corpo silenciado
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Trabalho de Conclusão de Curso - Artes Visuais (Bacharelado) – habilitação em Artes Plásticas - FAV/UFG.TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE ARTES VISUAIS
DALTON OLIVEIRA DE PAULA
CORPO SILENCIADO
GOIÂNIA
2011
DALTON OLIVEIRA DE PAULA
CORPO SILENCIADO
Monografia apresentada ao Curso de Artes Visuais (Bacharelado) –
habilitação em Artes Plásticas da Faculdade de Artes Visuais, da
Universidade Federal de Goiás, para a obtenção do título de Bacharel
em Artes Visuais – habilitação em Artes Plásticas.
Orientadora: Manoela dos Anjos Afonso
Co-orientador: Odinaldo da Costa Silva
GOIÂNIA
2011
AGRADECIMENTOS
À minha família, especialmente à minha mãe, Ana Ivete Antonio de Oliveira, que sempre incentivou minha formação
artística e acadêmica.
À Ceiça Ferreira, com quem compartilhei os desafios dessa pesquisa.
À minha orientadora, Manoela dos Anjos Afonso pelo apoio, paciência e estímulo na construção deste trabalho.
Ao meu co-orientador, Odinaldo da Costa Silva pelos apontamentos e inquietações que me ajudaram nessa jornada.
Aos professores Marcelo Mari e Paulo Veiga Jordão, pelas valiosas orientações e questionamentos, que enriqueceram
este estudo e certamente, me ajudarão em futuras reflexões.
Aos meus colegas de turma, que nos momentos de dúvida se mostraram mais uma vez os grandes amigos que são.
Aos profissionais, artistas e amigos, Rosana Paulino, Mário Souza, François Calil, Heloá Fernandes, Ronan
Gonçalves, Evandro Soares e tantas outras pessoas que direta ou indiretamente contribuíram para a produção e realização
dos meus trabalhos artísticos.
A todos os docentes e funcionários da Faculdade de Artes Visuais, que me acompanharam nesses quatro anos de
graduação.
RESUMO
Este trabalho investiga a série “Corpo Silenciado” e propõe questões e reflexões sobre o corpo no meio urbano, seus
medos, dúvidas e possibilidades de enfrentamento de situações que se mostram atuais. Com base em estudos sobre
fotografia, paisagens urbanas e arte contemporânea, esta pesquisa busca apontar inquietações que partem do individual para
atingir esferas políticas universais, referentes à forma de ser e estar no mundo. Discute ainda, o panorama híbrido de
relações e contaminações de linguagens e concepções estéticas.
Palavras Chave: Corpo; Intimidade; Alteridade; Cidade.
LISTA DE FIGURAS
Figura 01 Graphismes sur Noir (Grafismos sobre Negro) – Antoni Tàpies - 1988 11
Figura 02 Grand Blanc et Collage (Branco Intenso e Colagem) – Antoni Tàpies - 1982 12
Figura 03 Platibanda - Coreaú/Ceará - 1982 16
Figura 04 Criança participante da Congada Irmandade 13 de Maio 22
Figura 05 Casamento na linha de Erê 23
Figura 06 Menino kalunga - Romaria de Nossa Senhora da Abadia 23
Figura 07 Bonecas 1 - Rosana Paulino/ Foto: Lucia Mindlin 24
Figura 08 Bonecas 2 - Rosana Paulino/ Foto: Lucia Mindlin 25
Figura 09 Corpo Território A - Dalton Paula / Foto: François Calil 30
Figura 10 Corpo Território B - Dalton Paula / Foto: François Calil 31
Figura 11 Corpo Território C - Dalton Paula / Foto: François Calil 32
Figura 12 Corpo Receptivo A - Dalton Paula / Foto: Mário Souza 34
Figura 13 Corpo Receptivo B - Dalton Paula / Foto: Mário Souza 36
Figura 14 Corpo Receptivo C - Dalton Paula / Foto: Mário Souza 37
Figura 15 Corpo Indivíduo A - Dalton Paula / Foto: Vinícius de Castro 39
Figura 16 Corpo Indivíduo B - Dalton Paula / Foto: Vinícius de Castro 41
Figura 17 Corpo Indivíduo C - Dalton Paula / Foto: Vinícius de Castro 42
Figura 18 Corpo em Segredo B - Dalton Paula / Foto: François Calil 44
Figura 19 Corpo em Segredo P - Dalton Paula / Foto: François Calil 45
Figura 20 Corpo em Segredo PB 1 - Dalton Paula / Foto: François Calil 47
Figura 21 Corpo em Segredo PB 2 - Dalton Paula / Foto: François Calil 48
Figura 22 O Batetor de Bolsa - Dalton Paula / Foto: Mário Souza 56
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 07
1. O CORPO NA CIDADE 09
1.1 Muro e pictorialismo 10
1.2 O corpo fotografado 17
1.2.1 O corpo negro 21
2. CORPO SILENCIADO 27
2.1 Corpo Território 28
2.2 Corpo Receptivo 33
2.3 Corpo Indivíduo 38
2.4 Corpo em Segredo 43
3. APONTAMENTOS PARA PERFORMANCE 49
CONSIDERAÇÕES FINAIS 57
BIBLIOGRAFIA 59
ANEXO: Vídeo da Perfomance “O Batedor de Bolsa” 61
7
INTRODUÇÃO
“Corpo Silenciado” é uma série de trabalhos
fotográficos, pela qual proponho discutir questões referentes
ao corpo no meio urbano. Como ele atravessa e é
atravessado pela cidade? O campo que converge para a
intimidade, para revelações de narrativas interiores, veladas
por meus mecanismos de defesa, é que me interessa nesta
pesquisa. Até que ponto devo me proteger para estar
tranquilo? Qual a medida do risco, de me impor, colocar-me
como pessoa, ou seja, como indivíduo, na luta por alcançar
espaço, para ter respeito?
Sensibilizo-me consideravelmente com grande parte
das questões contemporâneas, como o medo, a
individualização, a velocidade e a efemeridade das coisas e
dos vínculos, que me parecem cada vez mais instáveis,
repletos de incertezas. A precariedade e vulnerabilidade das
relações entre as pessoas indicam uma solidão pela negação
do outro ou mesmo pela fragilidade desse relacionar-se com o
outro. Percebo também um sentimento de insegurança que
atinge meu corpo, minha condição humana.
No primeiro capítulo deste trabalho, apresento os
elementos (corpo negro, cidade, pictorialismo, fotografia) que
constituem a pesquisa. Desenvolvo o pensamento condutor
do corpo na cidade, com algumas especificidades, como por
exemplo, a de ocupar muros que geram estranhamento,
desse corpo que mesmo por alguns instantes, “habita” esse
local. Os muros são selecionados por suas características
pictóricas: cor, textura, massa de tinta, veladura, nuances etc.
Capturo uma pintura pronta, feita pelo homem e pela ação de
intempéries. No meio desse ambiente é que sou fotografado.
Exponho meu corpo negro, que está fora dos padrões
midiáticos para ser fotografado, executando uma ação
política, com intuito de gerar questões, pelo silêncio do corpo.
O estado rígido, o rosto velado, o corpo tenso são
algumas das características que norteiam o segundo capítulo.
O corpo se sente cercado por todos os lados, os
componentes negativos da contemporaneidade silenciam-no.
A impressão é que a voz não tem força diante de tanto ruído.
Dessa forma, o corpo opta por silenciar-se para comunicar o
que pensa sobre essas situações e se posiciona, com o
objetivo de fazer com que tais questões perpassem o outro.
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No terceiro capítulo, finalizo com a abordagem dos
apontamentos e possíveis desdobramentos deste trabalho
artístico. Assumo o caráter performático que os trabalhos
anteriores já indicavam e insiro uma ação performática no
processo. Questões íntimas são lançadas, penso nessas
ações e na proximidade com a vida que esta pesquisa
adquire.
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1. O CORPO NA CIDADE
A tentativa de descrever o meio urbano se perde diante
de sua grandiosidade, na dimensão de sua constituição.
Casas, ruas, parques, indústrias coexistem em torno desse
ambiente. O concreto tem uma presença majoritária, o qual
confunde o olhar. A sensação que tenho é de semelhança
entre as diferentes edificações, parecem ser números. Mas, é
possível capturar a verdadeira paisagem urbana?
As imagens midiáticas mapeiam a cidade
instantaneamente. Hoje se perdeu o costume do fazer um
retrato sistemático, na busca de uma verdadeira fisionomia
descritiva. Imagem explícita, que causa o extenuar da
capacidade de descrever.
Em “O Detetor de Ausências (1994)”, trabalho do
artista Rubens Mano, que traz algumas reflexões sobre a
cidade, Peixoto (2003) observa que ele consiste na utilização
de dois refletores, de 12 mil watts, projetados e instalados ao
lado do viaduto do Chá (São Paulo), de tal forma que os
transeuntes fossem iluminados ao passar pelos fachos de luz
paralelos. Este trabalho aponta para a presença efêmera e a
evidência da perda iminente, deixa clara a velocidade
crescente da cidade, desqualificando o espaço. A luz é
testemunha da identificação, por permitir ver as pessoas e
constata o anonimato de cada indivíduo.
O caráter volátil e frágil das relações afetivas e
cotidianas indicam que o indivíduo está sempre sozinho, fala
para si mesmo, não enxerga verdadeiramente os outros. Sinto
esse sentimento de insegurança, que atinge meu corpo,
minha condição humana. Um autor que aborda esse processo
de mudanças e transformações sociais e individuais que
temos vivido nos últimos anos, é Zygmunt Bauman.
A precariedade da existência social inspira uma percepção do mundo em volta como um agregado de produtos para consumo imediato. Mas a percepção do mundo, com seus habitantes, como um conjunto de itens de consumo, faz da negociação de laços humanos duradouros algo excessivamente difícil. Pessoas inseguras tendem a ser irritáveis; são também intolerantes com qualquer coisa que funcione como obstáculo a seus desejos; e como muitos desses desejos serão de qualquer forma frustrados, não há escassez de coisas e pessoas que sirva de objeto a essa intolerância (BAUMAN, 2001, p.188).
10
Tenho a sensação de que o corpo de carne e osso está
num tempo, e os fatos e coisas estão em outro. Com uma
distorção considerável, logo penso no equilíbrio dessa relação
e me faço constantes indagações. Tal prática me lança
reflexões que são norteadoras deste trabalho artístico. Os
acontecimentos da contemporaneidade surgem no vai e vem
da cidade, cenário de realização que alimenta as inquietações
do corpo.
