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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA UNIFOR Vice-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação VRPPG Mestrado em Psicologia MARIA EDVÂNIA DE ARAÚJO LEITE CORPO DEPRIMIDO: Um Estudo sobre Corpo Vivido e Depressão sob a Lente da Fenomenologia de Merleau-Ponty DEPRESSED BODY: A Study about Lived Body and Depression under the Prism of Merleau-Ponty’s Phenomenology Fortaleza Universidade de Fortaleza UNIFOR 2009

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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA – UNIFOR Vice-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação – VRPPG Mestrado em Psicologia

MARIA EDVÂNIA DE ARAÚJO LEITE

CORPO DEPRIMIDO: Um Estudo sobre Corpo Vivido e Depressão sob

a Lente da Fenomenologia de Merleau-Ponty

DEPRESSED BODY: A Study about Lived Body and Depression under the Prism of

Merleau-Ponty’s Phenomenology

Fortaleza Universidade de Fortaleza – UNIFOR

2009

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MARIA EDVÂNIA DE ARAÚJO LEITE

CORPO DEPRIMIDO: Um Estudo sobre Corpo Vivido e Depressão sob

a Lente da Fenomenologia de Merleau-Ponty

DEPRESSED BODY: A Study about Lived Body and Depression under the Prism of

Merleau-Ponty’s Phenomenology

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado

em Psicologia da Universidade de Fortaleza –

UNIFOR, como requisito parcial à obtenção do

título de Mestre em Psicologia.

Linha de Pesquisa: Produção e Expressão

Sociocultural da Subjetividade

Orientadora: Profª. Dra. Virgínia Moreira

Universidade de Fortaleza

Fortaleza

Universidade de Fortaleza - UNIFOR 2009

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Imagine a pior dor que existe, que você já sentiu...E a depressão é dez vezes mais!

Mauro – Sujeito Colaborador

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AGRADECIMENTOS

A gratidão é a base para uma existência plena e feliz!

Obrigada a todos que se fizeram presentes em minha vida e me

acompanharam nesta jornada:

À Profa. Virgínia Moreira, por criar um espaço de “Apheto” na orientação deste

trabalho.

Aos membros da banca examinadora Profª Drª Iaraci Advíncula e Prof. Dr.

Georges Boris pela valorosa contribuição a esta pesquisa.

Aos participantes do APHETO - Laboratório de Psicopatologia e Psicoterapia

Humanista Fenomenológica Crítica, pela parceria no aprendizado.

À Coordenação do Mestrado em Psicologia, na pessoa do Prof. Henrique

Figueiredo Carneiro, pelo exemplo de dedicação e incentivo à pesquisa.

Aos Professores do Mestrado em Psicologia, pela presença inspiradora.

À Caroline Vasconcelos, pela presença marcante e parceria dedicada que

resultaram em descobertas, ideias e avanços na construção desta pesquisa.

À Regina Cláudia Eufrásio, pela amizade conquistada, pelo apoio e incentivo

nos momentos mais difíceis deste percurso.

Ao Serviço de Psicologia Aplicada da UNIFOR, por permitir a realização desta

pesquisa.

Aos sujeitos colaboradores desta pesquisa, pelo desprendimento em dividir

suas experiências e me permitirem compreender melhor o fenômeno do corpo

deprimido.

Ao meu marido Wesley, pela compreensão, apoio, generosidade e paciência.

Aos meus filhos Mariana e João Marcos, pela presença inspiradora em minha

vida.

À FUNCAP, pelo apoio financeiro.

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RESUMO

Esta pesquisa tem como objetivo compreender e discutir o significado da experiência vivida do corpo deprimido, investigando o fenômeno da depressão no corpo vivido ou corpo próprio, sob a lente da Fenomenologia de Merleau-Ponty (1945/2006). A relevância deste tema consiste na importância que o fenômeno da depressão vem atingindo na atualidade, sendo alvo de crescente preocupação, devido à sua incidência e ao aumento dos índices epidemiológicos (Nascimento, 1999; Lafer & Amaral, 2000; WHO, 2008). Ao compreender tal fenômeno do ponto de vista da psicopatologia fenomenológica, a dissertação aponta a necessidade de superação do modelo tradicional da psicopatologia, propondo, a partir do contato com a experiência vivida das pessoas deprimidas, um enfoque que priorize a ruptura com o paradigma da dualidade, e que não conceba o homem como um organismo puramente biológico, mas imbricado em sua história e sua cultura. Para atingir os objetivos propostos, foi realizada uma pesquisa qualitativa, utilizando o método fenomenológico mundano – que toma por base a Fenomenologia de Merleau-Ponty. A pesquisa revelou que o fenômeno da depressão é de difícil descrição pelos pacientes, e que eles a reconhecem a partir de sinais do seu corpo. No entanto, a noção de corpo de tais pacientes consiste na divisão em mente e físico, o que prejudica a sua correlação entre corporeidade e existência. Os depoimentos dos sujeitos colaboradores revelaram ainda: que a depressão é considerada um fenômeno exterior ao sujeito; que a postura e o ritmo corporais de tais sujeitos é marcado pelo isolamento, pela lentidão e pela estagnação; que eles vivem uma relação paradoxal com a morte; que a sua autoestima e o seu valor pessoal encontram-se profundamente comprometidos; que eles carregam um sentimento de despotencialização e de culpa e que estabelecem uma barreira na sua relação com o outro. Concluo que o olhar para o corpo deprimido sob a lente da Fenomenologia de Merleau-Ponty pode contribuir para uma compreensão da depressão como expressão da existência dos indivíduos não apenas como um conjunto de sintomas marcado por circunstâncias orgânicas.

Palavras-chave: Depressão; Fenomenologia; Psicopatologia Fenomenológica; Corpo Próprio; Experiência vivida; Corpo deprimido.

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ABSTRACT

This research has as its objective to comprehend and discuss the meaning of the experience lived in the depressed body, investigating the phenomenon of depression in the lived body or the own body, under the lens of Merleau-Ponty‟s Penomenology (1945/2006). The relevance of this subject consists in the importance of the phenomenon of depression has acquired in the present days, which is a target for increased preoccupation, due to its incidence and the increase in the epidemiologic indexes (Nascimento, 1999; Lafer & Amaral, 2000; WHO, 2008). When such phenomenon is comprehended under the point of view of the phenomenological pathology, the essay points towards the necessity of overcoming the standard model of psychopathology, proposing, from the contact with the lived experience of the people with depression, an approach which gives priority to the rupture with the paradigm of duality, and one that does not conceive man as a purely biological organism, but imbricated in one‟s history and culture. To attain the proposed goals, a qualitative research was conducted, using the mundane phenomenological method – which is based on Merleau-Ponty‟s Phenomenology. The research revealed that the phenomenon of depression is difficult to be described by the patients, and that they recognize it through the signals in their body. However, the concept of body of these patients consists in the division between body and mind, which hampers the patients‟ correlation between corporality and existence. The testimonies from the collaborating subjects also revealed: depression is an external phenomenon to the subject; the body posture and the body rhythm of the subjects is marked by isolation, retardation and stagnation; they live a paradoxical relation with death; their self-esteem and personal value are deeply compromised; they carry a feeling of unpowerment and guilt and they establish a barrier in their relationships with other people. The conclusion is that the view of the depressed body through the lens of Merleau-Ponty‟s Phenomenology can contribute to the understanding of depression as an expression of the existence of individuals not only as a group of symptoms marked by organic circumstances. Keywords: Depression; Phenomenology; Phenomenological Psychopath; Own Body; Experience Lived; Depressed Body

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................... 10

1. O DIAGNÓSTICO DOS TRANSTORNOS DEPRESSIVOS NA ATUALIDADE ................................................................................ 22

1.1 Os Modelos Classificatórios Hegemônicos ............................. 22

1.2 O Diagnóstico em uma Perspectiva Fenomenológica ............. 32

2 DEPRESSÃO: COMPREENSÃO FENOMENOLÓGICA .............. 41

2.1 A Descrição do Typus Melancholicus de Tellenbach e a Compreensão do Transtorno Depressivo na Atualidade .......... 41

2.1.1 O endon e a endogeneidade ....................................... 43

2.1.2 O typus melancholicus ................................................ 47

2.2 A Contribuição da Psicopatologia Fenomenológica de Arthur Tatossian: Da Melancolia à Experiência Vivida da Depressão .. 52

2.2.1 A natureza da experiência melancólica ........................ 56

2.2.2 O Corpo vivido na melancolia ....................................... 57

2.2.3 O Tempo vivido na melancolia ..................................... 59

2.2.4 A Existência no espaço vazio ....................................... 61

3 CORPO E EXISTÊNCIA: DO CORPO FENOMENOLÓGICO À NOÇAO DE CORPO PRÓPRIO EM MERLEAU-PONTY ...............

63

3.1 A Compreensão Fenomenológica do Corpo ............................. 63

3.2 Corpo como Existência: Uma Introdução ao Pensamento de Merleau-Ponty na Obra “Fenomenologia da Percepção” ..........

68

3.2.1 Considerações sobre o corpo objeto na fisiologia e na psicologia ........................................................................

71

3.2.2 A experiência do corpo próprio ......................................... 77

4 MÉTODO ............................................................................. 84

4.1 A Pesquisa Qualitativa ............................................................. 85

4.2 O Método Fenomenológico ..................................................... 88

4.3 O Método Fenomenológico Crítico .......................................... 91

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4.4 O Local da Pesquisa ............................................................... 95

4.5 Os Sujeitos Colaboradores da Pesquisa ................................ 97

4.6 O Instrumento de Pesquisa: A Entrevista Fenomenológica .... 101

4.7 A Análise Fenomenológica Mundana ..................................... 103

5 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS .............................

106

5.1 O Significado da Depressão e os Sinais do Corpo .................... 108

5.2 O Corpo Dividido ..................................................................... 113

5.3 A Depressão como um Fenômeno Exterior ............................ 116

5.4 A Postura e o Ritmo do Corpo Deprimido .................................. 119

5.5 O Paradoxo de Querer Morrer ................................................. 125

5.6 Auto-estima e Valor Pessoal .................................................... 129

5.7 O Corpo sem Poder: Impotência, Insegurança, Incapacidade e Fragilidade ..............................................................................................

132

5.8 O Corpo que Carrega Culpa ...................................................... 134

5.9 O Corpo que é um “Ser-para-o-Outro” ...................................... 136

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................. 142

REFERÊNCIAS ................................................................................... 147

ANEXOS ............................................................................................... 151

Termo de consentimento livre e esclarecido .................................. 152

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INTRODUÇÃO

A mitologia grega gerou inúmeras histórias e imagens que tentam

retratar os conflitos internos da humanidade, seus temores e aspirações. Por

meio de figuras mitológicas, desenha-se o formato da experiência humana,

com seus dilemas e paradoxos, e a contínua busca de desvendar o grande

mistério da vida. Atuando como psicoterapeuta com formação em psicoterapia

humanista-fenomenológica – uma perspectiva que, utilizando-se da

fenomenologia de Merleau-Ponty, compreende o homem como ser mundano,

ou seja, eminentemente histórico-cultural e enraizado no mundo (Moreira,

2007a) – tenho feito contato com pessoas que sempre me lembram os

personagens e os mitos que povoam o universo mítico. Traçar um paralelo

entre tal universo e a escuta psicoterapêutica tem-me auxiliado no contato com

a subjetividade e com a experiência vivida de cada cliente.

Dentre as figuras mitológicas que mais me despertam a atenção, e

com as quais tenho, frequentemente, me deparado na clínica, destaca-se o

mito de Sísifo. Qual é o sentido da existência humana? Esta é uma questão

que nos ronda e para a qual nem sempre encontramos resposta. No mito de

Sísifo, deparamo-nos com um personagem condenado pelos deuses a,

eternamente, realizar um inútil trabalho: empurrar uma pedra até o alto de uma

montanha para vê-la rolar montanha abaixo, pouco antes do final da tarefa,

tendo, em seguida, que recomeçá-la (Brandão, 1986; Villas-Bôas, 1995;

Shinyashiki, 1997). O trabalho de Sísifo retrata um importante aspecto da

existência humana: o grande investimento e esforço empreendido por algumas

pessoas em suas tarefas cotidianas. Neste personagem, o corpo carrega o

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peso da sua existência, que não é mais do que uma inútil sucessão de tarefas

sem sentido. Na minha prática clínica, tenho-me deparado, de forma frequente,

com clientes que retratam sua existência como se realizassem o trabalho de

Sísifo: são as pessoas que descrevem sua experiência vivida de depressão.

Ouvir tais pessoas e fazer contato com sua experiência tem sido uma tarefa

bastante desafiadora, pois parece envolver uma multiplicidade de aspectos,

das mais diversas ordens, na tentativa de descrever tal experiência humana.

Passei, então, a me interessar em conhecer a experiência vivida das pessoas

que são diagnosticadas como portadoras de transtorno depressivo. Mais

especificamente, tem-me chamado a atenção a relação que a pessoa

deprimida estabelece com o seu corpo, o que requer compreender o conceito

de corpo deprimido. É com o corpo que Sísifo realiza sua tarefa. Compreender

o corpo do deprimido pode revelar muito a respeito de tal processo.

A realidade com a qual tenho me deparado na minha prática clínica

é de uma grande incidência de pessoas com diagnóstico de transtorno

depressivo, que têm procurado a psicoterapia a partir de encaminhamentos

médicos como forma de complementar a terapia medicamentosa. Outras o

fazem por livre iniciativa, mesmo que não tenham diagnóstico médico, mas

“contaminadas” por informações adquiridas nos mais variados veículos de

comunicação. O trabalho com tais clientes é bastante desafiador, uma vez que

buscam bem-estar, o que, muitas vezes, descrevem como distante e

inatingível, enquanto descrevem queixas físicas e emocionais, com o objetivo

de se fazerem compreendidos em seu sofrimento.

O fenômeno da depressão tem se destacado na atualidade, como se

pode constatar pela grande quantidade de pesquisas desenvolvidas neste

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campo (Del Porto, 1999; Rodrigues, 2000; Widlöcher, 2001; Maj & Sartorius,

2005; Moreira, 2007b; Baztán, 2008; Facó, 2008; Kehl, 2009), assim como pelo

alto investimento da indústria farmacológica em medicação antidepressiva, cuja

expectativa de resultados vem se tornando cada vez maior. De acordo com a

Organização Mundial de Saúde – OMS (World Health Organization, 2008),

desde a década de 1990, a depressão, considerada a quarta mais cara de

todas as doenças, vem ocupando lugar de destaque no rol dos problemas de

saúde pública. Segundo projeção da OMS, tal síndrome, no ano de 2020, será

a segunda moléstia que mais afetará os países desenvolvidos e a primeira em

países em desenvolvimento (Nascimento, 1999; Lafer & Amaral, 2000; WHO,

2008). Tal estimativa evidencia a gravidade do problema e levanta a questão

sobre se ele seria um fenômeno novo, uma tendência que acompanha o modo

de vida da sociedade contemporânea.

Sabe-se, no entanto, que, apesar dos altos índices epidemiológicos

da atualidade, a depressão sempre existiu (Moreira & Sloan, 2002), pois

atormenta o ser humano desde os primórdios da civilização, podendo ser

observada em descrições na Grécia antiga, há mais de dois mil anos atrás, sob

o nome de melancolia. Vocábulo de origem grega, melancolia deriva de bile

negra, um dos quatro humores da teoria humoral descrita por Hipócrates. A

escola hipocrática relacionava o equilíbrio dos quatro humores (sangue, bile

amarela, bile negra e fleuma) ao temperamento e à personalidade do indivíduo

e o seu desequilíbrio no organismo à propensão a desenvolver uma das quatro

seguintes doenças: mania, melancolia, frenite e paranóia. Assim, a partir da

teoria humoral, a melancolia teve seu significado associado à depressão e ao

medo prolongados, ou seja, pode-se afirmar que, já no século IV ou V a.C. o

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conjunto de sinais e sintomas associados à melancolia eram reconhecidos

como doença (Stefanis & Stefanis, 2005).

Ao longo da história da psiquiatria, essa nomenclatura vem sofrendo

alteração até o termo depressão maior, mais utilizado nos dias de hoje. A partir

dos trabalhos do psiquiatra Emil Kraepelin, entre os anos de 1893 e 1915,

encontramos as noções das quais derivam nossa compreensão atual sobre a

depressão, que estão baseadas em princípios clínicos e anatômicos de

classificação de doenças. (Wong, 2007).

O esforço de compreender o fenômeno da depressão na

contemporaneidade se justifica pelo alto nível de sofrimento que tal transtorno

tem causado ao ser humano, principalmente na cultura ocidental, marcada pela

égide do individualismo (Moreira & Sloan, 2002; Lipovetsky, 2005; Kehl, 2009).

Vivemos em uma cultura que privilegia o consumo, a euforia e a necessidade

de segurança. Neste sentido, parecemos viver um paradoxo: o aumento

contemporâneo da depressão, em uma sociedade onde não parece haver

espaço para tal manifestação, constituindo-se a mesma em um sintoma social

(Kehl, 2009). Variando-se as condições sociais e culturais, parecem emergir

novos sintomas na sociedade contemporânea. Qual o significado de se

compreender a depressão na contemporaneidade como um sintoma social?

Kehl afirma que “as depressões na contemporaneidade, ocupam o lugar de

sinalizador do „mal estar na civilização‟ que desde a idade média até o início da

modernidade foi ocupado pela melancolia” (p. 22). Isto significa que o

recolhimento peculiar aos portadores de transtorno depressivo se encontra em

desacordo com as exigências da sociedade contemporânea, nitidamente

marcada pela velocidade, pela euforia e pelo consumo exagerado. Assim se

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justifica a importância crescente de compreender a depressão na atualidade a

partir da descrição dos sujeitos diagnosticados como portadores de tal

transtorno.

A partir da descrição psiquiátrica, a depressão apresenta-se

clinicamente na forma de experiência afetiva (estado de humor); de uma queixa

(relatada como sintoma); e de uma síndrome definida por critérios

operacionais, entre os quais se configuram: humor deprimido, anedonia –

perda de interesse –, perturbações cognitivas e psicomotoras e sintomas

vegetativos e de ansiedade (Stefanis & Stefanis, 2005).

Na psicanálise, a depressão está associada à obra de Sigmund

Freud “Luto e Melancolia”, de 1917 [1915], onde Freud aborda as correlações

entre a melancolia e o luto. Considerando que, em algumas pessoas, a reação

à perda produz melancolia em vez de luto, suspeita de uma disposição

patológica que possa vir a definir o surgimento de um ou outro processo.

Descreve os traços mentais presentes na melancolia como um desânimo

profundamente penoso, com a cessação de interesse pelo mundo externo,

perda da capacidade de amar, inibição de toda e qualquer atividade, e uma

diminuição da autoestima a ponto de encontrar expressão em autorecriminação

e autoenvilecimento, culminando numa tentativa delirante de punição (Freud,

1917[1915]/1974). Observa, então, que, no luto, estão presentes as mesmas

características, com exceção da perturbação da autoestima. Para a

psicanálise, a distinção entre o investimento que o aparelho psíquico

empreende no trabalho do luto e na melancolia, consiste em que, no luto há a

oposição compreensível que a libido oferece em abandonar a perda do objeto

amado, enquanto que na melancolia a perda muitas vezes é de caráter

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idealizado e absorve o ego de tal forma a gerar uma profunda inibição. Assim,

para esta perspectiva teórica, o luto que não pode ser considerado patológico

já que, concluído o trabalho de luto, o ego encontra-se livre do processo de

inibição. Na melancolia há uma perda objetal retirada da consciência, não

havendo a possibilidade de simbolizá-la recaindo, então, sobre o próprio ego.

Portanto, encontramos na psicanálise a teoria de que “a tendência a adoecer

de melancolia reside na predominância do tipo narcísico da escolha objetal” (p.

255), ou seja, diante da perda idealizada, o ego deseja incorporar a si o objeto

remetendo-se a fase oral do desenvolvimento libidinal.

O fenômeno da depressão tem sido também estudado em seu

aspecto cultural (Kleinman & Good, 1985; Tatossian, 1997/2001a; 1997/2001b;

Moreira & Sloan, 2002; Moreira, 2007b), mostrando que há diversas formas de

manifestação de tal experiência em diferentes culturas. A perspectiva

transcultural ultrapassa a visão biologicista em que se encontram encarceradas

as descrições psicopatológicas que atendem a uma visão biomédica,

predominante no modelo científico hegemônico da cultura ocidental. Kleinman

e Good (1985) criticam a aplicação do modelo nosológico ocidental no estudo

de problemas psiquiátricos em diferentes culturas afirmando que uma postura

universalista, na qual o predomínio do saber recai sobre as culturas mais

favorecidas economicamente, exclui a possibilidade de apreensão da

manifestação do fenômeno psicopatológico em diferentes culturas. Acredito

que tal postura pode comprometer a apreensão do fenômeno psicopatológico,

pois leva à possibilidade de não percepção dos múltiplos contornos de uma

determinada cultura bem como à supervalorização de certas patologias de

outras culturas.

