corpo silenciado

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE ARTES VISUAIS DALTON OLIVEIRA DE PAULA CORPO SILENCIADO GOIÂNIA 2011

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Trabalho de Conclusão de Curso - Artes Visuais (Bacharelado) – habilitação em Artes Plásticas - FAV/UFG.

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Page 1: Corpo Silenciado

UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE ARTES VISUAIS

DALTON OLIVEIRA DE PAULA

CORPO SILENCIADO

GOIÂNIA

2011

Page 2: Corpo Silenciado

DALTON OLIVEIRA DE PAULA

CORPO SILENCIADO

Monografia apresentada ao Curso de Artes Visuais (Bacharelado) –

habilitação em Artes Plásticas da Faculdade de Artes Visuais, da

Universidade Federal de Goiás, para a obtenção do título de Bacharel

em Artes Visuais – habilitação em Artes Plásticas.

Orientadora: Manoela dos Anjos Afonso

Co-orientador: Odinaldo da Costa Silva

GOIÂNIA

2011

Page 3: Corpo Silenciado

AGRADECIMENTOS

À minha família, especialmente à minha mãe, Ana Ivete Antonio de Oliveira, que sempre incentivou minha formação

artística e acadêmica.

À Ceiça Ferreira, com quem compartilhei os desafios dessa pesquisa.

À minha orientadora, Manoela dos Anjos Afonso pelo apoio, paciência e estímulo na construção deste trabalho.

Ao meu co-orientador, Odinaldo da Costa Silva pelos apontamentos e inquietações que me ajudaram nessa jornada.

Aos professores Marcelo Mari e Paulo Veiga Jordão, pelas valiosas orientações e questionamentos, que enriqueceram

este estudo e certamente, me ajudarão em futuras reflexões.

Aos meus colegas de turma, que nos momentos de dúvida se mostraram mais uma vez os grandes amigos que são.

Aos profissionais, artistas e amigos, Rosana Paulino, Mário Souza, François Calil, Heloá Fernandes, Ronan

Gonçalves, Evandro Soares e tantas outras pessoas que direta ou indiretamente contribuíram para a produção e realização

dos meus trabalhos artísticos.

A todos os docentes e funcionários da Faculdade de Artes Visuais, que me acompanharam nesses quatro anos de

graduação.

Page 4: Corpo Silenciado

RESUMO

Este trabalho investiga a série “Corpo Silenciado” e propõe questões e reflexões sobre o corpo no meio urbano, seus

medos, dúvidas e possibilidades de enfrentamento de situações que se mostram atuais. Com base em estudos sobre

fotografia, paisagens urbanas e arte contemporânea, esta pesquisa busca apontar inquietações que partem do individual para

atingir esferas políticas universais, referentes à forma de ser e estar no mundo. Discute ainda, o panorama híbrido de

relações e contaminações de linguagens e concepções estéticas.

Palavras Chave: Corpo; Intimidade; Alteridade; Cidade.

Page 5: Corpo Silenciado

LISTA DE FIGURAS

Figura 01 Graphismes sur Noir (Grafismos sobre Negro) – Antoni Tàpies - 1988 11

Figura 02 Grand Blanc et Collage (Branco Intenso e Colagem) – Antoni Tàpies - 1982 12

Figura 03 Platibanda - Coreaú/Ceará - 1982 16

Figura 04 Criança participante da Congada Irmandade 13 de Maio 22

Figura 05 Casamento na linha de Erê 23

Figura 06 Menino kalunga - Romaria de Nossa Senhora da Abadia 23

Figura 07 Bonecas 1 - Rosana Paulino/ Foto: Lucia Mindlin 24

Figura 08 Bonecas 2 - Rosana Paulino/ Foto: Lucia Mindlin 25

Figura 09 Corpo Território A - Dalton Paula / Foto: François Calil 30

Figura 10 Corpo Território B - Dalton Paula / Foto: François Calil 31

Figura 11 Corpo Território C - Dalton Paula / Foto: François Calil 32

Figura 12 Corpo Receptivo A - Dalton Paula / Foto: Mário Souza 34

Page 6: Corpo Silenciado

Figura 13 Corpo Receptivo B - Dalton Paula / Foto: Mário Souza 36

Figura 14 Corpo Receptivo C - Dalton Paula / Foto: Mário Souza 37

Figura 15 Corpo Indivíduo A - Dalton Paula / Foto: Vinícius de Castro 39

Figura 16 Corpo Indivíduo B - Dalton Paula / Foto: Vinícius de Castro 41

Figura 17 Corpo Indivíduo C - Dalton Paula / Foto: Vinícius de Castro 42

Figura 18 Corpo em Segredo B - Dalton Paula / Foto: François Calil 44

Figura 19 Corpo em Segredo P - Dalton Paula / Foto: François Calil 45

Figura 20 Corpo em Segredo PB 1 - Dalton Paula / Foto: François Calil 47

Figura 21 Corpo em Segredo PB 2 - Dalton Paula / Foto: François Calil 48

Figura 22 O Batetor de Bolsa - Dalton Paula / Foto: Mário Souza 56

Page 7: Corpo Silenciado

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 07

1. O CORPO NA CIDADE 09

1.1 Muro e pictorialismo 10

1.2 O corpo fotografado 17

1.2.1 O corpo negro 21

2. CORPO SILENCIADO 27

2.1 Corpo Território 28

2.2 Corpo Receptivo 33

2.3 Corpo Indivíduo 38

2.4 Corpo em Segredo 43

3. APONTAMENTOS PARA PERFORMANCE 49

CONSIDERAÇÕES FINAIS 57

BIBLIOGRAFIA 59

ANEXO: Vídeo da Perfomance “O Batedor de Bolsa” 61

Page 8: Corpo Silenciado

7

INTRODUÇÃO

“Corpo Silenciado” é uma série de trabalhos

fotográficos, pela qual proponho discutir questões referentes

ao corpo no meio urbano. Como ele atravessa e é

atravessado pela cidade? O campo que converge para a

intimidade, para revelações de narrativas interiores, veladas

por meus mecanismos de defesa, é que me interessa nesta

pesquisa. Até que ponto devo me proteger para estar

tranquilo? Qual a medida do risco, de me impor, colocar-me

como pessoa, ou seja, como indivíduo, na luta por alcançar

espaço, para ter respeito?

Sensibilizo-me consideravelmente com grande parte

das questões contemporâneas, como o medo, a

individualização, a velocidade e a efemeridade das coisas e

dos vínculos, que me parecem cada vez mais instáveis,

repletos de incertezas. A precariedade e vulnerabilidade das

relações entre as pessoas indicam uma solidão pela negação

do outro ou mesmo pela fragilidade desse relacionar-se com o

outro. Percebo também um sentimento de insegurança que

atinge meu corpo, minha condição humana.

No primeiro capítulo deste trabalho, apresento os

elementos (corpo negro, cidade, pictorialismo, fotografia) que

constituem a pesquisa. Desenvolvo o pensamento condutor

do corpo na cidade, com algumas especificidades, como por

exemplo, a de ocupar muros que geram estranhamento,

desse corpo que mesmo por alguns instantes, “habita” esse

local. Os muros são selecionados por suas características

pictóricas: cor, textura, massa de tinta, veladura, nuances etc.

Capturo uma pintura pronta, feita pelo homem e pela ação de

intempéries. No meio desse ambiente é que sou fotografado.

Exponho meu corpo negro, que está fora dos padrões

midiáticos para ser fotografado, executando uma ação

política, com intuito de gerar questões, pelo silêncio do corpo.

O estado rígido, o rosto velado, o corpo tenso são

algumas das características que norteiam o segundo capítulo.

O corpo se sente cercado por todos os lados, os

componentes negativos da contemporaneidade silenciam-no.

A impressão é que a voz não tem força diante de tanto ruído.

Dessa forma, o corpo opta por silenciar-se para comunicar o

que pensa sobre essas situações e se posiciona, com o

objetivo de fazer com que tais questões perpassem o outro.

Page 9: Corpo Silenciado

8

No terceiro capítulo, finalizo com a abordagem dos

apontamentos e possíveis desdobramentos deste trabalho

artístico. Assumo o caráter performático que os trabalhos

anteriores já indicavam e insiro uma ação performática no

processo. Questões íntimas são lançadas, penso nessas

ações e na proximidade com a vida que esta pesquisa

adquire.

Page 10: Corpo Silenciado

9

1. O CORPO NA CIDADE

A tentativa de descrever o meio urbano se perde diante

de sua grandiosidade, na dimensão de sua constituição.

Casas, ruas, parques, indústrias coexistem em torno desse

ambiente. O concreto tem uma presença majoritária, o qual

confunde o olhar. A sensação que tenho é de semelhança

entre as diferentes edificações, parecem ser números. Mas, é

possível capturar a verdadeira paisagem urbana?

As imagens midiáticas mapeiam a cidade

instantaneamente. Hoje se perdeu o costume do fazer um

retrato sistemático, na busca de uma verdadeira fisionomia

descritiva. Imagem explícita, que causa o extenuar da

capacidade de descrever.

Em “O Detetor de Ausências (1994)”, trabalho do

artista Rubens Mano, que traz algumas reflexões sobre a

cidade, Peixoto (2003) observa que ele consiste na utilização

de dois refletores, de 12 mil watts, projetados e instalados ao

lado do viaduto do Chá (São Paulo), de tal forma que os

transeuntes fossem iluminados ao passar pelos fachos de luz

paralelos. Este trabalho aponta para a presença efêmera e a

evidência da perda iminente, deixa clara a velocidade

crescente da cidade, desqualificando o espaço. A luz é

testemunha da identificação, por permitir ver as pessoas e

constata o anonimato de cada indivíduo.

O caráter volátil e frágil das relações afetivas e

cotidianas indicam que o indivíduo está sempre sozinho, fala

para si mesmo, não enxerga verdadeiramente os outros. Sinto

esse sentimento de insegurança, que atinge meu corpo,

minha condição humana. Um autor que aborda esse processo

de mudanças e transformações sociais e individuais que

temos vivido nos últimos anos, é Zygmunt Bauman.

A precariedade da existência social inspira uma percepção do mundo em volta como um agregado de produtos para consumo imediato. Mas a percepção do mundo, com seus habitantes, como um conjunto de itens de consumo, faz da negociação de laços humanos duradouros algo excessivamente difícil. Pessoas inseguras tendem a ser irritáveis; são também intolerantes com qualquer coisa que funcione como obstáculo a seus desejos; e como muitos desses desejos serão de qualquer forma frustrados, não há escassez de coisas e pessoas que sirva de objeto a essa intolerância (BAUMAN, 2001, p.188).

