão dos afetos.

Esta expressão está diretamente relacionada a experiência do corpo, ampliando e

moldando o espaço objetivo, despertando um conhecimento sensível sobre o mundo

expresso emblematicamente nas relações amorosas, nos afetos, como também na

linguagem poética. Nesse sentido, - aproveitando do entendimento de Nóbrega

(2016) em relação a Merleau-Ponty- a afetividade se apresenta como um

componente da existência e da operação expressiva da comunicação. Em Deleuze e

Guattari (1988, 1992) temos então o afeto como o que nos afeta e nos coloca em

situação de potência significativa.

Assim, compreendemos o afeto para além de uma classificação das emoções

positivas, fraternas. Vestimos o afeto de um entendimento fenomenológico, a

possibilidade de um corpo que por sua capacidade afetiva se abre ao outro para

interrogar sua própria existência. Possibilidade esta que nos liga ao outro com fios

intencionais afetivos que fazem a trama de uma vida que se escapa de si mesmo.

Assim, parafraseando Nóbrega (2016), por meio dos afetos, do amor, podemos

compreender a sociedade, a política, a cultura, a história, a educação, entre tantos

outros eixos possíveis. .

Maffesoli (2005, 2014) contribui em nossa pesquisa pelo aporte

fenomenológico que sustenta a tomada de decisão de sua sociologia e de como ele

pensa a educação, partindo de uma reintrodução dos afetos na compreensão da

existência. Ele diz que o sistema educativo em suas diversas formas, como também

a organização social, a economia, foram fundamentos que se constituíram elos

sociais, essencialmente racionais, que marginalizam os afetos. Nesse sentido, em

um exemplo de seu cotidiano como professor de uma honorável instituição, ele fala

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da Sorbonne e a chama, utilizando Kierkegaard, de ―palácio desafetado‖. Uma

universidade que ele diz ―fortaleza vazia‖. Vazia de vida, de sonhos, de pensamento.

Ou seja, ele diz que há razões sem pensamento, isto é, sem enraizamento na

experiência cotidiana, esse é o caso da Sorbonne, na opinião de Maffesoli (2014), e

de todos os movimentos que privilegiam uma pretensão intelectual. Isso incita ao

risco, ao ouro de toda fenomenologia como ele diz: ―a abstinência de toda tomada de

posição. Saber pugar-se das nossas convicções, de nossas opiniões, para apreciar

o mundo tal como ele é, tal como ele se mostra, e a viver‖ (MAFFESOLI, 2014, p. 9).

E devolver aos afetos sua importância como ligame societal1. E, com isso, adentrar a

sensibilidade como inteligibilidade, assim como fez Merleau-Ponty em sua filosofia,

na possibilidade de devolver vida ao pensamento, na sinergia da razão e do

sensível.

Assim se exprime a sinergia da razão e do sensível. O afeto, o emocional, o afetual, coisas que são da ordem da paixão, não estão mais separados em um domínio à parte, bem confinados na esfera da vida privada, não são mais unicamente explicáveis a partir de categorias psicológicas, mas vão tornar-se alavancas metodológicas que podem servir à reflexão epistemológica, e são plenamente operatórias para explicar os múltiplos fenômenos sociais, que, sem isso, permaneceriam totalmente incompreensíveis (MAFFESOLI, 2005, p 72).

Em seu entendimento de afeto como ambiência, Maffesoli (2005, 2014) parte

do princípio que nós estamos imersos em uma atmosfera estética que é feita de

emoções e afetos compartilhados, onde se estabelece o ligame societal. Uma

espécie de síntese disseminadora que metamorfoseia tudo e todas as coisas.

Maffesoli (2014) diz que ninguém, entre os espíritos agudos deste tempo, ignora

totalmente a importância dos afetos, mesmo que muitos o desprezem. Para o autor,

isso é dar conta do ―real‖ que contém a ―poesia da existência‖. Um ―real‖ que não

tem a ver com o ―princípio da realidade‖, que é próprio da modernidade, reduzir a

totalidade às suas mais simples expressões: econômica, social, política.

O espírito do tempo parece pôr em dúvida a ordem racionalista que

prevaleceu e convocar o emocional. Daí a ênfase no papel dos afetos no mundo da

1 O termo societal é usado pelo autor quando deseja sublinhar a característica essencial do ―estar-

com‖, ―viver-junto‖, superando a simples associação racional designada pelo termo social.

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existência. É a ordo amoris2 de Scheler, convocada por Maffesoli (2014), o erótico

social, ou seja, a atitude corajosa de encontrar a força que faz o acontecimento. Um

―viver-junto‖ que, além do ―marulho das causas segundas‖, encontra seu fundo numa

ordo amoris que, sempre e de novo, repete o poder do amor que, sempre e de novo,

repete o poder da vida. Esta ordo amoris é a ordem do afeto.

Assim, querendo convocar o afeto como um campo de saber importante para

compreendermos como se dão as linhas de forças que garantem o elo da existência

humana, esta pesquisa se lança em uma experiência estesiológica ao se propor a

olhar a obra Lecuona do Grupo Corpo para compreender uma educação que se dá

no corpo e pelo afeto. Assim, a tese afirma o corpo e sua possibilidade de afeto

visível na obra coreográfica Lecuona, da referida companhia de dança, como uma

educação estesiológica.

Esta atitude estesiológica encontra em um corpo capaz de sensação sua

condição existencial, pois pelo sentir abre-se ao outro e às possibilidades de afeto.

São compreensões da ontologia de Merleau-Ponty (1956-1960/ 1964), pensamento

que exige uma Estesiologia: ciência que investe estudos sobre as sensações. Não é

possível pensar a estesiologia sem o corpo. Refletiremos com mais propriedade no

percorrer desta tese.

As inquietações desta pesquisa estavam desde a elaboração do meu trabalho

de mestrado ―O Corpo do Grupo Corpo: os movimentos das obras Benguelê,

Lecuona e Onqotô” (DA SILVA, 2013), defendido pelo programa de Pós-Graduação

em Educação Física da UFRN, orientado pelo Prof.ª Dr.ª Rosie Marie Nascimento de

Medeiros. Tal pesquisa lança um olhar fenomenológico à dança da Companhia

brasileira Grupo Corpo com objetivo de entrelaçar, tendo em Maurice Merleau-Ponty

o referencial principal, os conhecimentos do corpo e do sensível nas descrições de

três obras do Corpo: Benguelê (1998/2003), Lecuona (2004) e Onqotô (2005).

Assim, afirmamos no mestrado que o corpo do Grupo Corpo é o corpo barroco,

efêmero, sombrio, mutável, paradoxal, que une as contradições numa grande

harmonia, como num balanceio dos opostos, como no balanceio da existência. Ele é

belo e grandioso, atencioso às paixões, aos afetos, não exclui a fealdade, o excesso,

o mistério, reconcilia-se com a condição humana, é conhecimento. Na descrição de

2 ―A ordem do amor‖.

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Lecuona (cena Te He visto Pasar), contido no segundo capítulo da dissertação,

investimos na sensação em busca de uma atitude que anima o corpo e o abre para

incorporação do mundo e para existência; refletindo em um sentir que é

propriamente significação. Tal atitude me permitiu muitas possibilidades de reflexão

em torno do afeto e me abriu horizontes, estes que pretendo engajar no percurso

dessa tese, aprofundando-me na investigação sobre o afeto, trazendo para nosso

diálogo, além de Merleau-Ponty, outros autores que nos darão suporte na filosofia,

na estética, na educação e na dança, entre outros artistas, escritores e viventes.

O espetáculo Lecuona, estreado no ano de 2004, de coreografia de Rodrigo

Pederneiras, é um investimento em duos3, re-significações das danças de salão

(bolero, tango, valsa). São doze duos dançados, cada casal contando uma história

de amor diferente, mas que qualquer um de nós possivelmente já vivemos –

histórias de sofrimentos, entregas, sacrifícios, arrepios, lágrimas de dor, de

felicidade, de suor e saliva. Os gestos de Lecuona criam uma dialética do amor, eles

traduzem desejo, sedução, sensualidade e mais, sendo possibilidades desses

corpos que se lançam um em direção ao outro. A música de Ernesto Lecuona da

década de 1950, ao se unir a esses gestos e ao conjunto da obra, requebra nossas

emoções, dá um ritmo às intenções operantes da dança, conta uma história de amor

e favorece um espetáculo para nossos sentidos. Há uma poética nesta obra do

Grupo Corpo que me atrevo ao envolvimento e sugiro um diálogo que nos permita

colocar em suspenso as cenas e suas possíveis artimanhas artísticas e as

interrogar, mirando o poder de um corpo que, diferentemente das ―coisas‖, permite-

se, no milagre das sensações, criar campos afetivos, estar com os outros, existir.

Esta pesquisa justifica-se pelo diálogo e reflexão sobre o corpo, afeto e

educação como constatamos no estado da arte realizado sobre a temática.

Pretendemos ultrapassar a compreensão do corpo-físico apenas, um objeto material

e inerte, mas este corpo vivo dotado de intencionalidade original a qual me permite

lançar-me no mundo e apreender o seu sentido. Pensar o afeto num mundo

contemporâneo e tecnológico, onde, em meio aos seus prejuízos operantes, cada

vez mais as pessoas estão individualistas (no que tange o contato, o compartilhar),

3 É o termo utilizado na dança para quando a cena , ou uma escala de movimentos, é composta por

dois bailarinos, dividindo o mesmo espaço e tempo cênico, aonde os movimentos de ambos são projetados em função ou em direção ao corpo do outro.

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anestesiadas (no que tange às emoções), apressadas e programáticas, é muito

válido e pertinente.

Assim, a pesquisa segue sua relevância por almejar se unir a produções

científicas que tem contribuído com suas reflexões para que cada vez mais a

educação, com um olhar particular sobre o corpo nesta pesquisa, estabeleça

conexões com o sensível, ultrapassando uma compreensão de educação apartada

do corpo e da experiência vivida. Com isso, entrelaço-me aos pesquisadores que

tem investido tempo de reflexão no pensar o corpo sensível, seu engajamento na

sensorialidade, no discurso fenomenológico, principalmente à fecundidade da atitude

fenomenológica do filósofo Merleau-Ponty.

Assim como as pesquisas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,

principalmente no Grupo de Pesquisa Estesia4 que tem investido muito nessa

temática com pesquisas bem consistentes, contribuindo na área da Educação Física,

Educação e Arte, como as produções da Prof.ª Dr.ª Terezinha Petrúcia da Nóbrega

(2010; 2015; 2016), como também as pesquisas sob sua orientação, como da Prof.ª

Dr.ª Rosie Marie Nascimento de Medeiros (2010), o livro da Prof.ª Dr.ª Karenine

Porpino (2006). Também, nestas contribuições, a tese de Gilmar Leite Ferreira

(2013) e a pesquisa de Avelino Neto (2016), dentre outras tantas pesquisas que tem

tornado fecundo esses saberes, aos quais me uno nessa atitude, pretendendo

contribuir com esses conhecimentos.

O estado da arte, como já mencionado, trouxe uma singular importância ao

estudo em questão. No banco de dissertação/teses da Capes encontrei três

pesquisas, uma de mestrado e outra de doutorado, voltadas para o Grupo Corpo5. A

primeira é especificamente dirigida ao coreógrafo Rodrigo Pederneiras, de um

Professor do Departamento de Arte da UFRN, Marcos Bragato, intitulada ―Saltos,

emergências, permanências: três tempos na obra de Rodrigo Pederneiras‖ (1996),

4 Os trabalhos do Grupo Estesia, presentemente, desenvolvem-se no âmbito do Programa de Pós-

Graduação em Educação Física da UFRN, na área de concentração Movimento Humano, Cultura e Educação. No Programa de Pós-Graduação em Educação, as orientações de mestrado e doutorado se dão na Linha Pesquisa Educação, Comunicação, Linguagens e Movimento. O Estesia abarca três linhas de pesquisa: Corpo, Estética e Movimento Humano; Corpo, Expressividade e Movimento Humano; Filosofias do Corpo e do Movimento Humano 5 Temos também a dissertação ―O Corpo do Grupo Corpo: os movimentos das obras de Benguele, Lecuona e Onqotô‖, de nossa autoria. Temos como objetivo ultrapassar as reflexões de nosso primeiro esforço, ao pensar as obras do Grupo Corpo e ir ao encontro do impensado desta pesquisa.

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pela PUC de São Paulo; esta é uma análise dos espetáculos Prelúdios, Missa do

Orfanato e 21 e parte de um olhar para as descontinuidades coreológicas das obras

do Grupo Corpo. A segunda, tese de doutoramento, intitulada "Um pas-de-deux da

estratégia com a arte: as práticas da Companhia de dança do Grupo Corpo" é uma

pesquisa defendida no Programa de Pós- Graduação em Administração da UFMG,

tendo como autor Ernani Viana Saraiva, trata-se de um olhar para a gestão e a

estrutura organizacional da Companhia. Podemos citar também o mestrado

acadêmico em estudos de linguagem, do Centro Federal de Educação Tecn. de

Minas Gerais, de Siane Paula de Araújo, intitulado ―O Corpo Mídia em ‗Nazareth‘:

uma análise semiótica da linguagem coreográfica do Grupo Corpo Companhia de

Dança‖, a pesquisa propõe uma análise semiótica da obra Nazareth.

Sobre o tema Afeto, foram encontrados mais de 300 teses e dissertações,

como, por exemplo, a pesquisa de mestrado em Educação da USP de Santos

(2011), ―A Escrita e o afeto: o impulso de Jõao Guimarães Rosa em seu corpo de

baile‖. Já para uma busca avançada sobre Afeto e Fenomenologia, encontramos três

registros, sendo o primeiro o mestrado acadêmico em Educação do Centro

Universitário de São Paulo, de Gonçalves (2011), ―Revelações: Poderes e afetos nas

entrelinhas do bilhete escolar‖. O segundo registro é a tese de doutorado em

Psiquiatria e Saúde Mental pela UFRJ, ―Fatores de vulnerabilidade para TEPT em

policiais militares‖, Bezerra (2011). E, por último, a pesquisa de mestrado em

Psicologia Social da USP, ―A Cidade na Avenida: a poética urbana da avenida

paulista pelo olhar dos artistas que nela trabalham‖ de Marin (2011).

Diante dessas investigações que já trataram o tema desta tese, nada fora

encontrado sobre o afeto dentro de uma perpectiva estesiológica do corpo. Tais

pesquisas abordam o afeto de um ponto de vista que se restringe a sentimentos

positivos e comuns à sociedade, sem maiores aprofundamentos filosóficos e

estéticos.

A filosofia de Merleau-Ponty coloca muito mais questões do que oferece

respostas e a profundidade de seus pensamentos está justamente nestas

interrogações que é a cava para o impensado. O Impensado não é oposto do que se

pensa, não é a falta de pensamento, mas o que sustenta o pensar, o que faz pensar.

Um saber não se mostra completo, mas na atitude interrogativa sobre o fenômeno

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ele se revela sempre como algo novo, como criação. Nossos argumentos exigem

uma Estesiologia: estudo das sensações. A estesia do corpo é uma noção proposta

na fenomenologia de Merleau-Ponty, principalmente refletida nos livros Le Visible et

Le Invisible (1964) e Resumé de Cours – 1952-1960 (1968)6que expressa o corpo

capaz de sensação, aberto ao outro e, diante disso, multiplicador de sentidos.

O corpo estesiológico é a noção indicativa do deslocamento ontológico na

filosofia de Merleau-Ponty, indica a passagem de uma descrição fenomenológica do

corpo para a experiência estesiológica, aprofundando a compreensão de corpo ao

considerar os vínculos com a natureza, a linguagem e a história. Essa arqueologia

do corpo revisa, altera, confirma e também ultrapassa a fenomenologia da

percepção, como afirma Nóbrega (2014). A estesiologia expressa, esboça, contém

uma filosofia do corpo como carne, que é o oposto de representações conscientes,

mas que é o sentir mesmo (MERLEAU-PONTY, 1956-1960/2006).

Segundo Merleau-Ponty (1964/2009), no entrelaçamento possível com o

outro, dado pela experiência do corpo, as propriedades do objeto e as intenções do

sujeito não apenas se misturam, mas constituem um todo novo. Este movimento

vivo, necessário e expressivo se estabelece na estesia do corpo através da

reversibilidade dos sentidos. Assim, para o irrefletido, para o impensado, parte o

movimento da reversibilidade, vai em direção aos mistérios do mundo.

Desse modo, convido-os a se envolverem nas possibilidades de um corpo

estesiológico, que por ser corpo, sente e que, por sentir, é e pode. Com isso,

mergulho em sua profundidade, em seus mistérios, num compromisso com o afeto,

com o outro, este pelo qual me conheço, pelo qual desejo, outro a que me dirijo para

interrogar minha existência.

Na obra Lecuona, temos a expressão de estesia na experiência do desejo e

dos afetos, uma comunicação sensível, denunciando o corpo sexual, avivado pelas

paixões, orgânico, capaz de sofrer, sentir dor e sentir glórias, sentir absurdas e

desconhecidas sensações, mas que continua nesta busca do outro para interrogar

sua existência. Com isso, vemos nessa obra a possibilidade de pensarmos uma

educação que se abre aos sentidos, ao outro, reaprende a ver o mundo, re-significa

experiências, reconstrói caminhos, cria, ultrapassa limites científicos, convocando o

6 Especificamente as notas sobre o corpo.

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desejo, o afeto, os sentidos, os simbolismos, as subjetividades, as diferenças desses

corpos como possibilidades de conhecimentos dados pelo sensível, outra lógica.

Campo esse em que esta pesquisa entra e se espalha, une-se no desafio de pensar

uma educação que se constrói no e pelo corpo sensível, constrange um

conhecimento que se acha desencarnado. Mediante isso, já se avançou bastante no

campo epistemológico7, com resistências ainda, é fato, mas, a potência cada vez

mais operante do corpo sensível tem difundido um saber contagioso.

Segundo Nóbrega (2010), pesquisadora especialista em Merleau-Ponty e uma

interlocutora de suas noções na Educação Física e Educação, as funções corporais

são vividas, com prazer e delícia, ou com sofrimentos e angústias, entre outras

possibilidades, desafiando a análise e a compreensão teórica. A autora continua a

afirmar que a arte, ciência, filosofia, cultura e educação não esgotam as

possibilidades da experiência vivida, mas redimensionadas pela ludicidade da

criação e da ação humana, podem também refazer nossos instrumentos de

observação, interpretação, como as dadas pelo corpo vivo e sua condição paradoxal

de objeto e sujeito da existência.

Sendo o corpo condição existencial, afetiva, histórica, epistemológica, como

compreendemos ao entrelaçar esta pesquisa à fenomenologia de Merleau-Ponty,

precisamos admitir que o corpo já está presente na Educação, na Arte, na Filosofia,

na ciência de modo geral e na Educação Física. O desafio é superar as práticas

disciplinares que os atravessam e reencontrar outras linhas de força e compreensão.

Desse modo, as aventuras pessoais, os acontecimentos eventuais ou históricos, a

linguagem do corpo precisam ser considerados (NÓBREGA, 2010).

As expressões da arte no geral: a dança, a pintura, textos poéticos, mas,

também, textos políticos, filosóficos, que nos despertam – por meio das significações

criadas no ato da leitura, apreciação, criação – revela uma pulsação que se

expressa numa linguagem que é relação com o outro, através da comunicação dos

sentidos. Pensamos que essas significações podem ser consideradas nas práticas

educativas e num pensar o corpo e os afetos na Educação, como também entre

7 Refiro-me principalmente às pesquisas desenvolvidas na última década pelas orientações das

Doutoras Terezinha Petrucia da Nóbrega, Karenine Porpino, Rosie Marie Nascimento de Medeiros que compõem o Grupo Estesia/UFRN.

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outras áreas do conhecimento, mostrando outras possibilidades de convivência com

o corpo que se inspiram nas teses fenomenológicas, como nos ajuda nessa reflexão

Nóbrega (2010).

Nesta inquietação, recorro à arte como espanto, principalmente à obra de arte

moderna do século XX em diante, que transita entre o humano e suas paixões. Essa

arte, com sua explosão do inteligível, para se pensar a filosofia do corpo e do

sensível. Segundo Merleau-Ponty (1948/2004), um dos méritos da arte e do

pensamento desse período moderno é o de nos fazer redescobrir esse mundo em

que vivemos e que sempre somos tentados a esquecer enquanto permanecemos

numa postura prática e utilitária. Com essa atitude, volto meu olhar para a dança,

sua poética, ao desvelar o impensado, o invisível, o que ainda não foi dito, buscando

subsídios que possam oferecer imagens sensíveis dos conceitos e das reflexões

sobre corpo com um investimento na sensação e no afeto, numa busca pelo Ser de

profundidade através da obra de arte da dança como intencionalidades desta

pesquisa. Pois, podemos vislumbrar na dança do corpo um sentir que é significação.

Diante disso, afirmamos ser possível, num olhar fenomenológico, pensarmos

o corpo e o afeto através das descrições e as leituras desta tese. Desse modo, este

corpo como possibilidade de afeto, expressado nas doze tramas do espetáculo

Lecuona, pode nos fazer pensar uma educação estesiológica. Assim, os objetivos da

pesquisa transcorrem entre lançar um olhar fenomenológico sobre as doze histórias

de amor dançadas em Lecuona e estabelecer conexões entre as expressões

filosóficas e artísticas. Sendo a primeira em busca de uma compreensão do corpo,

da estesia e do afeto e a segunda, mediante o envolvimento da pesquisa nas

poéticas da dança, conexão que oportuniza a reflexão sobre uma educação

estesiológica. Nesta compreensão, essa noção de olhar está além de uma função

dos órgãos dos sentidos, mas abraça a significação quando me lanço ao outro em

busca de sentidos, como assim nos faz pensar as leituras em Merleau-Ponty.

Assim, pensar a educação a partir desta pesquisa nos desafia a um novo

olhar a este corpo, reaprendendo a ver o mundo e desafiando nossa capacidade de

criar novos sentidos. As reflexões apresentadas aqui pretendem nos levar ao

espanto, no qual muitos desafios ainda se impõem, entre eles a compreensão do

corpo e do conhecimento sensível. Esta tese une objeto e sujeito do movimento,

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socializando um novo olhar sobre o corpo, estimulando a reflexão para o despertar

do corpo para seus sentidos e desejos, considerando sempre que o movimento deve

despertar no sujeito a percepção de si mesmo como ser corporal, em relação com os

outros e com o mundo, e da sensibilidade como atribuidora de significado às ações

humanas.

Uma Fenomenologia para afetar e ser afetado pela experiência

Em busca de um percurso metodológico que movimentasse as nossas

pretensões de pesquisa, recorremos à atitude fenomenológica de Merleau-Ponty

como estilo, uma maneira e um movimento (MERLEAU-PONTY, 1945). Estilo de

pensar o mundo, as coisas, a existência ligado à minha afetividade, que une

elementos e vivências e me possibilita inaugurar conexões possíveis no campo do

saber.

Merleau-Ponty configura uma linguagem sensível que é expressa nos

movimentos e aprofunda as teses da Fenomenologia num novo arranjo para o

conhecimento enquanto resultado de nossa experiência no mundo vivido

(NÓBREGA, 2009). Essa atitude se porta com a coragem dos que ―celebram o

mundo‖. É, antes de tudo, envolvimento com o mundo da experiência vivida com

intuito de compreendê-la. A noção ―mundo vivido‖ não se refere a uma identificação

pessoal, introspectiva, nem a um entendimento apenas relacionado ao "meu" mundo

e "minhas" relações. Segundo Nóbrega (2010), o vivido não é um sentimento, mas

se refere à percepção como modo original da consciência, ou seja, essa expressão

mundo-vivido é uma tentativa de tradução da expressão alemã Lebenswelt, que diz

respeito ao mundo pré-reflexivo, este que nos possibilita o refletido. O termo

Lebenswelt ganha força com o entendimento sobre a questão da verdade a partir da

obra de Husserl Investigações Lógicas. Assim, reflete-se a verdade não como

adequação do pensamento ao objeto, não sendo definida a priori pelo sujeito e nem

contemplada na pura exterioridade do objeto. A verdade é definida na evidência da

experiência vivida que precisa ser interrogada.

Nesse entendimento, a Fenomenologia busca como finalidade compreender o

sentido do mundo, ou seja, suas essências que se encontram na existência. E não

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pensa que se pode compreender o homem e o mundo de outra maneira senão

entendendo que sou ―da cabeça aos pés‖ envolvimento com o mundo (eu afeto e

sou afetado por ele). Segundo Nóbrega (2016) é preciso considerar que a essência

não existe separada da existência, sendo esta que faz distender os fios intencionais.

―As essências de Husserl [da fenomenologia] devem trazer consigo todas as

relações da experiência, assim como a rede traz do fundo do mar os peixes e as

algas palpitantes‖ (MERLEAU-PONTY, 1945 apud NÓBREGA, 2016 p. 16).

Nóbrega (2009) define a fenomenologia como sendo a atitude de

envolvimento com o mundo da experiência vivida, com o intuito de compreendê-la.

Esta compreensão não é uma representação mental do mundo, mas sim

envolvimento que permite a reflexão e a interpretação. Em relação à noção de

mundo, Merleau-Ponty (1945) afirma que o mundo é aquilo que vivo e não aquilo

que penso. Estamos vulneráveis a este mundo, comunicamo-nos com ele, mas não

podemos possuí-lo, pois este é inesgotável.

A atitude fenomenológica desta pesquisa ultrapassa o racionalismo ao lançar-

se no mundo da dança, em especial à dança do Grupo Corpo e, com isso, buscar

novos olhares e novos sentidos para a existência, unindo sujeito e o objeto em sua

compreensão de mundo e de corpo. Traçamos fios intencionais entre a arte, a

filosofia e a educação. Para a fenomenologia de Merleau-Ponty a transubstanciação

entre corpo, arte, e educação é plenamente possível por meio da linguagem sensível

e sua expressão na palavra, na dança, na pintura, na literatura, nas imagens do

cinema, entre outros indicadores do mundo da cultura e do mundo das relações.

Neste trato, destacamos a redução fenomenológica para interrogar a experiência

vivida em busca de novos sentidos e significados relativos ao corpo nesta pesquisa.

De acordo com Merleau-Ponty (1945), para apreender, descrever e atribuir sentidos

aos acontecimentos é preciso, inicialmente, romper com nossa familiaridade com o

mundo-vivido, recusar-lhe nossa cumplicidade, colocando-a fora de jogo, para uma

melhor compreensão:

É porque somos do começo ao fim relação ao mundo que a única maneira, para nós, de apercebermos-nos disso é suspender este movimento, recusar-lhe nossa cumplicidade, ou ainda colocá-la fora do jogo (...) a reflexão não retira do mundo em direção à unidade da consciência enquanto fundamento do mundo; ela toma distância para ver brotar as

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transcendências, ela distende os fios intencionais que nos ligam ao mundo para fazê-lo aparecer, ela só é consciência do mundo porque o revela como estranho e paradoxal (MERLEAU-PONTY, 2011, p.10).

Essa redução nunca será completa, como evidencia o filósofo, pois estamos

imbricados no mundo e fazemos parte de sua teia por meio de nossas experiências.

A redução começa com o afastamento das nossas crenças e ideologias para, assim,

interrogá-las e permitir a criação de novos sentidos.

Partindo do mundo vivido da dança, onde realço minha experiência na dança

clássica e, logo após, na dança contemporânea como integrante da Companhia de

Dança Contemporânea Aviva8, faço-me cúmplice dessa pesquisa que lança um

olhar sobre obras contemporâneas do Grupo Corpo. Procuro suspender essa

familiaridade e cumplicidade existente com a dança contemporânea para descobrir

novos sentidos, novas significações que essas obras da Companhia possam

evidenciar sobre o corpo e o sensível. Esses impulsos de pesquisa se misturam com

uma vida, posto que minhas experiências se dobram sobre o percurso metodológico

desta tese, como um estilo de pesquisa. Posto que, ―a fenomenologia se deixar

praticar e reconhecer como maneira ou como estilo; ela existe como movimento

antes de ter chegado a uma inteira consciência filosófica‖ (MERLEAU-PONTY, 2011,

p.2).

Assim, foi possível nesta pesquisa a união de duas de minhas paixões: a

dança e a filosofia. A primeira me atravessa com suas inúmeras sensações e

significações que sempre estiveram presentes como expressão profunda, um

impulso vital que me leva a novas formas de sentir a vida, construí-la, interpretá-la e

ampliá-la, desvendando a possibilidade do descobrir, do criar ambientes de

liberdade, do compartilhar e do aprender, além de passos diversos, novos sentidos e

significados para minha existência. A dança foi um dos caminhos que me

transportou a outros mundos. Assim, teorizar a experiência com essa arte foi o que

gerou a escolha por uma trajetória acadêmica. Neste processo, cursando a

graduação em Educação Física, identifiquei-me epistemologicamente com os

8 Essa Cia de dança iniciou-se em 2006 por um grupo de amigos bailarinos que tinha a intenção de

unir suas experiências na dança de modo geral e na dança cristã numa possibilidade de refletir o mundo e transmitir uma mensagem de esperança através dos movimentos. Tinha como coreógrafo Felipe Rocha, mestre em artes cênicas pela UFRN.

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conhecimentos que esta área compartilha das Ciências Humanas. Em contrapartida,

aproximei-me da filosofia, de alguns pensadores contemporâneos, da fenomenologia

de Merleau-Ponty e seus questionamentos sobre o corpo e o sensível mesmo que

de maneira inicial (acho que sempre terei essa impressão). O despertar para a

filosofia (principalmente a fenomenologia) e para educação reverberou minhas

escolhas epistemológicas. Ora, estas vivências se dobram sobre as intenções dessa

pesquisa e encontram no afeto o que as ligam para construir algo novo, caminhos de

novas interrogações, de novas afetações.

Diante disso, descrevo as ações que traçam e tornam possível essa tese.

Para as descrições das cenas da obra do Grupo Corpo, Lecuona, fazemos uso do

vídeo do espetáculo. Em relação a isto, esta tese acompanha um vídeo com as

cenas analisadas. Utilizamos também as imagens do espetáculo, apreciação da

releitura da obra no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 2016, da entrevista com

o coreógrafo Rodrigo Pederneiras concedida a nossa pesquisa, das entrevistas

dadas pelo coreógrafo a jornalistas e outros autores, das falas e entrevistas dos

bailarinos concedidas ao documentário Lecuona (2005) e em sites jornalísticos,

traçando uma trama de sentidos que permitam a reflexão sobre os objetivos de

pesquisa.

Importante pontuarmos que fizemos uma entrevista com o ex-bailarino do

Grupo Corpo André Venceslau, concedida a esta autora da tese em questão em

agosto de 2014. Ele dançou Lecuona e outras obras do Grupo Corpo. Fizemos a

entrevista via redes sociais. Todavia, percebemos que as respostas dadas pelo

bailarino não contribuíram para os sentidos dessa pesquisa o que não impede de

contribuir para outros estudos. Diante disso, deixamos em anexo neste trabalho para

consulta e usufruto do leitor. Acredito que todos os caminhos, os registros de

pesquisa são válidos para uma construção do pensamento e por isso não o

descartamos.

Para melhor elencar os sentidos desta tese e nos auxiliar na descrição das

cenas, fizemos uso do roteiro para apreciação de obras coreográficas, elaborado no

Grupo de Pesquisa Estesia no projeto A dança como carta do visível, do corpo e do

movimento humano, na coordenação da Doutora Terezinha Petrucia da Nóbrega. Os

critérios das cenas escolhidas para descrição foram pautados na significação, no

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que estas nos fazem pensar sobre a estesia do corpo, as poéticas do movimento, os

fluxos estéticos, e a relação da dança com a existência e com a educação e a arte,

conforme nos orienta o roteiro em questão para apreciação de obras coreográficas.

Este roteiro é uma ferramenta propícia para traçar uma cartografia da obra Lecuona,

pois além de identificar e caracterizar a obra, ele ajuda na apreciação e no elencar

de sentidos, reflete o posicionamento do corpo na obra, sua postura diante do

mundo das relações e em meios as sensações, traz os gestos dançados como

potência de percepção e os argumentos cênicos: cenário, música, figurino,

iluminação etc. como possibilidades reais de significação. Todo esse aparato para

pensarmos a dança como movimento que nos seduz a pensar a educação, a arte, a

filosofia, a educação física, a existência.

Importante ressaltar que não apresentamos como intenção descrever

totalmente as cenas, ou seja, todas as intenções que englobam o trabalho que

resultam as cenas, por acreditarmos ser uma tarefa infinita, haja vista que a arte nos

possibilita o poder da reinterpretação e de re-significação. Neste contexto, sendo

coerente com o método fenomenológico, Medeiros (2010)9 afirma que devemos nos

limitar ao que está visível a nós, aquilo que a cena nos evidencia de sentidos. Desse

modo, voltamos nosso olhar para as cenas, captando as várias significações que

nos são oferecidas sobre corpo e afeto, acreditando na parcialidade e na tarefa

inacabada da pesquisa.

Para ser afetada pelas cenas de Lecuona, pelos gestos dançados, pelas

tramas de amor, fizemos uso de vídeos das cenas do espetáculo, como já

mencionamos. É de suma importância na descrição das cenas, visto que, conforme

Pavis (2005), o vídeo restitui o tempo real, além disso, é a mídia mais completa, que

reúne o maior número de informações, expressando as várias características e a

visão geral do espetáculo.

Também junto a essa experiência do vídeo, a oportunidade de ver a

reapresentação de Lecuona no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em setembro de

2016, experiência que me acrescentou novos sentidos, podendo comparar a

vivência de assistir pelo vídeo e, após, a incrível experiência de apreciar ao vivo no

9 A autora evidencia essa preocupação em sua tese, quando faz as descrições dos

espetáculos de dança Folguedos, Guarnicê e Flor de Lírio do Grupo Parafolclórico que é um projeto de extensão do Departamento de Educação Física da UFRN.

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teatro.

Assim, também fizemos uso de imagens das cenas que nos ajudaram

igualmente na descrição e em nossos argumentos de pesquisa. Entrelaço as

músicas de Ernesto Lecuona como sentidos da descrição, posto que ela dá o tom

das tramas, mobiliza os gestos. As descrições também nos entrelaçaram com a

poesia de Pessoa, Guimarães Rosa, Neruda, a literatura de Proust, Nelson

Rodrigues, entre outros artistas e também pensadores.

Para enriquecer nossa pesquisa e contribuir diretamente com nossos

objetivos, tivemos a oportunidade de conversar com o coreógrafo de Lecuona,

Rodrigo Perdeneiras no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em setembro de 2016.

Nós o interrogamos sobre Lecuona e o afeto, a obra e as sensações, a obra como

marco dentro dos fluxos estéticos do Grupo Corpo, o processo criativo, como se deu

o envolvimento dos bailarinos na intenção da obra, Lecuona como educação. O

diálogo foi deveras importante para reafirmar os argumentos da tese: no que tange

às poéticas do Grupo Corpo, na descrição das cenas e no refletir de Lecuona, seu

fazer e sua potência no pensar sobre educação estesiológica.

As cenas escolhidas para descrição foram Mariposa, Te he visto pasar, Yo Te

Quiero Siempre, Recordar, Celos e No Me Niegues. Escolhemos essas seis cenas,

de um total de doze, e o critério é a significação, o que delas arrebata na apreciação

e o que é mais pensante para nossa pesquisa. Os cinco duos descritos contam

formas de viver o amor, a dor, de se entregar, de sentir. A última cena No me

Niegues, com vários casais em cena, reafirma a ordo amoris, a ordem dos afetos, o

sopro esplendoroso de vida.

As Tramas

Na organização dos capítulos, adotamos a nomenclatura ―tramas‖ que nos

remete às 12 tramas de Lecuona, aquelas antigas e sempre novas histórias de amor

que podem ser lidas nos livros, vistas em uma peça de teatro, em um filme, mas

intencionalmente nesta pesquisa apresentaremos em forma de gestos de dança,

imagens dançantes.

Diante disso, a primeira trama denominamos de ―Elogio do Afeto”. Nesta,

encontramos boa parte do fundamento filosófico que nos permite refletir sobre

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conceitos importantes da pesquisa que sustentam nossa reflexão: o corpo, a

sensação, a reversibilidade da carne, a estesia, em busca de uma compreensão

fenomenológica do afeto. Olhamos esse capítulo com o olhar de alguns pensadores,

entre os principais: Maurice Merleau-Ponty e Michel Maffesoli.

A segunda trama é O Corpo e as Poéticas da dança. Com a imagem dos

vagalumes – que Didi-Huberman (2011) traz em seu livro Sobrevivência dos vaga-

lumes – é nos dada uma dimensão estética que possibilitou a reflexão sobre a dança

como um pensamento interrogativo de seu tempo. Com isso, pensamos a dança e

sua poética, o estado de performance (bailarino-espectador) como possibilidade real

de criação de campos afetivos onde os sentidos são compartilhados. Assim,

também, ao nos envolver numa poética do Grupo Corpo refletimos as

descontinuidades, as mudanças, os desvios, os retrocessos e avanços dentro da

história desta companhia. Percebemos que o Corpo vive sua quarta fase: a fase

afetiva, dada com Lecuona em 2004. Neste movimento, não é possível não

entrelaçar a história do Grupo Corpo com a história da dança brasileira. Fizemos

este exercício e muitas reflexões se revelaram, entre avanços e retrocessos

estéticos da dança no Brasil.

A terceira trama, O Balé da Paixão, temos as descrições das cenas do

espetáculo Lecuona do Grupo Corpo. Ao afetar com nosso olhar e nos deixar ser

afetados em sua poética, suas formas de amar, unimos a razão e o sensível e

suscitamos conhecimento nessa dialética do amor, na estesia dos encontros. Alguns

artistas dançam nessas descrições: escritores como Proust, cantores como Ernesto

Lecuona, poetas como Guimarães Rosa, Pessoa, Neruda, entre outros, ajudam-nos

nesse movimento estesiológico. Todo este percurso da pesquisa nos leva a

vislumbrar a quarta trama, Os Passos de uma educação estesiológica, uma

educação que se configura no corpo e pelo afeto. Assim, refletimos uma educação

que vai além de instrução e técnica, mas que transforma mundos e re-significa

experiências, que se volta aos afetos, exerce sua liberdade de escolha e reflexão, ou

mesmo, uma educação que exige de nós criação e se configura nas relações

afetivas. Para assim compreender o humano em nós como capacidade de afetar e

ser afetado pelas coisas sensíveis, pelos outros, pelo modo de ser no mundo.

Denominamos de No me Niegues as conclusões do nosso trabalho e de

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Laços afetivos as nossas referências e nossos anexos, por possibilitarem a

formação do arcabouço dessa pesquisa e por entender que para haver qualquer tipo

de compreensão é necessário que haja um envolvimento afetivo.

Assim, os argumentos e interligações desta pesquisa nos abraçam e nesta

atitude fenomenológica de reflexão, foi possível chegar numa compreensão gerada

por esta plasticidade do corpo em se lançar ao mundo e dele apreender sentidos, e,

com isso, aproximar o discurso filosófico e estético com a área da Educação como

uma das intencionalidades da pesquisa, ou mesmo, torná-la fecunda e contribuir em

outras áreas do conhecimento.

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PRIMEIRA TRAMA:

ELOGIO DO AFETO

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Eu sou o que sinto. Afirmo com a coragem me dada por nossas reflexões

fenomenológicas. Diante disso, começamos esse capítulo afirmando com Merleau-

Ponty (1945) que não é possível separar o sentir da afetividade. Esse foi o exercício

do pensamento objetivo do empirismo e do intelectualismo. A afetividade, nesse

sentido, não é um mosaico de estados afetivos, prazeres e dores fechados em si

mesmos, mas uma abertura ao mundo das relações. Nóbrega (2016),

compreendendo Merleau-Ponty (1945), diz que a afetividade parte de uma

compreensão erótica que não é da ordem do entendimento, da consciência, mas da

ordem do desejo que liga um corpo a outro corpo seja por amizade, amor, ódio ou

rejeição. Neste sentido, esta fenomenologia tende a buscar sua expressão na

intersubjetividade, momento de permuta afetiva antes do que cognitiva. Este trecho

abaixo da ―Fenomenologia da Percepção‖ ilustra o estilo da fenomenologia da

afetividade de Merleau-Ponty e seu embasamento na intersubjetividade:

Paris não é para mim um objeto com mil facetas, uma soma de percepções, nem tampouco a lei de todas essas percepções. Assim como um ser manifesta a mesma essência afetiva nos gestos de sua mão, em seu andar e em sua voz, cada percepção o expressa em minha viagem através de Paris — os cafés, os rostos das pessoas, os choupos dos cais, as curvas do Sena — é recortada no ser total de Paris, não faz senão confirmar um certo estilo ou um certo sentido de Paris. E,quando ali cheguei pela primeira vez, as primeiras ruas que vi saída da estação foram, como as primeiras falas de um desconhecido, as manifestações de uma essência ainda ambígua, mas já incomparável. Nós não percebemos quase nenhum objeto, assim como não vemos os olhos de um rosto familiar, mas seu olhar e sua expressão. Existe ali um sentido latente, difuso através da paisagem ou da cidade, que reconhecemos em uma evidência específica sem precisar defini-lo. (…) Uma primeira percepção sem nenhum fundo é inconcebível. Toda percepção supõe um certo passado do sujeito que percebe, e a função abstrata de percepção, enquanto encontro de objetos, implica um ato mais secreto pelo qual elaboramos nosso ambiente (MERLEAU-PONTY 1945/2011, p. 377- 378).

Merleau-Ponty visa a significação primordialmente afetiva das vivências. A

fenomenologia de Merleau-Ponty almeja voltar à percepção afetiva que não coloca

as coisas frente a uma consciência, mas vive nelas, uma tonalidade afetiva que me

une ao mundo, aos outros, e a mim mesmo. Nesta fenomenologia, o corpo é, por

conseguinte, descrito como ―aquele fundo afetivo que deita originariamente a

consciência fora de si-mesma‖ (MERLEAU-PONTY, 1945/2011, p. 138).

Esse entendimento parte de uma filosofia que permite, que é tocável, ou

mesmo, abre-se a uma filosofia do afeto que retoma o corpo como condição

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necessária da ação, da relação com o outro, como atitude, corpo que sente e é

sentido, corpo que interroga, que aprende, corpo que é. Não da ordem do ―eu

penso‖, mas do ―eu posso‖.

Seja na sensação de uma apreciação de uma dança: Nureyev e Margot

Fonteyn em Swan Lake, Isadora Duncan e seus véus, Ruth St. Denis em Inciense,

as obras de Pina Bausch, a brasilidade do Grupo Corpo em Onqotô; seja numa

canção, seja em uma leitura, ao vislumbrar uma obra de arte: seja Cézanne,

Matisse, Picasso, Rodin, Portinari; num discurso, num olhar, numa história de amor,

entre tantos movimentos, tudo possível por um corpo que é capaz de sensação e

devido a isso de estabelecer relações, como nos inspira Maurice Merleau-Ponty e

sua sensibilidade ao perceber a filosofia em contato com o ―mundo de toda gente‖.

A compreensão do corpo e do afeto nesta pesquisa, a partir da filosofia de

Maurice Merleau-Ponty, encontra sua maior expressão na curva do pensamento

deste filosófo, onde há deslocamentos de uma fenomenologia para uma ontologia,

esta indireta, posto que busca o contato com o mundo da vida, com a arte, com os

afetos, como também com a história, com a ciência, com a cultura. A potência dessa

ontologia está em uma relação mais íntima com a arte como forma de conhecimento

e de um pensamento estético que é algo que resiste e escapa à própria

fenomenologia, particularmente, na ultrapassagem de uma descrição da experiência

do ponto de vista do sujeito e mesmo de uma consciência perceptiva, como nos

afirma Nóbrega (2014). O corpo estesiológico, que dá suporte a esta tese e que

refletiremos com mais detalhes no decorrer do texto, é a noção indicativa do

deslocamento ontológico na filosofia de Merleau-Ponty, que indica a passagem de

uma descrição fenomenológica do corpo para a experiência estesiológica,

aprofundando a compreensão de corpo ao considerar os vínculos com a natureza, a

linguagem e a história. Essa arqueologia do corpo revisa, altera, confirma e também

ultrapassa o corpo-próprio da fenomenologia da percepção (NÓBREGA, 2014,

2016).

Tais aspectos da ontologia de Merleau-Ponty exigem uma estesiologia, ou

seja, o estudo do corpo e das sensações. Essa estesiologia nos faz capaz de sentir

o mundo, penetrá-lo e nos deixar penetrar, estar em relação com o outro, outros

homens, uma história, cria afetividade. Possibilidades que tramam a favor da

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existência. Para dar conta das experiências desse corpo estesiológico, nosso filósofo

conta com a teoria da carne e sua reversibilidade. A carne do corpo, que é o oposto

de representações conscientes, mas que é o sentir mesmo (NÓBREGA, 2014), com

suas afecções, abre-nos um campo de significações e aventuras existenciais.

Ao tratar de uma metafísica10 da carne, que nada tem a ver com

essencialismos, solipsismos, determinismos de nenhuma ordem, Merleau-Ponty

declara que se endereça a uma experiência para qual não há nome na filosofia

tradicional. Trata-se da experiência da simultaneidade de presença e ausência,

visibilidade e invisibilidade, perfeição e inacabamento, totalidade e abertura, tecido

conjuntivo e diferenciado do mundo, experiência que sempre foi recalcada pela

filosofia, que não podia então nomeá-la. Ele a nomeia ―carne‖. Merleau-Ponty irá

meditar sobre a imbricação do corpo no mundo, o corpo como sensível exemplar e,

sobretudo, sobre a corporeidade como condição do ser.

A noção de carne em Merleau-Ponty não se refere à matéria, à substância, a

uma essência ou a uma idealização do corpo, mas ao envolvimento do corpo no

mundo por uma espécie de fissão, criação de novos espaços e sensações. Uma

visibilidade do invisível que surge no incorporar do outro (NÓBREGA, 2010). Chauí

(2002) afirma que a noção de carne ultrapassa a ideia de corpo como uma máquina

de músculos e nervos ligados por relações de causalidade e observável do exterior,

mas é interioridade que se exterioriza, é e faz sentido. Se o mundo, eles e nós nos

comunicamos não é porque um estímulo agiria sobre nossos órgãos dos sentidos e

sobre nosso sistema nervoso, nem porque nosso entendimento o transformaria em

idéias e conceitos, mas porque eles e nós participamos da mesma Carne.

Merleau-Ponty, na obra O Visível e o Invisível (1964) afirma que: ―entre as

cores e os pretensos visíveis, encontra o tecido que os duplica, sustenta, alimenta, e

que não é coisa, mas possibilidade, latência e carne das coisas‖ (MERLEAU-

PONTY, 1964/2009, p. 130). Este outro lado do visível, das coisas naturais, é o

invisível que habita o campo originário das significações, vestindo-se de carne. Esse

10

Em suas primeiras obras, Maurice Merleau-Ponty se interessava por uma metafísica escondida sob a positividade científica e a idealidade filosófica. Em suas últimas obras, particularmente na abertura de Le visible et l’invisible, sua perspectiva se transformara. Interessava-se agora pela experiência da metafísica, ou mesmo pelas ―aventuras da metafísica‖, pelo não-metafísico que sustenta o discurso da metafísica (CHAUI, 2002).

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é o quiasma, a reversibilidade da carne, permitindo dizer que a carne do corpo nos

faz compreender a carne do mundo. Não se trata mais da descrição perceptiva de

um sujeito, mas da inerência corpo e mundo, em que fenômenos da linguagem e da

expressão ganham novos contornos ontológicos. Para tanto, é preciso compreender

a estesiologia, o estudo do sensível e seus sentidos.

A imersão corpo-mundo11 é possibilitada pela reversibilidade da carne, dada

pelo corpo estesiológico, uma base além da biologia, do reflexo e do próprio instinto.

Como diz Merleau-Ponty nos cursos sobre a natureza: ―esta coisa-abertura para as

coisas, participável por elas, ou que as porta em seu circuito, é propriamente a

carne‖ (MERLEAU-PONTY, 1956-1960/2006, p. 358). Ou seja, uma Einfühlung

(empatia) com o mundo, com as coisas, com os animais, com os outros corpos

(tendo esses também seu lado perceptivo), compreensível por essa teoria da carne.

Pois a carne é o que pode ser originariamente apresentado, como tal, visibilidade do

invisível (MERLEAU-PONTY, 1956-1960/2006). Continuando nesta reflexão, este

filósofo acrescenta:

Eu que vejo também possuo minha profundidade, apoiado neste mesmo visível que vejo e, bem o sei, se fecha atrás de mim. Em vez de rivalizar com a espessura do mundo, a de meu corpo é, ao contrário, o único meio que possuo para chegar ao âmago das coisas, fazendo-me mundo e fazendo-as carne (MERLEAU-PONTY,1964/2009, p. 132)

A carne é fundo imemorial, onde os signos se grudam, ficam em nós tatuados.

Ela carrega o impensado, o invisível, a sombra que permite pensar. A carne do

corpo se prolonga à carne do mundo, por uma mesma carne, uma mesma liga, por

isso que ambas não se rejeitam. Assim, interroga Merleau-Ponty: ―onde colocar o

limite do corpo e do mundo, já que o mundo é carne? O mundo visto não está ‗em‘

meu corpo e meu corpo não está ‗no‘ mundo visível em última instância; carne

aplicada a outra carne... participação‖ (MERLEAU-PONTY, 1964/2009, p. 135).

Dentro deste devir do pensamento, a ciência clássica, que antes conservava uma

opacidade do mundo, permite-se alegre e improvisadora aprender a ponderar sobre

11

Mundo como tudo que me é exterior: o outro, a cultura, a arte, a linguagem, a natureza e tudo que me afeta. Corpo-mundo como prolongamento do interior no exterior e vice-versa.

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as coisas e sobre si mesma, ―voltará a ser filosofia‖12 (MERLEAU-PONTY,

1964/2009, p.17). Segundo Chauí (2002), a filosofia do Merleau-Ponty interroga a

experiência da própria filosofia e a cegueira da consciência porque se volta para o

mistério que faz o silêncio sustentar a palavra, o invisível sustentar a visão e o

excesso das significações sustentar o conceito. Neste colorido é que retomamos o

corpo atual, que carrega uma potência latente, uma aderência ao mundo, capaz de

sensação e, portanto, é pensamento, pois é capaz de significar para além dos

significados e instaurar o conhecimento, corpo como sujeito da percepção.

Segundo Merleau-Ponty (1956-1960), o corpo humano é corpo que se move,

ou mesmo, corpo que percebe. No movimento em direção ao outro, na experiência

vivida, nasce a percepção. É preciso considerar que, na percepção, o corpo e o

objeto formam um sistema, já que toda percepção exterior é de imediato sinônima de

percepção do corpo. Oposto a isto, a percepção não seria a priori uma consciência

que desceria no corpo para apreender o objeto, como o pensamento objetivo perfila,

mas desenha uma figura sobre um fundo, ou seja, articula uma porção do visível.

Segundo Ramos (2013), a teoria da percepção nos fornece uma explicação do

posicionamento do corpo perante o mundo de tal modo que o surgimento simultâneo

do sujeito da percepção e do objeto percebido possa ser desvendado. Esse desvelar

nunca é completo, pois atrás do sujeito perdura um passado anônimo, ao mesmo

tempo em que ela escapa de si mesmo em direção ao futuro. Com efeito, a

espessura temporal da percepção nos impede de tomar o sujeito como

transparência absoluta, pois toda percepção carrega algo de anônimo, isto é, um

corpo habitual que traz consigo as estruturas do mundo. Merleau-Ponty, na

―Fenomenologia da Percepção‖, afirma:

Quando vejo um objeto, sinto sempre que ainda existe ser para além daquilo que atualmente vejo, não apenas ser visível, mas ainda ser tangível ou apreensível pela audição, e não apenas ser sensível, mas ainda uma profundidade do objeto que nenhuma antecipação sensorial se esgotará (MERLEAU-PONTY,1945/1994 p. 250).

12

Merleau-Ponty referia a um ―estado de não-filosofia‖ o apego cego tradição e pretende convidar a filosofia a se interrogar a si mesma para que, em lugar de chorar por ilusões perdidas ou agarrar-se a elas como náufrago, tivesse coragem de compreendê-las e quiçá não repeti-las (CHAUÍ, 2002).

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Nesse entendimento, na experiência a coisa se desdobra em aparições que

nunca esgotam sua profundidade. Por isso, todo o segredo do funcionamento da

percepção se esclarece quando reconhecemos que tanto o corpo quanto a

percepção da coisa não são fechados, mas sim estão em curso permanentes.

Assim, no movimento corporal há a potência, há a atitude, o ir ao outro, perceber, o

significar. A percepção, dentro desta compreensão, está atrelada à sensação, não

há diferença, posto que no sentir existe o ―há‖, há significação que nos faz

compreender a experiência vivida. Entretanto, ―aí está um dos sentidos do esquema

corporal humano‖, como afirma Merleau-Ponty (1956-1960/2006, p. 334).

Retomar essa noção é entender o corpo sujeito do movimento e sujeito da

percepção, o corpo como tocante-tocado, o vidente-visto, lugar de uma espécie de

reflexão e, através disto, capaz de se relacionar a outra coisa que não sua própria

massa, de fechar o seu circulo sobre o visível, sobre o sensível exterior, como nos

afirma Merleau-Ponty (2006). Todo este contexto fenomenológico me aponta para

uma filosofia do afeto, mas penso fundamental, nesse meio termo, refletirmos acerca

da noção de sensação para entendermos melhor a síntese perceptiva na experiência

afetiva.

Estesia do corpo

Quando se pensa em sensação, parece óbvio o ―eu sinto calor‖, ―eu sinto frio‖,

―eu sinto alegria‖, ―eu sinto tristeza‖, enfim, parece fácil quando mutilamos da

sensação o fenômeno da percepção, quando a resumimos ao pensamento objetivo e

raso do empirismo e do intelectualismo. A sensação não é um estado ou uma

qualidade, apenas impressões do objeto ou limitada aos órgãos dos sentidos, como

nos explicam os conceitos fisiológicos por um processo estímulo-resposta. Ela não é

simples, mas é complexa e misteriosa, exige um esforço corporal, uma dinâmica

com o mundo que a ciência clássica não foi suficiente em revelar. As sensações são

compreendidas em movimento, como nos afirma Merleau-Ponty: ―a cor, antes de ser

vista, anuncia-se então pela experiência de uma certa atitude de corpo que só

convém a ela e com determinada precisão‖ (MERLEAU-PONTY, 1945/1999, p. 284).

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A sensação é dada como significação que está atrelada às experiências do corpo e

não s qualidades do objeto, ou seja: ―[...] a sensação é literalmente uma comunhão‖

(MERLEAU-PONTY, 1945/1999, p. 286). Nesse entendimento, a sensação está

relacionada à ação do corpo. Essa nova compreensão de sensação como atitude

corporal modifica a noção de percepção proposta pelo pensamento objetivo que

descreve a percepção através de estímulos e órgãos dos sentidos, a partir da

causalidade linear estímulo-resposta.

Merleau-Ponty (1961/2004b), na expressão da pintura, principalmente na arte

de Cézanne, é solidário com essa noção de sensação quando afirma:

Cézanne não acha que deve escolher entre a sensação e o pensamento, assim como entre o caos e a ordem. Não quer separar as coisas fixas que nos aparecem ao olhar de sua maneira fugaz de aparecer, quer pintar a matéria ao tomar forma, a ordem nascendo por uma organização espontânea (MERLEAU-PONTY, 1961/2004b, p. 306)

Merleau-Ponty, como também Maldiney e Deleuze, viram em Cézanne o

pintor por excelência. Analisam a sensação, ou antes o ―sentir‖, não só por ele

relacionar as qualidades sensíveis com um objeto identificável (momento figurativo),

mas sobretudo porque cada qualidade constitui um campo que vale por si mesmo e

interfere com os outros (pathos). Nesta compreensão, a sensação não é oposto da

percepção, posto que na própria sensação há significação que faz compreender a

experiência vivida e suas múltiplas possibilidades de significações, mostrando que

no sentir há sentido, há conhecimento. Em O Visível e o Invisível (1964), com a

reflexão à fé perceptiva, Merleau-Ponty compreende a percepção como interrogação

da realidade, uma percepção ancorada no corpo, não em uma consciência que

sobrevoa o corpo, e que, por processos cognitivos abstratos, ordena as ações e o

próprio pensamento sem vínculos corporais, mas uma carne que está aqui e agora e

por seu curso e por sua reversibilidade se funda um corpo a outro, criando espaços

de significações, como nos afirma o filósofo:

Assim como há uma reversibilidade daquele que vê e é visto, assim como no ponto em que se cruzam as duas metamorfoses nasce o que se chama de percepções... a significação é o que vem selar, fechar, reunir a multiplicidade dos meios psíquicos, fisiológicos, linguísticos da elocução, contraí-los num ato único, como a visão termina o corpo estesiológico (MERLEAU-PONTY, 1964/2009, p. 149).