A metrópole é o paradigma da saturação. Contemplá-la leva à cegueira. Um olhar que não pode mais ver, colocado contra o muro, deslocando-se pela sua superfície, submersa em seus despojos. Visão sem olhar, tátil, ocupada com os materiais, debatendo com o peso e a inércia das coisas. Olhos que não vêem (PEIXOTO, 2003, p.175).
Excesso de barulho, imagens, pessoas, carros e
produtos, diversos tipos de poluição. As cidades tendem a
essa saturação, salvo raríssimas exceções. Toda essa
exacerbação que pulsa aos olhos e ouvidos torna cada vez
mais difícil a tarefa de escutar e distinguir uma coisa da outra.
O olhar é direcionado para uma imensa barreira que leva à
impossibilidade do “ver” nesse fluxo denso e pesado da
cidade, fato que nos conduz a uma condição de
homogeneidade (como se tudo fosse apenas números), não
contempla a diversidade. As coisas vão se tornando
superficiais, perdendo a magia de estar no mundo com
discernimento, com consciência. Por tais razões é que
Peixoto (2003, p.177) afirma que: “olhar um objeto é
mergulhar nele. [...] Ver um objeto é ir habitá-lo e dali
observar todas as coisas. [...] O olhar se faz nas duas
direções, cada objeto é espelho de todos os demais”.
Compartilhando dessa percepção do autor é que lanço
olhares para os muros e o corpo, na busca por refletir sobre a
unidade do “Corpo Silenciado”. E, a partir de agora,
discorrerei sobre o pictorialismo como um primeiro elemento,
que surge por dois motivos: a escolha estética em razão de
fundamentos da pintura e por questões conceituais.
1.1 Muro e Pictorialismo
Com relação a essa riqueza simbólica dos muros, tive
no decorrer desta pesquisa a oportunidade de conhecer o
trabalho do artista espanhol Antoni Tàpies. Tomei como base
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o documentário “People and Art's: Antoni Tàpies”, produzido
por Gregory Rood sobre a vida e a obra desse artista, que já
possui um museu em seu nome. Tal aspecto confirma o
reconhecimento de sua obra e trajetória artística.
Tàpies sempre viveu na cidade, tinha um fascínio pelo
elemento muro, por considerá-lo como uma barreira, cerca,
prisão e espaço de manifestações, como o grafite. E num
período de Guerra Civil, ele via o muro como matéria, cor e
formas que se transformariam em textura no seu trabalho. O
artista sente o muro com uma expressividade imensa, de
ideias, e também lembranças da infância, recorda dos avós e
de bairros antigos, com suas ruas estreitas e marcas
deixadas pelos séculos. Relata que as paredes tiveram um
grande impacto sobre sua vida, guardavam as marcas de tiros
e remetiam às pessoas executadas durante a guerra.
De acordo com esse documentário, o trabalho de
Tàpies ficou conhecido pelo uso de símbolos, especialmente
a cruz e a letra x, que ele utilizou para propor reflexões sobre
seus significados enquanto marca de um território, da vida, da
morte, da sacralidade de lugares e partes do corpo, e como
algo que suprime, que expressa uma negação.
Figura 01 – Graphismes sur Noir (Grafismos sobre Negro) –
Antoni Tàpies - 1988 (Fonte: MAGALHÃES; FREMON,
2005, p. 73)
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Enquanto esse artista se espelhava no muro para
construir suas formas matéricas, é nos muros que apreendo
pinturas prontas. Nessa série não me interessa pintar, mas
sim discutir a contaminação da pintura por outras linguagens
artísticas. Tàpies, em muitos momentos, não sabia ao certo
quando parar, a hora de realizar a última intervenção de cada
trabalho. Na série “Corpo Silenciado”, pela questão pictórica,
“finalizo” o processo de pintura quando encontro o muro
desejado com cor, textura, intensidade de luz e veladura.
Na vida cotidiana e no trabalho de bombeiro, no qual
exerço há sete anos a função de socorrista, passo
diariamente por uma micro guerra, entre acidentes, tragédias,
enfermidades, situações de emergência. São nos muros que
estão marcados os lugares onde isso acontece; a placa de
endereço que oficializa o local gera estatística e informação
para o banco de dados oficiais e para mim, como fonte de
pesquisa.
Assim como para Tàpies, também para mim os muros
são páginas escritas diariamente, transmitem o diagnóstico da
situação social da cidade. Cercas elétricas, muros altos com
cacos de vidro, com grafite, pichações, frases de protestos Figura 02 – Grand Blanc et Collage (Branco Intenso e Colagem) –
Antoni Tàpies - 1982 (Fonte: MAGALHÃES; FREMON, 2005, p. 55)
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políticos, recados amorosos, xingamentos racistas e sexistas,
os quais revelam as relações humanas no contexto urbano.
Acredito que na série “Corpo Silenciado” me permito
utilizar mais de uma linguagem, que remete às várias
possibilidades que tenho enquanto estudante, nesse
momento de experimentação e aprendizagem prática nos
ateliês, que de alguma forma reverberam no meu trabalho
artístico. Uma linguagem por vez, ou duas, ou mais,
contaminadas.
Pautado pelos alicerces da pintura é que realizo a
escolha criteriosa dos muros, pois de acordo com o que cada
trabalho exige, observo aspectos como cor, textura, massa
pictórica, descascamento, veladura, ação de intempéries
(oxidação, lodo), intervenção urbana (como por exemplo, o
grafite, pichação, escritos, recados, publicidade e gambiarras)
e diferentes incidências de luz, que variam com o horário do
dia.
Ressalto que é visível meu entusiasmo quando
encontro um muro que foi pintado com tinta à base de cal
(que são muitos), visto que, por ter um menor custo, o uso
desse material é frequente e sua baixa qualidade faz dos
muros uma rica fonte de pesquisa. Embora a cal seja utilizada
com o objetivo de encobrir ou mesmo decorar, muitas vezes
pode revelar a camada interna do muro, ressaltando relações
entre o antigo e o novo.
Comparo a exposição desses muros no meio urbano
com a dinâmica da cidade, marcada por um fluxo contínuo,
mutável, inconstante, dinâmico e fugidio, pois a tinta sofre
facilmente interferências em relação a seu estado de origem.
A exposição excessiva ao sol produz um descoloramento que
em alguns casos ocorre de forma variável, com diferentes
nuances. E o contato com a água faz escurecer, ao secar
retoma a cor original, e se sobre o muro há sombra e
umidade, provavelmente surgirá e disseminará lodo.
Um buraco em determinado muro, ao sofrer a ação das
chuvas, expõe sua composição mineral, as cores da terracota
presente nos tijolos escorrem no muro, como se ele estivesse
sangrando. E esse pigmento mineral percorre a “derme” de
concreto. Já muros que estão próximos a telefones públicos
se transformam em blocos de anotações, contendo números
telefônicos de diferentes procedências, recados, rascunhos
para o indivíduo se lembrar. As suas utilizações são diversas
e, como tais informações efêmeras, geralmente se perdem no
tempo, no fluxo da cidade.
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Nesse sentido, Peixoto (2003, p. 201) defende que “a
parede funciona como um palimpsesto, sobre o qual se
acumulam sucessivas camadas de papel”, semelhante aos
antigos pergaminhos, que eram utilizados de tal modo que os
textos se sobrepunham uns aos outros, visto o alto custo do
material. Dessa forma, as primeiras inscrições são vestígios
de um passado, e esse se mistura com o “texto” ou a imagem
de agora.
O muro pode ser considerado o cenário das
intervenções cotidianas em relação ao tempo. O homem
constrói e modifica os muros por vários motivos: a pichação
como ato político, levantar uma barreira por insegurança,
pintar um muro para adornar a fachada, aplicação de
propaganda comercial. A ação das pessoas com seus
objetivos e interesses é diversa, e é também objeto de
atuação do tempo, da natureza e da história, sua existência
física ou apenas simbólica “fala”, expressa alguma coisa,
indica a aparência dos fatos, revela enredos urbanos bem
como histórias privadas.
Destaco que, além das qualidades pictóricas, os muros
são considerados aqui também em sua característica
primordial, como uma barreira que preserva, remete à
segurança, lugar de fronteira, delimita o que está dentro e o
que está fora. Desse modo, coloco-me diante do muro num
gesto político, daquele que questiona, negocia situações de
deslocamento, tenta se comunicar com o outro, tenta propor
reflexões, e dessa forma faço parte dos muros, habito-os e
também os interpelo.
Sobre essa interrupção causada pela barreira física do
muro enquanto limite, ressalto que minha reflexão ocupa o
lugar íntimo (da subjetividade) e conduz a um mergulho
profundo, a diversos questionamentos e inquietações. E esse
muro é partida e não chegada, é um ponto, que por meio do
pensamento, ramifica-se, aponta para vários caminhos,
possibilidades de criar brechas para reflexão do meio urbano.
Embora vistos primeiramente como obstáculo, como
marcos que circundam, impedem a passagem, nessa
perspectiva os muros podem possibilitar o acesso ao “ventre”,
ao que há dentro do indivíduo, mas isso requer a
sensibilidade e o desejo de se deixar afetar. Não basta
apenas estar em determinado lugar, é necessário
experienciá-lo. E, neste trabalho, é a fotografia que revela a
paisagem interior, o lugar da subjetividade, é ela que
materializa essa imersão. Deste modo, os muros ganham
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novos significados, são tomados como lugar da experiência,
articulam-se com a postura rígida, imóvel do meu corpo, e
também com os objetos que utilizo.
Considerando o muro também como reflexo dessa
cultura atual, que apesar do excesso se mostra muitas vezes
vazia de sentido, “Corpo Silenciado” busca criar janelas de
suspiro na tensão, que para mim significa viver no ambiente
caótico da cidade. Janelas, brechas como oportunidades de
compreender o ser e estar no mundo, de ver além, de
enxergar o que não está à mostra, de olhar para dentro.
Nesse contexto, penso que minha ação diante dos muros
passa do exterior para o interior, num percurso infinito,
semelhante à fita de Moebius, também chamada de fita sem
fim, que de acordo com Garcia (2008, p.201), “é uma
superfície com um só lado e um só contorno. Além de uma
grande beleza, essas fitas se conectavam diretamente com
fragmentos selecionados da nova ciência. As tiras são um
fenômeno estudado a partir da topologia, ramo da matemática
que pesquisa as propriedades invariáveis de uma figura à
qual se aplicou uma deformação”.