Page 11: Corpo Silenciado

10

Tenho a sensação de que o corpo de carne e osso está

num tempo, e os fatos e coisas estão em outro. Com uma

distorção considerável, logo penso no equilíbrio dessa relação

e me faço constantes indagações. Tal prática me lança

reflexões que são norteadoras deste trabalho artístico. Os

acontecimentos da contemporaneidade surgem no vai e vem

da cidade, cenário de realização que alimenta as inquietações

do corpo.

A metrópole é o paradigma da saturação. Contemplá-la leva à cegueira. Um olhar que não pode mais ver, colocado contra o muro, deslocando-se pela sua superfície, submersa em seus despojos. Visão sem olhar, tátil, ocupada com os materiais, debatendo com o peso e a inércia das coisas. Olhos que não vêem (PEIXOTO, 2003, p.175).

Excesso de barulho, imagens, pessoas, carros e

produtos, diversos tipos de poluição. As cidades tendem a

essa saturação, salvo raríssimas exceções. Toda essa

exacerbação que pulsa aos olhos e ouvidos torna cada vez

mais difícil a tarefa de escutar e distinguir uma coisa da outra.

O olhar é direcionado para uma imensa barreira que leva à

impossibilidade do “ver” nesse fluxo denso e pesado da

cidade, fato que nos conduz a uma condição de

homogeneidade (como se tudo fosse apenas números), não

contempla a diversidade. As coisas vão se tornando

superficiais, perdendo a magia de estar no mundo com

discernimento, com consciência. Por tais razões é que

Peixoto (2003, p.177) afirma que: “olhar um objeto é

mergulhar nele. [...] Ver um objeto é ir habitá-lo e dali

observar todas as coisas. [...] O olhar se faz nas duas

direções, cada objeto é espelho de todos os demais”.

Compartilhando dessa percepção do autor é que lanço

olhares para os muros e o corpo, na busca por refletir sobre a

unidade do “Corpo Silenciado”. E, a partir de agora,

discorrerei sobre o pictorialismo como um primeiro elemento,

que surge por dois motivos: a escolha estética em razão de

fundamentos da pintura e por questões conceituais.

1.1 Muro e Pictorialismo

Com relação a essa riqueza simbólica dos muros, tive

no decorrer desta pesquisa a oportunidade de conhecer o

trabalho do artista espanhol Antoni Tàpies. Tomei como base

Page 12: Corpo Silenciado

11

o documentário “People and Art's: Antoni Tàpies”, produzido

por Gregory Rood sobre a vida e a obra desse artista, que já

possui um museu em seu nome. Tal aspecto confirma o

reconhecimento de sua obra e trajetória artística.

Tàpies sempre viveu na cidade, tinha um fascínio pelo

elemento muro, por considerá-lo como uma barreira, cerca,

prisão e espaço de manifestações, como o grafite. E num

período de Guerra Civil, ele via o muro como matéria, cor e

formas que se transformariam em textura no seu trabalho. O

artista sente o muro com uma expressividade imensa, de

ideias, e também lembranças da infância, recorda dos avós e

de bairros antigos, com suas ruas estreitas e marcas

deixadas pelos séculos. Relata que as paredes tiveram um

grande impacto sobre sua vida, guardavam as marcas de tiros

e remetiam às pessoas executadas durante a guerra.

De acordo com esse documentário, o trabalho de

Tàpies ficou conhecido pelo uso de símbolos, especialmente

a cruz e a letra x, que ele utilizou para propor reflexões sobre

seus significados enquanto marca de um território, da vida, da

morte, da sacralidade de lugares e partes do corpo, e como

algo que suprime, que expressa uma negação.

Figura 01 – Graphismes sur Noir (Grafismos sobre Negro) –

Antoni Tàpies - 1988 (Fonte: MAGALHÃES; FREMON,

2005, p. 73)

Page 13: Corpo Silenciado

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Enquanto esse artista se espelhava no muro para

construir suas formas matéricas, é nos muros que apreendo

pinturas prontas. Nessa série não me interessa pintar, mas

sim discutir a contaminação da pintura por outras linguagens

artísticas. Tàpies, em muitos momentos, não sabia ao certo

quando parar, a hora de realizar a última intervenção de cada

trabalho. Na série “Corpo Silenciado”, pela questão pictórica,

“finalizo” o processo de pintura quando encontro o muro

desejado com cor, textura, intensidade de luz e veladura.

Na vida cotidiana e no trabalho de bombeiro, no qual

exerço há sete anos a função de socorrista, passo

diariamente por uma micro guerra, entre acidentes, tragédias,

enfermidades, situações de emergência. São nos muros que

estão marcados os lugares onde isso acontece; a placa de

endereço que oficializa o local gera estatística e informação

para o banco de dados oficiais e para mim, como fonte de

pesquisa.

Assim como para Tàpies, também para mim os muros

são páginas escritas diariamente, transmitem o diagnóstico da

situação social da cidade. Cercas elétricas, muros altos com

cacos de vidro, com grafite, pichações, frases de protestos Figura 02 – Grand Blanc et Collage (Branco Intenso e Colagem) –

Antoni Tàpies - 1982 (Fonte: MAGALHÃES; FREMON, 2005, p. 55)

Page 14: Corpo Silenciado

13

políticos, recados amorosos, xingamentos racistas e sexistas,

os quais revelam as relações humanas no contexto urbano.

Acredito que na série “Corpo Silenciado” me permito

utilizar mais de uma linguagem, que remete às várias

possibilidades que tenho enquanto estudante, nesse

momento de experimentação e aprendizagem prática nos

ateliês, que de alguma forma reverberam no meu trabalho

artístico. Uma linguagem por vez, ou duas, ou mais,

contaminadas.

Pautado pelos alicerces da pintura é que realizo a

escolha criteriosa dos muros, pois de acordo com o que cada

trabalho exige, observo aspectos como cor, textura, massa

pictórica, descascamento, veladura, ação de intempéries

(oxidação, lodo), intervenção urbana (como por exemplo, o

grafite, pichação, escritos, recados, publicidade e gambiarras)

e diferentes incidências de luz, que variam com o horário do

dia.

Ressalto que é visível meu entusiasmo quando

encontro um muro que foi pintado com tinta à base de cal

(que são muitos), visto que, por ter um menor custo, o uso

desse material é frequente e sua baixa qualidade faz dos

muros uma rica fonte de pesquisa. Embora a cal seja utilizada

com o objetivo de encobrir ou mesmo decorar, muitas vezes

pode revelar a camada interna do muro, ressaltando relações

entre o antigo e o novo.

Comparo a exposição desses muros no meio urbano

com a dinâmica da cidade, marcada por um fluxo contínuo,

mutável, inconstante, dinâmico e fugidio, pois a tinta sofre

facilmente interferências em relação a seu estado de origem.

A exposição excessiva ao sol produz um descoloramento que

em alguns casos ocorre de forma variável, com diferentes

nuances. E o contato com a água faz escurecer, ao secar

retoma a cor original, e se sobre o muro há sombra e

umidade, provavelmente surgirá e disseminará lodo.

Um buraco em determinado muro, ao sofrer a ação das

chuvas, expõe sua composição mineral, as cores da terracota

presente nos tijolos escorrem no muro, como se ele estivesse

sangrando. E esse pigmento mineral percorre a “derme” de

concreto. Já muros que estão próximos a telefones públicos

se transformam em blocos de anotações, contendo números

telefônicos de diferentes procedências, recados, rascunhos

para o indivíduo se lembrar. As suas utilizações são diversas

e, como tais informações efêmeras, geralmente se perdem no

tempo, no fluxo da cidade.

Page 15: Corpo Silenciado

14

Nesse sentido, Peixoto (2003, p. 201) defende que “a

parede funciona como um palimpsesto, sobre o qual se

acumulam sucessivas camadas de papel”, semelhante aos

antigos pergaminhos, que eram utilizados de tal modo que os

textos se sobrepunham uns aos outros, visto o alto custo do

material. Dessa forma, as primeiras inscrições são vestígios

de um passado, e esse se mistura com o “texto” ou a imagem

de agora.

O muro pode ser considerado o cenário das

intervenções cotidianas em relação ao tempo. O homem

constrói e modifica os muros por vários motivos: a pichação

como ato político, levantar uma barreira por insegurança,

pintar um muro para adornar a fachada, aplicação de

propaganda comercial. A ação das pessoas com seus

objetivos e interesses é diversa, e é também objeto de

atuação do tempo, da natureza e da história, sua existência

física ou apenas simbólica “fala”, expressa alguma coisa,

indica a aparência dos fatos, revela enredos urbanos bem

como histórias privadas.

Destaco que, além das qualidades pictóricas, os muros

são considerados aqui também em sua característica

primordial, como uma barreira que preserva, remete à

segurança, lugar de fronteira, delimita o que está dentro e o

que está fora. Desse modo, coloco-me diante do muro num

gesto político, daquele que questiona, negocia situações de

deslocamento, tenta se comunicar com o outro, tenta propor

reflexões, e dessa forma faço parte dos muros, habito-os e

também os interpelo.

Sobre essa interrupção causada pela barreira física do

muro enquanto limite, ressalto que minha reflexão ocupa o

lugar íntimo (da subjetividade) e conduz a um mergulho

profundo, a diversos questionamentos e inquietações. E esse

muro é partida e não chegada, é um ponto, que por meio do

pensamento, ramifica-se, aponta para vários caminhos,

possibilidades de criar brechas para reflexão do meio urbano.

Embora vistos primeiramente como obstáculo, como

marcos que circundam, impedem a passagem, nessa

perspectiva os muros podem possibilitar o acesso ao “ventre”,

ao que há dentro do indivíduo, mas isso requer a

sensibilidade e o desejo de se deixar afetar. Não basta

apenas estar em determinado lugar, é necessário

experienciá-lo. E, neste trabalho, é a fotografia que revela a

paisagem interior, o lugar da subjetividade, é ela que

materializa essa imersão. Deste modo, os muros ganham

Page 16: Corpo Silenciado

15

novos significados, são tomados como lugar da experiência,

articulam-se com a postura rígida, imóvel do meu corpo, e

também com os objetos que utilizo.

Considerando o muro também como reflexo dessa

cultura atual, que apesar do excesso se mostra muitas vezes

vazia de sentido, “Corpo Silenciado” busca criar janelas de

suspiro na tensão, que para mim significa viver no ambiente

caótico da cidade. Janelas, brechas como oportunidades de

compreender o ser e estar no mundo, de ver além, de

enxergar o que não está à mostra, de olhar para dentro.

Nesse contexto, penso que minha ação diante dos muros

passa do exterior para o interior, num percurso infinito,

semelhante à fita de Moebius, também chamada de fita sem

fim, que de acordo com Garcia (2008, p.201), “é uma

superfície com um só lado e um só contorno. Além de uma

grande beleza, essas fitas se conectavam diretamente com

fragmentos selecionados da nova ciência. As tiras são um

fenômeno estudado a partir da topologia, ramo da matemática

que pesquisa as propriedades invariáveis de uma figura à

qual se aplicou uma deformação”.