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Nesta citação, o corpo estesiológico é apontado como abertura, o poder de

um corpo que, no cruzamento de metamorfoses existenciais, inaugura o sentido, une

perspectivas diferentes e harmoniza paradoxos. Segundo Ramos (2013), uma

estudiosa das obras de Merleau-Ponty, o filósofo não considera a sensação como

estímulo pontual: a sensação convoca meu corpo para que eu a explore porque ela

remete internamente às demais características do objeto. Por conseguinte, o

conhecimento acerca da percepção equivale ao da passagem de uma sensação à

outra: processo temporal de exploração que revela uma unidade (melhor dizer

diferença) inédita propiciada por aquilo que Merleau-Ponty denomina de síntese de

transição, a qual garante que o sentido do objeto seja doado pelo próprio objeto, ou

seja, pela maneira segundo a qual esse objeto se oferece à exploração do meu

olhar.

O presente da sensação, onde há a percepção, intenciona o passado e o

futuro, ele é um campo denso e não um instante pontual, sem referências a outras

dimensões do tempo. Ao assumir essa formulação, Merleau-Ponty impede que a

compreensão de nosso acesso ao mundo implique um esquecimento da experiência

anônima do corpo ao mundo, ao mesmo tempo em que não há percepção que não

remeta ao futuro, de modo que o filósofo pode defender que a temporalidade

atravessa nossa experiência do real. Toda sensação é para mim, continua o filósofo,

a ―proposição de um certo ritmo de existência‖ (MERLEAU-PONTY, 1945/1994, p.

288).

Este filósofo, num amadurecimento de seu próprio pensamento, permite não

querer mais compreender a sensação13, ele quer senti-la, quer o êxtase, quer se

entregar aos sentidos, ele quer a interrogação, o esboço, o ser como inacabamento.

E, com isso, instaurar seu pensamento filosófico neste momento de estesia do

corpo, nesta vibração da carne. Numa compreensão ecoada nas palavras do artista

Cèzanne: ―o que eu tento traduzir-vos é mais misterioso, incrusta-se nas próprias

raízes do Ser, na fonte impalpável das sensações‖ (CÈZANNE apud MERLEAU-

13

Percebemos que houve um amadurecimento desta noção de sensação no próprio filósofo Merleau-Ponty. No seu livro Fenomenologia da Percepção ainda se vê um querer compreender a sensação, o que não se percebe em suas últimas obras, principalmente em Natureza e o O Visível e o Invisível. Nestas, o filósofo se interessa pelo êxtase, pela vibração que a sensação causa na carne e, com isso, tenta estabelecer sua filosofia neste momento de estesia do corpo.

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PONTY, 1961/2004b, p.15).

Então, quem é esse corpo que responde espontaneamente à questão

colocada pela sensação? Trata-se de um eu anônimo que, mergulhado na coisa,

unifica-se ao mesmo tempo em que apreende algo que se manifesta no exterior.

Esse eu (complexo, já que carrega em si já tantos outros eus naturais: os olhos, as

mãos, os ouvidos...), na cadência de certo ritmo, experimenta um processo aberto

de unificação (ou melhor, diferenciação) de si mesmo e da coisa (RAMOS, 2013).

Assim, como já foi dito, não podemos compreender a síntese perceptiva apartando-a

da temporalidade. De fato, quando o corpo se dirige a alguma coisa, ele já traz dela

um saber, ou seja, uma experiência sedimentada e não ultrapassada. O corpo conta

com o passado: assumindo-se no presente, ele faz deste não um instante pontual,

mas um campo denso, não somente retrospectivo, mas também prospectivo.

Deleuze (1981/2007), em sua obra Lógica da Sensação, coerente com nosso

caminho de reflexão, quando pensa a sensação a partir da pintura de Francis Bacon

e sua admiração pela arte de Cézanne, mostra-a como contrário do fácil e do "lugar-

comum", do clichê, do sensacional, espontâneo etc. Segundo este filósofo, a

sensação tem um lado voltado para o sujeito e um lado voltado para o objeto (todo

esse exterior: o fato, acontecimento, o lugar), ou melhor, sem possuir lados, a

sensação é as duas coisas indissoluvelmente, uma mistura de sujeito e objeto, uma

penetrância do exterior no interior e vice-versa, é ser-no-mundo, para dizer que ao

mesmo tempo eu me torno na sensação e alguma coisa acontece pela sensação,

um pelo outro, um no outro (DELEUZE, 1981/2007). Ela é ser no mundo como

estudada pelos fenomenólogos, entre eles Merleau-Ponty:

Fenomenólogos como Maldiney ou Merleau-Ponty viram em Cézanne o pintor por excelência. Na verdade, eles analisam a sensação, ou antes, "o sentir" não apenas no que esse relaciona as qualidades sensíveis a um objeto (momento figurativo), mas á medida que cada qualidade constitui um campo significativo par ele mesmo e interferem com os outros (momento "pathique"). É esse aspecto da sensação que a fenomenologia de Hegel produz um curto-circuito e que é, no entanto, a base de toda estética possível (DELEUZE, 1981/2007, p. 40).

De acordo com o filósofo, em proximidade com a fenomenologia, os níveis de

sensação seriam verdadeiramente domínios sensíveis remetendo aos diferentes

órgãos dos sentidos; mas cada nível, cada domínio teria uma maneira de remeter

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aos outros, independente do objeto comum representado. Entre uma cor, um gosto,

um toque, um odor, um ruído, um peso, existiria uma comunicação existencial que

construiria o momento ―pathico‖ (não representativo) da sensação.

Deleuze afirma que a obra de Francis Bacon, assim como a de Cézanne,

pinta a sensação. Ele diz que quando Bacon fala da sensação, que ele quer dizer

duas coisas muito próximas a Cézanne. Negativamente, ele fala que a forma remete

à sensação (Figura), o contrário de ver a forma remetendo a um objeto que ela

buscaria representar (figuração). Seguindo as palavras de Valéry, a sensação é

aquilo que transmite diretamente, evidenciando o desvio ou o desgosto de uma

história a ser contada. De um modo positivo, Bacon não deixa de dizer que a

sensação é aquilo que passa de uma ―ordem‖ a outra, de um ―nível‖ a outro, de um

―domínio‖ a outro. Este movimento é a razão pela qual Deleuze (1981/2007) diz que

a sensação é a mão da deformação, o agente da deformação dos corpos. Os

―corpos-sem-órgãos‖.

Esta noção de sensação, tal qual Deleuze a definiu, é fundamentada na

noção de ―corpos-sem-órgãos‖ de Artaud. É um corpo intenso, intensivo. Percorrido

de uma onda que traça no corpo os níveis ou os limites segundo as variações de sua

amplitude. O corpo não tem, portanto, órgãos. Segundo Deleuze ―o corpo é

inteiramente vivo, e, portanto, não orgânico. Assim a sensação, quando atinge o

corpo através do organismo, toma um movimento excessivo e espasmódico, rompe

os limites da atividade orgânica‖ (DELEUZE, 1981/2007, p. 24). Em plena carne ela

é diretamente levada pela onda nervosa ou emoção vital. Se bem que a sensação

não seja qualitativa e qualificada, ela só tem uma realidade intensiva que não

determina mais nela dados representativos, mas variações alotrópicas. A sensação

é vibração. Assim, a sensação, foi concebida relacionada à ideia de força. A noção

de força encontra-se aí compreendida como a instância que deflagra a sensação.

Para Deleuze (1981/2007), o cerne da sensação compreende a noção de força

responsável pelo desencadeamento do devir sensível. Para o filósofo, a sensação

remete a um devir, pois implica um ―tornar-se‖. Nesse sentido, não se trata em

hipótese alguma de imitar ou se identificar. Muito menos se trata de se adequar a um

modelo ou representação. Para Deleuze e Guattari (1992), os devires são

fenômenos de dupla captura, pois, quando alguém se transforma, aquilo em que ele

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se transforma muda tanto quanto ele próprio. A sensação é como o reencontro da

onda com Forças que agem sobre o corpo, ―atletismo afetivo‖, grito-sopro; quando

assim se remete ao corpo, a sensação deixa de ser representativa e se torna real; e

a crueldade, por exemplo, será ainda menos ligada à representação de qualquer

coisa de horrível, ela será somente a ação das forças sobre o corpo, ou a sensação

(o contrário do sensacional).

Diante de todo esse devir deste filósofo sobre a sensação, que deveras nos

auxilia em nossa construção do pensamento em torno do afeto, onde a

fenomenologia, particularmente a fenomenologia de Merleau-Ponty, foi referência

para essa estrutura de pensamento, como o próprio Deleuze (1981/2007, 1992)

menciona em seus textos, uma aproximação encontrada tanto nas discussões sobre

a sensação ligada ao corpo como potência significativa, e da forma como Deleuze

pensa o afeto.

É possível pensar que a noção de corpo como carne de Merleau-Ponty deu

aberturas para a noção de ―corpo-sem-órgãos‖ de Artaud, proposto em análise por

Deleuze, em sua relação às intensidades corporais, às experimentações do corpo e

produções de subjetividades como afirma Nóbrega (2015).

Toda este entendimento sobre a sensação, seja em Merleau-Ponty, como em

Deleuze, exige uma compreensão não pela lógica objetiva, esta não alcança a

profundidade destas reflexões, mas por uma lógica sensível, mas próxima do

humano e de suas complexidades. O sensível é o caminho dessas possibilidades de

pensamento, que expressa a existência humana de forma profunda, com suas

incertezas, sua imprevisibilidade e abertura a diferentes interpretações, unindo os

conceitos e vivências e criando a possibilidade de novas formas de elaboração do

conhecimento. É a partir da experiência sensível que atribuímos sentidos e

conhecemos o mundo, outro homem, uma história, um acontecimento, as relações.

Nesse contexto, a sensação não é apenas um dado físico, mas o sentido para mim,

o modo como as coisas, as pessoas e as situações me afetam. Por isso, o sentir já

traz uma condição afetiva.

A noção de sensível fundamenta toda a obra de pensamento do Merleau-

Ponty. Em O filósofo e sua sombra, este filósofo retoma as obras de Husserl,

trazendo o impensado de suas obras, especialmente no que se refere o tema da

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redução, da constituição e da ontologia do ser, elaborando a tese do sensível. O

sensível assume um lugar central no pensamento do filósofo Merleau-Ponty,

constituindo-se numa noção orientadora para reflexões ontológicas e

epistemológicas. O sensível desafia a análise objetiva.

A noção de sensível ultrapassa a compreensão de uma qualidade do objeto

ou impressão física, mas também como sentido, intenção, significação, desafiando

uma lógica objetiva e abrindo a possibilidade de um conhecimento mais flexível com

as disparidades dos acontecimentos e com o humano. O sensível é o ser que me

atinge no que tenho de mais secreto, em estado bruto ou selvagem, num absoluto

de presença do outro e do mundo, afirma Merleau-Ponty em O Olho e o Espírito

(1961). Ou seja, este enfatiza o sentido do corpo e do sensível como realidade

essencial do humano.

Inspiro-me na atitude do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty quando

afirma o diálogo da filosofia com o mundo de toda gente. ―Expressão que se refere

necessidade de a filosofia dialogar com a cultura, com a experiência vivida, com a

história e com as outras formas de produção do conhecimento, como a ciência e a

arte‖ (NÓBREGA, 2010, p. 10). Segundo Merleau-Ponty (1945/1994), se queres

entender mais esse corpo, é preciso vivê-lo, experimentar suas nuances. O corpo

não é coisa, nem ideia, o corpo é movimento, gesto, linguagem, sensibilidade,

desejo, historicidade e expressão criadora. Este pensador busca as verdades do

corpo em sua subjetividade, na historicidade, nas estesias das relações afetivas, nos

discursos, na linguagem poética, entre outras possibilidades da experiência

existencial. Essas atitudes são capazes de conduzir à reflexão como possibilidade

de reaprender a ver o mundo, reconvocar a sensibilidade, o poder de expressar e de

criar.

Todo o conhecimento, todo o pensamento objetivo vivem desse fato inaugural que eu senti, que tive, com essa cor ou qualquer que seja o sensível em causa, uma existência singular que tolhia repentinamente o meu olhar, e contudo prometia-lhe uma serie indefinida de experiências, concreções possíveis desde já reais nos lados ocultos da coisa, lapso de duração dado numa só vez. A intencionalidade que liga os momentos da minha exploração, os aspectos da coisa, e as duas séries uma em relação à outra, não é a atividade de ligação do sujeito espiritual, nem as puras conexões do objeto, é a transição que como sujeito carnal efetuo de uma fase do movimento para outra, por princípio sempre possível para mim porque sou esse animal de percepções e de movimentos que se chama corpo (MERLEAU-PONTY, 1960/1991, p. 184).

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O sensível é fundamentado no acontecimento, no vivido, numa sinfonia

humana e que como tal é inesperada, manchada e repleta de possibilidades, o que

torna bem difícil sua percepção por uma lógica linear, a partir de um causalismo

unívoco. É necessária outra lógica, um conhecimento sensível, mais compreensivo e

flexível com as disparidades dos acontecimentos e com o humano, assim como nos

inspira o barroco. Segundo Deleuze (1988/2015), em sua obra ―A Dobra‖, o barroco

remete não a uma essência, mas a um traço, um estilo. Ele não para de fazer

dobras. Ele não se concentra numa forma de pensamento (grega, romana,

romântica, gótica, clássicas...), mas dobra todas e redobra, leva-as ao infinito. O

traço barroco é a dobra que vai ao infinito. O filósofo diz que a dobra é envolvimento,

coesão, inerência, apenas possível por uma ótica sensível.

Essa inspiração barroca mostra um pensamento nas dobras, traz um

entendimento dessa sinergia entre perspectivas opostas. O estilo barroco surge de

um descontentamento sobre um pensamento clássico que negava à razão as

―impurezas‖ das paixões, evidenciando uma abstração da vida. Maffesoli (2014)

relata que quando se observa uma escultura, uma pintura, quando se escuta uma

música barroca, chama atenção o fato de que sua fundamental discordância se

resolve numa concordância e numa harmonia espantosa. Riqueza de forma que, de

maneira global, permite a sinergia de elementos até então totalmente separados,

contraditórios, diferentes. Aspectos incompreensíveis numa lógica objetiva. O

sensível é o que dobra o mundo ao envolvimento, parte da comunicação dos

sentidos, este fundamentado pela experiência estética. Ela, como dimensão do

sensível, expressa o belo. O belo, não sendo uma ideia ou modelo, precisa ser

experimentado, vivido, solicitando, assim, a sensibilidade, como um convite à

contemplação, segundo nos afirma Nóbrega (2010):

A experiência estética amplia a operação expressiva do corpo e a percepção, afinando os sentidos, aguçando a sensibilidade, elaborando a linguagem, a expressão e a comunicação (NÓBREGA, 2010, p 93).

Fundamentada a esses pensamentos, Nóbrega (2010) entende que o

sensível não é uma aparência confusa que precisa ser eliminada pela consciência,

nem uma simples objetivação da matéria física, mas é a realidade constitutiva do ser

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e do conhecimento que se manifesta nos processos corporais. O sensível constitui a

síntese da percepção e do movimento. Ela expressa a existência humana de forma

profunda, com suas incertezas, sua imprevisibilidade e abertura a diferentes

interpretações, unindo os conceitos e vivências e criando a possibilidade de novas

formas de elaboração do conhecimento.

Ora, as artes, abeberam-se nesse lençol de sentido bruto do qual o ativismo

nada quer saber, como se tivesse no artista uma urgência que excede qualquer

outra urgência, forte ou fraco na vida, está ali para ruminar o mundo, apenas quer ir

mais longe, segundo Merleau-Ponty (1961). Seja na dança, na pintura, na música,

ou qualquer outra expressão o artista emprega seu corpo. Merleau-Ponty

(1945/1999) ao falar da arte, afirma que a arte ―fala no silencio dos gestos, com sua

imensa capacidade de criar sentidos, de significar e de admitir uma verdade que não

se assemelhe as coisas, que não tenha modelo exterior, nem instrumentos de

expressão predestinados, e que seja, contudo, verdade‖ (MERLEAU-PONTY,

1945/1999, p. 59). Há uma razão na arte, expressada no gesto, que é manifestada

por sua incrível capacidade de significar, de criar espaços de diversas

possibilidades. Nóbrega compartilha tais reflexões ao afirmar que ―a arte, a poesia,

a pintura, a dança apresentam-se como conhecimentos cuja racionalidade é

marcada pela estesia do corpo, nuançando sentidos amplos para a comunicação, a

expressão e os atos de significação‖ (NÓBREGA, 2009, p. 19).

Esta fenomenologia do sensível é profundamente marcada pelo encontro do

olhar com a significação, processo em que não há separação entre a expressão e o

expresso, o ato e a significação, bem expressada na estesia do corpo. Merleau-

Ponty afirma: ―a visão é o encontro, como numa encruzilhada, de todos os aspectos

do ser‖ (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 53). O ver não está ligado ao órgão da visão,

mas a uma noção de entrelaçamento do objeto e do sujeito, de um no outro, de uma

afetação mútua, aonde nasce a significação pela possibilidade do corpo

estesiológico. A estesia do corpo é uma noção proposta na fenomenologia de

Merleau-Ponty, principalmente refletida nos livros Le Visible et Le Invisible (1964) e

Resumé de Cours – 1952-1960 (1968)14, que expressa o corpo capaz de sensação,

aberto ao outro e, diante disso, multiplicador de sentidos.

14

Especificamente as notas sobre o corpo.

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49

Segundo Merleau-Ponty (2009), no entrelaçamento possível com o outro dado

pela experiência do corpo, as propriedades do objeto e as intenções do sujeito não

apenas se misturam, mas constituem um todo novo. Este movimento vivo,

necessário e expressivo se estabelece na estesia do corpo através da

reversibilidade dos sentidos. Assim, para o irrefletido, para o impensado, parte o

movimento da reversibilidade, vai em direção aos mistérios do mundo, ou seja, para

um novo encanto. Quando a carne do corpo se propaga à carne do mundo, e a do

mundo para a do corpo, nesta reversibilidade, deste entrelaçamento é que nasce a

percepção. Concebida pela experiência vivida através do corpo em movimento, a

percepção aflora sentidos diversos, o que faz Merleau-Ponty (1964/2009) afirmar

que a relação corpo–mundo é estesiológica, portanto afetiva. Nessa relação, a

comunicação entre diferentes corpos ocorre através do jogo dos sentidos.

Considerando-se que é a sensorialidade que anima a carne e que abre o corpo para

o mundo. É a realidade do corpo que nos permite sentir e, portanto, perceber o

mundo, os objetos, as pessoas, e mediante a essas experiências, sonhar, desejar,

imaginar, pensar, narrar, conhecer e escolher (NÓBREGA, 2010).

Segundo Merleau-Ponty (1960/1991), aqueles que, mediante o afeto e o

desejo, chegam até esse Ser de profundidade sabem o que é para saber e a filosofia

não os compreende melhor do que eles mesmos se compreenderam, pois eles que

vivenciaram, sentiram, amaram e isso é uma verdade expressa na estesia do corpo.

É nesta experiência desses atores que a filosofia conhece o Ser. Nóbrega (2010),

em sua dedicação aos estudos sobre a noção de estesia em Merleau-Ponty, afirma

poeticamente que:

A estesia do corpo proposta na fenomenologia de Merleau-Ponty apoia-se em uma compreensão erótica da vida e do conhecimento que ultrapassa as dicotomias clássicas e o racionalismo. A percepção erótica irá permitir uma forma de compreensão da relação corpo-mundo não da ordem do eu penso, à maneira do cogito cartesiano, mas do eu vivo, eu sinto, eu amo (NÓBREGA, 2010 p. 95).

A estesia do corpo é um êxtase da existência proporcionado pela dança dos

sentidos. A mistura, pela dança do entrelaçamento. Poder do corpo como carne,

como possibilidade, objeto/sujeito, visível/invisível, simbolismo, enigma, criação e

desejo. Todo este misto e mais se urgência no corpo, este afetuoso que nos põe em

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presença, em contato, em penetração ao outro por uma incrível capacidade de

sensação. A estesia do corpo inaugura o agora, o presente, inaugura o afeto, as

ligaduras, assim como o amor fati em Nietzsche (1882) em Gaia Ciência, que ama

ao que está agora, ―apenas alguém que diz sim!‖ 15 (NIETZSCHE, 2001, p 276). Diz

sim ao acontecimento, a experiência, ao entrelaçar ao outro, ao sentir, ao afeto, ao

significar. É a partir da experiência sensível que atribuímos sentidos e conhecemos o

mundo, outro homem, uma história, um acontecimento, as relações. Nesse contexto,

a sensação não é apenas um dado físico, mas o sentido para mim, o modo como as

coisas, as pessoas e as situações me afetam. Por isso, o sentir já traz uma condição

afetiva. Ao lançar um olhar sobre esse corpo estesiológico, capaz de sensação,

Merleau-Ponty abre espaço para o sentir e uma compreensão dos afetos e das

emoções que nos fazem existir.

O Afeto

Entendemos o afeto para além de uma classificação das emoções positivas,

fraternas, de um entendimento do senso comum, como já mencionamos na

introdução, e como distinguido do caráter ―exclusivista‖ e ―dominante‖ da paixão16‖

(ABBAGNANO, 2014). Vestimos o afeto de um entendimento fenomenológico, a

possibilidade de um corpo sensível que pelo amor ou pelo desejo se joga ao mundo

para interrogar sua existência e dele apreende sentidos, um corpo que afeta e ao

mesmo tempo afetado. Nesse sentido, o afeto encontra sua possibilidade no corpo

estesiológico, pois mesmo antes da experiência, o corpo, como esquema corporal,

estesiológico, já nos deram a empatia com o ser percebido e com outros corpos.

Esse corpo como poder de empatia já é desejo, libido, projeção-introjeção,

identificação, posto que a estrutura estesiológica do corpo humano é, portanto, uma

15

―Amor fati: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz sim!‖ (NIETZSCHE, 2001, p. 276). 16

A paixão no sentido do senso comum como se entende quando a pessoa se enamora por outra e perde a ―razão‖, e não o sentido que exaltamos na tese desse corpo sensível que se abre ao mundo pelas paixões no sentido de ser afetado e afetar.

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estrutura libidinal, um enraizamento natural de ir ao outro como condição de

existência, de ser. Assim como nos afirma Merleau-Ponty (1956-1960/2006, p. 340):

Antes de experimentar, observe-se que o corpo, como esquema corporal, o corpo estesiologico, a carne, já nos deram a EINFÜHLUNG (empatia) do corpo com o ser percebido e com os outros corpos. Quer dizer que o corpo como poder de EINFÜHLUNG já é desejo, libido, projeção-introjeção, identificação – a estrutura estesiologica do corpo humano é, portanto, uma estrutura libidinal, a percepção um modo de desejo, uma relação de ser e não de conhecimento. Paralelamente ao estudo do corpo estesiologico, seria necessário um estudo do corpo libidinal e mostrar que existe um enraizamento natural do para outrem (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 334).

O entendimento do corpo como possibilidade de empatia17 mobiliza a busca

pelo outro. Nesse trecho acima, Merleau-Ponty lança flecha certeira em nossas

intenções de pesquisa. Aqui há aberturas para entendermos o afeto a partir da

estrutura estesiológica do corpo. Posto que há a relação entre o afeto e a

sexualidade, pois a estrutura estesiológica do corpo humano é estrutura libidinal, é

desejo. A sexualidade tem um papel importante desde as primeiras obras de

Merleau-Ponty (1945) para compreender o engajamento do corpo. A compreensão

que se dá pelo corpo antes mesmo de chegar à clareza da ideia é o que confere a

sexualidade lugar privilegiado para conhecermos a dimensão da experiência que

originariamente nos enlaça aos outros e faz as coisas existirem para nós e esse

sentido afetivo, relacionado à sexualidade, faz-nos entrar no jogo do amor, da

amizade, do ódio ou da rejeição, ou do que ainda não tem nome, mas é o sentir

mesmo.

Ramos (2013), ao interpretar Merleau-Ponty, diz que a sexualidade significa

uma dimensão instaurada pelo corpo segundo a relação que o sujeito estabelece

com outros corpos, ou seja, ele é o modo pelo qual o corpo estrutura sua ligação

afetiva com os outros e, em consequência, desenha o sentido da sua própria

existência. Por isso, no limite, a sexualidade não é uma representação consciente ou

inconsciente, pois pensá-la de um modo ou de outro implicaria negligenciar aquilo

que a sustenta como a multiplicidade de fios intencionais afetivos que fazem a trama

17

Maffesoli (2005; 2014) diz que a empatia, junto com a imaginação, a intuição, são dados ao risco do sensível e podem ser chamados de um erotismo do conhecimento. Ele diz que o que faz sobressair a empatia é que Eros, como conjunto das pulsões de vida, me leva a ficar descentrado em relação a mim mesmo.

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de uma vida que se escapa de si mesmo. Com isso, Merleau-Ponty ao alargar os

pensamentos da psicanálise, aponta para uma sexualidade que ancorada no corpo

permite abertura pelo amor e pelo desejo de uma dimensão de relações afetivas que

torna esse corpo sexuado capaz de estruturar um sentido que se realiza no

movimento da existência.

Procuramos ver como um objeto ou um ser põe-se a existir para nós pelo desejo ou pelo amor, e através disso compreenderemos melhor como objetos e seres podem em geral existir (MERLEAU-PONTY, 1945/1994, p. 213)

Ele procura mostrar que também a afetividade, como todos os campos

existenciais, não pode ser explicada pelo realismo ou pelo idealismo, já que ela não

é nem um mosaico de estados afetivos, de prazeres e dores fechados sobre si

mesmos, nem um poder de representação dominado pela consciência. Pelo

contrário, a afetividade concerne à nossa existência total- ela é uma dimensão

integral de nossa experiência- e só o prejuízo do mundo permite compreendê-la de

outro modo. Há, portanto, uma originalidade da experiência anônima da sexualidade

capaz de ligar os corpos e de criar um campo erótico onde a afetividade se

desenrola. Merleau-Ponty jamais abandona o projeto de mostrar que somente por

meio da percepção me descubro inserido num mundo que comporta outras

sensibilidades tais como a minha.

O afeto é a busca de si no outro, num processo de interrogação e

conhecimento e, para melhor entendermos isso, Merleau-Ponty, quando ministrou o

curso na Sorbone, assumindo a cadeira da Psicologia e Pedagogia da Criança

(1949-1952), recorre à infância e ao impensado em Lacan. Como o psicanalista,

Merleau-Ponty afirma que a visão do corpo é incompleta. De fato, Lacan, assevera

que o acontecimento segundo o qual a criança assume a imagem corporal, seja se

vendo através do espelho, seja se vendo no outro, é um marco, pois a imagem de si

começa a ter função de integração do corpo, dando sentido ao esquema corporal.

Para Lacan, só me reconheço quando me exteriorizo no outro. O ser humano não vê

sua forma realizada, total, a miragem de si senão fora de si (LACAN apud RAMOS,

2013).

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Para Merleau-Ponty (1949-1952/2006b), entretanto, o essencial do estádio do

espelho se resume a mostrar que, quando a criança reconhece como sua a imagem

do espelho, ela reconhece também que há um espetáculo de si mesma. Essa

aspecto é decisivo para compreender como o sujeito captura sua própria imagem à

medida que a projeta no outro, ou melhor dizendo, à medida que vê seus

comportamentos capturados pelo olhar do outro: o outro é a testemunha capaz de

atestar minha existência ou minha presença.

Preciso que a criança compreenda que há dois pontos de vista dela própria, que seu corpo que sente é igualmente visível não só para ela, mas para os outros. Há, pois, solidariedade entre o desenvolvimento da imagem especular e o desenvolvimento da relação com o outro (MERLEAU-PONTY, 2006b, p. 526).

A anexação pela criança de sua imagem e a consequente tomada de posse

de seu corpo e de suas operações vitais, encontra-se em estreita relação com a vida

afetiva, tendo em vista que compreender a imagem especular significa integrar

novos dados ao esquema corporal por meio da interação com os outros. Merleau-

Ponty (1956-1960/2006) afirma que ser corpo é estar ligado ao olhar do outro. Ter

um corpo visível significa estar num jogo de relações: sou visto, passo a ter um

papel em relação aos demais. A pessoa não é originariamente uma presença a si,

mas sim abertura de um campo de experiência. Abertura esta que carrega um estilo

interrogativo e desejante, encarnado, o qual só pode ser compreendido na abertura

à exterioridade, isto é, no movimento de si no outro. Em suma, entro no outro para

interrogá-lo sobre minha própria existência.

Em Maffesoli (2014) – este que busca uma compreensão erótica da existência

e dos fenômenos sociais que não é da ordem do entendimento, mas do desejo, da

paixão, mesmo esforço de pensamento da filosofia de Merleau-Ponty, ―já que o

entendimento compreende percebendo uma experiência sob uma ideia, enquanto o

desejo compreende cegamente, ligando um corpo a um corpo‖ (MERLEAU-PONTY,

1945/ 1994, p. 217) - o afeto exprime a poesia da existência, essa vida que se

movimenta por ordo amoris18, isto é, a ordem dos afetos, a ordem do amor,

ordenamento societal em que os afetos, os sentidos, a razão sensível, as paixões e

18

Ordem do amor. Maffesoli (2014) traz o que Scheler chama ordo amoris, uma erótica social.

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emoções se ajustam harmoniosamente, a fim de sustentar uma natureza que precisa

dessa erótica social. Esta vida cujo os efeitos não podemos negar é a dos afetos. É

estar-com. O estar-com é sempre tensional, em perpétuo devir. Não ser nada em si

mesmo, mas tudo a partir do Outro, é isso que permite ligar-se, juntar-se com os

outros. O mistério do amor é sua expressão absoluta. Maffesoli (2014, p. 103) diz ―o

preço das coisas sem preço‖, incita a sair de si, a ―despedaçar-se‖ no outro. De

alguma forma, um aniquilamento devolvendo sentido ao ser-em-comum, ao estar-

com natural e social. O preço das coisas sem preço como sendo o coração que bate

do viver-junto. Assim, Maffesoli afirma: ―se existe uma lei universal que rege o

gênero humano, é que não se é aquele que se vê no espelho, mas, sim, aquele que

se reconhece no olhar do Outro. É a alteridade que me faz existir‖ (MAFFESOLI,

2014, p. 105).

O ordo amoris é um ser amoroso ilimitado. Um ser enraizado no sentimento,

fazendo do estado amoroso não mais um encerramento em um si individual, nem

sobre um ―duo‖ (o do casal) absolutamente, mas, sim, como um estado de difração

em perpétuo devir. Nesse sentido ―ser amoroso‖, uma vez evacuada toda conotação

açucarada para uso dos romances, constitui uma espécie de síntese disseminadora,

espalhando aqui e acolá uma energia que constitui, secretamente, o ligame societal,

inaugurando ligações afetivas. Um ordenamento que o amor tem seu lugar. Segundo

Maffesoli (2014), não se trata, é claro, de um amor que se pode reduzir à esfera

privada. Nem de um amor que designa o sentimento experimentado por duas

pessoas uma pela outra. Todavia, é uma ambiência geral, partindo do princípio que

nós estamos imersos em uma atmosfera estética que é feita de emoções e afetos

compartilhados, na qual elabora e se desenvolve uma maneira tensional de se

lançar ao outro.

O amor em questão, o pathos, em seu sentido pleno, é um termo cômodo

para designar uma ambiência geral na qual se elabora e se desenvolve uma maneira

de estar-junto, dados pela empatia. O que faz sobressair a empatia é que Eros,

como conjunto das pulsões de vida, me leva a ficar descentrado em relação a mim

mesmo. Em O Banquete, Platão mostra que o Amor reconhece seu estado de

indigência: o outro é necessário. Em resumo, o milagre não está no Eu, mas no Nós.

O ordo amoris, segundo Maffesoli (2014), celebra o aspecto-prospectivo de um

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barroco- as leituras em Deleuze (1988/2015) o ajudaram nessa associação- , que

exprime ―a agitação vitalista, a turbulência dinâmica‖ e assim anunciam um novo

mundo no seio do qual o mítico, o lúdico, o passional, evidenciam a dobra afetiva.

Segundo Andrieu (2004), ao abordar o corpo do ator e suas interpretações,

afirma que, ao encenar o amor, este se obriga à alteridade: perante a fusão de si no

outro, do sujeito no seu ator; possui a nascença de conhecimento, se não dos

outros, pelo menos de si próprio. Pois, para interpretar o amor, ele precisa se agarrar

em suas experiências afetivas, pois mesmo a encenação do afeto sendo verdade,

não pode representar-se. Assim também um bailarino a interpretar uma trama de

amor, assim com Lecuona. O afeto é conhecimento, eu vou me conhecendo nesse

jogo de relações, é a tensão de uma existência em direção à outra existência num

jogo de negação e aceitação, mas sem a qual, todavia, esta existência não se

sustenta. O corpo amoroso que possibilita o afeto traça a existência pessoal, é esse

corpo estesiológico, que traça em todo tempo uma oportunidade do amor, da

sensação, oportunidade de afetar e ser afetado, posto que nesses momentos de

estesia, elementos nos são fornecidos para se pensar os conhecimentos do corpo.

Na realidade, não existimos nem eu nem o outro como positivos, subjetividades positivas. São dois antros, duas aberturas, dois palcos onde algo vai acontecer- e ambos pertencem ao mesmo mundo, ao palco do Ser (MERLEAU-PONTY, 1964/2009, p. 237)

Assim como aponta Merleau-Ponty na citação acima, a estrutura estesiológica

do corpo e suas possibilidades de afeto, são aberturas, inaugura o acontecimento e

continua a interrogar a psicanálise sobre a teoria do sujeito que deseja. Com

discordância para as noções clássicas de desejo apenas como falta do objeto, mas

trazemos a tona esse desejo como potência, como devir, como querer o risco como

criação, segundo Deleuze e Guattari (2010). O Eros, aliás, não sendo compreendido

como um efeito ou uma força orientada, mas um querer a realidade que se faz

permanente.

Esse corpo estesiológico já é desejo, que deseja segundo sua própria lógica,

por a própria disposição, coisa percebida que se percebe e dessa forma penetra o

mundo e dele se deixa ser penetrada. Massa de prazeres e de dores, que estão

fechados sobre si mesmos, mas nos serve para sofrer e desfrutar do mundo dos

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outros. O mundo e os outros tornam-se nossa carne (MERLEAU-PONTY, 1956-

1960/2006). Assim, o afeto é viver no outro por um investimento na vida, uma outra

dimensionalidade do saber, por um espaço de liberdade, de atuação do meu corpo

carnal, por abertura de uma profundidade que por perceber, torno-me percebido. O

afeto é a liga do ferir e do ferido, ela cria sua lógica na perplexidade, nas diversas

possibilidades de experiência e nos lembramos humanos, esta complexidade de

relações.

Segundo Deleuze e Guatttari (1992), nas aberturas encontradas por estes na

fenomenologia da afetividade de Merleau-Ponty (1945), o afeto não é a passagem

de um estado vivido a um outro, mas um devir do corpo, não é uma imitação, uma

simpatia vivida, nem mesmo uma identificação imaginária. Não é a semelhança,

embora haja semelhança. ―É antes uma extrema contiguidade, num enlaçamento

entre duas sensações sem semelhança‖ (DELEUZE; GUATTARI, 1992, pp. 224-25).

Trata-se de algo que se passa ―entre‖, de um ao outro, formando zonas, devires.

Esse algo é a sensação. Neste sentido, eles dizem que o afeto é uma zona de

indeterminação, de indiscernibilidade. Para estes autores, apenas a vida cria essas

zonas onde ―turbilhonam os vivos‖ (idem, 1992, p. 225). Por sua vez, apenas a arte

pode atingi-la e penetrá-la em sua empresa de cocriação. É de toda a arte que seria

preciso dizer: o artista é mostrador de afetos, inventor de afetos, criador de afetos,

capaz de ―sacralizar‖ o outro. Interessante essa noção de sagrado, assim como

Ferry (2013) coloca no livro Do Amor. Este autor diz que o amor, esta sensação que

―nunca conheceu leis‖ (FERRY, 2013, p. 73), sacraliza o outro. Esta ideia de sagrado

mostra-se não como garantia sobrenatural, pureza, ligado a Deus, a um dualismo

sagrado versus profano, mas o sagrado por ser percebido, sentido, por ter criado a

possibilidade do afeto. Esta sacralização se deu, pois houve a inscrição no corpo,

estabeleceu-se conexões, ultrapassou-se a esfera do visível, do natural, descobre o

invisível. Posso dizer que o afeto sacraliza o outro, veste-o da minha carne.

O afeto carrega o espírito barroco nas inspirações de Deleuze (1988/2015),

este pensando pela gramática barroca, diz que o predicado não é um atributo do

sujeito, mas relação e acontecimento. O predicado é a ―execução da viagem‖ e

todas as sensações envolvidas, é o ato, o movimento e não um estado. Pensar o

afeto significa pensá-lo em movimento, sem reduzi-lo a um pensamento de um

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atributo constante, mas um predicado entendido como passagem incessante de um

pensamento a outro por dobras e redobras para voltar a dobrar num movimento

infinito. Amar não é um estado, amar é um movimento da existência, amar é um

predicado pensando numa gramática barroca. Na lógica dos acontecimentos de

Leibniz, ao ter seu pensamento e seu espírito barroco refletido por Deleuze

(1988/2015), o próprio mundo é acontecimento e, enquanto predicado, deve estar

incluído em cada sujeito como um fundo do qual cada um extrai as maneiras que

correspondem ao seu ponto de vista, as formas de viver, nas formas de amar, nas

formas de lidar com o outro, nas ligações afetivas. Ou seja, as maneiras são os

predicados particulares e o sujeito é o que passa de um predicado a outro como de

um aspecto do mundo a outro.

Assim, estamos em todo tempo num movimento que me liga as ações e que

me constitui como ser de relações. Dentro dessas verdades, Schilder ao ser citado

por Merleau-Ponty (1956-1960/2006) nos auxilia ao afirmar que o esquema corporal

é libidinal e sociológico. Ou seja, deseja o outro e além de tudo necessita se

relacionar-se com ele. Daí parte as experiências, dadas pelas sensações, que

possibilitada por este corpo operante de afeto, por um espaço de afeto

(Ineinander19), constrói o ser.

O ser como continuidade, que não veio do determinado, mas tem

historicidade. Quando Merleau-Ponty menciona o corpo estesiológico (capaz de

sensação), é esse corpo do ser selvagem, vertical, trazido à reflexão por este

filósofo. O Ser Selvagem amplia a existência, Ser que se atreve em busca de novos

espaços, sensações, reinventando novas formas de ser e estar no mundo. É o ser

da criação e da indivisão. Este Ser nos pensamentos de Merleau-Ponty se revela no

corpo em movimento, na reversibilidade com os outros, habita a experiência

estesiológica, habita o invisível, os abismos, as brechas que nos levam a pensar.

Posto que a percepção é o que une o ser selvagem ao corpo e inaugura a

possibilidade.

E tal possibilidade efetiva-se na percepção como vinculum entre o ser bruto e um corpo. Todo o enigma da Einfühlung está em sua fase

19

Entrelaçamento eu-mundo, eu-natureza, eu-animalidade, eu-socius. Este dado no momento da estesia dos encontros, por dois corpos que se percebem, cria-se um espaço de afeto.

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inicial, ‗estesiológica‘, e aí é resolvido porque é uma percepção (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 188).

Como uma criança que tem o mundo para descobrir e se encantar. Assim,

como afirma Merleau-Ponty: ―porque encontramos no ser bruto, selvagem, vertical,

presente, uma dimensão que não é a da representação nem a do ‗Em Si‘‖

(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 343), mas o Ser de incorporação. O Ser Selvagem é o

ser que não é determinado por classificações, taxionomias, especulações,

determinismos de nenhuma ordem. O Ser Selvagem é o ser da criação, quer dizer, é

um ser que não pode ser descrito inteiramente pela ciência, pela filosofia, pela

psicanálise (NÓBREGA et al. 2008). Em Onqotô, obra do Grupo Corpo, narrada

fenomenologicamente na pesquisa ―O Corpo do Grupo Corpo‖ (DA SILVA, 2013),

vemos esta dança barroca do Ser Selvagem num jogo ambivalente de quem se

descola do onde, entre o chão, o não e o nada. Esta ligação se faz com os corpos

que sobem para cair, ou que caem para subir, porque estão experimentando o pesar

do peso. Porque estão sempre vindo do outro e indo ao outro, descobrindo os

mistérios, coincidindo os paradoxos.

Nesse sentido, o Ser é invasão, promiscuidade, como afirma Nóbrega (2016).

Merleau-Ponty, em nota de trabalho datada de fevereiro de 1960, diz: ―nossa vida é

afecção, presença no mundo através do corpo e presença do corpo através do

mundo, sendo carne e linguagem. A razão está nesse horizonte, é promiscuidade

ser e mundo‖ (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 288).

A experiência estesiológica nos dá o risco, somos entregues a boas ou más

sensações compartilhadas, a vários pontos de vistas, novos e inesperados

significados. Isso não deixa de ser um milagre, uma realidade que nos diferencia das

máquinas, das coisas, e nos permite questionar, criar, escolher, e só acontece

quando um corpo vai em direção ao outro e o incorpora. A literatura de Jean

Paulhan, ao ser citado por Merleau-Ponty em Linguagem direta e as Vozes do

Silêncio (1991), convida-nos a esse sentido: ―nesse instante, pelo menos, eu fui tu‖

(JEAN PAULHAN apud MERLEAU-PONTY, 1991).

O corpo, a estesiologia, emerge da vida e do desejo. Não pensando esta

estesiologia como um pensamento que desce num corpo, sem vínculos corporais. O

segredo deste pensamento que Merleau-Ponty interroga está nos acontecimentos e

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na ligação entre as coisas e profundidade de sua expressão. Eu posso por meio da

motricidade sentir estesia, este sentido está na presença, no corpo (NÓBREGA,

2010). Vibração do corpo no movimento, no presente, atado ao corpo e aos

sentidos. Todos os sentidos misturados. Não ―Em si‖, mas tudo isso. Entrelaçamento

do movimento e percepção, graças ao corpo como sensível-exemplar, estesiológico

e afetuoso. Entre outras questões, a estesiologia abre o meu corpo para o exterior,

incorporação, um corpo poroso com orifícios e passagens, que é também a indivisão

do meu corpo e dos outros corpos (NÓBREGA, 2010).

Esta carne como capaz de sensação, como sensível sesciente, como aparece

na vida? A estesia é, se não localizada, pelo menos não é independente da

localidade. A estesiologia não está na minha cabeça ou no meu corpo e muito

menos em outro lugar. Ela é percebida num espaço de liberdade, de relação. Surge

por um investimento na vida. Por acontecimento, por estes encontros e envolvimento

dos corpos. Ou seja, ―a estesiologia é esta união da alma e do corpo levada a sério‖

(MERLEAU-PONTY, 1956-1960/2006, p.360). Ela é esta capacidade do corpo em

mostrar que inventamos em todo tempo um grande modo de viver o amor, de

concordar com a condição sublime e terrível de sermos humanos que pensam, logo

amam, logo existem, logo são corpos. De lidar com o que é complexo de forma

complexa. De complicar as coisas ao ponto da harmonia. O corpo e seus afetos é

esse viver para sofrer e amar. É preciso viver. Porque a gente ―topa tudo na hora‖. A

gente tem sangue quente. O sangue jorra e tudo bem, a gente chora e tudo vem. O

que é quente é preciso. É preciso viver para os próximos corpos que vão topar com

a gente. E nestes acontecimentos percebemos a sinergia da razão e o sensível. E

Mafessoli (2005), saúda nossas reflexões ao afirmar que:

Assim se exprime a sinergia da razão e do sensível. O afeto, o emocional, o afetual, coisas que são da ordem da paixão, não estão mais separados em um domínio à parte, bem confinados na esfera da vida privada; não são mais unicamente explicáveis a partir de categorias psicológicas, mas vão tornar-se alavancas metodológicas que podem servir à reflexão epistemológica, e são plenamente operatórias para explicar os múltiplos fenômenos sociais, que, sem isso, permanecem totalmente incompreensíveis. Em outras palavras, é preciso fazer de uma fraqueza uma força inegável (MAFFESOLI, 2005, p 53).

Maffesoli, influenciado pela fenomenologia, principalmente em Heidegger,

como também em Husserl, é bem provável ter lido Merleau-Ponty, não tenho esse

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registro, mas seus pensamentos se aproximam ao fazerem o elogio da sensibilidade,

ao dar abertura ao amor, ao desejo, aos afetos, a imaginação, em congruência a

uma erótica social em Maffesoli, que se aproxima de uma compreensão erótica da

existência em Merleau-Ponty, devolvendo uma inteligibilidade sensível ao

pensamento. Posto que, o que é tido pelo pensamento objetivo como uma fraqueza,

a paixão, os afetos, as sensações, nada mais é que uma força que liga os

acontecimentos e nos dá o caminho para se compreender os múltiplos fenômenos

da existência e permitir construir um pensamento mais orgânico e mais perto do

mundo, que, sem esta disposição sensível, não passaria de mera abstração. Esses

pensamentos estão perto do mundo, estão nos acontecimentos, numa

inconformidade com o perfeito, com o absoluto, inaugura a possibilidade do sentir

como experiência e conhecimento. Está aí as pistas para se pensar uma educação

estesiológica, uma educação solidária ao outro, ao sentir. No próximo capítulo

entraremos no mundo da arte, particularmente da dança, para esta nos dá o afeto,

ou como diz Deleuze e Guattari (1992), para nos mostrar, inventar e criar afetos, dá-

nos a liga, nos lembrarmos de nossa contingência e de nossa humanidade.

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SEGUNDA TRAMA:

O CORPO E AS POÉTICAS DA DANÇA

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Uma dimensão estética: a dança dos vagalumes

Os artistas, assim como os filósofos, nunca estão no centro de si mesmos,

eles são rodeados pela miséria empírica do mundo e pelo mundo que devem realizar

e revelar pela obra. Esta não é efeito das condições dadas, do momento histórico

vivido, das ordenações soberanas dos séculos, mas resposta e, quiçá, resistência a

estes, por isso é enraizamento e ultrapassagem, isto é, criação radical. Assim, os

artistas interrogam o mundo, a si mesmo, seu próprio trabalho, não podendo parar

de pintar, compor, dançar, escrever, pensar. Sua obra é interminável porque nunca

abandonaremos nossa vida e o mundo. Neste movimento da arte, começamos as

argumentações deste capítulo apresentando uma relação metafórica encontrada no

livro Sobrevivência de Vagalumes de Didi-Huberman (2011). Este filósofo ilustra um

pensamento estético através da imagem dos vagalumes de Dante Alighieri em A

Divina Comédia, escrito no século XIV, relacionando-os com os vagalumes das

crônicas de Pier Paolo Pasolini, escritas no século XX. Didi-Huberman (2010; 2011),

em suas leituras de Merleau-Ponty, evidencia que não há estética possível sem a

sensorialidade e nos aponta, do ponto de vista empático, para uma estética que

evidencia a imagem como experiência.

No entanto, tomando empréstimo dessas expressões ―luminescentes‖ de Didi-

Huberman (2011), adentramos no mundo da arte e convocamos a dança e,

especialmente, um fenômeno brasileiro Grupo Corpo e suas artimanhas poéticas

como clarões de sentidos, como ―vaga-lumes – seres luminescentes, dançantes,

erráticos e resistentes enquanto tais – sob nosso olhar maravilhado‖ (DIDI-

HUBERMAN, 2011, p. 23). Mergulhando melhor nesta metáfora, traçamos uma linha

de reflexão poética para pensarmos a capacidade da arte, propositalmente da

dança, suas poéticas e seus fluxos estéticos, como contribuição afetiva e

interrogativa da existência.

Na obra A Divina Comédia, em seu vigésimo sexto canto do ―Inferno‖, Dante

observa a oitava vala: dos ―conselheiros pérfidos‖, ele vê constelações de chamas,

assim como pequenas luzes que ele compara a vagalumes, incitando nesta obra um

grande contraste entre a luz deslumbrante do Paraíso e os vislumbres de luz dos

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espíritos mesquinhos do mal. Neste último caso, afirma Didi-Huberman (2011) tal

seria a ―glória‖ miserável desses condenados:

Não a grande claridade das alegrias celestiais bem merecidas, mas o fraco lampejo doloroso dos erros que se arrastam sob uma acusação e um castigo sem fim. Ao contrário das falenas que se consomem no instante extático de seu contato com a chama, os pirilampos do inferno são pobres ‗moscas-de-fogo‘ - fireflies, como se chamam em língua inglesa os nossos ‗vaga-lumes‘ - que sofrem em seu próprio corpo uma eterna e mesquinha queimadura. Plínio, o Antigo, inquietou-se, outrora, com uma espécie de mosca chamada pyrallis ou pyrotocon, que só podia voar no fogo: ‗Enquanto ela está no fogo, ela vive; quando seu vôo a afasta dele um pouco mais, ela morre.‖ Assim, a vida dos ‗vaga-lumes‘ parecerá estranha e inquietante, como se fosse feita da matéria sobrevivente - luminescente, mas pálida e fraca, muitas vezes esverdeada - dos fantasmas. Fogos enfraquecidos ou almas errantes (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 13).

Assim, esses aparentes vagalumes do ―Inferno de Dante‖ são condenados a

esse fogo estranhamente humano que atormentam seu corpo e os lembram de seu

passado, seus fantasmas, seus erros que não os deixa jamais subir às grandes

Luzes do Paraíso. Diante desses sentidos dantescos que envolve de mistério essa

obra medieval, traz uma potência poética que inebria um pensamento moderno

sobre o homem e as paixões humanas.

Vagalumes vistos por Pier Paolo Pasolini ao ler A Divina Comédia. Graduado

em letras, estudioso da arte, escritor e cineasta, era leitor assíduo da poesia

moderna, mas não se esquece do poeta medieval Dante Alighieri e relê A Divina

Comédia com outros olhos: mais por sua labiríntica variedade que pela perfeição

composicional do grande poema; mais pela exuberância de suas formas de

expressão que pela beleza e pela unidade de sua língua; mais pelas descrições das

coisas terrestres e paixões humanas do que pela imaginação das entidades

celestes. Assim, encanta-se pelos erráticos vagalumes de Dante e os usa

metaforicamente em sua crônica de 1941, por sua vez, coloca-os como resistência

antifascista que emitem seus sinais discretos, porém insistentes, diante de todas as

grandes luzes do poder fascista que imperava na época.

No universo de Pasolini, essa resistência de pirilampo é exemplificada pelos

personagens excepcionais e extáticos de suas crônicas e seus filmes que como tais

iluminam ―erráticos, intocáveis e resistentes‖ em momentos de alegria e furor. São

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esses momentos de graça, frágeis e fugazes, que resistem ao mundo do terror. Em

1975, três décadas depois da primeira crônica, Pasolini retoma a metáfora dos

vagalumes na perspectiva de uma Itália pós-guerra e aparentemente democrática.

Em lugar da luz fascista e totalitária, Pasolini agora critica o que vê como um

―neofascismo‖ implícito na cultura da modernidade espetacular capaz de eliminar as

resistências populares por via de tolerância repressiva e integração perversa na

sociedade de consumo.

Todo este contexto, de Dante a Pasolini, é apresentado por Didi-Huberman

(2011), este atravessando também Walter Benjamin e Giorgio Agamben, para assim

fazer brilhar os vagalumes do pensamento questionador, transgressor, poético, que

nos faz voltar aos afetos e à experiência estética (pois os vagalumes são machos e

fêmeas, iluminam-se para chamar e chamam para copular, para se reproduzir),

assim como o filósofo em questão deixa claro que é a especialidade da arte.

Didi- Huberman (2011), ao concordar com Pasolini, diz que a arte e a poesia

valem como esses lampejos de vagalumes, ao mesmo tempo eróticos, alegres e

inventivos. Clarão errático, certamente, mas clarão vivo, chama de desejo e de

poesia encarnada. Ora, toda a obra literária, cinematográfica e até mesmo política

de Pasolini parece de fato atravessada por tais momentos de exceção em que os

seres humanos se tornam vaga-lumes. Didi-Huberman, então, compara as luzes dos

vagalumes como reflexo de uma dança viva, pois é uma dança motivada pelo

desejo, motivada pela necessidade do outro. É a dança do corpo, do afeto, da

cultura: ―o fato de que a dança viva dos vaga-lumes se efetua justamente no meio

das trevas. E que nada mais é do que uma dança do desejo formando comunidade‖

(DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 55). Eles aparecem apenas nas trevas e como

pequenos lampejos se apresentam apenas a quem se coloca a vê-los, exatamente

como aqueles que as pessoas do campo, nas belas noites de verão, veem esvoaçar,

aqui e ali, ao acaso de seu esplendor, discreto, passante, assim esses vagalumes

brilham o pensamento transgressor de seu tempo, este que neste momento

questiona o mundo contemporâneo e suas grandes luzes programadas (o poder da

política, da mídia, do capital, da razão objetiva, dos poderes totalitários). Como

vagalumes, assim se encontra a arte desse tempo, o que ela traz para o visível, seus

questionamentos, o que ela faz sentir, o que ela faz pensar, que antes estava na

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profundidade das trevas, ou mesmo da invisibilidade, do impensado- não do que não

se pensa, mas do que faz pensar.

Segundo Merleau-Ponty no texto ―O filósofo e sua sombra‖ (1960/1991),

pensar é ir de encontro com o impensado, ou seja, o nunca pensado, mas que

estava lá nas sombras do pensamento.

Assim como o mundo percebido só subsiste mediante os reflexos, as sombras, os níveis, os horizontes entre as coisas, que não são coisas e não são nada, que ao contrário apenas delimitam os campos de variação possível na mesma coisa e no mesmo mundo. Também a obra e o pensamento de um filósofo são feitos igualmente de certas articulações entre as coisas ditas, a cujo respeito não há dilema entre a interpretação objetiva e o arbitrário (MERLEAU-PONTY, 1960/1991, p. 176).

Merleau-Ponty, no livro O Visível e o Invisível, fala que do outro lado do visível

existe o obscuro que só é acessível por conta de sua textura carnal, certo oco, certo

interior, certa ausência, uma negatividade que não é um nada, mas profundidade do

visível, o sensível que chamamos ―luzes‖ (MERLEAU-PONTY, 1964/2009, p.146).

Essas luzes do sensível, se comparadas às ofuscantes luzes da cultura espetacular

de nosso tempo, são discretas, porém insistentes, assim como arte, tal como a

dança. Nesse sentido, o apelo à obra de arte – principalmente a obra de arte

moderna do século XX em diante, esta que transita entre o humano e suas paixões –

como recomeço da interrogação filosófica, é apelo àqueles que não manipulam e

sim manejam as coisas, que ruminam o mundo e tiram dele lampejos como dos

vaga-lumes, como em uma dança de amores. Merleau-Ponty (1961/2004b) insiste

em que o artista ensina o filósofo o que é existir como um humano.

O artista moderno, fazendo alusão à Divina Comédia, movimenta sua arte no

fogo contagiante que inquieta seu corpo e não o deixa esquecer sua humanidade-

serve, então e também, para àqueles que ao apreciar uma pintura, uma coreografia,

uma poesia, tomam-se pelo fogo das paixões humanas- Diante disso, se esse fogo

nos lembra nossa humanidade é porque é possível cair no esquecimento, ou pior,

um desaparecimento do humano, já nos trazia Didi-Huberman (2011) esta predição

trágica e apocalíptica de Pasolini:

O cineasta dedicar-se-á ao tema - trágico e apocalíptico - de um desaparecimento do humano no coração da sociedade atual: ‗Faço simplesmente questão de que tu olhes em torno de ti e tomes

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consciência da tragédia. E que tragédia é esta? A tragédia é que não existem mais seres humanos; só se veem singulares engenhocas que se lançam umas contra as outras‘ (PASOLINI apud DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 30).

O que Pasolini quer dizer é que os homens-vagalumes estão a desaparecer

na ofuscante claridade dos ―ferozes‖ da cultura espetacular: grandes outdoor, leds

de propagandas, projetores dos shows políticos, dos estádios de futebol, dos palcos

de televisão. Quanto s ―singulares engenhocas que se lançam umas contra as

outras‖, não são mais do que os corpos super expostos das mídias, com seus

estereótipos do desejo, que se confrontam em plena luz das redes sociais, bem

distantes dos discretos, dos hesitantes vaga-lumes. O desaparecimento do humano

se dá pelo declínio da experiência estética e afetiva. Pasolini, assim, quis mostrar o

poder específico das culturas populares e Didi-Huberman (2011) da arte, para

reconhecer nelas uma verdadeira capacidade de resistência histórica, logo, política,

em sua vocação antropológica para a sobrevivência.