Complemento esse estudo estético que se preocupa
com a forma e a composição ao conceitual amarrado na idéia
motriz, relacionada com as contribuições de Anna Mariani, no
livro “Pinturas e Platibandas”, no qual a autora retrata as
moradias populares existentes principalmente na região
Nordeste, a maioria delas localizadas em cidades, vilas e
povoados do interior. Tal contexto foge das características
das grandes metrópoles, possui uma lógica e um tempo
próprio, mais lento. Esse interior me remete ao meu lugar
interno, se faz abrigo subjetivo que acolhe os meus medos e
dúvidas, é porto seguro no campo das idéias.
A estética pictórica das casas é elemento que aponta
orientações para as escolhas dos muros, em sua maioria
também pintadas com tintas à base de cal, na qual é possível
observar uma sabedoria pictórica grandiosa, por sua
diversidade e originalidade, como reitera o prefácio da
referida obra:
A poesia cromática dessas pinturas à base de cal, elaboradas sobre fachadas e platibandas, é resultado da transparência e da luminosidade que só é possível obter graças às práticas tradicionais de caiação, técnica que aos poucos tem sido substituída por novos materiais e
16
processos sem as mesmas características (Instituto Moreira Salles apud MARIANI, 2010).
Dessa maneira, acredito que é possível ver uma
semelhança entre os muros e essas moradias, não apenas
com relação à questão estética, mas também por seu caráter
político, visto que a escolha pictórica pode ser considerada
uma metáfora para trazer à tona questões que muitas vezes
estão à margem, que incomodam e geralmente passam
despercebidas, ou são intencionalmente ignoradas.
No processo de elaboração desse livro, Mariani (2010)
ressalta que uma de suas primeiras decisões foi apresentar
as fachadas sem fronteiras políticas (Figura 01), aspecto que
dialoga com “Corpo Silenciado”, no qual abordo questões que
embora partam do pessoal, do íntimo buscam atingir qualquer
indivíduo, instigando-o a uma reflexão com pontos em
comum, aproprio-me dos muros buscando relativizar os
limites entre eu e o outro.
No que se refere ao método, também encontro
semelhanças entre o meu trabalho e o desenvolvido por essa
autora. Seleciono os muros como pinturas prontas, mas eu
sou fotografado junto a eles. Já Mariani (2010) capta pinturas
prontas e apresenta-as como trabalho final de fotografia. Em
“Corpo Silenciado”, utilizo a fotografia para indicar esse
diálogo entre as questões que coloco sobre o corpo e o
ambiente urbano, que se expressam pelas inscrições
existentes nos muros, resultado da diversidade de materiais,
Figura 03 – Platibanda - Coreaú/Ceará - 1982 (Fonte: MARIANI, 2010, p.78)
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manchas e matizes de cores, diferenças de texturas e trechos
de publicidade. Dessa forma, as linguagens fotográfica e
pictórica se misturam de forma que uma modalidade se
aproxima da outra, discutindo seus limites e sentidos,
contaminando-se, formando um território híbrido.
1.2 O corpo fotografado
Acerca da fotografia, gostaria de primeiramente
apresentar outros aspectos que fizeram parte da minha
história de vida, pois quando ainda era adolescente ganhei
minha primeira câmera manual, da marca Zenit, que me
proporcionou inúmeras aventuras e descobertas entre a
abertura e a velocidade de exposição, o filme fotográfico e o
processo de revelação da foto.
Eu utilizava essa câmera como suporte para as
pinturas, construía aos poucos um banco de dados, uma
verdadeira biblioteca de imagens, paisagens, pessoas, festas
religiosas, situações cotidianas e, com ela, também fazia o
caminho inverso, registrava minhas pinturas.
Em uma contextualização histórica, André Rouillé
(2009) ressalta que o Pictorialismo foi um movimento de
fotógrafos que surgiu em meados do século XIX, com o
objetivo de exigir o mesmo status das Belas-Artes. Numa
época em que a fotografia era considerada uma atividade
mecânica, criação de fotógrafos puramente industriais, visto
que se valorizava o original e se repudiava a
instrumentalização da fotografia.
Nesse panorama, os pictorialistas buscavam se
aproximar da concepção estética presente na pintura, mas se
apoiando nas próprias técnicas fotográficas, era um exercício
de “estar na fronteira”, ou seja, buscar o pictorialismo
fotograficamente. E acerca das novas visibilidades
proporcionadas pelos instantâneos fotográficos, que segundo
Rouillé inspiraram pintores como Monet, em Boulevard des
Capucines (1873), elas foram completamente ignoradas pelos
pictorialistas, “por emanarem de uma produção que lhes
parece muito popular e muito trivial para pertencer à arte, por
serem muito marcadas pela modernidade; por estarem muito
afastadas de sua verdadeira preocupação: a interpretação”.
(ROUILLÉ, 2009, p. 253-254)
18
Para os pictorialistas, os trabalhos deveriam ser
pautados na interpretação pela subjetividade, deveriam ter
impresso a marca do fotógrafo. O assunto não teria
importância, mas sim a forma como seria escrita essa história,
esse enredo através da luz. Portanto, o pictorialismo une o
mecânico com o subjetivo, alia os procedimentos químicos e
mecânicos da fotografia com a natureza humana, a
subjetividade da mão e do olhar do fotógrafo.
A forte rejeição à fotografia pura encontra-se na própria base do pictorialismo, que nela vê tudo aquilo que ela recusa: o registro, o automatismo, a imitação servil, a máquina, a objetividade, a cópia literal. Segundo o “grande discurso” pictorialista, a pureza mecânica é imanente à fotografia (ROUILLÉ, 2009, p.256) (grifo do autor).
Enquanto os pictorialistas negavam a fotografia como
registro automático, eu o utilizo como ferramenta para a
captura da ação, relevante para que na produção da série
“Corpo Silenciado” fosse possível apreender os elementos
urbanos, a pintura pronta que há nos muros e a ação
proposta, tornando assim visível aquilo que normalmente não
conseguimos ver.
Ainda sobre as relações entre arte e fotografia, Rouillé
(2009) discorre sobre o período impressionista, no qual a
fotografia, agora no contexto de uma sociedade industrial
populariza-se no gosto burguês da representação narcísica e
sua capacidade de apreender detalhes, fazendo das ruas
estúdios fotográficos a céu aberto.
De forma semelhante, com o advento das tintas em
tubos, os artistas também puderam sair de seus ateliês e
pintar nos espaços das avenidas, dos parques, bares e
praças. A pintura adentrava nesse mesmo território da
fotografia.
A pintura impressionista se distingue da pintura clássica ao assimilar certas características próprias da fotografia, procurando, ao mesmo tempo, resistir a seu domínio. Assim, o impressionismo surge como uma resposta da pintura à fotografia (e mais amplamente à sociedade industrial). É um jogo de mimetismo e rejeição, a fotografia terá conseguido, em razão de sua novidade e do seu inusitado poder figurativo, desterritorializar a pintura e empurrá-la
para novos territórios (ROUILLÉ, 2009, p.292).
A luz, base da fotografia, torna-se juntamente com
todas as transformações desse novo momento histórico,
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desse novo ritmo das cidades e da vida das pessoas, bem
como da própria forma de expressão artística, que busca
atender novas demandas, elementos indispensáveis para a
idealização estética impressionista.
Em minha obra, acredito que hoje a fotografia não é
somente parte de um processo, mas uma linguagem que
ganha autonomia, torna-se um trabalho artístico. Utilizando
softwares de tratamento de imagem, consigo no processo
optar por elevar a saturação das cores e intensificar os
elementos pictóricos existentes nas fotos. E essas escolhas
se iniciam antes mesmo do clique, pois individualmente
escolho os cenários necessários para fotos e, no processo de
produção, oriento o fotógrafo acerca do enquadramento, da
composição a ser formada, da hora em que essa foto deve
ser realizada, ou seja, ela é construída nesse processo de
negociação, no qual levo em conta também as indicações do
profissional. Logo, considero a foto o resultado desse diálogo
entre eu, o fotógrafo, o muro e a cidade.
E são exatamente essas estratégias e operações
criadas para o olhar da câmera que Cotton (2010, p.7-9)
aponta como elementos que “desafiam um estereótipo
tradicional da fotografia: a noção do fotógrafo solitário
escarafunchando a vida diária em busca do momento no qual
uma linguagem de grande impacto visual ou de conteúdo
profundo aparece no enquadramento”.
E é nessa outra perspectiva de se compreender a
fotografia que decidi utilizá-la para registrar minha ação no
meio urbano, ou seja, esse pensamento que compõe o
trabalho já vinha sendo elaborado e direcionado muito antes
do clique da câmera. Porém, foi a fotografia que possibilitou a
materialidade desse ato artístico e, principalmente, permitiu
que um número maior de pessoas pudesse vê-lo.
Concordo com Cotton (2010, p. 22) quanto às
particularidades da imagem fotográfica enquanto fruto dessa
construção, desse planejamento, pois para a autora a
“imagem reconhecia as formas espontâneas que a
performance poderia adotar”. Da mesma forma, na série
“Corpo Silenciado” é justamente por ter sido premeditado
esse agir para o olhar da câmera que a imagem fotográfica
pode expressar o imprevisível e outras formas de
espontaneidade presentes no ato performático.
Essa elaboração da proposta, da ideia que é o trabalho
antes mesmo dele ganhar forma, é também o alicerce da arte
conceitual, na qual a fotografia tem a função de dar
20
completude à essa ideia, fazer com que ela funcione, apareça
em primeiro plano. Por tal razão é que Rouillé (2009) enaltece
a importância da fotografia, como meio que possibilita a arte
conceitual expressar sua natureza contingente, para além da
materialidade das formas tradicionais.
Acredito que assumir e expor essas escolhas é
também estimular outras percepções da fotografia, nesse
caso especialmente em sua dimensão de negociação e
estratégia nas relações humanas. Por isso, o corpo é um
elemento fundamental neste trabalho, pois exponho o meu
corpo e me coloco nas situações propostas. Desloco o
discurso do silêncio ao tratar as questões relacionadas à
invisibilidade e a supressão da voz, e utilizo essa produção
artística para o enfrentamento daquilo que considero mais
doloroso, porque faz parte de mim, são minhas experiências
cotidianas.
E a partir daí, tento colocar provocações, que vêm de
encontro aos nossos sentidos, buscando tirá-los de seu lugar
comum, instigo-os a ultrapassar os muros, a enxergar outras
possibilidades de vivenciar e compreender nossa existência.