Complemento esse estudo estético que se preocupa

com a forma e a composição ao conceitual amarrado na idéia

motriz, relacionada com as contribuições de Anna Mariani, no

livro “Pinturas e Platibandas”, no qual a autora retrata as

moradias populares existentes principalmente na região

Nordeste, a maioria delas localizadas em cidades, vilas e

povoados do interior. Tal contexto foge das características

das grandes metrópoles, possui uma lógica e um tempo

próprio, mais lento. Esse interior me remete ao meu lugar

interno, se faz abrigo subjetivo que acolhe os meus medos e

dúvidas, é porto seguro no campo das idéias.

A estética pictórica das casas é elemento que aponta

orientações para as escolhas dos muros, em sua maioria

também pintadas com tintas à base de cal, na qual é possível

observar uma sabedoria pictórica grandiosa, por sua

diversidade e originalidade, como reitera o prefácio da

referida obra:

A poesia cromática dessas pinturas à base de cal, elaboradas sobre fachadas e platibandas, é resultado da transparência e da luminosidade que só é possível obter graças às práticas tradicionais de caiação, técnica que aos poucos tem sido substituída por novos materiais e

Page 17: Corpo Silenciado

16

processos sem as mesmas características (Instituto Moreira Salles apud MARIANI, 2010).

Dessa maneira, acredito que é possível ver uma

semelhança entre os muros e essas moradias, não apenas

com relação à questão estética, mas também por seu caráter

político, visto que a escolha pictórica pode ser considerada

uma metáfora para trazer à tona questões que muitas vezes

estão à margem, que incomodam e geralmente passam

despercebidas, ou são intencionalmente ignoradas.

No processo de elaboração desse livro, Mariani (2010)

ressalta que uma de suas primeiras decisões foi apresentar

as fachadas sem fronteiras políticas (Figura 01), aspecto que

dialoga com “Corpo Silenciado”, no qual abordo questões que

embora partam do pessoal, do íntimo buscam atingir qualquer

indivíduo, instigando-o a uma reflexão com pontos em

comum, aproprio-me dos muros buscando relativizar os

limites entre eu e o outro.

No que se refere ao método, também encontro

semelhanças entre o meu trabalho e o desenvolvido por essa

autora. Seleciono os muros como pinturas prontas, mas eu

sou fotografado junto a eles. Já Mariani (2010) capta pinturas

prontas e apresenta-as como trabalho final de fotografia. Em

“Corpo Silenciado”, utilizo a fotografia para indicar esse

diálogo entre as questões que coloco sobre o corpo e o

ambiente urbano, que se expressam pelas inscrições

existentes nos muros, resultado da diversidade de materiais,

Figura 03 – Platibanda - Coreaú/Ceará - 1982 (Fonte: MARIANI, 2010, p.78)

Page 18: Corpo Silenciado

17

manchas e matizes de cores, diferenças de texturas e trechos

de publicidade. Dessa forma, as linguagens fotográfica e

pictórica se misturam de forma que uma modalidade se

aproxima da outra, discutindo seus limites e sentidos,

contaminando-se, formando um território híbrido.

1.2 O corpo fotografado

Acerca da fotografia, gostaria de primeiramente

apresentar outros aspectos que fizeram parte da minha

história de vida, pois quando ainda era adolescente ganhei

minha primeira câmera manual, da marca Zenit, que me

proporcionou inúmeras aventuras e descobertas entre a

abertura e a velocidade de exposição, o filme fotográfico e o

processo de revelação da foto.

Eu utilizava essa câmera como suporte para as

pinturas, construía aos poucos um banco de dados, uma

verdadeira biblioteca de imagens, paisagens, pessoas, festas

religiosas, situações cotidianas e, com ela, também fazia o

caminho inverso, registrava minhas pinturas.

Em uma contextualização histórica, André Rouillé

(2009) ressalta que o Pictorialismo foi um movimento de

fotógrafos que surgiu em meados do século XIX, com o

objetivo de exigir o mesmo status das Belas-Artes. Numa

época em que a fotografia era considerada uma atividade

mecânica, criação de fotógrafos puramente industriais, visto

que se valorizava o original e se repudiava a

instrumentalização da fotografia.

Nesse panorama, os pictorialistas buscavam se

aproximar da concepção estética presente na pintura, mas se

apoiando nas próprias técnicas fotográficas, era um exercício

de “estar na fronteira”, ou seja, buscar o pictorialismo

fotograficamente. E acerca das novas visibilidades

proporcionadas pelos instantâneos fotográficos, que segundo

Rouillé inspiraram pintores como Monet, em Boulevard des

Capucines (1873), elas foram completamente ignoradas pelos

pictorialistas, “por emanarem de uma produção que lhes

parece muito popular e muito trivial para pertencer à arte, por

serem muito marcadas pela modernidade; por estarem muito

afastadas de sua verdadeira preocupação: a interpretação”.

(ROUILLÉ, 2009, p. 253-254)

Page 19: Corpo Silenciado

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Para os pictorialistas, os trabalhos deveriam ser

pautados na interpretação pela subjetividade, deveriam ter

impresso a marca do fotógrafo. O assunto não teria

importância, mas sim a forma como seria escrita essa história,

esse enredo através da luz. Portanto, o pictorialismo une o

mecânico com o subjetivo, alia os procedimentos químicos e

mecânicos da fotografia com a natureza humana, a

subjetividade da mão e do olhar do fotógrafo.

A forte rejeição à fotografia pura encontra-se na própria base do pictorialismo, que nela vê tudo aquilo que ela recusa: o registro, o automatismo, a imitação servil, a máquina, a objetividade, a cópia literal. Segundo o “grande discurso” pictorialista, a pureza mecânica é imanente à fotografia (ROUILLÉ, 2009, p.256) (grifo do autor).

Enquanto os pictorialistas negavam a fotografia como

registro automático, eu o utilizo como ferramenta para a

captura da ação, relevante para que na produção da série

“Corpo Silenciado” fosse possível apreender os elementos

urbanos, a pintura pronta que há nos muros e a ação

proposta, tornando assim visível aquilo que normalmente não

conseguimos ver.

Ainda sobre as relações entre arte e fotografia, Rouillé

(2009) discorre sobre o período impressionista, no qual a

fotografia, agora no contexto de uma sociedade industrial

populariza-se no gosto burguês da representação narcísica e

sua capacidade de apreender detalhes, fazendo das ruas

estúdios fotográficos a céu aberto.

De forma semelhante, com o advento das tintas em

tubos, os artistas também puderam sair de seus ateliês e

pintar nos espaços das avenidas, dos parques, bares e

praças. A pintura adentrava nesse mesmo território da

fotografia.

A pintura impressionista se distingue da pintura clássica ao assimilar certas características próprias da fotografia, procurando, ao mesmo tempo, resistir a seu domínio. Assim, o impressionismo surge como uma resposta da pintura à fotografia (e mais amplamente à sociedade industrial). É um jogo de mimetismo e rejeição, a fotografia terá conseguido, em razão de sua novidade e do seu inusitado poder figurativo, desterritorializar a pintura e empurrá-la

para novos territórios (ROUILLÉ, 2009, p.292).

A luz, base da fotografia, torna-se juntamente com

todas as transformações desse novo momento histórico,

Page 20: Corpo Silenciado

19

desse novo ritmo das cidades e da vida das pessoas, bem

como da própria forma de expressão artística, que busca

atender novas demandas, elementos indispensáveis para a

idealização estética impressionista.

Em minha obra, acredito que hoje a fotografia não é

somente parte de um processo, mas uma linguagem que

ganha autonomia, torna-se um trabalho artístico. Utilizando

softwares de tratamento de imagem, consigo no processo

optar por elevar a saturação das cores e intensificar os

elementos pictóricos existentes nas fotos. E essas escolhas

se iniciam antes mesmo do clique, pois individualmente

escolho os cenários necessários para fotos e, no processo de

produção, oriento o fotógrafo acerca do enquadramento, da

composição a ser formada, da hora em que essa foto deve

ser realizada, ou seja, ela é construída nesse processo de

negociação, no qual levo em conta também as indicações do

profissional. Logo, considero a foto o resultado desse diálogo

entre eu, o fotógrafo, o muro e a cidade.

E são exatamente essas estratégias e operações

criadas para o olhar da câmera que Cotton (2010, p.7-9)

aponta como elementos que “desafiam um estereótipo

tradicional da fotografia: a noção do fotógrafo solitário

escarafunchando a vida diária em busca do momento no qual

uma linguagem de grande impacto visual ou de conteúdo

profundo aparece no enquadramento”.

E é nessa outra perspectiva de se compreender a

fotografia que decidi utilizá-la para registrar minha ação no

meio urbano, ou seja, esse pensamento que compõe o

trabalho já vinha sendo elaborado e direcionado muito antes

do clique da câmera. Porém, foi a fotografia que possibilitou a

materialidade desse ato artístico e, principalmente, permitiu

que um número maior de pessoas pudesse vê-lo.

Concordo com Cotton (2010, p. 22) quanto às

particularidades da imagem fotográfica enquanto fruto dessa

construção, desse planejamento, pois para a autora a

“imagem reconhecia as formas espontâneas que a

performance poderia adotar”. Da mesma forma, na série

“Corpo Silenciado” é justamente por ter sido premeditado

esse agir para o olhar da câmera que a imagem fotográfica

pode expressar o imprevisível e outras formas de

espontaneidade presentes no ato performático.

Essa elaboração da proposta, da ideia que é o trabalho

antes mesmo dele ganhar forma, é também o alicerce da arte

conceitual, na qual a fotografia tem a função de dar

Page 21: Corpo Silenciado

20

completude à essa ideia, fazer com que ela funcione, apareça

em primeiro plano. Por tal razão é que Rouillé (2009) enaltece

a importância da fotografia, como meio que possibilita a arte

conceitual expressar sua natureza contingente, para além da

materialidade das formas tradicionais.

Acredito que assumir e expor essas escolhas é

também estimular outras percepções da fotografia, nesse

caso especialmente em sua dimensão de negociação e

estratégia nas relações humanas. Por isso, o corpo é um

elemento fundamental neste trabalho, pois exponho o meu

corpo e me coloco nas situações propostas. Desloco o

discurso do silêncio ao tratar as questões relacionadas à

invisibilidade e a supressão da voz, e utilizo essa produção

artística para o enfrentamento daquilo que considero mais

doloroso, porque faz parte de mim, são minhas experiências

cotidianas.

E a partir daí, tento colocar provocações, que vêm de

encontro aos nossos sentidos, buscando tirá-los de seu lugar

comum, instigo-os a ultrapassar os muros, a enxergar outras

possibilidades de vivenciar e compreender nossa existência.