A urgência estética e política aos abusos desse tempo se apresentam como

ressurgências inesperadas ao fundo das imagens que aí se movem ainda, tal

vagalumes em algum lugar entre a Beatriz de Dante Alighieri e a ―beleza fugaz‖ de

Baudelaire, a passante por excelência. Didi-Huberman (2011), ao citar Walter

Benjamim, traz a imagem como lampejo passante que transpõe, tal um cometa, a

imobilidade de todo horizonte. Esta imagem, escreve Benjamim (apud DIDI-

HUBERMAN, 2011), apresenta-se como imagem dialética: ―a imagem dialética é

uma bola de fogo que transpõe todo o horizonte do passado‖, escreve Benjamin no

próprio contexto (apud DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 117). Didi-Huberman no seu livro

O que vemos e o que nos olha (2010) diz que quando estamos diante de um quadro,

um texto filosófico ou poético, uma dança ou um discurso, estamos diante de

imagens de sentidos, dessa ―imagem dialética‖ de Benjamim, que inquieta nosso

ver, interroga nossa compreensão e nos devolve à experiência.

Essa imagem dialética é portadora de uma latência (não se revela

completamente) e de uma energética (uma potência ao devir). Sob esse aspecto, ela

exige de nós que dialetizemos nossa própria postura diante dela, frustrando muitas

vezes uma lógica objetiva, uma análise formalista que se considera como pura

definição da ―verdade‖ e que acha possível apreendê-la completamente. Nesse

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mundo histórico das grandes luzes da contemporaneidade (as luzes do consumo, do

capital), o primeiro operador político de protesto, de crise, de crítica ou de

emancipação, deve ser chamado imagem, no que diz respeito a algo que se revela

capaz de transpor o horizonte das construções totalitárias. Assim, cabe somente a

nós, em cada situação particular, erguer essa queda dignidade, ―nova beleza‖ de

uma coreografia, de uma invenção de formas. Não assume a arte, em sua própria

fragilidade, em meio a sua intermitência de vaga-lume, a mesma potência, cada vez

que ela nos mostra sua capacidade de reaparecer, de sobreviver nesse tempo o

interrogando?

Assim, entendemos nesta tese a dança como imagem que como toda

manifestação artística se mostra como vagalume de seu tempo e é, antes de mais,

uma resposta contemporânea a um campo contemporâneo de questionamento e de

angústias. Dança capaz de dar voz ao corpo de hoje, de resistir aos poderes que

nos aprisionam nas representações. Dança como fluxos estéticos, ou seja, a partir

da experiência do corpo, dos afetos e das sensações, a dança se mostra como um

movimento estético em sua história, sem ordem linear, mas como metamorfoses,

como fluxos que possibilitam sua reinvenção num dado cenário histórico.

Fluxos Estéticos da dança

A dança se refaz em seu tempo e se desenrola nas dobras20 de um tempo

passado, nas nervuras de uma dança que tinha muito o que dizer, mas não dizia. A

dança deste tempo, como vagalume, é convocada num campo estético que não

dava conta da sua capacidade inerente de gerar significações e de refletir o mundo.

No início do século XX, Mallarmé, Valéry, a dança e obra de Nijinsky, as críticas de

Jacques Rivière, davam-se como lampejos e já carregavam uma angústia, esse

impensado de uma dança que abre o corpo para uma potência do Ser, um

emaranhado de sentidos que retomam o homem, que se mostra presença e

20

Pensamos com Deleuze (1988), conceito de dobra que trouxemos no capítulo anterior, para dizer que a dobra é envolvimento, inerência, ou pensando com Merleau-Ponty (1964), são os invisíveis de um pensamento, os impensados, as aberturas que nos faz pensar e recriar.

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pensamento, para além de um divertimento e um acontecimento frívolo como nos

aponta a Filosofia da Dança21 de Paul Valéry:

A dança não se limita a ser um exercício, um divertimento, uma arte ornamental e um jogo de sociedade algumas vezes, ela é coisa séria e em alguns aspectos, venerável. Toda época que compreendeu o corpo humano, ou que experimentou, pelo menos, o sentimento do mistério desta organização, de suas fontes, de seus limites, das combinações de energia e de sensibilidade que ele contém, cultivou, venerou a dança (VALÉRY, 1936, p. 9).

Valéry sonhava uma dança que falasse com o corpo, apenas, que fosse vida,

que libertasse as emoções, as paixões, mostrasse fadiga, os atos e os desejos,

assim como projetou em Orfeu em 1904 (um balé com canto). As bailarinas em seu

projeto representariam os movimentos da natureza: ventos, águas, folhas; mas,

também, as emoções e os reflexos, os desejos, as fadigas (VALÉRY apud

SASPORTES, 1983). Em L’âme et La danse de 1921, Valéry, acreditando que a

dança podia mais, não havia nada de comum neste projeto de dança com os

bailados russos22 em vigor na época. Era uma resistência feroz a esse movimento.

Existia a mesma fé simbolista dos escritos Mallarmeliano impulsionando Valéry

nesta obra, em busca do devir da dança. No diálogo existente entre os personagens

da obra: Sócrates, Eriximaco e Fedro, Valéry aponta um pensamento nascente de

uma dança surgente. O personagem Sócrates começa por demonstrar aos amigos

que a vida é um sistema de metamorfoses e mostra-lhes que a bailarina oferece a

imagem que melhor traduz o que é a vida: uma luta de alternâncias entre princípios

contraditórios que pela sua oposição, dão origem ao sistema:

Tudo lhe serve, Eriximaco, para não concluir. (...) é uma mulher que dança, e que divinamente deixaria de ser mulher, se pudesse obedecer até às nuvens o salto que executou. Mas como não podemos alcançar o infinito, nem no sonho, nem acordados, também ela volta a si própria; deixa de ser floco, pássaro, ideia; deixa de ser, enfim, o que a flauta quis que ela fosse, pois mesmo a terra de onde partiu a chama, e a devolve sempre extenuada à sua natureza de mulher e ao seu amigo... (VALÉRY, 1921 apud SASPORTES, 1983, p. 68)

21

Título original Philosophie de La Danse, escrito em 1936. Esta versão é uma tradução livre de Terezinha Petrucia da Nóbrega. 22

Os bailados russos chegaram à paris em 1909, se dava pouco à reflexão de sua arte, era um espetáculo cheio de acessórios em busca de uma ilusão sugestiva dos sonhos parisienses, do eterno feminino, um mundo longe da realidade se assim podemos dizer (SASPORTES, 1983)

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Sasportes (1983) diz que o personagem Sócrates em L’âme et La danse

converge sua atenção sobre o êxtase da bailarina, a qual, no seu delírio de

movimento, arrasta consigo formas e significados, até ao esvaziamento do seu ser.

Pela voz de seus personagens, Valéry fala do corpo como prodígio, dos seus

movimentos úteis, e dos seus movimentos inúteis, como os da dança, que são,

contudo, os que melhor nos falam da natureza do nosso corpo. Graças ao

desenvolvimento das suas estruturas, o corpo dançante conquista para todos nós

um novo mundo de conhecimento, que de outro modo nos seria negado. Sendo

coisa, explode em acontecimentos. Com isso, Sócrates continua:

Reparem...ela gira...um corpo, pela sua simples força, e pelo seu agir, é suficientemente poderoso para alterar mais profundamente a natureza das coisas como jamais o consegue o espírito nas suas especulações e nos seus sonhos (VALÉRY apud SASPORTES, p. 70).

É essa dança que nos soa interessante, a dança que nos fascina pelo desafio

que lança aos nossos olhos e a todos os nossos sentidos, incapazes de fixar cada

instante, cada imagem que se define um momento e súbito se transforma para não

mais voltar, ou então, reaparecer num encadeamento tão diverso que não se dá uma

repetição. Richard Wagner, quando reclama uma de suas frases mais célebres no

final do século XIX em direção aos Bailados23: ―Oh! Dança, arte maravilhosa! Oh!

Dança, arte miserável!‖, mostra-nos os contrastes entre o esplendor e as

obscuridades e os impensados que a trajetória dançante carregava: sabe ser

esplendorosa, com seus artifícios para iludir, distrair, divertir e nada dizer (as

grandes luzes- Didi-Huberman (2011)), mas sabe ser miserável, pois traz a angustia

em alguns artistas de que pode algo mais (pequenas luzes dos vagalumes): que sua

potência escondida naquela época pedia expressão. É, portanto, na dupla

representação de uma ausência e de uma emergência, ao mesmo tempo impossível

e esperada.

23

Deriva da renascença italiana, e nascem no seio de uma estética que concebia um espetáculo ideal como o resultado da perfeita fusão das diferentes artes numa só obra. Achavam que o ballet sozinho, autônomo, é o produto de uma arte secundária, simultaneamente um pouco pueril e um pouco senil, feita sobretudo para distrair as crianças e os velhinhos (SASPORTES, 1983).

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Em Nijinsky24, em sua dança, reinventou-se toda uma série de desvios e

expressões/exposições corporais, toda a arte moderna abrirá as portas a uma

multiplicidade de corporalidades reduzidas à invisibilidade. Partindo das raízes do

invisível, a dança de Nijinsky reorganiza a matéria de um modo diferente. A

inspiração individual e o gênio solitário de Nijisnky permitiram dar forma passageira a

uma erupção do invisível, arrancado aos limites do corpo (LOUPPE, 2012). Assim

como podemos observar Nijinsky em sua obra coreográfica Sagração da Primavera

de 1913, no qual notamos um impensado, vislumbramos os lampejos de uma dança

ardendo, que anseia por um grito, uma volta ao corpo. Jacques Rivière precisará:

A novidade da Sagração da Primavera é a renúncia a esse molho dinâmico, é o regresso ao corpo, ao esforço para atingir o âmago dos movimentos naturais, para escutar as suas indicações mais imediatas, mais radicais, mais etimológicas. O movimento é forçado à obediência; é constantemente reconduzido ao corpo, colado ao corpo, apanhado e puxado para trás, como alguém que se segura pelos cotovelos e se impede de escapar (RIVIÉRE apud SASPORTES, 1983, p. 97).

Rivière, depois de ver várias vezes essa dança, lança uma segunda nota:

―não tem qualquer espécie de ligação com a dança clássica. Tudo aí é recomeçado,

tudo nasce durante a criação, tudo é reinventado‖ (RIVIÈRE apud SASPORTES,

1983 p. 103). Nijinsky inventa uma arte, ele vislumbra um caminho. Nijinsky prova

que é possível organizar uma dança fora das leis do bailado clássico. Abandona os

princípios em que se formou e obedece ao chamado do seu corpo: ―faz o bailado

desertar do mundo dos contos de fadas e encontrar a voz poderosa que ressoa em

cada corpo desde tempos imemoriais‖ (SASPORTES, 1983, p.104). Ou como diz

Rivière (apud SASPORTES, p.104): ―quebrando o movimento, reduzindo-o ao

24 Para os críticos, Nijinski, bailarino e coreógrafo russo, era dotado de uma técnica extraordinária.

Por isso, foi chamado por muitos como ―o deus da dança‖, ―a oitava maravilha do mundo‖ e o Vestris do Norte (referência ao bailarino francês Auguste Vestris, junto ao qual seria sepultado, no cemitério de Montmartre, em Paris). Nijinski revolucionou o balé no início do século XX, conciliando sua técnica com um poder de sedução da plateia, os seus saltos pareciam desafiar a lei da gravidade. Com coreografias de Fokine, dançou: Silfides, Petrushka, Sherazade, Espectro da Rosa entre outros. Como coreógrafo, Nijinski era considerado ousado e original, sendo atribuído a ele o início da dança moderna. Uma de suas coreografias mais polêmicas foi L'Aprés-Midi d'un Faune, com música de Debussy, vaiada em sua estréia, em 1912. Outras muito conhecidas foram A Sagração da Primavera e Till Eulenspiegel (WIKIPEDIA, 2017).

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simples gestos‖.

Como podemos observar, os fluxos estéticos da dança desde os bailados até

o presente contemporâneo não é linear, é oblíquo, instituinte, problematizador,

recheadas de recomeços e impensados, carregada de sussurros de corpo, lampejos

de vagalumes. A dança contemporânea tem esse fundo, ou não, refaz-se em cima

de um passado carregado de pequenos gritos de resistência e se reinventa.

Sasportes (1983) diz que Nietzsche (1872), no Nascimento da Tragédia previu uma

arte sem representação, como a música, que estaria mais próxima de uma vontade

ou de um desejo.

Isadora Duncan (apud LOUPPE, 2012) fala que, para uma nova ordem,

aberta à expressão dos modos de vida e das concepções de gênero

contemporâneos, em que o corpo se inclina para o chão, para a terra, e em que o

tronco é explorado em todas as suas potencialidades expressivas. A dança

contemporânea é, defende Louppe (2012), apesar de diferir de criador a criador, o

que faz do corpo em movimento o seu sistema de referências. Este é um aspecto

fundamental, pois significa que a dança, ao renunciar às convenções figurativas e

narrativas que, no século XIX, ditavam a presença dos corpos em cena, pode agora

explorar, sem constrangimentos exteriores, o próprio corpo humano enquanto

matéria própria do ato criativo. A dança do presente século não é uma simples

mutações de códigos gestuais em relação a outras expressões em dança. Não é

uma questão de reconhecimento exterior de vocabulário ou de forma, sob qualquer

configuração, ainda que, desde o início do século XX, o movimento tenha sido

submetido a uma abordagem que produziu similitudes de coloração corporal. O que

importa na ―nova dança‖ não é ―o que parece‖, mas ―o que diz‖, um modo de atribuir

à dança não o conforto de uma mensagem, mas de lhe retirar de uma aparência de

espetáculo (LOUPPE, 2012). O que afirmava essa dança ―nova‖? Uma resistência

de vagalume, sobrevivências. Algo, ao mesmo tempo, delicado e imenso de

sentidos: a ação, a consciência do sujeito no mundo.

Contudo, o bailarino não tem à disposição outro suporte senão aquele que o

assinala e que, sobretudo, o localiza enquanto indivíduos no mundo: o seu corpo. Na

dança contemporânea, existe apenas uma verdadeira dança: a de cada um como

reconhece Isadora Duncan em The Art of the dance ―a mesma dança não pode

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pertencer a duas pessoas‖ (DUNCAN apud LOUPPE, 2012, p.52). Ainda recorrendo

a Louppe (2012), especificamente a dança contemporânea, que como arte pode

falar à imaginação de cada um sem passar por um discurso explicativo. Ela aparece

sem referência a um determinado estilo, o corpo reinventa sua própria história.

Ser bailarino é escolher o corpo e o movimento do corpo como campo de relação com o mundo, como instrumento de saber, de pensamento e de expressão. Uma vez tomada esse opção fecunda, o corpo tornar-se-á uma admirável ferramenta de conhecimento e de sensações (LOUPPE, 2012, p. 69).

O ato poético em dança contemporânea é gerado pela reinvenção

permanente do corpo e da hierarquia atribuída às suas partes- o tronco é valorizado,

a cabeça pode tornar-se protagonista, os membros superiores e inferiores podem

desaparecer, a pele pode tornar-se um órgão perceptivo por excelência. Ainda

recorrendo a Louppe (2012), esta diz que a percepção de um corpo em movimento

da dança contemporânea desencadeia possibilidades do imaginário, linhas interiores

de pensamento próprias de cada um, que seria muito impertinente controlar ou

mesmo orientar. Essa escolha de expressão da dança contemporânea tem a ver

com um abrir mão de códigos, com uma recusa a uma mera técnica dançada e a

recusa de um mecanismo? Escolha de um encontro com um vitalismo surgente da

espontaneidade? Onde se encontra esse mistério? Sabemos que a grande crítica da

dança moderna dirigida à dança clássica dá-se em relação a busca desta por uma

perfeição técnica, de um estereótipo de movimento em detrimento a uma leitura de si

e do mundo dada pela singularidade da expressão.

Andrieu (2004) afirma que a perfeição do gesto técnico define uma dança

ideal, reveste-se da virtude do classicismo, em que a matéria deve conter a forma,

em que a dança atingiria um ideal ascético. Com isso, ele lança um questionamento

pertinente: então, ―há no amador, mais do que no autor dançante, esta confrontação

viva da dança com a existência?‖ (ANDRIEU, 2004, p. 105). Andrieu traz Nietzsche à

discussão. Este põe em causa esse niilismo estético. A escolha pela técnica ou pelo

vitalismo faria da dança uma espécie de positivismo, faria o corpo um instrumento da

dança. Em A vontade de poder, Nietzsche (apud ANDRIEU, 2004) evita fazer do

corpo um mecanismo ou um vitalismo. Um corpo mecânico seria concebido com

uma soma de reações que a dança viria estimular até de uma série de automatismos

naturais, espécie de linguagem natural do corpo. Inversamente, o vitalismo

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acentuaria as forças ativas fundando a dança na espontaneidade e na improvisação

(ANDRIEU, 2004).

Andrieu (2004) insiste que para ir ―além do bem e do mal‖25 já não é situar-se

acima da moral, mas sim transmutar/transformar os valores do próprio interior do

corpo: o contraste Apolo-Dioniso é uma dialética interna do corpo que a tragédia

grega tinha sabido pôr em cena. O movimento do corpo é surpreendente devido às

suas contradições vivas. Ora, a vontade de poder é poder de transformação do

corpo, ou seja, o corpo dançante tende para potência do existente. Unir a técnica do

movimento e a profundidade do gesto não seria o ponto, mas transpor essa união,

encontrar no fosso da técnica e da subjetividade o poder de ir além. É atravessar o

peso do corpo, o seu comprimento, as suas dimensões tanto no espaço-tempo

íntimo como no êxtimo. A atuação do corpo dançante precipita-o para o desequilíbrio

e para a descontinuidade; a finalidade não é controlar o gesto, mas habitá-lo. Porque

o risco é olhar o seu corpo enquanto dança, e a dança do corpo resumir o dançarino

(idem, 2004). Valéry, pertinente a esta reflexão, visualizava uma dança que

transportava opostos e lidava com sua técnica operante e seu poder de se permitir a

profundidade. Aí encontra os mistérios do corpo que o filósofo tenta aprofundar. Em

A Filosofia da dança, Valéry transcreve:

Com essas questões o filosofo tenta aprofundar o mistério de um corpo que, imediatamente, como por efeito de um choque interior, entra em uma espécie de vida ao mesmo tempo estranhamente instável e estranhamente regulada; e ao mesmo tempo, estranhamente espontânea, estranhamente sabia e seguramente elaborada. Esse corpo parece se destacar de seus equilíbrios ordinários. Ele joga com fineza com seu peso, do qual ele se esquiva a cada instante (VALÉRY, 1936, p.12).

No esforço de tentar compreender a dança, possibilitamos o acesso a uma

poética, seja do corpo, seja da dança. Poética é a forma como a obra se oferece à

nossa percepção, segundo Louppe (2012). A autora nos dá o caminho dessa poética

ao falar que a partir dos sentidos veiculados pelos corpos em movimento, transmite

conhecimento sobre a produção da obra coreográfica e reflete sobre o que nela nos

pode tocar, estimular a nossa sensibilidade e ressoar no imaginário. Ora, esse poder

de dizer o presente do mundo e de o subtrair à sua invisibilidade, a dança

25

O autor se refere a obra de Nietzsche Para além do bem e do mal (1886).

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contemporânea o deve a um conjunto extraordinário de ferramentas teóricas e

práticas, implementado desde o início do século. Ignorar esse conjunto significa

ocultar dois elementos importantes. Em primeiro lugar, um fundo imenso de trabalho:

trabalho do corpo, trabalho da dança para revelar o imaginário do corpo e conferir-

lhe legibilidade. De seguida, um fundo não menos importante de pensamento, um

pensamento que não é parasitário de nenhum outro saber, elaborado ao longo do

século, e que constitui aos nossos olhos uma das grandes figuras da ruptura

epistemológica que abalaram os conjuntos das correntes de pensamento da nossa

época, tanto nas ciências humanas como nas abordagens políticas e filosóficas

(LOUPPE, 2012).

Esta ruptura pretende que o corpo, e, sobretudo, o corpo em movimento, seja

ao mesmo tempo sujeito, objeto e ferramenta do seu próprio saber, e é a partir dela

que uma outra percepção e uma outra consciência do mundo poderão emergir.

Constitui, sobretudo, uma nova maneira de sentir e criar. Este tempo nos reenvia

para um quadro de criação em que o coreógrafo, o bailarino e pensador, inventam

não somente uma estética de espetáculo, mas um corpo, uma prática, uma teoria,

uma linguagem motora, assim como veremos nos fluxos estéticos do Grupo Corpo,

em suas poéticas e na descrição de Lecuona.

A linha de força da dança contemporânea está na volta à reflexão da sua

própria arte, no questioná-la em todo tempo, na retomada de sentidos diversos no

próprio processo de criar (mesmo antes da obra pronta) e com a obra nos

transportar ao infinito. Longe de sobrecarregar o espectador de informações inúteis,

este conhecimento dos conjuntos teóricos e práticos do processo de criação pode

conduzir a uma melhor identificação das suas próprias reações, a uma compreensão

da acuidade de algumas proposições e a um sentimento mais profundo das

ressonâncias da experiência estética (LOUPPE, 2012).

Pavis (2005) afirma que na descrição de um espetáculo, assim como faremos

de Lecuona, no atentar de suas ferramentas, é importante entendermos que todo o

conjunto da obra não foi elencado por um acaso, tem sua importância teórica e

prática e estão em concordância para dar um sentido à obra. De acordo com

Medeiros (2010), tudo que faz parte da obra é expressivo; e todo artifício é funcional,

daí a criação artística. A autora afirma que o coreógrafo, ao pensar em uma

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determinada coreografia, estará fazendo associações com todo o argumento cênico,

estará simbolizando por meio dos movimentos que serão expressivos durante toda a

sua obra. A forma com que esses argumentos são arranjados e expressos

determinam a arte.

Segundo Louppe (2012), ―a poética procura circunscrever o que, numa obra

de arte, nos pode tocar, estimular a nossa sensibilidade e ressoar no imaginário, ou

seja, o conjunto das condutas criadoras que dão vida e sentido obra‖ (LOUPPE, p.

27). Por outras palavras, revela-nos o caminho seguido pelo artista para chegar ao

limiar onde o ato artístico se oferece à percepção, o ponto onde a nossa consciência

a descobre e começa a vibrar com ela. Mas o trajeto da obra não termina aqui:

transforma-se e enriquece através dos retornos e das ressonâncias (fluxos

estéticos), porque a poética inclui a percepção no seu próprio processo.

A poética é o estudo das motivações que favorecem uma reação emotiva a

um sistema de significação e expressão. A função poética tem a particularidade de

provocar de forma imanente a intervenção dupla de um ponto de vista artístico: um

sujeito do ato criador em estreita relação com a sensibilidade do espectador ao qual

ele espera tocar no âmago das reações estéticas. Segundo Louppe (2012, p.28)

―toda a obra de arte é um diálogo‖. Lacince e Nóbrega (2010) auxiliam essa reflexão

sobre a poética ao afirmarem que no caso da dança, esta constitui seu próprio

discurso a partir de uma tradição técnica, mas também em referência a um discurso

estético, crítico e filosófico. A dança, que podemos considerar como a poesia do

corpo, intensifica e exemplifica essa relação. A poética é um modo de estudar

experiências partilhadas e, através delas, a transformação do sensível (os fluxos)

tanto para o bailarino, como para aquele que testemunha a dança. Por isso esta tese

é poética acima de tudo, pois parte dessa relação na experiência estética da dança

Lecuona e cria tessituras de sentidos que recria mundos.

Partindo dessa poética, adentramos na possibilidade da obra ser a

atualização de uma experiência de corpo única, a materialização do tempo e do

espaço em relação a uma ―percepção-testemunha‖ (LOUPPE, 2012), e a relação

corpo a corpo estabelecida numa duração partilhada. Aqui e agora com os que

observam, existe assim a permissão de um performativo: pode tornar-se o que é,

torna-se um bloco de sensações (DELEUZE E GUATTARI, 1992), uma experiência

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afetiva com a obra, experiência de corpo, que a presença cruzada pode descobrir no

estado da obra coreográfica.

Deleuze e Guattari (1992) afirmam que o artista é mostrador de afeto, criador

de afetos, doador de afetos. Eles dizem que as relações afetivas entre a obra e o

espectador, dão-se por bloco de sensações, zona de indeterminação, de

indiscernibilidade, de cocriação, ocorre que, quando nos colocamos diante da obra,

uma mistura de sensações passadas e atuais, uma ―luta‖ de sensações que me

ligam a obra por uma memória afetiva, mas que carrega um futuro prospectivo,

carrega infinitos futuros, infinitas escolhas. Deleuze, na Lógica da Sensação (2007)

traz Proust, Em busca do tempo perdido, para falar dessa memória afetiva: ―mas,

segundo Proust, como procedia a memória involuntária? Ela acoplava duas

sensações que já existiam no corpo em níveis diferentes e que se entranhavam,

como dois lutadores, a sensação presente e a sensação passada, fazendo surgir

algo de irredutível aos dois, tanto ao passado como ao presente‖ (DELEUZE, 2007,

p.35). Segundo Louppe (2012), na mobilização de todo ser, na entrega profunda,

pela força da sua surpresa, presença e intensidade redobrada, reside um momento

de criação único, supremo e febril. Seja esse momento que Cézanne (apud

DELEUZE E GUATTARI, 1992, p.220) tenta descrever: ―há um minuto do mundo

que passa, não o conservaremos sem nos transformarmos nele‖. Este momento é

quando a obra nos afeta, transforma-nos nela, queima-nos no fogo estranhamente

humano que inquietou Dante e nos devolve a humanidade como afirma Didi-

Huberman (2011). Essa experiência estesiológica, retomando Merleau-Ponty (1964),

e sua carga poética como mobilização de uma permuta entre eu e a obra e a obra e

eu. Esse ponto é deveras importante para unir a dança a nossas intenções de

pesquisa que está na descrição de Lecuona como visibilidade daqueles corpos do

afeto que dançam e se mostram como expressão de uma educação estesiológica.

Lacince e Nóbrega (2010) afirmam que, neste caso da dança, a sensação não

se trata de performance no sentido físico, mas um estado de performance,

acontecimento, considerar a profundidade, por isso a carne do sensível é uma noção

que pode nos dar acesso ao Ser em profundidade por meio de uma fissão do

sentiente e do sensível. Há uma reversibilidade (entrelaçamento) da carne, haja vista

a estesia capaz de estabelecer novas e inesperadas relações entre o vidente e o

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visível. "Essas trocas, a sinergia envolve outros corpos. A corporeidade maciça, que

se vê, não é todo o corpo; a carne é mais ágil" (LACINCE; NÓBREGA, 2010, p.254).

Podemos dizer que no encontro com os sentidos (os brilhos dos vagalumes) é que

se torna possível produzir um campo de afetação em que a experiência estética

entendida como ser de sensação, campo de imanência, desajusta os espaços

codificados e, assim, ao romper com a recognição se torna inaugural.

Gil (2001), nessa trilha de percepção, ao nos trazer a contribuição da

experiência da dança por meio de efeitos que ele designa como efeito nuvem, como

algo que emerge do encontro dos corpos. Esse efeito nuvem faria parte das

experiências captadas para além do codificado, dos espaços localizáveis e que não

temos uma consciência vígil. O efeito nuvem poderia ser entendido como um lugar

entre o visível (gestos codificados) e o invisível (forma das forças). As nuvens de

sentido sendo formas móveis, como poeiras que se organizam momentaneamente

num sentido, mas que rapidamente se deslocam para outro movimento,

infinitamente, possibilitariam a emergência de comunicação entre o impensado que

não se liga a uma experiência individual, mas a uma imagem-nua. Imagem-nua se

trata de algo que pertence às pequenas percepções, pequenos lampejos, ao mundo

asignificante, ao campo imanente da existência.

Assim, para Gil (2001) – este que afirma que a fenomenologia desempenhou

papel crucial aos estudos da dança ao considerar: ―[...] o corpo percebido e o corpo

vivido, em suma o corpo sensível, a ―carne‖ de Husserl, de Merleau-Ponty e de

Erwin Strauss‖ (GIL, 2001, p. 55-56)- o prolongamento do corpo ao espaço deixa

uma nuvem flutuante de afetos, uma névoa de sensações num espaço atmosférico.

Este meio é antes de qualquer coisa afetivo. Este é o sentido radical de uma estética

da imanência que vimos com os vagalumes de Didi-Huberman: ―ela se deseja gesto

e não representação, darstellung e não vorstellung, processo e não aspecto, contato

e não distância‖ (DIDI-HUBERMAN, 2003, p. 143).

Assim, entendemos a contribuição desse estado de performance (LANCINCE

E NÓBREGA, 2010): possibilitar, por meio da experiência estesiológica, do sentir

mesmo, do corpo do bailarino e do corpo do espectador, o acesso a campos afetivos

que ultrapassam a compreensão racional de significados. Os campos afetivos

criados, na reversibilidade dos sentidos bailarino-espectador, são espaços afetivos

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que transbordam forças que metamorfoseiam, que potencializam um devir do corpo.

Segundo Gil (2001), sabe-se que o bailarino evolui num espaço próprio, diferente do

espaço objetivo. Não se desloca no espaço, segrega, cria o espaço com o seu

movimento. Esse espaço é investido de afetos e de forças novas, os objetos (físicos

do cenário se tiver) ganham valores emocionais diferentes seguindo os corpos dos

atores, bailarinos, etc. O próprio corpo se torna a cena ou o espaço da dança.

Embora invisíveis, o espaço, o ar adquirem texturas diversas. Tornam-se densos ou

tênues, tonificantes ou irrespiráveis. Como se recobrissem as coisas com um

invólucro semelhante à pele: espaço do corpo é a pele que se prolonga no espaço, a

pele tornada espaço.

Nesse entendimento, pensando no processo criativo, podemos pensar com

Borges (2013) no ato performático26, ou mesmo, uma estratégia para performance,

ao se utilizar de elementos que ousam desconstruir os conjuntos semiotizados

impeditivos de apreensão de uma realidade suprassensível, se desdobra na

radicalidade da contramão à lógica racionalista que busca no sentido único, no

significado datado das coisas do mundo seu suporte para o pensamento. Assim as

estratégias performáticas viabilizam a transformação dos processos de arte em

forma de vida. Ou seja, seria uma intenção de performance no processo de criação,

ou os atos da obra, carregando uma capacidade afetiva. Os corpos envolvidos no

estado de performance (do bailarino e do espectador) seriam aqueles capazes de,

atravessando o mundo das formas, produzir um campo de afetação em que a

experiência estética se compõe pela sensação, campo de imanência, desajustando

os espaços codificados, sendo, portanto, sempre inaugural. Na apreciação que

fizemos de Lecuona, na trama seguinte, campos afetivos foram criados entre meu

olhar e a dança, houve partilha de sentidos.

Louppe (2012), ao citar a Susan Buirge, fala de um estado performativo, este

é como uma ―falha‖: é esta falha que dá obra a sua existência. A força desse

conceito de falha deve-se, sem dúvida, ao fato de o estado explosivo das

mobilizações espetaculares não ser vivido como uma positividade ou uma

acumulação de intensidades, mas pelo contrário, como a sempre incerta margem de

risco ou de um questionamento, sobretudo, porque, afinal, o momento da obra corta

26

Seria a intenção do coreógrafo ou a dos bailarinos no processo de montagem da obra coreográfica.

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no continuum poético das atividades da dança uma fatia irremediável de visibilidade:

momento fascinante em que tudo se detém numa proposição final. Na verdade, tudo

se liga no estado de performance, tudo se liga no campo afetivo criado. Variações

dinâmicas ao olhar fecundo do outro. Ela quebra o limite do conhecimento. Cruzam-

se duas experiências por conta da obra dançante. É o momento aonde ―tem-se o

texto‖, ―o que tem que ser feito‖, a coreografia, mas numa experiência vivida, o

bailarino se faz texto, se faz obra, o espectador como testemunha privilegiada dessa

metamorfose, como que se lhe oferecessem um pedaço de vida, um pedaço de luz

como de um vagalume em meio as trevas.

Nesse sentido, o espectador como testemunha não é passivo, ele está em

inerência no estado de performance do bailarino, ele se vê naquele corpo dançante

através de sua experiência vivida. Segundo Gil (2001), que vê então o espectador?

Se não contempla a dança, é porque ele próprio entra na imanência do sentido do

movimento. Não vê unicamente com os seus olhos; recebe o movimento dançado

com o seu corpo inteiro. Nóbrega (2015) diz que o movimento do bailarino coloca em

jogo a experiência própria do movimento do espectador: a informação visual gera no

espectador uma experiência cinestésica imediata, ou seja, uma sensação interna

dos movimentos do seu próprio corpo. As modificações e as intensidades do espaço

corporal do dançarino encontram assim sua ressonância no corpo do espectador.

Ou mesmo, quando estamos diante de uma dança e esta pelos campos

afetivos criados se mostra imagem dialética. Na verdade, a imagem dialética dava a

Benjamin o conceito de uma imagem capaz de se lembrar sem imitar, capaz de

repor em jogo e de criticar o que ela fora capaz de repor em jogo. Sua força e sua

beleza estavam no paradoxo de oferecer uma figura nova, e mesmo inédita, uma

figura realmente inventada da memória:

não cabe dizer que o passado ilumina o presente e o presente o passado. Uma imagem, ao contrario, é aquilo no qual o Preterito encontra o Agora num relâmpago para formar uma constelação. Em outros termos a imagem é dialética em suspensão. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal, contínua, a relação do pretérito com o Agora presente é dialética.Somente as imagens dialéticas são imagens autênticas (BENJAMIN apud DIDI-HUBERMAN, 2014, p.114).

Compreende-se, então, que uma experiência interior, por mais ―subjetiva‖, por

mais ―obscura‖ que seja, pode aparecer como um lampejo para o outro, a partir do

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momento em que encontra a forma justa de sua construção, de sua narração, de sua

transmissão. Assim como nos ilumina Didi-Huberman:

soberana, ansiosa, frenética, que o fez lançar tantos sinais na noite, tal como um vaga lume querendo escapar do fogo dos projetores para melhor emitir seus lampejos de pensamentos, de poesias, de desejos, de narrativas a transmitir, a qualquer preço (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.139).

Olhando para dança do Brasil, aonde veremos os vagalumes? Cabe-nos

reconhecer aqui fluxos estéticos, sobretudo com esforço de artistas e grupos

independentes. A partir da década de 1970, vislumbramos uma dança brasileira

erudita dentro de uma estética que recusa o mero determinismo clássico em busca

de novos horizontes de expressão. Temos os trabalhos de companhias como Ballet

Stagium, Grupo Corpo, Cisne Negro, Grupo Quasar, Cena 11, entre outros. Neste

reconhecimento, diante de tudo que expomos neste texto: os fluxos estéticos, a

poética da dança, os estados de performances, os campos afetivos; apresentamos

as poéticas da dança do Grupo Corpo, como esta obra se oferece à nossa

percepção, o que nela nos toca, nos mobiliza, nos ensina, vislumbramos, assim,

seus fluxos estéticos como ausências e emergências, retornos e avanços, que muito

tem a nos dizer sobre esta dança que foi abrindo mão de suas âncoras, das amarras

estéticas, em busca de novas expressões, num espírito barroco, mais perto do

humano e do mundo. Nesse movimento, tudo que expomos até aqui nos dá suporte

para colocar em movimento os conceitos na descrição de Lecuona, em sua poética,

seus fluxos estéticos que revelam os fluxos de nossa própria existência, a partir do

estado de performance e do campo afetivo criado entre mim e aqueles corpos do

afeto.

Katz (1994) afirma que a curta história da dança no Brasil - em relação a

produções artísticas e a pesquisa - confirma, em vários momentos, a ação

transformadora da arte sempre que os talentos se apresentam como vagalumes,

regados pela paixão, pela entrega e pela consciência que o artista é, também, um

cidadão de seu tempo, comprometido com sua arte e com sua gente. Assim, Katz

(1994) nos aconselha: registrar as contribuições, os trabalhos desses artistas da

dança como melhor tributo que se pode prestá-los, para que as gerações que virão

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saibam que, se o caminho que herdarão ainda será muito difícil, sem eles não

haveria sequer caminho.

Poéticas do Grupo Corpo

Nos últimos quarenta anos, podemos afirmar que se desenhou uma ―dança

brasileira‖ com aspectos dos que sabem que para se fazer algo novo, algo nosso, é

necessário coragem para se desfazer de amarras estéticas. Quem se atentar para a

história do Grupo Corpo, ou apenas O Corpo como carinhosamente é chamado,

verão esta coragem e insistência de vagalume. Esta Companhia de dança brasileira

nasceu em 1975, durante os anos mais autoritários de um golpe militar: as grandes

luzes de uma Ditadura, que perseguia e torturava estudantes, trabalhadores, artistas

ou qualquer um que se colocasse como resistência. Era o governo de Ernesto

Geisel, a opressão do AI-5, censura, suspensão de várias garantias constitucionais e

crescimento econômico acompanhado de uma perversa distribuição de renda. Brasil

tricampeão de futebol, pátria das grandes luzes das propagandas: Brasil: ―ame-o ou

deixe-o‖, ―Quem não vive para servir ao Brasil, não serve para viver no Brasil". Os

estádios de futebol cheios: o povo aplaudia a ―camisa 10‖, Zico, que fazia trinta gols

no Campeonato Carioca de Futebol. Neste mesmo ano, na Europa,

coincidentemente, Pasolini volta a falar dos vagalumes, agora como resistência as

grandes luzes da cultura da modernidade espetacular e, nove meses após, é

covardemente morto.Entretanto, se o sol se põe em um lugar, em outro ele está a

nascer, trazendo a esperança da alvorada.

Vivíamos nesta década um momento dialético na dança no Brasil: angustias e

questionamentos sobre a ―dança brasileira‖. Em meio a tudo isto, nasce o Grupo

Corpo pelos irmãos Pederneiras, provavelmente ainda sem imaginar que sua

trajetória de vagalume se misturaria com a história da dança no Brasil, definindo um

marco importante para arte do país e um vetor de reconhecimento da dança

brasileira para o mundo. Minas Gerais foi o palco deste nascimento, pelo jeito esta

terra é fértil de talentos significativos para dança brasileira. De lá veio o casal Klauss

e Angel Vianna - ele, renomado bailarino e coreógrafo, os dois são percussores da

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pesquisa em dança em nosso país- também Décio Otero - um dos fundadores em

1971, junto com Márika Gidali, do Ballet Stagium que tinha como proposta

―cidadanizar‖ a dança, levando-a para todos os públicos, com isso, prepara

caminhos para grupos que estariam nascendo, como era o caso do Grupo Corpo,

com parecidas inquietações: reinventar a dança no Brasil . Assim, ao lado de Paulo

Pederneiras e Rodrigo Pederneiras estavam uma grande equipe de criação, todos

em torno de um objetivo em comum: formar um grupo de dança profissional capaz

de realizar trabalhos inventivos, inovadores e emocionantes, segundo Reis27 (2008).

Quando Paulo Pederneiras pediu a seus pais a espaçosa casa onde a família

morava, na rua Barão de Lucena 66, na Belo Horizonte de 1971, ele pensou em

fazer, junto com seus irmãos, uma escola e depois uma companhia, ninguém

poderia prever que os Pederneiras começariam lá uma trilha de criações. Paulo

(atual diretor artístico e responsável pela iluminação), Rodrigo (ex-bailarino e que se

tornaria coreógrafo), Pedro (que se transformaria no diretor técnico) e Mirinha (ex-

bailarina e atual ensaiadora e assistente de Rodrigo), e mais um grupo de amigos,

entre os quais Carmen Purri (a Macau, ex-bailarina e hoje também ensaiadora e

assistente de Rodrigo), levariam adiante um projeto único. Esse núcleo, ao qual o

pintor, escultor e arquiteto Fernando Velloso e a arquiteta, designer e paisagista

Freusa Zechmeister se juntariam mais tarde, viria a produzir não uma companhia

profissional de dança, mas uma referência em termos de qualidade na área. O hoje

empresário e produtor Emilio Kalil, que abandonou o jornalismo e sua cidade depois

de assistir à companhia em Porto Alegre, em 1978, ajudou a consolidar essa marca,

pois se integrou ao Corpo, que passou a co-dirigir, ao lado de Paulo Pederneiras, até

1989 (KATZ, 2000). A estréia do Grupo Corpo foi 1976 com o balé Maria Maria,

coreografia do argentino Oscar Araiz, trilha sonora de Milton Nascimento e roteiro de

Fernando Brant. O balé se tornou um grande sucesso, quebrando o preconceito de

que somente obras no eixo Rio/São Paulo mereceriam reconhecimento. Esta obra

ajudou a projetar o trabalho deste grupo desde então, inclusive internacionalmente.

Abrindo um parêntese, as problematizações da dança, as críticas severas a

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Livro biográfico do Rodrigo Pederneiras escrito pelo jornalista Sergio Rodrigo Reis pela editora Imprensa Oficial. O jornalista traz uma narrativa do próprio coreógrafo sobre sua trajetória artística que está muito ligada a trajetória do Grupo Corpo.

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uma dança de códigos fechados e narrativas fixas que surgia na Europa e na

América do Norte no século XX, chega ao Brasil por algumas figuras renomadas na

área, como Oscar Araiz, um dos bailarinos estrangeiros que introduziram no Brasil a

dança moderna, junto com Luiz Arrieta, Maria Duschenes, Márika Gidali, Nina

Verchinina, Renée Gumiel, Ruth Rachou. Eles são alguns que trouxeram ao país

novas ideias. Oscar Araiz assinou coreografias para inúmeras companhias do

mundo e do Brasil. Entre as brasileiras, montou para o Ballet Stagium, para o Grupo

Corpo, Corpo de Baile do Municipal de São Paulo, entre outros (KATZ, 1994).

A parceria de Oscar Araiz com o Grupo Corpo que se dera com Maria Maria e

depois com Último Trem (1980), tivera seu início anos atrás, antes mesmo do próprio

Grupo Corpo surgir, quando nos anos 1970 Rodrigo Pederneiras, durante um festival

de inverno da UFMG, conhecera o coreógrafo argentino. A fascinação pela obra de

Oscar Araiz levou Rodrigo a Buenos Aires a estudar a dança com o pessoal da

Companhia do coreógrafo, onde conhecera outro tipo de movimentação sobre a

técnica da expoente da dança moderna, Martha Graham. Em 1974, se tornara

bailarino da Companhia do Oscar Araiz. Ele tinha 19 anos e ficou em Buenos Aires

estudando dança e, pouco depois, recebe o convite para participar do espetáculo

Agitor Lucens V, da Companhia do Oscar Araiz, que era acompanhado por um grupo

de Rock executando ao vivo as canções. Era um ano antes à ditadura argentina.

Rodrigo viveu a ditadura no Brasil e a sensação de liberdade que vivia na Argentina

era enorme. Agitor Lucens V foi o último espetáculo da Companhia do Oscar Araiz

que se desfez logo após. Com isso, ele volta ao Brasil a consolidar a idéia da família

em fundar o Grupo Corpo (REIS, 2008).

Maria Maria foi uma produção local do Corpo que percorreu 14 países e foi

dançado no Brasil desde 1976 até 1982, sua estréia foi no Palácio das Artes, em

Belo Horizonte, em 1º de Abril. Em uma entrevista para Eliane Martins (2009),

Rodrigo Pederneiras comenta que se discutiu muito, inclusive o nome Maria Maria,

que pertence a um conto de Guimarães Rosa, ―Meu tio o Iauaretê”, este nome Maria

Maria seria o nome de uma onça que pertence ao conto. A idéia do espetáculo era

falar de uma mulher brasileira, a mulher negra sofrida, que não tem espaço na

sociedade e que acaba se identificando com partes de cada mulher brasileira e de

cada um, de cada povo que vive às escuras da cultura espetacular branca e de

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consumo. Katz (1994) afirma que a certeza que a dança nessa época também se

prestava para campo de reflexão exala em Maria Maria. A autora diz que a trajetória

da ‖gata borralheira‖ brasileira, que o cotidiano de desigualdade nunca permite virar

cinderela, arrasta multidões por onde passa, mesmo fora do Brasil. Em Paris, filas

diárias num Théâtre de La Ville inteiramente abarrotado deixavam dezenas de

franceses na calçada, sem ingresso, desejosos de conhecerem a ―dança brasileira‖.

Paralelamente, as mesmas preocupações ganhavam outros cenários em

outros pés. Também em 1976, o Ballet Stagium, esse também desbravador da

dança no Brasil, transforma Navalha na Carne que Plínio Marcos havia escrito para

teatro em Quebradas do Mundaréu. Milton Carneiro (Veludo), Márika Gidali (Neusa

Suely) e Décio Otero (Vavo) é o triângulo nada romântico que fortalece a dança

como campo de vagalumes para pensarmos nossas paixões, as desigualdades, as

injustiças. A resistência se dá em ângulos plurais aquele ano. Ela está lá também

quando Ruth Rachou traz para Vivências à oposição entre o romantismo libertário de

Isadora Duncan e o cotidiano que afoga, na poluição e na pressa, o romantismo

moderno. Assim como um ano antes, em 1975, Marilena Ansaldi estréia Isso ou

Aquilo?. Célia Gouvea monta Pulsações com alunos do Teatro de Dança. Ela

houvera criado um ano antes, em 1974, com um chorinho de Jacob do Bandolim,

―Caminhada‖, cujo tema era a repressão. Dançavam Ruth Rachou, Julio Villan, Mara

Borba, Daniela Stasi, Debby Growald e Thales Pan Chacon, entre outros. Neste

mesmo ano, foi o ano de Allegro Ma Non Troppo, onde Célia Gouvea tratava da

censura, da violência urbana e da poluição, utilizando cenas de rua (KATZ, 1994).

Estes bailarinos e coreógrafos, todos se agregaram como vagalumes, mesmo sem

se reconhecer, na percepção comum de que havia uma mudança em andamento.

Ainda dentro da estética vinculada a Oscar Araiz, mas já sem a sua presença,

pode-se lembrar de uma nova fase do Grupo Corpo, que se refere à gestação do

futuro coreógrafo Rodrigo Pederneiras. Ela começa ainda entre Maria Maria (1976) e

O Último Trem (1980), com uma obra chamada Cantares (1978). Junto com o

compositor não muito conhecido: Marco Antônio Araújo, criara a sua primeira obra, a

partir de livros e poemas místicos que leram. A repercussão foi boa, porém limitou-

se a Belo Horizonte pela falta de investimento financeiro. Há ainda mais cinco

coreografias nesse eixo, produzidas depois da montagem de Oscar Araiz, O Último

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Trem, que ninguém mais lembra de associar a Rodrigo, a saber: Tríptico e Interânea

(1981), Noturno e Reflexos (1982), e Sonata (1984). Mas nada com muito sucesso,

pois Maria Maria era a sombra que eles tentavam superar, pois a base narrativa

deste espetáculo era algo bem diferente da proposta abstrata que Rodrigo

Pederneira queria imprimir.

O Corpo, sem patrocínio fixo na época, vivera as dificuldades de viver da arte

nesse país (hoje infelizmente não muito diferente). O relativo sucesso do Balé Último

Trem (que criticava a desativação pelo governo militar da estrada de ferro que ligava

Minas ao mar, deixando inúmeros municípios que vivia da ferrovia caírem no

abandono e no esquecimento) não resolveu a situação financeira do grupo. Para

pagar as contas tinham que repetir Maria Maria. A companhia existia, a estrutura era

boa, porém, artisticamente dependia de gente de fora. O dinheiro era escasso e as

coisas se complicavam, então, passaram a olhar para o próprio Grupo Corpo e

apostar em gente de dentro. Paulo Pederneiras já cuidava da iluminação e o Rodrigo

Pederneiras passou a coreografar.

Foram dez anos o Grupo Corpo tentando superar o sucesso de Maria Maria.

Algumas coisas aconteceram neste período na dança no Brasil: em 1977, o Ballet

Stagium, em seu objetivo de levar a dança para espaços mais improváveis, dança

no Xingu, em chão de terra batida, para os índios. Neste mesmo ano nasce a

Companhia Cisne Negro, fundada por Hulda Bittencourt, o novo grupo misturava

estudantes de Educação Física da USP com bailarinas formadas no próprio Estúdio

Cisne Negro. Uma associação inédita que produziu talentos como Marcos Verzani,

Jairo Sette, Armando Duarte, Beth Risoléu, Laudney Delgado, Armando Aurich,

Cláudia Palma e Miriam Druwe, entre outros. A companhia juntou uma grande

quantidade de obras de Victor Navarro, Luis Arrieta, Sônia Mota, Vasco Wellencamp

e Gigi Calciuleanu, entre outros (KATZ, 1994).

Os estudantes da Educação Física que se integraram ao ―Cisne Negro‖ eram

alunos ―atletas-dançarinos‖ de Edson Claro, outro precursor da dança brasileira

(FOLHA DE SÃO PAULO, 2013). A mistura fora afirmada nos estudos de Edson

Claro no método ―Dança- Educação Física‖ (1988). ―Os bailarinos que eu trouxe da

USP eram da turma do Edson, que criou uma conexão muito forte entre o esporte e

a dança e colocou todo mundo para dançar‖, diz Hulda Bittencourt (apud PONZIO,

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2013), fundadora do Cisne Negro. Dessa estrutura, em 1979, Edson Claro funda o

Grupo de Dança Casa Forte com alunos da Educação Física. Este Grupo estréia em

1981 Vida Nova e Ya Nadie Duerme com trilha sonora de Ana Maria Mondini. Neste

mesmo ano, segundo Katz (1994), a ligação do balé com temas brasileiros brota em

Salvador, Antônio Carlos Cardoso cria o Balé do Teatro Castro Alves, que se

distingue pela maneira que encontra para refletir o seu espaço cultural. Em 1982,

com base na dança moderna e não no balé, nasce o Marzipan, decidido a dialogar

com o cotidiano.

Até que, em 1985, no cenário de esperança com fim da Ditadura Militar no

Brasil, o Grupo Corpo parece que renasce junto, dá um salto significativo com

Prelúdios, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, ovacionados de pé pelo público

(Reis, 2008). Assim, houve mais uma dobra estética na trajetória do Grupo. Com

isso, Rodrigo Pederneiras se consagrava como coreógrafo e ao Corpo era dada uma

identidade mais abstrata muito ligada ao clássico ainda, mas já se via lampejos por

uma linguagem própria. Pederneiras expressa a Reis (2008) a sensação deste ápice

do Grupo em 1985:

Lembro-me claramente da cena: no instante em que encerrou, os bailarinos do Municipal vieram a mim, faziam questão de me cumprimentar e não faltaram elogios de todas as partes: ―genial!‖...repetiam com insistência. Tive aquele impacto. Foi um marco. Uma semana depois, a revista Veja publicou reportagem de seis páginas, assinada por João Cândido Galvão, sobre o espetáculo, que começava assim: ‗A primeira obra-prima do balé brasileiro de base clássica‘. Assustei. A partir dessa repercussão toda, retomamos nossa identidade, voltamos a ser para o país o Grupo Corpo (PEDERNEIRAS apud REIS, 2008, p. 69).

Segundo Reis (2008), Prelúdios foi um grande sucesso no país, mas não

alcançou a mesma repercussão no exterior por um motivo simples: na Europa e

America do Norte, naquele momento, era impensável convidar uma companhia

brasileira para apresentar balé de base clássica. Eles não compraram a idéia porque

lá tinham os melhores do gênero e eles queriam algo que representasse o novo.

Para Katz (1994), resistir em dança no Brasil nestes anos das décadas de 1970-80

parecia implicar domesticação curiosa da técnica do balé. O balé, importado da

Europa, encostava-se no vilarejo, mas não perdia sua majestade. Poderia falar de

tortura, censura, desigualdade, porém, os passés acabariam em pontas esticadas. A

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técnica nascida na corte mais elegante da Europa do século XVII, agora se dedicava

a educar as sensibilidades plebéias de modo mais amplo, geral e irrestrito. Como

anão que se senta no ombro de gigantes, essas décadas decidiu ver melhor e com

mais profundidade a questão nacional em dança. Capturar o presente carregando a

tradição no corpo. Falho enigma. Entendia-se nesta época que para se fazer dança

brasileira, bastava reunir profissionais brasileiros, dos bailarinos à música, e tratar de

temáticas brasileiras. Do olhar estrangeiro incorporado, o que se obtém é o

espelhamento da imagem que eles nos devolvem. São balés que olham para a

tarefa de inventar a dança brasileira ainda a bordo da nau de Pedro Álvares Cabral,

já dizia sabiamente Katz (1994).

Ao falar de Prelúdios, Katz (2000) diz que a obra traz a matriz dos fluxos que

irão distinguir o modo como Pederneiras iria passar a tratar o palco. As terminações

das frases e suas articulações surgem lá como marcas do seu pensamento

coreográfico. Daí para a frente, são muitas as situações em que vai exercitar um

talento voltado para as ações do corpo que dança. Vão surgindo peças cada vez

mais especializadas na tarefa de propor modos de deslocar conjuntos e de juntar

bailarinos. Bachiana, Carlos Gomes Sonata (1986), Canções, Duo, Pas-du-Pont

(1987), e Schumann Ballet, Rapsódia, Uakti (1988) vão deixando cada vez mais

claro que dois tipos de estrutura estão convivendo: aquela onde Rodrigo explora

invenções em escala menor (seus instigantes e cada vez mais intrigantes pas-de-

deux) e outra, onde trabalha as linhas no espaço, especialmente os ―entra-e-sai de

cena‖ da companhia, afirma Katz (2000). Segundo Reis (2008), com o espetáculo

―Canções‖ (1987), com músicas de Richard Strauss e coreografia de Rodrigo

Pederneiras, temas lentíssimos baseados em poemas que tratam da morte, ajudou o

Grupo nessa busca por uma linguagem própria, uma marca mais abstrata na dança

e consolidar uma visão diferente do grupo no exterior.

Com Uakti, Rapsódia e Schumann Ballet de 1988, Rodrigo Pederneiras ganha

o prêmio Lei Sarney de Incentivo à Cultura Brasileira, como coreógrafo destaque

pelo conjunto de trabalhos daquele ano (Reis, 2008). A lei Sarney estabelecia uma

relação entre poder público e setor privado, onde o primeiro abdicava de parte dos

impostos devidos pelo segundo – a chamada renúncia fiscal. Como contrapartida, o

setor privado investiria os recursos da renúncia fiscal em produtos culturais –

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cinema, teatro, literatura, artes plásticas, patrimônio. A idéia não era apenas

estabelecer incentivos à cultura, mas, principalmente, incentivar aumento de

produção nessa área para criar um mercado nacional de cultura. Assim, a Lei

Sarney inseriu novos atores no setor e inaugurou nova fase para a política cultural

no Brasil. A lei que depois se tornaria Lei Rouanet.

Com ajuda desse incentivo à cultura, em 1989 demarca a passagem do

Grupo Corpo para uma nova estrutura, que Emilio Kalil, empresário do grupo na

época, ajudou a erguer. Foi quando se iniciou a parceria com a Shell, que se

constituiria como um marco inaugural no marketing brasileiro. Robert Broughton,

então presidente da empresa, que morava há três anos no Rio de Janeiro e, no

Carnaval, desfilava pela Mangueira, decidiu patrocinar o grupo. Eles surpreenderam

o mercado com um inédito contrato para três anos – forma encontrada para garantir

uma certa estabilidade para o patrocinado. O relacionamento Corpo-Shell tornou-se

um verdadeiro case de muito sucesso, que duraria exatos 10 anos. A partir daí, o

grupo pôde, por exemplo, passar a encomendar e lançar todas as trilhas dos seus

espetáculos e produzir seus vídeos. Mas o que a data mais marca é o início de uma

trajetória de maior segurança e com continuidade. Nessa época, começaria também

a definição dos papéis do quarteto central que se tornaria o responsável pelo

produto que o país passaria a reconhecer com orgulho e viria a cativar as suas

platéias (KATZ, 2000).

A certa altura, prova que ―não se mexe em time que está ganhando‖, apesar

que todo risco é bem vindo no processo de criação, acontece Mulheres (1988).