A respeito da questão da identidade, meu corpo se confronta
com esse estranhamento constante, pois ora sou o outro
(não-sujeito da história, quando gera certo “distanciamento”,
não está no âmago), ora me relaciono com os outros. Nesse
sentido, Canton (2009, p.21-22) enaltece que “os artistas
emprestam suas identidades para o questionamento político e
social”.
Dessa forma, em “Corpo Silenciado” proponho, com a
exposição do meu corpo negro um deslocamento, uma
ressignificação, pois assumo concomitantemente o papel de
ação, da fotografia e das situações que apresento e
experimento; também me coloco como sujeito, no sentido de
quem estimula essa reflexão, daquele que se posiciona diante
do mundo e dos muros, expõe questões. Essa postura
reflexiva pode indicar um verdadeiro embate entre esse corpo
“abusado” em vários sentidos e o que se espera dele no
sistema vigente.
Sobre essa sensibilidade que o corpo assume como
mescla de carne e crítica, é que Canton (2009) afirma ser:
[...] uma das grandes percepções que permeiam a obra dos artistas contemporâneos, que se mostram atentos às tensões situadas em um corpo cada vez mais idealizado pela sociedade de consumo, confuso em meio a tantas imagens, cujos modelos são espetacularizados, inseguros na projeção de uma dimensão do corpo que é
21
sempre aquele que supervaloriza a forma e o prazer (CANTON, 2009, p.25).
E ao contrário dessa idealização, considero o corpo no
meu trabalho como expressão da dúvida, como aquele que
revela as fissuras, como um mecanismo que desestabiliza as
minhas próprias certezas, coloca-me à deriva e, assim, ele
anuncia para um incessante estado de transformação, que é
essa tentativa de se perceber no mundo.
1.2.1 O corpo negro
Mas, que corpo é esse? É o meu corpo negro, que em
sua formação, em sua história de vida, traz consigo outros
corpos. E numa ação política, de micropolítica, esse corpo
busca, está à procura, clama por uma representação que lhe
restitua a humanidade, a dignidade historicamente negada.
Um corpo que se forma, alimenta-se na Congada, festa
religiosa tradicionalmente reconhecida como festa de Preto,
organização que contempla a diversidade. Há mulheres que
assumem funções normalmente masculinas, como a de
caixeiro (tocador de caixa de congo); há pessoas portadoras
de necessidades especiais, que em vez de serem vitimizadas,
são tratadas com respeito, incluídas; há uma preocupação
constante dos anciãos em repassar os fundamentos dessa
tradição aos maios novos, que já participam antes mesmo dos
primeiros passos; há meninas e mulheres que aguardam o
ano inteiro para na semana da festa, afirmarem com orgulho
“sou Rainha Conga”, “sou Princesa Conga”, cargos de
nobreza, que mesmo simbólicos são legítimos. Sem dúvida,
pela alegria que expressam, são as mulheres mais lindas do
mundo.
Trago esse corpo, aliás, esses corpos negros, que as
batidas do coração são ritmadas pelos sons que ecoam das
caixas de congo; um corpo que sente os pés clamarem por
dançar, por sentir esses ritmos; um corpo que ganha voz nos
cantos e louvores da Congada.
Tal corpo também faz sua prece nos terreiros,
espacialidades negras ainda hoje escamoteadas; reza em
quintais e espaços que são compartilhados, são a casa de
santo e também a morada das pessoas; sente-se em casa,
entre os seus. E fora desses lugares, esse corpo se sente
confuso, perdido em seus sentimentos mais íntimos.
22
Esse mesmo corpo se desloca para os municípios
goianos de Cavalcante, Monte Alegre, Terezina de Goiás,
com destino à comunidade quilombola Kalunga, para
reencontrar sua história, viva no rosto de homens, mulheres e
crianças; e subjetiva naquilo que se refere à memória, à
ancestralidade negra. Meu corpo se identifica, se une a essas
pessoas, pois compartilham da mesma dor, do mesmo
sentimento de desterritorialização, geográfica e simbólica
(Figuras 04, 05 e 06). Até quando seremos colocados à
margem?
Figura 04 - Criança participante da Congada Irmandade 13 de
Maio, durante a festa realizada em maio de 2011 (Fonte: Arquivo
Pessoal).
23
Figura 05 - Casamento na linha de Erê (entidade da Umbanda que possui
características infantis), realizado no Ilê Asè Vovó de Yemonjá, na Vila Mutirão, em
Goiânia (Fonte: Arquivo Pessoal).
.
Figura 06 - Menino kalunga - Romaria de Nossa Senhora da Abadia,
Comunidade Kalunga do Vão de Almas, 2008 (Fonte: Arquivo
Pessoal).
24
Uma artista e educadora que também desenvolve
pesquisas e trabalhos ligados às questões sobre gênero e
etnia é Rosana Paulino. Sua obra aborda especialmente o
lugar social da mulher negra, no trabalho, nos
relacionamentos afetivos, no campo da representação e em
sua relação com seu corpo.
Sobre a exposição “Rosana Paulino: álbum de
desenho”, Aracy Amaral (1997) ressalta no texto “A mulher é
o corpo”, a articulação que essa artista faz entre o corpo
feminino e os padrões de beleza, ao criar bonecas (Figuras
07 e 08) que contestam o modelo de beleza eurocêntrica da
boneca Barbie.
A mulher enquanto corpo, alta tensão expressiva, gesto, linha parada no ar. Expressão enquanto ferida. Corpo de mulher espaço do núcleo gerador, repositório de vida. Num tempo em que os artistas se retraem frente à representação da figura humana por temor ao esgotamento, por timidez, por discriminação, pela dificuldade de invenção, Rosana Paulino faz do corpo da mulher o seu tema, trabalhado, retomado e abordado, enquanto rosto, ventre, gestualidade, em sequência quase de diário, não descartando a recorrência à historia da arte. Inclusive em desenhos inspirados assumidamente na melhor Anita Malfatti de 1917, ou quem sabe, também nas
transparências viscerais de Ismael Nery do último período (AMARAL, 1997, p.03).
Figura 07 – Bonecas 1 - Rosana Paulino/ Foto: Lucia Mindlin (Fonte: AMARAL, 1997, p.08 )
25
Além de discutir referências, que considero relevantes
para meu trabalho, ao refletir sobre identidade e negritude, e
suas relações com a memória e a subjetividade, Rosana
Paulino é sem dúvida, um exemplo de uma artista que tem
trabalhado o corpo na arte contemporânea. Ela expressa-os e
vincula às suas experiências pessoais e conhecimentos
específicos, como os da Biologia, presentes na poética que
relaciona o corpo feminino com os mecanismos de defesa de
determinados insetos.
Outro aspecto relevante é a reflexão que essa artista
faz sobre os diversos tipos de produtos e procedimentos para
transformação do corpo (por exemplo, cosméticos, fitness e a
moda), em especial do corpo feminino, construído
socialmente dentro de um modelo de valores morais,
responsabilidades e padrões de beleza, estes que em sua
obra são desmistificados, contestados, visto que apontam a
condição dessa mulher, desse corpo que constantemente
precisa agradar, precisa ser moldado, assim como o destino
marginal dessas mulheres, predominamente marcado pela
dor, que incide não apenas no corpo físico, mas também em
auto-estima.
Figura 08 – Bonecas 2 - Rosana Paulino/ Foto: Lucia Mindlin (Fonte: Acervo pessoal da artista)
26
Ainda sobre essa questão das mudanças impostas ao
corpo, destaco essa visibilidade que lhe é dada atualmente,
enquanto objeto de estudo da medicina, e por isso tão
excessivamente invadido, radiografado, analisado e muitas
vezes mutilado em prol da eterna beleza e juventude. Em um
sentido metafórico, também sinto meu corpo invadido, por
imagens e padrões. Não o reconheço como corpo real,
humano nas representações presentes em capas de revista,
nos programas de televisão, nas profissões mais nobres.
Nesses espaços, meu corpo é um estranho, ora literalmente
como objeto de estudo, visto pela ótica do exotismo, ora como
objeto de desejo. Me sinto agredido por esses simulacros que
parecem indicar uma presença, mas com o qual não me
identifico. Vejo o corpo negro ausente, invisibilizado.
27
2. CORPO SILENCIADO
Desenvolvo, paralelamente à atividade artística, o
ofício de bombeiro, no qual tenho a função de socorrista, por
isso transito bastante pela cidade, em virtude do alto índice de
ocorrências. E em razão de uma grande carga horária de
trabalho, resolvi trabalhar com pinturas prontas, que são os
muros de casas, fachadas, comércios e indústrias. Logo,
tenho aproveitado essas andanças para mapear muros pela
cidade.
Quando tenho em mente alguma idéia de um trabalho
pronto, revisito os muros mapeados e confiro se estão como
antes, pois conforme já citado a transformação do espaço
urbano é algo contínuo, em uma semana está de uma cor, na
outra já mudou e no mês seguinte, foi demolido.
No processo de produção da série “Corpo Silenciado”,
conto com a colaboração de profissionais e amigos, que
contribuem de forma preciosa. Logo, sem eles não seria
possível executar o trabalho e obter esses resultados.
O primeiro profissional que surge é o fotógrafo, ao qual
sempre apresento a proposta do trabalho, desenvolvendo um
diálogo, aponto o enquadramento desejado, a composição, os
locais, a postura do corpo, posição do objeto. No entanto, o
trabalho não está fechado, pois os fotógrafos também
interferem com alguma sugestão técnica ou até mesmo
estética, ou seja, tenho uma idéia inicial que se transforma no
desenrolar do processo.
Os enquadramentos das fotos são pensados com o
intuito de proporcionar ao corpo e ao muro um espaço de
visibilidade, que remete à regra dos terços. O corpo se
posiciona lateralizado à direira, à esquerda o muro é
enquadrado no meio do díptico, uma alusão aos santos
gêmeos São Cosme e São Damião, que aqui se expressa em
um desdobramento para abordar a relação entre eu e o outro.
Ao assumir todo o campo da imagem, o corpo clama por ser
visto e assume seu papel político.
Optei por ser fotografado naturalmente, sem a
utilização de maquiagem, cremes, óleos ou qualquer tipo de
cosmético, pois meu objetivo era expor as particularidades e
imperfeições desse corpo, visto que essa escolha dialoga
com as reflexões propostas pela série, enquanto inquietação,
questionamento, da imagem, do corpo, da representação.