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Encontrei na psicopatologia fenomenológica uma perspectiva que é

marcada pelos estudos acerca do Lebenswelt (mundo vivido) da pessoa em

sofrimento psíquico, ou seja, as imbricações entre fenomenologia e psicologia

tratam do estudo da vida psíquica por intermédio do vivido. Tatossian

(1979/2006) destaca como o início da fenomenologia psiquiátrica a 63º sessão

da Sociedade Suíça de Psiquiatria de Zurique em 25 de novembro de 1922,

marcada pela apresentação dos trabalhos de Binswanger sobre fenomenologia

e de Minkowiski sobre melancolia esquizofrênica. A contribuição deste enfoque

aplicado à psicopatologia reflete a apreensão da experiência psiquiátrica

autêntica que consiste na compreensão do vivido como fenômeno dotado de

sentido, o que vai além da descrição meramente sintomatológica.

Qual o significado da experiência vivida da depressão? A Psicopatologia

fenomenológica trata de responder a tal questão proporcionando uma

importante contribuição para a compreensão do significado do transtorno

depressivo na atualidade por meio do estudo da experiência vivida, que, neste

caso, é a experiência psicopatológica. Ao se referir ao fenômeno da

depressividade, Tatossian (1979/2006) o descreve como uma experiência

global, ou seja, que afeta o indivíduo em seu encontro consigo mesmo com o

mundo e com outrem.

O tema da depressão na contemporaneidade é, portanto, bastante

complexo e exige um estudo que contemple as suas diversas nuanças. Por

conta de meu interesse pessoal e comprometimento com a abordagem

fenomenológica, escolhi discutir tal tema de pesquisa a partir da descrição da

experiência vivida do corpo em depressão. Em minha experiência clínica,

percebo que há, na depressão, um grande investimento no corpo da pessoa

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em sofrimento, pois ela se remete frequentemente ao próprio corpo, ao falar de

si mesma. Passei, então, a refletir acerca da importância da descrição da

experiência vivida da depressão no corpo do paciente, ou seja, que a descrição

do corpo vivido em depressão pode revelar acerca do fenômeno da depressão.

A certeza de que eu havia escolhido um caminho bastante promissor se

confirmou, no entanto, em uma experiência pessoal. Ao conversar com uma

amiga que se mostrava ausente do meu convívio social, há algum tempo, ouvi

o seguinte depoimento, que parecia muito com os de meus clientes: “É um

aperto, uma dor no peito. Minhas pernas não me obedecem. A minha cabeça

parece que vai explodir. O mais interessante é que o médico falou que eu estou

com depressão. Nem eu mesma sabia, mas o meu corpo já sabia”.

Como é possível compreender o fenômeno da depressão no próprio

corpo dos pacientes a partir da lente da fenomenologia? Para a fenomenologia,

o corpo é considerado um construto de grande importância para a

compreensão do ser-no-mundo, pois é a partir dele que o contactamos. Neste

sentido, estudar o corpo do deprimido é fazer contato com a experiência da

depressão, evocando o sentido do mundo ou da história de tal fenômeno em

seu estado nascente (Merleau-Ponty, 1945/2006), ou seja, por meio do seu

próprio corpo. Não trato, aqui, do corpo objetivamente constituído, do corpo

físico, mas do corpo na perspectiva da fenomenologia de Merleau-Ponty,

marcada por um caráter ambíguo, para o qual o homem existe em mútua

constituição com o mundo. O filósofo afirma que “o mundo não é aquilo que eu

penso, mas aquilo que eu vivo” (p. 14), deixando claro seu pensamento em

relação à abertura do homem ao mundo, em uma comunicação constante com

ele, sem que o homem, no entanto, possua o mundo, pois ele é inesgotável.

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A concepção de corpo de Merleau-Ponty (1945/2006) tem lugar central

em sua obra, compreendendo que a interação constante do homem com o

mundo ocorre por meio do seu corpo. Assim, a ideia do filósofo rompe com a

perspectiva dualista presente no pensamento científico moderno, na medida

em que propõe um enraizamento do espírito no corpo, concebendo o homem

como um ser-no-mundo. A obra “Fenomenologia da Percepção” reflete tal

posição existencial, como afirma Coelho Júnior (1991): “voltada para a

compreensão do homem como ser em situação, inextricavelmente ligado ao

mundo” (p. 46). Nesta obra, Merleau-Ponty dá atenção especial ao corpo,

tratado como corpo próprio, noção na qual encontramos sua intenção de

ultrapassar a concepção materialista da ciência positivista, que percebe o

corpo como objeto. Tal perspectiva, o leva a afirmar que “eu não estou diante

do meu corpo, estou em meu corpo, ou antes, sou o meu corpo” (p. 208). As

duas primeiras obras de Merleau-Ponty “A Estrutura do Comportamento” e

“Fenomenologia da Percepção” são fundamentais para compreender sua

contribuição para a psicologia, pois desenvolvem uma crítica filosófica de

temas importantes da psicologia. Dentre tais temas, encontra-se a crítica à

utilização, pela psicologia, do método científico aplicado às ciências naturais,

propondo que a experiência vivida é mais adequada para compreender o

humano, não o experimento científico. A primeira obra, “A Estrutura do

Comportamento”, é dedicada ao estudo do comportamento e as ideias de

Merleau-Ponty rompem com a noção mecanicista e causal do comportamento.

Tais ideias, no entanto, são mais bem fundamentadas na obra “Fenomenologia

da Percepção” – seu mais divulgado livro – no qual o corpo tem lugar de

destaque, sedimentando a ideia de corpo próprio que, não sendo um objeto,

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tem poder de significação. Assim, a fenomenologia de Merleau-Ponty

(1945/2006) lança um novo olhar sobre o homem no mundo, distanciando-se

da postura reflexiva para levar o pensamento na direção do mundo sensível e

propondo uma filosofia que se mantenha no plano pré-reflexivo.

Considero, então, que a discussão do fenômeno da depressão no corpo

como vivido, no corpo próprio, na perspectiva da fenomenologia existencial de

Merleau-Ponty (1945/2006) – desenvolvida de forma clara na obra

“Fenomenologia da Percepção” – é capaz de assegurar a compreensão de tal

fenômeno para além da sintomatologia, ou seja, indo além da abordagem

diagnóstica tradicional, sem, no entanto, negá-la. A proposta é compreender o

fenômeno da depressão, tomando a experiência vivida do corpo do paciente

como mediador de sentido, ou seja, o corpo fenomenológico, que não é o corpo

objetivo, se mostra entrelaçado ao mundo e, portanto, à experiência vivida. É

assim que o fenômeno da depressão pode se submeter a uma compreensão

mais abrangente: a partir do corpo próprio ou da experiência vivida do corpo do

paciente. Acredito que as concepções de ciência, de homem como se-no-

mundo e de corpo próprio, conforme discutidas na obra “Fenomenologia da

Percepção”, estão de acordo com a proposta de minha pesquisa, constituindo

alicerces para a compreensão do fenômeno do corpo deprimido.

Tomando como questão central desta pesquisa o corpo deprimido

na perspectiva da experiência vivida das pessoas que são diagnosticadas

como portadoras de transtorno depressivo, sob a ótica da fenomenologia de

Merleau-Ponty (1945/2006), deparo-me com as seguintes questões: o que

significa ter depressão? A escuta do cliente revela “a depressão que ele tem”

ou “a depressão que ele é”? Investigar o corpo deprimido envolve compreender

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“o corpo que ele tem” ou “o corpo que ele é”? Portanto, considerando a

necessidade de compreender a experiência vivida da depressão na perspectiva

do corpo próprio, descrita por Merleau-Ponty (1945/2006) – mas indo além da

mera sintomatologia – levanto a seguinte questão: como é a experiência vivida

do corpo deprimido?

Esta pesquisa traduz o ponto de encontro entre duas áreas de meu

interesse pessoal: a depressão em seu contexto contemporâneo e o corpo

vivido a partir da fenomenologia de Merleau-Ponty (1945/2006). Na confluência

entre estes dois enfoques, desenvolvo uma escuta da experiência vivida da

depressão no corpo dos sujeitos da minha pesquisa. Para atender a tal

objetivo, foram tomados como aliados teóricos desta pesquisa: a literatura atual

sobre a depressão (Widlöcher, 2001; Moreira & Sloan, 2002; Stefanis &

Stefanis, 2005; Moreira, 2007b; 2009; Kehl, 2009); a psicopatologia

fenomenológica (Tellenbach, 1969/1999; Tatossian, 1979/2006); e a noção de

corpo em Merleau-Ponty (1945/2006). Embora a concepção de corpo esteja

presente em toda a obra de Merleau-Ponty, privilegiei a noção de corpo próprio

conforme é tratada na obra “Fenomenologia da Percepção” (1945/2006).

Diante do exposto, os objetivos desta pesquisa são, assim,

constituídos:

Objetivo Geral:

Compreender o significado da experiência vivida do corpo deprimido.

Objetivos Específicos:

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▪ Compreender o fenômeno da depressão em seus múltiplos

contornos;

▪ Compreender a depressão a partir da perspectiva da

psicopatologia fenomenológica;

▪ Compreender a concepção de corpo de Merleau-Ponty

(1945/2006);

▪ Discutir a perspectiva do corpo deprimido, enfocando a noção de

“corpo próprio” de Merleau-Ponty (1945/2006).

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1. O DIAGNÓSTICO DOS TRANSTORNOS DEPRESSIVOS NA

ATUALIDADE

1.1. Os Modelos Classificatórios Hegemônicos

Os transtornos depressivos têm ocupado um importante lugar na

literatura médica e psicológica, haja vista a grande quantidade de artigos e de

trabalhos, na atualidade, que se referem à prevalência, à cronicidade e ao

potencial de incapacitação e de sofrimento associados a eles (Del Porto, 1999;

Rodrigues, 2000; Widlöcher, 2001; Maj & Sartorius, 2005; Moreira, 2007b;

Baztán, 2008; Facó, 2008; Kehl, 2009). A depressão constitui um construto

diagnóstico complexo, que tem no humor deprimido e na perda de interesse os

principais sintomas, destacando-se, ainda: os sintomas afetivos e as alterações

da esfera instintiva, neurovegetativa, ideativas, cognitivas, da autovaloração, da

volição e da psicomotricidade, dentre outros (Dalgalarrondo, 2000). Ao longo

de nossa existência, todos estamos submetidos a situações e a eventos

desagradáveis, que nos fazem experimentar pesar, tristeza e a sensação de

que seremos alvo de tais sentimentos para sempre. Tal fenômeno, no entanto,

pode ser considerado parte da experiência de vida de qualquer ser humano e

não pode ser confundido com uma condição psicopatológica. Stefanis e

Stefanis (2005) advertem que confundir a depressão – um transtorno

psicopatológico – com a atitude emocional transitória que envolve os dramas

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humanos pode gerar danos à saúde do indivíduo, tornando necessária a

diferenciação entre os dois estados:

em contraste com as respostas emocionais normais a eventos

indesejados e estressantes, a depressão clínica é um

transtorno mental, que devido a sua gravidade, tendência a

recorrência e alto custo para o indivíduo e a sociedade, é uma

condição medicamente significativa que precisa ser

diagnosticada e tratada de forma adequada (p.13).

Assim, para Stefanis e Stefanis, a forma mais adequada de distinguir a atitude

emocional transitória em relação à sua forma clínica é o uso do termo

“transtorno depressivo” (p. 13) para designar sua manifestação psicopatológica.

Percebo que a necessidade de caracterizar e de definir adequadamente o que,

usualmente, se chama de depressão traduz mais uma das nuanças da

preocupação com a dimensão que tal fenômeno vem assumindo na atualidade

e seu reconhecimento como um problema prioritário de saúde pública.

Em consonância com a crescente preocupação epidemiológica do

fenômeno da depressão na atualidade, observo, em minha prática clínica como

psicoterapeuta, um movimento crescente de busca de ajuda por parte de

pessoas que sofrem de transtornos depressivos. O que causa tal fenômeno?

Por que a depressão tem sido considerada a doença da sociedade

contemporânea? Qual o significado do aumento do número de diagnósticos de

depressão no mundo ocidental, na atualidade? Seria isto efeito do

desenvolvimento da indústria farmacêutica na produção e na divulgação de

antidepressivos? Podemos afirmar que o homem contemporâneo está,

particularmente, sujeito a se deprimir?

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Podemos observar que o fenômeno da depressão e suas

correlações com o homem em seu contexto contemporâneo são bastante

complexos. Neste sentido, concordo com Moreira e Sloan (2002), que, ao se

referirem à proposta da psicopatologia crítica, afirmam ser fundamental uma

perspectiva crítica para a devida compreensão do fenômeno psicopatológico,

de forma a abranger sua complexidade e suas determinações múltiplas.

Somente com tal perspectiva, é possível compreender o fenômeno

psicopatológico em suas nuanças culturais e ideológicas. Neste enfoque, o

individualismo é analisado como sintoma social que contribui para a

compreensão do fenômeno psicopatológico na contemporaneidade. Ou seja,

em uma cultura individualista e marcada pelas desigualdades sociais – como é

o caso da cultura ocidental – os sujeitos são mais vulneráveis a manifestações

psicopatológicas que envolvem sua autoestima e seu sentimento de

despotencialização, já que há uma marcante exigência e valorização do

indivíduo autônomo, bem-sucedido e belo pela sociedade. Assim, a depressão

na contemporaneidade, de acordo com tal perspectiva, constitui uma

incapacidade de viver significativamente, ou seja, uma dificuldade de viver livre

das amarras ideológicas impostas por uma sociedade que dita normas de

conduta e bem-estar.

Corroborando com tal ideia, Kehl (2009) discute a depressão como

sintoma social, ressaltando a velocidade alucinante dos acontecimentos da

vida cotidiana e seu contraste com a delicadeza inegociável da vida psíquica.

A experiência do tempo na depressão e o conflito peculiar a ela nascem de tal

contraste. Assim, fica claro o sofrimento psíquico vivido em uma psicopatologia

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na qual o sentimento de tempo estagnado causa um profundo desajuste em

relação à sofreguidão do tempo das sociedades capitalistas.

Face às inquietações que o fenômeno da depressão suscita na

clínica psicológica, é imprescindível que se compreenda e se questione como é

concebida o seu diagnóstico na atualidade, buscando questionar os modelos

classificatórios hegemônicos. Para a psiquiatria tradicional, a depressão é um

transtorno de humor, não constituindo uma entidade clínica única, pois pode

apresentar várias facetas e uma variedade de etiologias (Canale & Furlan,

2006). Tal concepção contribui para a ideia da complexidade do diagnóstico em

psiquiatria e suscita a discussão sobre qual o melhor critério classificatório em

psicopatologia. A psiquiatria tradicional tem buscado modelos classificatórios

cada vez mais precisos, já que observa, nos transtornos depressivos, uma

série de sintomas presentes, também, em outras psicopatologias. Atualmente,

os sistemas classificatórios utilizados são o DSM-IV – Manual Diagnóstico e

Estatístico dos Transtornos Mentais – em sua 4ª edição (APA, 2002) e o CID-

10 – Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas

Relacionados à Saúde – em sua 10ª revisão (OMS, 1993). O DSM-IV (APA,

2002) fornece critérios de diagnóstico para as perturbações mentais e inclui

componentes descritivos no sentido de conduzir ao diagnóstico de tais

perturbações. Neste modelo classificatório, o transtorno depressivo encontra-se

incluído na seção relativa aos transtornos de humor:

os Transtornos de Humor estão divididos em Transtornos

Depressivos (“depressão unipolar”), Transtornos Bipolares e

dois transtornos baseados na etiologia – Transtorno do Humor

Devido a uma Condição Médica Geral e Transtorno de Humor

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Induzido por Substância. Os transtornos depressivos (a saber,

Transtorno Depressivo Maior, Transtorno Distímico e

Transtorno Depressivo Sem Outra Especificação) são

diferenciados dos Transtornos Bipolares pelo fato de haver um

histórico de jamais ter tido um Episódio Maníaco, Misto ou

Hipomaníaco. Os transtornos Bipolares (a saber, Transtorno

Bipolar I, Transtorno Bipolar II, Transtorno Ciclotímico e

Transtorno Bipolar sem outra Especificação) envolvem a

presença (ou histórico) de episódios maníacos, geralmente

acompanhados pela presença (ou histórico) de Episódios

Depressivos Maiores (p. 345).

Na CID-10 (OMS, 1993), as seções de F00 a F99 são dedicadas aos

transtornos mentais e comportamentais, estando os transtornos de humor e/ ou

afetivos incluídos nas seções de F30 a F39. Esta classificação assim designa

tais transtornos:

transtornos nos quais a perturbação fundamental é uma

alteração do humor ou do afeto, no sentido de uma depressão

(com ou sem ansiedade associada) ou de uma elação. A

alteração do humor em geral se acompanha de uma

modificação do nível global de atividade, e a maioria dos outros

sintomas são quer secundários a estas alterações do humor e

da atividade, quer facilmente compreensíveis no contexto

dessas alterações. A maioria desses transtornos tende a ser

recorrente e a ocorrência dos episódios individuais pode

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freqüentemente estar relacionada com situações e fatos

estressantes (p 110).

Compreendo que tais descrições, que compõem os modelos classificatórios

atuais, têm eminentemente como base o modelo biológico e que, apesar da

abordagem mais descritiva, inerente a tais modelos, ainda estão presentes as

características de uma classificação etiológica predominantemente biologicista.

O predomínio da base biológica para a compreensão do fenômeno da

depressão nos remete à antiga dicotomia entre mente e corpo, bem como à

necessidade de definir os limites entre o normal e o patológico.

Os riscos de uma abordagem eminentemente biológica nos furtam de

contatar os aspectos subjetivos, inerentes ao fenômeno psicopatológico. Sobre

tal problema, afirma Facó (2008):

(...) há, atualmente, uma intensa expansão de um movimento

de patologização, tendendo mais a um fisicalismo, em sua

maioria das vezes, reducionista. Em outras palavras, há uma

colagem direta da fisicalidade do corpo, resultando, pensamos,

em um modo limitado de pensar a doença. Por exemplo, no

lugar de refletir sobre a experiência do estar deprimido, do que

isso se trata, (...) como só é apreensível por meio do relato do

sujeito singular, e, ainda assim, impossível de correlaciona-lo

com uma experiência exatamente idêntica a todos aqueles que

são diagnosticados de deprimidos, ultimamente, muitas vezes,

parece bastar o „mise em scène‟ da apresentação de uma

imagem cerebral de um sujeito deprimido, por exemplo, para

que o seu cérebro demonstre o que seja depressão (p.54-55).

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Facó nos põe em contato com uma crítica bastante pertinente quanto ao

modelo biológico da psiquiatria: o rigor do caráter objetivo e suas implicações

no diálogo com outros aspectos indispensáveis à compreensão do fenômeno

psicopatológico, como a sua contextualização cultural, por exemplo. Ainda há

muita controvérsia sobre o diagnóstico devido à diversidade dos sintomas

típicos dos transtornos depressivos e à variabilidade individual com que se

organizam. A psiquiatria clássica tem buscado, ao longo do tempo, o modelo

classificatório mais adequado no sentido de facilitar o seu diagnóstico preciso;

no entanto, ainda há muitas discussões sobre a validade de tais critérios e,

principalmente, sobre os aspectos subjetivos e idiossincráticos dos sintomas.

Como não são conhecidas causas comuns da depressão que permitam uma

classificação de base etiológica, o critério classificatório é baseado apenas nos

seus sintomas e nas suas características clínicas, levando a uma classificação

tipológica, baseada no julgamento.

Widlöcher (2001) destaca a complexidade do fenômeno da

depressão e das diferentes lógicas que têm sido utilizadas na sua

compreensão, no seu diagnóstico e no seu tratamento. Para ele, a posição

dualista entre organogênese e psicogênese na clínica da depressão ainda se

encontra fortemente enraizada na prática clínica. No que consiste tal

discussão? No intuito de compreender o fenômeno psicopatológico, buscam-se

fatores causais que estejam associados a ele, sendo ressaltados os fatores

biológicos ou os psicológicos. A tendência atual, no entanto, é a postura

reducionista, ou seja, limitar a depressão a seus mecanismos biológicos,

tomando os fatores psicológicos por acontecimentos acidentais, sem valor

desencadeante, ou, no sentido inverso, a negação dos fatores biológicos,

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atribuindo uma coerência lógica entre o estado de humor do doente e as

circunstâncias de sua existência. Segundo Widlöcher, o reducionismo é

reforçado pela necessidade de enquadrar a depressão em um modelo causal,

que revela, também, o permanente debate das relações entre o psiquismo e o

corpo. Afirma que,

[...] por detrás do debate teórico entre a organogênese e a

psicogênese se perfila uma posição entre duas formas de

curiosidade científica e dois modos de prática clínica fundados

sobre diferentes tradições de escola e ensinos, mas também

sobre aptidões e gostos intelectuais distintos. [...] a posição

dualista e o debate entre organogênese e psicogênese

testemunham uma mesma dificuldade em aceitar a idéia de

que a ação humana depende igualmente do funcionamento

cerebral e do intercâmbio de informação com o mundo (p. 13).