Convidada por Emilio Kalil, a coreógrafa Susanne Linke passa um tempo em Belo

Horizonte e monta esta sua coreografia, com música de Krysztof Penderecki, trechos

de Magnificat e obras da Renascença para Violão. A obra se tornou a menos

expressiva da carreira do Corpo. Era outra linha. Suzanne trabalhava teatro no

universo da dança, suas montagens tinham falas demais, música pesada,

carregada: uma linguagem alemã, bem diferente da proposta original que o Grupo

Corpo e mesmo a dança brasileira vinha desenvolvendo (KATZ, 2000; REIS, 2008).

Paralelamente, neste ano, o cenário da dança no Brasil brilhava mais um

vagalume, o grupo de dança Quasar. Asas (1988) foi a primeira criação de Henrique

Rodovalho à frente da Companhia da qual se tornaria coreógrafo residente. Aquele

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era o pontapé inicial para que uma fagulha em Henrique fizesse dele um

investigador de possibilidades, e um diretor de cenas que, a princípio, não traziam

exatamente a dança como ponto de partida, mas sim uma mistura de conhecimentos

e observações sobre o mundo, sobre o corpo, sobre o vídeo, a foto, a música. Um

espírito que se uniu às vocações próprias de cada bailarino, ou de cada ator, que

daquele ponto em diante foram reunidos não por sua capacidade técnica, mas por

uma disponibilidade afetiva. E foi assim que a Cia iniciou uma trajetória de criações

que fugiam do balé moderno convencional e apresentavam ao público algo inovador,

inusitado28. Neste mesmo ano, a cidade do Natal também vê os lampejos da dança

brasileira com a contribuição do coreógrafo Edson Claro que há três anos houvera

se mudado para cidade vindo de São Paulo e cria Acauã Companhia de Dança,

grupo independente no qual ele desenvolve sua proposta: que todos podiam dançar,

corpos com múltiplas vivências corporais diferentes participavam dessa iniciativa. A

ida de Edson Claro para Natal movimentou a dança na cidade, além de criar vários

grupos de dança, o professor Edson Claro trouxe conhecimento, informações. Por

intermédio dele, muitos coreógrafos importantes foram convidados para trabalhar

com as companhias que ele fundou, entre outros: Luis Arrieta, Ivonice Satie, Ana

Mondini, Mário Nascimento, Tíndaro Silvano, Henrique Rodovalho, Armando Duarte

(PONZIO, 2013).

Com o fracasso de Mulheres (1988), o Grupo Corpo se reinventa mais uma

vez, abarca aprendizados e cria o momento certo para a virada estética que

irromperia depois. A informação trazida por Susanne Linke, do gesto mais

dramatizado em que a expressividade se acomoda, resultaria em Missa do Orfanato,

no ano seguinte. Ou seja, segundo Katz (2000), seria preciso um vírus externo ao

ambiente que a companhia respirava para colocá-la para percorrer outros trilhos. Em

Missa do Orfanato, também a cultura pop (o Thriller, de Michael Jackson) se faz

presente.

Com ―Missa do Orfanato‖, em 1989, com música de Mozart, o Grupo

experimentou fazer um balé denso, religioso e pesado, como diz Helena Katz ―é

quase o tempo todo como a nossa busca de ar para respirar‖ (KATZ apud REIS,

28

Informações tiradas do site do Quasar. Disponível em: <http://www.quasarciadedanca.com.br/quem-somos/historico/> Acessado em: 20 de dez. 2016

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2008, p. 78). Um balé que começa a convocar o corpo como palco, convocar suas

dores e dar a ele uma voz. Há um espírito barroco que começa a se expressar. A

imagem abaixo (Imagem 01) expressa o elevar-se, um corpo que busca a redenção,

mas também chão, a terra, dividido entre as paixões e os atributos da salvação

divina. Os dualismos: claro e escuro, sagrado e profano, paixão e razão, encontram

harmonia nessa obra, característica barroca.

Imagem 01: Espetáculo Missa do Orfanato. Fonte: Imagem tirada da Revista Cultural Obvious.

Disponível em: http://lounge.obviousmag.org/mosaico/2015/06/g.html

Missa estreou em 1989 quando as marcas da ditadura militar ainda

permaneciam na memória do brasileiro. A idéia era falar da opressão de uma

maneira geral (REIS, 2008). A montagem era intensa, com o objetivo implícito de

revelar um pouco a idéia de um Brasil sufocado e expressado naqueles corpos

dançantes. Na trajetória do Grupo Corpo de quarenta anos e nas tomadas de seus

fluxos estéticos, observaremos, assim como vimos em Missa do Orfanato, em suas

dobras, as marcas de um Brasil: suas dores, sua cultura, a busca por uma

identidade. É a arte como vagalume suscitando o pensamento questionador, criando

campos afetivos entre a obra e quem aprecia. Como exemplo, Pederneiras (apud

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REIS, 2008) descreve a experiência estética do seu pai ao apreciar Missa do

Orfanato:

Meu pai, bastante religioso, sempre católico praticante, tinha receio do que pudesse realizar ao levar uma missa aos palcos. Estava mexendo em algo que para ele era sagrado. No dia da apresentação em Belo Horizonte, sentou-se na platéia para assistir e, pela primeira vez na vida, o vi chorar. Quando terminou, me abraçou e senti algo tão especial que até hoje não tenho palavras para descrever (PEDERNEIRAS apud REIS, 2008, p.81).

Chega-se os anos 90 e com ele um tempo difícil para arte do Brasil. Collor

assume o governo e extingue a Funarte, Embrafilme e Lei Sarney. Com isso,

companhias de dança fecharam ou se mantiveram com muita dificuldade. Rodrigo

Pederneiras em entrevista para pesquisadora Eliane Martins (2008) lembra esse

triste momento:

Por que quando o Collor chegou, ele matou tudo que existia, matou, é impressionante o vigor inclusive que as coisas voltaram por que quando aconteceu isso eu falei ‗porra‘ vai demorar cinqüenta anos pra, pra tudo voltar ao normal. Todas as companhias de Dança acabaram menos o Grupo Corpo por incrível que pareça que na época o nosso patrocinador foi o único que não quis tirar, que não era patrocinador brasileiro, era de fora. E mais o cinema brasileiro acabou, o teatro brasileiro acabou, a dança brasileira acabou, acabou tudo completamente no período (PEDERNEIRAS apud MARTINS , 2008).

O patrocinador ―de fora‖ que Rodrigo menciona é a Shell que segurou as

finanças do grupo e os ajudou a passar esse tempo de crise para arte no país. Hoje

não há como fugir deste sistema: que nenhuma companhia de dança ou qualquer

linha artística teria como sobreviver autonomamente em relação ao mercado sem as

Leis de Incentivo. O Grupo Corpo tem uma ação empresarial, existem as

responsabilidades com toda a estrutura da companhia, com todas as pessoas que a

mantém, e isso gera um custo muito alto, pois todos seus funcionários e bailarinos

trabalham com carteira assinada, sem exceção. Por isso para ele é muito difícil,

mesmo com incentivo, fazer tournée no sul e nordeste do Brasil, até mesmo no

sudeste. Pederneiras (apud MARTINS, 2008) relata que quando ocorreu a idéia de

se fazer apresentações da companhia pelo interior de Minas Gerais, com ingressos

a preços populares, foi um momento muito especial, de forte significado para a

experiência e vivência de todo grupo, mas que continuar com esta proposta era

inviável, não poderia sustentar os gastos, por que não existe lucro. Desta forma,

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percebe-se a influência que a dinâmica do espaço urbano exerce na produção

artística, e vice-versa, num constante desafio ao artista.

A Criação (1990), Variações Enigma e Três Concertos (1991) parecem

esgotar um percurso povoado de formas de se mover com maestria que hoje pode

ser entendido como um mapeamento de combinações necessário para amadurecer

o domínio da herança do balé clássico, afirma Katz (2000). Observamos em

Variações Enigma um lampejo ao problematizar nesta coreografia o clássico forte.

Rodrigo começa nesse espetáculo a trazer trilhas sonoras brasileiras para compor

suas criações e também trazer ludicidade, o lúdico é expressado no figurino de

Freusa Zichemeister ao brincar sutilmente com obras consagradas do balé clássico.

Segundo Katz (1994), o mundo das certezas produz um corpo preciso como

uma máquina. Quando o ―sim‖ e o ―não‖ deixam de ser pólos de oposição para se

oferecer como possibilidades simultâneas, tudo se altera. Se o que é onda pode ser

também partícula, as certezas excludentes entram em colapso. Vivemos num mundo

resultado de uma extraordinária aliança: a da ciência com a vida. O trânsito entre

uma e outra emoldurou um espaço onde tudo permeia tudo. Arte, ciência e filosofia

falam línguas que se comunicam e nos comunicam. Nessa moldura, o corpo força

um entendimento mais amplo. Se o corpo é um vagalume que insiste em cada falha,

nos fluxos estéticos do Grupo Corpo encontra as possibilidades de se descobrir

criação desse mundo. Em 1992, em mais um salto estético do Corpo, comprovamos

isso.

Pederneiras afirma a Elaine Martins (2008) que no final dos anos oitenta e

início dos anos noventa, ele se questionava muito sobre o que era dança brasileira,

sobre a dança em que acreditava, pois ouvia muito falar disso, mas para ele a dança

brasileira em si era um veículo, e tudo o que ele via se distanciava da proposta de se

apresentar uma dança realmente com caráter brasileiro, resumindo-se esta em

técnicas clássicas ou em modernas com alguma temática do Brasil. Houve um

tempo, em que ele começou a estudar a forma do brasileiro se mexer, o jeito de

andar e o que existe de diferente em sua corporeidade. Havia um elemento que o

instigava, que ele buscou e trabalhou dentro da linguagem contemporânea

permitindo que criasse uma linguagem peculiar do Grupo Corpo, mas agora diz que

já faz muito tempo que não se preocupa mais com isso, para ele quanto menos se

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preocupar ―mais legal‖, por que desta forma se sente mais livre no processo de

criação (REIS, 2008).

Em 1992, o Grupo Corpo se lança em uma transição com o espetáculo 21,

com trilha sonora de Marco Antônio Guimarães, coreografia de Rodrigo Pederneira,

iluminação, cenário e direção artística de Paulo Pederneiras, figurino de Freusa

Zechmeister. Assim, uma grande mudança no estilo do Grupo fora criar suas

próprias trilhas sonoras para seus espetáculos. E, desde então, grandes artistas

contribuem na criação sonora como Caetano Veloso, Lenine, Chico Buarque, Marco

Antônio Guimarães, José Miguel Wisnik, entre outros.

A obra 21 pontua uma ruptura com a predominância clássica marcada por

uma inquietação do Grupo Corpo por originalidade, em busca de movimentos

amplificadores de significâncias. A obra traz duas aberturas. A primeira, significando

uma caminhada memorial de quase 20 anos do Grupo Corpo (Imagem 02). Uma

segunda abertura, estrelando uma maturidade, estrelando um estilo (Imagem 03).

Traz também o número 2, que se contrapõem à parte 1, ou seja, marca a distância

entre duas danças. Um lá (―Europa‖, tradição, introspecção, definição, coerência) e

um cá (―Brasil‖, sem tempo definido, incoerência, extroversão) (BÓGEA, 1997).

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Imagem 2: Primeira parte de 21. Fonte: Zé Luís Pederneiras.

Imagem 03: Segunda parte de 21. Fonte: Zé Luís Pederneiras.

As experiências corporais do Grupo Corpo tem os tornado originais. O quadril

vem em 21 como um símbolo de renovação. Ele vem gerando este estilo. Como já

havia dito, esta coreografia marca um grupo no seu processo de amadurecimento,

distanciado da tradição clássica e já dotado de uma originalidade. Rodrigo

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Pederneiras afirma: ―antes, meu trabalho era mais linear, escultural, repleto de

arabescos. A partir daí, caiu bastante a preocupação com a forma‖ (PEDERNEIRAS

apud REIS, 2008, p.91). Mediante a isso, estes movimentos que surgem da ―bacia‖

(quadril), é o traço marcante nas coreografias do grupo desde então. Ao ser

questionado, o coreógrafo Rodrigo Pederneiras diz: ―a bacia é o centro do corpo e o

que faz acontecer o resto‖ (PEDERNEIRAS apud BÓGEA, 2007, p. 67). Acreditamos

que os movimentos que surgem do quadril vão dar uma intencionalidade muito

própria ao grupo que tendem erotizar e dar mistério a todo o mesclado de sua

dança. Assim como acontece com o ―jeito de andar‖, não é difícil reconhecer certas

matrizes gestuais brasileiras nos requebros e molejos dos bailarinos da companhia,

como é confirmado pelo próprio coreógrafo, que sempre assinala a influência das

danças populares em suas criações (BÓGEA, 2007). ―O papel do artista criador não

é figurar uma nacionalidade, mas transfigurá-la‖ já dizia Mario de Andrade (numa

carta ao compositor Camargo Guarniere, de agosto de 1934) e isso o Grupo Corpo

tem feito, não numa representação de uma nacionalidade, mas num impulsionar

criador que passa por sua nacionalidade brasileira.

Em relação a criação de 21 Rodrigo Pederneiras diz:

Adorei realizá-lo. Um momento especial, talvez a época que mais aprendi...Desde então, comecei trabalhar diferente, encontrei um caminho para uma linguagem realmente pessoal na dança. Buscava uma movimentação própria, algo que falasse mais alto, que fosse mais do meu jeito. Fui atrás daquilo que possuíamos, coincidindo com um período de maior maturidade em que passei a ter outra visão da estrutura coreográfica, bem como uma liberdade maior de criação. Antes, meu trabalho era mais linear, escultural, repleto de arabescos. A partir daí, caiu bastante a preocupação com a forma e me voltei para uma pesquisa da dinâmica do movimento, que passou a ser mais importante que o movimento em si (PEDERNEIRAS apud REIS, 2008 p. 91).

Neste trecho, identificamos na fala de Pederneiras uma mudança de rota em

prol de uma linguagem mais pessoal, maior liberdade de criação e uma maior

importância a intenção do movimento, mas do que a técnica em si. Katz (2000)

pontua três fases do Grupo Corpo. A primeira se dá com Maria Maria que traz

características mais locais, parte de uma aproximação à experiência mineira. Os

primeiros trabalhos estão ligados à música mineira, ao Milton Nascimento.

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Traduzindo esse tipo de relação pessoal para uma poética e para os fluxos estéticos

do Corpo, inicialmente eles tiveram uma fase bem local. Depois, segundo a autora,

percebe-se que eles procuraram até se desvincular dessa raiz mineira e buscaram

tomar para si as técnicas do balé clássico, seus fundamentos, para constituir um

princípio de dança contemporânea. Entretanto, passaram a fazer coreografias

baseadas no repertório da música clássica européia. Fizeram Prelúdios de Chopin, A

Missa do Orfanato de Mozart, as Variações Enigma de Elgar, Três Concertos de

Telemann. Eles estavam experimentando e acho que esse foi o momento em que

buscaram constituir um repertório forte de técnicas ligadas à linguagem clássica e

contemporânea, mas de todo modo internacional da dança.

Através desses espetáculos, Rodrigo Pederneiras formou-se como

coreógrafo. Katz (2000) pontua o início da terceira fase, quando eles voltam a fazer

espetáculos baseados em música contemporânea brasileira, encomendada por eles,

que fazem com que tudo o que acumularam de experiência com essas peças

clássicas seja usado para a criação de uma linguagem de dança contemporânea

brasileira. Isso aconteceu especialmente quando fizeram um espetáculo 21.

Trabalharam com música feita com instrumentos artesanais, com a criação de

timbres instrumentais originais e com uma linguagem, com aquele pensamento

musical muito singular do Marco Antônio Guimarães, que fez uma peça toda

baseada em variações rítmicas sobre o número ―21”. Eles passaram a fazer essa

dança sobre música brasileira contemporânea, mas fortemente instrumental, e isso

deixou uma marca que foi um momento de virada ocorrido nesse espetáculo 21, que

iniciou o processo pelo qual eles voltaram a ter um novo tipo de reconhecimento

internacional muito grande, não só como um balé de interesse local ou com sabor

regional, mas também como um balé com uma linguagem coreográfica forte e com

uma competência muito grande para realizá-la. Foi nesse momento que eles

estavam querendo fazer uma seqüência de trabalhos apontando para essa direção.

É preciso ressaltar que o ano de 21, o cenário político também era de

resistência com os ―caras pintadas‖ e ruptura com o Impeachment de Collor. Na

dança, morre Klauss Vianna, O Ballet Stagium apresenta Essa Terra é Minha (Decio

Otero - André Abujamra), Ruth Rachou apresenta Runaway Horses, O Balé da

Cidade de São Paulo dança Salmos de Oscar Araiz, La Vaise de Luis Arrieta, Teatro

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Municipal do Rio de Janeiro apresenta Desordem de Regina Miranda e J.C Violla

apresenta sua Opera dos 500 com o Grupo Pau Brasil. Nos anos 90 o país recebe

um novo tratamento de Ana Maria Mondini, no República da Dança, a companhia

que funda com Gabriela Machine. E a dança brasileira ganha mais uma identidade.

Sendo o Brasil esta vastidão, elencar novas possibilidades é como injetar oxigênio

quando o ar se rarefaz (KATZ, 1994).

Com Nazareth (1993), o Corpo começa a transitar entre o universo popular e

o erudito, lançando-se na tentativa de fundir o universo literário de Machado de Assis

(1839-1908) com produção musical de Ernesto Nazareth (1863- 1934), através da

parceria produtiva com José Miguel Wisnik. Na fronteira entre o erudito e o popular,

Wisnik usou formas literárias não-narrativas nas músicas, inspirando-se em contos

que, por sua vez, sugerem espelhamentos. A dualidade é o centro do balé. Tons

cinzas, pretos e brancos compõem os figurinos de Freusa Zechmeister. A parceria

com José Miguel Wisnik acrescenta aprendizados a trajetória estética do grupo. O

compositor era professor de literatura da USP. Pederneiras (apud REIS, 2008)

afirma que eles conversavam e liam muito durante a elaboração de Nazareth. Wisnik

ia atrás de formas literárias, não narrativas, e muitos contos que utilizava partiam da

idéia de espelhamento. O romance de Machado de Assis ―Esaú e Jacó‖ é um

exemplo. O livro narra a história de uma jovem apaixonada por dois irmãos gêmeos,

Pedro e Paulo. Idênticos na aparência, eles tem personalidades opostas, um é

republicano e outro monarquista e, diante da dúvida, a jovem não se define (REIS,

2008). Esse pensamento estético vem influenciar Pederneiras e veremos essa

relação do erudito e popular sendo amadurecido nas obras mais adiante. José

Miguel Wisnik relata sua experiência de criação em Nazareth para Estudos

Avançados (KATZ, 2000):

(...) [Eles]convidaram-me para fazer música, uma composição original, mas que seria baseada na tradição da música popular brasileira. Eles tinham pensado em alguma coisa como Pixinguinha, Zequinha de Abreu, Ernesto Nazareth. Gostei dessa proposta e achei que nós deveríamos concentrar em Ernesto Nazareth. Eu vi o espetáculo 21 e também o vídeo com as Variações Enigma de Elgar. Vendo esses dois espetáculos, percebi que eles se encontravam em uma encruzilhada: o espetáculo Variações Enigma era um espetáculo contemporâneo, mas baseado na linguagem do balé clássico, no comentário do balé clássico, baseado, em suma, sobre música européia, enquanto o 21 era música contemporânea

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brasileira, apontando para a música e a dança popular brasileira. Então, me pareceu que eles estavam em uma passagem interessante entre o clássico e o popular e justamente estavam querendo criar alguma coisa que pusesse em contato e diálogo essas duas vertentes. Achei que era justamente esse o assunto da música de Nazareth. Isso porque Ernesto Nazareth era um compositor popular que fazia maxixe chamados tangos brasileiros, mas, ao mesmo tempo, entrou para o repertório clássico e se tornou um compositor que faz parte da memória coletiva, com músicas como Brejeiro, Odeon, Apanhei-te cavaquinho, que todo mundo conhece. Ao mesmo tempo, Nazareth é um compositor tocado por grandes pianistas: por Nelson Freire, por Arnaldo Cohen, por Roberto Zidon, por Artur Moreira Lima. É um compositor que entrou para o repertório do concerto e está, portanto, nesse curioso cruzamento, muito sintomático da música brasileira, que sempre se forma nesse contato e, às vezes, na exposição das fronteiras entre o popular e o erudito e, às vezes, na dissolução dessas fronteiras. Lembrei-me então de um conto de Machado de Assis chamado o Homem Célebre, que fala justamente sobre um compositor de polcas muito famoso e muito bem-sucedido enquanto compositor popular e que, no entanto, quer compor música clássica. Esse conto me deu uma espécie de subtexto para trabalhar a música de Nazareth, que me parecia contemporânea ao personagem de Machado. Nós nos encontrávamos nessa mesma tensão entre o popular e o erudito e havia muitos motivos que dariam matéria para esse tipo de variação. Então, a música que eu compus para Nazareth, pode-se dizer que se constitui de uma série de variações sobre o erudito e o popular vistas a partir da música de Nazareth, com subtexto machadiano e colocada, portanto, para o grupo a questão da dança clássica e da dança popular brasileira (KATZ, 2000, p. 318).

Em 1994, Sete ou oito peças para um ballet o músico norte-americano Philip

Glass, um dos pais do minimalismo, e o grupo Uakti se juntaram para realizar um

trilha fornecendo base para as repetições de movimentos, sejam eles solos ou

simultâneos e também para os movimentos sensuais e impregnados de latinidade. O

artista plástico Fernando Velloso se inspirou na pintura minimalista de nomes como

Barnett Newman e Morris Louis, para levar listras verticais ao cenário. Em relação ao

cenário, Bach (1996) traz algo inusitado ao repertório do Grupo: interação dos

bailarinos com o cenário. A cenografia de Paulo Pederneiras e Fernando Velloso

sugeria uma movimentação aérea. Para levar a coreografia para o alto, os dois

conceberam um cenário com tubos PVC revestidos por material emborrachado e

presos ao teto . Em vez do chão, os bailarinos surgiam em cena deslizando do alto,

subindo e descendo (Imagem 04). Fora utilizado para o cenário e figurino as cores,

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azul e dourado, típicas do nosso barroco. Em setembro deste mesmo ano, em Lyon,

na França, o balé foi representado pela primeira vez, marcando a estréia do Grupo

Corpo como companhia residente da Maison de la Danse29. A crítica Helena Katz

esteve presente e publicou texto no jornal Estado de São Paulo em que estabeleceu

um paralelo entre o universo da composição clássica e a dança do Corpo (REIS,

2008).

Imagem 04: Bach. Fonte: Zé Luís Pederneiras.

José Miguel Wisnik volta a reencontrar o Grupo Corpo em 1997 no balé

Parabelo. Tom Zé é convidado para uma parceria com o compositor. Os dois

formarão uma parceria genial, com resultado mais brasileiro e regional das

montagens do grupo: na memória cadenciada do baião e um emaranhado rítmico. O

balé evoca a inspiração sertaneja em diálogo com as temáticas contemporâneas

(REIS, 2008). O crítico Marcelo Castilho Avellar a comparou a um brinquedo de

dança, e resgata o aspecto lúdico que esta arte teve para os povos primitivos. Ele

diz: ―suas partes se organizam no jogo, não em monumentais intenções estéticas ou

narrativas... Na obra, braços e pernas dos bailarinos parecem maiores, e em maior

número‖ (AVELLAR apud REIS, 2008, p. 172).

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Maison de la Danse foi fundada em junho de 1980 em Lyon- França. É um lugar dedicado a todas as danças, para difundir o trabalho de vários artistas. Ela propõe programações onde se cruzam e se confrontam as danças, as técnicas e as estéticas das mais variadas.

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No ano após Parabelo, vem Benguelê (1998) com gestual de típicas

manifestações de influências africana como a capoeira e os congados dão vida ao

balé, elaborado a partir de trilha de João Bosco. Da Silva (2013) diz que em

Benguelê, seus gestos animalizados parte de um compromisso com os sentidos,

engolindo os movimentos exclusivamente eruditos, não para estes desaparecerem,

mas para criar algo novo. Estes movimentos abastecem os argumentos de um

voltar-se a natureza, voltar-se a um espaço onde não há hierarquias e dominações,

mas uma lateralidade que nos torna participantes, colaterais. É esse corpo

animalizado que Benguelê anuncia e faz dançar. Rodrigo Pederneiras, ao falar de

Benguelê, diz:

Estreamos em 1998 e só consegui uma versão conclusiva em 2003, quando a companhia estava em turnê pela França. Ao longo de todo esse tempo fui modificando, alterando...O mais difícil foi fechá-lo. Criei uns quatro encerramentos diferentes até encontrar o atual. A proposta de Benguelê é de bebermos na fonte da cultura popular. Benguelê é banzo de Benguela. É África (REIS, 2008, p.118).

Anos 2000. Novo milênio. Conversas de fim de século partem de momentos

críticos e aspirações de mudanças. E parece que os fluxos das coisas apertaram o

acelerador. O mundo altamente tecnológico é sinônimo deste século: grandes

produções cinematográficas, filmes 3D, televisão de ultra-alta definição (4K),

revolução biotecnológica, todas as decisões concentradas dentro de um dispositivo

móvel. As novidades não chegam de cartas, apenas demoram milésimos de

segundos para alcançar o outro lado do mundo. O milênio da pressa. As redes

sociais conectam todos, une o mundo e separam corpos. As angustias de Pasolini

no século XX parecem atuais para este novo século: ―não existem mais seres

humanos, só se veem singulares engenhocas que se lançam umas contra as outras‖

(PASOLINI, 1975 apud DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 30), ou seja, voltando a Didi-

huberman (2011), não se vê mais o brilho dos homens-vagalumes que desapareceu

em meios as grandes luzes do mercado de consumo.

Nesta temática contemporânea, atentos aos acontecimentos, o Grupo Corpo

traduz em dança os prejuízos deste século em uma obra atualíssima, apesar de ter

se passado dezesseis anos desde sua montagem. O Corpo (2000) é uma obra com

trilha composta por Arnaldo Antunes. A proposta era uma peça única, ininterrupta,

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de 45 minutos. A obra tem um som duro, rasgante, pesado, meio rock, segue uma

temática urbana e, na conclusão, introduz elementos de samba de roda. O cenário

eletrônico de Paulo Pederneiras formado por um imenso painel de luzes vermelhas

acendendo e apagando de forma cadenciada de acordo com os sons, recebe um

balé mecânico em corpos mecânicos. Este espetáculo se tornou um marco, pois

carrega subsídios que fomentam a tão discutida universalização ou homogeneização

da cultura, onde o coreógrafo, nesse caso Rodrigo Pederneiras, buscou sensações

urbanas. Pederneiras declara em entrevista que foi o primeiro trabalho em que

procurou dar ênfase à questão urbana, direcionando o pensamento para o tema do

corpo, percebe-se lampejos de uma angustia do coreógrafo por começar se atentar

para parte mais subjetiva do ser humano.

O Corpo, aparentemente, se vê uma resistência poética, que todo tempo

chama estes corpos para a vida, uma tentativa incessante de afirmar os traços

perdidos nos indivíduos massificados, uma luta frenética dos corpos. Os bailarinos

dançam juntos, porém novamente não existe relação alguma entre eles. Nunca

ficam sós, dançam em trios, quartetos e com a música vão construindo o sentido da

cena: um emaranhado de sinais que remetem a humanidade perdida. O crítico de

dança Marcelo Castilho Avellar diz sobre O Corpo:

Corpos-máquinas repetem ao infinito um conjunto determinado de passos que funcionam como motivos condutores... As descrições de tais características pode levar alguém a imaginar que O Corpo é algo frio e sem vida. Engano. No máximo, pode ser algo sobre frieza e a ausência de vida, Ou sobre os rumos negros da contemporaneidade (AVELLAR apud REIS, 2008, p. 170).

Direcionando o olhar para esta e as outras obras do Corpo como referencia

significativa, podemos notar que Rodrigo Pederneiras se expressa como um

protagonista crítico e reflexivo. Não se colocando distante das circunstâncias e

questões sociais, de grandes acontecimentos nos processos históricos, estes

momentos vão assumindo significados nas experiências e interpretações

vivenciadas e absorvidas por ele enquanto homem no mundo, expondo suas

inseguranças e sentimentos. Desta forma, também como agentes históricos, nós

podemos ter acessos às diversas óticas que nos possibilitem um diálogo entre a

subjetividade e o mundo que nos cerca, que se manifesta ora com características

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locais, ora globais, fomentando questionamentos para buscar uma melhor

compreensão sobre a complexidade do presente, as relações com suas histórias e

memórias. A arte carrega em si um potencial de reflexão e via de acesso para tais

embates e, neste caso, a dança é uma manifestação do homem que para acessá-la

tem que recorrer ao sensível, despertar emoções, criar campos afetivos e se mostrar

como fogo que tudo muda. Maffesoli (2005), num entendimento de que a progressão

intelectual é subjugada ao mundo, mais do que exerce domínio sobre ele, parte de

um entendimento que a arte como reflexão de uma época, mais do que o feito de um

autor, é uma criação social. E aquele que estiver atento à beleza do mundo, às suas

expressões específicas, torna-se participativo do esforço criativo deste. Parte de um

entendimento que a vida é uma obra de arte que sabe integrar, em doses variáveis,

o zelo estético no próprio seio da progressão intelectual, dando argumentos para

pensar uma globalidade da existência.

A dança, a pintura ou outras manifestações artísticas já existem antes mesmo

de se materializar, pois já existem na relação do artista com o mundo, com o ser.

Não da ordem de um pensamento que copia o próprio pensamento, mas de um

pensar que carrega um impensado e se deixa refazer e se desfazer num esforço do

corpo. Assim, como podemos observar na poética do Corpo.

No entanto, Helena Katz (2000) pontuou inteligentemente três fases do Corpo

que fundamentou nossa interpretação até aqui sobre os fluxos estéticos da

companhia que foram tomados fortemente pelo pensamento artístico do coreógrafo

Rodrigo Pederneiras. Na primeira fase, como vimos, observa-se a fase mineira, mais

local, tendo como ápice Maria Maria. A segunda: fase européia, muito ligada as

influências de fora, a música, das linhas, dos arabesques, como observamos em

Prelúdios, Missa do Orfanato, e outros que se desenrolaram nessa linha, mas que

forma o coreógrafo Rodrigo Pederneiras. Depois, segundo a autora, vem a terceira:

fase da descoberta de uma linguagem pessoal na dança brasileira, tendo como

ápice 21. Agora, entendendo nossa pesquisa como instituinte, posto que, segundo

Merleau-Ponty (1954-55)30 a noção de instituição se dá em acontecimentos de uma

experiência que a dotam de dimensões duráveis, com relação às quais toda uma

30

Noção de instituição dada por Merleau-Ponty em seu curso L’instituion no College de France 1954-55.

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série de outras experiências terão sentido, formarão uma sequência pensável ou

uma historia. Ou mesmo, acontecimentos que depositam um sentido em mim, não a

título de sobrevivência e de resíduo, mas como apelo a uma seqüência, exigência de

um porvir. Neste sentido, essa pesquisa como instituinte pontua mais uma fase do

Corpo: a fase afetiva. Esta que se torna significativa para nossas intenções de

pesquisa. Ela começa em Lecuona (2004) e se fortalece em Onqotô (2005).

Enquanto isso, a dança no Brasil recebe Skinnerbox da Cena 11 Companhia

de Dança, como mais um resultado de suas pesquisas entre dança e tecnologia,

coreografia de Alejandro Ahmed. Cena 11 disponibilizou ao público uma formulação

coreográfica baseada nas relações entre homem e máquina, sujeito e objeto e

controle e comunicação, na qual também foram produzidos protótipos de robôs.

Cisne Negro apresenta Reflexo do Espelho, coreografia de Patricia Delcroix, a

coreografia trata do estranhamento que todos tem ao se ver refletidos no espelho,

posto que as imagens são as mesmas, mas cada sujeito sente de um jeito. Quasar

Cia. de dança estreia ―O+” ( Positivo), coreografia de Henrique Rodovalho, celebra a

dança com o intuito de revelar o desejo, a vontade essencial do ser humano de se

movimentar, e quem sabe, dançar. Esse desejo é exposto num grande círculo de

pessoas: bailarinos da Cia, convidados e espectadores. Estes últimos, são

escolhidos entre o grande público, para assistirem ao espetáculo sentados entre os

bailarinos. Ballet Stagium apresenta na Febem de São Paulo. Marika Gidali participa

do Fórum Mundial de Educação, dirigindo o espetáculo Como se fora brincadeira de

roda, reunindo 2200 crianças e adolescentes das escolas de ensino fundamental no

sambódromo de São Paulo.

Em meio a todo esse cenário de dança, Rodrigo Pederneiras traz uma

proposta original, entretanto, desafiadora e arriscada para todo Grupo Corpo: montar

Lecuona (2004), uma dança de duos. Houve desconfiança desde o início de toda a

equipe, entre bailarinos e direção artística, menos de um: Rodrigo Pederneiras, que

sabia que não podia trair seus sentidos, seu corpo pedia uma nova expressão, ele

fez uma aposta solitária.

No espetáculo Lecuona aconteceu assim, mostrei para vários conhecidos o disco do cubano Ernesto Lecuona, que eu acho fenomenal e senti reação de duvida. Estranharam os boleros do compositor que conseguem transitar com facilidade entre o erudito e o popular. Somente mais tarde, ao ver o resultado no palco, eles

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perceberam como a trilha era maravilhosa (PEDERNEIRAS apud REIS, 2008, p.94).

Pederneiras diz ao jornalista Sérgio Reis (2008) que se não fosse com o Grupo

Corpo, seria com outro grupo que ele montaria Lecuona, pois ele precisava construir

esse projeto, mesmo que por um tempo ficasse engavetado. Entretanto, um dos

motivos que qualificam o Grupo Corpo é uma mutualidade da equipe em acreditar e

apostar no potencial de cada um e foi em cima disso que Rodrigo Pederneiras

recebe o ―sim‖ e o empenho de todos para construir o balé da paixão.

Na entrevista concedida para esta pesquisa, Rodrigo Pederneiras nos

confidenciou que Lecuona era um projeto muito pessoal, algo fora do projeto artístico

do Grupo, desde então. Ao perguntarmos se Lecuona foi uma ruptura dentro de uma

trajetória estética, ele respondeu:

Ruptura é uma palavra muito forte, mas um desvio talvez (...)Lecuona foi um projeto quase que meu, mesmo porque eu encontrei essas músicas por um acaso e tem uma história(...) E foi difícil convencer o Paulo que é o diretor artístico de fazer o Lecuona, que eu queria realmente fazer Lecuona, e acabou que eu consegui e deu tão certo, era um risco também, são doze pas de deux, era um risco muito grande e acabou que deu certo e eu tenho um carinho especial por Lecuona (PEDERNEIRAS, 2016).31

Lecuona estreou em agosto de 2004 no Teatro Alfa em São Paulo.

Coreografia de Rodrigo Pederneiras, música de Ernesto Lecuona, cenografia e

iluminação de Paulo Pederneiras e figurino de Freusa Zechmeister. A dança é todo

um investimento em duos, ressignificações das danças de salão (bolero, tango,

valsa). Pode-se dizer deste espetáculo que é a dança da paixão. Amores ardentes,

vorazes volúpias, ciúmes nefastos, corações partidos, saudades brutais, desprezo,

doçura, rancor, indiferença, múltiplas sensações dançam em Lecuona.

São doze duos dançados, cada casal contando uma história de amor

diferente, mas que qualquer um de nós possivelmente já vivemos- histórias de

sofrimentos, entregas, sacrifícios, arrepios de nuca, lágrimas na sarjeta, de

felicidade, de suor e saliva, no salto alto e mocassins pretos. São histórias de dança

de salão e ciúme, de abandono e êxtase, de beijos roubados, enfim, Lecuona redime

31

Toda referência no corpo do texto ―Pederneiras 2016‖ se refere a entrevista concedida a autora dessa tese.

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de forma definitiva o amor latino. Ao apreciar este espetáculo, pode-se fazer as

pazes com o sangue quente, para além do clichê do latin lover.

As sensações dançam nesta obra e por mais que fosse esperado, cada duo

causa seus próprios e infinitos sentidos. Em nossa conversa sobre Lecuona,

Pederneiras nos afirma que:

Lecuona é sedução, é paixão, é sensualidade (...) tem um lado emocional muito forte. Na verdade, porque pega várias áreas, quando digo emocional, às vezes ele é engraçado, às vezes ele é tenso, às vezes ele é totalmente apaixonado e às vezes ele é machucado (...) tentei seguir um pouco isso, quer dizer, essas histórias, as velhas histórias, que na verdade são histórias eternas do amor perdido, da dor pela perda desse amor, do amor que se procura, do amor que se tenta, do amor (PEDERNEIRAS, 2016).

Os gestos dos bailarinos da dança de Lecuona contam essas ―histórias

eternas‖. Segundo Gil (2001) o gesto dançado se distingue de qualquer outro gesto,

funcional, ginástico, lúdico, teatral. São movimentos que não extrai seu sentido de

um signo previamente codificado, diremos que é pura ostentação de movimentos em

direção a significações. Vemos que em Lecuona a emoção, o pensamento, a

sensação emergem e se constroem enquanto gestos. Helena Katz, ao jornal Estado

de São Paulo, reafirma a competência em Lecuona de Rodrigo Pederneiras a criar

pas-de-deux e diz que é preciso muita coragem e competência para se falar de amor

nos dias de hoje e concorda que a obra coreográfica realiza brilhantemente sua

missão de dançar o amor e de nos ensinar que há sempre algo para ser descoberto

naquilo que se pensa conhecer bem.

Corpos que se roçam e se colam e dos quais escorre paixão por cada rasgo, cada babado, como cada decote tensionando um tipo de sensualidade. Que Rodrigo Pederneiras era o rei do pas-de deux , todos sabiam. Mas que viria a criar uma sequência espetacular de 12 deles ao som do cubano de Ernesto Lecuona (1895-1963) para nos levar a deixar o teatro em estado de graça, isso não era previsível. O Grupo Corpo ensina que sempre há algo para ser descoberto naquilo que se pensa conhecer bem. Trata-se de um manifesto pelo que mais importa: o amor na sua manifestação mais exacerbada. É mesmo preciso muita coragem e competência para nos lembrar disso nos dias de hoje (KATZ, 2005).

As sensações da obra não seriam as mesmas se não houvesse o

envolvimento em uma poética, a entrega dos bailarinos, o investimento de seus

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corpos, ou mesmo como Louppe (2012) afirma, a busca do corpo possível do

bailarino. O Coreógrafo legitima isso ao falar que:

(...)isso tem haver também com esse mergulho dos bailarinos na ideia, deles entrarem mesmo de cabeça, e com isso as contribuições que eles trazem são fantásticas, maravilhosas, ideias muitas vezes tão pequenas que mudam tudo. E nesse ponto Lecuona foi redondo, foi muito gostoso de fazer, o processo (LECUONA, 2005).

O figurino de Freuza Zichemeister conta também as histórias, cada duo

captura uma cor, como se traduzissem o clima de cada trama, medissem as

temperaturas, dessem as primeiras pistas da personalidade de cada duo. Pois existe

o mundo rosa, o mundo vermelho, verde, o mundo preto, o mundo colorido. As

mulheres recebem vestidos de cor e os homens estão de preto. A oposição do claro

e o escuro em Lecuona, transpira um espírito barroco, pois as oposições geram uma

harmonia em todo o espetáculo, o preto é o que faz ser melhor sentidas as cores.

Como os vagalumes que precisam das trevas para serem vistos. Ela recorre a

transparências, drapeados e superposições, trabalhados em malhas, musselines,

tules e stretchs. Faz os vestidos no corpo da bailarina, pois quer que eles não sejam

algo a parte, mas façam parte, seja um prolongamento dos corpos. O cenário não

compõem aspectos materiais a serem descritos, deixando uma percepção de que os

próprios corpos fazem esse papel cenográfico juntos com a iluminação. Ou seja, o

cenário físico cria a possibilidade do ―espaço do corpo‖ (Gil, 2001), aonde o próprio

corpo se torna cena ou o espaço da dança. Pedro Pederneiras, o responsável pelo

cenário e iluminação, afirma sua preocupação por ser um espetáculo apenas de

duos e como o cenário e a iluminação poderia fortalecer as intencionalidades da

obra, diminuindo o volume e aumentando quando fosse necessário.

A primeira preocupação era que seria um espetáculo só de pas-de-deux, ou seja, sempre duas pessoas em cena. O espectador, que está ali, como é que vai se concentrar numa coisa pequena nesse palco grande o tempo inteiro? Então minha primeira opção foi propor um volume dentro desse volume todo que é o palco. A escolha da cor para esses volumes foi em cima dos figurinos. E tem uma hora que tem vários casais e claro que você enche o palco. Então, esse palco tem que aumentar outra vez (LECUONA, 2005).

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A diminuição do volume do palco se deu com a ajuda de placas pretas

grandes, envolvendo o palco (Imagem 05). Na cena final, aumenta-se o número de

casais em cena, houve a necessidade de aumentar o palco com a ajuda de espelhos

como observamos na Imagem 06.

Imagem 05: Cenário de Lecuona para os duos.

Fonte: vídeo de Lecuona (2005).

Imagem 06: Cenário de Lecuona com os espelhos

/cena final. Fonte: vídeo de Lecuona (2005).

Interessante perceber que todas as particularidades cênicas desta obra

parecem serem compostas pela mesma pessoa, dado pelo resultado tão harmônico

do todo. Isso nos mostra a cumplicidade da equipe em torno de um mesmo pensar

artístico, a isso, a fala de Paulo Pederneiras no documentário dos 30 anos do Corpo

(2008) nos é pertinente: ―muitas vezes, luz não é luz , figurino não é figurino e

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cenário não é cenário, tudo isso depois pode virar outra coisa‖, e vira mesmo! O

conjunto cênico trabalha em torno dos sentidos, desaparecendo suas

particularidades e enaltecendo a obra. A iluminação do Paulo Pederneiras é

intencional, estudada e compõem com primazia toda poética de Lecuona. Ela é

vibrante como a cena final dos espelhos e milimetricamente calculada nas cenas dos

duos. Ela, em um primeiro momento, compõem o volume dialogando com as duas

pessoas no palco e com a trama e, no final, dança com os espelhos, multiplicando

os bailarinos, dando um clima de sublime.

Todas as ferramentas cênicas, ou os atos performáticos como vimos em

Borges (2013), de Lecuona foram estudadas em prol de uma intencionalidade:

despertar sensações no espectador e permitir um diálogo da obra com seu vidente.

São as estratégias perfomáticas que viabilizam a transformação dos processos de

arte em formas de vida. Lecuona foi um sucesso reconhecido no Brasil, mas também

no exterior como observamos na crítica do John Rockwell do The New York Times

que exalta a mistura de varias influências nesta obra bem no estilo barroco do

Grupo:

A coreografia é diferente. Alta energia que os duos trazem, um paradoxo com momentos de choque e alívio. É dança moderna! E o que quer que isso signifique: descalços ou com sapatos. Com muitas alusões a dança popular brasileira, a dança de salão, dança afro e mesmo o balé (ROCKWELL, 2005, The New York times).

Quando pontuamos que Lecuona dá início a uma nova fase do Corpo é

porque ela marca um anseio do coreógrafo em prol de humanizar mais a dança, de

erotizá-la, de trazê-la ―mais pro peito‖, como diz Pederneiras (2016). Segundo seu

pronunciamento no trecho a seguir, perceberemos uma angústia de Pederneiras em

observar em obras contemporâneas atuais a necessidade de serem mais

humanizadas, elas carregam muito empenho técnico e menos vida, menos emoção.

Isso é uma percepção artística do coreógrafo.

comecei a ver e a pensar que Lecuona foi uma... mas na época eu nem pensava muito nisso, pelo menos eu não pensava profundamente que foi um período que eu comecei a humanizar um pouco mais o que eu fazia, a trazer mais pro peito as coisas que eu vinha fazendo, tanto que depois disso, veio Onqotô, que vem com um lado forte assim. Acho que essa humanização da dança que hoje eu falo muito, quando falo para alunos, quando falo para coreógrafos, eu falo para as pessoas, eu falo que não só a

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dança , mas acho que a arte contemporânea de uma maneira geral precisa urgentemente ser humanizada. Eu estou cansado de ficar vendo, sei lá... você vai nas bienais e a única coisa que você vê são os artistas envernizando o próprio umbigo, então, eu acho que essa humanização do Corpo começou no Lecuona (PEDENEIRAS, 2016).

A expressão do Rodrigo no trecho acima: ―envernizando o próprio umbigo‖,

faz-nos pensar. Há uma angústia de Pederneiras nesta fala que denuncia uma

realidade na dança brasileira hoje. É verdade que superamos uma reprodução

clássica de achar que fazíamos dança brasileira e encontramos um caminho que re-

significasse as influências européias para a criação de uma linguagem de dança

contemporânea brasileira, como vemos no Grupo Corpo e em outras companhias

que ajudaram a construir um cenário da dança no Brasil. Mas, refletindo nos dizeres

de Rodrigo Pederneiras, será que de tanto buscarmos por legitimações que nos

constituíssem singulares, hoje estaríamos vivendo um anestesiamento crítico, uma

homogeneização dos discursos e caímos nos paradigmas deste século que tanto

resistíamos? Para pensarmos, será que nos embriagamos diante das grandes luzes

do sistema deste tempo e fomos arrastados nessa maré de competitividade que nos

faz esquecer o porquê dançamos?

Segundo Cruz (2014), estamos vivendo uma espécie de silenciamento crítico

em que não há silêncio, senão excessos verborrágicos desencarnados, em que as

ações de artistas parecem cristalizadas numa redoma de legitimações confortáveis,

deixando escapar a metáfora da dança como mudança. Segundo a autora, a dança

contemporânea parece ter produzido um modelo ao negar a noção de modelo, pois

existe nela uma aparência que se repete e não repele enquanto margem, já que se

centralizou. Na percepção do coreógrafo Rodrigo Pederneiras, a dança precisa

repensar seu fazer artístico, seja talvez uma sensibilidade deste artista em perceber

que a dança atual esteja se auto-idolatrando, afastando-se do humano e perdendo

seu potencial de resistir. Cruz (2014) diz que os corpos, assim como tudo no mundo,

tendem a estados de estagnação, porém a condição de existência e permanência de

tudo é a mudança. Sem a evidência do tempo e das relações, das trocas entre corpo

e ambiente, não existe vida. Assim, é possível reconhecer e, até certo ponto,

compreender os processos de adesão, ou mesmo adequação aos mecanismos de

poder que subsidiam a dança contemporânea na atualidade, conceitual e

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economicamente. Contudo, é necessário que haja reflexão e volta àquilo que tudo

descongela: o fogo das experiências afetivas, para que as coisas se modifiquem e

permaneçam. Diante disso, Lecuona lança seu grito: um clamor por uma volta aos

afetos.

O coreógrafo afirma a Martins (2009) que nos primeiros vinte cinco anos do

Grupo Corpo, ele se questionava muito sobre o que era dança brasileira, sobre a

dança em que acreditava, pois ouvia muito falar disso, mas para ele a dança

brasileira em si era um veículo, e tudo o que ele via se distanciava da proposta de se

apresentar uma dança realmente com caráter brasileiro. Havia um elemento que o

instigava, que ele buscou e trabalhou dentro da linguagem contemporânea

permitindo que criasse uma linguagem peculiar do Grupo Corpo como vimos

anteriormente. Doravante a isso, observamos que todas essas experiências dentro

dos fluxos estéticos do Corpo desencadearam um desprendimento do coreógrafo em

relação a toda uma preocupação sobre as formas de movimento, talvez isso o

diferencie e o mostre um corpo resistente para dança hoje. A fase afetiva do Corpo

denuncia um coreógrafo atualmente não preocupado tanto com as formas e os

padrões de movimento, como ele mesmo diz que era uma preocupação antiga.

Rodrigo Pederneiras declara que agora prefere se ver livre dos padrões para

trabalhar. Para ele não existem regras, as regras o limitam em seu processo de

criação, ele encara este processo como na vida, uma luta linda cheia de desafios e é

isto que se reflete no processo e no produto de suas obras.

(...) já faz muito tempo que eu não preocupo mais com isso (com padrões), não preocupo nada, e eu acho que quanto menos preocupar com essas coisas, mais legal, sabia? Por que você começa a ficar muito preso, foi bom ter feito, ter passado por isso, mas quando você começa a se preocupar demais com essas coisas você acaba ficando muito preso. (...) Eu fui cada vez mais com o tempo aprendendo que, quanto menos você tiver pronto, quanto menos coisa você tiver pronta para começar o trabalho melhor, por que a abertura sua é total e quanto mais abertura melhor, sem dúvida nenhuma, para tudo, em todos os sentidos dessa luta linda, em todos os sentidos. (PEDERNEIRAS apud MARTINS, 2009, p. 22).

As amarras foram sendo desfeitas e o coreógrafo foi se sentindo livre para

criar. Com o passar dos anos não somente as preocupações com as formas

mudaram, mas também em relação às críticas.

A importância e a atenção que passei a dar às críticas mudaram com os anos. Antes me preocupava com o papel de uma crítica em relação ao

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desempenho de um espetáculo. Atualmente, não mais. As observações acabam abrindo brechas para eu pensar, refletir, buscar possibilidades; em outras situações, há quem não aprove apenas por razões pessoais. Por isso, essas nem leio. Às vezes, há quem não goste de certas coisas e Não vão mudar a lógica da criação (PEDERNEIRAS apud REIS, 2008. p. 107).

Com o risco da criação de Lecuona, percebo que se dá início a essa fase

mais afetiva do grupo, uma maior preocupação do coreógrafo em humanizar as

coreografias do Corpo, de erotizar seu pensamento, protagonizar o corpo, atenção

maior a subjetividade humana, o sentir mesmo, a carne, aos afetos. A obra carrega

uma profundidade ímpar para pensarmos as intenções epistemológicas desta

pesquisa. Doravante isso, no próximo capitulo, beberemos ainda mais nos seus

sentidos e em sua potência afetiva nas cenas escolhidas para descrição. Esta obra

tem seus motivos ancorados na estesia, na sensação, no afeto, exatamente o que

nos mobiliza a protagonizá-la nesta escrita. A quarta fase do Corpo, como falamos,

começa em Lecuona e tem seu ápice em Onqotô (2005). Nesta obra, observamos

um êxtase criativo do Grupo, uma grande dobra, um rompante em direção a uma

nova expressão que começou com os duos de Lecuona (2004), um sopro barroco

por excelência, a dança dos opostos observada na cena Mortal loucura, a

contradição do claro e do escuro, dos movimentos clássico e popular, do desespero

e da delicadeza, não como oposições, mas como harmonia. A dobra barroca se

expressa fortemente em Bicho Tão Pequeno, nesta cena um bailarino vem

desenrolando seu corpo dobrado até se colocar nu32 em um corpo de homem. O

jogo do claro e do escuro, escondem partes esporádicas do corpo nu e pinta diante

dos nossos olhos um quadro barroco (Imagem 07) (DA SILVA, 2013).

32

Ele estava com um suporte que escondia suas partes intimas, mas dava a impressão do corpo completamente nu. A iluminação foi protagonista nesta cena.

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Imagem 07: Espetáculo Onqoto. Cena ―Bicho Tao Pequeno‖. Fonte: Zé Luís Pederneiras.

Esta obra marca 30 anos de história. Com trilha sonora de Caetano Veloso, o

espetáculo suscita várias inovações no vocabulário do coreógrafo Rodrigo

Pederneiras, em particular, o agrupamento dos corpos, um interesse mais evidente

pelo chão. Fora estes, mais um traço marcante que vemos na leitura das obras do

Corpo, e mais atuante nesta obra, são os movimentos mais a favor da gravidade.

Grande parte dos movimentos do grupo acontece como se a força da gravidade não

constituísse um obstáculo a ser superado pelo apuro técnico que, em certos casos,

obriga bailarinos a malabarismos excessivos. Ao contrário, nas coreografias de

Rodrigo Pederneiras, a técnica corporal trabalha a favor da gravidade que, recusada

como obstáculo, surge inesperadamente como um princípio da criação, como

condição, deixa de ser peso, e isso é um dos diferenciais nas obras (DA SILVA,

2013). Na obra Onqotô (2005), o Corpo se desnuda ainda mais dos pré-

determinismos ao encontro de outras belezas, por expressar um ser selvagem que

alia o corpo com sua capacidade de criação e expressão, de decidir se arriscar por

terrenos desconhecidos, de revelar o obscuro, principalmente nas cenas Mortal

Loucura e ―Bicho Tão Pequeno‖ e se torna um marco para dança brasileira. Nesta

obra, percebe-se que o Grupo Corpo alcança um êxtase criativo, um corpo de

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sensação (DA SILVA, 2013). Essa fase afetiva do Corpo não tem seguido uma

linearidade criacional, é obliqua, ela é produto de seus fluxos estéticos e de suas

poéticas, e tem experimentado trocas de ângulos e perspectivas, ora penetra o

profundo do humano, o amor, como observamos em Lecuona (2004), Onqotô

(2005), Sem Mim (2011), Dança Sinfônica (2015), ora denuncia a frieza do entorno,

a violência de um mundo pautado pelo capital, suas desesperanças, como vemos

em Breu (2007). Ora nos queimamos com a paixão, ora ela desaparece numa frieza

para dar vez à denúncia do que nos tornamos.

Logo após Onqotô (2005), estréia Breu (2007), Ímã (2009) e Sem Mim (2011),

Suíte Branca (2015) e Dança Sinfônica (2015) por sinal, belos espetáculos, mas

percebo que os elementos artísticos que foram sendo desconstruídos,

acrescentados e dados como riscos, eles se repetem sem tanta intensidade nesses

posteriores a Onqotô. É como se não alcançassem o fôlego desta obra (DA SILVA,

2013). Ou como se não conseguissem tirar nosso fôlego, como um repouso, uma

pausa, pois afirmo que quem apreciou Lecuona, Onqotô, sempre espera o devir de

Rodrigo Pederneiras e ele vem tentando, vem se arriscando, como é notório na

trajetória estética do coreógrafo tão misturada com a do Corpo. Importante pontuar

que, em 2015, com Suíte Branca, houve uma aposta do Corpo numa nova

coreógrafa, Cassi Abranches, antiga bailarina do Corpo e atual nora de Rodrigo

Pederneiras. A trilha sonora composta por Samuel Rosa que criou uma atmosfera de

Rock pouco explorada na coreografia, segundo críticos como Katia Calsavara (2015)

da Folha de São Paulo. A atuação da nova coreografa foi recebida como tímida em

comparação aos trabalhos do Grupo, mas carregada de uma grande potência

artística e técnica para se desenvolver, segundo Katia Calsavara. Ela também se

pronuncia em relação à trilha, sua atmosfera pouco explorada pela coreografia e a

atuação tímida dos homens:

Variada e com sonoridades que vão do clima quase circense ao rock pesado, a trilha de Samuel Rosa estabelece boa atmosfera, que poderia até ser melhor explorada. Em alguns momentos, vê-se certa fragilidade do elenco masculino, em contraponto ao brilho evidente das mulheres. Cassi tem talento, é sofisticada no uso da técnica, e pode criar dramaturgias ricas com o tempo (CASALVARA, 2015).

A dança do Grupo Corpo, como percebemos em suas poéticas, vai além de

passos, é uma expressão do ser, atribui sentidos, institui uma estética e se reafirma

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entre as riquezas da dança brasileira. Tudo é expressão, possibilidade, criação.

Como podemos observar até aqui, a dança desta companhia vem despertando o

corpo à cena e fazendo e refazendo desse corpo o palco e não mais um objeto do

cenário, mas o todo ali misturado no corpo, dando sentido e criando outros infinitos.

Em sua arte, o Grupo Corpo vem quebrando paradigmas, acreditando no corpóreo,

em sua capacidade infinita de transcender o dito, tendo sua dança como inaugural.

O Grupo Corpo é hoje uma referência nacional e internacional, que ultrapassa o

domínio da dança, uma trajetória histórica, um grupo memorial que vem

consolidando o seu estilo, seja traduzindo para o palco a geometria virtual do

computador, ou a atualidade realíssima das velhas e novas danças populares. O

Corpo veio reinventar uma certa dança brasileira- para além do exotismo e da

folclorização, causando espanto, como afirma Bógea (2007). No próximo capítulo,

nos entregaremos a poética de Lecuona, ao um estado de performance, criando e

recriando campos afetivos, este estado inebriante de vagalume, vibrante da arte que

nos devolve à experiência afetiva. Na experiência de Lecuona, descreveremos

algumas cenas desta obra coreográfica e seus tramas de amor tão nossos e espero

que vejam os vagalumes que eu vi e dancem com eles.