A respeito da questão da identidade, meu corpo se confronta

com esse estranhamento constante, pois ora sou o outro

(não-sujeito da história, quando gera certo “distanciamento”,

não está no âmago), ora me relaciono com os outros. Nesse

sentido, Canton (2009, p.21-22) enaltece que “os artistas

emprestam suas identidades para o questionamento político e

social”.

Dessa forma, em “Corpo Silenciado” proponho, com a

exposição do meu corpo negro um deslocamento, uma

ressignificação, pois assumo concomitantemente o papel de

ação, da fotografia e das situações que apresento e

experimento; também me coloco como sujeito, no sentido de

quem estimula essa reflexão, daquele que se posiciona diante

do mundo e dos muros, expõe questões. Essa postura

reflexiva pode indicar um verdadeiro embate entre esse corpo

“abusado” em vários sentidos e o que se espera dele no

sistema vigente.

Sobre essa sensibilidade que o corpo assume como

mescla de carne e crítica, é que Canton (2009) afirma ser:

[...] uma das grandes percepções que permeiam a obra dos artistas contemporâneos, que se mostram atentos às tensões situadas em um corpo cada vez mais idealizado pela sociedade de consumo, confuso em meio a tantas imagens, cujos modelos são espetacularizados, inseguros na projeção de uma dimensão do corpo que é

Page 22: Corpo Silenciado

21

sempre aquele que supervaloriza a forma e o prazer (CANTON, 2009, p.25).

E ao contrário dessa idealização, considero o corpo no

meu trabalho como expressão da dúvida, como aquele que

revela as fissuras, como um mecanismo que desestabiliza as

minhas próprias certezas, coloca-me à deriva e, assim, ele

anuncia para um incessante estado de transformação, que é

essa tentativa de se perceber no mundo.

1.2.1 O corpo negro

Mas, que corpo é esse? É o meu corpo negro, que em

sua formação, em sua história de vida, traz consigo outros

corpos. E numa ação política, de micropolítica, esse corpo

busca, está à procura, clama por uma representação que lhe

restitua a humanidade, a dignidade historicamente negada.

Um corpo que se forma, alimenta-se na Congada, festa

religiosa tradicionalmente reconhecida como festa de Preto,

organização que contempla a diversidade. Há mulheres que

assumem funções normalmente masculinas, como a de

caixeiro (tocador de caixa de congo); há pessoas portadoras

de necessidades especiais, que em vez de serem vitimizadas,

são tratadas com respeito, incluídas; há uma preocupação

constante dos anciãos em repassar os fundamentos dessa

tradição aos maios novos, que já participam antes mesmo dos

primeiros passos; há meninas e mulheres que aguardam o

ano inteiro para na semana da festa, afirmarem com orgulho

“sou Rainha Conga”, “sou Princesa Conga”, cargos de

nobreza, que mesmo simbólicos são legítimos. Sem dúvida,

pela alegria que expressam, são as mulheres mais lindas do

mundo.

Trago esse corpo, aliás, esses corpos negros, que as

batidas do coração são ritmadas pelos sons que ecoam das

caixas de congo; um corpo que sente os pés clamarem por

dançar, por sentir esses ritmos; um corpo que ganha voz nos

cantos e louvores da Congada.

Tal corpo também faz sua prece nos terreiros,

espacialidades negras ainda hoje escamoteadas; reza em

quintais e espaços que são compartilhados, são a casa de

santo e também a morada das pessoas; sente-se em casa,

entre os seus. E fora desses lugares, esse corpo se sente

confuso, perdido em seus sentimentos mais íntimos.

Page 23: Corpo Silenciado

22

Esse mesmo corpo se desloca para os municípios

goianos de Cavalcante, Monte Alegre, Terezina de Goiás,

com destino à comunidade quilombola Kalunga, para

reencontrar sua história, viva no rosto de homens, mulheres e

crianças; e subjetiva naquilo que se refere à memória, à

ancestralidade negra. Meu corpo se identifica, se une a essas

pessoas, pois compartilham da mesma dor, do mesmo

sentimento de desterritorialização, geográfica e simbólica

(Figuras 04, 05 e 06). Até quando seremos colocados à

margem?

Figura 04 - Criança participante da Congada Irmandade 13 de

Maio, durante a festa realizada em maio de 2011 (Fonte: Arquivo

Pessoal).

Page 24: Corpo Silenciado

23

Figura 05 - Casamento na linha de Erê (entidade da Umbanda que possui

características infantis), realizado no Ilê Asè Vovó de Yemonjá, na Vila Mutirão, em

Goiânia (Fonte: Arquivo Pessoal).

.

Figura 06 - Menino kalunga - Romaria de Nossa Senhora da Abadia,

Comunidade Kalunga do Vão de Almas, 2008 (Fonte: Arquivo

Pessoal).

Page 25: Corpo Silenciado

24

Uma artista e educadora que também desenvolve

pesquisas e trabalhos ligados às questões sobre gênero e

etnia é Rosana Paulino. Sua obra aborda especialmente o

lugar social da mulher negra, no trabalho, nos

relacionamentos afetivos, no campo da representação e em

sua relação com seu corpo.

Sobre a exposição “Rosana Paulino: álbum de

desenho”, Aracy Amaral (1997) ressalta no texto “A mulher é

o corpo”, a articulação que essa artista faz entre o corpo

feminino e os padrões de beleza, ao criar bonecas (Figuras

07 e 08) que contestam o modelo de beleza eurocêntrica da

boneca Barbie.

A mulher enquanto corpo, alta tensão expressiva, gesto, linha parada no ar. Expressão enquanto ferida. Corpo de mulher espaço do núcleo gerador, repositório de vida. Num tempo em que os artistas se retraem frente à representação da figura humana por temor ao esgotamento, por timidez, por discriminação, pela dificuldade de invenção, Rosana Paulino faz do corpo da mulher o seu tema, trabalhado, retomado e abordado, enquanto rosto, ventre, gestualidade, em sequência quase de diário, não descartando a recorrência à historia da arte. Inclusive em desenhos inspirados assumidamente na melhor Anita Malfatti de 1917, ou quem sabe, também nas

transparências viscerais de Ismael Nery do último período (AMARAL, 1997, p.03).

Figura 07 – Bonecas 1 - Rosana Paulino/ Foto: Lucia Mindlin (Fonte: AMARAL, 1997, p.08 )

Page 26: Corpo Silenciado

25

Além de discutir referências, que considero relevantes

para meu trabalho, ao refletir sobre identidade e negritude, e

suas relações com a memória e a subjetividade, Rosana

Paulino é sem dúvida, um exemplo de uma artista que tem

trabalhado o corpo na arte contemporânea. Ela expressa-os e

vincula às suas experiências pessoais e conhecimentos

específicos, como os da Biologia, presentes na poética que

relaciona o corpo feminino com os mecanismos de defesa de

determinados insetos.

Outro aspecto relevante é a reflexão que essa artista

faz sobre os diversos tipos de produtos e procedimentos para

transformação do corpo (por exemplo, cosméticos, fitness e a

moda), em especial do corpo feminino, construído

socialmente dentro de um modelo de valores morais,

responsabilidades e padrões de beleza, estes que em sua

obra são desmistificados, contestados, visto que apontam a

condição dessa mulher, desse corpo que constantemente

precisa agradar, precisa ser moldado, assim como o destino

marginal dessas mulheres, predominamente marcado pela

dor, que incide não apenas no corpo físico, mas também em

auto-estima.

Figura 08 – Bonecas 2 - Rosana Paulino/ Foto: Lucia Mindlin (Fonte: Acervo pessoal da artista)

Page 27: Corpo Silenciado

26

Ainda sobre essa questão das mudanças impostas ao

corpo, destaco essa visibilidade que lhe é dada atualmente,

enquanto objeto de estudo da medicina, e por isso tão

excessivamente invadido, radiografado, analisado e muitas

vezes mutilado em prol da eterna beleza e juventude. Em um

sentido metafórico, também sinto meu corpo invadido, por

imagens e padrões. Não o reconheço como corpo real,

humano nas representações presentes em capas de revista,

nos programas de televisão, nas profissões mais nobres.

Nesses espaços, meu corpo é um estranho, ora literalmente

como objeto de estudo, visto pela ótica do exotismo, ora como

objeto de desejo. Me sinto agredido por esses simulacros que

parecem indicar uma presença, mas com o qual não me

identifico. Vejo o corpo negro ausente, invisibilizado.

Page 28: Corpo Silenciado

27

2. CORPO SILENCIADO

Desenvolvo, paralelamente à atividade artística, o

ofício de bombeiro, no qual tenho a função de socorrista, por

isso transito bastante pela cidade, em virtude do alto índice de

ocorrências. E em razão de uma grande carga horária de

trabalho, resolvi trabalhar com pinturas prontas, que são os

muros de casas, fachadas, comércios e indústrias. Logo,

tenho aproveitado essas andanças para mapear muros pela

cidade.

Quando tenho em mente alguma idéia de um trabalho

pronto, revisito os muros mapeados e confiro se estão como

antes, pois conforme já citado a transformação do espaço

urbano é algo contínuo, em uma semana está de uma cor, na

outra já mudou e no mês seguinte, foi demolido.

No processo de produção da série “Corpo Silenciado”,

conto com a colaboração de profissionais e amigos, que

contribuem de forma preciosa. Logo, sem eles não seria

possível executar o trabalho e obter esses resultados.

O primeiro profissional que surge é o fotógrafo, ao qual

sempre apresento a proposta do trabalho, desenvolvendo um

diálogo, aponto o enquadramento desejado, a composição, os

locais, a postura do corpo, posição do objeto. No entanto, o

trabalho não está fechado, pois os fotógrafos também

interferem com alguma sugestão técnica ou até mesmo

estética, ou seja, tenho uma idéia inicial que se transforma no

desenrolar do processo.

Os enquadramentos das fotos são pensados com o

intuito de proporcionar ao corpo e ao muro um espaço de

visibilidade, que remete à regra dos terços. O corpo se

posiciona lateralizado à direira, à esquerda o muro é

enquadrado no meio do díptico, uma alusão aos santos

gêmeos São Cosme e São Damião, que aqui se expressa em

um desdobramento para abordar a relação entre eu e o outro.

Ao assumir todo o campo da imagem, o corpo clama por ser

visto e assume seu papel político.

Optei por ser fotografado naturalmente, sem a

utilização de maquiagem, cremes, óleos ou qualquer tipo de

cosmético, pois meu objetivo era expor as particularidades e

imperfeições desse corpo, visto que essa escolha dialoga

com as reflexões propostas pela série, enquanto inquietação,

questionamento, da imagem, do corpo, da representação.