Widlöcher considera que, de acordo com uma abordagem clínica que se

baseia na manifestação, na constância e na evolução dos sintomas, é

necessário que se detecte os sinais (queixas e comportamentos

característicos) correspondentes ao quadro clínico de uma doença para que

seja elaborado um diagnóstico. Para ele, a observação do doente é

fundamental. No caso da depressão, o processo de diagnóstico é bastante

complexo, uma vez que o deprimido apresenta uma infinidade de queixas e de

características próprias da manifestação da doença, com traços objetivos e

subjetivos que refletem uma condição concreta e individual. Devido a tal

particularidade da depressão – o conjunto de sintomas –, Widlöcher descreve a

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síndrome depressiva como um distúrbio psicopatológico que se caracteriza por

dois traços fundamentais: “a tristeza e a lentificação psicomotora” (p. 28). Para

ele, todas as descrições da depressão enunciam um conjunto de traços gerais

que correspondem a estas duas características, estando os demais sinais

associados a elas.

Ao elaborar sua descrição da tristeza do deprimido, Widlöcher

(2001) afirma tratar-se de um sentimento que impregna todo o mundo subjetivo

do doente. É, portanto, uma tristeza vital, marcada pelo remorso, pela nostalgia

face às recordações do passado, pelo tédio e pelo desinteresse em relação ao

presente e pela apreensão em relação ao futuro, que se apresenta como uma

constante ameaça. A representação de si mesmo encontra-se desvalorizada e

marcada pelo sentimento de incapacidade e de recriminação. A anestesia

afetiva também está presente e marca tanto a relação com os outros quanto o

interesse pelo mundo. A “lentificação motora e de idéias está marcadamente

presente na marcha, na postura e na mímica” (p. 29), pois, no deprimido, os

gestos são lentos, o rosto perde a expressão, a voz perde a modulação e as

respostas são pobres. É visível a lentificação do fluxo das ideias e o

pensamento se arrasta sem vivacidade ou renovação. Entretanto, apesar de

não conceber o diagnóstico de depressão sem que a tristeza vital e a

lentificação psicomotora estejam presentes, Widlöcher adverte para os limites

da abordagem clínica, pois há em diferentes culturas e idiomas,

particularidades diversas para descrever a mesma sintomatologia.

Mais uma vez, me deparo aqui, com a necessidade de compreender

o diagnóstico em psicopatologia e o fenômeno psicopatológico a partir de uma

perspectiva crítica que priorize o contexto cultural e histórico sem perder de

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vista a sua compreensão biológica (Moreira & Sloan, 2002). A prática clínica

fenomenológica em psicopatologia se propõe a ir além dos sintomas e deve ter

como suporte metodológico e teórico uma abordagem que rompa com o

paradigma da dualidade, ou seja, que não conceba o homem apenas como um

organismo biológico ou psicológico. Tal concepção da psicopatologia permite

que ultrapasse a mera classificação sintomatológica:

a fenomenologia, também, pode e mesmo deve fundar uma

psiquiatria universal, na medida em que por método ela se

proíba de separar o sujeito do objeto, o indivíduo do mundo,

mais precisamente, do mundo humano. O vivido

fenomenológico liga indissoluvelmente comportamento exterior

e significação (significado). Contrariamente a uma opinião

difundida, as análises do tempo e do espaço vividos, da

corporeidade e de mundo, no sentido fenomenológico, são

sempre implicitamente análises culturais, porque a

subjetividade é sempre intersubjetividade e historicidade, quer

dizer culturalidade. Isto explica a importância cada vez maior

na psiquiatria fenomenológica da análise do Lebenswelt, do

“mundo da vida”, ou melhor, do “mundo da vida cotidiana”. A

culturalidade humana é onipresente não como cultura abstrata,

coisificada em termos de “fatores culturais” de “dados

culturais”, mas como cultura vivida (Tatossian, 1997/2001a, p.

134-135).

Assim, Tatossian nos convida a incorporar o conceito de cultura vivida, que, no

caso do diagnóstico em psicopatologia, significa adotar uma postura que se

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preocupa em não rotular o indivíduo, mas em tentar identificar o caráter

existencial da experiência psicopatológica, bem como os significados que ele

atribui a tal experiência. Neste sentido, a atitude fenomenológica na

compreensão do processo diagnóstico envolve a possibilidade de compreender

o indivíduo em sua existência, tomando o quadro sintomatológico como uma

forma de expressão no mundo. Sem negar ou negligenciar a importante

contribuição da descrição nosológica dos transtornos mentais, é indispensável

compreender a perspectiva fenomenológica do diagnóstico.

1.2. O Diagnóstico em uma Perspectiva Fenomenológica

Como podemos compreender o diagnóstico e a classificação

psicopatológica do ponto de vista da fenomenologia, abordagem que serve de

suporte teórico-metodológico a esta pesquisa? Considero tal desafio bastante

instigante, uma vez que a tradição fenomenológica a que me vinculo – a

fenomenologia de Merleau-Ponty – tem como característica básica a superação

do pensamento dualista. Assim, como compreender o diagnóstico da

depressão sem incorrer no equívoco de fazer, simplesmente, uma passagem

do modelo médico ao modelo filosófico ou antropológico e desconsiderar o

entrelaçamento entre eles? Para tanto, é fundamental que se busque uma

postura crítica diante de tais modelos sem desqualificar as categorias

diagnósticas e sua importância como trabalho de investigação. Compreendo

que diagnosticar é apenas um dos momentos na compreensão dos fenômenos

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psicopatológicos. A partir daí, pode-se fazer contato com a experiência vivida

da pessoa diagnosticada e, de fato, compreender a sua psicopatologia para

além da sintomatologia (Moreira, 2007a).

Os dilemas entre psicopatologia e diagnóstico foram discutidos por

diversos especialistas (Advíncula, 1992; Tatossian 1997/2001a; 1997/2001b;

Tenório, 2003; Moreira, 2007a). Na perspectiva fenomenológico-existencial,

“fazer diagnóstico é identificar e explicitar o modo de existir do sujeito em seu

relacionamento com o ambiente em determinado momento e os significados

que ele constrói de si e do mundo” (Tenório, 2003, p. 31). Tal postura diante do

diagnóstico reflete o caráter relacional e intersubjetivo da psicologia existencial-

fenomenológica. Advíncula (1992) discute tal postura a partir da abordagem

centrada na pessoa, articulando tal perspectiva ao pensamento da

fenomenologia e do existencialismo. Conclui que o diagnóstico em psicoterapia

é “sempre consequência da vivência intersubjetiva da relação” (p. 93).

Certamente, tal conclusão reflete a posição da abordagem centrada na pessoa

em torno do poder de autodeterminação do indivíduo, o que inviabiliza um

processo diagnóstico fruto apenas da observação pretensamente objetiva. A

experiência subjetiva é, portanto, soberana, e o diagnóstico apenas pode ser

realizado, conforme tal perspectiva, como consequência da relação

intersubjetiva.

Moreira (2007a), partindo da concepção de homem mundano, como

propõe a fenomenologia de Merleau-Ponty – eminentemente histórico-cultural e

enraizado no mundo – entende o diagnóstico como um processo que envolve

movimento, já que, conforme o pensamento ambíguo característico da

concepção do filósofo, as relações entre homem e mundo não são estáticas,

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constituindo uma demarcação de múltiplos contornos. Em tal perspectiva, é

impossível conceber o diagnóstico fechado em si mesmo, mas como uma

possibilidade de leitura do movimento de construção da existência humana.

Finalmente, Moreira propõe a ideia do diagnóstico como processo de

reconhecimento e de compreensão do cliente, não como uma rotulação do

indivíduo, que o insere numa determinada categoria de doença mental.

Encontrei no pensamento de Tatossian (1997/2001b), ao discutir as

relações entre psiquiatria e cultura, uma importante contribuição a postura

crítica em relação aos modelos classificatórios em psicopatologia, mas

questionando o relativismo cultural no que concerne às noções de normalidade

e de anormalidade. Para ele, “a cultura pode influir sobre os quadros clínicos e

sobre a validade das teorias, mas também sobre a definição do normal e

patológico” (p. 139). Ou seja, não se trata de reconhecer um mesmo

comportamento nos diversos contextos, sendo ele apenas diferenciado pela

influência cultural, mas, além disto, de considerar o vivido como fenômeno em

que o horizonte cultural de um comportamento subjetivo faz parte da sua

compreensão. É em tal concepção que se fundamenta uma prática clínica que

não se limita ao sintoma: “[...] uma tal psiquiatria, não pode se ater ao plano do

sintoma e deve operar ao nível da significação que é o que unicamente decide

o que é normal ou anormal e os diversos tipos de normalidade” (p. 133).

Assim como os estudos da psicopatologia fenomenológica, as

pesquisas transculturais, também podem demonstrar em que medida a

investigação do fenômeno psicopatológico com isenção da concepção

naturalista e dicotomizada de mente e corpo pode contribuir para um enfoque

em que a pessoa, não apenas os sintomas, seja priorizada. Destaco, a seguir,

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alguns estudos transculturais nos quais se observa, claramente, tal

perspectiva.

Foi realizado um estudo transcultural com o objetivo de identificar se

há diferenças relacionadas às culturas do Brasil e do Chile quanto ao

significado do corpo vivido na experiência esquizofrênica (Moreira & Boris,

2006). Nesta pesquisa, foi utilizado o método fenomenológico crítico (Moreira,

2004) para compreender o significado da descrição do corpo vivido dos

próprios sujeitos colaboradores – 50 pacientes de ambos os sexos,

diagnosticados como psicóticos esquizofrênico-paranóides (20 no Brasil e 30

no Chile), conforme critério clínico e o DSM-IV. Foram observadas diferenças

entre os sujeitos dos dois países quanto ao significado do corpo vivido na

experiência esquizofrênica, concluindo que há articulação de tal experiência

vivida com aspectos socioculturais. Assim, ao investigar o significado do corpo

vivido na experiência esquizofrênica nas culturas brasileira e chilena, os

pesquisadores tratam de uma questão muito mais ampla: são produzidas

formas distintas de psicopatologia em diferentes contextos socioculturais? Tal

questão reflete a discussão da relação entre psicopatologia e cultura:

já que o adoecimento está atrelado à relação do homem com o

mundo, podemos afirmar que a psicopatologia é uma

expressão do homem mundano, isto é, se constrói a partir de

uma relação de mútua constituição entre homem e cultura,

entre indivíduo e sociedade, na interseção da singularidade

com a universalidade. Investigar a psicopatologia é, portanto,

compreender uma forma de expressão do homem mundano

(Moreira & Boris, 2006, p. 3).

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Tal forma de compreender a psicopatologia traduz um significado bastante

abrangente, uma vez que considera, além dos aspectos biológicos e

sintomatológicos, a história, a cultura, as relações sociais, as estruturas sociais

e econômicas e as normas e crenças dos contextos nos quais estão inseridos

os indivíduos. Tal concepção propõe uma redefinição do conceito de pessoa,

ou seja, do indivíduo inserido e perpassado pela história, pela cultura e pela

sociedade (Moreira & Sloan, 2002). Revê também, a concepção de cultura, que

passa a ser entendida não como sinônimo de mundo, mas como constituinte

dele. Tal concepção da cultura é consoante com a de Tatossian (1997/2001b) –

descrita anteriormente – que, ao destacar a imbricação de cultura e

psicopatologia, critica a posição da psiquiatria ocidental que tem se tornado

uma maneira de a sociedade regulamentar seus desvios, que passam, neste

caso, a serem considerados como da ordem do universal e não culturalmente

constituídos, reforçando a perspectiva individualista e ideológica da

psicopatologia.

Considerados, então, sob tal aspecto, os estudos transculturais

podem contribuir de forma intensa para a construção de um modelo de

compreensão da experiência psicopatológica que supere a concepção de

doença atrelada apenas à sintomatologia. Tais estudos alertam para a

singularidade do fenômeno psicopatológico e para a importância de se realizar

estudos que priorizem a experiência vivida dos sujeitos considerados em sua

mundaneidade, conforme a descrição merleau-pontyana (Moreira & Sloan,

2002).

Deve-se, no entanto, estar alerta para o fato de que não se trata de

dividir a ciência psicopatológica em ramificações que atendam às múltiplas

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manifestações culturais de uma experiência psicopatológica, mas, antes, de

utilizar a etnopsiquiatria como instrumento de compreensão do fenômeno

psicopatológico:

a aquisição etnopsiquiátrica não convida, como alguns

acreditam, a dissolver a psiquiatria em uma miríade de

micropsiquiatrias, onde cada uma seria própria de uma

sociedade como lhe são próprios [de] um código jurídico,

maneira à mesa ou um sistema de parentesco. Trata-se,

sobretudo, de uma solicitação de aprofundar nossa psiquiatria

e liberta-la do que fica especificamente ligado a nossa

cultura: isso leva talvez a fazê-la passar do plano somático ao

hermenêutico (Tatossian, 1997/2001a, p. 136).

Neste sentido, são discutidas, no estudo de Moreira e Boris (2006), as

dimensões culturais da experiência vivida, bem como a concepção da

experiência psicopatológica em sua mundaneidade, ou seja, o seu significado

no mundo, em seus múltiplos contornos, inserindo tal compreensão na

perspectiva de uma psicopatologia crítica.

A psicopatologia tradicional ancora a sua perspectiva de atuação no

modelo etiológico, atribuindo ao indivíduo, ou a um aspecto interno seu, a

origem e a responsabilidade da doença. O enfoque da psicopatologia crítica,

ao contrário, propõe outra compreensão do fenômeno psicopatológico, pois

entende a psicopatologia como mutuamente constituída em seus múltiplos

contornos – não apenas biológicos e psicológicos, mas também, históricos,

sociais, políticos e antropológicos – portanto, culturalmente produzidos a partir

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de processos ideológicos (Moreira & Sloan, 2002). A prioridade passa a ser,

neste caso, o ser humano e a gama de significados que ele atribui ao seu ser-

no-mundo não um rótulo que se aplica ao conjunto de sintomas detectados. Tal

forma de compreender o ser humano e suas manifestações psicopatológicas

transcende o dualismo tradicional de mente e de corpo a que se vincula a

maioria das abordagens científicas modernas. Na perspectiva da

psicopatologia crítica, não há, portanto, um fenômeno externo e outro interno,

ou uma dimensão social e outra individual, pois o ser humano está implicado

no mundo e sua abertura ao mundo histórico e cultural lhe é inerente.

O diagnóstico dos transtornos depressivos, sob tal ótica, pode

contribuir muito para uma compreensão mais abrangente de tal fenômeno.

Neste sentido, a experiência vivida da depressão foi investigada, a partir do

enfoque crítico e transcultural, por Moreira (2007b). Esta pesquisa buscou

compreender as variações culturais de tal fenômeno entre pessoas do Brasil,

do Chile e dos Estados Unidos. Os resultados mostraram variações no

significado da depressão nos três países, corroborando a ideia de que as

mudanças culturais interferem nos processos subjetivos. Outro achado de tal

pesquisa se refere à noção de que tanto o estilo de vida contemporâneo quanto

a situação de opressão econômica e psicossocial contribuem para o

surgimento e a manutenção da depressão.

Fazer contato com o diagnóstico dos transtornos depressivos na

atualidade pode suscitar, ainda, a compreensão da magnitude de tal fenômeno.

Se a depressão é tão antiga quanto a história da humanidade, como se explica

o fato de que seja considerada um fenômeno tão presente na atualidade,

apesar dos esforços de minimizar os seus efeitos? Como explicar o fato de

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que, mesmo com o aumento crescente das pesquisas na área da

psicofarmacologia, a depressão ainda atinja índices alarmantes na atualidade?

Tais questões podem ser mais bem discutidas a partir de uma abordagem que

priorize o caráter ambíguo do fenômeno psicopatológico e considere as

imbricações de seus múltiplos aspectos. Tratada como desordem dos afetos,

pode ser assim classificada pelos sistemas tradicionais (DSM-IV e CID-10) que

ressaltam a distinção entre tais desordens e as desordens do pensamento. No

entanto, associada ao individualismo que impera nas sociedades

contemporâneas, a depressão é marcada pela ordem dos desafetos (Moreira &

Freire, 2009):

ainda que a depressão seja uma doença dos afetos, no seu

sentido mais amplo se dá pela ordem dos desafetos, em um

sistema cultural que não permite uma ética da alteridade. A

sociedade contemporânea está doente dos afetos,

contaminada pelas ideologias que impedem uma ética da

alteridade, e, portanto, adoece, despotencializa e incapacita os

indivíduos a viver significativamente, e impõe a ordem do

desafeto, que se transforma em depressão e outras patologias

mentais (p. 155).

Como pudemos destacar até aqui, não se pode tratar de um

fenômeno tão complexo, como a depressão, sem que se compreenda as

imbricações entre os diversos aspectos nele envolvidos. Atenta a tal

característica, procurei compreendê-la a partir da psicopatologia

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fenomenológica tomando como referência os trabalhos de Tellenbach

(1969/1999) e de Tatossian (1979/2006).

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2. DEPRESSÃO: COMPREENSÃO FENOMENOLÓGICA

2.1. A Descrição do Typus Melancholicus de Tellenbach e a

Compreensão do Transtorno Depressivo na Atualidade

Para uma compreensão do significado do transtorno depressivo na

atualidade, faz-se necessário que se conheça, também, o significado do que se

tem conhecido, na psicopatologia fenomenológica, como tipo melancólico.

Neste sentido, recorri ao pensamento de Tellenbach (1969/1999). Em sua obra,

trata da melancolia segundo a perspectiva fenomenológica, discutindo um tema

importante para a psicopatologia: o problema da etiologia. Em tal tentativa,

discute os conceitos de situação, de tipo e de endon.

A etiologia, para a psicopatologia fenomenológica, não pode ser

considerada eminentemente causal, pois a fenomenologia não nega nem

integra a causalidade (Tatossian, 1979/2006). Ela coloca entre parênteses a

causalidade e atua por meio da redução fenomenológica. No que consiste tal

atitude? Redução fenomenológica ou epoché, de acordo com o pensamento de

Husserl, consiste na passagem da atitude natural – para a qual o mundo existe

por si mesmo – para a atitude fenomenológica, que permite compreender o

mundo e o homem como constituintes de uma totalidade (Abbagnano, 2000).

É, por assim dizer, pôr o mundo entre parênteses. É o recurso da

fenomenologia para chegar ao fenômeno como tal ou à sua essência buscando

captar o fenômeno na imediatez da sua vivência (Forghieri, 1993). Propõe uma

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mudança de atitude – da natural, para a qual o mundo existe por si mesmo,

para a fenomenológica – a qual permite visualizar as relações entre o homem e

mundo como fenômenos, ou como constituintes de uma totalidade aberta a um

mundo de significações. Assim, contactando com a própria vivência, chega-se

à descoberta da sua essência. Merleau-Ponty (1945/2006) questionando tal

pensamento, vai além dele afirmando que “o maior ensinamento da redução é

a impossibilidade de uma redução completa” (p. 10), uma vez que é impossível

apreender o mundo em sua totalidade. Assim, a proposta de Tellenbach

(1969/1999), no que se refere à situação, ao tipo e ao endon apenas pode ser

compreendida numa atitude fenomenológica, ou seja, pela redução

fenomenológica aplicada à experiência clínica.

A contribuição de Tellenbach (1969/1999) ao estudo da melancolia é

fundamental à compreensão fenomenológica da depressão, pois a aborda –

não em seus sintomas, na busca de uma explicação somática ou psíquica

inconsciente, nem mesmo de uma justificativa de ordem causal – no sentido do

fenômeno, sendo considerada uma modificação da condição existencial em

sua estrutura fundamental. A partir de tal perspectiva, é possível compreender

o fenômeno psicopatológico em sua origem, transcendendo a oposição entre

psicogênico/somatogênico, e integrar os conceitos de situação, de tipo e de

endon, propostos por Tellenbach, e que podem ser associados à dimensão do

corpo vivido – histórico e mundano.

Conhecendo a atitude fenomenológica que permeia o pensamento

de Tellenbach (1969/1999), é possível compreender as noções de endon e

endogeneidade.

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2.1.1. O endon e a endogeneidade

Há uma disposição para a doença mental? Eis a principal dúvida que

permeia a discussão sobre o endógeno, em oposição ao exógeno, em

psicopatologia. O conceito de “endógeno” foi introduzido na psiquiatria por

Moebius, em 1892. O termo é proveniente da botânica e foi utilizado,

inicialmente, para fazer oposição a externo. Para ele, os transtornos

endógenos dependiam fundamentalmente de uma predisposição individual,

tendo os outros fatores conotação secundária (Pereira, 1999). No entanto, o

desenvolvimento de tal ideia provocou muitas controvérsias, uma vez que se

aproxima do somático, embora seja de origem causal obscura. Portanto, a

dualidade imanente à psicopatologia tradicional dá à questão um valor

negativo.