28
Esse corpo que se desdobra em quatro ensaios,
propõe um questionamento acerca do silêncio imposto ao
meu corpo negro, um silêncio que exatamente por sua
invisibilidade parece não existir, é uma violência sutil, mas
absolutamente perversa, pois é dissimulada, mascarada,
ardilosa, afirma e ao mesmo tempo nega, acolhe e ao mesmo
tempo exclui, destaca e ao mesmo tempo estigmatiza.
Esse silêncio que talvez pudesse ser chamado de
“silenciamento” não se refere apenas à ausência de voz, de
sons ou ruídos, mas também a uma interrupção, a um cessar
brusco do desejo, das aspirações e da subjetividade do
indivíduo negro. Esse silêncio é o olhar desconfiado, as
expressões corporais que não têm voz, mas falam do medo,
da repulsa para com o meu corpo negro. Considero esse
silêncio a expressão máxima de algo que diz a esse corpo,
mesmo sem palavras qual é o seu “devido lugar”, oprime-o,
delimita o seu espaço de ação, aprisiona-o em si mesmo.
E como reação a essa maneira tão incisiva que o
silêncio incide sobre o corpo negro é que ele se cala, nega-
se, anula-se diante do medo de enfrentar questões tão
dolorosas, tão íntimas, com as quais teve que
obrigatoriamente aprender a conviver, mas assim como existe
um pulsar que impede um silêncio absoluto, também o corpo
negro é capaz de buscar outras espacialidades onde possa
questionar, jogar com as máscaras, ser ele mesmo, assumir-
se, libertar-se no gesto e no espaço.
2.1 Corpo Território
Norteado por essas inquietações acerca do corpo na
cidade, lanço nessa primeira série, denominada “Corpo-
território” (Figuras 09, 10 e 11), as seguintes questões: Como
lido com as especificidades do tempo e com a dinâmica da
cidade? Como meu corpo se insere na ditadura
comportamental que lhe impõem tensões e conflitos? O que é
estar na cidade? Há lugar para todos de forma equivalente e
igualitária? Quem tem lugar no meio urbano?
Dessa forma, discuto o olhar interno e externo
localizando o lugar como sendo o ponto de partida para essa
reflexão. Coloco-me na frente do muro para questioná-lo em
sua materialidade, como barreira que me impede de
continuar; e também em seu caráter simbólico, como
metáfora de tantos outros muros, tantos outros limites visíveis
29
ou não que existem entre o meu corpo e o dos outros nesse
ambiente urbano.
Nesse contexto, sinto meu corpo numa situação
desconfortável, de conflito, de desprestígio. E exatamente
para explicitar essa angústia de estar cercado de outros
corpos, mas no fundo de me sentir sozinho, pois não há uma
proximidade sincera entre eu e eles. Entre os quais, se
poderia ter um diálogo, mas não há verdadeiramente trocas
com o objetivo de se chegar a uma completude, somente o
intuito de atender o que é conveniente para cada um,
segundo seus próprios interesses. Logo, percebo os corpos
voltados para si, conversando consigo mesmos, como
Narcisos que se encantam pela própria imagem, e o verbo é
sempre conjugado em primeira pessoa, o outro nem sequer é
visto.
No entanto, em “Corpo Território”, o “ser” faz-se
presente como lugar numa espécie de marco zero,
semelhante ao ato de atirar uma pedra na água, uma
perturbação simples, primordial, mas que desencadeia uma
série de ondas circulares, que parecem “fugir” desse ponto de
colisão ao se propagarem na água. Deste modo, considero
esse trabalho como ponto de partida, um elemento que
incomoda, mas também reverbera, suscita outras
compreensões.
Esse ensaio fotográfico aponta para um deslocar de
intenção localizada no ambiente urbano. E é nessa cidade
que os desfechos e caminhos indicados por esse processo de
comunicação se mostrarão uma incógnita. Tradicionalmente
este processo pressupõe apenas três elementos: emissor,
mensagem transmitida via um meio e o receptor. Contudo,
destaco aqui a importância daquele que conduz a mensagem,
visto que em “Corpo Território”, meu corpo que se coloca
como meio, como canal, mas não leva uma mensagem
pronta, fechada. Ao contrário, pelo silêncio, questiona qual é o
seu lugar e qual é o seu papel, e principalmente, busca
discutir como essas questões interferem na relação com a
alteridade, com os espaços de passagem, fugidios, efêmeros,
lugares não-casa, que compõem a cidade.
Corpo-território: todo indivíduo percebe o mundo e suas coisas a partir de si mesmo, em última instância, a seu corpo. O corpo é lugar-zero do campo perceptivo, é um limite a partir do qual se define um outro, seja coisa ou pessoa. O corpo serve-nos de bússola, meio de orientação com referência aos outros. Quanto mais livre sente-se um corpo, maior o alcance desse poder de
30
orientar-se por si mesmo, por seus próprios padrões (SODRÉ, 1988, p.123).
E tento imaginar: onde seria na cidade, o lugar da
manifestação do íntimo, do ser? E não como uma resposta,
mas talvez uma possibilidade que surge, considero nesse
processo, o outro como um pujante colaborador, no sentido
de criar, de forma conjunta, novas mensagens, e encher
canais, transbordar comportas, romper compartimentos
obstruídos que impedem o acesso ao seu interior.
Mas como esse interior interfere no exterior e vice-
versa? Como minha subjetividade, minha forma de pensar e
dar sentido às coisas, pode se articular com meu
comportamento diante do mundo? Seriam também muros?
Barreira que por medo ou por visões pré-estabelecidas eu
coloco para mim mesmo e também para os outros?
Figura 09 - Corpo Território A / 2010 / Fotografia / 20 x 60 cm / Foto: François Calil
31
Em “Corpo Território” me coloco de olhos fechados, o
que pode indicar diversas interpretações, como a negação do
ver, em razão de um cansaço visual; ou uma tentativa de
verdadeiramente enxergar as coisas, as pessoas, o mundo.
Nesse sentido, vale lembrar a seguinte afirmação de
Saramago (2004, p. 01): “Só num mundo de cegos as coisas
serão o que realmente são”.
Mas aqui, interesso-me particularmente pelo que os
outros vêem nesses olhos fechados. Como se dá essa
passagem pela porta dos olhos fechados? Seriam eles uma
espécie de espelho, por meio do qual o indivíduo lança seu
olhar e em vez de seu reflexo, alcança o interior? E dessa
forma, os olhos vêem nesse olhar algo que embora pareça
obscuro, ilumina, se desloca do “lugar comum”, vislumbra
outros pensamentos que habitam a mente.
Figura 10 - Corpo Território B / 2010 / Fotografia / 20 x 60 cm / Foto: François Calil
32
Quanto à escolha dos objetos, trabalho com placas de
endereços que foram coletadas pela cidade. Separei um dia
para olhar os muros com mais atenção e procurar possíveis
materiais que pudessem se transformar nessas placas. O
percurso foi realizado principalmente de carro, e durante uma
tarde enchi o porta-malas do carro com tábuas de madeira
(“restos” de construções); latas de tinta que abertas ficariam
planas; conjuntos de forro de mesa de jantar; pedaço de box
de banheiro; quadro negro
escolar; telha de barro, entre outros. E para a produção do
objeto, o pensamento pictórico estava presente tanto em sua
utilização, quanto na escolha da tinta (branca ou preta) que
seria usada para a inscrição dos endereços.
Se antes essas placas eram apenas algo que foi
descartado, inutilizado, substituído pelo novo, ao serem
utilizadas aqui como suporte, tornam-se mais uma afirmação
do lugar, enquanto produtos que expressam, por meio dos
endereços que eu escrevia sobre elas, essa relação não
Figura 11 - Corpo Território C / 2010 / Fotografia/ 20 x 60 cm/ Foto: François Calil
33
necessariamente linear, entre a materialidade daquele lugar
físico e sua representação simbólica, ou seja, não era
obrigatório que endereços das placas remetessem à
localização dos muros, propondo assim possíveis
desterritorializações.
Acredito que o processo se desdobra no campo do
lugar onde desenvolvo essa ação, compreendido aqui não
como algo fixo. Mas que, semelhante aos endereços também
muda, dá ênfase ao eu em detrimento da multidão. Por meio
da dualidade na composição das fotos busco discutir essas
diferenças e peculiaridades, presentes na minha relação com
o mundo. Com lugares que não são absolutamente rígidos,
dependendo da situação ou do contexto, posso ser o eu ou o
outro, assim como posso fechar os olhos para não ver, para
ver, ou para consolidar o que vejo.
2.2 Corpo Receptivo
Pensando na diversidade de mensagens, conteúdos,
paisagens e significados que o corpo está sujeito, no ritmo
acelerado que é a vida cotidiana nas grandes cidades, eu
investigo no ensaio fotográfico “Corpo Receptivo” (Figuras 12,
13 e 14) a condição desse corpo, como imã, repositório desse
excesso desejável ou não de informação, mensagem.
E é essa capacidade receptiva do corpo que trabalho
ao utilizar como objeto uma caixa de correio, fazendo uma
analogia entre o meu corpo e as possibilidades do muro. Essa
caixa pode ter o formato de uma moradia, às vezes é
adornado, tem frequentemente como símbolo um pombo
correio, elemento que completa o sentido desse objeto, como
um local que outrora recebia as mais diversas mensagens,
notícias, contas, avisos, do mundo exterior para o interior, a
casa, o lar, lugar de conforto e segurança.
Para a confecção desse objeto, primeiramente tirei
algumas medidas de minha cabeça para fazer o desenho e
molde da casa de correio, que foi pensada na cor branca,
pelo vazio que causa na imagem, estimulando novos
complementos, físicos ou simbólicos; e também pelo
contraste com o corpo, o que aumenta as possibilidades de
composições pictóricas com o fundo, os muros. Além disso,
tal artefato expressa esse caráter intimista da casa, como um
reduto de virtudes e pelo qual é possível acessar, enviar uma
mensagem ao interior do indivíduo.
34
Figura 12 - Corpo Receptivo A / 2010 /Fotografia/ 30 x 90 cm / Foto: Mário Souza / Edição: Heloá Fernandes
35
Normalmente a caixa de correio é fixada no muro e,
através dela, também alcança o que está “dentro”, como um
fio na fronteira dentro e fora. Diante do muro, toca-se a
campainha, chama-se à porta, bate-se palmas ou grita-se.
Dessa forma, pode-se ou não ser atendido. Contudo, pela
caixa de correio a fissura está sempre aberta, sem qualquer
tipo de restrição, qualquer pessoa pode colocar sua
mensagem. E literalmente ou como uma metáfora, essa
mensagem é depositada, enviada, mas não necessariamente
garante que chegue ao destinatário, que seja compreendida.