Page 29: Corpo Silenciado

28

Esse corpo que se desdobra em quatro ensaios,

propõe um questionamento acerca do silêncio imposto ao

meu corpo negro, um silêncio que exatamente por sua

invisibilidade parece não existir, é uma violência sutil, mas

absolutamente perversa, pois é dissimulada, mascarada,

ardilosa, afirma e ao mesmo tempo nega, acolhe e ao mesmo

tempo exclui, destaca e ao mesmo tempo estigmatiza.

Esse silêncio que talvez pudesse ser chamado de

“silenciamento” não se refere apenas à ausência de voz, de

sons ou ruídos, mas também a uma interrupção, a um cessar

brusco do desejo, das aspirações e da subjetividade do

indivíduo negro. Esse silêncio é o olhar desconfiado, as

expressões corporais que não têm voz, mas falam do medo,

da repulsa para com o meu corpo negro. Considero esse

silêncio a expressão máxima de algo que diz a esse corpo,

mesmo sem palavras qual é o seu “devido lugar”, oprime-o,

delimita o seu espaço de ação, aprisiona-o em si mesmo.

E como reação a essa maneira tão incisiva que o

silêncio incide sobre o corpo negro é que ele se cala, nega-

se, anula-se diante do medo de enfrentar questões tão

dolorosas, tão íntimas, com as quais teve que

obrigatoriamente aprender a conviver, mas assim como existe

um pulsar que impede um silêncio absoluto, também o corpo

negro é capaz de buscar outras espacialidades onde possa

questionar, jogar com as máscaras, ser ele mesmo, assumir-

se, libertar-se no gesto e no espaço.

2.1 Corpo Território

Norteado por essas inquietações acerca do corpo na

cidade, lanço nessa primeira série, denominada “Corpo-

território” (Figuras 09, 10 e 11), as seguintes questões: Como

lido com as especificidades do tempo e com a dinâmica da

cidade? Como meu corpo se insere na ditadura

comportamental que lhe impõem tensões e conflitos? O que é

estar na cidade? Há lugar para todos de forma equivalente e

igualitária? Quem tem lugar no meio urbano?

Dessa forma, discuto o olhar interno e externo

localizando o lugar como sendo o ponto de partida para essa

reflexão. Coloco-me na frente do muro para questioná-lo em

sua materialidade, como barreira que me impede de

continuar; e também em seu caráter simbólico, como

metáfora de tantos outros muros, tantos outros limites visíveis

Page 30: Corpo Silenciado

29

ou não que existem entre o meu corpo e o dos outros nesse

ambiente urbano.

Nesse contexto, sinto meu corpo numa situação

desconfortável, de conflito, de desprestígio. E exatamente

para explicitar essa angústia de estar cercado de outros

corpos, mas no fundo de me sentir sozinho, pois não há uma

proximidade sincera entre eu e eles. Entre os quais, se

poderia ter um diálogo, mas não há verdadeiramente trocas

com o objetivo de se chegar a uma completude, somente o

intuito de atender o que é conveniente para cada um,

segundo seus próprios interesses. Logo, percebo os corpos

voltados para si, conversando consigo mesmos, como

Narcisos que se encantam pela própria imagem, e o verbo é

sempre conjugado em primeira pessoa, o outro nem sequer é

visto.

No entanto, em “Corpo Território”, o “ser” faz-se

presente como lugar numa espécie de marco zero,

semelhante ao ato de atirar uma pedra na água, uma

perturbação simples, primordial, mas que desencadeia uma

série de ondas circulares, que parecem “fugir” desse ponto de

colisão ao se propagarem na água. Deste modo, considero

esse trabalho como ponto de partida, um elemento que

incomoda, mas também reverbera, suscita outras

compreensões.

Esse ensaio fotográfico aponta para um deslocar de

intenção localizada no ambiente urbano. E é nessa cidade

que os desfechos e caminhos indicados por esse processo de

comunicação se mostrarão uma incógnita. Tradicionalmente

este processo pressupõe apenas três elementos: emissor,

mensagem transmitida via um meio e o receptor. Contudo,

destaco aqui a importância daquele que conduz a mensagem,

visto que em “Corpo Território”, meu corpo que se coloca

como meio, como canal, mas não leva uma mensagem

pronta, fechada. Ao contrário, pelo silêncio, questiona qual é o

seu lugar e qual é o seu papel, e principalmente, busca

discutir como essas questões interferem na relação com a

alteridade, com os espaços de passagem, fugidios, efêmeros,

lugares não-casa, que compõem a cidade.

Corpo-território: todo indivíduo percebe o mundo e suas coisas a partir de si mesmo, em última instância, a seu corpo. O corpo é lugar-zero do campo perceptivo, é um limite a partir do qual se define um outro, seja coisa ou pessoa. O corpo serve-nos de bússola, meio de orientação com referência aos outros. Quanto mais livre sente-se um corpo, maior o alcance desse poder de

Page 31: Corpo Silenciado

30

orientar-se por si mesmo, por seus próprios padrões (SODRÉ, 1988, p.123).

E tento imaginar: onde seria na cidade, o lugar da

manifestação do íntimo, do ser? E não como uma resposta,

mas talvez uma possibilidade que surge, considero nesse

processo, o outro como um pujante colaborador, no sentido

de criar, de forma conjunta, novas mensagens, e encher

canais, transbordar comportas, romper compartimentos

obstruídos que impedem o acesso ao seu interior.

Mas como esse interior interfere no exterior e vice-

versa? Como minha subjetividade, minha forma de pensar e

dar sentido às coisas, pode se articular com meu

comportamento diante do mundo? Seriam também muros?

Barreira que por medo ou por visões pré-estabelecidas eu

coloco para mim mesmo e também para os outros?

Figura 09 - Corpo Território A / 2010 / Fotografia / 20 x 60 cm / Foto: François Calil

Page 32: Corpo Silenciado

31

Em “Corpo Território” me coloco de olhos fechados, o

que pode indicar diversas interpretações, como a negação do

ver, em razão de um cansaço visual; ou uma tentativa de

verdadeiramente enxergar as coisas, as pessoas, o mundo.

Nesse sentido, vale lembrar a seguinte afirmação de

Saramago (2004, p. 01): “Só num mundo de cegos as coisas

serão o que realmente são”.

Mas aqui, interesso-me particularmente pelo que os

outros vêem nesses olhos fechados. Como se dá essa

passagem pela porta dos olhos fechados? Seriam eles uma

espécie de espelho, por meio do qual o indivíduo lança seu

olhar e em vez de seu reflexo, alcança o interior? E dessa

forma, os olhos vêem nesse olhar algo que embora pareça

obscuro, ilumina, se desloca do “lugar comum”, vislumbra

outros pensamentos que habitam a mente.

Figura 10 - Corpo Território B / 2010 / Fotografia / 20 x 60 cm / Foto: François Calil

Page 33: Corpo Silenciado

32

Quanto à escolha dos objetos, trabalho com placas de

endereços que foram coletadas pela cidade. Separei um dia

para olhar os muros com mais atenção e procurar possíveis

materiais que pudessem se transformar nessas placas. O

percurso foi realizado principalmente de carro, e durante uma

tarde enchi o porta-malas do carro com tábuas de madeira

(“restos” de construções); latas de tinta que abertas ficariam

planas; conjuntos de forro de mesa de jantar; pedaço de box

de banheiro; quadro negro

escolar; telha de barro, entre outros. E para a produção do

objeto, o pensamento pictórico estava presente tanto em sua

utilização, quanto na escolha da tinta (branca ou preta) que

seria usada para a inscrição dos endereços.

Se antes essas placas eram apenas algo que foi

descartado, inutilizado, substituído pelo novo, ao serem

utilizadas aqui como suporte, tornam-se mais uma afirmação

do lugar, enquanto produtos que expressam, por meio dos

endereços que eu escrevia sobre elas, essa relação não

Figura 11 - Corpo Território C / 2010 / Fotografia/ 20 x 60 cm/ Foto: François Calil

Page 34: Corpo Silenciado

33

necessariamente linear, entre a materialidade daquele lugar

físico e sua representação simbólica, ou seja, não era

obrigatório que endereços das placas remetessem à

localização dos muros, propondo assim possíveis

desterritorializações.

Acredito que o processo se desdobra no campo do

lugar onde desenvolvo essa ação, compreendido aqui não

como algo fixo. Mas que, semelhante aos endereços também

muda, dá ênfase ao eu em detrimento da multidão. Por meio

da dualidade na composição das fotos busco discutir essas

diferenças e peculiaridades, presentes na minha relação com

o mundo. Com lugares que não são absolutamente rígidos,

dependendo da situação ou do contexto, posso ser o eu ou o

outro, assim como posso fechar os olhos para não ver, para

ver, ou para consolidar o que vejo.

2.2 Corpo Receptivo

Pensando na diversidade de mensagens, conteúdos,

paisagens e significados que o corpo está sujeito, no ritmo

acelerado que é a vida cotidiana nas grandes cidades, eu

investigo no ensaio fotográfico “Corpo Receptivo” (Figuras 12,

13 e 14) a condição desse corpo, como imã, repositório desse

excesso desejável ou não de informação, mensagem.

E é essa capacidade receptiva do corpo que trabalho

ao utilizar como objeto uma caixa de correio, fazendo uma

analogia entre o meu corpo e as possibilidades do muro. Essa

caixa pode ter o formato de uma moradia, às vezes é

adornado, tem frequentemente como símbolo um pombo

correio, elemento que completa o sentido desse objeto, como

um local que outrora recebia as mais diversas mensagens,

notícias, contas, avisos, do mundo exterior para o interior, a

casa, o lar, lugar de conforto e segurança.

Para a confecção desse objeto, primeiramente tirei

algumas medidas de minha cabeça para fazer o desenho e

molde da casa de correio, que foi pensada na cor branca,

pelo vazio que causa na imagem, estimulando novos

complementos, físicos ou simbólicos; e também pelo

contraste com o corpo, o que aumenta as possibilidades de

composições pictóricas com o fundo, os muros. Além disso,

tal artefato expressa esse caráter intimista da casa, como um

reduto de virtudes e pelo qual é possível acessar, enviar uma

mensagem ao interior do indivíduo.

Page 35: Corpo Silenciado

34

Figura 12 - Corpo Receptivo A / 2010 /Fotografia/ 30 x 90 cm / Foto: Mário Souza / Edição: Heloá Fernandes

Page 36: Corpo Silenciado

35

Normalmente a caixa de correio é fixada no muro e,

através dela, também alcança o que está “dentro”, como um

fio na fronteira dentro e fora. Diante do muro, toca-se a

campainha, chama-se à porta, bate-se palmas ou grita-se.

Dessa forma, pode-se ou não ser atendido. Contudo, pela

caixa de correio a fissura está sempre aberta, sem qualquer

tipo de restrição, qualquer pessoa pode colocar sua

mensagem. E literalmente ou como uma metáfora, essa

mensagem é depositada, enviada, mas não necessariamente

garante que chegue ao destinatário, que seja compreendida.