Tellenbach (1969/1999) aborda o tema da endogeneidade a partir de

uma abordagem fenomenológica e analítico-existencial. Considera o valor

positivo do caráter endógeno a partir da noção de endon, para ele um terceiro

campo etiológico, não se limitando aos campos somático e psíquico:

a psiquiatria distingue três grupos de transtornos:

somatógenos, psicógenos e endógenos. Evidentemente, esta

distinção repousa sobre uma delimitação de três campos

causais. Os dois primeiros podem ser chamados soma e

psique. O terceiro, até agora não tem nome. Por razões

lógicas, deveríamos denominar endon o campo causal das

alterações endógenas. “Endógeno” quer dizer “nascido dentro”

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(ou seja, na casa). Endon designa, por conseguinte, uma

origem e, neste sentido, também uma procedência (p. 164).

O sentido de endon, para Tellenbach, compreende

[...] a instância espontânea e original que se manifesta em

certas formas fundamentais do ser-do-homem, e que essas

formas fenomênicas – tanto em momentos de saúde como, e

com maior razão, em momentos de psicose – são o que

queremos designar como endógeno (p. 165).

Assim, partindo do fenômeno, não da sua causa, o endon, na concepção de

Tellenbach, remete à globalidade, ou seja, ao campo fenomênico ou à

corporeidade humana como totalidade, bem como à singularidade da

experiência humana, ultrapassando o seu caráter causal. Refere-se a tudo o

que tem caráter vital no homem, mas se apresenta como unidade. Tal

singularidade peculiar ao endon precede e supera tanto o caráter impessoal do

biológico quanto o campo singular da existência. Ou seja, o endon não é nem

psicologicamente compreensível nem somaticamente explicável, embora, em

sua manifestação, ocorram mecanismos somáticos e psíquicos. Partindo de tal

concepção, no que consistem as chamadas psicoses endógenas?

Compreendendo endógeno como atemporal, ou melhor, como o que precede e,

ao mesmo tempo, está além do caráter existencial, deve-se considerar o

caráter transformador do endon: a natureza orgânica se transforma no contato

com o mundo. Assim, para Tellenbach, as psicoses endógenas consistem em

uma forma de exteriorização do endon, transformado em sua natureza orgânica

fundamental pelo contato com o mundo “ameaçador”. O problema da

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disposição, assim analisado, nunca é a expressão direta de um fator biológico,

nem é independente ou mesmo um reflexo direto da existência individual de um

ser humano: a psicose endógena é, antes de tudo, uma modificação do

Dasein1 a partir de uma condição existencial intolerável. Conhecendo as

particularidades do endon, podemos, então, contactar com a situação dos

fenômenos psicopatológicos. A psiquiatria tradicional considera a situação em

psicopatologia, tomando como referência a oposição entre somatogênico e

psicogênico. Considerada de forma dicotômica, a situação em psicopatologia

marca a posição distinta do eu e do mundo e da psique e do soma de forma

que passa a ser vinculada a um vivido psíquico ou a uma condição objetiva,

independente do indivíduo. Ou seja, a situação, para a psiquiatria tradicional, é

determinada pelos eventos de fora ou de dentro do indivíduo.

Para a psicopatologia fenomenológica, a situação – ocasião ou

conjuntura em que emerge o fenômeno – deve ser considerada na interseção

do universal com o singular, pois

não é menos verdadeiro que a situação não é nem o psíquico

subjetivo, simplesmente “acompanhado” de fenômenos

somáticos, nem um conjunto infinito de dados objetivamente

presentes, pois ela é projetada pela característica significativa

disto que encontra (o sujeito) no mundo circundante e no

mundo humano. A situação é indissoluvelmente situação do

corpo vivido ao mesmo tempo histórico e mundano (Tatossian

1979/2006, p. 181).

1. O termo Dasein, tomado na fenomenologia de Heidegger em seu aspecto psicológico e ontológico, designa o caráter específico da existência humana, a presença intencional do Ser. (Durozoi, 1996)

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Para Tellenbach (1969/1999), a situação é operação constante do ser-

no-mundo: é existência humana, espacialização e temporalização, não

podendo ser considerada de outra forma senão como constituída do vivido

fenomenológico. Considera, pois, os processos endógenos como movimentos

advindos de uma crise vital. Afirma que

deve-se chamar enfaticamente a atenção para o fato de que

em todos os processos endógenos – tanto os normais como os

modificados – o homem nunca aparece em sua realidade

objetiva pura, nem em sua própria subjetividade. Sonho e

vigília, comer e beber, criar e procriar: todos esses atos têm

naturalmente um aspecto somático e um aspecto psíquico, dos

quais, todavia, nunca se compreende mais do que uma única

faceta. Por mais constitutivas que para certos métodos de

nossa investigação sejam as distinções tais como interior e

exterior, sujeito e objeto, físico e psíquico, a consideração dos

fenômenos nos quais se desdobram o endon em

manifestações endógenas nos conduz, apesar de tudo, a um

nível que é transubjetivo em vez de transobjetivo, meta-

somático ao mesmo tempo (p.168).

Tal compreensão mostra, claramente, o caráter global dos transtornos

psicopatológicos, o que significa que se trata de uma forma existencial, ou seja,

da manifestação de uma modificação do ser do homem como um todo. Neste

sentido, fica claro que tais manifestações sejam chamadas de fenômenos, não

de sintomas, como preconiza a psicopatologia tradicional, pois sintoma sempre

se refere a algo particular. Assim, no caso da descrição da depressão, por

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exemplo, a leitura fenomenológica não enfatiza o conjunto de seus sintomas,

mas como uma modificação global do ser. A descrição do typus melancholicus

em Tellenbach representa bem tal perspectiva.

2.1.2. O typus melancholicus

Compreendendo a situação como constitutiva do ser-no-mundo, não

como eminentemente psíquica ou somática, Tellenbach (1969/1999)

desenvolve a noção de tipo. No entanto, tal noção não é a mesma da

psiquiatria tradicional, que ressalta a tipologia no sentido de predestinação ou

de desenvolvimento patogênico. A noção foi desenvolvida por Tellenbach a

partir de uma atitude fenomenológica em que está presente o movimento. Não

há, aí, oposição entre fatores constitucionais e do meio, nem relação causal

com a situação. A noção de tipo foi desenvolvida por Tellenbach a partir da

experiência imediata com os próprios sujeitos. Sua experiência clínica propiciou

que ele descrevesse o tipo melancólico:

o que pensamos quando falamos de “tipo” não é [...] o

resultado de medições, nem tampouco o de um esquema

teórico – por exemplo, caracterológico – mas unicamente da

intuição imediata. Obtemos traços essenciais do tipo

melancólico não por meio da análise de propriedades e de sua

estruturação sistemática, mas pelas experiências no encontro

com aqueles que já foram melancólicos (p. 172).

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Tal perspectiva da psicopatologia fenomenológica dá alma e vida ao processo

de contato entre o profissional e o cliente, pois não se trata de promover um

enquadre da descrição dos sintomas do cliente a um quadro nosológico

específico para, a partir daí, escolher as ferramentas necessárias à

compreensão do processo. Compreender a psicopatologia de acordo com a

fenomenologia não é relegar a pessoa que sofre a um segundo plano,

priorizando os seus sintomas, nem tampouco desvalorizar ou supervalorizar o

campo no qual está imerso o fenômeno descrito por ela. É compreender a

pessoa e a psicopatologia em mútua constituição, isto é, em movimento a partir

de sua corporalidade ou do corpo vivido, que é, também, espacialidade e

temporalidade. Não se pode obter uma descrição do vivido a não ser a partir do

contato direto com a pessoa que vive tal experiência.

No contato clínico com uma centena de pacientes que apresentaram

um ou vários acessos melancólicos, Tellenbach (1969/1999) descreve como

“ordenalidade” (p. 172) o traço essencial do typus melancholicus, cujas

aplicação, escrupulosidade, consciência do dever e formalidade marcam a sua

vida profissional, as tarefas diárias, as relações interpessoais e a relação

consigo mesmo.

Mas qual a distinção entre a ordem imposta pelo tipo melancólico a

si mesmo e a do sujeito comum, todos nós que vivemos sob a égide de uma

sociedade rigorosamente competitiva? Segundo Tellenbach (1969/1999), a

falta de elasticidade, marcadamente presente, faz com que um traço de rigidez,

um modo de ser fixado marque a atuação do tipo melancólico. Tal forma de

estar no mundo, relacionada à vida profissional do tipo melancólico, é assim

descrita:

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a exigência do próprio rendimento é, sem exceção, muito viva.

O trabalho é sempre uma “tarefa” que deve ser cumprida. Tem

uma predileção pelo planejado, e sempre existe repulsão frente

à improvisação. Realiza o planejado com a maior

meticulosidade possível. As donas de casa esforçam-se pela

limpeza mais escrupulosa; pode-se comer no chão. Toda

atividade – importante ou insignificante – é executada com

igual intensidade (p. 173).

Compreende-se daí que, para o tipo melancólico, o sentido da própria

existência está na tarefa, ou seja, a atividade assume valor existencial. A auto-

exigência e o esforço sobre-humano são, portanto, constantes neste tipo, cuja

meticulosidade nas tarefas é o imperativo. Depreende-se que tanta exigência e

meticulosidade com que realiza a tarefa podem comprometer o volume de

trabalho, sendo a relação inversa também verdadeira, o que faz com que tal

tipo aumente mais ainda o caráter obsessivo de seu traço para que nem a

quantidade de trabalho nem a perfeição do resultado sejam comprometidas:

“semelhante círculo de exaltação da auto exigência no rendimento, por um

lado, e da minuciosidade, por outro, pode ser pernicioso e facilitar o

desenvolvimento de uma depressão” (p. 173).

Outra característica do tipo melancólico, descrita por Tellenbach

(1969/1999) diz respeito às relações inter-humanas. Segundo ele, tais relações

são vividas pelo tipo melancólico de duas formas bastante evidentes: o “ser-

para-o-outro e o ser-um-com-o-outro” (p. 173). Estes aspectos mostram uma

existência em que o sentimento de amorosidade não é possível ou não é o

bastante, sendo sua importância para o outro medida pelo grau de rendimento

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à relação ou mesmo por uma ligação simbioticamente firme que proporcione a

sensação de impossibilidade de ruptura, seja por separação, seja por morte.

Segundo Tellenbach, tais características da esfera da convivência são

especialmente marcantes na relação com o cônjuge e com os filhos e geram

significativos problemas, principalmente quando há a impossibilidade da

realização do domínio nas circunstâncias de adoecimento ou de

envelhecimento, bem como na possibilidade de vivenciar a solidão. Como

podemos observar, o caráter rigoroso que marca a existência do tipo

melancólico é também aplicado às suas relações com os outros. Tellenbach

considera, ainda, que este mesmo traço possa ser encontrado na forma como

o sujeito lida consigo mesmo. A tal traço, deu o nome de escrupulosidade:

o depressivo revela uma extraordinária sensibilidade da

consciência moral, de tal modo que a mesma tem perante tudo

uma função proibitiva. Está atento a evitar toda a culpa, por

pequena que seja; e quando se vê carregado por alguma, esta

é rapidamente anulada por uma conduta expiatória (p. 174).

Sentir-se sob a pressão da culpa é, portanto, o pior dos males para o tipo

melancólico, mas o mais paradoxal é que ele mesmo é capaz de se impor as

mais terríveis culpas, dada à notória intolerância consigo mesmo, a presença

de uma consciência moral bastante rígida e de, na maioria das vezes, se impor

tarefas cujo nível elevado de exigência pode levar não ao cumprimento devido.

Para a psicopatologia crítica, as características peculiares ao tipo

melancólico, conforme descritas por Tellenbach (1969/1999), são perfeitamente

identificadas no mundo ocidental conforme descrito por Moreira e Sloan (2002):

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acredito que o tipus melancholicus é culturalmente adequado

ao mundo ocidental capitalista, na medida em que tem

características de personalidade que são bem vindas a uma

ideologia que pretende manter o status quo (p. 194).

Desta forma, a autoexigência ingênua do tipo melancólico é compatível com as

exigências da sociedade contemporânea, que, muitas vezes, impõe ao sujeito

a manutenção da ordem prevista. Assim, tal fenômeno, descrito por Tellenbach

(1969/1999) e tomado em seu contexto atual, envolve um alto grau de

exigência nos papéis profissional, social e íntimo, podendo gerar um grande

sofrimento psíquico para o sujeito, mas, ao mesmo tempo, atende as

necessidades de uma sociedade cujo caráter individualista reforça tais posturas

fundamentais à manutenção do modelo cultural da desigualdade social.

Para Tellenbach (1969/1999), o mundo da ordenalidade em que vive

imerso o tipo melancólico tem importância patogênica, pois predispõe a

encerrar o indivíduo em limites rígidos, dificilmente transcendidos. É assim,

também, que se apresenta a pessoa em depressão: presa em limites

autoimpostos e restrita em sua corporalidade. A compreensão do ser humano

em sua singularidade e do seu diálogo com o contexto histórico e cultural é

amplamente desenvolvida no âmbito da psicopatologia fenomenológica.

Encontramos em Arthur Tatossian (1979/2006) uma importante contribuição

para a compreensão de tal perspectiva.

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2.2. A Contribuição da Psicopatologia Fenomenológica de Arthur

Tatossian: Da Melancolia à Experiência Vivida da Depressão

A perspectiva da fenomenologia sobre os transtornos mentais

expressa, em seu bojo, o diferencial de buscar compreender o significado da

experiência vivida, que, neste caso, é a experiência psicopatológica. Descrever

o Lebenswelt (mundo vivido) do doente é uma tarefa desafiadora e complexa,

mas, ao mesmo tempo, instigante, pois parece conferir às narrativas, alma e

movimento. Trata-se de investigar a vida psíquica por intermédio do vivido.

Entre os fenomenólogos que se aventuraram nesta perspectiva, destaca-se

Tatossian (1979/2006), cuja obra “A Fenomenologia das Psicoses” é fiel a tal

proposta. Partindo do pensamento de vários psiquiatras fenomenólogos que se

propuseram a pesquisar o fenômeno psicopatológico tal qual ele se apresenta,

foi possível a Tatossian construir uma compreensão sólida e profunda do que,

de fato, se propõe tal perspectiva. A sua proposta consiste, então, em

apresentar, sem pretensão de originalidade, mas com

preocupação de fidelidade e de uma visão de conjunto a mais

completa possível, o quadro da fenomenologia psiquiátrica tal

como ela tem sido praticada pelos psiquiatras e não como

deveria sê-lo a partir de tal filosofia (p. 23).

Tal proposta é, de fato, imprescindível para que se tenha uma compreensão

clara e precisa de como se pode fazer contato com a melancolia, por exemplo,

levando em conta o fenômeno da depressividade, em seus múltiplos contornos,

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não apenas sua sintomatologia. Para que isto seja possível, deve-se

compreender que a fenomenologia demanda a passagem do que a ciência

tradicional concebe como real para a essência. No entanto, o próprio Tatossian

adverte que é impossível abolir totalmente a “atitude natural” (p. 24) proposta

pela ciência tradicional, cabendo ao fenomenólogo estar ciente de tal fato para

que ela não se sobreponha à investigação.

Para Tatossian (1979/2006),

a fenomenologia se define, com efeito, por uma mudança de

atitude que é o abandono da atitude natural e „ingênua‟, quer

dizer, uma certa atitude onde, psiquiatras ou não,

apreendemos isto que encontramos como realidades objetivas,

subsistindo independentemente de nós, quer sejam realidades

psíquicas ou materiais (p. 25).

Com esta expressão, Tatossian discorre sobre as relações entre a psiquiatria e

a filosofia, intermediadas pela fenomenologia, propondo um novo caminho, que

contemple a experiência psiquiátrica, mas que não seja totalmente descritivo

nem essencialmente filosófico. Uma das principais consequências desta forma

de lidar com a experiência psiquiátrica é a distinção entre sintoma e fenômeno.

Nesta perspectiva fenomenológica, as manifestações do vivido é que

comportam significado e sendo o sintoma, da forma como é constituído na

medicina tradicional, de caráter secundário.. Em sua obra, Tatossian retoma tal

tema com muita frequência, tal sua importância no que concerne à perspectiva

da fenomenologia no campo da psicopatologia. Assim, para Tatossian:

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os fenomenólogos precisamente, não se interessam pelo

sintoma, mas pelo fenômeno, no sentido heideggeriano do

termo, tal como o apresenta Tellenbach e, neste sentido, o

fenômeno que corresponde ao vivido de Glatzel não é

alcançado imediatamente por intermédio do comportamento

material, mas é diretamente dado na experiência psiquiátrica,

na condição de que ela se faça experiência fenomenológica,

que é mais do que experiência empírica no sentido usual,

enquanto sendo mesmo totalmente experiência e não

inferência (p. 42).

Partindo de tal forma de conceber a psicopatologia, Tatossian

propõe que apenas é possível compreender o fenômeno da melancolia a partir

da experiência da depressividade, uma vez que é a partir dela que tal

fenômeno se revela. Ao se referir ao fenômeno da depressividade, Tatossian o

descreve como uma experiência global, ou seja, que afeta o indivíduo em seu

encontro consigo mesmo, com o mundo e com outrem. Revela-se como uma

experiência de emurchecimento e de definhamento2 do vivido, estando ausente,

inclusive, a ressonância, a capacidade de “sentir com” (p. 113) – Einfühlung –,

característica das relações interpessoais. Não se pode, portanto, compreender

a experiência melancólica somente a partir da descrição dos sintomas

depressivos, devendo considerar o ser global do indivíduo: É a partir do

Lebenswelt (mundo vivido) do melancólico que se faz contato direto com a

depressão.

___________________________________________________________

2. Emurchecimento e definhamento são termos utilizados por Tatossian(1979/2006) na descrição da experiência melancólica.

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Portanto, o que, de fato, interessa à psicopatologia fenomenológica

em relação à melancolia não é, simplesmente, saber se o indivíduo é

depressivo a partir de uma avaliação de sua sintomatologia, mas,

principalmente, compreender o fenômeno da depressividade, que pode ser

apreendido no contato com o doente, e se define não a partir da experiência,

ou seja, saindo dela e raciocinando sobre ela, mas sobre e na experiência. Isto

quer dizer que, no contato com o depressivo, temos não apenas a experiência

de que ele é depressivo, mas do que é a depressão. Ou seja, o encontro com o

depressivo nos dá a experiência de que ele é depressivo, mas também do que

é a depressividade (Tatossian, 1979/2006). Para a psicopatologia

fenomenológica, tal perspectiva do fenômeno apenas pode ser apreendida à

medida que o observador se percebe implicado na apreensão do fenômeno,

pois engloba o que é visado e aquilo que o visa. É a partir de uma postura que

une atividade e passividade, receptividade e espontaneidade, que se pode

compreender a experiência vivida da melancolia. A proposta da psicopatologia

fenomenológica de Tatossian consegue atingir tal objetivo, pois une a

experiência positivista-objetiva e a experiência fenomenológica-eidética, na

qual não há predominância da postura filosófica nem da psiquiatria clássica,

mas permite uma nova construção teórica que transcende as duas posturas no

encontro com o doente mental. É uma forma de trabalhar sempre em fluxo,

compreendendo o inacabamento inerente na busca do fenômeno que se

mostra no contato com o humano como ser-no-mundo. Neste modelo de

trabalho, levanto a seguinte questão: no que consiste a experiência

melancólica?

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2.2.1. A natureza da experiência melancólica

No que diz respeito ao sofrimento, a experiência melancólica não se

compara ao sofrimento natural, pois se trata, nas palavras de Tatossian

(1979/2006), de um sofrimento “anormal, pervertido, deformado” (p. 117).

Tatossian propõe um estudo crítico das relações entre a afetividade e o

sofrimento melancólico, para conhecer a natureza de tal experiência e se

aproximar do que constitui a tristeza nela. A noção de “tristeza vital” (p. 117)

explicita tal questão: no melancólico, a tristeza é localizada tanto no seu corpo

quanto é associada ao vivido, por meio de queixas e sensações corporais, o

que, talvez, iniba os sentimentos pessoais, já que a experiência no corpo

parece ser extremada. De fato, o sentimento melancólico parece ser de tal

ordem que afeta todo o ser, sendo priorizada, então, não a tristeza, mas o

caráter vital de tal experiência.

Assim, Tatossian diferencia o sofrimento normal, experimentado

pelo ser humano sadio ou pelo deprimido reativo, do sofrimento melancólico,

que é considerado uma experiência completamente estranha, até mesmo para

quem a vive. É como se nem mesmo a tristeza pudesse, de fato, ser sentida

pelo indivíduo, que não sustenta mais do que “um sentimento de vazio, de

petrificação de não-viver” (p. 117). O distanciamento do sentimento marca a

experiência de não-sentir do sujeito melancólico e a tristeza é considerada,

nesta perspectiva, como reação ao vivido. Tatossian considera, então, a

melancolia como distúrbio do humor, não do sentimento, no qual “o vivido

nuclear da melancolia não é, portanto, a tristeza, mesmo que ela seja

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vitalizada, mas resulta da alteração da Stimmung (humor) ou da afetividade-

contato” (p. 120). De fato, a tristeza parece estar presente, mas ela não é mais

do que uma metáfora, uma forma de expressar o distanciamento do vivido ou

mesmo de expressar o que é, em tal experiência, inexprimível e inexplicável.