Proponho ser uma caixa de correio e receber as
mensagens, notícias, avisos, informações que transitam no
meio urbano. Esse é o ponto de partida para as questões:
Como esse corpo recebe o constante bombardeio de
mensagens urbanas? Como isso reverbera no corpo?
Percebo que muitas mensagens não completam a
caixa no sentido de sua essência, apenas ocupam espaço
com informações desencontradas. Não servem como
alimento para o corpo, ao contrário, sufocam-no, perturbam-
no, e ele permanece num estado cheio de nada, vazio,
descontextualizado.
Dessa forma, neste trabalho, o corpo passa a ser o
interior, o que está dentro do muro, sendo acessado apenas
pela fresta da caixa de correio. Essa abertura do corpo é
limitada, restrita, o que lhe causa desconforto e um estado de
enclausuramento, causado pelo meio externo e suas
convenções, suas relações de poder que reverberam em meu
corpo. Corpo calado que só recebe, não tem voz para opinar
no “jogo da recepção”, pois as regras já estão postas, eu
apenas recebo, não há troca.
Vale destacar, que a caixa ocupa o lugar da cabeça,
esta que por sua ausência é colocado em evidência. Este
corpo se coloca no ato simbólico de receber e armazenar
informações, que serão processadas pela mente, por ligação
direta. Não apenas recebe mensagens institucionais
entregues pelo “carteiro”, mas também mensagens subjetivas
originadas pelo outro, pelo contexto urbano.
36
Figura 13 - Corpo Receptivo B / 2010 / Fotografia / 30 x 90 cm/ Foto: Mário Souza / Edição: Heloá Fernandes
37
Figura 14 - Corpo Receptivo C / 2010 / Fotografia /30 x 90 cm /Foto: Mário Souza / Edição: Heloá Fernandes
38
2.3 Corpo Indivíduo
Neste trabalho, enfatizo um dos pilares da série “Corpo
Silenciado”, que é a comunicação, aqui representada de
forma direta pela antena parabólica, que fixada na parte
superior de um objeto de ferro em formato cilíndrico, é
colocada como uma máscara em minha cabeça, e está
direcionada uma para a outra, num contexto que remete aos
processos de emissão e recepção.
Para a confecção desse objeto precisei uma antena
parabólica em tamanho reduzido, pesquisei em várias
revendas de antenas e ferragistas, mas essa em específico é
uma amostra de vitrine para lojas especializadas, sendo
confeccionada pelas fábricas particularmente para esse fim.
Por isso, a dificuldade em consegui-la, mas isso foi possível
em um estabelecimento mais periférico, no qual o dono
possuía apenas duas unidades, sendo uma mais velha, já
desgastada pelo tempo. Foi exatamente essa que ele me
vendeu. Em seguida, lixei-a e pintei-a de preto para criar uma
espécie de desenho com uma silhueta da parabólica no muro.
Já na máscara de ferro, utilizei sal e sumo de limão para
forçar um processo de oxidação.
Nesse ensaio “Corpo Indivíduo” (Figuras 15, 16 e 17),
os corpos tentam se comunicar. Porém, a máscara na cabeça
se mostra um empecilho, visto que a sobrecarrega, restringe
o espaço de respiro, sufoca-a. Logo, temos uma situação em
que esse corpo é condicionado, a mente fica sobre o efeito de
um zunido perturbador; a cabeça esquenta gradativamente à
exposição do sol e a respiração é dificultada, o que constitui a
condição de silêncio e imobilidade desse corpo diante do
muro.
É possível fazer uma relação entre a rigidez do ferro
que compõe a máscara, seu peso excessivo, e seu desgaste
pela oxidação com a situação do corpo na
contemporaneidade. As enfermidades causadas pela rotina
massacrante da cidade, pelo excesso de trabalho, por um
eterno cansaço, daquele que é escravo do relógio, refém do
medo e da insegurança.
39
Essa antena parabólica, um dos símbolos da
globalização, conduz-nos a lugares diferentes, muitas vezes
em tempo real, potencializando o acesso à informação, e
também a toda a infinidade de produtos, valores,
comportamentos, subjetividades, e tudo o que pode ser
adquirido, comprado. Essa poderosa comunicação transforma
os indivíduos em uma massa homogênea, meros
consumidores de emoções e relações fugidias. Nesse
sentido, Bourriaud (2009) compara a comunicação com a
atividade artística, no que concerne à sua influência nos
vínculos humanos.
Figura 15 - Corpo Indivíduo A / 2011/ Fotografia / 60 x 180 cm / Foto: Vinícius de Castro / Edição: Heloá Fernandes
40
Hoje, a comunicação encerra os contatos humanos dentro de espaços de controle que decompõem o vínculo social em elementos distintos. A atividade artística, por sua vez, tenta efetuar ligações modestas, abrir algumas passagens obstruídas, pôr em contato níveis de realidade apartados. As famosas “auto-estradas de comunicação”, com seus pedágios e espaços de lazer ameaçam se impor como os únicos trajetos possíveis de um lugar a outro no mundo humano. Se por um lado a auto-estrada realmente permite uma viagem mais rápida e eficiente, por outro ela tem o defeito de transformar seus usuários em consumidores de quilômetros e seus derivados. Perante as mídias eletrônicas, os parques recreativos, os espaços de convívio, a proliferação dos moldes adequados de sociedade, vemo-nos pobres e sem recursos, como o rato de laboratório condenado a um percurso invariável em sua gaiola, com pedaços de queijo espalhados aqui e ali. Assim, o sujeito ideal da sociedade dos figurantes estaria reduzido à condição de consumidor de tempo e de espaço [...] (BOURRIAUD, 2009, p.11) (grifo do autor)
Também é possível relacionar esses limites impostos
ao “Corpo indivíduo” com os limites que a comunicação
impõe, pois apesar de apresentar um rico universo de
imagens, textos, conteúdos e divertimentos, as possibilidades
já estão delimitadas, não é possível trilhar outros caminhos,
porque o conteúdo é dado, formatado, completamente
mastigado, basta apenas engoli-lo, sem precisar sair de casa,
sem precisar conversar com as pessoas, é necessário apenas
apertar o controle remoto. Portanto, acredito que essa
comunicação é fragmentada, atingindo o indivíduo apenas
como consumidor viciado, sempre à espera de um novo
produto, que é o mesmo, com outras roupagens.
Os meios de comunicação constituem uma espécie de muro de linguagem que propõe ininterruptamente, modelos de imagens nas quais o receptor possa se conformar – imagens de unidade, imagens de racionalidade, imagens de legitimidade, imagens de justiça, imagens de beleza, imagens de cientificidade. Os meios de comunicação falam pelos e para os indivíduos (GUATTARI & ROLNIK, 1996, p.58).
Por que usar a máscara? Por que não aparecer de
“cara limpa”, sem intermédios? Além de uma escolha
conceitual, o uso dessa máscara que também pode ser
considerada um muro, vincula-se com meus sentimentos,
minhas angústias, meus medos. Utilizo dessa “máscara” para
expor e discutir sobre o que me inquieta nas conexões
humanas, presentes no ambiente urbano.
41
Figura 16 - Corpo Indivíduo B / 2011/ Fotografia/ 60 x 180 cm/ Foto: Vinícius de Castro/ Edição: Heloá Fernandes
42
Figura 17 - Corpo Indivíduo C / 2011/ Fotografia/ 60 x 180 cm/ Foto: Vinícius de Castro/ Edição: Heloá Fernandes
43
2.4 Corpo em Segredo
Branco da máscara,
Branco de arma branca, Branco que corta a língua,
Branco de silenciar, A forma é branda.
(Dalton Paula)
Em “Corpo em Segredo” (Figuras 18, 19, 20 e 21),
foram utilizadas fita isolante preta e veda rosca branca para
confecção das máscaras em meu rosto. Elas comprimiam
minha musculatura, dificultando a fala e a respiração, sendo
esta possível apenas pela boca, por meio de um exercício de
inspiração e expiração ora curto, ora compassado. Também
essa estratégia foi usada para evitar que eu me desesperasse
e entrasse em pânico.
Envolvida por fita veda rosca, pela frieza do branco, do
aspecto de pureza, clareamento, onde facilmente a luz é
refletida, a face permanece vedada e velada, obstruída de
mostrar segredos, encantos e desencantos. Essa fita impede
os movimentos faciais, faz a musculatura ficar contida e a fala
dificultada, esta que se silencia por completo com a chupeta,
forma aparentemente branda, maneira sutil de ludibriar esse
corpo, assim como se engana uma criança.
Corpos adultos tratados como crianças, ingênuas, sem
dar atenção para o discurso. Nem sequer as escutam, vêem-
nas como incapazes, incapazes de compreender e dizem: “É
apenas uma criança! Dê a chupeta para ela se calar!”
Neste trabalho, desenvolvo processos pictóricos
intensificando a apropriação e a composição pictóricas de
materiais como fitas veda rosca e isolante, os muros e meu
próprio corpo. Com relação à cor, coloco esse corpo de
discurso em branco, como uma alusão à existência de algo,
que foi apagado, e agora a mensagem está em branco. Além
disso, ressalto algumas articulações com as especificidades
dos materiais usados, como a fita veda rosca, que é usada
para impedir o vazamento e garantir o fluxo contínuo da água,
aqui comparado aos canais de comunicação, que também
algumas vezes são vedados por elementos que agem como
essa fita, impedindo, impossibilitando a comunicação. Porém,
também é possível considerar esses vazamentos como as
novas possibilidades de acesso ao outro, utilizando caminhos
alternativos, janelas, frestas ou pequenas fissuras.
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Figura 18 - Corpo em Segredo B / 2011/ Fotografia/ 10 x 90 cm / Foto: François Calil / Edição: Heloá Fernandes
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Figura 19 - Corpo em Segredo P / 2011/ Fotografia/ 10 x 90 cm / Foto: François Calil / Edição: Heloá Fernandes
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A cabeça funde-se ao muro, passa por um processo de
enrijecimento, rigidez, adquire status de escultura, o corpo
aparece com mais evidência num vazio frio que incomoda,
gera uma tensão pela ausência de algo a completá-lo. Branco
do muro e o branco da fita, o que os unem e os diferem?
Branco dos hospitais, cabeça enfaixada, não é atadura, mas
está na cabeça, será outro plano de enfermidade, que lida
com lado psíquico, no esvaziamento do indivíduo?