Proponho ser uma caixa de correio e receber as

mensagens, notícias, avisos, informações que transitam no

meio urbano. Esse é o ponto de partida para as questões:

Como esse corpo recebe o constante bombardeio de

mensagens urbanas? Como isso reverbera no corpo?

Percebo que muitas mensagens não completam a

caixa no sentido de sua essência, apenas ocupam espaço

com informações desencontradas. Não servem como

alimento para o corpo, ao contrário, sufocam-no, perturbam-

no, e ele permanece num estado cheio de nada, vazio,

descontextualizado.

Dessa forma, neste trabalho, o corpo passa a ser o

interior, o que está dentro do muro, sendo acessado apenas

pela fresta da caixa de correio. Essa abertura do corpo é

limitada, restrita, o que lhe causa desconforto e um estado de

enclausuramento, causado pelo meio externo e suas

convenções, suas relações de poder que reverberam em meu

corpo. Corpo calado que só recebe, não tem voz para opinar

no “jogo da recepção”, pois as regras já estão postas, eu

apenas recebo, não há troca.

Vale destacar, que a caixa ocupa o lugar da cabeça,

esta que por sua ausência é colocado em evidência. Este

corpo se coloca no ato simbólico de receber e armazenar

informações, que serão processadas pela mente, por ligação

direta. Não apenas recebe mensagens institucionais

entregues pelo “carteiro”, mas também mensagens subjetivas

originadas pelo outro, pelo contexto urbano.

Page 37: Corpo Silenciado

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Figura 13 - Corpo Receptivo B / 2010 / Fotografia / 30 x 90 cm/ Foto: Mário Souza / Edição: Heloá Fernandes

Page 38: Corpo Silenciado

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Figura 14 - Corpo Receptivo C / 2010 / Fotografia /30 x 90 cm /Foto: Mário Souza / Edição: Heloá Fernandes

Page 39: Corpo Silenciado

38

2.3 Corpo Indivíduo

Neste trabalho, enfatizo um dos pilares da série “Corpo

Silenciado”, que é a comunicação, aqui representada de

forma direta pela antena parabólica, que fixada na parte

superior de um objeto de ferro em formato cilíndrico, é

colocada como uma máscara em minha cabeça, e está

direcionada uma para a outra, num contexto que remete aos

processos de emissão e recepção.

Para a confecção desse objeto precisei uma antena

parabólica em tamanho reduzido, pesquisei em várias

revendas de antenas e ferragistas, mas essa em específico é

uma amostra de vitrine para lojas especializadas, sendo

confeccionada pelas fábricas particularmente para esse fim.

Por isso, a dificuldade em consegui-la, mas isso foi possível

em um estabelecimento mais periférico, no qual o dono

possuía apenas duas unidades, sendo uma mais velha, já

desgastada pelo tempo. Foi exatamente essa que ele me

vendeu. Em seguida, lixei-a e pintei-a de preto para criar uma

espécie de desenho com uma silhueta da parabólica no muro.

Já na máscara de ferro, utilizei sal e sumo de limão para

forçar um processo de oxidação.

Nesse ensaio “Corpo Indivíduo” (Figuras 15, 16 e 17),

os corpos tentam se comunicar. Porém, a máscara na cabeça

se mostra um empecilho, visto que a sobrecarrega, restringe

o espaço de respiro, sufoca-a. Logo, temos uma situação em

que esse corpo é condicionado, a mente fica sobre o efeito de

um zunido perturbador; a cabeça esquenta gradativamente à

exposição do sol e a respiração é dificultada, o que constitui a

condição de silêncio e imobilidade desse corpo diante do

muro.

É possível fazer uma relação entre a rigidez do ferro

que compõe a máscara, seu peso excessivo, e seu desgaste

pela oxidação com a situação do corpo na

contemporaneidade. As enfermidades causadas pela rotina

massacrante da cidade, pelo excesso de trabalho, por um

eterno cansaço, daquele que é escravo do relógio, refém do

medo e da insegurança.

Page 40: Corpo Silenciado

39

Essa antena parabólica, um dos símbolos da

globalização, conduz-nos a lugares diferentes, muitas vezes

em tempo real, potencializando o acesso à informação, e

também a toda a infinidade de produtos, valores,

comportamentos, subjetividades, e tudo o que pode ser

adquirido, comprado. Essa poderosa comunicação transforma

os indivíduos em uma massa homogênea, meros

consumidores de emoções e relações fugidias. Nesse

sentido, Bourriaud (2009) compara a comunicação com a

atividade artística, no que concerne à sua influência nos

vínculos humanos.

Figura 15 - Corpo Indivíduo A / 2011/ Fotografia / 60 x 180 cm / Foto: Vinícius de Castro / Edição: Heloá Fernandes

Page 41: Corpo Silenciado

40

Hoje, a comunicação encerra os contatos humanos dentro de espaços de controle que decompõem o vínculo social em elementos distintos. A atividade artística, por sua vez, tenta efetuar ligações modestas, abrir algumas passagens obstruídas, pôr em contato níveis de realidade apartados. As famosas “auto-estradas de comunicação”, com seus pedágios e espaços de lazer ameaçam se impor como os únicos trajetos possíveis de um lugar a outro no mundo humano. Se por um lado a auto-estrada realmente permite uma viagem mais rápida e eficiente, por outro ela tem o defeito de transformar seus usuários em consumidores de quilômetros e seus derivados. Perante as mídias eletrônicas, os parques recreativos, os espaços de convívio, a proliferação dos moldes adequados de sociedade, vemo-nos pobres e sem recursos, como o rato de laboratório condenado a um percurso invariável em sua gaiola, com pedaços de queijo espalhados aqui e ali. Assim, o sujeito ideal da sociedade dos figurantes estaria reduzido à condição de consumidor de tempo e de espaço [...] (BOURRIAUD, 2009, p.11) (grifo do autor)

Também é possível relacionar esses limites impostos

ao “Corpo indivíduo” com os limites que a comunicação

impõe, pois apesar de apresentar um rico universo de

imagens, textos, conteúdos e divertimentos, as possibilidades

já estão delimitadas, não é possível trilhar outros caminhos,

porque o conteúdo é dado, formatado, completamente

mastigado, basta apenas engoli-lo, sem precisar sair de casa,

sem precisar conversar com as pessoas, é necessário apenas

apertar o controle remoto. Portanto, acredito que essa

comunicação é fragmentada, atingindo o indivíduo apenas

como consumidor viciado, sempre à espera de um novo

produto, que é o mesmo, com outras roupagens.

Os meios de comunicação constituem uma espécie de muro de linguagem que propõe ininterruptamente, modelos de imagens nas quais o receptor possa se conformar – imagens de unidade, imagens de racionalidade, imagens de legitimidade, imagens de justiça, imagens de beleza, imagens de cientificidade. Os meios de comunicação falam pelos e para os indivíduos (GUATTARI & ROLNIK, 1996, p.58).

Por que usar a máscara? Por que não aparecer de

“cara limpa”, sem intermédios? Além de uma escolha

conceitual, o uso dessa máscara que também pode ser

considerada um muro, vincula-se com meus sentimentos,

minhas angústias, meus medos. Utilizo dessa “máscara” para

expor e discutir sobre o que me inquieta nas conexões

humanas, presentes no ambiente urbano.

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Figura 16 - Corpo Indivíduo B / 2011/ Fotografia/ 60 x 180 cm/ Foto: Vinícius de Castro/ Edição: Heloá Fernandes

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Figura 17 - Corpo Indivíduo C / 2011/ Fotografia/ 60 x 180 cm/ Foto: Vinícius de Castro/ Edição: Heloá Fernandes

Page 44: Corpo Silenciado

43

2.4 Corpo em Segredo

Branco da máscara,

Branco de arma branca, Branco que corta a língua,

Branco de silenciar, A forma é branda.

(Dalton Paula)

Em “Corpo em Segredo” (Figuras 18, 19, 20 e 21),

foram utilizadas fita isolante preta e veda rosca branca para

confecção das máscaras em meu rosto. Elas comprimiam

minha musculatura, dificultando a fala e a respiração, sendo

esta possível apenas pela boca, por meio de um exercício de

inspiração e expiração ora curto, ora compassado. Também

essa estratégia foi usada para evitar que eu me desesperasse

e entrasse em pânico.

Envolvida por fita veda rosca, pela frieza do branco, do

aspecto de pureza, clareamento, onde facilmente a luz é

refletida, a face permanece vedada e velada, obstruída de

mostrar segredos, encantos e desencantos. Essa fita impede

os movimentos faciais, faz a musculatura ficar contida e a fala

dificultada, esta que se silencia por completo com a chupeta,

forma aparentemente branda, maneira sutil de ludibriar esse

corpo, assim como se engana uma criança.

Corpos adultos tratados como crianças, ingênuas, sem

dar atenção para o discurso. Nem sequer as escutam, vêem-

nas como incapazes, incapazes de compreender e dizem: “É

apenas uma criança! Dê a chupeta para ela se calar!”

Neste trabalho, desenvolvo processos pictóricos

intensificando a apropriação e a composição pictóricas de

materiais como fitas veda rosca e isolante, os muros e meu

próprio corpo. Com relação à cor, coloco esse corpo de

discurso em branco, como uma alusão à existência de algo,

que foi apagado, e agora a mensagem está em branco. Além

disso, ressalto algumas articulações com as especificidades

dos materiais usados, como a fita veda rosca, que é usada

para impedir o vazamento e garantir o fluxo contínuo da água,

aqui comparado aos canais de comunicação, que também

algumas vezes são vedados por elementos que agem como

essa fita, impedindo, impossibilitando a comunicação. Porém,

também é possível considerar esses vazamentos como as

novas possibilidades de acesso ao outro, utilizando caminhos

alternativos, janelas, frestas ou pequenas fissuras.

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44

Figura 18 - Corpo em Segredo B / 2011/ Fotografia/ 10 x 90 cm / Foto: François Calil / Edição: Heloá Fernandes

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45

Figura 19 - Corpo em Segredo P / 2011/ Fotografia/ 10 x 90 cm / Foto: François Calil / Edição: Heloá Fernandes

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46

A cabeça funde-se ao muro, passa por um processo de

enrijecimento, rigidez, adquire status de escultura, o corpo

aparece com mais evidência num vazio frio que incomoda,

gera uma tensão pela ausência de algo a completá-lo. Branco

do muro e o branco da fita, o que os unem e os diferem?

Branco dos hospitais, cabeça enfaixada, não é atadura, mas

está na cabeça, será outro plano de enfermidade, que lida

com lado psíquico, no esvaziamento do indivíduo?