Cabe, aqui, a diferenciação entre a tristeza comum que, como todos os

sentimentos, nasce, cresce, dura e desaparece, e a tristeza do melancólico,

que é isenta de movimento, permanece e o eu assiste à sua tristeza sem se

envolver nela. É nisto em que consiste, para Tatossian, a incapacidade de ser

triste que compõe o vivido melancólico. É uma espécie de anestesia afetiva,

um “sentimento de ausência de sentimento” (p. 121), que atinge toda a

experiência melancólica e toda a ação do sujeito. Tal descrição pode ser mais

bem explicitada considerando três construtos fundamentais da psicopatologia

fenomenológica: corpo, tempo e espaço vividos.

2.2.2. O corpo vivido na melancolia

Na perspectiva do corpo vivido, podemos afirmar que a tristeza

melancólica não tem movimento: o eu assiste à sua tristeza, sendo incapaz de

estabelecer relação com ela. Tal incapacidade invade, também, toda a ação do

sujeito melancólico, causando uma inibição vital e um vazio temporal.

Tatossian (1979/2006) assim comenta acerca do corpo próprio do melancólico:

“a tristeza melancólica é um tipo de vivido perceptivo do corpo próprio em sua

globalidade e da corporalidade como modo de ser humano” (p. 122). Portanto,

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traduz o vivido corporal na melancolia a partir do conceito de “corpo-portador”

(p. 122), aquele que não é senão peso e carga insuportável. O melancólico

perde a noção de fluxo contínuo no vivido corporal e a experiência constante

de peso não dá lugar à afetividade, que se aniquila ou se torna estranha para o

sujeito. Carregar o peso do próprio corpo, de forma constante e ininterrupta, faz

com que o melancólico leve o mundo, a sua identidade e os papéis sociais a

ele atribuídos a sério demais, sem considerar a sua própria subjetividade como

liberdade. Tatossian relaciona tais questões aos estudos de Tellenbach

(1969/1999), que o levaram a descrever o typus melancholicus, cuja principal

característica consiste no “espírito de ordem” (p. 124). Ou seja, o caráter de

ordenalidade, descrito por Tellenbach na definição do typus melancholicus

pode ser encontrado, segundo Tatossian (1979/2006), no comprometimento do

corpo vivido, pois o peso que o melancólico atribui à própria existência se

projeta na sua identidade e nos papéis que assume no mundo.

Outra característica considerado por Tatossian (1979/2006), em

relação ao corpo melancólico, consiste na perda da comunicação com outrem,

implicada pela atrofia da confiança. Considera que, neste aspecto, há

impossibilidade de o melancólico se relacionar com o outro como indivíduo, não

no sentido genérico. Ou seja, é o “ser-com-este-outro” (p. 124) que está

comprometido na melancolia, o que enfraquece os laços sociais e

interpessoais. Neste sentido, o processo psicoterapêutico do melancólico, bem

como qualquer outra forma de manifestação subjetiva da afetividade-contato,

são bastante dificultados por tal traço e, portanto, não podemos deixar de

compreender, então, o grave comprometimento da experiência vivida da

melancolia mediada pelo corpo.

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2.2.3. O tempo vivido na melancolia

O pensamento de Tatossian (1979/2006), na descrição da

melancolia a partir da “Fenomenologia das Psicoses”, parece evidenciar que

tanto o caráter de alteração da Stimmung (humor), quanto o caráter do corpo-

portador ou do distúrbio na afetividade-contato, convergem em direção à

alteração do tempo vivido. Tal questão é considerada fundamental para

Tatossian na definição da experiência melancólica, descrevendo tal alteração

como “distúrbio fundamental, sintoma axial ou distúrbio gerador da melancolia”

(p. 125).

Quando trata do tempo vivido nesta perspectiva, não se refere ao tempo

do mundo ou do tempo dos relógios, mas de um tempo propriamente humano.

Tatossian (1979/2006) trata de tal questão, propondo a distinção do tempo em:

tempo transitivo ou transcendente ao vivido e tempo imanente ao vivido ou

tempo do eu. Na melancolia, há estagnação do tempo imanente, pondo o

sujeito em contato com a impossibilidade do futuro. A estagnação do tempo

vivido no melancólico implica, também, na perda do poder ou na incapacidade

basal à ação: “ser melancólico é fundamentalmente não poder comer, pensar,

compreender, trabalhar, fazer amor, mas é também registrar cruelmente esta

incapacidade e, portanto, também sempre ensaiar agir, lutar contra o

inacabamento obrigatório das ações” (p. 128). Parece haver um sentimento de

ser impotente para viver, o que implica numa relação peculiar com a morte, que

passa a ser imanente ao sujeito. Ou melhor, há o desejo da morte imanente,

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mas ela é desejo de vida, paradoxalmente vivido pela necessidade de viver

mortes parciais.

Outro aspecto da alteração do tempo vivido, discutido por Tatossian

(1979/2006) na sua compreensão fenomenológica da melancolia, diz respeito

ao fenômeno da despersonalização-desrealização. Tal fenômeno se encontra

diretamente ligado à questão do não-poder, tão presente na melancolia, e se

manifesta em um sentimento de impotência, marcado pelo não-fazer e pelo

não-ser. Tais fenômenos constituem a essência do distúrbio melancólico e têm

intrínseca relação com a estagnação do tempo vivido, não numa relação

causal, mas a partir da experiência vivida, que lança o sujeito em uma

existência no vazio: “desrealização e despersonalização são os dois aspectos

de uma única e mesma alteração da comunicação onde separado do mundo,

separado do outro, está separado de si” (p. 132). Ou seja, toda a presença do

ponto de vista da existência se encontra comprometida, pois é uma existência

vazia, que é incapaz de se comprometer com o fazer, o agir e o ser.

Tatossian (1979/2006) compara o tempo vivido no homem sadio e

no melancólico, considerando que, no homem sadio, ele representa

alargamento, crescimento, devir-mais ou engrandecimento, enquanto que, no

melancólico, é sempre devir-menos ou decrescimento. O sujeito melancólico

vive a imobilização do tempo presente, caracterizada pela estagnação do

tempo vivido, o que o leva à barreira do futuro, que passa a ser ameaçador e

inquietante, carregado de catástrofes e declínios. Qualquer atuação ou esforço

próprio do sujeito, no entanto, são capazes de impedir tal futuro, pois o

melancólico não busca a mudança no futuro, mas no passado. Na experiência

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da melancolia, o passado é falta inapagável e culpa. É débito com o devir, que

suscita o não-poder.

2.2.4. A existência no espaço vazio

Outro aspecto do vivido melancólico, descrito por Tatossian

(1979/2006), é a “existência no vazio” (p. 131), que envolve a relação com o

mundo:

a existência no vazio comporta a alteração da relação

fundamental entre homem e mundo que permite o poder e o

devir e funda, portanto, a possibilidade de todos os atos

particulares. Na falta desta relação, o “solo” onde se

desenvolvem todos os atos cognitivos, volitivos e afetivos se

esconde (p. 132).

De fato, o vazio do melancólico se caracteriza pela “incapacidade de” (p. 132) e

se potencializa como um “não-ser-verdadeiramente-aí” (p. 132) ou uma relação

com o mundo a partir de uma existência no vazio. Tal tipo de relação com o

mundo, caracterizado pela existência no vazio, se insere na psicopatologia

fenomenologia do espaço vivido, marcadamente discutida nos estudos

fenomenológicos. O vivido espacial, no melancólico, é, portanto, alterado e

atinge não somente a percepção do sujeito em relação ao espaço, mas o

conjunto eu/mundo. Ou seja, a incapacidade de realização que marca o mundo

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vivido do melancólico, ou o seu sentimento de não-poder, interfere na sua

noção de espaço: o espaço vivido é vazio, oco, sem significado. Para Tatossian

(1979/2006), tal alteração tem, como traço fundamental, a “perda da

proximidade existencial com as coisas” (p. 133), o que marca o isolamento em

que vive o melancólico. O contato vital com o mundo se perde, uma vez que,

distante das coisas, não é capaz de apreender sua utilidade e, muito menos, de

se relacionar com elas, seja no campo sensorial, seja no afetivo.

Pensar o modo de ser-no-mundo do sujeito melancólico é

compreender suas possibilidades corporais como representação no espaço.

Tatossian (1979/2006) observa que não há possibilidade de projeção do corpo

no espaço, pois “o corpo totalmente estático do melancólico perdeu toda a

capacidade de se projetar no mundo e o espaço não pode ser mais que vazio”

(p. 135). Ou seja, o vivido melancólico é marcado pelo corpo pesado no espaço

vazio e pela impossibilidade da sua presença. Tatossian afirma que, na

fenomenologia do Lebenswelt, não há subjetividade sem corpo, ou seja, “a

subjetividade corporal é pré-egóica e pré-pessoal e é a partir dela que se

desenvolve o eu e o outro” (p. 97). Tal afirmação enfatiza a importância da

concepção de corpo na fenomenologia, sendo necessário definir o que se

entende por corporalidade e, mais precisamente, introduzir a ideia de “corpo

próprio” em Merleau-Ponty (1946/2006).

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3. CORPO E EXISTÊNCIA: DO CORPO FENOMENOLÓGICO À

NOÇÃO DE CORPO PRÓPRIO EM MERLEAU-PONTY

3.1. A Compreensão Fenomenológica do Corpo

O pensamento dualista que predomina na ciência moderna provocou

a concepção da separação entre corpo e mente, produzindo uma noção de

homem fragmentado e incapaz de se apropriar de si mesmo. Tal forma pensar

atingiu o pensamento moderno acerca do corpo, que passou a ser considerado

um simples “receptáculo passivo das ações de um mundo de coisas ou uma

barreira que isola o espírito de seu exterior” (Carmo, 2000, p. 81). A

compreensão fenomenológica do corpo, no entanto, rompe com tal

pensamento, construindo um novo modo de conceber esta questão. O corpo

fenomenológico não é o corpo anatomofisiológico. Ou seja, a primeira

distinção que se faz necessária diz respeito ao corpo que eu sou – que se

confunde com a totalidade da minha existência, o meu ser no mundo, a minha

mundaneidade – e o corpo que eu tenho – que, não sendo exatamente eu, me

está disponível. Tal distinção, que envolve a noção de corpo, muitas vezes não

é clara, principalmente a partir de um modelo científico que privilegia a

dualidade. Tatossian (1979/2006) discute a dificuldade de se apropriar de tais

conceitos: “esta distinção, espontânea para o alemão que distingue Leib e

Körper, é mais artificial para o francês, que oporá o corpo fenomenal, o corpo

próprio, o corpo vivido ou vivo, o corpo-sujeito ao corpo objeto, ao soma” (p.

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97). Não se trata, aqui, de negar a legitimidade do corpo-objeto, considerado,

muitas vezes, como um artefato ou como produto de discussão e intervenção

da via objetiva da ciência, tendo sido relegado a um plano superficial. Ambos,

corpo-sujeito e corpo objeto, são legítimos e ilustram a ambiguidade da

condição humana, pois estão, continuamente, presentes na vida cotidiana. A

grande dificuldade de tal questão está ou se colocar o corpo na condição de

coisa, típica do dualismo cartesiano, ou mesmo na identificação total com o

corpo, numa posição que iguala o homem às outras espécies animais.

Assim, a fenomenologia da corporeidade usa os conceitos de Körper

e Leib – comumente traduzidos como corpo vivo e corpo vivido – como forma

de designar, respectivamente, o objeto construído cientificamente e descrito de

forma física, a experiência corporal vivenciada (Ortega, 2008). Ortega adverte

que não se trata, ao discutir a corporeidade de acordo com a fenomenologia,

de pensar um novo tipo de dualismo, acreditando em dois corpos diferentes,

mas de duas dimensões do corpo vivido, que é, também, um corpo de carne,

ossos, nervos e fibras, que pode ser descrito cientificamente. O fato da

descrição objetiva do corpo ter sido privilegiada por determinadas práticas e em

certos contextos sociais e históricos não significa que deva haver uma cisão

entre as duas dimensões constitutivas da corporeidade. Körper e Leib são,

portanto, dimensões de nossa corporeidade.

Sendo o corpo fenomenológico o corpo que eu sou, reconheço, nele,

a capacidade de assumir significados, de comunicar-se. Para a abordagem

fenomenológica, é inquestionável o poder de comunicação do corpo. Tal poder

se revela como uma potência aberta a significações e se manifesta como corpo

vivido ou corpo próprio. Para a fenomenologia, o corpo próprio indica,

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exatamente, tal possibilidade concreta de ser, de se expressar e de se

comunicar com o mundo, sendo este o fundamento da intersubjetividade: “por

meu corpo me expresso mundanamente e ao mesmo tempo sou consciência

da existência do outro” (Rovaletti, 1984, p. 491). Para Rovaletti (1997), corpo e

afetividade estão ligados, na medida em que o corpo é o lugar de comunicação

com os outros e com as coisas. Tal perspectiva nos remete, mais uma vez, à

distinção entre corpo próprio e corpo objeto:

não se trata do “corpo objeto” da anatomia e da fisiologia; esse

corpo que podemos pôr a distância considerando-o

precisamente como um sistema obediente às leis físicas e

fisiológicas. Na verdade, este corpo não esgota o significado do

corpo; não é falso, mas não é toda a verdade do corpo (p. 193).

Posso, portanto, afirmar que o meu corpo é, antes de tudo, o corpo que eu sou,

não o corpo que eu tenho. Dotado de sentido e significado, capaz de se

expressar e de se comunicar. Assim, o corpo, nesta perspectiva, é uma

ressonância de nosso ser-no- mundo.

Rovaletti (1984) trata de um sujeito corporal que carrega a

capacidade de se expressar e vive no corpo a possibilidade de se comunicar,

passando seu corpo a ser o lugar do encontro com o outro. Por meio do gesto

e da palavra, o corpo manifesta o seu vivido bem como a sua mundaneidade:

através do corpo se dá uma ressonância de nosso ser sobre o

mundo e também do mundo sobre nós. Somos presença ativa

e afetividade, transcendência e receptividade originária. Somos

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afetados enquanto nosso ser é abertura, intercâmbio e

comunicação (p. 491).

Sobre a relação entre consciência e corpo, Rovaletti (1984) afirma

que “não há consciência separada do corpo próprio” (p. 492). Tal afirmação é

compatível com a abordagem fenomenológica mundana, para a qual o sujeito

não se reduz a um corpo objetivo separado de sua subjetividade. Neste

sentido, sou o meu corpo, ou seja, meu corpo se reconhece no mundo vivido e,

a partir dele, se revela como dado de minha consciência, porém não como

consciência pura, mas em contato concreto com pessoas e coisas. Assim,

rompe-se o modelo que trata do corpo como estranho ou exterior, ou mesmo

da necessidade de fazer analogias que criem a passagem da exterioridade

para a interioridade, mas significa um movimento que é ambíguo e que

transcende o interno e o externo. O corpo próprio pode se expressar em seu

todo, cada parte dele participando do diálogo com o mundo, em uma

diversidade que varia conforme a idade, a cultura ou as peculiaridades de cada

sujeito.

Observo, então, que o corpo constitui uma questão-chave para a

fenomenologia. No entanto, a corporalidade não é tratada por todos os

fenomenólogos da mesma forma, sendo abordada de forma clara e explícita na

fenomenologia existencial de Merleau-Ponty (1945/2006), filósofo francês,

existencialista e fenomenólogo que articulou a fenomenologia e a concepção

de existência. Para ele, a fenomenologia “é o estudo das essências, mas

também é uma filosofia que repõe as essências na existência e só compreende

o homem e o mundo a partir de sua facticidade” (p. 1), isto é, da própria

existência concreta. A forma como Merleau-Ponty trata a concepção de corpo

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pode ter grandes implicações na clínica psicológica, uma vez que ele não

concebe o corpo como objeto separado da subjetividade. Na psicoterapia, o

corpo tem lugar de destaque e não se pode conceber qualquer prática

fenomenológica que ignore o corpo, seja como experiência vivida, seja como

possibilidade de expressão. O corpo é um conceito central na obra de

Merleau-Ponty, constituindo a inserção da consciência no mundo: “o corpo

próprio está no mundo assim como o coração no organismo; ele mantém o

espetáculo visível continuamente em vida, anima-o e alimenta-o interiormente,

forma com ele um sistema” (p. 273). É assim, portanto, que Merleau-Ponty

descreve o corpo em sua obra “Fenomenologia da Percepção”: como presença

no mundo.

3.2. Corpo como Existência: Uma Introdução ao Pensamento de

Merleau-Ponty na Obra “Fenomenologia da Percepção”

A compreensão do corpo como existência me permitiu a discussão do

corpo deprimido a partir da obra “Fenomenologia a Percepção” de Merleau-

Ponty (1945/2006), na qual encontrei o suporte para pensar a temática do

corpo como corpo vivido, ou seja, como meio de acesso ao mundo e a toda

experiência vivencial. Tal obra corresponde à sua fase de concepção de uma

fenomenologia existencial, voltada à compreensão do homem como ser em

situação, na qual o corpo exerce um papel fundamental no envolvimento do

homem com o mundo. Nela, o filósofo introduz a concepção de corpo próprio,

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compreendendo-o como mediador de toda experiência possível, e trata da

corporeidade, ancorando-a na existência. Tal noção provocou transformações

no que diz respeito à forma como a ciência tem tratado o corpo, pois a

concepção de corpo próprio é abertura e campo primordial de possibilidade da

experiência. Desenvolve a compreensão de que o corpo não pode ser

considerado como coisa ou objeto e propõe a superação da concepção objetiva

e mecânica do corpo para a possibilidade de uma perspectiva do corpo como

sentido e significado, ou seja, como resultado da experiência.

No entanto, não se pode fazer um recorte de tal concepção sem

situá-la na sua obra e no seu pensamento, neste caso, a partir do livro

“Fenomenologia da Percepção”. No prefácio, Merleau-Ponty lança a questão “o

que é a fenomenologia?” e traça uma distinção entre seu pensamento e o de

Husserl. Considera que a fenomenologia trata do estudo das essências, mas

constrói tal premissa a partir da ideia de que a filosofia fenomenológica repõe a

essência na existência. Sob tal perspectiva, a consciência não é algo que

distancia o homem do mundo para interpretá-lo, mas concebe o homem como

um ser-no-mundo, o que supõe um enraizamento do espírito no corpo,

rompendo com o pensamento dualista:

a fenomenologia é o estudo das essências, e todos os

problemas, segundo ela, resumem-se em definir essências: a

essência da percepção, a essência da consciência, por

exemplo. Mas a fenomenologia é também uma filosofia que

repõe as essências na existência, e não pensa que se possa

compreender o homem e o mundo de outra maneira senão a

partir de sua “facticidade”. É uma filosofia transcendental que

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coloca em suspenso, para compreendê-las, as afirmações da

atitude natural, mas é também uma filosofia para a qual o

mundo já está sempre “ali”, antes da reflexão, como uma

presença inalienável, e cujo esforço todo consiste em

reencontrar este contato ingênuo com o mundo, para dar-lhe

enfim um estatuto filosófico (p. 1).

Assim, posso afirmar que o estudo do fenômeno psicopatológico, sob tal ótica,

deve ocorrer, como afirma Merleau-Ponty, no sentido de “descrever, não de

explicar nem de analisar” (p. 3). É, então, um jeito de ver. E o que é “ver”,

senão demarcar o olhar sobre o mundo que está aí? Afirma Merleau-Ponty que

“a verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo, e nesse sentido uma

história narrada pode significar o mundo com tanta profundidade quanto um

tratado de filosofia” (p. 19). É este o estatuto que ele atribui à fenomenologia: o

da possibilidade de revelação do mundo, o da apreensão do mundo em seu

estado nascente. A proposta é, então, lançar um olhar sobre o fenômeno, para

o que se mostra. Para Merleau-Ponty, “ver é entrar em um universo de seres

que se mostram” (p. 105). O filósofo propõe que a apreensão do fenômeno, o

contato com o objeto, ocorra por meio de um olhar que o habita e que permita

apreendê-lo em todas as suas nuanças.

Observo claramente, nesta perspectiva, a posição do filósofo de

ultrapassar a concepção dualista da ciência positivista, apreendendo o homem

em relação com o mundo, em sua história e sua cultura. Tal perspectiva

permeia a construção da noção de corpo a partir de um organismo integrado,

rompendo com o dualismo cartesiano:

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a tradição cartesiana habituou-nos a desprender-nos do objeto:

a atitude reflexiva purifica simultaneamente a noção comum do

corpo e a da alma, definindo o corpo como uma soma de

partes sem interior, e a alma como um ser inteiramente

presente em si mesmo, sem distância. Essas definições

correlativas estabelecem a clareza em nós e fora de nós:

transparência de um objeto sem dobras, transparência de um

sujeito que é apenas aquilo que pensa ser (p. 268).