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TERCEIRA TRAMA:

O BALÉ DA PAIXÃO

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Começamos a nossa aventura afetiva em busca dos fluxos estéticos, das

metamorfoses expressadas pelos corpos de Lecuona, esses fluxos que constituem a

poética do Grupo Corpo. Emprestamos nossos sentidos à obra que se dobra

ferozmente sobre nós, arrasta-nos e revela aos nossos olhos os mistérios do mundo.

No trecho abaixo, como tudo começou:

Quando encontrei a música do cubano Ernesto Lecuona, em São Francisco, numa viagem aos Estados Unidos (...) decidi que iria montá-la. Estava apaixonado pelo disco de Ernesto Lecuona (...) e coloquei a trilha nas mãos do Nando (Fernando Velloso). Entreguei-lhe o CD com a seguinte recomendação: ‗antes de ouvir esse disco, tome duas doses de uísque e fique na penumbra. Você vai chorar muito (PEDERNEIRAS apud REIS, 2008, p. 108).

O texto acima mostra o quanto Rodrigo Pederneiras fora arrastado

emocionalmente com o disco do cubano Ernesto Lecuona produzido na década de

1950. A mistura do erudito e do popular nessas músicas tinha tudo a ver com o

Corpo e arrebatou o coração do Rodrigo. Cria-se, assim, para o coreógrafo, a

possibilidade de uma obra: a dança Lecuona.

Os doze duos, as doze tramas de amor, abrem para nós as portas do jardim

das delícias. Os gestos dos bailarinos contam essas ―histórias de amor‖ tão

próximas de nós. Segundo Gil (2001), o gesto dançado se distingue de qualquer

outro gesto, funcional, ginástico, lúdico, teatral. São movimentos que não extrai seu

sentido de um signo previamente codificado, diremos que é pura ostentação de

movimentos em direção a significações. Vemos que em Lecuona a emoção, o

pensamento, as sensações emergem e se constroem enquanto gestos.

Assim, como quem espera a aurora nascer em meio a uma noite, mesmo

sabendo que vai acontecer, cada amanhecer carrega uma nova sensação, inebria

nossos olhos e parece que sempre é a primeira vez. Espero, dessa forma, que esta

dança embriague os sentidos do leitor, assim como embriaga os meus, e nos

transporte a momentos, a fugas, a lembranças, àqueles instantes que nos

encontramos em outros olhos, em outros braços, em outros risos, em outros. Que

em cada duo descrito aqui, tracemos sentidos que brilhem seus corpos do afeto em

seus passos sensuais em busca de uma educação estesiológica e pedaços de vida

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sejam oferecidos para aquecer nossos pensamentos. Que comece nossa caminhada

de leitura onde as letras se transformam em gestos, imagens do sentido da vida.

Te He Visto Pasar

Num vermelho estonteante, entra no palco a bailarina e seu partner33 em

todo preto de elegância, ao som cubano do Ernesto Lecuona, Te he visto pasar, que

dá o tempero apimentado desta dança. Os dois começam a coreografia numa

caminhada de costas, um do lado do outro, mas sem toques, vindos da primeira

coxia da esquerda de quem aprecia, numa diagonal em direção à última coxia da

direita. Como se tivessem voltando a um ponto da história onde tudo começou. A

caminhada é sedutora e característica do Corpo, o quadril comanda, dando o toque

de sedução na dança e sensualidade aos corpos. No momento que chegam ao meio

do palco, os dois giram e lembram o encontro, marcado pelo olhar e o entregar-se

das mãos, há o toque (Imagem 08). Em seguida, um olhar se aprofunda, num

convite ao tango. A partir de então, tocantes-tocados, sentidos-sentientes, não se

separam, e em todo entrelaçamento, os corpos vibrantes são entregues à dança,

entregues às sensações. Pederneiras ao nos falar desse duo, ele diz:

Esse duo vermelho é mais sensual mesmo. O vermelho tem mais sensualidade, tem mais um sexo mais presente. O que eu gosto muito (PEDERNEIRAS, 2016).

33

O par da dança.

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Imagem 08: Lecuona - Te he visto pasar. Fonte: vídeo Lecuona (2005).

A iluminação é branca, não muito incidente, mas deixa bem viva as cores da

dança, como o vermelho sangue do figurino da bailarina. Este vivo vestido compõe

um decote sugestivo que vai até quase o umbigo, sua saia é leve e solta, com

rasgões que deixam as pernas livres e as costas da bailarina completamente nua.

Parece que o vestido faz parte de sua pele, é um prolongamento de seu corpo, como

sangue jorrando das entranhas, é vida emanando do desejo (Imagem 09).

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Imagem 09: Lecuona - Te he visto pasar II. Fonte: Zé Luís Pederneiras

Os gestos desta cena criam uma dialética do amor. Os entrelaços da perna

da bailarina no bailarino, o pegar de coxas, a forma como ele a segura, caliente,

como se quisesse entrar nela, mostra muita sensualidade. É uma reversibilidade

entre os corpos que os fazem um só na sensação. Eles traduzem desejo, sedução,

sensualidade e mais, sendo possibilidades desses corpos que se lançam um em

direção ao outro. Percebo, no ato da dança, certo deixar-se dominar pelo outro. No

início da coreografia quem a conduz é o bailarino, nesse momento, a bailarina se

deixa com louvor ser conduzida, natural na dança de salão. O bailarino conduz o

corpo da bailarina como uma marionete, num jogo de aceitação, mas, no decorrer da

brincadeira, o jogo se inverte e, logo, quem comanda passa ser comandado. Vemos

as ressignificações da dança de salão não só na arquitetura dos passos, mas,

também, nesta postura da bailarina em conduzir o bailarino em certo momento da

dança.

O ―quero‖ das trocas de carícias, dos momentos profundos de amor, é logo

precedido do ―não te quero mais‖ da decepção, do abandono, da agressividade sutil

percebida nos gestos dos bailarinos e possivelmente reconhecíveis pelos nossos

próprios conflitos humanos. A música do Ernesto Lecuona, ao se unir a esses gestos

e ao conjunto da dança, requebra nossas emoções, dá um ritmo às intenções

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operantes da dança, conta uma história de amor e favorece um espetáculo para

nossos sentidos. Rodrigo Pederneiras diz: ―A referência para mim é a música. Se

tem letra, temos mais uma referência além da música‖ (LECUONA, 2005).

Te he visto pasar

indiferentemente

y ni una emoción

se apoderó de mí

te he visto pasar

y ni um recuerdo vago

vibróen mi corazón

cansado de tí

tú sabes muy bien

que fuistes mi locura

y sabes tambien

que tu fue mi amor

más nunca jamás perdonare

tu ausência tu cruel indiferencia

y quiero que tú sepas

y quiero que tú sepas

que has muerto para mí

más nunca jamás

perdonaré tu ausencia

tu cruel indiferencia

y quiero que tú sepas

(Ernesto Lecuona - Te he visto pasar)

Traduzindo para o português um trecho da música citada logo acima, temos:

“te vi passar indiferente e uma emoção se apoderou de mim... vibrou meu coração...

tu sabes muito bem que foste minha loucura... e sabes também que foste meu

amor”. Esta estrofe remete a uma recordação no momento que alguém foi visto, há

uma história de paixão do passado que por causa daquele encontro tudo se fez vivo,

tudo se fez lembrado, mesmo que percebendo que este encontro é revivido com

sensações tempestuosas, estas que trazem sentidos a essas memórias por conta de

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uma experiência vivida, como podemos observar na lamentação ―jamais perdoarei

teu abandono, tua cruel indiferença‖. Percebe-se que há dor, decepção, falta de

perdão e uma escolha: ―tu és morto pra mim‖, significando mudança de rota e uma

possibilidade de um desviar de pulsão, mas, há uma história que não poderá ser

esquecida porque está inscrita no corpo, é um saber adquirido por uma experiência.

O interessante desta estrofe, quando é cantada no momento da dança, a bailarina

coloca a cabeça do bailarino em sua mão, com uma potência no olhar, mostrando

uma reação em referência àquelas lembranças e sensações dotadas de sentidos, ou

mesmo, àquele momento de dor, traduzido em: “has muerto para mí‖ (Imagem 10).

Imagem 10: Lecuona - Te he visto pasar III. Fonte: imagem de Zé Luís Pederneiras

Como não perceber uma profundidade nesta obra do Grupo Corpo. Eu

gostaria de tentar desvelar esses mistérios e sugerir um diálogo que nos permita

colocar em suspenso a cena e suas artimanhas artísticas e interrogá-la, mirando o

poder de um corpo sensível que, diferente das ―coisas‖, permite-se, no milagre das

sensações, estar com os outros. Na inspiração da coreografia Te he visto pasar, a

estesia se realiza no momento em que lanço o olhar sobre essa obra, olhar nos

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gestos dos bailarinos, envolvo-me com a música, com o vermelho sangue do

vestido da bailarina, envolvo-me com a história de amor do casal, todo este misto

convoca minhas memórias, minhas experiências, minhas profundas e misteriosas

sensações, penetro com este olhar o visível ao encontro do invisível, sou eles e eles

sou eu. Ao mesmo tempo em que olho aqueles corpos dançando, eles me veem, há

a metamorfose, há reversibilidade, há sentido no entrelaçamento de um no outro

causada pela estesia do momento e pela carne do agora. Há cumplicidade entre

mim que estou apreciando e eles que me dão esses sentidos. Este olhar, não se

reduz ao órgão do olho, mas compreendido como ato de significação, não se separa

da estesia, da presença sensível como nos afirma Nóbrega (2009a) e como nos

interpela a imagem (11).

Imagem 11: Lecuona- Te he visto pasar IV. Fonte: vídeo Lecuona (2005).

Ou mesmo, como nos inspira Merleau-Ponty, ao afirmar: ―sobretudo, ser visto

por ele, existir nele, emigrar para ele, ser seduzido, captado, de sorte que vidente e

visível se mutuem reciprocamente e não mais se saiba quem vê e quem é visto‖

(MERLEAU-PONTY, 1964/2009, p. 135). Segundo Merleau-Ponty (1964/2009), no

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entrelaçamento possível com o outro dado pela experiência do corpo, as

propriedades do objeto e as intenções do sujeito não apenas se misturam, mas

constituem um todo novo. Este movimento vivo, necessário e expressivo se

estabelece na estesia do corpo através da reversibilidade dos sentidos. Assim, para

o irrefletido, para o impensado, parte o movimento da reversibilidade, vai em direção

aos mistérios do mundo, ou seja, para um novo encanto. Segundo Merleau-Ponty

(1960/1991), aqueles que, mediante a paixão e o desejo, chegam até esse Ser de

profundidade sabem o que é para saber e a filosofia não os compreende melhor do

que eles mesmos se compreenderam, pois eles que vivenciaram, sentiram, amaram

e isso é uma verdade expressa na estesia do corpo. É nesta experiência desses

atores que a filosofia conhece o Ser.No caso dessa cena descrita de Lecuona, há

esta capacidade de sentir por um corpo sensível que anima a carne e convoca às

memórias. Encontro, desencontro e reencontro, uma memória que surge dotada de

sentido, estesia, dança do amor e rejeição. Há um corpo estesiológico ali carregado

de aprendizagens, que ama, que sofre, que escolhe, ressignifica, decide mudar de

direção. Quando lanço esse olhar de significações sobre a cena Te he visto pasar

percebo os movimentos que muito expressam esta dialética do amor, dos encontros

da vida, das experiências existenciais, cheios de alegrias e de dores, de prazeres e

de angústias, que ninguém está salvo, nem totalmente perdido.

Nessa dialética do amor, que nos sugere este espetáculo, elementos nos são

fornecidos para se pensar os conhecimentos do corpo nesse momento de estesia

dos encontros. Entendendo como dialética não uma relação entre pensamentos

contraditórios e inseparáveis, mas, a tensão de uma existência em direção à outra

existência que a nega e sem a qual, todavia, ela não se sustenta, como afirma

Merleau-Ponty (1945/1994). A técnica clássica dos bailarinos desta cena descrita,

mistura-se com a sensualidade do tango e as sensações da dança.

Segundo Nóbrega (2003) através da coreologia do tango, a história de

homens, mulheres e de uma sociedade é narrada, comunicada, contada, memórias

pessoais e coletivas se encontram e são narradas através de números de dança

intensos. Os corpos do tango são marcados pela sua cultura, revelados e

silenciados nos gestos; sua compreensão vai além da racionalidade técnica,

combinando precisão, sensualidade, geometria e arte, assim como podemos

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observar em Lecuona. Neste ―vai e volta‖, ―quero e não te quero mais‖, os corpos se

entregam um ao outro. A sensualidade é convocada nesta dança junto com o sentir

que anima a carne e que a abre para o outro, abre-a para o acontecimento e o

instante. Descrevo esta cena e vibro e me deixo envolver. E neste mesmo

movimento, sentir e compreender constituem-se em um mesmo ato de significação

possível pela nossa condição corpórea e pelo acontecimento do gesto, cuja estesia

inaugura a possibilidade de uma racionalidade que emerge do corpo.

Quando se fala que Lecuona é o balé da paixão, fala-se da paixão no sentido

de tudo que me afeta, me agarra, me liga ao outro, da ordem do sensível. Nesta

cena de Lecuona podemos perceber o corpo como ser sexuado, a experiência do

desejo e dos afetos como estesia, como comunicação sensível, ligada ao corpo, ao

mesmo tempo, objeto para o outro e sujeito para mim – vice-versa. Aqui, nesta

dança, percebemos a entrega à sensação por corpos que se permitem. Como afirma

Merleau-Ponty: ―temos um corpo, isto é, não um objeto de pensamento permanente,

mas uma carne que sofre quando ferida‖ (MERLEAU-PONTY, 1964/2009 p. 133).

Ou seja, sentir é essa realidade do corpo como carne. O corpo estesiológico é este

corpo capaz de sentir, que guarda em torno de si a memória, e que inaugura o agora

e suas possibilidades de significações.

O vermelho do vestido da bailarina é sensível, vem carregado de significações

e pode transportar a mil mundos. A percepção das cores é um exemplo significativo

da estesia colocada por Merleau-Ponty (1945), onde o vermelho que não é o mesmo

vermelho dos telhados, daquela roupa vermelha das mulheres, da beca dos

professores e advogados, ou mantos dos bispos, ou mesmo da bandeira da

Revolução. Vermelho que é tirado do fundo das idealidades, que pulsa, que é signo

e significação. Da ordem nos dada por Paul Claudel, quando este expressa: ―o azul

do mar é tão azul que só o vermelho do sangue é mais vermelho‖. Vermelho que

cresce em mim, vermelho que me anima, que me transporta, vermelho que me faz

presença, que me incendeia de sensações e sentidos.

O ser visível é natural, construído em torno do ser natural, mas não é possível

que nos fundemos nele e nem que ele penetre em nós, no entanto, apalpando-o

com o olhar, nós o desnudamos e o envolvemos, o vestimos com nossa carne e o

ser invisível ali se torna visibilidade, dotado de significações, dá e recebe sensação

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(MERLEAU-PONTY, 1964/2009). O vermelho desta dança se torna um campo

aberto de significados, eu o visto com minha carne, torna-se vivo e nos convida a

colecionar sentidos e significados. Segundo Merleau-Ponty, "a apreensão das

significações se faz pelo corpo: aprender a ver as coisas é adquirir um certo estilo de

visão, um novo uso do corpo próprio, é enriquecer e reorganizar o esquema

corporal" (MERLEAU-PONTY, 1945/1994, p. 212).

Suas paisagens se cruzam, suas ações e suas paixões se ajustam exatamente, isto é possível desde que parem de definir primordialmente o sentir pela pertencença mesma ‗consciência‘, compreendendo-o ao contrário, como retorno sobre si no visível, aderência carnal do sentiente ao sentido e do sentido ao sentiente‖ (MERLEAU-PONTY, 1964/2009, p. 138).

Voltando às significações da cena, percebo que as diferenças que os

seduziam no início, os levam às repulsões, a um desprezo e, posteriormente, e de

forma inesperada, novas e repetidas atrações, todo esse paradoxo de sensações,

tais fragilidades e complicações humanas, permitem a vivacidade da cena, a

vibração que acontece quando dois corpos desejantes se encontram num tempero

de sexualidade. Para Merleau-Ponty ―o sexual é nossa maneira carnal, já que somos

carne, de viver a relação com o outro‖ (MERLEAU-PONTY, 1960/1991, p. 260). A

sexualidade parte da noção para além do físico, de localidade dos órgãos genitais, e

mesmo do ato sexual, ou seja, é da ordem da relação e necessidade do outro, vem

de uma noção de erotismo que está embasada na tese do sensível em Merleau-

Ponty, ou seja: ―no momento em que a cor e a carne começam a falar aos olhos e ao

corpo‖ (MERLEAU-PONTY, 1960/1991, p. 261). Temos um corpo sexual sempre em

direção a outro, que se deixa ser objeto para esse outro, mas que sente e, diante

disso, é sujeito e objeto ao mesmo tempo. E há prazer e dor nisso e está neste

movimento as duas faces do risco: que nas pulsões da vida pode vir os muitos

absurdos, mas também nossas seguras realizações (MERLEAU-PONTY,

1960/1991).

A experiência estesiológica nos dá o risco, somos entregues a boas ou más

sensações compartilhadas, a vários pontos de vistas, novos e inesperados

significados. Isso não deixa de ser um milagre, uma realidade que nos diferencia

das máquinas, das coisas, e nos permite questionar, criar, escolher, e só acontece

quando um corpo vai em direção ao outro e o incorpora. A literatura de Jean

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Paulhan, ao ser citado por Merleau-Ponty (1960/1991), convida-nos a esse sentido:

―nesse instante, pelo menos, eu fui tu‖ (JEAN PAULHAN apud MERLEAU-PONTY,

1960/1991, p. 197). A dialética do amor da cena Te he visto pasar, esse ―vai e vem‖,

essa angústia de o ―ser para si‖ e do ―ser para o outro‖ lembra-nos o amor de Proust

citado por Merleau-Ponty (1960/1991). Onde pela mesma encarnação, à sua

situação própria, capaz de sentir a falta e a necessidade do outro, mas incapaz de

encontrar no outro o repouso – e surge o ―vai e vem‖ do trágico amor de Proust – e a

dor e o prazer deste jogo que nos sustenta. Segundo o Merleau-Ponty (1964/2009),

ninguém foi tão longe do que Proust ao fixar a relação do visível e o invisível, numa

descrição de ideia que não é o contrário do sensível, mas que é seu dúplice e sua

profundidade.

Nos movimentos dos bailarinos da cena descrita, transportamo-nos a este

mundo de relações, de encontros que nos une ao outro e gera sensações diversas,

experiências, e existe logus nisso, como afirma Merleau-Ponty (1964/2009): ‖o que

vivo é tão ‗consciente‘, tão ‗explícito‘ quanto um pensamento positivo‖ (MERLEAU-

PONTY, 1964/2009, p. 146), pois é a experiência da carne vivenciada no corpo e

neste agora, é o que vivo e, isso, é uma verdade tão explícita quanto qualquer

pensamento positivo.

A dança desses dois bailarinos da cena Te he visto pasa‖ tem verdade, tem

conhecimento, tem solidariedade com as possibilidades humanas, percebo uma

empatia entre eles que me obrigam a me envolver na cena e sentir, tem o vivido, o

prazer e a dor dos encontros e desencontros que a relação com o outro nos

proporciona, uma forma de ser e estar no mundo. A dança de salão em si já é uma

dança sugestiva, pois precisa do outro, do entrelaçamento, do ir e vir, da entrega dos

corpos. É ali o envolvimento de dois corpos, uma mistura que traz experiência e

conhecimento vivido. O sentir não pede arrependimento, mas experiência, novas

formas de solidariedade, aprendizado, mesmo que compartilhando uma dor, esta

condição que também faz parte da existência que é por tantas vezes negada por

discursos modernos que discriminam do corpo a dor e o sofrimento. Merleau-Ponty

(1960/1991, p. 75) nos auxilia nesse reflexão ao afirmar que: ―porquanto, agir ou

mesmo viver já é aceitar o risco de infâmia com a chance de glória‖. A vida e o corpo

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presente no mundo exigem esse sentir que é um milagre do humano.

pretendo-me senhor não só das minhas intenções, mas também daquilo que as coisas farão delas, assumo o mundo, os outros como são, assumo-me a mim mesmo como sou e fortaleço-me com tudo isso (MERLEAU-PONTY, 1964/1991, p. 75)

Assim, por mais que a história de amor dessa dança de Lecuona nos mostre

os afastamentos desses corpos como possibilidade, as memórias desses encontros

estão no corpo, há um inscrito ali que não pode desaparecer, mas, nem tudo está

perdido, pois esses inscritos podem ser ressignificados por novas escolhas, uma

nova sensação, como poder do corpo, como nos ensina Merleau-Ponty (1945):

No próprio instante em que vivo no mundo, em que me dedico aos meus projetos, a minhas ocupações, a meus amigos, a minhas recordações, posso fechar os olhos, estirar-me, escutar meu sangue que pulsa em meus ouvidos, fundir-me a um prazer ou a uma dor, encerrar-me nesta vida anônima que subtende minha vida pessoal. Mas, justamente porque pode fechar-se ao mundo, meu corpo é também aquilo que me abre ao mundo e nele me põe em situação. O movimento da existência em direção ao outro, em direção ao futuro, em direção ao mundo pode recomeçar, assim como um rio degela. (MERLEAU- PONTY, 1945/1999, p. 228).

Mariposa

No palco, uma bailarina de vestido rosa-claro e um bailarino de calça e

camisa preta. Inicia a cena Mariposa no toque harmônico de Ernesto Lecuona. A

coreografia começa um circulando o outro, numa empatia, em que neste ―agora‖

meu mundo dá voltas no seu. Penso: talvez, seja um primeiro encontro em toda uma

expectativa tão romântica. Eles param, olho a olho, o bailarino suspende a bailarina

com uma mão em seu pescoço e a outra em em seu abdómen, como vemos na

Imagem (12). Brilha o sentido, parece que ela flutua como num primeiro beijo ou

como na primeira noite de Charles Swann e Odette Crécy, no romance de Marcel

Proust. Unem-se, assim, pelo amor, dois extremos ambíguos, duas complexidades.

O movimento repete-se mais uma vez e ouço Merleau-Ponty: ―tudo que recebo,

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perdido fora do mundo e dos objetivos, fascinado pela única ocupação de flutuar no

Ser com outra vida, de fazer-se o exterior de seu interior e o interior de seu exterior‖.

(MERLEAU-PONTY, 1964/2009, p. 140).

Imagem 12: Lecuona - Mariposa. Imagem de Zé Luís Perdeneiras

Ele a gira, ela o gira, como se pontuasse o tempo. O tempo da obra não é o

tempo Cronos, mas o tempo Kairós. Segundo Nóbrega (2016), o tempo Cronos nos

devora em sua passagem cotidiana, ele é contínuo, linear. Os gregos, também

conceberam o tempo Kairós, ele rasga o tempo do Cronos, rasga e o recria. Esse

tempo é o tempo da literatura, da poesia, da dança, o tempo da expressão. Quando

o corpo do bailarino se prolonga ao espaço, criando seu próprio espaço, por um

investimento afetivo, o tempo é o Kairós. Este tempo da expressão também é real

nos corpos dos amantes. Posto que, onde estiver um investimento afetivo se evoca

esta temporalidade. Assim, esses giros de ―Mariposa‖ mostram que a flecha do

tempo não é linear, entretanto curvar-se em ciclos. Maffesoli (2014) diz que as mais

elementares das honestidades intelectuais nos forçam a reconhecer os ciclos:

econômicos, políticos, ciclos dos afetos, ciclos dos sentimentos, ciclos amorosos ou

amigáveis. Vemos nos gestos dos bailarinos que há um ciclo afetivo.

Continuando na descrição dos gestos, os dois dançam e celebram o amor

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―sem fim‖, neste momento os gestos são mais contidos, sem muitas dobraduras,

com mais sustenção de pernas em promenades34, remetendo mais ao clássico.

Esses gestos desse primeiro ciclo mostram uma certa continuidade, nada muito

novo, uma certa zona de conforto, sem riscos. Como se naqueles braços, naqueles

olhos, naquele corpo desse o encontro com um amor ―ideal‖. Quanto a mim, sinto-

me levado a exclamar, com o mergulhador de Schiller (1797): ―(...) Alegre-se, quem

aí respira na luz roséa‖.

No decorrer da dança, ela se entrelaça nele pelas costas, mostrando a

confiança no parceiro. A dança relembra momentos singelos, graciosos, de ternura,

de carícias, de promessas. Ah! As promessas! ―nunca te deixarei‖, ―estarei sempre

aqui‖, ―te amarei sempre‖ , ―seremos felizes para sempre‖ e por mais que soe

devaneio, é a verdade mais verdade dos que amam, a verdade que se instala

naquele instante. Segundo Nóbrega (2015), quando dizemos ―eu te amo‖, reunimos

em nosso ser corporal condições biológicas e imaginárias que dão sentido a essas

palavras e ao engajamento de nossa experiência afetiva e amorosa. O

Romantismo35 e suas eternidades: amor eterno, sofrimento eterno, juras eternas, ―e

foram felizes para sempre‖ são muito próximas s nossas experiências, pois se

instalaram em nossa cultura através dos filmes, dos romances de ―Harlequim‖, das

novelas, dos ballets e etc., mas é um convite à reflexão.

Convidando a psicanálise, Freud (2010), ao dissertar sobre a felicidade,

afirma que a busca do homem é ser feliz e permanecer nessa felicidade. Essa busca

tem dois lados: quer a ausência de dor e desprazer e, por outro lado, a vivência de

fortes prazeres (fortes emoções). Para o homem contemporâneo, de jeito nenhum

há de considerar e nem aceitar a dor. Assim, é ―o programa do príncipio do prazer

que estabelece a finalidade da vida‖ (FREUD, 2010, p. 30). O amor, a paixão, passa

a ser um dos paliativos para a fuga do desprazer da vida, sendo, assim, o caminho

para busca da felicidade, claro que a felicidade dentro dos parâmetros do príncipio

do prazer. Prazer e prazer. Engana-se quem acha que no amor só há prazer: no

amor há mistérios! Esse princípio do prazer estabelece leis ao amor no que não há

34

Expressão do ballet clássico para denominar movimentos de sustentação de pernas enquanto o corpo gira em seu eixo. 35

Refiro-me ao Romantismo de século XVIII e XIX e seus ideais utópicos, heroicos.

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leis. A ópera ―Carmen‖ de Georges Bizet (1875) já nos falava ―L’amour... Il n'a

jamais jamais connu de lois”36.

Continuando a descrição, logo após a bailarina de Mariposa se entralaçar no

tronco dele pelas costas, ele a gira, ela dá um salto e cai ao chão e continua

segurando nas mãos do parceiro. Ela cai, o primeiro desequilíbrio, uma quebra de

fluxo e mudança. Ele a segura e a levanta como se fosse um pedido de perdão,

como dissesse: ―vamos recomeçar‖, ―nos ajudaremos‖ ―passaremos juntos‖. Um

gesto que mostra persistência, que não desiste num primeiro momento. A

coreografia, como já afirmamos, pontua o tempo Kairós, o tempo do amor, esse

tempo é perceptivo nos gestos repetitivos, muitos giros, as caminhadas, no

movimento de transportá-la fazendo ir e voltar, como que pontuando o tempo, como

se levasse a lembrar de um passado feliz e a condição de um futuro feliz somente ao

seu lado. Percebe-se na dança um passado (desde o primeiro encontro, passando

pelos conflitos) dado por uma memória afetiva que se desdobra no presente

pontuado pela música que analisaremos a seguir. A dança demonstra o passar do

tempo: este não cronológico, mas o tempo vivido, sem códigos pré-estabelecidos. A

dança pontua um tempo cênico, em que em um minuto pode se falar uma longa

história, assim como afirma Louppe (2012): que o tempo da dança é o tempo de

uma trama, dado em fluxos ligeiros e/ou calmos.

Nos gestos que marcam o meio ao final da dança, mostram conflitos, uma

mudança de fluxo, os gestos são mais rápidos e foge mais do clássico, da postura

da dança de salão, há mais riscos, mais tensão, movimentos inusitados. Os passos

que antes eram um em função do outro, mais fluidos, agora pontuam momentos que

parecem ensaios de pequenas fugas da bailarina, um gesto comandado pela cabeça

como em busca de ar (Imagem 13), um pedido para partir talvez, ou por

individualidade, uma busca por seu espaço tão misturado no do outro. Os gestos

mostram o bater de asas de uma borboleta que quer sair da jaula, um sair para

respirar, para viver, assumir sua liberdade de mariposa, anseio por voar por outras

paisagens (Imagem 14). Acontecem gestos como de afastamento de ―não me vejo

mais em você‖ e ―não vejo mais em sua direção‖, pois há um anseio por outros

36

―O amor… jamais conheceu leis.‖

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mundos, este enclausura-me e me estanca, se é que eu ―eu posso‖ por um corpo

que pede mais.

Imagem 13: Mariposa - Lecuona/fuga.Fonte: vídeo Lecuona (2005)

Imagem 14: Lecuona - Mariposa/gesto da mariposa.

Fonte: Vídeo Lecuona (2005)

Há um corpo que pede criação. A mariposa tem asas, mas precisa romper o

casulo, ter a coragem de voar, de mudar, eis a metamorfose. Eu não me acho mais

naquele momento. Esse estado de metamorfose dado pelo afeto é a possibilidade

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dos devires dos relacionamento amorosos no campo privado, como também dos

relacionamentos sociais, éticos e políticos de ordem pública - são campos da

sabedoria. Como também na metamorfose do artista nos campos estéticos. Nisso,

Merleau-Ponty, em A Dúvida de Cézanne, mostra como a arte ensina a vida e a vida

ensina a arte:

O artista segundo Balzac ou Cézanne não se contenta em ser um animal cultivado, assume a cultura desde o começo e a funda de novo, fala como o primeiro homem falou e pinta como se nunca se houvesse pintado. A expressão não pode ser então a tradução de um pensamento já claro, pois que os pensamentos claros são os que já foram ditos em nós pelos outros (MERLEAU-PONTY, 2004b, p. 121).

Merleau-Ponty quis dizer que não dá para criar sem romper com uma

sedimentação cultural de qualquer ordem. A criação parte da expressão do novo, de

uma metamorfose existencial. Há um amadurecimento do pensamento. Preciso

romper com o estanque. Para ser borboleta preciso romper o casulo, o ―pássaro‖

precisa romper o ovo, para o pensamento criar, precisa romper com os

determinismos da razão, para o artista criar precisa atrever-se em sua obra. É

laborioso. O conhecimento nos pede mais criação, mas outros (no sentido de

abertura a outros mundos), a outros sentidos, adquirir outros olhos. Mudamos e com

isso recomeçamos a todo instante, esse é o fluxo da existência, nos recriar. Nesta

dança há o conflito, ele não a deixa partir, ela quer ir, mostra asas no movimento,

pede para voar.

Merleau-Ponty (1960/1991), ao citar Freud, diz que a maneira de amar escapa

a qualquer definição, mas assim como a criança que se resume a sistemas de

atrações e tensões aos pais (mínimo) e por eles a todas as outras (mundo). Assim o

amor infantil que não saiu da zona mínima exige tudo a todo instante e é

responsável pelo que pode permanecer devorador e ―impossível em todo amor‖

(MERLEAU-PONTY, 1961/1991, p. 257). O tempo, as relações afetivas nos dão a

paciência do saber, da espera, ferramentas novas para lidar com o que antes era

impossível no amor. Caminhando para o final da dança, a bailarina procura pelos

beijos quentes e não encontra, ela se lança nos braços dele e, no fim da coreografia,

ele a derruba (Imagem 15). Penso: seria a saudade de um costume, o querer voltar

a um amor que já de frágil afrouxou as raízes. Ele diz ―não‖, houve a decisão de não

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sustentar, ele a deixa cair. Os braços que sustentavam não estão mais ali, agora na

solidão, somente as marcas no corpo.

Terminamos no chão. Curioso pensar numa coreografia que começa com

sustentação, elevações e um porte clássico, este que é inadimissível a queda.

Depois, ao longo da coreografia, percebemos as quedas e os desequilíbrios e o fim

da dança no chão. Aspectos que nos levam a pensar em mudança, transgressão,

desconstrução, busca de uma nova organização. O viver não é linear, é um

movimento em busca do equilíbrio e depois um novo desequilíbrio, como nos inspira

Ernesto Lecuona nessa trilha: ―De aquella pasión; en mi vida fue luz e penumbra.

Locura infinita37‖(Lecuona, música Mariposa). O afeto mostra bem isso. Assim,

terminamos no chão, de volta às experiências, aos afetos, chão que pode ser o fim

ou a partida de um novo recomeço.

Imagem 15: Lecuona- Mariposa II. Fonte: vídeo Lecuona (2005).

A música requebra nossas emoções e nos envolve ainda mais nessa trama e

nesse tempo kairós. Mostra-nos um outro ponto de vista da trama: o presente e a

dança seria a memória afetiva. O passado é a dança e o presente a música (a

narração), um encontro, os tempos se entrelaçam:

37

―Aquela paixão foi luz e trevas, uma loucura infinita‖.

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Mariposa de lindos colores

Que en mi patio cantas

Al atardecer

Mariposa

Ay si tu pudieras

Decirle en tu canto

Mi cruel padecer

Mariposa de lindo plumaje

Que suave y que dulce

Es tu lindo cantar

Al oírio me viene el recuerdo

De aquel amor triste

Que me hizo llorar

Mariposa de lindos colores

Que em mi patio cantas

Al entardecer

Mariposa que canta solita

Em su jaula dorada

Cuando muere el sol

Si superas que pena tan grande

Yo siento em mi alma

Desde que se fue

Dile em tu cantar mi tristeza y dolor

Que muriendo me estoy por su amor

Mariposa yo se que en mi vida

Ya no ha de volver a brilhar mas el sol

Mariposa

Y se que ya nunca, tendré sus caricias

Sus besos de amor

Al oirte cantar mariposa

Me viene el recuerdo

De aquella pasión

En mi vida fue luz y penumbra

Locura infinita

Consuelo y dolor

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(MARIPOSA - Música Ernesto Lecuona)

A letra da música descreve ele sentado no pátio do seu recinto e tem um

encontro a tarde, ao pôr do sol com uma mariposa, com suas belas cores, que

brilha com o sol (―em su jaula dourada cuando muere ele sol”). A borboleta é uma

imagem que o remete a mundos. Ele ao vê-la escuta um canto, escuta nesse canto

o seu cruel padecer. Ele vê na figura da mariposa sua história. Esse olhar que

escuta: pelo encontro do olhar com a significação. Merleau-Ponty diz que a

fenomenologia do sensível é profundamente marcada pelo encontro do olhar com a

significação, processo em que não há separação entre a expressão e o expresso, o

ato e a significação. Esse olhar não se resume à funcionalidade dos órgaos da visão,

mas a uma certa atitude de corpo, um olhar que é significação: ―A apreensão das

significações se faz pelo corpo: aprender a ver as coisas é adquirir um certo estilo de

visão, um novo uso do corpo próprio, é enriquecer e reorganizar o esquema

corporal‖ (MERLEAU-PONTY, 1945/1994, p. 212). Esse olhar de ―Mariposa‖ que

escuta o canto é o ―não senso‖38 de uma lógica, a lógica do sentido que abraça os

paradoxos, os opostos num novo sentido, o sentido da arte, segundo Deleuze

(1988/2015).

Na música de Mariposa, as lembranças de toda a história de amor voltam,

mas não só as lembranças de prazer, mas as que causam dor, em perceber que

tudo se foi e o relacionamento acabou. No bater de asas daquela borboleta, ele

lembra do seu amor perdido (―se superas que pena tan grande yo siento em mi alma

desde que se fue”39). Esse talvez seja seu casulo: ficar preso nessa dor, nessas

lembranças. Quem nunca? Ele precisa romper do casulo para se recriar, voar a

outras paisagens: cantar o canto de Fernando Pessoa (1931):

38

O não-senso é uma noção de Deleuze no livro ―A lógica do sentido‖ (1969) que não é oposição ao fato de ter um sentido, na verdade não-senso tem um sentido: que é o de não ter sentido (o que não é definido previamente). A lógica do sentido em Deleuze perpassa pelo entendimento de unir o sentido ao não-senso, união, co-presença, unir linhas paralelas, unir as oposições numa harmonia (barroco), que numa lógica objetiva era impossível, mas na arte, na vida, nos afetos, é possibilidade. 39

―se soubesses que grande sentimento eu sinto em minha alma desde que você se foi‖ (Mariposa- Ernesto Lecuona)

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Eu amo tudo o que foi Tudo o que já não é

A dor que já me não dói A antiga e errônea fé

O ontem que a dor deixou, O que deixou alegria Só porque foi, e voou

E hoje é já outro dia

E, num repente, o desequilíbrio, o conflito mostra que o outro não é

exatamente o aquele a quem idealizamos amar. Percebemos que ele tem segredos

e mistérios maiores que pensávamos, e ficamos perplexos ao perceber que ele tem

caminhos traçados e que quer percorrê-los, muitas vezes, sem nós. Perdemos a voz

ao saber que a alma do outro é hóspede e hospedeira de outras almas. E as nossas

pernas tremem ao constatar que a redoma era ilusão. Que todo o castelo de amor

era ilusório. E a dor chega e castiga e fustiga a alma com cem mil acusações.

Tenho comigo que o que mais dói é a obrigatoriedade que nos impomos,

quando o castelo desmorona, de ―desamar‖ o outro. Fizemos um esboço de amor e

é desorientador apagá-lo. Desamar é doloroso demais. E assim, quando o outro não

mais deseja estar ao nosso lado, isso nos fere e sangra, mas o que nos massacra

não é o outro. É desejo egoístico de aprisionar um espírito que também, assim como

nós, tem sede de infinitos. Tantos relacionamentos duradouros que acabaram e

deixaram o costume, o reaprender, recomeçar de novo sem aquele outro que foi o

companheiro de uma vida, dói. Amor que está nas lembranças do tempo, de um

tempo. Recordar e trazer o passado ao presente com dor, repetir sensações e

conviver com a solidão, a saudade.

Freud (2010) diz que nunca estamos mais desprotegidos ante o sofrimento do

que quando amamos, nunca mais desamparadamente infelizes do que quando

perdemos o objeto amado ou seu amor. Perdeiras (2016) ao nos falar de Mariposa,

ele diz: ―Mariposa é a paixão, é aquela que vai com seu canto dizer a ele que eu

nunca vou esquecê-lo‖ (PERDENEIRAS, 2016).

Mas, a vida é um circuito. Um dia despertará e lembrará que foi assim como

uma música, que nos embriaga de beleza, mas não deixa de ser bela porque

chegou a última nota. Arrepender-se? Não do que vivemos. As minhas experiencias

são legítimas, foram as verdades daquele instante, elencaram-me. O romper de um

estado é a espera do devir da criação. Interessante pecebermos que para esta

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dança ter sentido houve muitos investimentos, entre tantos, temos os dos bailarinos

no processo de criação de Lecuona. Observamos nesta fala da bailarina Cassilene

Abranches, que dança Mariposa e Te he Visto pasar, o investimento sensorial que

não poderia dar-se sem recorrer as suas experiências vividas: ―foi um trabalho

interno muito grande, todas as minhas emoções, umas vivências minhas muito fortes

que eu tive, eu consegui colocar nesses pas de deux‖ (LECUONA, 2005). Ela

continua a falar que: ―com Lecuona , tivemos mais liberdade de ser a gente

mesmo...você vê que cada pas de deux tem a personalidade de cada casal‖.

É possível perceber nessas falas a ressignificação de cada bailarino em

transformar em dança suas próprias experiências e dar outro olhar ao seu passado,

um olhar de futuro, eles não estão em abstração à dança, existe naqueles corpos

dançantes também suas verdades e tem no espectador como uma testemunha

privilegiada, como afirma Louppe (2012), e colaboram com os sentidos da obra, no

desvendar de sua poética. Mariposa nos toca por sua descontinuidade, por sua

complexidade tão nossa e tão próxima do nosso mundo e de nossos dramas. Ser

Mariposa é servir à beleza, é criar beleza, é romper o casulo, não com menos dor,

mas conhecer com suas asas outros mundos.

Yo Te Quiero Siempre

A bailarina começa sozinha no palco, descalça e de camisola. Ela dança

como se estivesse preparando um ambiente. Seus saltitos, movimentos nervosos de

braços e cabeça em todas as direções denunciam uma ansiedade, a espera de

alguém em sua casa ou em outro ambiente íntimo preparado para o amor. Até que,

à esquerda do palco, o outro, tão esperado, não demora em chegar para dividir a

cena de volúpia, para responder a uma saudade, responder a uma urgência. Inspira-

nos Guimarães Rosa (1969) ―esperar é reconhecer-se incompleto‖. A bailarina pula

em seus braços, como se naquele corpo encontrasse a resposta para suas vontades

de amores, segundo a imagem a seguir (Imagem 16).

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Imagem 16: Lecuona - Yo te quiero siempre. Fonte: vídeo de Lecuona(2005)

Logo após esse momento de celebração do encontro, o bailarino desliza a

bailarina sobre o seu corpo até sentá-la em uma de suas pernas, começa uma

interação, a dança sexual. A bailarina começa controlando a situação, brinca com a

cabeça do bailarino, como se tivesse o domínio de uma bola e a jogasse de uma

mão para outra, que brincasse de dominá-lo, como nos faz perceber a Imagem (17).

Ele ali como boneco, uma marionete que se deixa comandar, isso mesmo, ele deixa.

Existe alguém: a mulher, que tem tomado as rédeas do seu corpo e do seu prazer e

reivindicado liberdade para sentir. O coreógrafo Pederneiras ao falar desse duo, diz:

―Ele, a dominância é da mulher, a dominância maior é da mulher e eu fiz questão de

fazer isso‖ (PEDERNEIRAS, 2016).

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Imagem 17: Lecuona - Yo te quiero siempre II. Fonte: Zé Luís Pederneiras

Lecuona, entre falar de amores, traz também como sentidos o

empoderamento feminino. Essas tramas da dança criam um espaço dialético para

elas se expressarem, pois ao olhar seus gestos, suspendemos nossos tabus, nossos

preconceitos sobre nossa própria sexualidade. Além de Lecuona contar histórias de

amor, com que homem e mulher podem se identificar em suas próprias experiências,

não podemos negar que Lecuona também conta as histórias delas, suas entregas,

suas dores, seus medos, seus desejos, seu ciúme, sua potência ao sentir.

Pederneiras, ao nos falar sobre esse espaço de expressão dado a mulher em

Lecuona, diz:

O Arnaldo Antunes que falou do Lecuona, tem uma frase que eu adoro: Lecuona é uma ‗ode a mulher‘. E é exatamente o que quis fazer foi uma grande homenagem à mulher (PEDERNEIRAS, 2016).

No mundo atual, as mulheres tem tido mais espaço para refletir e se voltar à

sua sexualidade, isso é muito bom, mas temos que refletir e ter cuidado para não

cairmos em outros ditames da contemporaneidade, os ditames do ―corpo seu‖

(Andrieu, 2004). Importante pensarmos com Andrieu (2004): o corpo se tornou uma

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busca para o homem contemporâneo e o seu único modo de vida. Mantido, cuidado

e prolongado na sua existência, o corpo humano é a única matéria de ser sobre o

qual o indivíduo pensa poder agir livremente. Não se identificando no corpo social, o

homem busca no ―corpo seu‖ (Andrieu, 2014, p. 15) o lugar de liberdade para intervir

e dominar. Esse ditame passa de um nível social para um nível pessoal, mas

continua sendo um ditame sobre o corpo.

Alain Badiou, em sua obra Éloge de l’Amour (2009), afirma que há uma

ameaça ao amor que é a negação de sua importância, sendo este colocado no

mesmo plano dos prazeres da vida, não considerando qualquer experiência

profunda de alteridade e nem de dor. O sujeito do amor não assume seu risco, se

abstém de compromissos, objetiva-o. Isso parece ocorrer em consonância com a

sociedade moderna, explicita Badiou, na qual o egoismo e o consumismo sao

incentivados pela indústria do prazer solitário, que tem no mundo da web seu meio

fértil. Haveria a necessidade de reinvenção do amor, a inclusao do risco e da

aventura.

Voltando à descrição dos gestos da dança, esse domínio da bailarina cessa e

ele a toma nos braços. A dança prossegue numa dialética interessante, uma disputa

de quem domina quem, enquanto o bailarino tenta prender a bailarina em seus

movimentos, ela escapa, ela foge, ela quer domínio, mas vence e perde e volta a

perder e a vencer, a perder. Rende-se! Isso é o jogo do amor. Engana-se quem

pensa dominá-lo. Viver esse momento que os convida, ser ganhador e perdedor ao

mesmo tempo. Ganhar amores e perder o controle, perder é preciso, perder-me e

me achar naquele corpo, pois eu sou ali, exatamente nesse instante infinito. O tato é

muito observado nessa dança, são os olhos desse duo, a proximidade, o tocante-

tocado, o ponto transgressor. O bailarino se envereda ao toque para se instalar em

cada curva e em cada dobra, parece que desenha uma pintura no corpo dela, seria

como a expressão do seu interior, pintado naquele corpo (Imagem 18). Onde os

outros sentidos não podem alcançar, o tato alcança, nas zonas mais secretas. O tato

une, ou mesmo, lembra-nos que há coisas que precisam apenas ser tocadas.

Andrieu (2004, p.69) pinta essa cena ao falar que ―a pele torna-se uma tela, um

espelho sensível‖.

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Imagem 18: Lecuona - Yo te quiero siempre III. Fonte: vídeo Lecuona (2005).

O tato tem valor de conhecimento, não como objeto da visão, mas como

sujeito sentido. A função erótica do tato é indissociável de uma relação com o outro.

Enquanto o olho (órgão) é a expressão do juízo, da vigilância, da condenação ou

mesmo da danação, o tato é descrição da interioridade em contato com o exterior

(ANDRIEU, 2004). Louppe (2012) afirma que o sentido mais desenvolvido pela

dança contemporânea é o tato. Neste contexto, a mão ou qualquer outra parte do

corpo, pode tornar-se olho, e a palma da mão tateante pode tornar-se olhar. A dança

se desenvolve na maioria do tempo no chão, os bailarinos rolam um sobre o outro,

se tocam, se sentem, várias mãos em todas as partes do corpo, eles se entrelaçam

na intimidade, com cheiro de vida e de desejo. A imagem (19) a seguir poetiza esse

momento, parece que os corpos formam um círculo, como que dificultando discernir

onde começa um corpo e termina o outro. Um encaixe, dois quase inteiros que se

penetram. Imagem da reflexividade, um dentro e um fora que se interligam, um

interior e um exterior sem distinções. Ou mesmo:

(...) flutuar no Ser com outra vida, de fazer-se o exterior de seu interior e o interior de seu exterior. Movimento, tato, visão, aplicam-se, a partir de então, ao outro e a eles próprios, remontam à fonte e, no trabalho paciente e silencioso do desejo, começa o paradoxo da expressão (MERLEAU-PONTY, 1964/2009, p.40).

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Imagem 19: Lecuona - Yo te quiero siempre IV. Fonte: vídeo Lecuona (2005)

Que imagem vibrante! Nesse paradoxo de expressão, nas palavras de

Merleau-Ponty na citação acima, um campo afetivo é criado entre eles e eu. Esta

cena, diante desse estado de performance dos bailarinos, toca nas minhas emoções

e me inflama. Lacince e Nóbrega (2010) me respaldam ao dizer que este estado de

performance é dado pela sensação, há reversibilidade da carne, haja vista a estesia

capaz de estabelecer essas inesperadas relações entre o vidente e o visível, eu e a

obra. Cruzam-se nossas experiências, eles me oferecem um pedaço de vida. Que

beleza se dá nos encontros! Como diz Merleau-Ponty (1945/1994), a sexualidade

nos coloca como objeto e sujeito ao mesmo tempo, objeto para o outro, mas sujeito

para mim, sujeitos que se sentem, uma reciprocidade de existência que o sexo,

como o afeto é a melhor imagem.

Continuando a descrição, percebemos um jogo do amor entre os dois e um

entregar-se às sensações. Até que a bailarina se levanta independente e começa a

caminhar, com o bailarino ainda no chão, segue o empurrando com seus pés, esse

segue rolando, ela segue seu caminho imponente, como se o chutasse. Há uma

quebra de níveis entre os dois, eles que estavam no mesmo plano, agora ela está

em pé e ele no chão. Anda sem se importar, um olhar fixo para frente, como se nada

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podesse impedir seu caminho, como se apesar de presa no amor, ainda fosse

caçadora. Inspira-nos a Imagem abaixo (20):

Imagem 20: Lecuona - Final da Coreografia Yo te quiero Siempre.

Fonte: vídeo de Lecuona (2005).

A música nos dá pistas dessa trama, mais de prazer do que de permanências,

uma recusa à dor. O único compromisso que percebemos é consigo mesmo, de

satisfazer suas vontades, de cumprir com um pedido do corpo que quer o outro

naquele instante, obedece à ordem do prazer, mas recusa um futuro, a não ser que

o sempre se eternize agora. O determinado é assustador nessa cena, o

compromisso apenas de fazer o outro feliz no instante, sem promessas. Apenas te

ofereço o já, o amanhã não importa, essa é a verdade que sou: a sensação que nos

damos nesse instante infinito. ―Pode ser que te queira agora e, logo após, não mais‖.

Apolo-Dionísio é uma dialética interna do corpo que busca o sensível, o busca de

seu jeito, e não quer perder o controle de suas vontades. Isso a tragédia grega

soube pôr em cena. Um dualismo entre eu e o outro ganhado no século XXI. Este

século ganha bastante com avanços tecnológicos, avanços biotecnológicos, as

descobertas genéticas, ampliação dos discursos no campo de humanas: maiores

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reflexões sobre diversas inclusões – seja social, racial, sexual – sobre direitos, seja

do trabalho, seja para resguardar da violência, seja para garantir uma maior

liberdade de expressão. Mas, diante de todos esses avanços, perde-se por outro

lado a co-pertença. Estamos cada vez mais sós, isolados em nossos escritórios,

apartamentos, em nossos corpos. Perderemos mais?

Muitos sentidos rodeiam essa cena que estamos a mergulhar, e a música

auxiliam ainda mais as sensação desse outro que se submete por amor a essa

relação de instantes, ―A pesar de tudo, yo te quiero siempre”. Ele entra nesse jogo

apesar de saber que as chances de tê-la somente para si é quase nula, mas aceita

esse amor apesar de denominá-lo na música como ―falso amor‖. Essa relação é

existência. Essa é a forma que eles vivem o amor. Ele sofre por não possuir, apesar

dele decidir pertencê-la. Ela pode oferecer amores, mas não pode oferecer o futuro,

ela é intensamente hoje, ela não é de ninguém, ela se pertence, ela é do vento, ela

vai para onde o corpo for, escolhe ser assim: amar do seu jeito. Abaixo a música Yo

Te Quiero Siempre de Ernesto Lecuona:

Que tristeza tengo

Desde que te fuiste

Dejando en mi ser

Hondo padecer

Amargo dolor

Se que no me quieres

Nunca me quisiste

Y tu falso amor

Fue une burla cruel

A mi corazon

A pesar de todo

Yo te quiero siempre

Y mi anhelo es

Verte junto a mi

Besarte otra vez

Yo te quiero siempre

Aunque se que no me quieres

Vuelveme a enganar

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Si, mi sino es

Por tu amor llorar

Esta dança tem muitos pontos contrastantes, a trama, o pé descalço da

bailarina, a busca pelo chão, tantas pistas para diferenciar esse duo e trazer um

certo espanto40. Remete-nos do escândalo que Valeska Gert havia causado à

inteligência parisiense em 1931 no Thèatre dês Champs-Elysées, com sua dança

significativa tão fora dos códigos sociais da época. Esta bailarina oriunda dos

cabarés berlinenses, onde atuava com artistas políticos contestatórios como

Huelsenbeck, assim como nos lembra Louppe (2012). Que amor é esse dessa

cena? Esse tipo de amor é falso, ilusório, como fala a música? Não. É verdade, pois

é uma verdade daquele corpo, é uma expressão de afeto, uma escolha de uma

forma de amar e se permitir não se dar a promessas. Por que ela decidiu amar

assim? São reflexos de suas experiências? Reflexo de uma dor? Foi o que deram a

ela? Isso é produto de quem sofreu muito por ter expectativas frustradas? Talvez

Freud, Lacan, Reich, entre tantos sábios das dores humanas podem dar pistas, mas

somente quem viveu pode responder. Mas, sei que essas experiências afetivas são

conhecimento, são formas de existências, aquele corpo decidiu assim, sente assim,

vive assim. É diferente apenas, diferente do que denominamos amor, do que

determinamos amor. Porque amor se define com ―eu te amo‖ e só. Ou como

expressa Swann nos braços de Odette no romance de Marcel Proust (1913, p.167):

―via-se, no futuro, a encontrar-se todas as noites com Odette; isso talvez não

quisesse dizer que a amaria sempre, mas de momento, enquanto a amava, já lhe

era bastante crer que não passaria um dia sem vê-la‖.

Apesar do sofrimento, esse outro insiste, pensa que seu amor mudará o

parceiro, ele se instala em promessas ―yo te quiero para siempre‖, ele não tem o eco

que gostaria, mas aceita, precisa disso agora e até que ele possa ou aprenda a viver

de outra forma, vai ficando ali, voltando aquele colo enquanto este existir para ele,

sendo dela e ela sua por alguns instantes – e que instantes! Como quem estivesse

dependente daquele prazer. Sofrer? Ele precisa sofrer, pois o sofrimento é contraste

desse século anestesiado (ANDRIEU, 2004), ele decide sofrer, pois o sofrimento é o

40

Espanto no sentido de quebra de uma certa razão ou linearidade de um sentido. Espanto no sentido daquilo que desconstrói minhas certezas.

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pago por esse amor e ele se faz humano, isso será sempre mistério “Si, mi sino es

por tu amor llorar”41. Segundo Andrieu (2004), o sujeito contemporâneo procura

tomar corpo, isso é devido à dificuldade da sua integração no corpo social. Já não

podendo esperar uma alternativa política para derrubar o capitalismo, o indivíduo

quer tornar-se sujeito do seu corpo, mais do que permanecer objeto de um corpo

social. Ao se apoiar, sobretudo, tudo a si próprio, o indivíduo tende confundir

legitimidade do seu desejo e legalidade dos seus direitos. A procura da sensação é,

neste aspecto, sintomática de uma exaltação do presente e da presença, longe das

comemorações do passado e das projeções num futuro em que a economia nunca

modificará verdadeiramente as relações de classes sociais.

Segundo Andrieu (2004), transformada em valor de uso, a sexualidade

encontra no corpo do outro uma ética do prazer. Esta instrumentalização do corpo

do outro (como vemos nos gestos de nossa bailarina), é o resultado da escolha de

uma sociedade cada vez mais tecnológica. O uso do corpo, vê-lo racionalizado para

que dele se obtenha o máximo e ótimo em relação ao investimento subjetivo. Isso

define um ―individualismo hedonista‖ (ANDRIEU, 2004, p.25) como sintoma de uma

sociedade contemporânea que busca definir, dominar e enclausurar. Esse duo tem

muitos contrastes, muitos paradoxos, confunde-nos, coloca muitas questões a

refletir, uma dialética entre Apolo-Dionísio, corpo social- corpo seu, eu-outro, afeto-

razão, prazer-domínio. Convivemos com tantas questões, carregamos em nós as

escritas desse século, mas será sempre no afeto que encontramos os pontos fora da

linha, as problematizações desse mundo, como nos diz Maffesoli (2014). O pé no

chão da bailarina representa o desprender, o ponto fora da linha, o desmonte de

uma elegância do salto alto, um elemento transgressor da cena, a diferença entre

todos os duos de Lecuona. A bailarina Ana Paula Cançado que dança esse duo, fala

que:

Era para ser de salto também. E eu tentei convencer a Freusa. E eu disse que a mulher estava dentro de sua casa esperando o homem chegar. E esse era um momento dela íntimo na própria casa, então ela não estaria de salto, andando para lá e para cá na casa. E eu tentei falar com Rodrigo e convencê-lo, que se podia mudar e que seria muito legal (LECUONA, 2005).