Em “Corpo em Segredo” ressalto o corpo negro como

veículo de comunicação, objeto de corte na minha vida, no

sentido de proporcionar um estranhamento, possibilitar uma

experiência de silêncio, compressão física, sufocamento,

enclausuramento no meio urbano e também em si mesmo,

como já indicado.

As fitas que geralmente isolam e contêm o fluxo dos

vazamentos, tomam conta da cabeça, que se mistura com a

cor dos muros, fazendo um jogo com a cor branca e a

branquitude, a cor preta e a negritude. Apesar de todo o dorso

estar desnudo, somente a cabeça é ocultada, se mostra como

fundamento para questionar a invisibilidade que é imposta ao

corpo negro, seja pela ausência ou pela máscara.

Essa ênfase dada à cabeça dialoga com o lugar central

que as religiões de matriz africana conferem a tal parte do

corpo. Segundo Prandi (1991, p.125), antes do culto ao deus

vem o culto à individualidade do homem, ao orí, palavra em

iorubá1 que significa cabeça. Tamanha é sua importância que

assim como se dá oferendas aos orixás (divindades), também

se dá comida à cabeça, em um rito chamado borí, que busca

a renovação de forças do indivíduo. Por tal razão é que o

autor enaltece: “não se faz nada para orixá sem antes cuidar

da cabeça”. Há até um provérbio que diz “Ori buruku, kossi

orixá”, ou seja, “cabeça ruim não dá orixá”.

1 Língua ritual do Candomblé.

Page 48: Corpo Silenciado

47

Figura 20 - Corpo em Segredo PB 1 / 2011/ Fotografia/ 30 x 90 cm / Foto: François Calil / Edição: Heloá Fernandes

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Figura 21 - Corpo em Segredo PB 2 / 2011/ Fotografia/ 30 x 90 cm / Foto: François Calil / Edição: Heloá Fernandes

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3. APONTAMENTOS PARA PERFORMANCE

Nessa investigação sobre o corpo silenciado, o

conteúdo e a forma têm adquirido volume, no sentido de

reflexões, projetos e ideias. Desdobramentos que remetem ao

início dos trabalhos e também demonstram de onde vem o

ponto de partida dessa pesquisa. E ao analisar o passado,

vejo que algumas coisas não ficaram bem definidas. Mas

acredito no tempo como uma ótima ferramenta que auxilia

nessa árdua tarefa de repensar, reestruturar, lapidar o que

ainda está incompleto, ou seja, algo a ser entendido.

Questiono-me sobre o que realmente pretendia

naquele momento, agora, e também o que quero para o meu

futuro como artista. Sem dúvida, o trabalho é um excelente

parceiro nessas indagações, pois ele aponta, mesmo que de

maneira indireta para possíveis caminhos. O estado de

sensibilidade também ajuda na captação dessas indicações

que surgem durante o processo, algumas num período mais

curto e outras por períodos maiores.

Sobre esse processo de criação artística, Cecilia

Almeida Sales (2006) afirma que ele é construído como rede,

marcada pela dinamicidade, pela flexibilidade, onde as coisas

possam ser moldadas, a ter um caráter plástico, ou seja, a

obra se apresenta múltipla por meio das séries de rascunhos,

formas de lidar com os roteiros e esboços. O processo da

obra adquire novos aspectos ao longo do caminho, trabalhos

anteriores têm o papel de ser suporte da produção recente,

também histórias cotidianas, livros lidos, todo esse conjunto é

convidado a integrar a obra.

Durante todo o processo desse trabalho, sou

conduzido por esse pensamento do inacabado, percurso pelo

qual sempre tenho algo a acrescentar, cortar e refazer o que

for preciso para que a obra continue vivendo com

profissionalismo, maturidade e força poética na sinceridade

de comunicar com o outro.

Conhecer os procedimentos criativos envolve, sob esse ponto de vista, a compreensão do modo como os processos culturais se cruzam e interagem nos processos criativos: como esses índices culturais passam a perceber as obras em construção. (SALLES, 2006, p.50).

O lugar em que vivo é determinante nos meus

processos criativos. Como por exemplo, em dois momentos

da minha vida, primeiramente quando residia em um bairro

Page 51: Corpo Silenciado

50

mais próximo da zona rural, com chácaras, sítios, gado e

cavalos nos arredores, elementos que de alguma forma

estavam presentes no meu trabalho artístico, este que

recentemente também absorve o contexto urbano, em que

vivo atualmente, na região central de Goiânia. Essas

influências não são necessariamente uma regra no meio

artístico, mas no meu processo são relevantes.

Capto do mundo as questões que me afetam, através

do registro para que o esquecimento não me faça perder esse

material tão valioso, para o desenvolver da obra. Por tal

razão, trabalho com essas lembranças do que foi o fato na

realidade, e as transformo com novas impressões.

O corpo silenciado é um trabalho visual, que surge a

partir das imagens. E nesse processo, a dúvida é fundamental

para não cairmos em armadilhas das soluções prontas, das

certezas. Vejo que para o meu trabalho, em alguns momentos

é importante que eu saia do eixo, do percurso linear, abra-me

para novas possibilidades.

E fazendo uma retrospectiva de todo o trabalho,

observo que o pensamento pictórico foi o condutor para a

fotografia no meio urbano. Foram quatro ensaios fotográficos,

cada uma com sua proposta. Ao sair pelas ruas da cidade

para executar os registros, sentia que essa experiência me

afetava. Estava ali num ambiente urbano, no qual eu e a

equipe de fotografia e, em alguns casos, outros auxiliares,

parecíamos atores. Esse espaço constituído por muros,

calçadas, ruas e outros elementos se assemelha a um

cenário, e os transeuntes e moradores próximos compõem o

público. Foram esses alguns dos ingredientes das ações.

Por mais que a calçada seja pública, quando nos

colocávamos neste lugar causávamos reações e incômodo

aos que viam. Por mais que representasse uma espécie de

protótipo, uma figura inusitada, deslocada de seu lugar

comum (se é que existe esse lugar), era constante a

abordagem do público. Saíam de suas calçadas, distraíam-se

das prosas cotidianas, interrompiam as atividades que faziam

no momento, como por exemplo, varrer a rua ou o

deslocamento diário rumo ao trabalho, para ver e tentar

compreender o que estava acontecendo, o que era aquela

figura com uma parafernália na cabeça e o dorso despido.

Estar naquele lugar, a ação, o ato, tinha uma força que

parecia estar além dos produtos fotográficos. E para mim era

instigante e desafiador me compreender naquele ambiente,

pois sentia que o trabalho pedia que eu explorasse essas

Page 52: Corpo Silenciado

51

possibilidades, vistas ainda superficialmente, mas que tinham

muito a ser desvendadas, exploradas. Decidi então, ouvir

essas “vozes” e realizei uma performance, linguagem que de

acordo com diversos autores, começa a ser utilizada a partir

da expansão e sensibilidade para desdobrar aspectos e

categorias tradicionais, como a pintura.

Dessa forma, o “Corpo Silenciado” assume um caráter

performático, que aqui será tratado como apontamento,

indicação de possíveis desdobramentos em trabalhos futuros,

e visto que a reflexão teórica sobre esse campo exige mais do

que o espaço desta monografia, reitero que abordarei

especificamente alguns conceitos, que considero relevantes

para articular essa proposta, pois além da pintura e da

fotografia, ela se expande para a linguagem da performance.

Ressalto que o ato de pintar tem sido importantíssimo

para esse trabalho num todo. Tal processo me proporciona

uma formação no que se refere aos fundamentos e às

particularidades, que enriquecem o processo criativo, e é

também a base para se pensar ações e utilizar outras mídias

(foto e vídeo).

Ao discutir sobre a utilização do vídeo, Renato Cohen

(2011) afirma que a mera exibição deste não significa que

seja uma performance, para isso é necessário que o vídeo

esteja contextualizado, exibido junto com alguma atuação ao

vivo.

Acerca dessa questão, destaco que a performance “O

Batetor de Bolsa” apresenta duas formas de registro, a

fotografia (já utilizada nos ensaios) e o vídeo, que se

configura como uma possibilidade de acesso ao que foi

apresentado. Também Cohen ressalta a importância do vídeo

como elemento de contato, proximidade com o que

Schechner (apud COHEN, 2011) chama de multiplex code, ou

seja, “o resultado de uma emissão multimídica (drama, vídeo,

imagens, sons etc.), que provoca no espectador uma

recepção que é muito mais cognitivo-sensória do que

racional” (COHEN, 2011, p.30).

Apresento aqui um pouco da experiência do que foi

fazer a performance, e a vinculo com elementos que

constantemente perpassam as séries, reforçando algumas

idéias e questões já abordadas, o que tem me possibilitado

um amadurecimento, e uma maior compreensão dos

conceitos e do próprio trabalho em si, que considero ainda em

processo. Na performance, são explorados objetos que são

símbolos, apresentam códigos sociais na vivência cotidiana.

Page 53: Corpo Silenciado

52

Remetem às pessoas que as utilizam e os papéis sociais que

elas ocupam, bem com aos lugares para os quais são

destinados e dessa forma, também suas cargas simbólicas.

Tais objetos são deslocados e levados a um jogo metafórico

para propor questões, uma tentativa de abstrair aspectos

críticos dos temas propostos.

Em suas reflexões sobre o propósito da arte, Cohen

(2011) questiona se ela deve representar o real, recriá-lo ou

criar outras realidades. E nesse contexto, o autor indica que a

performance acaba atingindo novas situações e percursos,

tênues limites que separam a vida da arte. E deste modo, ele

situa essa linguagem em um âmbito mais amplo, numa

maneira de encarar a arte, de vê-la numa constante procura

por se aproximar da vida, e assim também do que é

espontâneo e natural, constituindo o live art:

“um movimento de ruptura que visa dessacralizar a arte, tirando-a de sua função meramente estética, elitista. A idéia de resgatar a característica ritual da arte, tirando-a de “espaços mortos”, como museus, galerias, teatros, e colocando-a numa posição “viva”, modificadora” (COHEN, 2011, p.38).

Também abordo a perfomance nesse sentido, pois a

relaciono com minha vontade e os caminhos do trabalho para

direcionar as ações, no intuito de buscar na realidade, aquilo

que ela tem de mais pulsante, e que seja capaz de fugir da

representação tradicional.

Na performance, parto do “Corpo Silenciado”, com o

muro e sua natureza pictórica, e adiciono novos elementos:

uma bolsa feminina preta, um cassetete policial, uma calça

social marrom, uma botina bege e uma venda preta nos

olhos. Em tal cenário, coloco o corpo em ação, elaboro uma

metáfora da pinhata (em espanhol, “piñata”), uma brincadeira

tradicionalmente popular no México. Constituída por um

recipiente normalmente de cerâmica envolto por papel

crepom, ela pode ter inúmeras formas, em especial a estrela

de sete pontas, e também personagens de desenho animado.