Ao contrário de tal pensamento, o filósofo prega que “o problema do mundo e,

para começar, o do corpo próprio, consiste no fato de que tudo reside ali” (p.

268). Neste sentido, é estabelecida uma relação pré-reflexiva e ambígua entre

homem e corpo, em que fica claro que nós somos o nosso corpo:

a experiência do corpo próprio, ao contrário, revela-nos um

modo de existência ambíguo. Se tento pensá-lo como um

conjunto de processos em terceira pessoa – “visão”,

„motricidade”, “sexualidade” – percebo que essas “funções” não

podem estar ligadas entre si e ao mundo exterior por relações

de causalidade, todas elas estão confusamente retomadas e

implicadas em um drama único. Portanto, o corpo não é um

objeto (p. 269).

Assim, tal ideia rompe com a noção do corpo como objeto, à medida que

propõe uma concepção de homem implicado no mundo, não como sujeito de

relações causais, como propõe a concepção dualista de homem. Merleau-

Ponty aprofunda tal questão, traçando considerações sobre como a noção de

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corpo é tratada pela fisiologia e pela psicologia tradicionais e elabora uma

crítica a tais concepções, fundamental à construção da noção de corpo próprio.

3.2.1 Considerações sobre o corpo como objeto na fisiologia e na

psicologia

A definição de objeto, descrita por Merleau-Ponty (1945/2006),

[...] é a de que ele existe partes extra partes e que, por

conseguinte, só admite entre suas partes ou entre si mesmo e

os outros objetos relações exteriores e mecânicas, seja no

sentido estrito de um movimento recebido e transmitido, seja

no sentido amplo de uma relação de função variável (p. 111).

Poderíamos, então, inserir o organismo no universo dos objetos? Para tanto,

segundo Merleau-Ponty, teríamos que conceber o funcionamento do corpo

como um movimento linear entre estímulo e receptores, o que não acontece na

perspectiva do corpo próprio. Merleau-Ponty critica o modo como as ciências

empíricas tratam o corpo, ou seja, como um organismo que resulta de uma

associação de órgãos regidos por princípios causais, desconsiderando a

intencionalidade de suas relações com o mundo e com as coisas e a

possibilidade de se dirigir às coisas reconhecendo-se como sujeito. O filósofo

considera que o corpo próprio não é corpo objetivo, como fora pensado pelas

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ciências clássicas, mas é corpo fenomenal, dotado de intencionalidade pré-

reflexiva, que é capaz de antecipar, não de calcular seus movimentos.

Para discutir a questão do organismo como objeto, Merleau-Ponty

recorre aos estudos da fisiologia moderna e compreende que um

acontecimento, mesmo na esfera psicofísica, não pode ser concebido conforme

a fisiologia cartesiana, ou seja, como uma contiguidade de processos em si

mesmos, ou como relação entre estímulo e resposta. Assim, não há

consciência do corpo separada da alma. Tal ideia é discutida por Merleau-

Ponty por meio do exemplo da vivência do membro fantasma, quando busca

compreender como os determinantes psíquicos e as condições fisiológicas se

engrenam:

o membro fantasma não é o simples efeito de uma causalidade

objetiva nem uma cogitatio a mais. Ele só poderia ser uma

mistura dos dois se encontrássemos o meio de articular um ao

outro o “psíquico” e o “fisiológico”, o “para si” e o “em si” e de

preparar entre eles um encontro, se os processos em terceira

pessoa e os atos pessoais pudessem ser integrados em um

meio que lhes fosse comum (p. 117).

Para o filósofo, o encontro do fisiológico com o psíquico é selado no

movimento da existência, isto é no movimento do ser-no-mundo, que, sendo

pré-reflexivo, não admite relação de causalidade, mas um engajamento eu-

mundo. Neste sentido, retoma a discussão sobre o membro fantasma,

afirmando que ele não requer nem mesmo uma explicação fisiológica – que o

tomaria como uma simples supressão ou persistência de estimulações

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interoceptivas –, nem uma explicação psicológica – que o concebe como uma

recordação ou como a presença afetiva de uma representação –, pois, em

ambos os casos, persiste a categoria de mundo objetivo. Para tal fenômeno,

Merleau-Ponty considera a perspectiva do ser-no-mundo:

este fenômeno, que as explicações fisiológicas e psicológicas

igualmente desfiguram, é compreensível ao contrário na

perspectiva do ser no mundo. Aquilo que em nós recusa a

mutilação e a deficiência é um eu engajado em um certo

mundo físico e inter-humano, que continua a estender-se para

seu mundo a despeito de deficiências ou de amputações, e

que, nessa medida, não as reconhece de jure. A recusa da

deficiência é apenas o avesso de nossa inerência a um mundo,

a negação implícita daquilo que se opõe ao movimento natural

que nos lança a nossas tarefas, a nossas preocupações, a

nossa situação, a nossos horizontes familiares (p. 121).

Com tal afirmação, compreendo a noção de ser-no-mundo de Merleau-Ponty e

o seu argumento de que “o corpo é o veículo do ser no mundo” (p. 122). Tal

movimento é ambíguo, pois o corpo que percebe é, ao mesmo tempo,

percebido, deixando de ser compreendido como coisa ou objeto. Como afirma

Coelho Junior (1991), “é a partir do corpo próprio, do „corpo vivido‟ que posso

estar no „mundo‟, em relação com os outros e com as coisas” (p. 49). É em tal

movimento da existência que Merleau-Ponty percebe o entrelaçamento entre

os motivos psicológicos e as sensações corporais, pois não há movimento no

corpo vivo isento de intenções psíquicas, nem ato psíquico em que não haja o

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germe de disposições fisiológicas. Portanto, o corpo próprio não é um encontro

entre causalidades nem uma colisão entre causas e fins.

Tais reflexões colocam o corpo na ordem da existência:

o que nos permite tornar a ligar o “fisiológico” e o “psíquico” um

ao outro é o fato de que, reintegrados à existência, eles não se

distinguem mais como a ordem do em si e a ordem do para si,

e de que são ambos orientados para um pólo intencional ou

para o mundo (p. 129).

Ao discutir a perspectiva psicológica do corpo, Merleau-Ponty afirma que tal

concepção descreve o corpo próprio com características que não são

compatíveis com as propriedades de um objeto, uma vez que não é possível

distanciar-se dele. O corpo é, então, “um objeto que não me deixa” (p. 134).

Mas, mesmo assim, questiona o filósofo, seria um objeto? O que caracteriza

um objeto? Ser observável, poder situar-se diante de nossos olhares, poder

distanciar-se até desaparecer de nosso campo visual? A permanência do corpo

próprio, no entanto, é diferente daquela dos objetos: ele existe comigo. Mas o

meu corpo me impõe uma perspectiva do mundo que me permite perceber

outros corpos, observar os objetos à minha volta e manipulá-los, mas não

posso observar meu próprio corpo, pois, para fazer isto, precisaria de outro

corpo. Mas há, no corpo próprio, um campo de presença primordial que me

permite percebê-lo:

a permanência do corpo próprio, se a psicologia clássica a

tivesse analisado, podia conduzi-la ao corpo não mais como

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objeto do mundo, mas como meio de nossa comunicação com

ele, ao mundo não mais como soma de objetos determinados,

mas como horizonte latente de nossa experiência, presente

sem cessar, ele também, antes de todo pensamento

determinante (p. 136).

Outra característica incompatível com as propriedades do objeto e

que define o corpo próprio, segundo Merleau-Ponty (1945/2006), é que ele não

provoca no indivíduo sensações duplas, como afirma a psicologia clássica. O

corpo se surpreende em sua função de tocar e ser tocado, de forma que não se

reconhece quem toca e quem é tocado, o que, no caso dos objetos, representa

um movimento de inércia e a impossibilidade de vivenciar tal sensação:

quando pressiono minhas mãos uma contra a outra, não se

trata então de duas sensações que eu sentiria em conjunto,

como se percebem dois objetos justapostos, mas de uma

organização ambígua em que as duas mãos podem alternar-se

na função de “tocante” e “tocada” (p. 137).

Quando a mão esquerda toca a direita, há reciprocidade entre elas e não se

distingue quem toca e quem é tocado. Tal experiência apenas é possível a

partir do corpo próprio, no campo pré-reflexivo, no qual não se separa sujeito e

objeto – quem toca e quem é tocado – e em que o corpo próprio se distingue

dos outros objetos.

Outro importante ponto, frequentemente discutido pela psicologia

clássica e, também, relevante para Merleau-Ponty (1945/2006), é a distinção

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entre o caráter afetivo do corpo, enquanto que as coisas são apenas

representadas. Para ele, o equívoco da psicologia clássica reside em se

preocupar com o saber objetivo, tomando a experiência do sujeito vivo como

objeto da ciência. Preocupada com seu estatuto científico, não extrai da

experiência do corpo qualquer estatuto filosófico, pois ela é considerada

representação do corpo, não um fenômeno, ou seja, o interesse da psicologia

clássica se centra no fato psíquico. Merleau-Ponty assim descreve tal

equívoco:

apreendo meu corpo como um objeto-sujeito, como capaz de

“ver” e de “sofrer”, mas essas representações confusas faziam

parte da curiosidade psicológica, eram amostras de um

pensamento mágico do qual a psicologia e a sociologia

estudam as leis e que elas fazem regressar, a título de objeto

de ciência, ao sistema do mundo verdadeiro (p. 139-140).

Desta forma, o corpo próprio, como tocante e tocado, apresenta como

características a incompletude e a ambiguidade, que não são da ordem do fato.

Tais características não inserem o corpo na categoria de um objeto entre os

demais, mas lhe proporciona a possibilidade de ser-no-mundo, o que não foi

considerado pela psicologia clássica, segundo Merleau-Ponty:

os psicólogos não percebiam que, ao tratar assim a experiência

do corpo, eles apenas adiavam, em consonância com a

ciência, um problema inevitável. A incompletude de minha

percepção era compreendida como uma incompletude de fato,

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que resultava da organização de meus aparelhos sensoriais; a

presença de meu corpo, como uma presença de fato que

resultava de sua ação perpétua sobre meus receptores

nervosos; enfim, a união entre a alma e o corpo, suposta por

essas duas explicações, era compreendida, segundo o

pensamento de Descartes, como uma união de fato cuja

possibilidade de princípio não precisava ser estabelecida

porque o fato, ponto de partida do conhecimento, eliminava-se

de seus resultados acabados (p. 140).

Portanto, romper com a ideia de corpo objeto é compreendê-lo numa dimensão

pré-reflexiva, na qual não se distingue aquele que sente e aquilo que é sentido.

O que Merleau-Ponty propõe é um retorno à experiência originária, tal como o

mundo é percebido antes de qualquer teorização sobre a experiência humana.

É assim que se constitui o corpo próprio.

3.2.2 A experiência do corpo próprio

Após examinar a perspectiva do corpo objeto, de acordo com a

fisiologia e a psicologia clássicas, Merleau-Ponty (1945/2006) apresenta a

concepção do corpo próprio a partir da experiência vivida. Inicialmente, o

filósofo descreve a espacialidade do corpo próprio, que envolve uma unidade

ambígua. Conheço meu corpo a partir de um esquema corporal, assim

compreendido:

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[...] meu corpo inteiro não é para mim uma reunião de órgãos

justapostos no espaço. Eu o tenho em uma posse indivisa e sei

a posição de cada um de meus membros por um esquema

corporal em que eles estão todos envolvidos. Mas a noção de

esquema corporal é ambígua, como todas as que surgem na

reviravolta da ciência (p. 143-144).

Assim, o esquema corporal não é nem um resumo de nossa experiência

corporal – que atribui significado às experiências intero e proprioceptivas – nem

uma tomada de consciência global, que remete ao mundo intersensorial. A

espacialidade do corpo apenas pode ser percebida enraizando o espaço na

existência, na qual “ser corpo é estar atado a um certo mundo” (p. 205), o que

confirma que o corpo não está no espaço, mas que ele é no espaço. Nesta

perspectiva, as diferentes partes do meu corpo, seus aspectos visuais, táteis e

motores, não são simplesmente coordenadas, mas constituem uma unidade: a

unidade do corpo próprio. Portanto,

não traduzo “os dados do tocar” para a “linguagem da visão” ou

inversamente; não reúno as partes do meu corpo uma a uma;

essa tradução e essa reunião estão feitas de uma vez por

todas em mim: elas são meu próprio corpo (p. 207).

Assim, percebo em Merleau-Ponty, a ideia de que “o corpo próprio nos ensina

um modo de unidade que não é a subsunção a uma lei” (p. 207), pois ele

mesmo é a lei, a medida que não está sujeita a relações entre seus fragmentos

nem a correlações entre o tátil e o visual. Nós mesmos somos, por meio da

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experiência, o que mantém em conjunto tais fragmentos e que os vê e os toca.

O corpo próprio interpreta a si mesmo.

Merleau-Ponty (1945/2006) afirma que “não é ao objeto físico que o

corpo pode ser comparado, mas, antes, à obra de arte” (p. 208). Toma como

referência um quadro ou uma peça musical em que a ideia apenas é

comunicada pelo desdobramento das cores e dos sons. Toma, ainda, como

exemplo, a análise da obra de Cézanne3, cujo único sentido possível é

proporcionado pela percepção dos seus quadros. Assim, em qualquer obra de

arte, não se separam as significações das obras:

assim como a fala significa não apenas pelas palavras, mas

ainda pelo sotaque, pelo tom, pelos gestos e pela fisionomia, e

assim como esse suplemento de sentido revela não mais os

pensamentos daquele que fala, mas a fonte de seus

pensamentos e sua maneira de ser fundamental, da mesma

maneira a poesia, se por acidente é narrativa e significante,

essencialmente é uma modulação da existência (p. 209).

O poema, diferente do grito, utiliza uma linguagem particular, de forma que a

modulação existencial não se dissipa no momento da expressão, mas eterniza-

_________________________________________________________

3. Paul Cézanne foi um pintor pós-impressionista francês do final do século XIX que influenciou a pintura do século XX. A característica mais marcante de sua obra é que ela não se subordinava às leis da perspectiva e, talvez, por tal motivo, tenha servido de inspiração à obra de Merleau-Ponty.

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se. Entretanto, como não se destaca de todo o apoio material, ou seja, o texto,

para ser conservado, precisa ser escrito e, portanto, não reside no plano das

ideias, o poema não subsiste, eternamente, como uma verdade, mas existe à

maneira de uma coisa. Um romance não é uma exposição de ideias ou

caracteres, mas a apresentação de um acontecimento interhumano que não se

pode modificar sem que se modifique o sentido romanesco do mesmo.

Merleau-Ponty utiliza tais recursos no sentido de afirmas que “não se pode

distinguir a expressão do expresso, cujo sentido só é acessível por um contato

direto, e que irradia sua significação sem abandonar seu lugar temporal e

espacial” (p. 209-210). É assim que o corpo pode ser comparado à obra de

arte, “ele é um nó de significações vivas e não a lei de um certo número de

termos co-variantes” (p. 210). As suas partes não se reúnem, uma a uma, para

formar um sistema, mas se implicam, mutuamente, formando um todo que se

expressa na existência. O corpo, para Merleau-Ponty, exprime a existência

total porque a existência se realiza nele por meio de uma operação primordial

de significação, em que o expresso não existe separado da expressão.

Qual a importância de pensar o corpo de tal forma para a sociedade

e a ciência contemporâneas? Quais as contribuições do pensamento de

Merleau-Ponty (1945/2006), principalmente em sua ruptura com o pensamento

dualista e a construção do pensamento ambíguo, para o que, hoje, se

convencionou chamar de culto ao corpo ou de cultura somática? Qual a

importância para a compreensão do fenômeno da depressão?

Quanto mais atenção se tem dado ao corpo, na sociedade

contemporânea, mais incertezas se produzem em relação a ele: cada vez mais

se investe em tecnologia objetivando transformações e/ou modificações

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corporais, obedecendo a padrões considerados pela cultura como ideais de

beleza; se investe, também, em tecnologia médica e se fragmenta o corpo para

curá-lo ou prolongar-lhe o vigor e a juventude, e se realizam discussões e

reflexões nos campos teórico, científico e filosófico sobre a corporalidade. Até

que ponto, tratando o corpo como objeto da ciência e da tecnologia, tais

iniciativas têm prolongado a longa tradição do pensamento ocidental de

separação entre a mente e o corpo e a tendência de relegar o corpo a um

plano desprezível? Assistimos, atônitos, ao modelo de beleza que se propaga

em nossa sociedade, refletida na magreza cadavérica de modelos fotográficos

e na queixa em ascensão dos transtornos alimentares nas mulheres. Não

seriam esses os reflexos mais visíveis do ainda vigente modelo do corpo

objeto? Reflexos do pensamento dualista que lança um olhar dicotomizado

sobre a pessoa que é e que sente? Não traria este olhar objetivante da

experiência humana dificuldades em ver a pessoa que sofre, pois mostra um

corpo/organismo que padece? (Ortega, 2008).

Quando eu digo que eu sou o meu corpo, concebo-o como dotado

de significação a partir da minha própria experiência. Não é possível decompô-

lo ou recompô-lo para compreendê-lo, senão por meio da experiência vivida. A

experiência do corpo não é comparável à ideia do corpo, que é o que sustenta

o pensamento dualista.

Quer se trate do corpo do outro ou de meu próprio corpo, não

tenho outro meio de conhecer o corpo humano senão vive-lo,

quer dizer, retomar por minha conta o drama que o transpassa

e confundir-me com ele. Portanto, sou meu corpo, exatamente

na medida em que tenho um saber adquirido e,

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reciprocamente, meu corpo é como um sujeito natural, como

um esboço provisório de meu ser total. Assim, a experiência do

corpo próprio opõe-se ao movimento reflexivo que destaca o

objeto do sujeito e o sujeito do objeto, e que nos dá apenas o

pensamento do corpo ou o corpo em idéia, e não a experiência

do corpo ou o corpo em realidade (Merleau-Ponty, 1945/2006,

p. 269).

Compreender a questão do corpo próprio para imbricar-se no

fenômeno da depressão pode ser possível a partir perspectiva. A partir do

corpo deprimido, revela-se, também, o deprimido, bem como sua depressão.

Significa, então, abrir mão do corpo objetivo, a que se atribui um caráter

secundário, tratado como objeto ou depositário de sintomas, e tomar como

referência a noção de corpo-próprio em Merleau-Ponty (1945/2006), que

sugere:

[...] o corpo, retirando-se do mundo objetivo, arrastará os fios

intencionais que o ligam ao seu ambiente e finalmente nos

revelará o sujeito que percebe assim como o mundo percebido

(p. 110).

Portanto, o caráter ambíguo, presente na fenomenologia de Merleau-Ponty,

responde à questão do corpo que eu sou, não do corpo que eu tenho, abolindo

a perspectiva dualista, que separa o corpo da alma e reduz o corpo a um

objeto. O filósofo abandona o modelo da fisiologia mecanicista, que

compreende o corpo como um objeto, tomado como “partes extra partes” (p.

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111) e o comportamento como resultado do pensamento causal ou mecânico.

Atribui ao corpo outro estatuto e considera o corpo vivido ou corpo próprio,

criador de significação, um ser-em-situação, um ser-no-mundo, que não se

separa da sua existência. Tal forma de conceber o corpo distingue o corpo

objeto da fisiologia, que se resume a um organismo, do corpo vivo como

expressão e manifestação da subjetividade: “só posso compreender a função

do corpo vivo realizando-a eu mesmo e na medida em que sou um corpo que

se levanta em direção ao mundo” (p. 114), afirma Merleau-Ponty .

Assim, quando, em minha prática clínica, me deparo com uma

pessoa que vive a experiência da depressão, não posso decompô-la, a partir

de um diagnóstico, em um psiquismo que sente e um corpo que padece, mas,

a partir da experiência do seu corpo posso apreciar o sentido e o alcance de tal

fenômeno, tomando o corpo próprio como fonte absoluta da experiência. Sob a

lente da fenomenologia mundana, o fenômeno psicopatológico não se esgota

nas explicações causais, porém se torna compreensível na maneira como o

corpo se manifesta, considerando-o como um corpo engajado no mundo e em

situação. O corpo deprimido é o corpo que desvela o fenômeno da depressão,

partindo da experiência de quem o vive. Retomando a ideia desta pesquisa, o

estudo do corpo deprimido pretende revelar muito mais do que, simplesmente,

a descrição sintomatológica dos quadros depressivos. A partir de tal

perspectiva, pretendo compreender a experiência vivida da depressão pela via

da descrição do corpo vivido, com base no pensamento de Merleau-Ponty

(1945/2006).