Em “Corpo em Segredo” ressalto o corpo negro como
veículo de comunicação, objeto de corte na minha vida, no
sentido de proporcionar um estranhamento, possibilitar uma
experiência de silêncio, compressão física, sufocamento,
enclausuramento no meio urbano e também em si mesmo,
como já indicado.
As fitas que geralmente isolam e contêm o fluxo dos
vazamentos, tomam conta da cabeça, que se mistura com a
cor dos muros, fazendo um jogo com a cor branca e a
branquitude, a cor preta e a negritude. Apesar de todo o dorso
estar desnudo, somente a cabeça é ocultada, se mostra como
fundamento para questionar a invisibilidade que é imposta ao
corpo negro, seja pela ausência ou pela máscara.
Essa ênfase dada à cabeça dialoga com o lugar central
que as religiões de matriz africana conferem a tal parte do
corpo. Segundo Prandi (1991, p.125), antes do culto ao deus
vem o culto à individualidade do homem, ao orí, palavra em
iorubá1 que significa cabeça. Tamanha é sua importância que
assim como se dá oferendas aos orixás (divindades), também
se dá comida à cabeça, em um rito chamado borí, que busca
a renovação de forças do indivíduo. Por tal razão é que o
autor enaltece: “não se faz nada para orixá sem antes cuidar
da cabeça”. Há até um provérbio que diz “Ori buruku, kossi
orixá”, ou seja, “cabeça ruim não dá orixá”.
1 Língua ritual do Candomblé.
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Figura 20 - Corpo em Segredo PB 1 / 2011/ Fotografia/ 30 x 90 cm / Foto: François Calil / Edição: Heloá Fernandes
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Figura 21 - Corpo em Segredo PB 2 / 2011/ Fotografia/ 30 x 90 cm / Foto: François Calil / Edição: Heloá Fernandes
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3. APONTAMENTOS PARA PERFORMANCE
Nessa investigação sobre o corpo silenciado, o
conteúdo e a forma têm adquirido volume, no sentido de
reflexões, projetos e ideias. Desdobramentos que remetem ao
início dos trabalhos e também demonstram de onde vem o
ponto de partida dessa pesquisa. E ao analisar o passado,
vejo que algumas coisas não ficaram bem definidas. Mas
acredito no tempo como uma ótima ferramenta que auxilia
nessa árdua tarefa de repensar, reestruturar, lapidar o que
ainda está incompleto, ou seja, algo a ser entendido.
Questiono-me sobre o que realmente pretendia
naquele momento, agora, e também o que quero para o meu
futuro como artista. Sem dúvida, o trabalho é um excelente
parceiro nessas indagações, pois ele aponta, mesmo que de
maneira indireta para possíveis caminhos. O estado de
sensibilidade também ajuda na captação dessas indicações
que surgem durante o processo, algumas num período mais
curto e outras por períodos maiores.
Sobre esse processo de criação artística, Cecilia
Almeida Sales (2006) afirma que ele é construído como rede,
marcada pela dinamicidade, pela flexibilidade, onde as coisas
possam ser moldadas, a ter um caráter plástico, ou seja, a
obra se apresenta múltipla por meio das séries de rascunhos,
formas de lidar com os roteiros e esboços. O processo da
obra adquire novos aspectos ao longo do caminho, trabalhos
anteriores têm o papel de ser suporte da produção recente,
também histórias cotidianas, livros lidos, todo esse conjunto é
convidado a integrar a obra.
Durante todo o processo desse trabalho, sou
conduzido por esse pensamento do inacabado, percurso pelo
qual sempre tenho algo a acrescentar, cortar e refazer o que
for preciso para que a obra continue vivendo com
profissionalismo, maturidade e força poética na sinceridade
de comunicar com o outro.
Conhecer os procedimentos criativos envolve, sob esse ponto de vista, a compreensão do modo como os processos culturais se cruzam e interagem nos processos criativos: como esses índices culturais passam a perceber as obras em construção. (SALLES, 2006, p.50).
O lugar em que vivo é determinante nos meus
processos criativos. Como por exemplo, em dois momentos
da minha vida, primeiramente quando residia em um bairro
50
mais próximo da zona rural, com chácaras, sítios, gado e
cavalos nos arredores, elementos que de alguma forma
estavam presentes no meu trabalho artístico, este que
recentemente também absorve o contexto urbano, em que
vivo atualmente, na região central de Goiânia. Essas
influências não são necessariamente uma regra no meio
artístico, mas no meu processo são relevantes.
Capto do mundo as questões que me afetam, através
do registro para que o esquecimento não me faça perder esse
material tão valioso, para o desenvolver da obra. Por tal
razão, trabalho com essas lembranças do que foi o fato na
realidade, e as transformo com novas impressões.
O corpo silenciado é um trabalho visual, que surge a
partir das imagens. E nesse processo, a dúvida é fundamental
para não cairmos em armadilhas das soluções prontas, das
certezas. Vejo que para o meu trabalho, em alguns momentos
é importante que eu saia do eixo, do percurso linear, abra-me
para novas possibilidades.
E fazendo uma retrospectiva de todo o trabalho,
observo que o pensamento pictórico foi o condutor para a
fotografia no meio urbano. Foram quatro ensaios fotográficos,
cada uma com sua proposta. Ao sair pelas ruas da cidade
para executar os registros, sentia que essa experiência me
afetava. Estava ali num ambiente urbano, no qual eu e a
equipe de fotografia e, em alguns casos, outros auxiliares,
parecíamos atores. Esse espaço constituído por muros,
calçadas, ruas e outros elementos se assemelha a um
cenário, e os transeuntes e moradores próximos compõem o
público. Foram esses alguns dos ingredientes das ações.
Por mais que a calçada seja pública, quando nos
colocávamos neste lugar causávamos reações e incômodo
aos que viam. Por mais que representasse uma espécie de
protótipo, uma figura inusitada, deslocada de seu lugar
comum (se é que existe esse lugar), era constante a
abordagem do público. Saíam de suas calçadas, distraíam-se
das prosas cotidianas, interrompiam as atividades que faziam
no momento, como por exemplo, varrer a rua ou o
deslocamento diário rumo ao trabalho, para ver e tentar
compreender o que estava acontecendo, o que era aquela
figura com uma parafernália na cabeça e o dorso despido.
Estar naquele lugar, a ação, o ato, tinha uma força que
parecia estar além dos produtos fotográficos. E para mim era
instigante e desafiador me compreender naquele ambiente,
pois sentia que o trabalho pedia que eu explorasse essas
51
possibilidades, vistas ainda superficialmente, mas que tinham
muito a ser desvendadas, exploradas. Decidi então, ouvir
essas “vozes” e realizei uma performance, linguagem que de
acordo com diversos autores, começa a ser utilizada a partir
da expansão e sensibilidade para desdobrar aspectos e
categorias tradicionais, como a pintura.
Dessa forma, o “Corpo Silenciado” assume um caráter
performático, que aqui será tratado como apontamento,
indicação de possíveis desdobramentos em trabalhos futuros,
e visto que a reflexão teórica sobre esse campo exige mais do
que o espaço desta monografia, reitero que abordarei
especificamente alguns conceitos, que considero relevantes
para articular essa proposta, pois além da pintura e da
fotografia, ela se expande para a linguagem da performance.
Ressalto que o ato de pintar tem sido importantíssimo
para esse trabalho num todo. Tal processo me proporciona
uma formação no que se refere aos fundamentos e às
particularidades, que enriquecem o processo criativo, e é
também a base para se pensar ações e utilizar outras mídias
(foto e vídeo).
Ao discutir sobre a utilização do vídeo, Renato Cohen
(2011) afirma que a mera exibição deste não significa que
seja uma performance, para isso é necessário que o vídeo
esteja contextualizado, exibido junto com alguma atuação ao
vivo.
Acerca dessa questão, destaco que a performance “O
Batetor de Bolsa” apresenta duas formas de registro, a
fotografia (já utilizada nos ensaios) e o vídeo, que se
configura como uma possibilidade de acesso ao que foi
apresentado. Também Cohen ressalta a importância do vídeo
como elemento de contato, proximidade com o que
Schechner (apud COHEN, 2011) chama de multiplex code, ou
seja, “o resultado de uma emissão multimídica (drama, vídeo,
imagens, sons etc.), que provoca no espectador uma
recepção que é muito mais cognitivo-sensória do que
racional” (COHEN, 2011, p.30).
Apresento aqui um pouco da experiência do que foi
fazer a performance, e a vinculo com elementos que
constantemente perpassam as séries, reforçando algumas
idéias e questões já abordadas, o que tem me possibilitado
um amadurecimento, e uma maior compreensão dos
conceitos e do próprio trabalho em si, que considero ainda em
processo. Na performance, são explorados objetos que são
símbolos, apresentam códigos sociais na vivência cotidiana.
52
Remetem às pessoas que as utilizam e os papéis sociais que
elas ocupam, bem com aos lugares para os quais são
destinados e dessa forma, também suas cargas simbólicas.
Tais objetos são deslocados e levados a um jogo metafórico
para propor questões, uma tentativa de abstrair aspectos
críticos dos temas propostos.
Em suas reflexões sobre o propósito da arte, Cohen
(2011) questiona se ela deve representar o real, recriá-lo ou
criar outras realidades. E nesse contexto, o autor indica que a
performance acaba atingindo novas situações e percursos,
tênues limites que separam a vida da arte. E deste modo, ele
situa essa linguagem em um âmbito mais amplo, numa
maneira de encarar a arte, de vê-la numa constante procura
por se aproximar da vida, e assim também do que é
espontâneo e natural, constituindo o live art:
“um movimento de ruptura que visa dessacralizar a arte, tirando-a de sua função meramente estética, elitista. A idéia de resgatar a característica ritual da arte, tirando-a de “espaços mortos”, como museus, galerias, teatros, e colocando-a numa posição “viva”, modificadora” (COHEN, 2011, p.38).
Também abordo a perfomance nesse sentido, pois a
relaciono com minha vontade e os caminhos do trabalho para
direcionar as ações, no intuito de buscar na realidade, aquilo
que ela tem de mais pulsante, e que seja capaz de fugir da
representação tradicional.
Na performance, parto do “Corpo Silenciado”, com o
muro e sua natureza pictórica, e adiciono novos elementos:
uma bolsa feminina preta, um cassetete policial, uma calça
social marrom, uma botina bege e uma venda preta nos
olhos. Em tal cenário, coloco o corpo em ação, elaboro uma
metáfora da pinhata (em espanhol, “piñata”), uma brincadeira
tradicionalmente popular no México. Constituída por um
recipiente normalmente de cerâmica envolto por papel
crepom, ela pode ter inúmeras formas, em especial a estrela
de sete pontas, e também personagens de desenho animado.