41

―se é meu destino por teu amor lamentar‖

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Esse relato mostra a participação da bailarina no processo de criação e de

intencionalidades da dança. Existia a Ana Paula Cançado naquela performance. O

pé no chão também nos mostra um certo cenário estético que é desconstruído na

dança contemporânea, que, ao colocar os pés no chão, abdicar das sapatilhas de

pontas da dança clássica, dos tutus, mostrou-nos uma ruptura aos moldes, às

flutuações das fadas, a uma maior liberdade para o corpo e uma escolha de sentir a

terra, voltar-se à natureza, ao mundo, ao mundo humano, com suas complexidades,

voltar-se aos afetos. Loie Fuller acreditava que a dança precisava voltar à Natureza,

para assim se chegar expressão direta das sensações. Ela diz: ―o corpo está

preparado para exprimir, e exprimiria se fosse livre, todas as sensações, como faz o

corpo do animal. (...) Mas só as sensações naturais e violentas podem ser expressas

pelos movimentos naturais, e é o que tento fazer‖ (FULLER apud SASPORTES,

1983, p.156). Esse duo nos embriaga. Embriaguez é a melhor palavra para se referir

a essa trama, muitas coisas contrastantes que se fazem possíveis juntas e elevam

nosso pensamento ao ponto de nos permitir questionar ―o corpo meu‖ e uma volta ao

afeto ―do corpo que sou‖.

Recordar

Em nossa conversa com o Rodrigo Pederneiras, ele nos confidencia um

carinho pessoal e nos faz um pedido: ―tem outro [duo] que eu gosto muito que é o

roxo. Presta atenção nele‖ (PEDERNEIRAS, 2016). Como recusar esse pedido?

Não apenas prestei atenção no ―roxo‖ (parece um lilás), como ele se voltou a mim

arrebatador. Dessa maneira: como aquele olhar enigmático da Gioconda de Da Vinci

que parece não desistir de olhar-me no Louvre - mesmo se desviando de tantos

outros olhares curiosos e ansiosos em tirar a tão esperada foto com ela ao fundo –

todavia, ela se colocava a me buscar, como se buscasse seu descanso no meu

olhar. Assim, ao me despertar para este duo, Pederneiras sabia o que me pedia.

Os primeiros tons melódicos da música Recordar começam a ser ouvidos no

cenário ainda escuro. Começamos a ver as formas ficando claras a partir do instante

que a iluminação aos poucos toma todo o espaço. Percebemos: um bailarino

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arrastando a bailarina pela cintura da direita para esquerda de quem aprecia. Ela

está com o tronco flexionado quase tocando as pernas e as mãos ao chão, como se

quisesse agarrar em alguma coisa na terra (Imagem 21). O som desse arrastado, o

dedilhar no piano, remete-nos aos contos etéreos, aos portais que se abrem entre

dois mundos, uma abertura as possibilidades dos sonhos. De costas, eles entram no

passado, ou melhor, ele a arrasta para lá.

Imagem 21: Lecuona -Recordar. Fonte: Lecuona (2005)

Logo após esse deslocamento, eles param. Ela sobe o tronco perpendicular

ao bailarino com movimentos ondulatórios que começam nas mãos e segue pelo seu

corpo, até voltar a colocar as mãos ao chão. Repete-se o movimento, com uma

diferença: dessa vez ela sobe completamente o tronco e tira os pés do chão se

alongando por completo, enquanto ele a segura pela cintura. Logo ela volta a

colocar a mão ao chão: caminha três passos com as mãos na direção oposta à qual

fora arrastada, mas, de repente, o bailarino vira o tronco dela para ele. Quando ela

tenta colocar a mão novamente no chão, ele a puxa e a levanta. Ela foi vencida.

Percebo que ela tenta resistir, tenta voltar a mão, fica dividida entre esses dois

mundos. Posto que a mão é o que ela tenta se agarrar no agora. Mas, se rende as

lembranças. Enquanto isso, a música de Ernesto Lecuona alicia nossas

significações: Recordar/ Tenerte otra vez, con una sombra fugaz de un anochecer.../

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Mirar hacia atrás /Buscar y añorar lo que fui42.

As memórias a arrastam para um tempo outrora. É o Recordar. No Dicionário

Etimológico (2008), a palavra ―recordar‖ vem do latim recordare, formado de re (de

novo) e cordis (coração), o mesmo que ―voltar ao coração‖, pois os antigos

acreditavam que a memória estava no coração. Assim sendo, nossa bailarina

recorda, ou mesmo, ela ―(re)acorda‖ em algum lugar onde o afeto a transportou, ela

se volta ao coração. Fundamental, para pensarmos a memória em Recordar,

refletirmos sobre o tempo. Diante disso, Merleau-Ponty em Fenomenologia da

Percepção faz um elogio do Tempo. Na perspectiva do nosso filósofo, esse tempo

está para além do tempo cronológico, linear. Todavia, é o tempo vivido, uma

profundidade, que se instala na presença. Segundo Merleau-Ponty (1945/2011) ao

citar Bergson, o tempo não é como um riacho, ele não é uma substância fluente que

vai do passado em direção ao presente e ao futuro, mas ele é o desenrolar de um

observador em movimento. É o tempo das vivências, das intensidades, é o tempo

que não está sob a égide de Cronos e sim de Kairós (tempo da arte, tempo do afeto,

tempo das experiências vividas, tempo da memória) como já refletimos em

Mariposa.

Portanto, o tempo não é um processo real, uma sucessão efetiva que eu me limitaria a registrar. Ele nasce de minha relação com as coisas. Nas próprias coisas, o porvir e o passado estão em uma espécie de preexistência e de sobrevivência eternas; (...) Aquilo que é para mim passado ou futuro está presente no mundo (MERLEAU-PONTY, 1945/2011, pp. 551-552).

Esta concepção do tempo não pode ser pensado fora das relações e este

caminho conduz à subjetividade. O agora não é temporal sem o humano, sem as

sensações. O passado de um sujeito e o porvir se encontram no presente, no tempo

sentido. Nóbrega (2015), ao falar do tempo, diz que este se instala na presença,

num corpo que guarda em torno de si o fio das horas, a ordem dos anos e dos

mundos. Nele, o corpo se faz presença, não há separação entre passado, presente

e futuro, mas estes se imbricam. Mas, por si mesmas, as memórias não remetem ao

42

―Recordar. Ter-te outra vez como uma sombra ligeira no anoitecer. Olhar para trás, buscar ansiar o que eu fui.‖

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passado: são presentes; e, se encontro ali signos de algum acontecimento ―anterior‖,

é porque tenho, por outras vias, o sentido do passado, é porque trago em mim essa

significação. Merleau-Ponty (1945) diz que uma percepção conservada é uma

percepção, ela continua a existir, ela está sempre no presente, ela não abre atrás de

nós essa dimensão de fuga e de ausência que é o passado. Reflitamos com

Merleau-Ponty (1945) nesta citação:

Quando evoco um passado distante, eu reabro o tempo, me recoloco em um momento em que ele ainda comportava um horizonte de por vir hoje fechado, um horizonte de passado próximo hoje distante. Portanto, tudo me reenvia ao campo de presença como à experiência originária em que o tempo e suas dimensões aparecem em pessoa, sem distância interposta e em uma evidência última. É ali que vemos um porvir deslizar no presente e no passado. Essas três dimensões não nos são dadas por atos discretos: eu não me represento minha jornada, ela pesa sobre mim com todo o seu peso, ela ainda está ali, não evoco nenhum de seus detalhes, mas tenho o poder próximo de fazê-lo, eu a tenho ainda em mãos (MERLEAU-PONTY, 1945/2011, p. 557).

Neste sentido, entendemos que quando acesso minhas memórias, eu estou

presente no tempo, eu o visto com minhas significações e marco o tempo no meu

corpo vivido. Não um passado como ausência no presente, mas uma presença, uma

percepção que mesmo conservada ainda está a existir. Assim como vemos em

Recordar, um tempo vivido nas recordações da dança. No momento que ela se

lembra de alguém que se foi, a memória afetiva é ativada, sentimos em nosso corpo

estesiológico as percepções de um tempo atrás que agora está aqui, o passado está

presente. E um porvir deslizará no instante quando os horizontes são abertos por

linhas intencionais e as re-significações são possibilidades colocadas diante da

nossa bailarina. Estão em suas mãos. Ela precisa vencer a força gigante desse

passado e atravessar por esses portais abertos que a traz de volta a vida. Força que

em figura de homem, voltando aos gestos, pega-a pelas costas em direção a si,

enquanto que ela lança as pernas para cima, como se quisesse escapar do

bailarino. Entretanto, ele faz um gancho com o braço direito logo abaixo do braço

direito da bailarina. Com a sua mão esquerda desliza para a perna esquerda da

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parceira e a gira em esparcato43. Ela lança a perna que está solta para o alto e na

volta entrelaça a perna nele, repete o lançar de perna, mas na volta a coloca no

chão. Logo após, o bailarino desenvolve ainda mais o esparcato dela em uma pose

de um segundo. Nessa pose, o braço direito dela o segura e o seu esquerdo aponta

para o lado oposto aos seus corpos. Os gestos não são contínuos, fluídos, mas

observa-se uma sucessão de paradas: ora com as duas pernas da bailarina

estendidas, enquanto que ele a segura pela cintura, ela entregue em seus braços

(Imagem 22), ora em arabesques44. Paradas e poses como quem para a registrar

um momento em uma foto.

Imagem 22: Lecuona - Recordar II. Fonte: Zé Luís Pederneiras

Nas paradas e poses dos gestos, a música dolorosa promete: Recordar/És mi

amor de ayer que juré por Dios que nunca le olvidaré45. Essas paradas remetem às

mesmas que eternizamos nas fotografias, dotadas de movimento histórico. Os

registros de momentos em fotos, vídeos, quadros, eternizam-se, posto que quando

vistos novamente trazem as lembranças embrulhadas nas emoções: são sentidas no

presente como presença. Lembro-me o poema de Drummond:

43

As duas pernas da bailarina estão em direções opostas, em uma abertura de 180⁰ . 44

Uma perna ao chão e a outra para trás. Pernas em 90⁰ . 45

―É meu amor de antes que jurei por Deus nunca esquecê-lo.‖

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Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes

e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos.

Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava

que rebentava daquelas páginas.

(DRUMMOND, Os Mortos de Sobrecasaca)

O poema enaltece “o imortal soluço de vida” que jaz paralisado numa foto e

pode, de repente, rebentar vivo ao nosso olhar. Não há como se desfazer do

passado, da memória, mesmo que as fotos se acabem um dia roídas pelos vermes.

As lembranças estão em nós, constitui-nos. Todavia, quem nunca se pegou na

emoção ao abrir aquela velha caixa de fotos, aquele álbum que remete a momentos

especiais, com pessoas especiais que se foram de nossas vidas. Digo da saudade

que muitas vezes invade bruscamente o peito para nos lembrar que na verdade ela

nunca fora embora. As lembranças que são embrulhadas de afeto, fazem-nos

reconhecer nossas histórias, outros rostos, nosso mundo, são os escritos do corpo,

as nossas experiências vividas que mesmo sem alcançar nosso consciente, estão lá

nas sombras do inconsciente46, conduzindo nossas escolhas.

Continuando a descrição dos gestos, logo após as paradas e poses, que

parecem que fazem soluçar os movimentos, o bailarino pega a bailarina pela cintura,

sustentando-a e a gira, como se esta flutuasse, em um molde das utópicas imagens

de todos os casais possíveis no mundo, marcadas pelo mesmo dedilhar do piano

encantando no início da dança. O portal se abre novamente, idas e vindas entre

passado e presente. Os gestos dela mostram conflito, como se tivesse dividida no

presente: entre o passado que viveu e o futuro de novas possibilidades. Ele a arrasta

novamente, agora em pé, virada para quem aprecia, com seu braço direito fazendo

um gancho no ombro dele. Ela arrisca pernas ao alto, como se buscasse impulso

para se soltar, talvez do poder que essas lembranças tenham sobre ela, de

permanecer em uma dor e de se negar viver outras tantas belezas. Mas é vencida

novamente. A partir daqui a melodia muda, o rosto da bailarina fica leve e pulsa

46

Segundo Nóbrega (2016), para Merleau-Ponty uma filosofia da carne é o oposto das interpretações do inconsciente em termos de ―representações inconscientes‖, tributo pago por Freud psicologia de seu tempo. O inconsciente é o sentir mesmo, pois o sentir não é a possessão intelectual ―do que‖ senti, mas despossessão de nós mesmos em seu proveito próprio, abertura ao que não temos necessidade de pensar para reconhecê-lo.

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sorrisos, retomando um tom onírico, junto com os movimentos que passam a ser

fluídos como uma valsa. Um amor de outrora é vivenciado, fora lindo, os momentos

bons geralmente são mais exaltados na perda e nenhum outro relacionamento será

o mesmo, pensa a nossa protagonista. Não é de todo engano.

Realmente não será a mesma experiência, não digo pior, nem melhor, mas

diferente, pois a esperança dos recomeços chega com o novo, basta nos permitir

novas sensações. Muitos vivenciam o amor com um rasgo a que a alma se submete

intencionalmente para exigir que a mão do outro a costure. O problema é que a mão

do outro nem sempre está disponível para esse trabalho: a alma sangra, dói, e os

rasgos se expandem ainda mais. Isso vale para o amante que perdeu o ser amado e

projeta-o em um novo relacionamento, vale para uma mãe, um pai que perdeu seu

filho e o projeta em outro filho, entre outras vivências. Anular assim uma identidade é

o maior erro que cometemos contra o outro e contra nós mesmos. A dor é uma

condição humana, mas não pode anular as perspectivas. Entendo que a dor, quando

bem resolvida, pode ser um prenúncio de beleza. Sei que vivenciar a dor também é

parte do exercício de amor. E que para que o belo de fato advenha, é preciso viver a

dor, senti-la, tocá-la, integrar-se a ela, e transformá-la.

Nossa protagonista segue em sua experiência da dor. Logo após a valsa, na

harmonia da frase musical do Ernesto Lecuona soñando contigo/recordar, que

pausadamente é cantada, une-se aos movimentos do bailarino que busca a bailarina

de seu colo e a faz navegar pelo espaço, como se a fizesse acompanhar o

movimento das ondas do mar com todo o seu corpo. Seguem os movimentos

fluídos, até que são interrompidos. Nesse ponto, volta os movimentos soluçados:

entre as poses e os arrastados (Imagem 23). Em uma das poses a bailarina fica

perpendicular ao bailarino, na horizontal, em formato de cruz (Imagem 24), este dá

uma volta de 360 graus com ela nessa posição, enquanto Ernesto Lecuona chora

novamente o verso: Juré por Dios que nunca le olvidaré47.

47

―jurei por Deus que nunca te esquecerei‖

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Imagem 23: Lecuona-Recordar/arrastados. Fonte: Lecuona (2005)

Imagem 24: Lecuona- Recordar/Cruz. Fonte: Lecuona(2005)

A imagem da cruz, a posição da bailarina, remete-me a um sentido de morte e

apontam nossas emoções nessa direção. É uma condição que dá a expectativa de

uma vida finita, mesmo que muitos não aceitem, talvez até por uma defesa natural

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do nosso organismo contra a sensação de impotência gerada pela morte. Entretanto

é uma realidade que não podemos escapar, pois para onde corramos, ela nos

espera no fim. Cecília Meireles lembrada por Rubem Alves (2003) em sua crônica

―Sobre a Morte e o Morrer‖ sentia algo parecido:

E eu fico a imaginar se depois de muito navegar a algum lugar enfim se chega… O que será, talvez, até mais triste. Nem barcas, nem gaivotas. Apenas sobre humanas companhias… Com que tristeza o horizonte avisto, aproximado e sem recurso. Que pena a vida ser só isto… (MEIRELES apud ALVES, 2003).

Rubem Alves (2003) diz que a morte e a vida não são contrárias. São irmãs. A

"reverência pela vida" exige que sejamos sábios para permitir que a morte chegue

quando a vida deseja ir. Aceitar o fim, possivelmente perto daqueles que amamos

até o último suspiro. Mas, deixá-los ir. E nos permitir também seguir sem eles, pois a

vida ainda espera por nós com uma alvorada. Isso pede uma sabedoria que não nos

exige pressa para ser incorporada. Sabe que temos medo de pensar a ida de quem

tanto amamos. Nosso cronista olha a Pietà de Michelângelo, com o Cristo morto nos

braços daquela mãe e diz tocado pela obra: ―o morrer deixa de causar pavor‖

(ALVES, 2003).

Schopenhauer em sua obra ―Metafísica da morte‖ apresenta a morte como

―musa da filosofia‖ e diz que Sócrates a definiu como preparação para esse fim.

―Dificilmente se teria filosofado sem a morte‖ (Schopenhauer, 1844/2000, p.59).

Enquanto a filosofia permanece desconhecida, o homem vive de forma tranquila e é

o conhecimento de sua existência e a percepção de que se é finito que o torna

reflexivo à morte. Essa visão reitera a ideia de que um dia a matéria terá fim:

O animal vive sem conhecimento verdadeiro da morte: por isso o indivíduo animal goza imediatamente de todo caráter imperecível da espécie, na medida em que só se conhece como infinito da espécie, na medida em que só se conhece como infinito. Com a razão apareceu, necessariamente entre os homens, a certeza assustadora da morte. (SCHOPENHAUER, 1844/2000, p.59).

Nisso, esse filósofo (1844) diz que a religião e a filosofia podem mais do que

qualquer outra manifestação preparar o ser humano para um olhar tranquilo à face

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da morte. As palavras de um rei48 das escrituras sagradas do judaísmo e do

cristianismo disse duas coisas importantes: ―há tempo de nascer e tempo de morrer‖

e ―melhor é ir à casa onde há luto do que ir a casa onde há banquete; porque

naquela se vê o fim de todos os homens, e os vivos refletem em seu coração‖

(Eclesiastes 3:2 e 7:2). A morte é uma condição humana e também o momento que

nos convida à reflexão, pois somos tentados a lembrar que temos um fim. A morte

quebra toda prepotência humana. Ela não se convence com o melhor discurso, nem

com a melhor oferta financeira.

Segundo Medeiros (2005), precisamos refletir sobre essa superioridade do

homem em detrimento aos outros seres da natureza, imposta pelos próprios

homens. Os homens por utilizarem a linguagem, ratificam sua superioridade, porém

a morte faz com que voltem à condição animal, já que seu poder de fala foi

arrancado, voltando ao silêncio da irracionalidade. A morte, acompanhando esse

entendimento, não dualiza com a vida, mas é seu outro lado, a realidade da natureza

que não podemos fugir a esperar que um pensamento positivo crie uma solução que

nos faça eternos. Todavia, segundo Badiou (2002), a arte, nossos pensamentos,

nossas obras, são eternos, porque na arte o infinito aparece como latente na finitude

do corpo visível. Ou seja, o corpo capaz de arte torna-se eterno na fecundidade de

suas obras.

Ao olharmos esse pas de deux somos tentados a agradecer a arte e achar

que a emoção e a criatividade são as coisas mais importantes do mundo. Somos

levados a catarse. A partir de então, a educação, a partir do olhar a dança, se faz

possível, pois compreender está nessa relação sujeito e mundo num dado campo

afetivo e num tempo vivido, por exemplo, ao compreender essa performance, não

opero uma síntese pura, eu vou-lhe ao encontro com meus campos sensoriais, meu

campo perceptivo, passado-presente-futuro, e, finalmente, com todo ser possível,

uma compreensão pessoal a respeito do mundo. Não temos outra maneira de saber

o que é um quadro ou uma coisa senão emprestar nosso olhar, e a significação

deles só se revela se nós os olharmos de certos pontos de vistas, de certas

distâncias; em uma frase: ‖se colocamos nossa conivência com o mundo a serviço

do espetáculo‖ (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 575).

48

O rei é Salomão, rei de Israel, das escrituras bíblicas.

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Descrevendo os últimos gestos de Recordar, logo após a cruz, o bailarino

levanta a bailarina e a coloca sentada em seus braços com as pernas esticadas para

frente, ela a olhar ativamente para esquerda do palco, como se mirando

insistentemente o que está lá, o que está além do portal, o que foi um dia, o que

ainda é em sua memória. Ela volta de joelhos para seu colo e baixa o tronco para

tocar com a mão o chão, tocar o real. Volta a ser suspensa. A mesma mão passa em

seu corpo como se fosse uma auto-apresentação. ―Eu estou aqui‖, como um começo

de um despertar. Logo após, ela se pendura nele, ele a sustenta pela mão para dar

início a uma caminhada no ar, acima do chão, passando novamente pelo portal,

enquanto a música ecoa: Quiero recordar en está canción su amor49. Ele a gira no ar

segurando pelos braços e continua o movimento a arrastando novamente pelo chão

em direção ao portal que liga dois mundos. Coloca-a novamente em seu joelho. No

fim, na pose final, ela projeta o braço para trás. Uma parte do corpo está presa nele

e a mão buscando a terra (Imagem 25).

Imagem 25: Lecuona - Recordar/Pose final. Fonte: Lecuona (2005)

49

―Quero recordar nesta canção seu amor‖

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Percebo que as locomoções: os arrastados, o andar flutuante, remete a

entrada num mundo onírico, aonde as lembranças amargam uma teimosa dor. Mas

há as resistências corporais, o drama: o buscar o chão, o se mostrar com as mãos.

Estas muito significativas nesse pas de deux. As mãos como pontos transgressores.

O gesto de auto-apresentação que ela exerce, acorda uma significação merleau-

pontiana, como se dissesse: ―eu sou o tempo‖ (MERLEAU-PONTY, 1945/2011, p.

564). ―Estou aqui‖. Eu não sou espectador do tempo. Os meus gestos são seu

marcador. A subjetividade não está no tempo, posto que ela o assume e o vive e se

confunde com a coesão de uma vida. Assim, em toda a dança, os gestos significam

alguém dividido, as repetições de idas e vindas ao passado nos fazem perceber que

ela ainda está aprisionada naquele rosto, naquela história. Todavia, a pose final

acorda o fio da esperança. Mesmo no colo do passado, ainda há os movimentos das

mãos olhando o futuro. Rodrigo Pederneiras expressa esse sentido ao falar

possivelmente desse duo: ―O amor que foi perdido para sempre e que jamais será

esquecido. A promessa de nunca esquecer esse amor e ter que cumprir essa

promessa‖ (LECUONA, 2005).

A alma, outrora rasgada, poderá fazer das cicatrizes uma arte emoldurada e

rebordada de vida, na certeza de que toda a dor, bem lá no fundo, labora a nosso

favor. Devemos, assim, dessa forma, exercitar a liberdade; não o desamor. Em

nossa alma aprendiz, amar é desejar estar ao lado do outro para sempre. É construir

uma redoma de sonho e ali inserir o amado, sob a eterna e vigilante proteção dos

nossos olhos. E queremos que o outro caiba exatamente no nosso sonho e viva o

nosso projeto de existência. Que ele esteja no cenário que construímos e encene o

papel que lhe escrevemos. Porém, esquecemos que o artista pode deixar o papel no

meio da peça.

Acredito importante pontuar que a bailarina que dançou Recordar, Sylvia

Gaspar, foi uma dos poucos bailarinos que dançou novamente Lecuona em 2016.

Ela, unida ao bailarino Edson Hayzer, repetiram o pas de deux nessa

reapresentação doze anos depois da estréia. Todavia, algumas coisas aconteceram

nesse intervalo de tempo na vida da bailarina que é significativo para nossa

descrição. Em 2013, Sylvia tivera uma segunda filha chamada Joana. Entre ensaios,

apresentações do Grupo Corpo, estava a pequena a acompanhar a mãe.

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Infelizmente um ano e dois meses depois, sua filha veio ser acometida por uma

doença que a levara a morte. Seis meses, conta a bailarina ao jornal O Tempo,

ficara recostada em uma cama de hospital com sua filha, um momento muito difícil

de muita dor entre aquela possibilidade de perdê-la. Um mês após a morte de

Joana, Sylvia que tinha pensado em parar de dançar, recebe um pedido do Corpo:

―Eles falaram que precisavam de mim, mas eu sei que não precisavam. Eles não

fizeram isso por eles, fizeram por mim‖ (GASPAR apud ATHIÊ, 2015).

Quando descobrimos, recebi todo o apoio e o carinho do grupo. Eles pagaram todo o tratamento dela e me deram estrutura para cuidar e tentar curar minha filha. Quando eu pensava em algo que tinha que fazer, já estava tudo pronto e arranjado por eles. Infelizmente, ela faleceu. Nós a perdemos. E, novamente, eles me abraçaram. Não tem como não me sentir parte dessa família‖, conta, emocionada (GASPAR apud ATHIÊ, 2015).

O afeto que Sylvia Gaspar recebera dos seus amigos, possivelmente de sua

família, aqueceu seu corpo e a devolveu a vida. Consigo imaginar pelas minhas

próprias experiências de morte a dor dessa mãe, mesmo não conseguindo talvez

alcançar a profundidade dessa dor, mas sei de uma coisa: ela transformou esse

sofrimento em dança. Isso é vida naquele corpo e para quem a assiste. Essa

transformação causada por um corpo possível de afeto é o que nos motiva na

pesquisa. Com certeza, no pas de deux Recordar, em sua reapresentação de 2016,

como também no duo forte e dolorido feito por Sylvia Gaspar em Dança Sinfônica

em 2015, tem muito de Joana.

São os fluxos estéticos que nos fazem pensar a memória enquanto geradora

de futuro. Com essa problemática, Merleau-Ponty (1945/2011) diz que este porvir

não é feito apenas de conjecturas e divagações. Adiante daquilo que vejo e percebo,

sem dúvida não há nada de visível, mas uma sombra, que carrega meu mundo por

linhas intencionais que traçam antecipadamente pelos menos o estilo daquilo que

virá. O tempo não é linha, mas uma rede de intencionalidades. Estas não partem de

um Eu central, mas de alguma maneira de meu próprio campo perceptivo, que

arrasta atrás de si seu horizonte de retenções e por suas pretensões morde o porvir,

numa coesão da vida. Nosso filósofo pede emprestado os versos de Paul Claudel

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para enriquecer nossa reflexão: ―o tempo é o meio, oferecido a tudo aquilo que será,

de ser afim de não ser mais‖ (apud MERLEAU-PONTY, 1945/2011, p. 562). Assim, a

educação se faz possível na arte, assim como em Recordar, pois compreender está

nessa relação sujeito e mundo num dado tempo vivido, por exemplo, quando

compreendo um quadro, uma dança, não opero uma síntese pura, eu vou ao

encontro dele com meus campos sensoriais, meu campo perceptivo, passado-

presente-futuro, e, finalmente, com todo ser possível, uma compreensão pessoal a

respeito do mundo. No fundo do próprio sujeito, descobríamos portanto a presença

do mundo, de forma que ele não deveria ser compreendido como síntese, mas

êxtase. Existe, portanto, uma intencionalidade operante.

Nessa frase final da descrição de Recordar, resta-nos agradecer ao Rodrigo

pela sensibilidade em nos mostrar o caminho aonde a potência significativa desse

pas de deux, parafraseando Drummond, mostra-nos o imortal soluço de vida que

rebentava, que rebentava daqueles gestos.

Celos

Essa trama tem por nome Celos, significa ciúmes, e já nos dá pistas do seu

enredo. A cena inicia com os dois bailarinos no palco de costas para platéia. Eles

estão um ao lado do outro com as mãos dadas e cruzadas em seus corpos. Os dois

estão de preto. Neste primeiro momento, um gesto de quadril da bailarina chama

minha atenção: ela joga o quadril sobre ele como se quisesse o empurrar e repete

esse gesto três vezes (Imagem 26), apesar de continuarem lado a lado com as mãos

unidas, parece que estão em meio a uma discussão que se confirma quando o

bailarino ergue a bailarina e ela joga as pernas para baixo em sinal de resistência,

como se quisesse correr sem sair do lugar, tal gesto se repetirá no decorrer de toda

a dança, pontuando a trama narrada naqueles corpos.

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Imagem 26: Lecuona - Celos. Fonte: vídeo Lecuona (2005)

A dialética da dança é bem dramática, os gestos são intensos, nervosos,

principalmente os da bailarina. Ele tenta controlá-la em seus braços e ela se altera

nos gestos, se prende nele. É um querer e um não querer misturado com dor, com

culpa, com ódio, muito ódio, traição, amor, muito amor, ciúme, muito ciúme e muita

beleza. Percebemos na dança uma harmonia entre o controle e o descontrole.

Muitos giros, como se houvesse uma necessidade de partir, mas volta-se ao mesmo

ponto, na mesma obsessão, na mesma dor. O círculo do ciúme pode ser uma prisão,

se perder em círculos e chegar ao mesmo ponto: sucessivas e exaustivas voltas, o

mesmo horizonte e nada muda. Ciúme era o que Swann sentia por Odette no

romance de Proust (1913), e o personagem é o melhor para descrever essa

sensação: ―uma tristeza mórbida, capaz de produzir a febre do suicídio‖. Como nos

morde esse bicho do amor penoso, do amor próximo da morte, que questiona

nossas condutas? Antes, o que era leve, doce, prazeroso, fora se transformando

num pesar, num perpétuo círculo: voltas e voltas. Criam-se fantasmas que passam a

ser conselheiros. Tudo é motivo para desconfianças. Abaixo os fantasmas que

Proust descrevia que atormentavam Swann:

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(…) Este simples croqui abalava Swann porque o fazia aperceber-se de súbito de que Odette possuía uma vida que não era inteiramente dele; queria saber a quem procurava ela agradar com aquela toalete que ele não conhecia; resolvia perguntar-lhe aonde ia naquele momento, como se em toda a vida incolor — quase inexistente, porque lhe era invisível — da sua amante não houvesse senão uma coisa além de todos aqueles sorrisos a ele dirigidos: aquela saída de Odette, com um chapéu à Rembrandt e um ramo de violetas no peito (...). E todas as recordações voluptuosas que trazia do quarto de Odette eram como outros tantos esboços, outros tantos ―projetos‖ iguais aos que nos submete um decorador, e que permitiam a Swann formar uma ideia das atitudes ardentes ou langues que ela podia ter com outros (PROUST, 1913/2006, p. 182, 183).

(…) O seu ciúme, como um polvo que lança um primeiro, depois um segundo, depois um terceiro tentáculo, apegou-se solidamente àquele momento das cinco horas da tarde, depois a outro, a mais outro ainda. Mas Swann não sabia inventar seus sofrimentos. Estes não eram mais que a lembrança, que a perpetuação de um sofrimento vindo de fora (idem, 1913/2006, p.188)

Na cena Celos, percebemos esse amor penoso nos gestos dos bailarinos e

um anseio pelo um fim, os movimentos do bailarino em lançar a dama para cima e

para baixo, como se quisesse soltar algo que grudou no corpo, um descontínuo

entre controle, razão e queda. A tendência nos pas-de-deux é sempre olharmos para

a bailarina, mas se observarmos os bailarinos das tramas de Lecuona perceberemos

precisão, inteligência e um corpo recheado de sentidos, parece que eles somem

com as vestes pretas, mas, na verdade, a obscuridade de seus gestos nos prepara

para adentrarmos nos mistérios, numa atitude barroca. Eles são como o invisível que

sustenta o visível da cena, o impensável que sustenta o pensável, o indizível que

sustenta o dizível. Assim como o bailarino dessa cena Celos, ele é o pequeno

vagalume que a sensibilidade alcança, por isso, assim como a bailarina agarra-se

nele, não podemos deixá-lo passar despercebido.

A bailarina se prende ao bailarino com as mãos, prendendo-o para não partir,

mas resiste com as pernas que arremessa querendo escapar. Se prende a qualquer

motivo, se agarra as lembranças boas, ou será apenas uma obsessão mesmo. A

perna quer ir, mas os braços e o resto do corpo querem ficar (Imagem 27). Essa

disputa interior recheia essa dança que é tão incrivelmente manchada de realidade.

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Imagem 27: Lecuona - Cielos II. Imagem de Zé Luís Pederneiras

Opostos de sensações. Experimenta-se uma trégua, uma calma, quando se

está nos braços do amado, nas noites calientes, ou quando o outro se explica ou

mente, logo precedida de um turbilhão de penar, a sombra do amor, a dor

novamente:

Quando deixava Odette, sentia-se feliz, sentia-se calmo, lembrava os sorrisos que ela tivera, zombeteiros ao falar de um ou outro e meigos para ele, o peso de sua cabeça que ela destacava do eixo para incliná-la, deixá-la cair, quase que sem querer, sobre os seus lábios, como o fizera a primeira vez no carro, os lânguidos olhares que lançara quando em seus braços, apertando medrosamente contra o seu ombro a cabeça inclinada. Mas logo o ciúme, como se fora a sombra do amor, se complementava com o duplo daquele novo sorriso que ela lhe dirigira naquela mesma noite — e que, inverso agora, escarnecia de Swann e enchia-se de amor por outro — com aquela inclinação de cabeça, mas dirigida a outros lábios, e, dadas a outro, todas as mostras de ternura que tivera para com ele. (PROUST, 1913/2006, p.183)

O preto do figurino, mas também o branco da iluminação cria sentidos,

opostos, expressam as personalidades. Nesse ponto, o negro faz aparecer o

escondido, o secreto, o que quero esconder em mim, mas não consigo, o meu lado

negro, secreto: eu sinto ódio, muito ódio, eu sinto ciúmes, quero matar o outro por ter

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me abandonado, por ter me traído, sou capaz de sensações estranhas, apesar de

reais e vivas, apesar de humanas e doloridas. Que sensações são essas que me

embriagam e cospe expressões enérgicas e assassinas que me espantam? Eu

escapo para respirar e ela me sufoca novamente. É uma lógica além de uma lógica

exata, é uma lógica negra, misteriosa, uma lógica que me desestabiliza. Não dá para

entender, está além do consciente, nas dobras, no sentir mesmo.

E coisas de que até então sentiria vergonha, espiar por uma janela, quem sabe se amanhã sondar com astúcia os indiferentes, subornar os criados, escutar às portas, não lhe pareceriam, como a decifração dos textos, a comparação dos testemunhos e a interpretação dos monumentos, senão simples métodos de investigação científica de um verdadeiro valor intelectual e apropriados à pesquisa da verdade (PROUST, 1913/2006, p. 182).

Rodrigo Pederneiras (LECUONA, 2005) ao relatar as sensações dessa cena,

diz: ―Era muita vingança‖. A música é um elemento sensível da dança, sua harmonia

é forte, sua letra fala de alguém que ama, que morreria pelo outro, mas que sente

uma profunda amargura por causa de ciúmes, de uma insegurança causada pelo

outro, pelo ato do outro, ou simples devaneio. Segundo a música, ela tem ciúmes do

ar que ele respira, pois gostaria de ser esse ar que sem o qual ele não sobrevive, ela

tem ciúmes dos seus olhos que ao olhar provocam paixões, tem ciúmes de sua boca

que incitam outro a te querer. Ciúme do calor do seu corpo.

CELOS - Ernesto Lecuona

SI ya sabes que te quiero Que por ti me muero Que es todo padecer

Si tu amor es mi querella Y era tu la estrella

Que alumbra ya mi ser Dime tu porque

Despiertan celos que atormentan y amargan

Mi existir Si tu amor no ha de ser mio

Que es lo que yo ansio No me hagas mas sufrir

Celos, tengo celos del aire Celos del aire que respiras Siento que se me va la vida

Porque tengo celos de ti

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Tengo celos de tus ojos Que al mirar provocam

extraña pasion Siento celos de tus labios

Que al besar incitan Siento el calor de tu cuerpo No me brindes tus caricias No quiero sentir-me celoso

De tu amor

Como diz a música, sente-se ciúme de tudo, tudo pode roubá-la, tudo a

deseja, tudo que supunha levar aquilo que se entende como minha posse. O amor

trágico de Proust que quer tudo para si, que não compartilha o outro com medo de

uma fuga.

Mas supunha que Odette era desejada por todos os homens que se achavam no hotel, e que ela própria os desejava. De modo que ele, que outrora em viagem procurava relações novas, reuniões numerosas, viam-no agora selvagem, a fugir da sociedade dos homens como se o ferisse cruelmente. E como não ser misantropo, quando em todo homem via um possível amante de Odette? E assim o ciúme, mais do que o fizera a voluptuosa e risonha inclinação que sentia a princípio por Odette, alterava o caráter de Swann e mudava completamente, aos olhos dos Outros, até os aspectos exteriores pelos quais se manifestava esse caráter (PROUST, 1913/2006, p. 188).

Lecuona denuncia um corpo miserável, imprevisível, vulnerável a inúmeras

sensações, indeterminado. Quem está totalmente livre? Eu não estou. Ao vislumbrar

essa cena, coloco-me em desvio, posso reviver as sensações de um amor penoso

que um dia abalou minhas certezas. O campo afetivo criado pela dança que me

captura, possibilita-me sentir tudo de novo, mas sem o mesmo penar, foram re-

significadas com outras experiências, lembro-me desse passado cortado agora no

presente dessa cena. A dança me levou junto, vejo-me no corpo da bailarina e

reinvento-me nessa experiência estesiológica. A expressão da bailarina compõe

harmonicamente com os sentidos da dança. É uma face como de amargura, de

sofrimento e em outros momentos de ódio e vingança. Mas não é somente a

expressão facial, é todo o corpo reclama uma dor. O ombro fechado fala

perceptivelmente, os pés, os braços, todos numa harmonia com os sentidos. O

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cabelo começa arrumado e despenteia durante a cena, mostrando a tempestade de

sensações dessa dança. As sensações nos despenteiam, tiram-nos da zona de

conforto (Imagem 28).

Imagem 28: Lecuona - Celos III. Fonte: Lecuona (2005).

Sobre o papel do ombro nesta cena, Delsarte já legitimava, numa postura

crítica a um estilo da dança clássica que privilegiava as extremidades do corpo:

O papel do ombro, lugar de pathos, onde se introduzem constelações emotivas complexas, e sobretudo o ‗movimento em direção a‘, muito ligeiro, no limiar da percepção, que permite ao sujeito emocional não somente exprimir-se, mas cria-se ao mesmo tempo .O ombro é, com efeito, à letra, termômetro da paixão e da sensibilidade. É a medida da sua veemência e designa seu grau de calor e de intensidade‖ (DELSARTE apud LOUPPE, 2012, pg 61).

O espernear dos pés da bailarina como gesto, fala, para essa cena, o que

Debussy já falava no princípio do século XIX: ―o amor e o ódio podem ser expressos

com mais eficácia pelo movimento dos pés de uma bailarina do que pelos gestos

convencionais‖ (DEBUSSY apud SASPORTES, p. 46). Inspira-nos a Imagem (29).

Nessa momento da dança ele a prende em seus braços e ela rebate as pernas

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freneticamente querendo lhe escapar, ele busca acalmá-la. Ela mostra visivelmente

um descontrole.

Imagem 29: Lecuona - Celos IV. Imagem de Zé Luís Pederneiras.

Pederneiras (2016) ao nos falar sobre esse duo, expressa:

O preto é Celos. Tenho ―celos del aire que tu respiras‖: quer coisa mais dramática, mais apaixonada? Eu tenho ciúmes do ar que você respira, ciúme dos seus lábios, ciúme dos seus olhos que beijam assim, que olham assim. Dos braços e no final do ar que você respira, paixão maior não pode existir.

No Making of do vídeo Lecuona (2005), mostra-nos a preparação dos

bailarinos de Celos, Jacqueline Gimenes e Edson Hayzer, antes de entrar em cena.

Os dois nos bastidores, minutos antes da dança, olhavam um no o olho do outro e

experimentavam as sensações de Celos. Ela faz gestos com as mãos, como se

fossem garras de felino, olhando fixo para ele, com um olhar de ódio, gestos como

se fossem querer avançar sobre o parceiro. Neste instante, um campo afetivo fora

criado entre os bailarinos antes da cena, possibilitando para o espaço cênico que as

sensações fluam com liberdade nesse campo afetivo que convida, agora no palco, o

olhar do espectador. Amor e ódio dançam em Celos, faces da mesma moeda,

sensações gêmeas legítimas, carnais, já dizia Pablo Neruda (1959):

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Não te quero senão porque te quero, e de querer-te a não te querer chego,

e de esperar-te quando não te espero, passa o meu coração do frio ao fogo.

Quero-te só porque a ti te quero, Odeio-te sem fim e odiando te rogo,

e a medida do meu amor viajante, é não te ver e amar-te,

como um cego.

Deleuze e Guattari (1992), ao afirmar que o artista é mostrador e inventor de

afetos, diz que quando Proust descreve tão minuciosamente o ciúme, inventa um

afeto porque não deixa de inverter a ordem que a opinião supõe nos sentimentos,

segundo o qual o ciúme seria uma consequência infeliz do amor: para ele, ao

contrario, o ciúme é finalidade, destinação e, se é preciso amar, é para poder ser

ciumento, sendo o ciúme o sentido dos signos, o afeto como semiologia.

É no corpo e não em outro lugar que essas sensações se dão, num corpo

estesiológico, que se permite a essas experiências, que são as luzes dos

vagalumes, o que nos humaniza, são as fugas dos determinismos impostos no

corpo, dos mecanismos que aceleram nossa objetividade, que engole nossa

subjetividade. Um corpo capaz de sensação convocado em cena, capaz de criar em

torno de si laços afetivos, que ora causam risos, ora causam dor, são as

possibilidades, nada está totalmente dado e nada está totalmente sentido, somos

corpos em aprendizagem, criando-se, recriando-se, refazendo-se com as verdades

que somente meu corpo viveu. Merleau-Ponty (1964/2009) reverbera mais uma vez

essas afirmações:

Há uma idealidade rigorosa nas experiências que são experiências da carne: os momentos de sonata, os fragmentos do campo luminoso, aderem um ao outro por uma coesão sem conceito, do mesmo tipo da que une as partes de meu corpo ou meu corpo com o mundo. O meu corpo é coisa, ideia? Não é nem um nem outra, sendo o mensurador de todas as coisas. Teremos, pois, que reconhecer uma idealidade não estranha à carne, que lhe dá seus eixos, profundidade, dimensões (MERLEAU-PONTY, 1964/2009, p. 147).

O autor fala que há um pensamento rigoroso enraizado nas experiências da

carne, nas experiências sensíveis, assim como a arte que não advém de conceitos,

mas de vivência, de sensações que traça unidades afetivas com o mundo, entrelaça-

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o. Experiências da carne que diferencia o corpo de coisa, mas torna-os mensurador

das coisas. Para se chegar à lógica, passa-se pelo corpo. Um pensamento carnal

que abre o caminho afetivo das possibilidades, das profundidades. E essa cena

Celos primorosamente abre caminhos para a cena final, para o deslumbre e

pontuações do pensamento e sentidos da obra Lecuona.

Celos não tem um final como os outros duos, ele se prolonga na cena final de

Lecuona. A música dramática de Celos muda para uma valsa romanesca e os

bailarinos mudam o fluxo da dança: de passos frenéticos a compassos mais

delicados da valsa. Uma tela preta colocada sobre o fundo do cenário é levantada,

mostrando espelhos ao fundo. Dois outros casais com suas damas de branco vão se

juntam ao par de Celos com giros, elevações, jogar de pernas, e, assim,

sucessivamente, numa mesma sincronia. Nosso par preto vai se dirigindo para o

lado esquerdo do palco até sair de cena.

No me Niegues

No instante em que o casal de preto sai de cena, entra mais dois casais com

suas damas de branco sendo multiplicados pelos espelhos do fundo do cenário. Os

quatro casais dançam em sincronia uma valsa que lembram os bailes da década de

cinqüenta. Os homens elevam as damas, giram com elas as sustentando em seus

braços, essas quando colocadas novamente ao chão jogam suas pernas em grands

battements50. Eles passeam em valsas. Os outros casais também vão se colocando

em desenho, um cículo formado por eles no palco. No decorrer da dança, as placas

pretas, da lateral do cenário, viram-se e refletem a iluminação: o portal do sonho é

aberto. Nesse momento, somos envolvidos nesse encanto e respiramos um ar

etéreo. A Imagem (30) adiante, apesar de uma pouco turva, dá-nos a percepção

desse momento aonde o cenário dança e nós suspiramos.

50

Movimento característico do balé clássico que é o lançar das pernas na maior amplitude que a bailarina conseguir.

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Imagem 30: Lecuona- No me Niegues-/Virada dos espelhos. Fonte: vídeo Lecuona (2005)

Os vestidos brancos das bailarinas nos lembram noivas, com seus tules e

véus, e os bailarinos sempre contrastando com o preto (Imagem 31). Parece os

―finais felizes‖ dos romances clássicos. A valsa No me Niegues de Ernesto Lecuona

dá o tom da dança, remete-nos a era de ouro de Hollywood, onde brilhavam filmes

clássicos como Love Story, Casablanca, E o Vento Levou, entre outros. A dança vai

seguindo e os bailarinos são colocados no palco em círculo rotativo. Nesse desenho,

os bailarinos sincronizados giram as bailarinas, estas lançam suas pernas em

grands battements e fazem piruetas em direção ao bailarino do seu lado,

movimentando o círculo em sentido horário. Logo voltam para seu par em mesma

pirueta. Repetem-se as elevações, jogadas de pernas e giros, os passos passeados

característicos da valsa. Doravante esses gestos, eles buscam seu espaço no palco,

desprende-se da sincronização e fazem seus próprios movimentos. Cada um

vivendo seu amor, seu jeito de amar. No meio tempo eles trocam de pares e

continuam cada duo sua própria dança.

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Imagem 31: Lecuona- No me Niegues. Fonte: fotógrafo Zé Luís Pederneiras

Nesta cena, tive experiências particulares. O meu primeiro olhar à cena fora

pelo vídeo de Lecuona em 2013 e o último foi neste ano de 2016: na oportunidade

de assistir esta cena ao vivo no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Esta última

experiência me arrebatou de uma forma muito particular, pois ao mudar a

perspectiva do meu olhar, do vídeo ao Teatro, a minha disposição com essa cena foi

de um novo espanto. No momento que os espelhos viraram, veio o reflexo da

iluminação, aqueles corpos girando, todo meu corpo vibrou, respiro fundo e não

seguro as lágrimas.

Na perspectiva fenomenológica, habitamos em cada paisagem quando a

exploramos com o olhar. Merleau-Ponty diz que ―ver é sempre ver mais do que se

vê‖ (MERLEAU-PONTY, 1960/1991, p. 300), ou mesmo uma imbricação do visível

no invisível, em que aquilo que se coloca diante dos nossos olhos se revela a cada

novo olhar, carrega uma visibilidade inesgotável. Somente vemos algo porque

dispomos de uma conduta do olhar, que mobiliza todo o corpo como um sistema de

potências perceptivas. Quem aprecia essa cena é tentado a exclamar "Oh!" e parece

que nossas vidas vão acabar. O clima é de esgotamento estético pelo deslumbre do

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sublime. É de fazer querer morrer – latinamente falando – ou morrer na perspectiva

estética de Didi-Huberman (2013).

Didi-Huberman em seu livro Diante da Imagem, ao citar um trecho da obra de

Proust (1913), Em Busca do Tempo Perdido, lembra-nos de quando o personagem

Bergotte, ao olhar o quadro de Vermeer (Vista de Delft), ficara tão impressionado

que chegara a morrer diante do quadro. Releiamos a cena através de Didi-

Huberman:

Enfim, ele ficou diante do Vermeer (...), enfim, a preciosa matéria do pequeníssimo trecho de muro amarelo. Sua tontura aumentava; ele fixava seu olhar, como uma criança a uma borboleta amarela que ela quer pegar, no precioso pequeno trecho de muro. ‗É assim que eu deveria ter escrito- ele dizia. Meus últimos livros são demasiado secos, teria sido preciso passar várias camadas de cores, tornar minha frase preciosa nela mesma, como esse pequeno trecho do muro amarelo‘. Nesse momento, a gravidade da sua tontura não lhe escapava. (...) Ele repetia: ‗Pequeno trecho de muro amarelo com um telheiro, pequeno trecho de muro amarelo‘. Nesse momento, caiu sobre um canapé circular. (...) Estava morto (PROUST apud DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 318).

Essa passagem traz um rigor de pensamento. Ficção relativa à eficácia da

pintura, certamente como diz Didi-Huberman (2013, p. 320): ―é raro que um quadro

olhe morrer quem o olha‖ e continua ―indica a existência de um trabalho muito real

da pintura: trabalho de deslumbramento, de certo modo, ao mesmo tempo evidente,

luminoso, perceptível, e obscuro, enigmático, difícil de analisar, particularmente em

termos semânticos ou icônicos‖ (Didi-Huberman, 2013, p. 320). Tomando

emprestado essa experiência do nosso personagem de ―Em busca do tempo

perdido‖, percebemos diante da disposição do olhar não um ―congelamento

fotográfico‖ do tempo passado, mas suscitando um abalo do tempo presente,

alguma coisa que de repente age e faz ―desabar‖ o corpo de quem olha. O amarelo

do quadro suscita e abre um campo afetivo que faz morrer quem olha, no sentido de

encontro com um invisível que faz abalar uma a uma as evidências miméticas,

coloca em acidente toda representação, como diz Didi-Huberman (2013) ―a

representação entregue ao risco da pintura‖ (idem, p. 332) ou ―os acidentes

soberanos da pintura‖(idem, p.336). Esses acidentes produzem um campo afetivo

entre meu olhar e a obra, assim tesouros, estruturas, significâncias são nos

oferecidas cada vez que ―morro‖ diante da obra como Bergotte, ou seja empresto

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meu olhar à uma visibilidade que se revela incompleta e interroga a minha relação

com o mundo. Esse mundo é estritamente ―certa cor dos tecidos e dos lugares‖,

escreve Proust (apud Didi-huberman, 2013, p. 342), isto é, num sentido, a pintura

mesma, ou a dança de Lecuona, depositada na tela ou no palco para ali produzir seu

próprio lugar, sua jazida de cor e de sentido.

O Grupo Corpo, nesta cena No me Niegues, brinca com esse mundo

fantasioso da primeira metade do século XX e nos leva a pensar ao nos deixar

envolver nesta cena. Que coreografia bela! Quando pensamos em valsa,

repentinamente vem em nós a memória da valsa do casamento, da valsa de quinze

anos, da valsa relacionada a momentos românticos, sublimes e clássicos. O

interessante desta valsa e do romantismo encontrado nesta cena, e que se distancia

dos romances clássicos, é que os pares vão trocando e continuando a dança. O

círculo é aberto e não fechado. São os ciclos afetivos. Mesmo a cena sendo feita por

quatro pares, o desenvolvimento em conjunto, as trocas de pares, dão a sensação

de um só dança, um só corpo emaranhado com o tempo e o espaço, esse tempo

que é o Kairós e esse espaço que é o campo afetivo criado pelos corpos. Cada casal

dá-se inteiro um para o outro e a estesia está em cada dança, em cada troca, em

cada recomeço, nos desejos e nos sonhos de cada corpo.

Apesar da cena com todo seu aparato fantasioso e romântico, com nossa

eventual lembrança aos clássicos com suas narrativas fixas, percebemos, no

profundo da cena, de encontro com seus sentidos, que ela se distancia dessas

ideias ao encontro com as surpresas humanas, significadas pelo casal de preto do

início, que se comporta, na minha interpretação, como uma mancha que destoa dos

outros casais e carrega os mistérios dos relacionamentos humanos, e mostra essa

relação dos paradoxos que revela um espírito barroco nesta obra do Grupo, mas

também significando a partir das trocas de pares e pela interação do conjunto. O

final da cena foge da ideia de ―final feliz‖ para a possibilidade de nosso entendimento

de ―recomeço feliz‖, em cada encontro, em cada estesia. O feliz não como estado ou

qualidade, mas como afetividade, um modo original de ser e estar no mundo,

―portanto, como uma dialética dramática de um corpo em direção ao outro corpo‖

(NÓBREGA, 2010, p. 87). Esta cena em questão, encerra Lecuona (2004) num

glorioso beijo, que simboliza o ―sim‖. Sim para o outro, sim para sentir, sim para

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significar. Sim como abertura do corpo, contrariando o ―sim‖ como um ―Fim‖ dos

romances clássicos (Imagem 32). O círculo está aberto.

Imagem 32: Lecuona- No me Niegues/ beijo final. Fonte: vídeo Lecuona (2005)

Numa brincadeira promovida pelo meu imaginário, convoco as noivas de

Nelson Rodrigues, em especial as da sua peça de teatro, escrita em 1943, Vestido

de Noiva, que, junto com outras obras desse escritor, trouxe perplexidade à época

pelas desmesuras que este escritor retrata os relacionamentos humanos, numa

crítica aos romances clássicos e sua previsibilidade. Os vestidos de noiva das

personagens Alaíde, Madame Clessí e Lúcia não são sinônimos de pureza, ―final

feliz‖, pelo contrário, simbolizam tramas recheadas de conflitos, absurdas sensações

e possíveis desencontros, não muito diferentes das possibilidades humanas.

Essa brincadeira que promovemos nessa reflexão, das noivas de Lecuona

com as noivas de Nelson Rodrigues, possibilita-nos pensar que esse jogo das

sensações, que unem um corpo ao outro, não permite previsibilidade, mas somos

entregues o tempo todo às diversas possibilidades e aprendizados de nossas

experiências, por causa de um corpo insatisfeito, poluído de incertezas e

indeterminado. Assim, percebo que o corpo que dança em Lecuona é um corpo

estesiológico, afetuoso, aberto às surpresas, capaz de afetividade, sexual, orgânico,

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capaz de sofrer, sentir dor, sentir glórias, sentir bruscas, doces e desconhecidas

sensações, mas que continua nesta busca do outro para interrogar sua existência.

Esta carne como capaz de sensação, como sensível sesciente, como aparece

na vida? A estesia é, se não localizada, pelo menos não é independente da

localidade. A estesiologia não está na minha cabeça ou no meu corpo e muito

menos em outro lugar. Ela é percebida num espaço de liberdade, de relação. Surge

por um investimento na vida. Por acontecimento, por estes encontros e envolvimento

dos corpos. Ou seja, ―a estesiologia é esta união da alma e do corpo levada a sério‖

(MERLEAU-PONTY, 1956-1960/2006, p.360). Ela é esta capacidade do corpo que

ao ver as cenas de Lecuona em ação da vontade de "topar na hora", de concordar

latinamente "e-u t-e a-m-o", de chorar contigo, comigo, com o que estiver pela frente.

O que Lecuona do Grupo Corpo nos mostra é que inventamos um grande modo de

viver o amor, de concordar com a condição sublime e terrível de sermos humanos

que pensam, logo amam, logo existem, logo são corpos. De lidar com o que é

complexo de forma complexa. De complicar as coisas ao ponto da harmonia.

Lecuona convida a viver para sofrer e amar. É preciso viver. Porque a gente ―topa

tudo na hora‖. A gente tem sangue quente. O sangue jorra e tudo bem, a gente

chora e tudo vem. O que é quente é preciso. É preciso viver para os próximos

corpos que vão topar com a gente. E nestes acontecimentos percebemos a sinergia

da razão e o sensível.

Ao pensar uma erótica social tal como Maffesoli (2014), podemos dizer que

No me Niegues é a expressão da ordo amoris, a ordem do amor. Não neguemos,

pois, o papel dos afetos como uma lógica erótica, uma disposição de um viver-junto

aonde o amor tem seu lugar. Não se trata, é claro, de um amor que se pode reduzir

à esfera privada. Nem de um amor que apenas designa o sentimento experimentado

entre duas pessoas. O amor em questão, em seu sentido pleno, é um termo cômodo

para designar uma ambiência geral na qual se elabora e se desenvolve uma maneira

de estar-junto (MAFFESOLI, 2014). Essa disposição ao amor é o eco do fato de que

a vida não se divide; e que a verdade da vida em si é indivisível. O que quer dizer,

segundo Maffesoli (2014), que não há, por um lado, o afeto, e, por outro, o político,

isto é, o poder, o saber, o prever. O inteligível e o passional se unem num mesmo

viver-junto, uma ordem ao amor que ninguém está a salvo, mas se estamos vivos,

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somos esses ―condenados‖ a amar. Esse estado amoroso, segundo Maffesoli

(2014), é como um estado de difração em perpétuo devir, ilimitado no afeto. Daí seu

aspecto irradiador que foi, em abundância, celebrado pelos pensadores, pelos

poetas, sem esquecer os amantes. Ele tem um poder ―metamorfoseador‖ do mundo

e de todas as coisas. Aí está seu poder inebriante que é contagioso. O que significa,

portanto, esse contágio do afeto? Maffesoli (2014) diz que tudo o que foi dividido,

aspira, profundamente, à reunião. É a ordem do amor! Ele clama em Lecuona: Não

me negues! Entreguem-se as possibilidades desse viver-junto, desse amor que vem

da rocha profunda do humano, do vivo. Não me negues!

Nisso, nas tramas de amor que descrevemos, percebemos que Lecuona se

compõe desses fluxos estéticos do afeto, compondo uma poética do corpo e da

afetividade. Poética esta que pode ser vivida na educação. São as cenas da próxima

trama.