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4. MÉTODO

O caminho percorrido pela ciência deve ser acompanhado por todos

os que desejam contribuir para a construção do conhecimento; no entanto,

nunca se deve perder de vista o ser humano, que é o fim de todas as coisas. A

busca do conhecimento sempre foi um dos grandes desafios humanos,

chegando, mesmo, a se tornar um artefato de poder. Mas seria possível nos

apropriarmos do conhecimento a ponto de tomá-lo como verdade? Alves

(1996) adverte que fazer ciência é percorrer um caminho de mistérios, cuja

principal credencial é o enamoramento pelo objeto que se quer conhecer e que

requer do cientista uma postura de humildade:

ciência é coisa humilde, pois se sabe que a verdade é

inatingível. Nunca lidamos com a coisa mesma, que sempre

nos escapa. Aquilo que temos são apenas modelos provisórios,

coisas que construímos por meio de símbolos, para entrar um

pouco no desconhecido (p. 17).

Fazer ciência é, portanto, estar enamorado, envolvido e implicado naquilo que

se deseja conhecer. Para este fim, deve-se considerar duas questões que, na

minha maneira de entender, são fundamentais para o percurso do pesquisador:

a escolha do tema do estudo e o método a ser utilizado.

Escolher um tema, para mim, é garimpar no rio que corre em nossa

vida e encontrar o metal raro, a joia, que será trabalhada e transformada em

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produto final. É olhar para os lados e perceber as inquietações, as paixões,

aquilo que nos salta aos olhos no quadro geral e que, por isto mesmo, nos faz

debruçar sobre ele. Como realizar uma construção sem que se coloque nela

uma boa dose de envolvimento e paixão? É assim que concebo a escolha do

tema de pesquisa.

Busquei lançar meu olhar sobre o mundo vivido da pessoa com

depressão por ser uma das questões que mais me inquietam na prática clínica

e na psicopatologia. O que mais posso perceber e aprender sobre tal

fenômeno, além do que me dizem os compêndios? Para mim, nada é mais

capaz de tornar clara a compreensão do que é a depressão do que tentar

adentrar no mundo vivido da pessoa que a experimenta. Estudar o corpo

deprimido é conhecer o fenômeno da depressão, não a partir da descrição dos

manuais, mas da experiência vivida da pessoa deprimida. É poder descrever, a

partir do depoimento do outro, aquilo que meu olhar, meu corpo e meus

sentidos captam, na minha posição de psicoterapeuta, mas que meu

conhecimento, muitas vezes, não dá conta. Neste sentido, a grande questão

que se estabelece é a escolha de um método que corresponda

satisfatoriamente a tal demanda.

4.1. A Pesquisa Qualitativa

Compreendo que a pesquisa qualitativa é a que detém mais

credenciais para atender aos objetivos propostos nesta pesquisa, uma vez que:

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[...] uma técnica qualitativa é aquela em que o investigador

sempre faz alegações de conhecimento com base

principalmente ou em perspectivas construtivistas (ou seja,

significados múltiplos das experiências individuais, significados

social e historicamente construídos, com o objetivo de

desenvolver uma teoria ou um padrão) ou em perspectivas

reivindicatórias/participatórias (ou seja, políticas, orientadas

para a questão; ou colaborativas, orientadas para a mudança)

ou em ambas. Ela também usa estratégias de investigação

como narrativas, fenomenologias, etnografias, estudos

baseados em teoria ou estudos de teoria embasada na

realidade. O pesquisador coleta dados emergentes abertos

com o objetivo principal de desenvolver temas a partir dos

dados (Creswell, 2007, p. 35).

Assim, minha opção pela pesquisa qualitativa se justifica por se tratar de um

estudo que pretendeu apreender os significados atribuídos pelos sujeitos ao

fenômeno investigado. Não pretendi traçar generalizações ou adentrar em um

raciocínio de causa e efeito, próprios da pesquisa quantitativa, cuja importância

para a investigação científica é inquestionável, mas que atende a objetivos

diferentes dos propostos aqui. Minha intenção foi investigar a depressão na

perspectiva do corpo próprio, tendo como foco o modo como as pessoas que a

vivenciam dão sentido às suas experiências vividas.

Corroborando com tal ideia, Minayo (1994) afirma que a pesquisa

qualitativa:

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trabalha com o universo de significados, motivações,

aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a

um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos

fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização

de variável (p. 22).

Para atender a tal finalidade, minha busca foi realizada no sentido da

compreensão subjetiva da experiência do corpo deprimido, justificando a opção

pela pesquisa qualitativa. Busquei uma postura característica de tal tipo de

abordagem (Gil, 1995), trabalhando com sentidos e significados, privilegiando o

contato direto com os sujeitos na busca de informações. A idéia é gerar a

possibilidade de construir, a partir das falas dos sujeitos colaboradores, uma

saber que fale deles mesmos e de sua existência ou do mundo vivido, ou seja,

conhecer o significado do fenômeno da depressão a partir da experiência de

que vivencia tal fenômeno. A riqueza de informações obtidas por meio das

transcrições das entrevistas teve a análise de suas significações construída a

partir dos dados coletados, não a partir de hipóteses previamente

determinadas.

Entretanto, realizada a opção pela pesquisa qualitativa, fez-se

necessária a escolha de um referencial teórico para a validação do

conhecimento que desenvolvia. Assim, encontrei no método fenomenológico

crítico tal suporte. Traço, a seguir, algumas considerações sobre o método

fenomenológico, para, em seguida, esboçar o diferencial em relação ao método

fenomenológico crítico.

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4.2. O Método Fenomenológico

O método fenomenológico tem sido amplamente utilizado na

pesquisa qualitativa, tendo seus pressupostos ligados à filosofia

fenomenológica. A fenomenologia surgiu como movimento filosófico no final do

século XIX e no início do século XX, tendo em Husserl seu maior expoente

(Forghieri, 1993). Para Dartigues (1992), a vida filosófica de Husserl é marcada

pelo sentimento de uma crise de cultura, uma vez que inicia seus escritos no

final do século XIX, período caracterizado na Alemanha pela derrocada dos

grandes sistemas filosóficos tradicionais. A ciência, marcada pelo positivismo e

pelo conhecimento objetivo, tomou lugar nesta lacuna e o pensamento

científico passou a predominar na época. No entanto, a segurança do

pensamento positivista também passou a ser abalada, sendo questionados os

fundamentos e o alcance de seus postulados e também criticada a postura das

ciências humanas quanto ao uso de métodos das ciências da natureza. Nesse

contexto, surgiram as primeiras obras de Husserl que, partindo das ideias de

Brentano sobre intencionalidade, foram além delas. Questionavam os sistemas

especulativos da filosofia e as teorias explicativas das ciências positivas, e

propunham que o impulso de investigação devia partir das coisas e dos

problemas, considerando como ponto de partida do conhecimento voltar às

coisas mesmas. Como afirma Forghieri (1993):

a “coisa mesma” é entendida por ele não como realidade

existindo em si, mas como fenômeno, e o considera como a

única coisa à qual temos acesso imediato e intuição originária;

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o fenômeno integra a consciência e o objeto, unidos no próprio

ato de significação (p. 15).

Assim, com Husserl a fenomenologia surgiu como método que possibilita

chegar à essência do próprio conhecimento, sendo a redução fenomenológica

o recurso para chegar ao fenômeno como tal ou à sua essência. Desta

maneira, é necessário suspender, ou colocar fora de ação, as teorias

científicas, nossos valores e preconceitos sobre o mundo, buscando uma

mudança da atitude natural para a atitude fenomenológica, o que nos permite

visualizar os fenômenos como significações, tal como se revelam. Amatuzzi

(1996) descreve a pesquisa fenomenológica, afirmando que “é a pesquisa que

lida com o significado da vivência” (p. 5). Ou seja, o que caracteriza a pesquisa

fenomenológica é o “estudo do vivido, ou da experiência imediata pré-reflexiva,

visando descrever seu significado” (p. 5).

Qual a importância desta mudança, da atitude natural para a atitude

fenomenológica na pesquisa sobre a depressão? Creswell (2007), citando

Moustakas como representante de tal tipo de investigação, afirma que, na

pesquisa fenomenológica, o pesquisador:

[...] identifica a “essência” das experiências humanas relativas

a um fenômeno, como descrito pelos participantes de um

estudo. Entender as “experiências vividas” identifica a

fenomenologia como uma filosofia e como um método e o

procedimento envolve o estudo de um pequeno número de

sujeitos através de um envolvimento extenso e prolongado

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para desenvolver padrões e relações de significado (como

citado em Creswell, 2007, p. 32).

Neste sentido, considerando que o principal diferencial de tal mudança consiste

na compreensão dos fenômenos como dotados de significado, a depressão foi

discutida aqui, a partir do ato depressivo ou dos aspectos peculiares a uma

existência marcada pela depressão, não em sua sintomatologia ou por meio da

caracterização do quadro depressivo. O corpo, tomado como corpo próprio, na

concepção de Merleau-Ponty (1945/2006), é o meio de acesso à existência,

pois os seus sinais se manifestam, ali, de forma clara.

Meu objetivo foi buscar o significado da experiência do sujeito, neste

caso, de pessoas que vivem ou viveram a experiência da depressão em

relação ao corpo próprio, sendo, para tanto, imprescindível atentar aos

seguintes focos, inerentes ao método fenomenológico:

▪ A prática da redução fenomenológica, em que o pesquisador põe

em suspenso seus pensamentos, ideias preconcebidas,

pressupostos e teorias, para deixar emergir o fenômeno em toda

a sua intensidade;

▪ O foco na descrição da experiência, favorecida por questões

levantadas pelo pesquisador que explorem o significado da

experiência vivida dos indivíduos, incentivando que eles a

descrevam;

▪ A ênfase na relação intersubjetiva, pois, na pesquisa

fenomenológica, não há sujeitos que fornece informações, mas

colaboradores que pensam junto o assunto e o pesquisador atua

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como facilitador do acesso à experiência vivida do indivíduo

(Amatuzzi, 2001).

Atentar a tais focos na condução do processo de pesquisa, principalmente no

contato com o entrevistado, foi de suma importância para que os objetivos

desta pesquisa fossem atingidos e eu conseguisse, de fato, adentrar no

universo de significação que aquela pessoa que vivencia a experiência da

depressão atribui a tal fenômeno.

No entanto, tornou-se necessário precisar o pensamento filosófico

que embasou a pesquisa, uma vez que, como afirma Moreira (2004), ao nos

referirmos ao método fenomenológico em pesquisa, é importante que

possamos especificar a qual perspectiva filosófica nos referimos, pois o método

fenomenológico sofre variações, segundo o pensamento filosófico que a

sustenta. A fenomenologia de Merleau-Ponty propõe uma lente para a

compreensão do mundo a partir da perspectiva de múltiplos contornos, de

acordo com a qual a realidade percebida está sempre em movimento. Tal ideia

foi desenvolvida por Moreira e Sloan (2002) para uma compreensão

fenomenológica mundana em psicopatologia, constituindo o método

fenomenológico crítico, descrito a seguir.

4.3. O Método Fenomenológico Crítico

O principal aspecto que se deve ressaltar quanto ao método

fenomenológico crítico, diz respeito à compreensão da experiência vivida em

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sua mútua constituição com o contexto sociocultural. Neste sentido, utiliza uma

lente mundana, embasada na fenomenologia de Merleau-Ponty,

compreendendo que homem e mundo em mútua constituição.

Moreira (2004) afirma que:

a fenomenologia de Merleau-Ponty pode ser utilizada como

ferramenta crítica de revelação do mundo na pesquisa em

psicopatologia, na medida em que compreende o fenômeno

psicopatológico de forma mundana, com múltiplos contornos

(p. 449).

Tal perspectiva pode ser melhor compreendida pela analogia que

Merleau-Ponty (1966/2004) faz entre sua filosofia e a pintura de Cézanne. No

ensaio “A Dúvida de Cézanne” estão presentes temas como percepção,

expressão e liberdade, e a imbricação delas com a arte. Para Merleau-Ponty,

as deformações encontradas na pintura de Cézanne traduzem muito mais

realidade do que a fotografia, por exemplo, pois, na fotografia, há a perda do

movimento, que separa o real do imaginário (Moreira, 2004). Assim, a pintura

de Cézanne expressa, pela ruptura das dicotomias, o pensamento de Merleau-

Ponty, pelo reconhecimento das ambiguidades inerentes ao ser humano na

ideia de múltiplos contornos.

Para Merleau-Ponty (1945/2006), o universo da ciência é construído

sobre o mundo vivido e é justamente tal perspectiva que corrobora com o rigor

científico. Qual é, portanto, a concepção de homem que prega tal forma de

fazer ciência? Tal questão é de fundamental importância para quem deseja

enveredar pelo caminho da pesquisa científica, uma vez que é na concepção

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de homem que se ancora a escolha do método e do referencial de mundo. A

fenomenologia de Merleau-Ponty entende o homem como fonte absoluta,

colocando a experiência acima das representações científicas e propondo que

retornar às coisas mesmas é retornar ao mundo anterior ao conhecimento do

qual se trata. Assim, considera Merleau-Ponty, que

o mundo está ali antes de qualquer análise que eu possa fazer

dele, e seria artificial faze-lo derivar de uma série de sínteses

que ligariam as sensações, depois os aspectos perspectivos do

objeto, quando ambos são justamente produtos da análise e

não devem ser realizados antes dela (p. 5).

Com tal afirmação, Merleau-Ponty atribui ao real um caráter descritivo, não

sendo possível construí-lo ou constituí-lo, chegando, a partir daí, à redução

fenomenológica como meio de descrever o mundo. Para Merleau-Ponty, no

entanto, “o maior ensinamento da redução é a impossibilidade de uma redução

completa” (p. 10), pois estamos ancorados no mundo e, para perceber o

mundo e apreendê-lo, é necessário romper nossa familiaridade com ele, o que

é inviável ao homem mundano.

Assim, a pesquisa fenomenológica busca o significado da

experiência vivida e o diferencial do método fenomenológico crítico é a

compreensão de tal experiência a partir da concepção de Merleau-Ponty,

considerando o fenômeno como uma experiência mundana. Na pesquisa em

psicopatologia, a lente de múltiplos contornos transforma o método

fenomenológico em ferramenta crítica e permite uma compreensão mais

abrangente do fenômeno psicopatológico.

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A partir do método fenomenológico crítico, o significado da

experiência vivida do corpo deprimido foi apreendido a partir de uma lente de

múltiplos contornos, incluindo significados biológicos, psicológicos e

ideológicos, entre outros. Destaco que a perspectiva crítica não se restringe

aos significados que, tradicionalmente, são atribuídos ao fenômeno

psicopatológico. A psicopatologia tradicional se volta aos sintomas na busca de

um diagnóstico, servindo a uma compreensão individualista do processo de

adoecimento. Por outro lado, a psicopatologia crítica se afasta de tal

compreensão meramente biológica e, ou, psicológica, considerando uma

compreensão ideológica dos sintomas (Moreira & Sloan, 2002). Assim, foi

realizada esta pesquisa qualitativa, com base no método fenomenológico

crítico (Moreira, 2004), com o objetivo de compreender o significado da

experiência vivida do corpo deprimido. Todo o trabalho desta pesquisa foi

desenvolvido com uma lente mundana, ou seja, com base na fenomenologia de

Merleau-Ponty, rompendo com a perspectiva dualista e fragmentada do ser

humano e do mundo, compreendendo-os em mútua constituição e assumindo

uma postura existencial, distanciando-se das posturas idealistas e

materialistas.

Considero tal tema bastante instigante, uma vez que pesquisar o

corpo deprimido, segundo a fenomenologia de Merleau-Ponty (1945/2006),

pode nos revelar muito acerca da pessoa que vive a experiência da depressão,

assim como acerca do próprio fenômeno. Tratando-se de uma pesquisa

fenomenológica que utiliza a lente da psicopatologia crítica (Moreira, 2004),

parti do princípio de que a pessoa com depressão é a que mais sabe sobre tal

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fenômeno. Neste sentido, como pesquisadora, me dispus a aprender com ela

sobre sua experiência.

4.4. O Local da Pesquisa

Inicialmente, entrei em contato com o Serviço de Psicologia Aplicada

(SPA), vinculado ao NAMI – Núcleo de Atenção Médica Integrada e mantido

pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR, no sentido de realizar, junto aos

clientes de tal serviço, a pesquisa em questão. Este serviço funciona como um

centro de referência no acompanhamento psicoterápico, servindo como campo

de estágio aos alunos graduandos do Curso de Psicologia da UNIFOR. A

escolha do local se deveu à necessidade de ter acesso a um número

significativo de pessoas com diagnóstico de depressão. No contato com a

coordenação da instituição, foram esclarecidos os objetivos da pesquisa e

solicitado que me fossem encaminhados clientes em atendimento, com

diagnóstico de depressão, para fazerem parte da pesquisa. Os clientes foram

convidados a participar e informados quanto às formalidades éticas, para, em

seguida ser marcada a entrevista.

O Núcleo de Atenção Médica Integrada – NAMI, criado em 1978, é

referência na cidade de Fortaleza por prestar atendimento médico gratuito de

qualidade, prestando serviços de natureza secundária e, em alguns casos, até

mesmo de alta complexidade. Localizado na Avenida Washington Soares,

1321, Bairro Edson Queiroz, atende anualmente cerca de 49 mil pacientes,

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com os quais são efetuados mais de 430 mil procedimentos, desde consultas

médicas, análises laboratoriais, vacinas, atendimentos maternoinfantis e

serviços especializados nas áreas de enfermagem, fisioterapia, fonoaudiologia

e terapia ocupacional. O Núcleo de Atenção Médica Integrada é também

espaço de estágio para os alunos do Centro de Ciências da Saúde e do curso

de Psicologia, que, sob a supervisão dos docentes, realizam suas práticas de

estágio, aliando teoria e prática da vivência profissional, ainda na Universidade.

Um dos benefícios advindos da estrutura do NAMI é a possibilidade

de desenvolvimento do processo de interdisciplinaridade, permitindo a

integração entre os saberes dos cursos correlacionados, oferecendo um

serviço rico e integrado para a população. Os cursos trabalham conjuntamente

no processo de triagem, sendo os encaminhamentos feitos aos serviços

demandados, sempre que necessário.

O Serviço de Psicologia Aplicada – SPA - conta com um espaço

ergonômico, higienizado, com equipamentos mobiliários modernos e adequado

à prática de atendimento psicológico. Conta com salas (todas climatizadas e

confortáveis) de atendimento – individual, grupo, individual infantil, grupo

infantil e família – e salas de supervisão e de estagiários. São oferecidos os

seguintes serviços: triagem, psicoterapia individual (criança, adolescente e

adulto), psicodiagnóstico, psicoterapia familiar, psicoterapia de grupo (crianças,

adolescentes e adultos), oficina terapêutica com crianças, pronto-atendimento,

atendimento psiquiátrico, grupo operativo, psicomotricidade e orientação

vocacional. Tais serviços são ofertados à clientela que busca o SPA por meio

de diversos tipos de abordagens psicológicas, oferecendo um serviço dinâmico

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e diversificado, contribuindo para a qualidade de vida da comunidade

beneficiada pelo serviço.

4.5. Os Sujeitos Colaboradores da Pesquisa

Moreira (2004) afirma que a característica mais importante da

pesquisa fenomenológica no enfoque mundano é a priorização da experiência.

Parte, então, do pressuposto metodológico de que o sujeito colaborador é a

pessoa mais indicada para descrevê-la, uma vez que ele vive ou vivenciou tal

experiência. Amatuzzi (2001) esclarece o uso do termo sujeito colaborador na

pesquisa fenomenológica, considerando que:

Na pesquisa fenomenológica, não há sujeitos que forneçam

informações, mas colaboradores que pensam juntos o assunto,

e o fazem com a novidade da primeira vez (p. 19).

A compreensão de tal concepção deve nortear a postura do pesquisador que

se propõe a realizar tal tipo de pesquisa, para que a proposta de compreensão

do vivido ocorra de fato a partir da experiência do sujeito-colaborador. Como

pesquisadora, me propus a aprender com quem já viveu ou vive a experiência

do corpo deprimido na busca de conhecer o fenômeno pesquisado. Para tanto,

foi necessário, nesta fase da pesquisa, que os conhecimentos teóricos e

clínicos apreendidos até então fossem colocados entre parênteses (redução

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fenomenológica), para que se buscasse a compreensão do fenômeno a partir

da descrição do sujeito colaborador.

Os sujeitos colaboradores da minha pesquisa foram escolhidos

conforme alguns critérios de inclusão:

1. Histórico de transtorno depressivo: os sujeitos selecionados para

a pesquisa deveriam estar em acompanhamento no Serviço de Psicologia

Aplicada/NAMI/UNIFOR, sendo atendidos pelos serviços de psiquiatria e de

psicologia e deveria constar em seus prontuários o diagnóstico de transtorno

depressivo. A inclusão de tal critério tornou-se fundamental, uma vez que o

termo “depressão” assumiu, na atualidade, uma conotação popular e usual,

tornando, portanto necessário que se distinguisse da depressão como

transtorno psicopatológico (Stefanis & Stefanis, 2005), foco desta pesquisa.