Tal objeto, que é preenchido com doces e guloseimas, fica
suspenso no ar, numa altura média de 2 metros; e o jogador,
de olhos vendados tenta acertá-lo com um porrete,
espalhando os doces por todo o local. Apesar de ser mais
comum entre crianças, adolescentes e adultos também
participam desse jogo, que no Brasil é conhecido como
quebra-panela ou quebra pote. Normalmente no tradicional
53
sábado de aleluia, também fazemos uma brincadeira
semelhante, a malhação do Judas, na qual se suspende um
boneco em tamanho aproximado ao corpo humano, que é
esbofeteado, desfigurado, e até mesmo queimado.
Em “O Batedor de Bolsa” (Figura 22) trabalho com o
cassetete e a bolsa como extensões do corpo, do eu e do
outro, prolongamento simbólico, material e subjetivo do
desejo, imaginações, ações e reações do corpo na vida
cotidiana.
Nesse sentido, faço uma analogia entre essa relação
com a alteridade e uma ampulheta, que aqui possui em seu
interior não apenas areia, mas também o eu e o outro, e com
o transcorrer do tempo, senti-me sufocado, soterrado pela
areia, que simboliza todas essas ações vivenciadas no
cotidiano e com as pessoas. No entanto, como uma reação a
tudo isso, tal corpo precisa ser “virado”, para assim como
essa ampulheta imaginária, que recomeça a registrar
novamente o tempo, ele possa reagir, se renovar.
Só percebi essa reação do “Corpo Silenciado” no
processo de edição do vídeo, o que me causou bastante
surpresa, pois aquele corpo que outrora estava sempre
estático, em uma postura rígida, que se expressava pelo
silêncio, agora se movimenta, e mesmo com os olhos
vendados, reage pela dinâmica das expressões corporais,
murmúrios gemidos, reações agressivas.
Optei pelo cassetete por ser um instrumento de coação
e para usá-lo tive que me apropriar dessa força, dessa
energia violenta, porém de forma metafórica, pois essa ação,
embora desordenada, já que estou de olhos vendados e
tonto, se configura como uma resposta subjetiva à violência
simbólica. E independente de ser bom ou mau, tal ato se
estabelece de fato, marca sua existência, registrada em foto e
vídeo.
Penso o cassetete como extensão de meus membros
superiores, parte de um corpo que se manifesta diante de
provocações feitas pelo outro. E desse modo, reajo
involuntariamente, de maneira irracional. Tal prolongamento
de meu corpo também foi um aspecto marcante na escolha
desse objeto, feito de madeira, de cor escura. E por ser
pesado e volumoso exigiu um maior vigor físico, gerando
movimentos bruscos, estes que além de tentar atingir a bolsa,
golpeiam o ar e o muro, já que esse corpo perdeu seu eixo,
por estar tonto e impossibilitado de ver. Porém, essas ações
apesar de parecerem desmedidas indicam uma imprevista
54
reação desse corpo contra o muro, de maneira literal e
também simbólica, pois esse mesmo corpo confuso não
apenas acerta a bolsa, atinge o muro, o limite, rompe a
espacialidade determinada.
A bolsa preta e o muro branco dialogam no que se
refere novamente à pictorialidade, aqui também com um
sentido metafórico, pois é usada para discutir as relações de
poder e a questão racial. Ao ocupar uma posição superior,
acima do corpo, a bolsa estabelece uma relação vertical,
considerada como uma ignição, despertar dessa
performance. E no que concerne ao racismo, considero que
essa performance expõe de maneira reflexiva a postura
daquele corpo, que não é meramente indivíduo, e “joga” com
a lógica racista. Aqui o batedor de bolsa revida o medo e
violência, física e simbólica, que a sociedade muitas vezes
apresenta como justificativa para excluí-lo, aniquilá-lo.
Ressalto que essa bolsa estava repleta de objetos,
doados por várias pessoas, e exatamente por essa
capacidade de guardar itens tão íntimos, é que faço analogia
com o que guardamos em nossa subjetividade. E ao golpear
essa bolsa, meu corpo tenta atingir também um universo
interior, onde estão guardados nossos medos e inseguranças,
assim como preconceitos e estereótipos.
Esse corpo “O Batedor de Bolsa” é fruto de vários
desdobramentos trabalhados na série “Corpo Silenciado”, que
apresenta um processo de perda da individualidade, no que
se refere particularmente aos olhos, protagonistas neste
trabalho. Pois, se em “Corpo Território” o rosto é visível, os
olhos estão fechados. E é exatamente esse rosto, enquanto
expressão máxima do indivíduo, que é posteriormente
ocultado em “Corpo Receptivo”, “Corpo Indivíduo” e “Corpo
em Segredo”, como uma estratégia de colocar o corpo em
evidência, trazer à tona seus anseios, angústias e conflitos,
reiterar sua humanidade, com a qual enfrenta, coloca-se para
além das classificações, rompe o estabelecido, assume-se e
impõe uma reflexão a quem o vê.
Ao me colocar em situações que também geram um
questionamento pessoal, compartilho com o receptor essa
transformação, experienciada através de um personagem,
uma “máscara” que me possibilita questionar, proporciona-me
a licença poética que para mesmo que num plano simbólico,
eu possa contestar, expressar aquilo que enquanto indivíduo
não me é permitido fazer. Exatamente por essa relação com
55
minha história de vida, é que esse trabalho pode ser
considerado dentro das classificações de perfomances
apontadas por Cohen (2011), como a do tipo “organização
pelo self”, na qual o motor da perfomance é o ego pessoal do
artista.
Na performance, o vídeo capta intervenções do
público, como risos e deboche sobre a ação. Tais reações
também podem ser utilizadas como elemento de reflexão para
inúmeras questões e situações que efetivamente exigem uma
postura séria, de atenção e respeito, mas são reduzidas à
brincadeira, a um tipo de humor que se mascara no
engraçado, no exótico. Porém, nas entrelinhas desqualifica,
invisibiliza o outro. Desejo entrar nesse lugar, onde as coisas
são convenientemente colocadas em estado de dormência, e
assim tentar mostrá-las.
Menciono esse corpo que historicamente é marginal,
aquele que é colocado, considerado à margem da lei e da
representação, é invisível aos olhos da sociedade, mas tenta
mostrar-se nesse cenário urbano, com muros, sons, pessoas
e o ritmo acelerado da vida cotidiana.
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Figura 22 - O Batedor de Bolsa / 2011 / Fotografia/ 60 x 270 cm/ Foto: Mário Souza/ Edição: Heloá Fernandes
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse trabalho me propus a discutir três áreas do
vasto campo das artes: a pintura, a fotografia e a
performance. Categorias tão significativas e complexas, que
me fazem ciente de que mesmo que eu as tratasse
individualmente neste trabalho, ainda seria insuficiente para
contemplar sua amplitude.
Assumo o risco de articular essas três linguagens ao
tratar de alguns conceitos que remetem à contemporaneidade
e suas principais características, como a hibridização das
linguagens, das relações e acontecimentos; e a velocidade
cada vez maior, o que impossibilita o permanente, confirma
um caráter efêmero do momento em que se vive.
Considero que em “Corpo Silenciado”, a pintura, a
fotografia e a performance se complementam, formam uma
rede, um todo que dialoga com a pictorialidade, com o
silêncio, com o instante fotográfico, com o universo que me
interpela cotidianamente na cidade, com meu corpo, minha
subjetividade.
Fazer um estudo sobre a minha produção artística foi
um peso, um desafio que me impôs dizer, verbalizar e expor o
que realmente movia o trabalho, isso foi muito doloroso para
mim, senti-me desprotegido. E sem a antena, a caixa de
correio e as fitas, tive que colocar minha individualidade à
mostra, assim como também expus meus medos. Essa dor
que é risco e impulso move o desejo e o sentido, fazem-me
pensar e sempre me abrir para o inesperado.
Senti muita dificuldade em dialogar com os autores as
questões mais íntimas do meu trabalho. O que parece se
configurar apenas um assunto, ou uma mera temática para
esses estudiosos, são para mim algo mais complexo, antes
de fazer parte desse processo de criação artística, elas fazem
parte da minha história de vida. Senti-me cercado por alguns
obstáculos, numa situação ambígua, como se a qualquer
momento segredos pudessem ser revelados, pudessem vir à
tona, semelhante a uma caixa de Pandora.
Tento falar sobre sentimentos que nem todos
vivenciam, ou sequer compreendem, aliás, podem até achar
que sou louco, uma pessoa fora de órbita, pois muitos
acreditam que racismo não existe, ou então ele está apenas
na minha cabeça. Isso gera um conflito turbulento em meu
interior. Então, pergunto-me: qual é o nome desse incômodo
frequente que me aflige?
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RESULTADO: em alguns momentos, acredito
realmente que estou ficando doido com essas situações.
Exatamente por mexer com pontos tão cruciais, escolho
muitas vezes fugir do assunto, calar-me, opto pelo silêncio.
Mas deixar de falar é se omitir, e isso seria uma afronta
aos meus ancestrais, eles jamais me perdoariam. Diante
disso, resolvi usar o discurso do silêncio como uma forma de
questionar, expor a dúvida.
Consegui acalmar minha consciência e também pude
assumir meu corpo negro, minha história. Discuto a minha
condição de invisibilidade, reflito sobre a minha subjetividade,
mas que também diz respeito a muitas outras pessoas, utilizo
o pessoal como uma porta de entrada para o político. E esse
propósito, que caminha pelos ensaios fotográficos,
literalmente se expande na performance, ganha movimento,
enfrenta o muro, o limite imposto, reage e faz ecoar seu
gesto, sua força.
Portanto, vejo esse estudo de forma análoga à minha
produção artística, como resultado da intersecção de vários
processos, de suas relações com as linguagens, com os
conflitos que envolvem todo um trabalho ainda em
andamento, ao qual são exigidas respostas. E exatamente
por ser o sujeito da ação é que para além de ter que formatar
um entendimento completo, penso nos desdobramentos que
estão por vir, nas possibilidades e nas dúvidas que o universo
artístico pode me indicar. Diferente do muro de imagens
prontas vislumbro filetes de água, que embora aparentemente
modestas, são capazes de subverter, ultrapassar os limites.
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61
ANEXO A – Vídeo da Perfomance “O Batedor de Bolsa” 2.
2 Este vídeo também está disponível para download no link: http://www.4shared.com/video/TXfwmTAg/O_Batedor_de_Bolsa.html