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QUARTA TRAMA:

POR UMA EDUCAÇÃO

ESTESIOLÓGICA

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Um beijo que revela horizontes educativos

Nas tramas (capítulos) antecedentes, as possibilidades filosóficas, estéticas e

afetivas foram privilegiadas e, com isso, traçamos fios intencionais para pensarmos

uma educação estesiológica. Não pensamos aqui qualquer educação, mas uma

educação que emerge das sensações- pois permanece no sentir- que vê no corpo e

em suas possibilidades de afeto, um espaço de aprendizados significativos,

envolvidos por uma dimensão estética do existir, articulando, criando e recriando

sentidos nas diversas relações semânticas da existência. Possibilidades de uma

educação que é dada a nós quando emprestamos nosso olhar à celebração do

mundo, quando reaprendemos a ver o mundo. Merleau-Ponty diz que a tarefa de um

saber (seja no campo da educação, da filosofia, da arte, da história) ―é reaprender a

ver o mundo, e nesse sentido uma história narrada pode significar o mundo [por

meio de uma escuta sensível] com tanta profundidade quanto um tratado de filosofia‖

(MERLEAU-PONTY, 1994, p. 21).

Nesse sentido, a ―história narrada‖, ou melhor, as histórias narradas de

Lecuona, que em nossa tese se mostram como fluxos estéticos do afeto, reverbera o

que Merleau-Ponty insinua no trecho acima sobre a potência expressiva da imagem

como capacidade de significar, re-significar, inventar, reinventar o mundo, ou seja,

como diz Maffesoli (2014), de poder dar conta do ―real‖: o poiei dos gregos que

exprime uma poética da existência, que coloca em sinergia paixão e pensamento. O

―real‖ que opera em seu princípio da contrariedade, ambivalência, complexidade,

bem difícil de ser compreendido por um pensamento positivo que reduz a totalidade

do ser às suas mais simples expressões, colocando em demérito tudo que venha da

ordem dos sentidos.

Porpino (2006), pesquisadora da dança e da educação no Brasil, diz que a

descoberta do sentido na aprendizagem faz da educação um fenômeno humano,

que manifesta quando o homem passa a estabelecer relações significativas na

existência, criando seu modo de posicionar-se frente à realidade do mundo.

Portanto, a aprendizagem significativa é interpretativa e inclui um trabalho não só de

aprender a pensar, mas também de um aprender a sentir. Pensamos tal

peculiaridade como imprescindível às nossas reflexões acerca do corpo e do afeto

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no contexto significativo da dança Lecuona do Grupo Corpo, posto que, segundo

Merleau-Ponty em seu esforço ontológico que exige a estesiologia como expressão,

criação, concorda ter a arte, como também o processo criativo do artista, um

importante papel no que se refere a esta necessária educação dos sentidos no

mundo em que vivemos. Assim, quando nos colocamos diante da obra coreográfica

Lecuona, descrita no capítulo anterior, ela nos abre horizontes de sentidos para

pensarmos uma educação estesiológica onde o prazer, a dor, o medo, o desejo, as

gargalhadas, os choros, as surpresas e desequilíbrios do viver precisam ser

considerados. Nisso, o viver é a mola para uma educação que é transformação,

metamorfose, que é criação.

O poeta barroco Mallarmé51 nos inspira: ―a dança toda não passa da

misteriosa interpretação sagrada do beijo‖ (MALLARMÉ apud BADIOU, 2002, p. 88).

Neste sentido, Lecuona mostra-se como um beijo, gesto este carregado de sentidos,

emerge da afetividade, da busca do outro, exige certa disponibilidade de um corpo

que beija e é beijado ao mesmo tempo, que busca o compartilhamento, o ―estar-

com‖, entregar-se ao outro. O beijo é mobilizador, contagiante: ―Cada beijo chama

outro beijo‖ (PROUST, 2006, p.114). Assim, Lecuona traz o beijo como afeto: ―seu

beijo me revelaria‖, já nos escrevia Proust (2006, p. 78). Essa busca pelo outro, no

qual o gesto de beijar se torna significativo, revela um pensamento latente para

pensarmos a educação que beija e ensinar a beijar. O beijo como metáfora pode ser

compreendido como expressão de uma estética da vida, unir perspectivas

diferentes, ser solidário à realidade humana complexa e suas relações.

Nesse entendimento metafórico, Lecuona nos beija e nos revela, ela

reverbera as potencialidades educativas dessa pesquisa ao nos incendiar com seu

amor: ao nos fazer experimentar as sensações da dança e nos envolver em seus

sentidos, operando em nós campos de reflexões sobre nossa própria existência. O

amor de Lecuona não é reduzido ao sentimento experimentado por duas pessoas,

mas o amor em sentido profundo, termo que designa uma disposição corporal na

qual se elabora e se desenvolve maneiras de me ligar ao outro (ao humano, ao

mundo, ao saber, a natureza, ao exterior), criando campos de aprendizados

51

Segundo Deleuze (2012) em sua obra ―A dobra: Leibniz e o barroco‖, ele afirma Mallamé como um grande poeta barroco, pois ele não separa o sombrio, o estranho, do encanto e da graça.

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existenciais a partir do afeto. Assim como diz o coreógrafo, o criador de Lecuona

quando o pergunto: o que esta obra nos ensina?

Lecuona ensina paixão, ensina perda, ensina ganho, ensina amor, ensina sedução, ensina a necessidade de se ter uma companhia... Ensina um monte de coisa. Mas sempre no campo da paixão, no campo do amor (PEDERNEIRAS, 2016).

Assim, Lecuona protagoniza o amor e suas várias formas de sentir, expressa

uma inteligência amorosa em sua poética. Uma lógica erótica que pulsa e nos

engole, mas sem qual seria impossível compreender a dança. Maffesoli (2014) ao

refletir sobre a ―inteligência amorosa‖ de Spinoza, diz que é essa capacidade, a

partir do afeto, de ―ligar junto‖ (intellegere) todos os elementos esparsos de um ―real‖

complexo. Ela está enraizada na vida de todos os dias e participa, assim, das

paixões comuns. É essa radicalidade assim definida: retorno às raízes de um

humano complexo e ambivalente, que permite compreender a velha e atual

importância dos afetos nessa ―saída de si para o outro‖ (MAFFESOLI, 2014, p. 254).

Essa inteligência amorosa permite ser o eco do fato de que a vida não se divide e

que a verdade da vida em si é indivisível. O que quer dizer que não há , por um lado,

o afeto, e, por outro, o político (poder, saber, prever). Mas que, ao contrário, o

erótico é, estreitamente, parte integrante da vida: pública (comum a todos) e privada

(nossas relações pessoais que tramam uma vida). Essa necessidade de se voltar

aos afetos como ligante do mundo, possibilita campos de aprendizados: ―um

reaprender a ver o mundo‖.

Segundo Maffesoli (2014), precisamos perceber o papel que exerce o

emocional na ação administrativa, no jogo sindical, nas reivindicações profissionais,

nas reações aos fatos do dia-a-dia. Um povo é sempre submetido às paixões, que

vem de muito longe, e que é inútil acreditar ultrapassadas. Preconceitos ideológicos,

reações raciais, usos e costumes diversos, práticas lingüísticas específicas, ―manias

culturais‖, longa é a lista das maneiras de ser e de pensamento que são nada menos

que racionais, mas que devem tudo a um passional, sedimentado no percurso do

pensamento da história humana. Eis por que a razão que convém identificar o

substrato passional em todas as ações sociais- o que o racionalismo tinha esquecido

e desmerecido. Inclusive perceber esse substrato na história da Educação. O

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passional na educação é o que movimentou muitas problematizações na história e

no fazer pedagógico, mesmo com seu valor colocado para segundo e terceiro

planos. Assim, é necessário elevar todo esse discernimento em prol de uma atenção

diferenciada aos afetos, colocando-os em destaque, assim poderemos inferir que

qualquer conhecimento que, assim como da educação, comece e prossiga no afeto

não termina em egoísmos de toda ordem: morais, econômicos, sociais, políticos,

nacionais e nem em isolamentos de nenhuma ordem.

Essa inteligência amorosa eleva o ―viver-junto‖. E, insisto, não é

compreendida por uma lógica unívoca, mas, sim, por um pensamento que coloca

nas interrogações um estado sempre nascente do conhecimento. Um conhecimento

sensível que tem como objetivo colocar em sinergia perspectivas opostas, um beijo

da razão e do sensível: por uma inteligência barroca (o mesmo que amorosa) que

harmoniza os paradoxos, encontra beleza na união dos contrários, que encontra

perfeição na imperfeição. Ela não para de fazer dobras, não se concentra numa

forma de pensamento (filosófico, histórico, artístico, pedagógico), mas dobra todas,

desdobra e volta a dobrar, num movimento infinito do saber. O ato de conhecimento

dá-se pelo dobrar-desdobrar-dobrar. Segundo Deleuze (2012) o traço barroco (como

estilo da existência) é a dobra que vai ao infinito. A dobra é envolvimento, coesão,

inerência, e a desdobra é desenvolver, evoluir, criar. Logo, dobra-se novamente

numa repetição que vai ao infinito, apenas possível por uma ótica sensível.

O sensível, noção cara a Merleau-Ponty (1960; 1964), é o que dobra o mundo

ao envolvimento, parte da comunicação dos sentidos, este fundamentado pela

experiência estética. Ela, como dimensão do sensível, expressa o belo. O belo, não

sendo uma ideia ou modelo, precisa ser experimentado, vivido, solicitando, assim, a

sensibilidade, como um convite à contemplação, segundo nos afirma Nóbrega

(2010):

A experiência estética amplia a operação expressiva do corpo e a percepção, afinando os sentidos, aguçando a sensibilidade, elaborando a linguagem, a expressão e a comunicação (NÓBREGA, 2010, p 93).

A possibilidade do conhecimento sensível assume o fato de que nem tudo

pode ser compreendido, pois há sempre lacunas, mas necessariamente precisa ser

vivido pra adquirir sentido. Nesse entendimento, na Segunda Trama (segundo

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capítulo) de nossa pesquisa, nas poéticas do Grupo Corpo percebemos bem uma

inteligência amorosa (barroca) nas suas obras, tudo se dobra e desdobra

inaugurando saberes: claro-obscuro, erudito-popular, amor-ódio, peso-leveza,

elevação-chão, tensão-relaxamento, forma-disforma, razão-paixão. Potência

amorosa particularmente vista na obra descrita nessa tese, Lecuona e que

movimentam seus sentidos entre o saber e a ignorância num vai e vem. Vemos

essas ambigüidades na iluminação de Paulo Pederneiras, onde a luz se harmoniza

com o escuro das placas pretas do cenário, também no figurino onde o preto dos

homens sustenta o colorido das bailarinas. Aspectos dessa coreografia de Rodrigo

Pederneiras que mistura movimentos populares com o erudito de uma técnica

clássica, dialetizando amor e ódio, entrega-rejeição, perda-ganho, prazer-dor,

esplendor-simplicidade, salto alto- pés no chão, tudo dobrado e harmonizado nesse

balé da paixão, possibilitando seus fluxos estéticos.

Portanto, nessa inteligência amorosa, Lecuona cria campos afetivos para se

pensar uma educação, um saber que dá importância devida aos afetos. Tal aspecto

de conhecimento exige uma estesiologia (ciência dos sentidos), dada por um sentir

mesmo, que é o oposto de representações conscientes, como delineado por

Merleau-Ponty (1956-1960/2006) no último curso sobre a Natureza. Nóbrega (2016)

diz que essa estesiologia nos faz capaz de sentir e de reconhecer outros corpos,

outros homens, uma história, uma ontologia indireta que busca o contato com o

mundo da vida, da arte, da ciência, da cultura. Afirma também que esse sentir não é

a possessão intelectual ―do que‖ senti, mas ―despossessão‖ de nós mesmos em seu

proveito próprio, abertura ao que não temos necessidade de pensar para reconhecê-

lo. Assim, o corpo estesiológico se expressa na sensorialidade e no desejo, e sua

melhor expressão nos é ensinada pelas imagens da arte. Vemos isso em Lecuona,

nela miramos o poder de um corpo estesiológico que, diferente das ―coisas‖,

permite-se, no milagre das sensações, estar com os outros. A estesia se realiza no

momento em que lanço o olhar sobre as tramas de amor de Lecuona, olhar nos

gestos dos bailarinos, envolvo-me com a música, com as cores dos vestidos das

bailarinas, identifico-me com as histórias de amor de cada duo. Esse olhar é o olhar

fenomenológico, o olhar da significação (Merleau-Ponty 1961; 1964), o olhar que

beija como nos inspira a literatura: ―era para todos nós como um beijo de seus olhos,

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que não podiam ver os que ela amava sem os acariciar apaixonadamente com o

olhar‖ (PROUST, 2006, p. 13).

Esse olhar que beija Lecuona e é ao mesmo tempo beijado por ela – que

ecoa uma expressão cara a Merleau-Ponty (1964) do tocante-tocado – convoca

minhas memórias, minhas experiências, minhas profundas e misteriosas sensações,

penetro o visível ao encontro do invisível, sou aqueles bailarinos. Ao mesmo tempo

em que olho aqueles corpos dançando, eles me vêem, há metamorfoses, há

reversibilidade, há sentido no entrelaçamento de um no outro causado pela estesia

do momento e pela carne do agora. Há cumplicidade entre mim que estou

testemunhando e eles que me dão esses sentidos. Todas as ferramentas cênicas de

Lecuona foram estudas em prol de uma intencionalidade: despertar sensações no

espectador e permitir um diálogo da obra com seu vidente. São as estratégias

perfomáticas que colaboram com uma poética e que viabilizam a transformação dos

processos de arte em formas de vida.

Entre o meu olhar e a obra existe presente as memórias afetivas,

relacionando-se com a forma grega do pathos, da paixão, da empatia. Assim, o ritmo

cardíaco, o movimento do olho, a respiração são capacidades que englobam a

empatia e que fazem vibrar nosso olhar diante de uma obra de arte. Temos assim,

passado convocado num presente, transformado em um presente que emana

sentidos, abrindo horizontes de possibilidades. Esses são os índices de uma

educação estesiológica que começa no olhar que beija. Maffesoli (2005) diz que

queiramos ou não, que sejamos ou não conscientes, a ontologia é o ponto de partida

dessas reflexões que retoma a importância de pensarmos o afeto.

Didi-Huberman (2010) – que bebe na fenomenologia de Merleau-Ponty –

questiona como uma obra de arte pode inquietar nosso ver e nos olhar desde seu

fundo de humanidade fugaz. Assim, ele convoca Walter Benjamin e sua noção de

aura. E diz que ela se trata de uma trama singular de espaço e de tempo.

Poderíamos dizer, tramado em todos os sentidos do termo: é como um sutil tecido

ou então como acontecimento único, estranho, que nos cercaria, nos pegaria, nos

prenderia em sua rede. E acabaria por dar origem a esse ataque de visibilidade, a

algo como uma metamorfose visual específica que emerge desse tecido mesmo,

desse casulo. A aura seria, portanto, como um espaçamento tramado do olhante e

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do olhado, do olhante pelo olhado. O que nos olha, escapa-nos ao mesmo tempo.

Esse paradoxo é o poder do olhar: ―isto me olha‖. Diz Benjamin (apud Didi-

Huberman 2010, p. 148): ―Sentir a aura de uma coisa é conferir-lhe o poder de

levantar os olhos. Esta é uma das fontes mesmas da poesia‖. Para Benjamin, a aura

não poderia se reduzir a uma pura e simples fenomenologia da fascinação alienada.

É antes de um olhar trabalhado pelo tempo que se trataria aqui, um olhar que

deixaria aparecer o tempo de se desdobrar como pensamento (DIDI-HUBERMAN,

2010).

Didi-huberman (2010) diz que Benjamin reconhecia de maneira indissociável

um poder da memória (que charemos nessa tese de memória afetiva). Aurático,

assim, seria o objeto cuja aparição desdobra, para além de sua própria visibilidade, o

que devemos denominar suas imagens, suas imagens em constelações (lampejando

luzes que aparecem e desaparem como de vagalumes) ou em nuvens, ou em outras

tantas figuras associadas, que surgem, aproximam-se e se afastam para poetizar,

trabalhar, abrir tanto seu aspecto quanto sua significação, para fazer delas uma obra

do insconsciente (Didi-Huberman, 2010). E essa memória afetiva, é claro, trança o

tempo, o faz e o desfaz, o contradiz e o superdimensiona. Assim, o trabalho da

memória a partir do olhar do olhado orienta e dinamiza o passado em destino, em

futuro, em desejo. Nesse sentido huberiano, permite-se pensarmos a experiência

estética em forma de aura, no sentido, por exemplo, que a pintura, a dança, as

várias manifestações artísticas oferecem ao olhar e que seriam uma realidade da

qual nenhum olho se farta. Seria o poder da experiência que não dá todas as

informações, que torna a imagem imanente aos nossos olhos. A cada olhar uma

nova experiência.

Quais os sentidos desse pensamento na educação? Didi-Huberman (2010)

reconhece na aura (poder do olhado) uma instância dialética apropriada a uma

experiência dialética. E diz que não há experiência aurática sem o sentir. E nisso, ele

buscou em Merleau-Ponty (apud Didi-Huberman, 2010), na ―Fenomenologia da

Percepção‖, ao pontuar que toda experiência aurática passa pelo sentir, tornando-a

dialética, o sentir revelaria. Experiência invasora que de maneira crítica desestabiliza

nossas certezas, por uma obra de arte. A aura promove a ―morte‖ diante da imagem,

como foi a ―morte‖ de Bergotte quando este se colocara diante do quadro de

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Vermeer, no romance de Proust que descrevemos no capítulo anterior. Essa é a

morte de nossas certezas. Posto que, para Didi-Huberman (2010) ao citar Merleau-

Ponty, o mundo estético – no sentido da aisthèsis, isto é, da sensorialidade em geral

– nada tem de estável; a fortiori o da estética – no sentido do mundo trabalhado das

artes visuais – que não faz senão modificar as relações e deformar os objetos, os

aspectos, as perspectivas. Em resumo, a partir de suas leituras de Merleau-Ponty,

para Didi-Huberman (2010) não há estética possível sem afeto. Acaso não

assimilamos em Lecuona, por exemplo, cada um dos critérios que fazem a

fenomenologia típica da aura (morte diante da imagem)? Os poderes do olhar

(olhante- olhado), da memória, do futuro implicado- dados pelo sentir. Temos assim

como pensar a experiência aurática que Didi-Huberman (2010) internalizou de

Benjamin como expressão de uma educação estesiológica, a partir dessa

possibilidade da imagem dialética. Ou seja, quando emprestamos nosso olhar à

alguma coisa (às relações afetivas, obra de arte, um discurso, uma idéia), essa

―coisa‖ nos devolve um olhar, este abala minhas estruturas e me devolve uma

interrogação- o dobrar e o desdobrar de Deleuze (1988).

Nóbrega (2016) diz que, para Merleau-Ponty, o sentir é uma experiência

corporal ligada à espessura do mundo, sendo uma recriação do mundo. Assim, por

exemplo, ver não é uma inspeção do espírito, mas certo olhar, uma experiência

corpórea que nos coloca em contato com o mundo e com o outro, rompendo a

dicotomia do em-si e do para-si. É a partir dessa experiência sensível e de contato

com o mundo, que Merleau-Ponty compreende a racionalidade e o exercício

filosófico da interrogação que dá sentido e cria horizontes de significações possíveis

nos vários campos do pensamento, inclusive na educação, como na existência. A

percepção é uma porta aberta a vários horizontes, porém é uma porta giratória, de

modo que, quando uma face se mostra, a outra torna-se invisível.

O objeto é ambíguo e cada sentido se exerce em nome das demais

possibilidades. Sob o meu olhar atual, surgem as significações. Mas o que garante a

relação entre o que vejo e seu significado? Entre o dado e o evocado? Essa relação

é subjetiva, depende das intenções do momento, de dados culturais e de uma

memória afetiva (MERLEAU-PONTY apud NÓBREGA, 2016). Nóbrega (2015) diz

que para haver uma educação do olhar, é necessário se ater a temporalidade como

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forma de presença, de profundidade, de conhecimento vivido. Essa noção encontra

na percepção estética, na pintura, mas também na dança, um exemplo emblemático

de corporeidade, do corpo em movimento e de sua sensibilidade. Merleau-Ponty

encontra uma verdade na citação de Sartre (apud Merleau-Ponty, 1956-1960/2006,

p. 443) quando este diz que: ―outrem é ser visto‖. É uma objetivação pelo olhar.

Eu estou imobilizado sob o olhar de outrem, o outro me aparece como pura objetivação de mim porque procurei surpreender pela visão o que é outro que não eu. Sou visto como vidente (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 443).

A existência do outro na filosofia de Merleau-Ponty pode ser compreendida

por meio dessa noção de corporeidade. Segundo Merleau-Ponty (1956-1960), no

oitavo esboço sobre o corpo, ele diz que o corpo tem um exterior, há dependência

desse outro, há uma condição de afetividade. O corpo como estrutura de conjunto,

isto é, como abertura s coisas e aos outros: ―indivisos num mundo indiviso‖

(Merleau-Ponty, 1956-1960/2006, p. 444). O filósofo afirma que a corporeidade é

relação com as coisas e com os outros, e para exemplificar isso ele usa Freud, nos

aspectos da organização oral, com a analogia da mordida, do canibalismo, como

incorporação, ―fazer passar o outro para dentro‖. Mas fazê-lo passar para meu

corpo é também fazer passar em mim um corpo que, como o meu, morde. Esta

mordida é uma retaliação do outro, um corpo tocante-tocado (beija-beijado).

A relação de retaliação e de captação de outrem a mim está atada a uma

relação puramente afetiva como temos visto nesta tese. Merleau-Ponty (1956-1960)

continua nos esclarecendo que se estabelece esta relação ―eu olhava/eu sou visto‖

está fundada na corporeidade. Assim, a intercorporeidade é a interferência das

corporeidades, ordem do indiviso. São linhas de força que encontramos também no

―estar-junto‖ de Maffesoli (2014). Lecuona é a expressão desse ―estar-junto‖, é a

expressão do amor, o movimento em busca do outro para ―fazer amor‖, e isso

emerge da corporeidade. Quem olha Lecuona apressadamente e sem um olhar

poético dirá que se limita a expressão do ato sexual em si. Na verdade, isso é limitar

a profundidade dessa obra, daí a necessidade de educar nossa sensibilidade, para

ver o que somente será possível se deixarmos ser orquestrados pelos sentidos. Mas

podemos ver o ―sexo‖ como uma metáfora, o ―fazer amor‖ de Lecuona está dentro

de uma perspectiva de Maffesoli (2014, p.52) que traz alusivamente o ―fazer amor‖

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como ato de conhecimento, uma indiscernibilidade entre prazer e verdade que se via

fortemente na sabedoria antiga. Ele contrapõe esse sentido com a modernidade que

se basea na separação, na ruptura entre essas duas estruturas antropológicas que

caracterizam a espécie humana. Ele, assim, destaca, que todo conhecimento é

corporal, e que nasce em si quando se conhece, sexualmente, o outro.

Acredito que ele deve ter lido Merleau-Ponty. Na ―Fenomenologia da

Percepção‖, este filósofo mostra que no ato sexual somos objeto e sujeito ao mesmo

tempo (objeto para o outro e sujeito para mim), mais do que um ato em si. Trata-se,

portanto, de considerar que há osmose entre sexualidade e existência, numa

dialética dramática de um corpo em direção a outro corpo. Assim, percebemos nas

cenas descritas de Lecuona, a capacidade de colocar, através do olhar sobre a obra,

o sujeito em contato com o mundo e assim inaugurar atos de conhecimento, uma

possibilidade que sugere um olhar para o humano inflamado, embriagado de

movimento e do veneno de suas forças excedidas. Nesta alusão a Maffesoli (2014),

o ―fazer amor‖ é fecundo quando nos dirigimos ao outro e geramos conhecimento,

parte desse reaprender a ver/sentir o mundo. Essa educação, não se restringe a

normas e técnicas pedagógicas, mas uma educação solidária ao humano em nós:

que cria ambientes de ensino que dá voz ao amor, a dor, aos gestos, aos risos, aos

medos, às múltiplas experiências existenciais que se enraízam na (re)novação da

paixão, do desejo e de diversos afetos da mesma ordem, dinamizando a

intercorporeidade: o que é, sempre e de novo, antigo e muito jovem: o viver-junto, ou

seja, o descentralizar-se de si, incitando, paradoxalmente, a se ligar com o outro.

Aspectos derivados da prevalência de uma ordem afetiva, a ordo amoris (SHELER

apud MAFFESOLI, 2014), em que a dependência do outro é primordial.

Ordenamento plural das coisas da vida sem síntese abstrata, a capacidade de

pensar o elo estreito que une real/irreal, razão/sensibilidade, visível/invisível.

Esse retorno aos afetos reacende a nova alquimia de uma educação que

reencontra a poesia do real e se divorcia de todo saber que é desconectado com a

imaginação, com o desejo, com os humores. Mostramos em Lecuona essa ordem

ao afeto. Percebemos uma ordo amoris em toda a atmosfera de Lecuona e culmina

na cena final, no clamor do amor No me Niegues, como eco das coisas da vida das

quais se trata, com serenidade, de revelar o essencial: o que o progressismo

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moderno acreditava ter superado, aniquilado. E ver na desesperança da existência o

coração que ainda pulsa e que envia pistas a uma humanidade que não está de todo

perdida: não negue o amor! Em seu aspecto mítico e onírico, a última cena de

Lecuona, nos arrasta nessa verdade do amor: a cultura de todo estar-junto. Em seu

sentido simples, o terreno, a boa terra onde este pode nascer e se desenvolver.

Esse bom terreno, que é o que amor encontra na arte, com sua insistência

dialética, faz dela um meio eficaz aonde as verdades do amor são disseminadas.

Seguindo esse entendimento, ao se mostrar aos nossos olhos como vagalumes

insistentes, como imagem dialética, segundo Didi-Huberman (2010; 2011), Lecuona

nos invade, nos beija em sua poética, inquieta nosso ver, cria campos afetivos (entre

o olhante e o olhado) e interroga nossa compreensão do mundo, exige de nós que

dialetizemos nossa própria postura diante dela, frustrando uma lógica objetiva que

não é suficiente para entender o humano em nós. Assim, inaugura o acontecimento,

arrasta um devir.

Esse movimento dialético, segundo Didi-Huberman (2010), deve ser

reconhecido em sua dimensão de análise crítica, de reflexividade negativa, de

intimidação. ―Como turbilhão que agita o curso do rio, como turbilhão que revela e

acusa a estrutura‖ (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 171). Assim teremos a chance de

compreender Benjamin quando este diz que ―somente as imagens dialéticas são

imagens autênticas‖ (apud DIDI-HUBERMAN, 2010, p 171), e por que, nesse

sentido, uma imagem autêntica deveria se apresentar como imagem crítica: uma

imagem em crise, uma imagem que critica a imagem. Capaz, portanto, de um efeito,

de uma eficácia teórica (na perspectiva da educação nessa tese). Por isso, uma

imagem que critica nossas maneiras de vê-la, na medida em que, ao nos olhar, ela

nos obriga a olhá-la verdadeiramente. ―E nos obriga a escrever esse olhar, não para

transcrevê-lo, mas para constitui-lo‖ (DIDI-HUBERMAN, 2010, p.172).

Assim, compartilhando desse pensamento, rompemos o silêncio da

experiência estética (aura, morte) para falarmos estesiologicamente e inaugurar

conhecimento. Isso que tem tudo haver com uma estesiologia, aonde a empatia

coloca em ação uma solidariedade orgânica, fora preciso uma desconstrução do

pensamento, ou seja, uma outra forma de elaboração do conhecimento que passa

pelo corpo, outra lógica, que pede outras linhas de forças, aberturas a possíveis

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interpretações, unindo conceitos e vivências corporais e que sabe que não pode

apreender todo o saber. Quando por essas imagens somos atingidos, nossas

certezas são desestabilizadas e, surpreendentemente, outros cenários de

pensamento são revelados. A partir de então, essa educação estesiológica se faz

necessária, pois compreender está nessa relação sujeito e mundo num dado tempo

vivido, por exemplo, quando compreendo um dança ou qualquer outra manifestação

artística, não opero uma síntese pura, eu vou ao encontro dele com meus campos

sensoriais, meu campo perceptivo, passado-presente-futuro, e, finalmente, com todo

ser possível, uma compreensão pessoal a respeito do mundo. No fundo do próprio

sujeito, descobríamos, portanto, a presença do mundo, de forma que ele não deveria

ser compreendido como síntese, mas êxtase. Existe, portanto, uma intencionalidade

operante.

Esta disposição corporal antecipa a qualquer tese ou qualquer juízo: é um

logos estético. Merleau-Ponty (1945/2011, p. 575) traz Husserl, ao dizer que este

logos é uma ―arte escondida nas profundezas da alma humana‖ e que, como toda

arte, só se conhece em seus resultados operantes. Não temos outra maneira de

saber o que é um quadro ou uma coisa senão emprestar nosso olhar, e a

significação deles só se revela se nós os olhamos de um certo ponto de vista, de

uma certa distância e em um certo sentido; em uma palavra, ‖se colocamos nossa

conivência com o mundo a serviço do espetáculo‖ (MERLEAU-PONTY, 1945/2011,

p. 575). Assim, temos uma lógica sensível como possibilidade de enxergar a

educação como criação, como liberdade, uma invenção poética do conhecimento e

da vida.

No mundo da racionalidade técnica, do individualismo e da cultura de

consumo, um pensamento como esse pode parecer sem sentido. No entanto,

pensando com Nóbrega ao citar Arendt (2016), de que os negócios humanos,

entre eles a educação, são urgentes, dado que a cada dia nascem novos seres

humanos e com eles a esperança, pensar sobre o corpo e seus afetos pode se

constituir como um importante itinerário de busca e conhecimento sobre si e sobre

o mundo. Nesse campo afetivo de Lecuona, várias formas de amor são colocadas

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à nossa reflexão52, muitas que possivelmente já vivemos, ou viveremos algum dia,

mas que suscita questões ao nosso ser. Nesse movimento, o duo Te He Visto

Pasar nos ensina sobre a potência de um corpo que re-significa suas sensações,

que ao ver a antiga paixão potencializou uma dor, mas percebe que não é mais

como antes, houve renascimento, a dor não lateja como antes, até que um dia ela

se transforma. Mariposa nos ensina o amor inocente do início que aos poucos

desnuda as diferenças, expõe os conflitos, o desconforto do relacionamento e

termina na metamorfose (criação) da mariposa, que voa para outros ares, outros

começos. Enquanto que, seu parceiro ficou instalado no fim, na perda, na não-

superação, preso na saudade, na espera demorada de um novo que o anime à

vida. Não diferente de Recordar que suscita o conflito entre o passado e o futuro

em relação à experiência da perda. Recordar ensina que a experiência da morte

nos coloca diante à vida, diante de nossa finitude, questiona nossa prepotência de

sermos humanos ―dominadores da natureza‖. Aprendemos com Recordar a

importância de viver a dor, o luto, entretanto o luto precisa ser um campo potente

de metamorfoses, de criação, de esforços em direção à vida.

Yo te quiero Siempre nos ensina o amor que não quer alianças, quer o hoje,

suscita uma discussão ética e política do corpo e das relações sociais na

contemporaneidade, sendo potente para discutirmos alguns prejuízos desse século

do consumo e das influências das mídias virtuais, reflete também um

empoderamento feminino, mas também critica a ênfase no ―corpo seu‖ desse

tempo (ANDRIEU, 2004). Celos nos ensina o excesso do amor, transbordando em

ciúme, mostra-nos que o amor também pode ser morte, pode ser veneno, pode

nos desestabilizar ao extremo. Até que, em No me Niegues, somos pegos de vez

na sensação que somos feitos de amor e para o amor e não podemos fugir, não

podemos negar, precisamos sentir, precisamos desse elo que é o amor que nos

faz pertencer e nos constitui como humanos.

E como não se ver nessas histórias de afeto? Um dos potenciais educativos

da arte é seu aspecto de compartilhar, se solidarizar com nossas fraquezas

52

Dos doze duos, escolhemos cinco, mas os resumos dos outros estão em nossos anexos. Entre as formas de amor de Lecuona que não descrevemos, temos: o amor romântico, o amor lúdico, o amor do fim, o amor das noites clandestinas, o amor onírico, etc.

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humanas e amortizar nossas dores nessa expressão do mundo, pois percebemos

que não estamos abandonados em nossa contingência, a arte nos salva.

Dançando fluxos estéticos que podem educar pela sensibilidade e pela

estesiologia

Quando pensamos no afeto tratado nesta tese, o afeto dançado em Lecuona,

entendemos que ele nos coloca em presença. Pelo amor, abro para uma verdade

que se encontra no mundo das relações por um corpo estesiológico, abro-me para

liberdade. Quando decido, tomando posse de um passado, ressignificá-lo para um

novo presente, estou exercendo a liberdade. Esta que tem a capacidade de retomar

a existência anônima que configura o solo de toda experiência. Posso me fechar

nesse passado como nosso bailarino do duo Mariposa e nossa bailarina de

Recordar, mas posso me abrir ao mundo, assim como um rio que degela, assim

como nossa Mariposa de Lecuona que voou em busca de outras belezas e a nossa

bailarina do vermelho Te He visto Pasar que se abriu a outras experiências afetivas.

Da mesma forma, percebemos em Merleau-Ponty, no caso da moça descrito

em ―Fenomenologia da percepção, um exemplo afetivo do recuo a liberdade. Ela ao

ser impedida de se encontrar com o rapaz que amara, perde o sono, o apetite e, por

último, a fala. A afonia, nesse caso, não tem uma origem orgânica, já que a moça

em questão se cala em decorrência de uma experiência traumática. Merleau-Ponty

estuda o caso no intuito de mostrar que a perda da fala, apesar de não ter sido uma

opção, pois ela simplesmente perde a voz, significa um recuo à existência anônima

porque configura uma resistência do sujeito à abrir-se a coexistência.

Merleau-Ponty (1945) dizia que pretendia buscar na afetividade a gênese de

nossas relações com o ser. No caso da moça, a perda da voz, além de sua

significação sexual, expressa uma dimensão geral da existência, pois a fala é o

modo por excelência de comunicação com os outros. Por isso, perder a voz significa

recusar a coexistência, fechar-se para o mundo.

Para a cura, segundo o filósofo, seria necessário uma postura de corpo, uma

atitude que tem em si um poder selvagem. Ele compara a doença ao sono, que

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antes deste chegar, há um retirar-se corporal, um abrir mão das vontades e de

minha consciência: ―estiro-me em meu leito, do lado esquerdo, os joelhos dobrados,

fecho os olhos, respiro lentamente, distancio de mim meus projetos... eu chamo a

visitação do sono imitando a respiração daquele que dorme e sua postura‖

(MERLEAU-PONTY, 1945/2011, pp. 226-227). Entregue ao sono, o sujeito, à

semelhança do doente, só estaria no mundo pela vigilância anônima dos sentidos.

Entretanto, essa vigilância anônima, esse último elo com o mundo, é exatamente o

que permite o retorno. O despertar, assim como a cura, agarra-se aos frouxos fios

intencionais que mantêm uma janela aberta para a volta coexistência, pois ―o que

neles torna possível o retorno ao mundo verdadeiro são ainda funções impessoais:

os órgãos dos sentidos, a linguagem‖ (idem, 1945/2001 p. 226). Só o corpo é capaz

de assegurar essa metamorfose: há como diz o filósofo, casos de afasia em que

uma carícia resolve a tensão corporal trazendo o sujeito de volta à fala.

Isso indica que é possível promover, por intermédio de uma nova experiência

afetiva, a reorganização do sentido vivido pelo sujeito. Na experiência de Nise da

Silveira (2015) com seus pacientes diagnosticados com esquizofrenia, vemos bem

esse exemplo. Ela revoluciona a psiquiatria ao usar a arte como maior expressão

para tratar seus pacientes, ela mostra o poder do afeto como catalisador para cura e

diz que dificilmente o tratamento será eficaz se o doente não tiver um outro que

construa com ele elos afetivos. A arte como capacidade de vivenciar afeto, assim,

contribui como elo, renascimento deles para o mundo e uma forma de compreendê-

los. Quer dizer, o corpo é aquilo que me insere no mundo, mas também o que

permite afastar-me dele. O sujeito recuperará sua voz, sua vida, re-significará sua

dor, por uma conversão na qual todo o corpo se concentra, por um verdadeiro gesto.

No próprio instante em que vivo no mundo, em que me dedico aos meus projetos, a minhas ocupações, a meus amigos, a minhas recordações, posso fechar os olhos, estirar-me, escutar meu sangue que pulsa em meus ouvidos, fundir-me a um prazer ou a uma dor, encerrar-me nesta vida anônima que subtende minha vida pessoal. Mas, justamente porque pode fechar-se ao mundo, meu corpo é também aquilo que me abre ao mundo e nele me põe em situação. O movimento da existência em direção ao outro, em direção ao futuro, em direção ao mundo pode recomeçar, assim como um rio degela. (MERLEAU- PONTY, 1999, p. 228).

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Retomando a descrição da cena Te he visto pasar de Lecuona, percebemos

nos sentidos da música, nos gestos, esse poder de um corpo que, por sua

capacidade de sentir, pode exercer sua liberdade, re-significar sua dor e nascer de

novo à esperança. Somente um herói vive até o fim sua relação com os homens e

com o mundo, elucida o próprio Merleau-Ponty (1994). Pensar esta posição de herói

é colocar em discussão as dificuldades e belezas deste mundo de relações, os

conflitos e delícias de estar em comunhão, de estar com o outro. Somos heróis

anônimos num mundo que nos pede relação, envolvimento e escolhas. E, todavia

sou livre, não a despeito ou aquém dessas motivações, mas por seu meio. Pois esta

vida significante, esta certa significação da natureza e da história que sou eu, não

limita meu acesso ao mundo, ao contrário é meu meio de comunicar-me com ele.

Encaro a dor de minha história, sinto-a, não a nego, mas ela me desafia num porvir,

ela abre horizontes possíveis, entranho-me no presente e no futuro, assumindo sem

restrições, nem reservas, aquilo que sou presentemente que tenho oportunidade de

progredir. E o que sou? Esse herói de relações, um corpo com possibilidade de afeto

que somente ele pode expressar minha existência e, em suma, realizá-la. Assim, é

vivendo esse tempo que posso compreender os outros tempos, assumindo

resolutamente aquilo que sou por acaso, querendo aquilo que quero, fazendo o que

faço que posso ir além, posso ir em direção ao poder expressivo.

Nesse entendimento, a noção de instituição em Merleau-Ponty é muito cara,

pois exige compreender o sujeito não como cogito pré-reflexivo que assume um

passado a partir de um foco de consciência presente, mas sim como instituição: a

pessoa não é originariamente uma presença a si, mas sim abertura de um campo de

experiência mediado pelo imaginário (RAMOS, 2013). Abertura esta que carrega um

estilo interrogativo ou desejante, encarnado no esquema corporal, o qual pode ser

compreendido na abertura à exterioridade, isto é, no movimento de alienação de si

no outro. Em suma, alieno-me no outro para interrogá-lo sobre minha propria

conduta. E nisso a arte nos dá a ver.

A dança, por seus fluxos estéticos do afeto, sua poética, traz à visibilidade

dramas vividos nos corpos que dançam e em mim quando os olho. Uma educação

nasce no momento que ao me colocar no lugar do outro neste drama, realiza-se a

abertura propiciada pela retomada do meu presente rumo à criação, a qual é

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responsável por colocar a vida em movimento. Chauí (2002) diz que o instituído

carrega um vazio e um excesso que pedem nova instituição, novas expressões. O

pintor não pode parar de pintar, o músico não pode parar de tocar, o dançarino não

pode parar de dançar. Cada expressão engendra de si mesma e de sua relação com

as expressões passadas e com o mundo presente a necessidade de novas

expressões. A experiência e as obras que ela suscita sem cessar são, assim,

iniciação aos mistérios do tempo como pura inquietação – literalmente, inquietude.

Tomar a experiência como iniciação aos mistérios do mundo. Resta saber, no

entanto, como esse entrar no mundo é também nossa volta a nós mesmos. A dança

revela que a experiência de dançar é experimentar o que em nós se vê quando

vemos a dança, a literatura revela que a experiência de escrever é experimentar o

que em nós se fala ou escreve quando falamos. Experiência: algo age em nós

quando agimos, como se fôssemos agidos no instante mesmo em que somos

agentes. A obra de arte é a chave do enigma da experiência e do espírito e, dessa

maneira, ensina à filosofia o filosofar, à educação o educar, ao homem o viver,

ensinando-lhe a reversibilidade entre atividade e passividade , que a tradição não

assume.

Caminha (2015), num diálogo com Schiller, diz que somente pela ―beleza‖53 o

homem possui uma determinação passiva, instituída pela natureza, e uma

determinação ativa, estabelecida pela liberdade. Logo é pela arte que o homem se

faz verdadeiramente livre. Para Schiller, ―a arte é filha da liberdade e quer ser

legislada pela necessidade do espírito, não pela privação da matéria‖ (SCHILLER

apud CAMINHA, 2015 p. 60). Caminha (2015) continua a dizer que, segundo

Schiller, para resolver na experiência o problema político é necessário caminhar

através do estético, pois é pela beleza que se vai à liberdade. Nesse sentido, a

liberdade nasce a partir da tendência que o homem tem para o belo. Na

representação artística, o ser humano manifesta a liberdade de criar. A arte tem uma

força desalienadora quando cria a obra.

Segundo Caminha (2015), Schiller considerava a educação como responsável

pela condução do homem à beleza. A educação estética vai permitir que o homem

53

Não a beleza no sentido apolínio, não no sentido de certo determinismo, mas noção ancorada no sensível, na experiência estética que não exclui os excessos, o grotesco.

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passe dos meros sentimentos vitais para os sentimentos de beleza, Schiller vê no

desenvolvimento do impulso lúdico, que gera a beleza, a possibilidade da

humanidade ser mais sublime e, consequentemente, mais livre. Somente a beleza

nos conduz a um estado intermediário que comporta, ao mesmo tempo,

sensibilidade e pensamento. A educação estética como exaltação do homem que é

capaz de fazer de si mesmo uma obra de arte pela sua condição existencial de

autodeterminação. Buscando realizar o belo na obra de arte, o homem se torna um

ser estético no ato livre de ser artífice de si mesmo. O que é vivo é rendido às

possibilidades dos acontecimentos, às paixões, aos afetos, às palavras, às

intempéries sociais, políticas, enfim, o inesperado que exige do corpo um esforço,

uma atitude, criação.

Nóbrega (2015) diz que nossa existência é preenchida nas relações e as

nossas escolhas, mesmo que nos causem angústia, não restringem a nossa

liberdade. A escolha pode nos liberar de nossas âncoras, de nossas amarras, de

nossas certezas, de nosso lugar comum. A liberdade é um processo de criação em

que reinventamos a vida. A arte é um campo para expressão da vida, da liberdade,

da criação de sentidos, tanto para o artista quanto para o público que se engaja de

forma diferente, mas não menos potente na apreciação estética da obra. Nóbrega

(2016), com sua leitura de Merleau-Ponty, ao pensar sobre a pintura de Cézanne,

diz:

A produção da liberdade da vida humana, longe de negar nossa situação, a utiliza e a transforma em meio de expressão. Para Merleau-Ponty (2004), a liberdade só pode ser encontrada no curso da vida, sendo sempre uma retomada criadora de nós mesmos. A Dúvida de Cézanne aborda a liberdade do artista e sua capacidade de romper com os determinismos e com as significações instituídas pela cultura, pela história da arte e com as interpretações psicológicas relativas ao gênio do artista (NÓBREGA, 2016, p. 101).

Assim, nesse aspecto da liberdade como rompimento dos determinismos de

toda ordem, olhando para nosso coreógrafo Rodrigo Pederneiras e os fluxos

estéticos da obra Lecuona, pensamos: esta dança surgiu como um movimento

transgressor do coreógrafo Rodrigo Pederneiras ao problematizar sua obra, já que

estruturalmente vem como algo totalmente diferenciado do que ele fizera antes e

depois dessa obra, como já havíamos citado no capítulo dois, nas poéticas do Grupo

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Corpo. Lecuona surge de uma angústia do artista por humanizar mais suas danças

e, vamos concordar, não tem algo mais humano do que a paixão. Neste

entendimento, releiamos esse trecho da entrevista do coreógrafo concedida para

esta tese:

(...) comecei a ver e a pensar que Lecuona foi uma... mas na época eu nem pensava muito nisso, pelo menos eu não pensava profundamente que foi um período que eu comecei a humanizar um pouco mais o que eu fazia, a trazer mais pro peito as coisas que eu vinha fazendo, tanto que depois disso, veio Onqotô, que vem com um lado forte assim. Acho que essa humanização da dança que hoje eu falo muito, quando falo para alunos, quando falo para coreógrafos, eu falo para as pessoas, eu falo que não só a dança, mas acho que a arte contemporânea de uma maneira geral precisa urgentemente ser humanizada. Eu estou cansado de ficar vendo, sei lá... você vai nas bienais e a única coisa que você vê são os artistas envernizando o próprio umbigo, então, eu acho que essa humanização do Corpo começou no Lecuona (PEDERNEIRAS, 2016).

Percebemos, pois, nessa fala, que a educação se deu na re-significação de

sua arte, no movimento crítico do artista, ou seja, uma imagem em crise, uma

imagem que critica a imagem (DIDI-HUBERMAN, 2010), uma inquietação a voltar-se

aos afetos para humanizar sua obra, interrogá-la em todo tempo em um retorno ao

sentir. Essa angustia reverbera em Lecuona e culmina em Onqotô, um ano depois.

Pederneiras, ao interrogar sua arte, ele também interroga o mundo, ele interroga a

arte contemporânea e diz que ela ―precisa urgentemente se humanizar‖ e continua:

―estou cansado de ficar vendo (...) artistas envernizando seu próprio umbigo‖. Então,

o que Lecuona nos ensina com isso? A inquietação do artista com Lecuona foi um

grito para voltarmos aos afetos como a liga imprescindível de um retorno a

humanidade, é ―sair de si para o outro‖, ou melhor, usando o sentido de Pederneiras,

deixar de se restringir ao seu ―umbigo‖ e se entregar as sensações. Assim, o artista

manda seu recado ao mundo e nos ensina com o fogo da paixão.

Rodrigo Pederneiras, com isso, suscita-nos questões que fizemos no capítulo

dois e que nos faz pensar a educação como exercício dialético que no Grupo Corpo

começou na crítica da sua própria imagem e depois a critica no campo de

conhecimento da dança contemporânea no anseio a possibilidade do novo. Essa

dança de tanto buscar por legitimação estaria vivendo um anestesiamento crítico,

uma homegeneização dos discursos. Nesse entendimento, precisamos lembrar o

porquê dançamos. Contudo, é necessário que haja reflexão e volta ao fogo das

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experiências afetivas, exercício feito por Rodrigo desde 2004, para que as coisas se

modifiquem. Neste campo criativo e educativo que é a arte, especialmente a dança

nesta pesquisa, pensamos igual a Porpino (2006): que os processos de criação

artística podem ser compreendidos também como processos educacionais. Nesse

entendimento, percebemos que a educação se estabelece também nesse processo

de incorporação dos bailarinos na intenção da obra, no projeto artístico do

coreógrafo. Neste aspecto, o coreógrafo tem um papel de mestre ao oferecer aos

bailarinos o aprendizado dos movimentos técnicos da obra coreográfica, mas

também os sentidos do projeto artístico e se juntar a eles para re-significar a dança.

Na fala de Pederneiras observamos essa parceria do coreógrafo e dos bailarinos na

montagem de Lecuona:

(...)isso tem haver também com esse mergulho dos bailarinos na ideia, deles entrarem mesmo de cabeça, e com isso as contribuições que eles trazem são fantásticas, maravilhosas, ideias muitas vezes tão pequenas que mudam tudo (LECUONA, 2005).

Sobre a incorporação dos gestos, das sensações e das intenções do projeto

artístico, essa outra bailarina nos descreve sua experiência: ―Um trabalho interno

muito grande em torno das minhas emoções. Umas vivências muito fortes que tive e

eu consegui colocar no pas de deux” (LECUONA, 2005). Neste contexto da dança,

Porpino (2006) diz que a criação coreográfica passa por situações diversas,

abarcando, simultaneamente, a imprevisibilidade das criações dos bailarinos e a

composição do coreógrafo. Utiliza a repetição não só como método de aprendizado

técnico ou instrumento formal de composição coreográfica, mas também como

elemento que possibilita o desarranjo, a desconstrução de gestos técnicos ou a

inversão de sentidos de determinadas situações de vida cotidiana. Na fala a seguir

de uma das bailarinas de Lecuona, na aprendizagem de um movimento de saltar,

percebemos esses aspectos de imprevisibilidade:

Quando tem movimentações que tiram a previsibilidade é muito interessante porque você tem que descobrir uma nova maneira de fazer. E eu acho que o salto trouxe isso, essa informação nova. Esse não previsível. E o que você pode fazer com ele que é completamente diferente (LECUONA, 2005).

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Entendamos nas próximas falas do coreógrafo como ele facilitou o acesso

dos bailarinos no sentir da dança, em seu projeto passional:

(...) muitas das bailarinas que estão aprendendo são muito novinhas... Então foi engraçado, foi legal ver elas se apresentando e se colocando no lugar de mulheres muito sensuais, mulheres muito experientes e dando conta desse recado, o que me surpreendeu muito. E me surpreende a qualidade com que elas tem feito cada papel (PERDENEIRAS, 2016).

O contexto dessa fala se deu na reapresentação de Lecuona em setembro de

2016 após doze anos de sua estréia. Os bailarinos desse segundo elenco são

novos, vindos de uma rotatividade necessária, devido ao curto tempo dos bailarinos

no Grupo devido a uma grande exigência técnica. Alguns desse novo elenco,

acabava de chegar ao Grupo Corpo e tiveram de súbito encarar o balé da paixão:

Lecuona. O coreógrafo, nesse ponto, pedia deles maturidade para dar verdade a

esses gestos. Mas ele via que eles tinham muito a aprender devido a pouca idade e,

assim, nesse contexto, Lecuona se configura como espaço de ensino, campo que

oferece experiências e aprendizados existenciais a esses corpos. Diante disso,

segundo Pederneiras, o processo foi árduo nesse caminho de aprendizado dos

gestos e todos os sentidos imbricados neles. O coreógrafo, nesse contexto, se porta

como um mestre e os aprendizes são os bailarinos. Esse os leva num aprender a

sentir, imprescindível para que o dançar deles possibilite o estado de performance, e

criem campos afetivos para que assim ocorra os fluxos estéticos na expressão do

novo. Percebamos a seguir, nesse exemplo do coreógrafo, como se deu esse ensino

do gesto no duo Te He Visto Pasar:

Aquela do vermelho (Te He Visto Pasar), outro dia estava corrigindo ela: - Olha, não é, não quero que você brinque com ele, que você queira ele. Eu quero que você morra por ele, quero que você coma ele. Ela é muito novinha vai se assustando um pouco. Ela vai tentando, vai tentando até que consegue. Mas você tem que dando essas dicas, às vezes, eu exagero um pouco, mas é assim mesmo (PEDERNEIRAS, 2016).

Observamos nessa fala que o coreógrafo interfere nos gestos da bailarina e a

leva em um processo de compreensão através da sua fala carregada de sentidos:

―eu quero que você morra por ele‖, ―quero que você coma ele‖. Essa fala do

coreógrafo já é gesto. Esse comer tem o sentido de incorporação, de penetrar nele e

se deixar ser penetrada, configurando afeto. Esse ―canibalismo‖ emerge da

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corporeidade, como nos diz Merleau-Ponty (1995; 2006). Assim, nesse

entendimento, os esforços educativos de Pederneiras era fazer a bailarina ―sair de si

para o outro‖ (MAFFESOLI, 2014) e que houvesse incorporação, reversibilidade dos

sentidos. Esse campo de aprendizado deu-se no ambiente profissional, nas

montagens coreográficas. Todavia, o Grupo Corpo também potencializa abertura de

outros espaços educativos, através de seu projeto social ―Corpo Cidadão. O ―Corpo

Cidadão‖ fora criado há dezesseis anos, uma organização não-governamental,

pautada no direito das crianças e do jovem. Este projeto desenvolve trabalho social

voltado a arte e educação. Assim, acredita na dança como educação, oferece a

formação artística em dança para crianças e jovens que não teriam uma outra

oportunidade de aprender se não fosse a atuação do projeto. Pederneiras nos fala

da relação da dança e educação nesse projeto:

Há relação entre dança e educação. A gente inclusive tem um projeto que faz isso, que chama ―Corpo cidadão‖ que dá um resultado absolutamente fantástico. O bailarino que faz o pas de deux com a Sylvia na dança Sinfônica, ele veio desse projeto. Eu acho que não só a dança, mas qualquer tipo de arte muda a percepção das pessoas, abre o horizonte das pessoas. Isso é coisa primordial, é fundamental para quem tem o horizonte aqui na frente, tem pessoas que não tem. Que não tiveram estudo, não tiveram oportunidade nenhuma, continuam não tendo oportunidade, eu acho que a arte é a forma mais eficaz de expandir os horizontes das pessoas. É um pouco do que a gente tenta fazer, a gente fala muito: a educação através da arte. É uma coisa muito pretensiosa, mas é o que a gente tenta fazer e tem dado muito resultado (PEDERNEIRAS, 2006).

A educação, segundo Pederneiras, está nesse contato com a arte que muda

a percepção das pessoas em relação ao mundo, abre horizontes de possibilidades.

Segundo Pederneiras, essa educação é muito ―pretensiosa‖, pois ela faz ―ampliar os

horizontes, faz com que a maneira de ver a vida vá mudando à medida que as

pessoas vão conhecendo, vão exercendo arte‖ (PEDERNEIRAS, 2016).

O bailarino do Corpo Cidadão que hoje faz parte do Grupo Corpo, de quem

Rodrigo lembra em sua fala, é Edmárcio Junior. Ele protagoniza junto com Sylvia

Gaspar em Dança Sinfônica (2015) um dos pas de deux mais lindos do Grupo Corpo

nesses 40 anos. É um duo intenso, forte, carregado de memórias e poder de

superação- tem muito da história do Grupo Corpo, mas também, tem muito de

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superação, força dos bailarinos54. Este bailarino narra a revista O Tempo como se

inseriu nesse projeto social do Corpo, as oportunidades educativas e posteriormente

como se tornou bailarino do grupo.

Eu chegava da escola e ouvia as crianças gritando, cantando, tocando percussão (...)Eu acabei fazendo o teste [para entrar no Corpo Cidadão] pouco tempo depois do falecimento da minha mãe, incentivado por minha avó, porque ela sabia que minha mãe ia gostar de me ver no caminho artístico. Ela dizia que queria que eu tivesse uma história diferente da família. A minha vida é toda marcada pelo Corpo Cidadão. A primeira vez que fui ao teatro foi pelo projeto. A gente assistiu ao Grupo Corpo no Palácio das Artes, e eu fiquei com vontade de fazer o que eles faziam (...). [Algum tempo depois] Quando o Paulo [Pederneiras, diretor do grupo] me ligou, eu achei que era um trote, claro. Ele me pediu para ir na companhia no mesmo dia. Dei um jeito, peguei um ônibus e fui direto para lá. O Rodrigo queria fazer um duo. Primeiro, chamou a Silvinha e depois apontou para mim. Eu iria dançar com a diva do Corpo com um duo montado para a gente! Nossa, senti o peso da responsabilidade. Ela é uma referência, pela qualidade do trabalho que mostra em cena e pela intensidade em tudo o que faz. (...) Eu recebi vários retornos de que os alunos [os jovens do Corpo Cidadão] estão indo para as aulas com mais vigor. Se eu consegui, eles também podem. Eu fui muito acolhido aqui, sem nenhum preconceito porque não sou formado. Eu vim de um projeto social, não tenho formação técnica, mas aqui eles bancaram essa ideia. Se eles quebram esse preconceito, outras companhias também podem quebrar (JÚNIOR apud ATHIÊ, 2017).

A educação, nestes exemplos, se configura fora dos espaços formais

(escolar), desdobrando-se nos espaços da cultura, como da arte. Não

compreendemos a educação restrita ao ensino sistematizado, visto que a ação

cultural e a educação como aprendizagem extrapolam ensino formal. Entretanto,

apontamos nesses espaços aspectos, aprendizados existenciais que dialetizem com

esses espaços escolares e nos façam pensar uma escola onde os campos de saber

se solidarizem com a vida real na sua complexidade, unindo razão e sensível sem

demérito algum.