Tal objeto, que é preenchido com doces e guloseimas, fica

suspenso no ar, numa altura média de 2 metros; e o jogador,

de olhos vendados tenta acertá-lo com um porrete,

espalhando os doces por todo o local. Apesar de ser mais

comum entre crianças, adolescentes e adultos também

participam desse jogo, que no Brasil é conhecido como

quebra-panela ou quebra pote. Normalmente no tradicional

Page 54: Corpo Silenciado

53

sábado de aleluia, também fazemos uma brincadeira

semelhante, a malhação do Judas, na qual se suspende um

boneco em tamanho aproximado ao corpo humano, que é

esbofeteado, desfigurado, e até mesmo queimado.

Em “O Batedor de Bolsa” (Figura 22) trabalho com o

cassetete e a bolsa como extensões do corpo, do eu e do

outro, prolongamento simbólico, material e subjetivo do

desejo, imaginações, ações e reações do corpo na vida

cotidiana.

Nesse sentido, faço uma analogia entre essa relação

com a alteridade e uma ampulheta, que aqui possui em seu

interior não apenas areia, mas também o eu e o outro, e com

o transcorrer do tempo, senti-me sufocado, soterrado pela

areia, que simboliza todas essas ações vivenciadas no

cotidiano e com as pessoas. No entanto, como uma reação a

tudo isso, tal corpo precisa ser “virado”, para assim como

essa ampulheta imaginária, que recomeça a registrar

novamente o tempo, ele possa reagir, se renovar.

Só percebi essa reação do “Corpo Silenciado” no

processo de edição do vídeo, o que me causou bastante

surpresa, pois aquele corpo que outrora estava sempre

estático, em uma postura rígida, que se expressava pelo

silêncio, agora se movimenta, e mesmo com os olhos

vendados, reage pela dinâmica das expressões corporais,

murmúrios gemidos, reações agressivas.

Optei pelo cassetete por ser um instrumento de coação

e para usá-lo tive que me apropriar dessa força, dessa

energia violenta, porém de forma metafórica, pois essa ação,

embora desordenada, já que estou de olhos vendados e

tonto, se configura como uma resposta subjetiva à violência

simbólica. E independente de ser bom ou mau, tal ato se

estabelece de fato, marca sua existência, registrada em foto e

vídeo.

Penso o cassetete como extensão de meus membros

superiores, parte de um corpo que se manifesta diante de

provocações feitas pelo outro. E desse modo, reajo

involuntariamente, de maneira irracional. Tal prolongamento

de meu corpo também foi um aspecto marcante na escolha

desse objeto, feito de madeira, de cor escura. E por ser

pesado e volumoso exigiu um maior vigor físico, gerando

movimentos bruscos, estes que além de tentar atingir a bolsa,

golpeiam o ar e o muro, já que esse corpo perdeu seu eixo,

por estar tonto e impossibilitado de ver. Porém, essas ações

apesar de parecerem desmedidas indicam uma imprevista

Page 55: Corpo Silenciado

54

reação desse corpo contra o muro, de maneira literal e

também simbólica, pois esse mesmo corpo confuso não

apenas acerta a bolsa, atinge o muro, o limite, rompe a

espacialidade determinada.

A bolsa preta e o muro branco dialogam no que se

refere novamente à pictorialidade, aqui também com um

sentido metafórico, pois é usada para discutir as relações de

poder e a questão racial. Ao ocupar uma posição superior,

acima do corpo, a bolsa estabelece uma relação vertical,

considerada como uma ignição, despertar dessa

performance. E no que concerne ao racismo, considero que

essa performance expõe de maneira reflexiva a postura

daquele corpo, que não é meramente indivíduo, e “joga” com

a lógica racista. Aqui o batedor de bolsa revida o medo e

violência, física e simbólica, que a sociedade muitas vezes

apresenta como justificativa para excluí-lo, aniquilá-lo.

Ressalto que essa bolsa estava repleta de objetos,

doados por várias pessoas, e exatamente por essa

capacidade de guardar itens tão íntimos, é que faço analogia

com o que guardamos em nossa subjetividade. E ao golpear

essa bolsa, meu corpo tenta atingir também um universo

interior, onde estão guardados nossos medos e inseguranças,

assim como preconceitos e estereótipos.

Esse corpo “O Batedor de Bolsa” é fruto de vários

desdobramentos trabalhados na série “Corpo Silenciado”, que

apresenta um processo de perda da individualidade, no que

se refere particularmente aos olhos, protagonistas neste

trabalho. Pois, se em “Corpo Território” o rosto é visível, os

olhos estão fechados. E é exatamente esse rosto, enquanto

expressão máxima do indivíduo, que é posteriormente

ocultado em “Corpo Receptivo”, “Corpo Indivíduo” e “Corpo

em Segredo”, como uma estratégia de colocar o corpo em

evidência, trazer à tona seus anseios, angústias e conflitos,

reiterar sua humanidade, com a qual enfrenta, coloca-se para

além das classificações, rompe o estabelecido, assume-se e

impõe uma reflexão a quem o vê.

Ao me colocar em situações que também geram um

questionamento pessoal, compartilho com o receptor essa

transformação, experienciada através de um personagem,

uma “máscara” que me possibilita questionar, proporciona-me

a licença poética que para mesmo que num plano simbólico,

eu possa contestar, expressar aquilo que enquanto indivíduo

não me é permitido fazer. Exatamente por essa relação com

Page 56: Corpo Silenciado

55

minha história de vida, é que esse trabalho pode ser

considerado dentro das classificações de perfomances

apontadas por Cohen (2011), como a do tipo “organização

pelo self”, na qual o motor da perfomance é o ego pessoal do

artista.

Na performance, o vídeo capta intervenções do

público, como risos e deboche sobre a ação. Tais reações

também podem ser utilizadas como elemento de reflexão para

inúmeras questões e situações que efetivamente exigem uma

postura séria, de atenção e respeito, mas são reduzidas à

brincadeira, a um tipo de humor que se mascara no

engraçado, no exótico. Porém, nas entrelinhas desqualifica,

invisibiliza o outro. Desejo entrar nesse lugar, onde as coisas

são convenientemente colocadas em estado de dormência, e

assim tentar mostrá-las.

Menciono esse corpo que historicamente é marginal,

aquele que é colocado, considerado à margem da lei e da

representação, é invisível aos olhos da sociedade, mas tenta

mostrar-se nesse cenário urbano, com muros, sons, pessoas

e o ritmo acelerado da vida cotidiana.

Page 57: Corpo Silenciado

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Figura 22 - O Batedor de Bolsa / 2011 / Fotografia/ 60 x 270 cm/ Foto: Mário Souza/ Edição: Heloá Fernandes

Page 58: Corpo Silenciado

57

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse trabalho me propus a discutir três áreas do

vasto campo das artes: a pintura, a fotografia e a

performance. Categorias tão significativas e complexas, que

me fazem ciente de que mesmo que eu as tratasse

individualmente neste trabalho, ainda seria insuficiente para

contemplar sua amplitude.

Assumo o risco de articular essas três linguagens ao

tratar de alguns conceitos que remetem à contemporaneidade

e suas principais características, como a hibridização das

linguagens, das relações e acontecimentos; e a velocidade

cada vez maior, o que impossibilita o permanente, confirma

um caráter efêmero do momento em que se vive.

Considero que em “Corpo Silenciado”, a pintura, a

fotografia e a performance se complementam, formam uma

rede, um todo que dialoga com a pictorialidade, com o

silêncio, com o instante fotográfico, com o universo que me

interpela cotidianamente na cidade, com meu corpo, minha

subjetividade.

Fazer um estudo sobre a minha produção artística foi

um peso, um desafio que me impôs dizer, verbalizar e expor o

que realmente movia o trabalho, isso foi muito doloroso para

mim, senti-me desprotegido. E sem a antena, a caixa de

correio e as fitas, tive que colocar minha individualidade à

mostra, assim como também expus meus medos. Essa dor

que é risco e impulso move o desejo e o sentido, fazem-me

pensar e sempre me abrir para o inesperado.

Senti muita dificuldade em dialogar com os autores as

questões mais íntimas do meu trabalho. O que parece se

configurar apenas um assunto, ou uma mera temática para

esses estudiosos, são para mim algo mais complexo, antes

de fazer parte desse processo de criação artística, elas fazem

parte da minha história de vida. Senti-me cercado por alguns

obstáculos, numa situação ambígua, como se a qualquer

momento segredos pudessem ser revelados, pudessem vir à

tona, semelhante a uma caixa de Pandora.

Tento falar sobre sentimentos que nem todos

vivenciam, ou sequer compreendem, aliás, podem até achar

que sou louco, uma pessoa fora de órbita, pois muitos

acreditam que racismo não existe, ou então ele está apenas

na minha cabeça. Isso gera um conflito turbulento em meu

interior. Então, pergunto-me: qual é o nome desse incômodo

frequente que me aflige?

Page 59: Corpo Silenciado

58

RESULTADO: em alguns momentos, acredito

realmente que estou ficando doido com essas situações.

Exatamente por mexer com pontos tão cruciais, escolho

muitas vezes fugir do assunto, calar-me, opto pelo silêncio.

Mas deixar de falar é se omitir, e isso seria uma afronta

aos meus ancestrais, eles jamais me perdoariam. Diante

disso, resolvi usar o discurso do silêncio como uma forma de

questionar, expor a dúvida.

Consegui acalmar minha consciência e também pude

assumir meu corpo negro, minha história. Discuto a minha

condição de invisibilidade, reflito sobre a minha subjetividade,

mas que também diz respeito a muitas outras pessoas, utilizo

o pessoal como uma porta de entrada para o político. E esse

propósito, que caminha pelos ensaios fotográficos,

literalmente se expande na performance, ganha movimento,

enfrenta o muro, o limite imposto, reage e faz ecoar seu

gesto, sua força.

Portanto, vejo esse estudo de forma análoga à minha

produção artística, como resultado da intersecção de vários

processos, de suas relações com as linguagens, com os

conflitos que envolvem todo um trabalho ainda em

andamento, ao qual são exigidas respostas. E exatamente

por ser o sujeito da ação é que para além de ter que formatar

um entendimento completo, penso nos desdobramentos que

estão por vir, nas possibilidades e nas dúvidas que o universo

artístico pode me indicar. Diferente do muro de imagens

prontas vislumbro filetes de água, que embora aparentemente

modestas, são capazes de subverter, ultrapassar os limites.

Page 60: Corpo Silenciado

59

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Page 62: Corpo Silenciado

61

ANEXO A – Vídeo da Perfomance “O Batedor de Bolsa” 2.

2 Este vídeo também está disponível para download no link: http://www.4shared.com/video/TXfwmTAg/O_Batedor_de_Bolsa.html