Silveira (2015) nos diz que lidar com atividades manuais e expressivas,

processando-se, sobretudo, em nível não verbal- assim como ela escolhera a pintura

para cuidar de seus pacientes esquizofrênicos- compreende-se que esse tipo de

tratamento –não diferente nas escolas- não goze de pretígio na nossa cultura tão

54

Ao descrevermos o duo Recordar no capítulo dois, trouxemos um pouco da história da bailarina Sylvia Gaspar, em especial, no tocante a perda de sua filha. Quando falamos que esse pas de deux (2015) tem muito de superação estamos nos referindo as histórias vividas desses dois bailarinos (Sylvia e Edmárcio). Uma que contamos no capítulo anterior e a outra que trouxemos nessa página em questão.

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deslumbrada pelos elubrações do pensamento racional e tão fascinada pelo verbo.

São nas práticas da vida cotidiana, na afetividade, nos diversos fenômenos de

linguagem e expressão que vemos a importância e a eficácia de uma educação que

se volta aos afetos. Pedindo emprestado a expressão do nosso coreógrafo, a

educação estesiológica que revelamos é muito ―pretensiosa‖, mas ela não está longe

de nós, pelo contrário, está nos fios intencionais que tramam uma vida, está no jogo

societal, nas afecções do corpo, está na lógica própria da ―ordo amoris‖, está na

resistência do pensamento, está no papel que exerce o emocional na ação

administrativa, no jogo sindical, nas reinvidicações profissionais, nas condutas

políticas, no eco do fato de que a vida não se divide; e que a verdade da vida em si é

indivisível.

Segundo Nóbrega (2016), corpo, afeto e linguagem são organizadores da

nossa condição humana, de nosso encantamento sensorial e histórico na infinita

tarefa de imprimir sentidos aos acontecimentos. Por meio dos afetos, do amor, da

sexualidade podemos compreender a nossa sociedade, a cultura, as práticas

educativas em relação a nossa corporeidade. Neste entendimento, a educação

formal ainda tem como desafio criar espaços afetivos para se discutir sobre o desejo,

a sexualidade, a paixão, dar voz ao riso, ao choro, a dor, a imaginação. Como

também estimular as relações afetivas dentro desses espaços: professor-aluno,

aluno-aluno, aluno-espaço educativo, para potencializar um saber da ordem do

estar-com. São as fugas dos determinismos impostos nas relações, dos mecanismos

que aceleram nossa objetividade, que engole nossa subjetividade. Precisamos

alfabetizar para além das letras e dos números, precisamos apresentá-los o alfabeto

dos sonhos, das imagens e ensiná-los uma leitura sensível- nos vários campos da

cultura – que os leve ao infinito: ler um livro com os olhos da fantasia, ler os gestos

sensíveis de uma dança assim como fizemos com Lecuona, ler um quadro, ler uma

música, ler os olhos do outro, enxergar nesses outros olhos também um sujeito, uma

possível dor, uma história e se solidarizar ao entorno. Ler com esses olhos sensíveis

e se deparar com as imagens, como nos inspira a literatura Proust ―Em Busca do

Tempo Perdido‖:

Quando eu via um objeto exterior, a consciência de que o estava olhando permanecia entre mim e ele, bordava-o com uma tênue orla espiritual que me impedia de nunca tocar diretamente a sua matéria; volatilizava-se esta

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de alguma forma antes que eu tomasse contato com ela, como um corpo incandescente que se aproxima de um objeto molhado não chega a tocar sua umidade, pois se faz sempre anteceder de uma zona de evaporação. Nesse tipo de tela colorida de estados diversos que, enquanto eu lia, minha consciência ia desenrolando simultaneamente, e que iam desde as aspirações mais profundamente escondidas dentro de mim até a visão inteiramente exterior que eu tinha do horizonte diante dos olhos, na extremidade do jardim, o que havia de principal em mim, de mais íntimo, o leme que governava o resto num movimento incessante, era a minha crença na riqueza filosófica, na beleza do livro que estava lendo, e meu desejo de me apropriar delas, fosse qual fosse esse livro (PROUST, 2006, p 45).

Assim, uma educação que privilegia o afeto, gera alteridade, respeita às

diferenças e encontra nas contradições do outro não o motivo de separação, mas a

mola que nos impulsiona a ―viver-junto‖. Segundo Maffesoli (2014), ao citar um termo

de Heidegger, diz que esse pensamento deriva-se de uma ―maturidade dialética‖ a

fim de abordar essas coisas da vida em sua integralidade. É isso que diferencia uma

lógica unilateral, só vendo um lado do ―real‖, do pensamento sensível (que ele

chama de concreto), que sabe fazer advirem às coisas. Assim, essa educação

estesiológica devolve toda sua importância ao afeto, que não se encerra num estado

amoroso em um si individual, nem sobre um ―duo‖ (casal), mas, sim, como um

estado de difração em perpétuo devir.

Essa educação se dá por uma atitude hermenêutica que fica atenta à

expressão dos afetos, identificando e interpretando os sinais próprios de uma

cultura. Ou seja, processo de reconhecimento do outro, Isto é, ―nascer‖ em si a partir

da alteridade. Termo que destacamos, pois precisamos entender que se colocar no

lugar do outro não é ser o outro. Uma das características que acompanha esse

século é a perda da individualidade em meio ao coletivo. No tempo onde os meios

midiáticos continuam reforçando uma cultura homogeneizada, ditando o que comer,

o que vestir, como se comportar, é necessário ficarmos atentos e resistentes. Essa

resistência e preocupação é o efeito da estética da alteridade (MAFFESOLI, 2005b;

2014) que promove a reflexão sobre nossos modos de como (con)viver com o outro,

com as diferenças na vida de todos os dias. Vamos pensar, com cuidado, nesses

sentidos, para que a vida humana não se torne vazia de significados perante a

indiferença que permeia o imaginário do século XXI.

Neste sentido, entre os muitos desafios que se apresentam na educação

contemporânea, destacamos, assim, a escuta sensível com possibilidade de

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perceber a presença do corpo nesta educação, compreender sua linguagem e

construir um conhecimento que favoreça a condição humana. A estesia,

compreendida como comunicação sensível, diz respeito à experiência do corpo no

espaço e no tempo, nas relações com a natureza, com o mundo, com o outro e

consigo mesmo. Uma comunicação marcada pelos sentidos que a sensorialidade e

a historicidade criam, numa síntese sempre provisória, numa dialética existencial

que move um corpo em direção a outro corpo (MERLEAU-PONTY, 1956-1960;

1964). Assim, Lecuona em sua leitura sensível expressa a estesia, que possibilita

uma reflexão que é capaz de conduzir ao espanto como condição de apresentar-se

como estratégia para educação estesiológica, reaprender a ver o mundo, reconvocar

a sensibilidade, o poder de agir e de criar. O sentido da estesia, deste sentir, está

nos acontecimentos e na ligação entre as coisas e profundidade de sua expressão,

numa sensorialidade que anima a carne e abre o corpo para o mundo, como nos

auxilia Nóbrega (2010).

Em contato com o mundo, vamos constituindo enquanto sujeitos. Nosso corpo

está em constante troca com o mundo e essa troca vai alimentando nossa

existência. Nossos corpos, por sua capacidade estesiológica, vão revelando uma

ontologia do ser, vai absorvendo as nuanças do mundo e refazendo-se

constantemente. As diferentes disciplinas ou pedagogias, precisam considerar que

o ―corpo que tenho‖ da biologia, fisiologia, da física, da anatomia, etc é, também, o

corpo que sou da afetividade. Assim, ―por meio das práticas sociais, possamos,

q u e m s a b e , transgredir, impulsionados pela paixão, para compor uma nova

perspectiva de vida mais ética e mais estética‖ (NÓBREGA, 2016, p. 58). O que é

vivo é rendido às possibilidades dos acontecimentos, às paixões, aos afetos, às

palavras, às intempéries sociais, políticas, enfim, o inesperado que exige do corpo

um esforço, uma atitude, criação. Assim, por meio do logos estético, coloca-se à

experiência perceptiva como campo de possibilidades para o conhecimento, este

flexível e inesgotável.

Torna-se necessário entender que o corpo capaz de sensação, estesiológico,

apesar de possibilitar à experiência estética, se entrega a uma potência dialética –

ou mesmo da experiência aurática como vimos em Didi-Huberman (2010) –, ou seja,

a estesia leva-nos pelo caminho da beleza a ultrapassar o encantamento e algo se

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transforma, diante as possibilidades, somamos sentidos e significados, há

movimento e criação, um logos estético se institui. Logo, não somos os mesmos

depois de nos banharmos na experiência estesiológica, uma capacidade de arte e

de pensamento, uma atitude do corpo. Como nos auxilia nessa reflexão Merleau-

Ponty:

A literatura, a música, as paixões, mas também a experiência do mundo visível são tanto quanto a ciência de Lavoisier e de Àmpere, a exploração de um invisível, consistindo ambas no desvendamento de um universo de ideias. Simplesmente, aquele invisível, aquelas ideias não se deixam separar, como a dos cientistas, das aparências sensíveis, mas erigem-se numa segunda positividade (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 144).

Nóbrega (2015), ao falar da dança, diz que, em sua poética de movimentos, é

necessária a vida sensível do corpo, criando cenários em movimento, para que

possamos estar presentes em uma temporalidade que é da mesma natureza do

êxtase, do encantamento, do ritual, da celebração. Sim, uma dança do corpo vivo,

cujos rastros podem ser expressos nos relatos do corpo vivido, embora jamais

possam ser inteiramente desvelados. Compreendemos que a profundidade do corpo

requer uma entrega às sensações, uma imersão íntima na sensorialidade de forma

íntima e coletiva, ao mesmo tempo, assim como percebemos em Lecuona. A dança,

nessa pesquisa, ao nos mostrar com fenômeno afetivo e educativo nos fez pensar

na capacidade de olhá-la como imagem e como desorganização de uma estrutura

de pensamento para outras tantas forma de pensar.

O que está em questão nessa reflexão, porém, não somente uma experiência

de ordem pessoal enquanto pesquisadores, mas é também a possibilidade de que

outros partilhem dessa experiência, reaprendendo a ver e observem as tantas luzes

de vagalumes que trazem o pensamento questionador a qualquer discurso unívoco

que não compartilha das complexidades humanas. Uma educação que olhe o amor

para encontrar maneiras de se ligar ao sensível como campo de saber potente que

nos aproxima de nossa contingência e de nossa potência ao devir instituinte. Trata-

se de uma tarefa infinita, o que faz do exercício de sentir, igualmente um

aprendizado sem fim, do qual uma educação estesiológica pode ser um caminho

que nos aproxime do outro para beijá-lo.

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NO ME NIEGUES

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Ao longo do nosso texto, em meio a nossas argumentações, na poética do

corpo e da afetividade desenhada pelos fluxos estéticos do afeto na obra Lecuona, o

amor ecoou um grito teimoso e irresistível: ―No me niegues!‖.

Mediante as escolhas filosóficas deste estudo, no diálogo com a Arte e a

Educação, fomos à busca de sentidos que revelassem um corpo inflamado pelo

afeto, impulsionado a ―sair de si mesmo‖ para enveredar no outro e construir na volta

a sua interioridade, apropriando-se desse mundo exterior. Tais saberes aqui

movimentados se configuram no beijo da razão e da sensibilidade, expressados nos

significados operantes e expressivos do corpo na espessura dos acontecimentos,

nas relações afetivas e suas relações confusas, mas altamente precisas. As

reflexões apresentadas aqui em torno do afeto, visível nas descrições de Lecuona,

além de nos expressar uma poética do corpo e da afetividade, nos possibilitaram

pensar uma poética da dança e do Grupo Corpo como capacidade afetiva e

interrogativa. Fluxos estéticos que nos levaram a uma educação da ordem do amor.

Retomando as primeiras frases introdutórias dessa pesquisa, deparamo-nos

com o mito do Amor no discurso de Sócrates, na obra de Platão, ―O Banquete‖. Por

sua condição parental, diz o filósofo, o Amor está entre a sabedoria e a ignorância. E

isto lhe promove um eterno movimento sempre em busca do saber, em busca do

outro. O que não deve ser diferente para filosofia ou qualquer outro campo de

conhecimento. Merleau-Ponty no ―Elogio da Filosofia‖ (1953) afirma, logo de início,

que o filósofo não deve procurar atingir o saber absoluto, mas sim oscilar, num

incessante vai-e-vem, entre o saber e a ignorância: ele não será um homem de

certezas, mas aquele que vive com o saber em devir. Penso que este foi o

movimento desta pesquisa, entre a sabedoria e a ignorância, não querendo fechar

um pensamento e nem colocar um ponto final. Essas aberturas no pensamento vão

de encontro com a fecundidade da razão, na qual essa tese é fruto. Chauí (2008) diz

que a razão, assim entendida, toma-se não como explicação e, sim, como

interrogação interminável, razão alargada, abandonando a ilusão da subjetividade

pura e de seu outro lado, a objetividade pura, construída pelas operações de um

pensamento que se julga desencarnado.

Para favorecer nossa compreensão, fora exigido de nós uma desconstrução

do pensamento para que os fluxos estéticos se revelassem, ou seja, uma outra

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forma de elaboração do conhecimento que passa pelo corpo, outra lógica, uma

lógica sensível que pede outras linhas de forças, aberturas a possíveis

interpretações, unindo conceitos e vivências corporais e que sabe que não pode

apreender todo o saber. Assim, agravamos nessa pesquisa, dentro dos

pressupostos fenomenológicos adotados – nos quais a filosofia de Merleau-Ponty

nos deu uma dimensão ontológica – a importância dos afetos nessa busca do outro,

no jogo existencial, na história pessoal e social. Maffesoli (2005b) esclarece que

devolver a importância aos afetos não se trata de fazer referência a um unanimismo

qualquer ou a um sentimento delicado que dominasse, de agora em diante, as

relações sociais. O afeto nos introduz num mundo passional, um mundo que

ultrapassa a ordem rígida da razão. É certo que esta continua a participar do

desenrolar da existência humana, mas, por outro lado, há múltiplas situações mais

―sentidas‖ do que analisadas. Exercer esse entendimento é uma postura existencial,

experiencial que expressa à força que faz acontecer às coisas.

Na última cena de Lecuona, ―No me niegues‖, descrita no capítulo três, tem-

se a expressão desse ordenamento plural das coisas da vida sem síntese abstrata,

mas em constante disseminação. É a ordo amoris – apresentada a nós por Maffesoli

(2015), mas cuja autoria coube a Sheler –, a ordem aos afetos que enfatiza a

relação estreita existente entre visível/invisível, real/irreal, razão/sensibilidade.

Harmonia do conjunto, a partir e graças a uma inteligência barroca do ser, à

afirmação das diversidades. Nesse sentido, a arte, em especial a dança, deu-se

como essa produtora fluxos estéticos, como espaço de sentidos que permeia entre o

corpo e sua possibilidade de afeto como capacidade de ―reaprender a ver o mundo‖,

assim como nos mostra a atitude filosófica de Merleau-Ponty.

uma filosofia da percepção que queira reaprender a ver o mundo restituirá a pintura e as artes em geral seu lugar verdadeiro, sua verdadeira dignidade. O que aprendemos de fato ao considerar o mundo da percepção? Aprendemos que nesse mundo é impossível separar as coisas de sua maneira de aparecer. (MERLEAU-PONTY, 2004b, p. 56).

Nessa compreensão, com Lecuona damos saltos expressivos no

conhecimento do corpo e sua possibilidade de afeto, assim a obra nos ―faz ver‖ a

afetividade como um elemento dramático da existência e da operação expressiva da

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comunicação. O ―faz ver‖, como diz Nóbrega (2016, p. 137), é ver ―fragmentos de

verdades errantes, desviantes, temporárias, anacrônicas, empáticas‖. O ato de ver,

nessa perspectiva merleau-pontiana, engaja nossa corporeidade e abre a

possibilidade de simbolizar, de imaginar, de evocar sentidos quando apreciamos

uma coreografia, um quadro, um filme, lemos um livro. Nessa dança de Lecuona,

percebemos uma expressão de estesia na experiência do desejo e dos afetos, uma

comunicação sensível, denunciando o corpo em vibração, sexual, barroco, avivado

pelas paixões, orgânico, capaz de sofrer, sentir dor e sentir glórias, sentir absurdas e

desconhecidas sensações, que pensa o amor e não nega a morte, mas que continua

nesta busca do outro para interrogar sua existência. Nisto se inaugura a

possibilidade de pensarmos um conhecimento enraizado no vivido e nos

posicionarmos epistemologicamente.

Dessa forma, nas argumentações e descrições das tramas de amor Lecuona,

apontamos uma educação estesiológica que se configura no corpo e pelo afeto.

Uma educação que vai além de instrução e técnica, mas que se abre as imagens, a

poética, a sensibilidade, a afetividade, questiona e transforma mundos e re-significa

experiências, que se volta aos afetos, exerce sua liberdade de escolha e reflexão, ou

mesmo, uma educação que exige de nós criação e se configura nas relações

afetivas. Para, assim, tentar compreender o humano em nós e as relações sociais

como capacidade de afetar e ser afetado pelas coisas sensíveis, pelos outro, pelo

modo de ser no mundo. Assim, não compreendemos a educação restrita ao ensino

formal, visto que a ação cultural e a educação como aprendizagem extrapolam o

âmbito do ensino sistematizado. Porém, não descartamos o ensino formal das

reflexões que foram realizadas. Desse modo, foi possível encontrar nesses espaços

da cultura e da arte, aprendizados existenciais que nos forçam a repensar uma

escola onde todos os campos do saber se solidarizem com a vida real na sua

complexidade, unindo razão e sensível sem demérito algum.

Essas reflexões em torno de uma educação estesiológica precisam ir além

das disciplinas onde as práticas corporais estão mais presentes, como a Educação

Física e a Arte, e avançar a outros espaços disciplinares que ainda privilegiam em

seu currículo a razão em detrimento do sensível, com isso criar possibilidades

legítimas de conhecimento que comece no afeto. Maffesoli (2005) diz que qualquer

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conhecimento que privilegia a razão rígida se isola e nos isola. Diferente em uma

educação que ampara o afeto e nos liga ao que é essencial na vida. Assim, sendo o

corpo condição existencial, afetiva, histórica, epistemológicas, como

compreendemos ao entrelaçar esta pesquisa à fenomenologia de Merleau-Ponty,

precisamos aceitar que o corpo já está presente na Educação, na Arte, na Filosofia,

na Educação Física, na ciência de modo geral. O desafio é expandir o

conhecimento, superar as práticas disciplinares que os atravessam e reencontrar

outras linhas de força. Desse modo, as relações afetivas, os acontecimentos

eventuais ou históricos, a linguagem do corpo precisam ser considerados.

Neste contexto, reforçando a arte como espaço real de ação cultural e

educativa, em especial a dança nessa pesquisa, reconhecemos sua capacidade

afetiva e interrogativa da existência. Neste impulso, com uma dimensão estética

oferecida por Didi-Huberman (2011) no capítulo dois dessa pesquisa, mostramos a

dança e suas artimanhas poéticas como clarões de sentidos, como vagalumes, com

uma verdadeira potência de se reinventar, de transgredir, de se portar como

resistência histórica, logo, política. A arte aqui pensada como uma urgência estética

e política que devolve ao homem a experiência afetiva como necessidade existencial

e criacional. Dessa forma, quando na dança o corpo começou a protagonizar a cena-

o próprio corpo humano enquanto matéria própria do ato criativo- e ―o que diz‖ se

tornou mais operante e significativo do que ―como se faz‖, o corpo que dança passou

a ser um campo de relação com o mundo como instrumento de saber, de

pensamento e de expressão.

Neste sentido, vimos que surge na dança uma potência para poetizar, ou

seja, uma particularidade de provocar de forma imanente a intervenção dupla de um

ponto de vista artístico: um sujeito do ato criador em estreita relação com a

sensibilidade do espectador ao qual ele espera tocar no âmago das reações

estéticas. Assim, entendemos a contribuição desse estado de performance criado:

possibilitar, por meio da experiência estesiológica, do sentir mesmo, do corpo do

bailarino e do corpo do espectador, o acesso a campos afetivos que ultrapassam a

compreensão racional de significados, estabelecendo a troca, a partilha de

informações que vão e vem neste campo, assim como vivenciamos em Lecuona e

possivelmente podem ser vivenciados nos espaços educativos formais e informais.

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Na verdade, tudo se liga no estado de performance, tudo se liga no campo afetivo

criado. Variações dinâmicas ao olhar fecundo do outro, quebrando assim o limite do

conhecimento. Cruzam-se duas experiências por conta da obra dançante. Neste

envolvimento, a poética do Grupo Corpo – que diretamente está envolvida com a

história da dança brasileira e com a do coreógrafo Rodrigo Pederneiras – nos deu

um panorama para se pensar a ação expressiva e afetiva da dança no Brasil.

Identificamos, assim, um movimento expressivo da dança brasileira, principalmente

a partir da década de 70, em busca de se reinventar, questionando a influência

européia, em busca de algo inaugural. Nisso, a dança em nosso país foi abrindo

mão de suas suas âncoras, das amarras estéticas, em busca de novas expressões.

Vemos em nossa pesquisa esse movimento nos fluxos estéticos do Corpo,

que mostra a ação transformadora da arte nessa relação com o mundo como

instrumento de saber, de pensamento e de expressão. Diante disso, avançamos nos

estudos de Katz (2000), que havia identificado três fases do Grupo: a fase mineira,

fase européia (pontua Rodrigo Pederneiras como coreógrafo) e a fase da descoberta

de uma linguagem pessoal na dança brasileira. Nossa pesquisa aponta, pela

experiência estesiológica com a história e com a obra do Corpo e pelas

constatações do Rodrigo Pederneiras, a quarta fase do Corpo atualmente: a afetiva.

Apontamos que ela começa com Lecuona em 2004, por uma angústia do coreógrafo

em humanizar mais sua dança e se voltar fortemente aos afetos. Assim, inaugura

um tempo onde o corpo e a sensibilidade são as molas impulsionadoras da ação

criativa da Companhia. Vimos que esta fase afetiva do Corpo vem questionar a

dança brasileira desse tempo. Segundo uma percepção do coreógrafo Pederneiras,

observa-se em obras contemporâneas atuais a necessidade de serem mais

humanizadas, elas carregam muito comprometimento técnico e menos vida, menos

emoção.

Nesse meio, apontamos uma constatação positiva e outra nem tão pouco: que

na história da dança brasileira percebemos uma superação da reprodução clássica

de encontro com um caminho que re-significasse as influências européias para a

criação de uma linguagem de dança contemporânea brasileira, como vemos no

Grupo Corpo e em outras companhias que ajudaram a construir um cenário da

dança no Brasil. Entretanto, a busca por legitimações que constituíram a dança

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brasileira como singular, expressam hoje um panorama estarrecedor, um

anestesiamento crítico, uma homogeneização dos discursos, em que as ações dos

artistas parecem cristalizadas, o fogo da paixão parece apagado. Cenário este

causado possivelmente pela grande competitividade, estimulada pelos editais

culturais de agentes financiadores que tem um conceito próprio de escolher os

melhores e os mais bem preparados para os investimentos financeiros. Estabelece-

se, assim, um mercado de consumo da arte que limita sua expressão.

Diante das angústias do coreógrafo que a dança precisa se humanizar,

reforçamos que a dança desse tempo precisa repensar seu fazer artístico. Sem essa

evidência do tempo e das relações, das trocas entre corpo e ambiente, não existe

vida como nos pontuou Cruz (2014). Assim, é possível reconhecer e, até certo

ponto, compreender os processos de adesão, ou mesmo adequação aos

mecanismos de poder que subsidiam a dança contemporânea na atualidade,

conceitual e economicamente e se colocar assim como mola transgressora.

Contudo, é necessário que haja reflexão, é imprescindível uma atitude crítica

em que a imagem confronte a própria imagem (DIDI-HUBERMAN, 2010), confrontar

uma estética, voltar àquilo que tudo descongela e nos une ao sensível: o fogo das

experiências afetivas para relembrarmos o porquê dançamos, para que as coisas se

modifiquem. Diante disso, Lecuona abre um grito também na arte: Não negue os

afetos! Essa necessidade de se voltar aos afetos como ligante do mundo, possibilita

campos de aprendizados: ―um reaprender a ver o mundo‖. Nisso, o Grupo Corpo

ensina a dança e nos ensina através dos movimentos de seus fluxos estéticos, de

sua poética que contém uma inteligência amorosa (barroca), tudo se dobra e

desdobra inaugurando saberes: claro-obscuro, erudito-popular, amor-ódio, peso-

leveza, elevação-chão, tensão-relaxamento, forma-disforma, razão-paixão. Essa

ambigüidade dá ao seu fazer artístico movimento sempre em busca do devir.

Inteligência barroca vista em Lecuona, onde os paradoxos se acasalam numa beleza

absurda e nos arrancam de nós mesmos e quando percebemos já estamos neles. Já

estamos a dançar e a sentir com a bailarina do ―vermelho sangue‖, Te He Visto

Pasar, enchendo de coragem para seguir em frente e pronunciar para aquele

desamor: ―has muerto para mi‖, metamorfoseando-se com Mariposa, sofrendo com

Recordar, empoderando-se com Yo Te Quiero Siempre, amando e odiando com

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Celos e dando um suspiro de alívio e de prazer na cena final No me Niegues.

Não neguemos, pois, o papel dos afetos como uma lógica erótica, uma

disposição de um viver-junto aonde o amor tem seu lugar. Essa conjunção foca não

apenas num pedaço do indivíduo, concepção esquizofrênica, mas, na pessoa como

um todo. A pessoa plural, jogando de acordo com o racional e o emocional, engaja-

se na comunidade na qual ela tem informações afetivas e desenvolve uma sabedoria

do ―nós‖, como diz Maffesoli (2014). Ou mesmo, desenraizar de si mesmo para

fazer, sentir e pensar com o outro. Ou melhor, para ―fazer amor‖ (MAFFESOLI,

2014), para estar-com. Nesse sentido, essa pesquisa vem estimular que ―façamos

amor‖ no melhor dizer maffesolino, copulemos com esses conhecimentos que

rejunta o que permanece cindido. Façamos amor com a educação! Uma educação

solidária ao humano em nós que não nega os afetos. Façamos amor com a arte que

nos ensina da melhor forma sobre o corpo e o sensível nesse movimento com a

existência. Assim, temos a intenção de nos unirmos a outras pesquisas

fenomenológicas para rasgar os limites da investigação do corpo e o afeto no campo

educativo. Convocando sempre uma razão sensível. Campo esse em que esta

pesquisa entra e se espalha, une-se no desafio por uma educação que pensa o

corpo estesiológico como capacidade de afetar e ser afetado, constrangendo um

conhecimento que se acha desencarnado.

Mediante isso, já avançamos bastante no campo epistemológico, posso citar

os trabalhos dos pesquisadores do Grupo Estesia da UFRN: Nóbrega (2010, 2015,

2016), Porpino (2006), Medeiros (2010), Da Silva (2013), entre outros que tem

movimentado esses conhecimentos em torno da filosofia do corpo e da imagem em

Merleau-Ponty. Em relação aos desdobramentos da tese, temos a pretensão de dar

um retorno ao Grupo Corpo, apresentando-o nossa produção de pesquisa, como,

também, temos como perspectivas: as publicações, seminários, criar possíveis

linhas de pesquisa em campos acadêmicos que não compartilham desse

conhecimento, e que esses movimentos se configurem como disseminação

epistemológica desses saberes em torno das poéticas do corpo, da dança e da

afetividade como expoentes numa educação estesiológica. As reticências e as

interrogações são os sentidos desta pesquisa, não torná-la eficaz, mas sim que seja

fecunda no conhecimento de forma geral, e na educação especificamente, visto que

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pretendemos abrir caminhos para outros pensantes, outros sonhadores, outros

amantes, outros olhos que, assim como os meus, um dia foram beijados por esses

conhecimentos sensíveis. Pois, enquanto houver discursos imperialistas num dado

campo epistemológico que tudo separa, cabem esses saberes que nos ligam e nos

potencializam ao devir. Por fim, com Lecuona concordamos com a condição sublime

e terrível de sermos humanos que pensam, logo amam, logo existem, logo são

corpos. Lecuona convida a viver para se deliciar e sofrer. É preciso amar. Não

neguemos o amor!

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LAÇOS AFETIVOS

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ANEXOS

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO FÍSICA

GRUPO DE PESQUISA ESTESIA- CORPO, FENOMENOLOGIA, MOVIMENTO

LABORATÓRIO VER

PESQUISA A DANÇA COMO CARTA DO VISÍVEL, DO CORPO E DO MOVIMENTO HUMANO

Coordenação: prof. Petrucia Nóbrega

Participantes: Francisco Junior (IC) e Thays Ramos (doutoranda PPGED)

ROTEIRO PARA APRECIAÇÃO DAS OBRAS COREOGRÁFICAS

1. FICHA TÉCNICA

Nome da coreografia/Ano de produção

Coreógrafo:

Dados da Companhia/Grupo

Interpretes

Cenografia, figurino

Iluminação

Musica

Suporte (vídeo, Programa, ano):

2. CORPO - O que se passa no corpo?

O corpo estesiológico (corpo sensível, corpo carne, sensações, quiasma corpo

e mundo)

O olhar e a expressão

A percepção cinestésica (das sensações)

3. POÉTICA DO MOVIMENTO/GESTO DANÇADO/ se reportar as cenas.

Fluxos (tensão, espaço, tempo)

Movimentos e gestos (conforme josé Gil)

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4. ESTESIAS (sentidos, significados horizontes de leitura e compreensão da obra)

Atmosfera da coreografia

Partilhas dos territórios políticos

Dança e existência

Dança e educação/arte/educação física (de acordo com a pesquisa e o plano de trabalho)

5. Descriçao de cenas

Referências

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_____. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac&naify,

NÓBREGA, T.P. Uma fenomenologia do corpo. São Paulo: Livraria da Física, 2010.

2- Imagem com Rodrigo Pederneiras na entrevista concedida a esta pesquisa

no Teatro Municipal do Rio de Janeiro (16/09/2016).

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3- O programa de Lecuona com assinatura do coreógrafo.

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Entrevista com o coreógrafo do Grupo Corpo Rodrigo Pederneiras 16/09/2016-

Teatro Municipal do Rio de Janeiro

1- Como você percebe a dança brasileira nesse contexto internacional?

Num contexto internacional é muito limitado. Em relação a esse contexto

internacional apenas duas companhias transitam por aí, que é a Deborah e o Grupo

Corpo. O Grupo Corpo há muito mais tempo, muito mais tempo de estrada, mas eu

acho que ainda falta muito. É... e agora com esse caos que virou o país , a agente

que trabalha com arte e com cultura. Quando se começa a se cortar é a primeira

área que as verbas são cortadas. E então fica muito difícil porque precisa de

incentivo para haver desenvolvimento, em qualquer área. Na dança e na arte não

são diferentes.

2- Como significou para você reapresentar Lecuona depois de 12 anos?

Olha, teve um monte de coisas legais. Muito particular, primeiro, porque Lecuona

para mim, Lecuona é sedução, é paixão, é sensualidade. E muitas das bailarinas

que estão aprendendo são muito novinhas... também. Então foi engraçado, foi legal

ver elas se apresentando e se colocando no lugar de mulheres muito sensuais,

mulheres muito experientes. É... e dando conta desse recado, o que me

surpreendeu muito. E me surpreende a qualidade com que elas tem feito cada papel

e tal. Então, isso foi genial e outra que eu tenho um carinho muito grande por

Lecuona. Primeiro, porque eu acho que é uma peça que, tem um lado emocional

muito forte. Na verdade, porque pega várias, várias áreas. Quando digo emocional,

às vezes ele é engraçado, às vezes ele é tenso, às vezes ele é totalmente

apaixonado e ás vezes ele é machucado. Então, nesse ponto para mim é muito

legal. E Lecuona foi um projeto quase que meu mesmo porque eu encontrei essas

músicas por um acaso e tal e tem uma história que você já deve conhecer por trás

disso tudo. E foi difícil convencer o Paulo que é o diretor artístico de fazer o

Lecuona, que eu queria realmente fazer Lecuona... e acabou que eu consegui e deu

tão certo, foi tão, era um risco também, são doze pas de deux, era um risco muito

grande e acabou que deu certo e eu tenho um carinho especial por Lecuona.

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3- Você considera Lecuona uma ruptura de um percurso artístico do Corpo que

vinha desde 1992 com a questão da trilha sonora própria, a questão da

ruptura com o clássico forte e, nesse meio, vem Lecuona com a trilha sonora

que não é própria e totalmente diferente em estrutura de espetáculo, com os

pas de deux. Lecuona é uma resposta há alguma experiência pessoal?

Não, nesse ponto acho que tudo tem haver um pouco, tem sempre um pouco da

gente lá. Eu não sei se Lecuona foi uma ruptura, acho que não, ruptura é muito forte.

Um desvio pode ser, é. Mas eu acho uma coisa legal: depois eu comecei a ver e a

pensar que Lecuona foi uma..., mas na época eu nem pensava muito nisso, pelo

menos eu não pensava profundamente que é, foi um período que eu comecei a

humanizar um pouco mais o que eu fazia, a trazer mais pro peito as coisas que eu

vinha fazendo, tanto que depois disso, veio Onqotô, que vem com um lado forte

assim e de aí por diante e tem várias peças e acabou culminando aqui na Dança

Sinfônica que também tem esse lado. Eu acho que essa humanização da dança que

hoje eu falo muito, quando falo para alunos, quando falo para coreógrafos, eu falo

pra pessoas, eu falo que não só a dança , mas acho que a arte contemporânea de

uma maneira geral precisa urgentemente ser humanizada (risos). Eu estou cansado

de ficar vendo, sei lá, você vai nas bienais e a única coisa que você vê é, não sei,

são os artistas envernizando o próprio umbigo, então, eu acho que essa

humanização do Corpo começou no Lecuona.

4- Como você percebe as sensações, o afeto em Lecuona?

Olha, isso depende muito das letras porque as letras tem, são muito derramadas,

são muito dramáticas, aqueles dramas cubanos e tal. Eu tentei não chegar lá, que

eu acho que aí é exagero demais (risos), mas tentei seguir um pouco isso, quer

dizer, essas histórias, as velhas histórias, que na verdade são histórias eternas do

amor perdido, da dor pela perda desse amor, do amor que se procura, do amor que

se tenta, do amor. Então, essas relações vão acontecendo dessa forma aí e

obviamente eu fui buscar o quê? Um lado sensual, um lado onde a sensualidade

esteja muito presente e quase que mande ali durante toda a peça e para finalizar

com uma coisa totalmente romântica, quase que hollywoodiana dos anos 50 (risos).

Então, eu gosto dessa mexida, gostei disso.

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5- Eu escolhi alguns duos dentre os doze para descrever em minha tese e a

minha abordagem de pesquisa permite esse meu olhar, minha interpretação.

Mas, no seu olhar, o que Mariposa, O duo dos pés no chão, te He visto pasar,

celos, representa? Se você fosse fazer um pequeno resumo destes.

Paixão. Eles resumem paixão.

Celos? O preto é celos. Tenho ―celos del aire que tu respiras‖, poxa, quer coisa mais

dramática, mais apaixonada. Eu tenho ciúmes do ar que você respira, ciúme dos

seus lábios, ciúme dos seus olhos que beijam assim, que olham assim. Dos braços e

no final do ar que você respira, paixão maior não pode existir.

Dos pés descalços? É. Aquele é mais um amor mais onde é o oposto do preto. Ele é

a dominância é da mulher, a dominância maior é da mulher e eu fiz questão de fazer

isso. Mas também é paixão.

Mariposa? Mariposa é mais ‗engenuozinho‘ né, embora seja dos que eu gosto

também. Mas por uma forma que ele é feito, ele é um pas de deux muito difícil de

ser dançado, mas mariposa é também a paixão é aquela que vai com seu canto

dizer a ele que eu nunca vou esquecê-lo.

Vermelho? O vermelho é mais sensual mesmo. O vermelho tem mais sensualidade,

tem mais um sexo mais presente. O que eu gosto muito.

Que tem um outro que eu gosto muito que é o roxo que é o recordar. É. Que

também tem sexo e outros mais sensualidade mesmo, outros uma paixão não tão

explícita.

6- Como você trabalhou cada bailarino para dançar Lecuona? A escolha desse

novo grupo de bailarinos se deu pela familiaridade característica com os

bailarinos anteriores?

Sempre. Ah, com os bailarinos anteriores não, com a familiaridade que eu tenho

com eles. Como eu já tive antes e tal. É... A escolha foi por aí. Que tipo de

característica tem cada bailarino. Essa é mais capaz de fazer, um pouco mais

atrevido, mas ela precisa ser mais mulher, então seria essa bailarina, outras não

fariam de uma forma tão forte porque ainda não tem também o outro lado.

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7- Como você trabalhou essa interpretação? Teve alguma conversa? Algum

exercício?

Ao longo dos ensaios que aí você vai. Primeira coisa é aprender tecnicamente,

depois você vai pedindo as pessoas. Aquela do vermelho que você falou, outro dia,

estava corrigindo ela: - Olha, não é, não quero que você brinque com ele, que você

queira ele. Eu quero que você morra por ele, quero que você coma ele. Ela é muito

novinha vai se assustando um pouco. Ela vai tentando vai tentando até que

consegue. Sabe? Mas você tem que ir dando essas dicas, às vezes, eu exagero um

pouco , mas é assim mesmo. É o que tem que ser né? Então, mas vai sendo feito a

medida que eles vão ensaiando. E o Lecuona, eu acho legal, porque é

impressionante, a gente só está falando de mulher. Agora são pas de deux muito

difíceis para os homens, mas, na verdade, na verdade...O Arnaldo Antunes que falou

do Lecuona, tem uma frase que eu adoro: ‗Lecuona é uma ode a mulher‘. E é

exatamente o que quis fazer: foi uma grande homenagem a mulher.

8- Como você percebe a relação entre dança e educação? O que Lecuona nos

ensina?

Lecuona ensina paixão, ensina perda, ensina ganho, ensina amor, ensina sedução,

ensina a necessidade de se ter uma companhia de verdade. Ensina um monte de

coisa. Mas, sempre no campo da paixão, no campo do amor. Eu acho que é por aí.

Agora, a relação entre dança e educação. A gente inclusive tem um projeto, né, que

faz isso que chama ―Corpo cidadão‖ que dá um resultado absolutamente fantástico.

O bailarino que faz o pas de deux com a Sylvia na dança Sinfonica, ele veio desse

projeto. Eu acho que não só a dança, mas qualquer tipo de arte muda a percepção

das pessoas, abre o horizonte das pessoas. Isso é coisa primordial, é fundamental

para quem tem o horizonte aqui na frente, pessoas que não tem. Que não tiveram

estudo, não tiveram oportunidade nenhuma, continuam não tendo oportunidade. Eu

acho que a arte é a forma mais eficaz de expandir os horizontes das pessoas. É um

pouco do que a gente tenta fazer, a gente fala muito da educação através da arte. É

uma coisa muito pretensiosa, mas é o que a gente tenta fazer e tem dado muito

resultado, mas acho que é basicamente isso: ampliar os horizontes, fazer com que a

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maneira de ver a vida vá mudando a medida que as pessoas vão conhecendo, vão

exercendo arte.

Entrevista com o bailarino do Grupo Corpo André Venceslau. Realizada via

rede social (facebook) em agosto de 2014.

1- Identificação:

Nome completo: Alberto Venceslau

- Idade: 33

- Sexo: masculino

- Escolaridade: Ensino Superior Incompleto

- Formação Acadêmica:

Formação em dança: Fiz minha primeira aula de bale aos 20 anos em Recife com

Claudia São Bento e imediatamente entrei na Cia que ela dirigia, Cia Dos Homens.

Depois de um ano fui convidado pra fazer o Quebra Nozes na Cisne Negro Cia De

Dança de São Paulo e fiquei como estagiário na Cia. Depois fiz parte do Elenco da

DeAnima Ballet Contemporâneo do Rio De Janeiro, sob a direção de Richard

Cragun e em seguida entrei no Corpo (Janeiro 2004 com 22 anos). Fiz aula com

diversos professores: Claudia São Bento, Richard Cragun, Betina Bellomo, Fatima

Cerqueira, mas nenhuma formação!

2- Há quanto tempo faz (ou fez) parte do elenco Grupo Corpo?

Dancei no Grupo Corpo De Janeiro de 2004 a Janeiro de 2014 (10 anos)

3- O que significou para você dançar a obra Lecuona?

Lecuona estreou no ano que eu entrei na cia (2004). Eu dançava ha apenas dois

anos e era muito novo (22 anos), então dançar qualquer coisa era sensacional! Eu

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ainda tinha aquela gana, vontade que a gente tem quando começa uma carreira. O

sucesso de Lecuona foi estrondoso então foi gratificante pra mim me ver fazendo

parte daquilo! Do Grupo Corpo!

4- Como foi o processo criativo da obra Leucuona? Como foi sua participação

nesse processo?

O processo criativo foi incrível como tudo era na época. No inicio sempre tudo é

muito bom! Apesar do bale esta quase pronto quando eu entrei na cia, um dos "pas

de deux" ainda estava por ser terminado e foi terminado comigo! O bailarino que

dançaria estava machucado e eu entrei pra substituir ele durante a montagem, mas

foi ele quem dançou!

5- Ao interpretar a obra, quais sensações você acredita que seu personagem

despertou no público?

Desejo, alegria, amor, ciume.

6- Como foi sua experiência ao incorporar as intenções da dança? Você se

reportou a alguma experiência pessoal?

No Corpo as coisas nunca são descritivas (motivo pelo qual eu me dei tão bem com

o Rodrigo, ele coreografava e eu executava) então esse negocio de ficar fazendo

alusão a experiências pessoais nunca foi minha praia! EU escutava a musica,

decorava a coreografia e o "personagem" vinha automaticamente! Nada de muitos

"porquês"

7- Como se deu a relação entre você e seu parceiro de dança durante o

processo criativo de Leucuona e ao apresentá-la para o público?

Minha grande parceira de pas de deux no Corpo (não só em Lecuona) foi Silvia

Gaspar (a gente dançou varias coisas juntos, inclusive o Pas de Deux de Onqotô

que foi um sucesso absurdo, até mais do que os duos de Lecuona) e a gente

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sempre se deu muuuito bem! NUNCA discutimos um com outro! A gente tem uma

"vibe" bem parecida de trabalho! Somos os dois muuuito rápidos pra aprender

coreografia, muito ligados na estética do movimento, dos nossos físicos enquanto

estávamos dançando e meio preguiçosos também rs, então era muito fácil trabalhar

com ela! A gente aprendia, ensaiava, buscava a estética perfeita praquilo e quando a

gente achava que tava bom, a gente só fazia quando mandavam. Nada de ficar

ensaiando até morrer. A gente se entendia! E sempre deu muito certo porque o Digo

(Rodrigo Pederneiras) adorava a gente e o publico também, então a gente achou

uma fórmula que funcionava

8- Como você se sentiu ao dançar esta obra e como se sente hoje ao lembrar

desse momento?

Como eu falei, minha carreira até chegar no Grupo Corpo foi muito rápida então foi

descobrir que eu era profissional! Que eu estava entre os melhores do pais! Na

maior Cia de Dança do Pais, uma das maiores do mundo! Eu fui muito feliz no

Corpo, os melhores (e piores) momentos da minha vida eu vivi nesses dez anos que

eu morei em Belo Horizonte e que trabalhei com eles! Lembrar de Lecuona não é,

pra mim, diferente de lembrar das outras coreografias! Tenho certeza que pra outros

bailarinos é, porque o Corpo trabalha muito com conjunto! E em Lecuona todos

tiveram "destaque", mas eu tive destaque em todos os outros bales que foram

montados ou remontados enquanto eu tava lá! Lecuona é pra mim a lembrança de

uma época sensacional da minha vida, mas junto com Parabelo, Benguelê e todos

os outros!

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RESUMO DAS TRAMAS DE LECUONA

1 - NO ES POR TI

Bailarinos: Janaina Castro e Edson Beserra

Letra da Música: Não encontrada na internet.

Resumo:

A trama do vestido azul Royal. É a trama do sonho, de um amor que ainda não foi

revelado, mas que arde, ou do amor mal-resolvido que acabou no ápice, ou numa

noite, mas que todas as noites vem visitá-la no quarto, nos seus sonhos, nas suas

lembranças, muitas delas inventadas, projetadas. O personagem espera o dia que

vai revelar-se ou nunca, que reviverá a noite maravilhosa que os sonhos se tornarão

vermelhos. Ele traz esse ―outro‖ todas as noites, traz a fantasia, projeta o perfeito. ―E

ele é sempre mais lindo a cada noite que o encontro dentro de mim‖.

2-MARIPOSA

Bailarinos: Cassilene Abranches e Diogo Lima

Letra da música:

Mariposa de lindos colores

Que en mi patio cantas

Al atardecer

Mariposa

Ay si tu pudieras

Decirle en tu canto

Mi cruel padecer

Mariposa de lindo plumaje

Que suave y que dulce

Es tu lindo cantar

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Al oírio me viene el recuerdo

De aquel amor triste

Que me hizo llorar

Mariposa de lindos colores

Que em mi patio cantas

Al entardecer

Mariposa que canta solita

Em su jaula dorada

Cuando muere el sol

Si superas que pena tan grande

Yo siento em mi alma

Desde que se fue

Dile em tu cantar mi tristeza y dolor

Que muriendo me estoy por su amor

Mariposa yo se que en mi vida

Ya no ha de volver a brilhar mas el sol

Mariposa

Y se que ya nunca, tendré sus caricias

SUS besos de amor

Al oirte cantar mariposa

Me viene el recuerdo

De aquella pasión

En mi vida fue luz y penumbra

Locura infinita

Consuelo y dolor

RESUMO:

Esse é a trama de cor rósea. A música fala que sempre ao pôr do sol uma pessoa

vai a seu pátio e ao olhar uma borboleta, revive toda sua trama de amor. Essa

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borboleta remete as suas lembranças de um amor perdido e mal resolvido. Ele volta

ao passado, relembra sua história de amor, o início de delícias, o meio das

desilusões e o fim. Um amor que ainda não foi superado. Alguém preso às

lembranças. Enquanto que a bailarina representa a metamorfose da borboleta que

voou para outras belezas e outros amores. A dança termina no momento que a

bailarina dá um salto em direção ao bailarino, este, então, a pega nos braços, mas

logo a deixa cair ao chão: liberta-a, apesar de continuar preso.

3-SIN ENCONTRARTE

Bailarinos: Danielle Pavam e Val Santos

Letra da música: Não encontrada na internet.

RESUMO: A trama do azul claro, azul céu. Esta dialética fala daquele que espera

alguém que foi para longe, que fez uma promessa de voltar. Espera todos os dias

sua chegada, sente muitas saudades, mas não tem notícias. É o amor da distância,

o amor que criou asas, foi para outros ares, foi para outros céus, mas que a

protagonista espera que volte, pois ele sabe o caminho do corpo que o espera.

Projeta sua vida, seu futuro ao lado desse outro. A música fala da projeção da

protagonista que prefere pensar nele também com saudades, a desejando-a assim

como esta o deseja. Talvez nunca volte, talvez já tenha reconstruído sua vida nos

braços de outra, mas está vivo em minhas lembranças e a acorrentou em sua

promessa.

4-YO TE QUIERO SIEMPRE

Bailarinos: Ana Paula Cançado e Pedro Lavatti

Letra da música:

Que tristeza tengo

Desde que te fuiste

Dejando en mi ser

Hondo padecer

Amargo dolor

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Se que no me quieres

Nunca me quisiste

Y tu falso amor

Fue une burla cruel

A mi corazon

A pesar de todo

Yo te quiero siempre

Y mi anhelo es

Verte junto a mi

Besarte otra vez

Yo te quiero siempre

Aunque se que no me quieres

Vuelveme a enganar

Si, mi sino es

Por tu amor llorar

Resumo

Essa trama é a vermelho tomate. Começa uma mulher preparando um ambiente, de

camisola, descalça, ansiosa. Até que o tão esperado chega e ela cai em seus

braços. Mostra uma relação de disputa, de quem detém o controle. A trama mostra

visivelmente que a mulher é a dominadora. Mostra também uma mulher forte e

independente que tenta controlar a relação ao ponto de usar o outro para seus

deleites. Ela o ama, mas não quer se compromissar. Ela descobriu seu corpo, seu

prazer, sua ―liberdade‖ e não quer colocar em jogo suas conquistas. O outro quer ter

uma relação comprometida e, para não perdê-la, se submete aos seus ditames. A

dança termina com ele ao chão e ela o chutando como uma bola de futebol, nada a

para.

5-TUS OJOS AZULES

Bailarinos: Jacqueline Gimenes e Edson Botelho.

Letra da música: Não encontrada na internet.

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RESUMO:

É trama do laranja fogo. Essa trama perpassa entre a sedução e o lúdico do amor.

Tem muitas insinuações, muitos ―vem cá, vem‖, como diz a música: ―excita-me!‖ ,

alguém que seduz o outro, para este é como sua grande tentação, sua ―droga‖. É

uma dança alegre, a música é uma salsa que envolve. Muitos sorrisos de ambos,

muita diversão, uma paixão quente e avassaladora. Ele precisa ir, tem seus

afazeres, seus compromissos do lado de fora, mas ela o seduz mais um pouco, até

que ele fica. Este outro se sente bem naqueles braços, esquece o mundo fora da

porta, esquece os problemas, quer ser naquele lúdico, nas brincadeiras, no

envolvimento.

6-RECORDAR

Bailarinos: Sylvia Gaspar e Edson Hayzer

Letra da música:

Tenerte otra vez,

con una sombra fulgaz de un anochecer

Sonando contigo y recordar

Mirar hacia atrás

Buscar y anorar lo que fui

Recordar

És mi amor de ayer

Que juré por Dois que nunca le olvidaré

Quiero recordar en está

canción su amor

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RESUMO: Essa é a trama do lilás. Essa trama mostra uma protagonista que viveu

um grande amor, chegou ao fim, foi tirado dela pela vida, uma morte prematura

talvez, mas foi tão significante que ela decide viver nas recordações; a dança a

mostra sendo carregada por estas memórias. Ela já até tentou retomar sua vida com

outro, mas aquele vive em suas memórias, é sua idealização de relação, projeta-o

no seu relacionamento, busca-o em outro. A protagonista dessa trama decide trazer

o passado como presente, não elaborou o luto, decide fazê-lo viver no seu corpo.

Como diz a música: ―quero recordar‖.

7-AL FIN

Bailarinos: Janaina Castro e Edgar Dias

Letra da música: Não encontra na internet

RESUMO:

Essa é a trama do verde. Essa trama mostra o fim, o término, a dor do ―acabou‖. Os

gestos dos bailarinos mostram essas sensações amargas de alguém recebendo o

fim, a amargura de quem recebe e a de quem termina o relacionamento, as

ameaças do que fala ―nunca encontrarás alguém que te ame como eu‖, o pedido de

que não vá, da esperança de que: se implorar, se jogar aos pés do amado, o outro

pode repensar sua decisão. Momento doloroso de desilusão, de questionamentos,

de nada, de nenhuma expectativa, do ―e agora? como viverei sem você? ―.

8-TE HE VISTO PASAR

Bailarinos: Cassilene Abranches e Peter Lavrati

Letra da música:

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Te he visto pasar

indiferentemente

y ni una emoción

se apoderó de mí

te he visto pasar

y ni um recuerdo vago

vibróen mi corazón

cansado de tí

tú sabes muy bien

que fuistes mi locura

y sabes tambien

que tu fue mi amor más nunca

jamás perdonare

tu ausência tu cruel indiferencia

y quiero que tú sepas

y quiero que tú sepas

que has muerto para mí

más nunca jamás

perdonaré tu ausencia

tu cruel indiferencia

y quiero que tú sepas

Que hás muerto para mi

Resumo:

Essa trama é do vermelho sangue, quente. Essa trama mostra alguém que encontra

um amor do passado, alguém que foi sua loucura, sua ardência. Mas, esse outro

passa indiferente, com isso as lembranças voltam, a emoção arde novamente, a

emoção da raiva por causa da indiferença, por todo o sofrimento passado, mas há

uma diferença que percebemos nos gestos da bailarina: uma decisão de

ressignificar essa experiência, houve aprendizado e superação. Ela vai lembrar, mas

não vai mais se amputar no passado. Olha o horizonte.

9-MI CORAZON

Bailarinos: Ivelise Tricta e Edson Beserra

Letra da música: Não encontrada

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RESUMO:

Essa é a trama do rosa-claro. Esta é bem romântica, pura, inocente, a busca por

sensações lidas nos folhetins, nos romances, ele é o ―príncipe‖ e ela a ―princesa‖ e

vão ser felizes para sempre. É o amor de promessas mútuas, do futuro certo e

projetado, das certezas ligeiras. O amor que retoma tudo do início, tudo vira pôr do

sol, vira canto. É prazeroso e convoca os sentidos. Mas, não está preparado para as

surpresas da vida, acredita-se que elas nunca surgirão, mas, quando surgem na

dança, são mais dolorosas, insuportáveis os sintomas, vem o desmoronamento das

certezas, as dores do processo. Entretanto, mediante essas experiências

desestabilizadoras, o amor amadurece, aprendem e surpreendem corpos que

resistem e permanecem juntos. Descobrem que não podem viver romances

projetados, mas podem viver seus próprios romances criados todos os dias: não

porque foram feitos um para o outro, mas porque aprenderam a se olhar com outros

olhos.

10-COMO PRESIENTO

Bailarinos: Ana Paula Cançado e Diogo Lima

Letra da música: Não encontrada.

RESUMO:

Essa é a trama do verde-limão. Eles são apaixonados um pelo outro, amam estar

juntos, mas, brigam muito, por tudo, pelas mínimas coisas, por uma brincadeira mal

interpretada ou porque não foram compreendidos da maneira que deseja, mas logo

fazem as pazes e, fazer as pazes, é o que eles mais gostam. Esse é o jogo deles.

Precisam estar o tempo todo desconstruindo a relação para retomá-la quente, sem

conformismos. O amor que ameaça o tempo todo ir, para testar o outro, mas o que

mais quer é ficar. Vemos esse jogo bem claro nos gestos do término e no beijo

ardente final.

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11-SE FUE

Bailarinos: Juliana Meziat e Everson Botelho

Letra da música: Não encontrada

RESUMO:

Esta é a trama do amarelo. Essa trama mostra a protagonista cheia de expectativas

boas, o outro se mostra receptivo, faz juras, parecem que gostam de estar um com o

outro, mas, de repente, o outro vai embora, diz que o amor ―acabou‘, assim, dormiu

amando e acordou sem amar, não houve nada aparente para ter causado o fim, o

outro apenas se desinteressou e se foi, sem remorso e sem culpa, deixando a

protagonista cheia de questões e em ruínas.

12-CELOS

Bailarinos: Jacqueline Gimenes e Edson Hayzer

Letra:

SI YA SABES QUE TE QUIERO

QUE POR TI ME MUERO

QUE ES TODO PADECER

SI TU AMOR ES MI QUERELLA

Y ERES TU LA ESTRELLA

QUE ALUMBRA YA MI SER

DIME TU PORQUE

DESPIERTAN CELOS

QUE ATORMENTAN Y AMARGAN

MI EXISTIR

SI TU AMOR NO HA DE SER MIO

QUE ES LO QUE YO ANSIO

NO ME HAGAS MAS SUFRIR.

CELOS,TENGO CELOS DEL AIRE

CELOS DEL AIRE QUE RESPIRAS

SIENTO QUE SE ME VA LA VIDA

PORQUE TENGO CELOS DE TI

TENGO CELOS DE TUS OJOS

QUE AL MIRAR PROVOCAN

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EXTRANA PASION

SIENTO CELOS DE TUS LABIOS

QUE AL BESAR INCITAN

SIENTO EL CALOR DE TU CUERPO

NO ME BRINDES TUS CARIIAS

NO QUIERO SENTIRME CELOSO

DE TU AMOR.

SE REPITE.

Resumo

Essa trama é a preta. É a trama do ciúme, do amor possessivo, do amor inseguro. A

dança mostra muitas discussões no decorrer da relação, muitos excessos e muitos

pedidos de desculpas pelo excesso de ciúme. A música mostra o relato do

protagonista em descrever suas sensações, o seu tormento, sua dor. Ela sente

ciúmes de todos, de todos que são ameaças, sente ciúme até do ar que o outro

respira. Ele cria cenas de traição e vive escutando fantasmas. Ele é extremamente

perturbado por seus sentimentos. Essa relação não termina na dança, mas penetra

a cena seguinte, a cena das mulheres de branco. Celos é uma mancha nessa última

dança.

13-NO ME NIEGUES

RESUMO:

Prolongamento de trama Celos. São quatro casais no palco de espelhos, as

mulheres de vestidos brancos como noivas, mas elas terminam a cena com pares

diferentes e um beijo final.

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Artigos Jornalísticos

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