Outra questão que envolve o diagnóstico, importante para o enfoque da

psicopatologia crítica e da fenomenologia, consiste na discussão da

experiência vivida de quem convive com tal diagnóstico;

2. Idade: os sujeitos colaboradores da pesquisa foram selecionados

entre os clientes adultos, com idade acima de 18 anos, considerando que a

depressão se manifesta de forma diferente em diferentes faixas etárias. Assim,

a depressão em adolescentes, ou mesmo, no período infantil, tem

manifestações e repercussões específicas (Melo & Moreira, 2008) que fogem

dos objetivos desta pesquisa;

3. Sexo: A amostra foi constituída de 50% de sujeitos do sexo

feminino e 50% do sexo masculino;

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4. Encaminhamento da equipe do SPA: os sujeitos colaboradores da

pesquisa foram encaminhados pelo serviço de psiquiatria e psicologia do SPA,

sendo indicados clientes em condições de participar da entrevista, tendo em

vista o seu processo psicoterapêutico em andamento, a capacidade de decidir

se queriam ou não participar da pesquisa e de poder assinar o termo de

consentimento, já que a aquiescência do sujeito é indispensável ao processo

de pesquisa.

Foram entrevistadas 10 pessoas, adultas, de ambos os sexos –

cinco homens e cinco mulheres –, em acompanhamento no

SPA/NAMI/UNIFOR, constando, em seus prontuários, o diagnóstico de

transtorno depressivo. O contato inicial foi realizado com a coordenação do

SPA, que, ciente dos objetivos da pesquisa, solicitou-me que mantivesse

contato com os supervisores de estágio e com o serviço de psiquiatria para a

indicação de clientes. Realizadas as indicações, pude fazer contato com os

clientes que, unanimemente, aderiram ao convite, parecendo mesmo bastante

disponíveis para descrever sua experiência de depressão. Constatando que os

critérios da pesquisa estavam de acordo, e obtendo a aquiescência dos

clientes após a leitura do termo de consentimento, foram realizadas as

entrevistas.

Descrevo, a seguir, os sujeitos colaboradores da pesquisa, que

foram identificados por nomes fictícios:

1. Ana – 59 anos, divorciada, ensino médio incompleto, culinarista, tem

acompanhamento psicológico e psiquiátrico e faz uso de medicação

antidepressiva;

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2. Carlos – 30 anos, divorciado, ensino superior incompleto, designer de

interiores, teve acompanhamento psicológico e psiquiátrico, mas

suspendeu a medicação;

3. Paulo – 53 anos, casado, ensino médio, mecânico de manutenção

industrial, tem acompanhamento psicológico e psiquiátrico e faz uso de

medicação antidepressiva;

4. Maria – 36 anos, casada, ensino fundamental, comerciante/pecuarista,

tem acompanhamento psicológico e psiquiátrico e faz uso de medicação

antidepressiva;

5. Mauro – 19 anos, solteiro, ensino médio (em curso), estudante, tem

acompanhamento psiquiátrico e psicológico e faz uso de medicação

antidepressiva;

6. Rosa – 48 anos, casada, ensino fundamental, do lar, tem

acompanhamento psicológico e psiquiátrico e faz uso de medicação

antidepressiva;

7. Norma – 34 anos, solteira, ensino médio, promotora de vendas, tem

acompanhamento psicológico e psiquiátrico e faz uso de medicação

antidepressiva;

8. Jane – 50 anos, solteira, ensino superior, professora e artista plástica,

tem acompanhamento psicológico, mas suspendeu o acompanhamento

psiquiátrico e a medicação;

9. Vítor – 26 anos, solteiro, ensino médio, desempregado, tem

acompanhamento psicológico e psiquiátrico e faz uso de medicação

antidepressiva;

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10. Francisco – 60 anos, casado, ensino médio, técnico em refrigeração,

tem acompanhamento psicológico e psiquiátrico e faz uso de medicação

antidepressiva.

Destaco que o perfil dos sujeitos colaboradores é bastante diversificado, no

entanto, todos atendem aos critérios anteriormente especificados.

4.6 O Instrumento da Pesquisa: A Entrevista Fenomenológica

A entrevista é o instrumento mais utilizado em pesquisas

fenomenológicas, uma vez que, por meio dela, emerge mais facilmente o

fenômeno que se quer investigar, não se podendo perder de vista que a

experiência vivida é priorizada neste tipo de pesquisa. O que se busca no

depoimento do sujeito colaborador da pesquisa é a experiência vivida, não os

fatos que possam ser inferidos, os conteúdos subjacentes ou os desejos

ocultos, passíveis de interpretação (Amatuzzi, 2001). Portanto, na escolha do

instrumento de pesquisa, levei em conta que esta é uma pesquisa

fenomenológica que utiliza a lente da psicopatologia crítica, o que significa que

o método requer a descrição da experiência. Amatuzzi destaca a importância

da escolha da entrevista, na pesquisa fenomenológica, para a compreensão do

vivido, levando em conta que colher informações já prontas, normalmente, é o

objetivo de um questionário. O objetivo de uma entrevista fenomenológica é

surpreender o vivido no presente, quando a experiência da pessoa é pensada

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repentinamente e dita como que pela primeira vez. Outra característica de tal

tipo de entrevista é que ela é semiestruturada, partindo de uma pergunta

norteadora, que indague sobre o vivido, ou seja, a experiência da pessoa em

relação ao fenômeno pesquisado, no caso desta pesquisa, o corpo deprimido.

Diante do exposto, optei pela entrevista fenomenológica para ter

acesso à experiência vivida e buscar compreender a experiência do corpo

deprimido de tais sujeitos. As entrevistas fenomenológicas ocorreram no mês

de julho de 2009. Foi realizada com cada sujeito colaborador uma entrevista

semiestruturada, de cerca de 30 minutos de duração (Creswell, 1998), pautada

na seguinte questão norteadora: “a partir da sua experiência, me fale como é

ter depressão”. Cheguei à questão norteadora através da realização de uma

entrevista piloto, por meio da qual compreendi que inquirir diretamente sobre o

corpo na depressão levava o sujeito a se remeter ao corpo físico, entendido

como organismo, e se prender à descrição dos sintomas físicos, o que não

corresponde à perspectiva do corpo vivido, alvo desta pesquisa. Assim, as

entrevistas ocorreram da forma a mais aberta possível, à semelhança de uma

conversa, permitindo a livre expressão da experiência vivida do sujeito

colaborador. Considerando que, nesta pesquisa, estou interessada em

compreender a experiência vivida do corpo deprimido, entendendo corpo no

sentido merleau-pontyano, procurei, ao máximo, explorar os aspectos relativos

a este tema, buscando uma descrição exaustiva.

Neste caso, minha postura como pesquisadora, foi uma escuta

atenta, intervindo apenas para que o sujeito retornasse à sua experiência. No

decorrer das entrevistas, outras questões surgiram e foram relevantes em

relação ao tema abordado, puderam vir à tona, deixando em aberto a

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103

possibilidade de fenômenos emergentes. No entanto, foi necessário estar

atenta aos movimentos da entrevista, evitando fugas do tema e estimulando o

sujeito colaborador a esclarecer melhor determinados pontos.

4.7 A Análise Fenomenológica Mundana

A análise das entrevistas foi realizada a partir da perspectiva

fenomenológica mundana, como descrita em Moreira (2004), seguindo os

seguintes passos:

a) Transcrição das entrevistas, constituindo um texto nativo. Neste

momento, fiz a transcrição literal das falas dos sujeitos

colaboradores, contemplando, também, os aspectos não-verbais

do discurso tais como silêncios, tons de voz, choro, etc. Este é o

passo inicial da análise fenomenológica e, por isso mesmo, não

pode ser considerado de menor importância. A transcrição das

falas dos sujeitos colaboradores foi um trabalho que exigiu

bastante precisão e, portanto, deve ser realizada com muita

cautela. Em consonância com a ideia de que é a pessoa que

vivencia a experiência quem mais pode dar informações sobre

ela, cada nuança da fala do sujeito, como o silêncio, o choro e as

mudanças no tom de voz, foi considerada e constituiu importante

informação daquilo que eu desejava pesquisar;

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104

b) Divisão do texto nativo em movimentos, segundo o tom da

entrevista. A pesquisadora esteve atenta a uma questão

fundamental da análise fenomenológica, que é a postura de

compreender – não de analisar – o fenômeno que se propôs a

pesquisar. Neste sentido, foi fundamental que à pesquisadora

suspendesse todos os seus a priori em relação ao tema para

compreendê-lo a partir da experiência vivida dos sujeitos

colaboradores. Tomado tal cuidado, o texto deverá foi

desmembrado, considerando, ao máximo, a redução

fenomenológica e tendo em vista os movimentos e o tom da

entrevista. Busquei, assim, pôr entre parênteses, ou em

suspenso, todo o meu conhecimento prévio para, simplesmente,

descrever o fenômeno tal qual emergia das falas dos sujeitos

colaboradores;

c) Descrição e interpretação do significado emergente do

movimento. Neste passo, discuti a articulação entre os sentidos

emergentes e os objetivos da pesquisa. Considerando o método

fenomenológico de Merleau-Ponty como ferramenta crítica na

pesquisa em psicopatologia, segundo Moreira (2004), não

busquei elaborar uma síntese do pensamento dos sujeitos

colaboradores sobre o fenômeno da depressão, uma vez que,

nesta perspectiva, o fenômeno é sempre movimento;

d) Compreensão do objeto de estudo num movimento da

pesquisadora de “sair dos parênteses”, dialogando com os

resultados e contemplando-os em seus múltiplos contornos

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105

(biológico, cultural, ideológico etc.). Neste momento de

interpretação dos dados, a pesquisadora considerou os objetivos

da pesquisa, dialogando com os resultados encontrados e se

posicionou em relação a eles, articulando-os com as ideias dos

seus aliados teóricos, que deram suporte à pesquisa. Convém

lembrar que, conforme a concepção de Merleau-Ponty

(1945/2006), não há verdade absoluta. Portanto, o que busquei,

de fato, não foi a essência do fenômeno, conforme a concepção

da fenomenologia transcendental, mas a possibilidade de

considerar a manifestação da essência da depressão na

existência dos sujeitos colaboradores.

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106

5. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

O contato com os sujeitos colaboradores da pesquisa – pessoas que

vivem ou viveram a experiência da depressão – constituiu em um dos mais

ricos momentos desta pesquisa. Fui surpreendida pela disponibilidade destas

pessoas de compartilhar suas experiências e, mais ainda, com a riqueza de

informações contida em cada entrevista. Um fato marcante, neste processo, foi

o depoimento da maioria dos entrevistados, após a entrevista, acerca do bem-

estar que sentiram pela oportunidade de falar de si mesmos, de suas

experiências em relação à depressão e de suas dores e esperanças. Apesar de

descreverem fatos, situações, emoções e sentimentos difíceis e dolorosos – a

ponto de muitos momentos da entrevista serem marcados por choros,

alterações do tom de voz, gesticulações acentuadas e movimentos corporais

significativos –, deixavam a sala na qual ocorreu a entrevista, despedindo-se

agradecidos e prontificando-se a comparecer a outras entrevistas, caso fosse

necessário. Acredito que tal fenômeno se deve ao fato de, como pesquisadora

que deseja apreender a experiência vivida da depressão por meio do contato

direto com a realidade e a vivência dos sujeitos, procurei estar presente e

atenta às falas dos entrevistados, promovendo um clima de interesse,

aceitação e compreensão em relação aos conteúdos emergentes. Em outras

palavras, embora eu estivesse no papel de pesquisadora, utilizei uma postura

de psicoterapeuta humanista-fenomenológica, eminentemente compreensiva.

Pesquisas recentes neste enfoque mostram que tal postura por parte do

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107

pesquisador faz com que os sujeitos colaboradores se sintam acolhidos e

respeitados (Moreira, 2009).

Durante a análise do material que emergiu da pesquisa de campo,

procurei ficar atenta à riqueza de conteúdo presente nas falas de cada

entrevistado sem, no entanto, perder de vista os objetivos da minha pesquisa.

Busquei contemplar os temas emergentes nas entrevistas – aspecto

indispensável da pesquisa fenomenológica – expondo, a partir das falas dos

sujeitos colaboradores, o significado da experiência vivida do corpo deprimido –

tomado aqui como corpo próprio (Merleau-Ponty, 1945/2006) – e utilizando as

ideias expostas no referencial teórico desta pesquisa para a compreensão e a

discussão dos dados.

O foco da análise dos dados da pesquisa na compreensão da

experiência vivida da depressão de pessoas que vivem ou viveram tal

experiência, ocorreu por intermédio do corpo próprio, conforme descrito pelos

sujeitos colaboradores. Como afirma Merleau-Ponty (1945/2006), “o corpo

próprio está no mundo assim como o coração no organismo” (p. 273),

constituindo, com ele, um sistema. O corpo próprio é considerado, então, como

fenômeno original de abertura ao mundo, pré-reflexivo (prévio à abstração), e

como linguagem ou objeto de sentido, à medida que fala de si mesmo e do

mundo e permite na interseção homem-mundo o contato com a experiência

vivida, dotando-a de sentido e de significado. Na análise dos resultados desta

pesquisa, contemplo o corpo próprio a partir de tal ideia, entrelaçando-a com o

fenômeno da depressão, vivido pelos sujeitos entrevistados.

Assim, foram encontrados os seguintes temas emergentes a partir

das falas dos sujeitos colaboradores, que discuto em seguida:

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1. O significado da depressão e os sinais do corpo;

2. O corpo dividido;

3. A depressão como um fenômeno exterior;

4. Postura e ritmo do corpo deprimido;

5. O paradoxo do querer morrer;

6. Autoestima e valor pessoal;

7. O corpo sem poder: impotência, insegurança, incapacidade e

fragilidade;

8. O corpo que carrega culpa;

9. O corpo que é um “ser-para-o-outro”.

5.1 O Significado da Depressão e os Sinais do Corpo

A experiência da depressão é considerada pela maioria dos

entrevistados como um fenômeno de difícil descrição, associado a um alto grau

de sofrimento físico, psicológico e social, cuja manifestação inicial ocorre,

principalmente, por meio de sinais do corpo. Tais sinais aparecem nos

depoimentos dos entrevistados, sendo considerados como o momento

desencadeador em que, ao fazer contato com seus corpos, fazem contato com

a depressão. Descrevendo os sinais da depressão nos seus corpos, tais

pacientes revelam como se manifesta, neles, o fenômeno da depressão, sendo

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109

tal manifestação anterior a qualquer conhecimento sobre a doença e suas

características, como foi descrito nos seguintes depoimentos:

Eu não sabia que tinha depressão até quando o médico

chegou...assim eu passei por vários médicos até chegar um e

dizer assim: você precisa de atendimento psiquiátrico.

E...assim...o meu corpo dava sinais, eu não entendia, achava

que era cansaço, que era stress e não ligava. (Jane)

No começo eu num soube logo exatamente o que era, porque

eu passei a sentir muitos sintomas físicos. Porque a depressão

também vem com alguns sintomas. Depende muito de cada

pessoa, mas o meu, eu sentia muita fraqueza, como se a

garganta tivesse fechando, dor de cabeça, não dormia, tinha

muita insônia, às vezes passava dois dias sem dormir...

(Mauro)

Bom, depressão pra mim no meu caso... eu nunca mais tive

saúde depois que tive depressão. Eu me considero assim. Era

uma pessoa saudável... era obeso, gordo, fumava muito,

sedentário, mas com a depressão tirou toda a minha vontade

de viver, de trabalhar. Tive período de altos e baixos, mas

saúde mesmo nunca recuperei, porque... por mais que eu diga

que estou bem, de repente me sinto mal.(Francisco)

Do ponto de vista do corpo próprio, tais sujeitos não descrevem,

simplesmente, sintomas, mas utilizam sinais do corpo para compreender sua

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posição existencial: a de sujeitos que vivem a experiência da depressão. Para

Merleau-Ponty (1945/2006), a experiência corporal é o campo originário do

conhecimento do mundo, sendo o corpo, nesta perspectiva, corpo vivido, que

liga o homem, existencialmente, ao mundo, não sendo considerado,

simplesmente, um mero organismo.

Foi frequente a descrição de sintomas físicos pelos sujeitos

colaboradores no sentido de expressar a experiência vivida da depressão:

Você se sente... é... no caso quando eu fiquei com depressão

eu sentia um formigamento muito grande aqui na parte da

nuca, por trás da cabeça e descendo nas costas e aquilo

gerava um incomodo muito grande e... conseqüência desse

incômodo parece que eu sentia alguma coisa por dentro, no

peito, um vazio grande, dava uma ansiedade enorme. (Carlos)

Porque é como eu digo: eu num quero isso nem pro meu pior

inimigo. Porque é horrível, é horrível, é horrível. Porque você

num ter vontade de comer, você vê o dia anoitecer, vê o dia

clarear, você tem dor de cabeça, você tem vontade de

provocar... tudo aparece em cima de você. Você sente cansaço

nas pernas, você sente um desânimo, não tem vontade de

andar, não tem vontade de fazer nada... (Maria)

Percebi nestes depoimentos a manifestação da depressão tal como

se apresenta no indivíduo, revelando, também, o sujeito que a vive, pois não se

trata, simplesmente, de um conteúdo manifesto a partir da introspecção

subjetiva ou de um conhecimento prévio da doença, mas abrange o corpo

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próprio e indica a sua postura corporal a partir da experiência vivida da

depressão.

A presença de sintomas físicos pode revelar muito mais do que o

marcante sofrimento de que são alvos os que vivem a experiência da

depressão, quando analisados a partir da perspectiva do corpo próprio, pois tal

concepção permite uma interpretação de tais sinais que ultrapassa a

causalidade objetiva. O corpo próprio é criador de significações, sendo capaz

de dar sentido às suas experiências e, assim, transcender o mundo biológico.

Assim, no corpo próprio, o contato do deprimido com o corpo físico marca a

postura do sujeito no mundo, que, de acordo com as falas dos sujeitos

colaboradores, é a de uma existência pesada, na qual o corpo se sente

indisposto diante de sua atuação no mundo, sem ânimo para realizar as

atividades cotidianas, conforme seus depoimentos:

Bom... começando pela depressão física, é... na parte física

você se sente... é... totalmente pesado. (Carlos)

...pensava que se fosse pra sofrer daquele jeito, fosse pra tá

passando mal daquele jeito, preferia tá morto pra num tá

sentindo, pra num tá sofrendo. Porque é...o peso físico e

mental é muito grande, muito grande sobre o seu corpo, sobre

sua mente...é uma situação muito difícil.” (Carlos)

Eu cheguei aqui me arrastando. Eu cheguei aqui que eu não

tinha ânimo pra nada. Eu cheguei aqui arrastando as pernas.

(Paulo)

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É uma coisa muito ruim. (...)Ela causa indisposição, você não

tem disposição pra trabalhar, num tem disposição pra andar,

você só quer ta sozinha, num quarto. (Norma)

Eu num tinha ânimo, tinha vontade de trabalhar, agora, eu num

tinha coragem. Eu perdi o brilho, eu perdi a vontade de

trabalhar, de... me esforçar...Pra mim aquilo dali tanto fazia

como tanto fez. Num tinha sentido... de jeito nenhum.(...) Se

você é uma dona de casa, você num tem vontade de zelar pela

casa, porque qualquer mulher zela pelo que é seu. Você não

tem vontade de tomar banho. Depressão é um caso sério!

(Maria)

(...) eu tenho capacidade pra sobreviver e pra viver e pra lutar e

pra trabalhar, mas ao mesmo tempo eu não tenho a garra, não

corro atrás, eu não sei porque... Eu não sei porque, porque se

eu for fazer, eu consigo! Eu tenho, eu tenho, eu tenho...eu

tenho..., mas eu não tenho mais é vontade, não sei te dizer se

é vontade não sei explicar o que é. (Ana)

Por meio de tais depoimentos, torna-se clara a posição do corpo

próprio, ou a relação existencial corpo-mundo: não poder ser e não poder fazer

se confundem na experiência da depressão. Sob tal ótica, não cabe utilizar

apenas os sinais e sintomas típicos da depressão para dar explicações sobre

ela do ponto de vista das relações causais, uma vez que, na concepção do

corpo-próprio de Merleau-Ponty (1945/2006), há um saber primordial na

experiência do corpo entrelaçado com o mundo. Neste sentido, a escuta do

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pesquisador sobre os sinais do corpo deprimido podem revelar a depressão,

bem como o sujeito que a vive.

5.2 O Corpo Dividido

A ideia de um corpo dividido em mente e corpo físico – ou seja, de

que há um corpo físico que obedece a comandos mentais superiores – se

manifesta, constantemente, nas entrevistas, como podemos perceber nos

depoimentos abaixo:

Olha nós somos movidos por isso aqui. (aponta para a

cabeça). É isso aqui que comanda tudo em você. Comanda teu

olhar, comanda teu sorriso, comanda o mexer dos dedos. Tudo

é movido por isso aqui. Sem isso aqui a gente não é ninguém.

(Paulo)

Não era o corpo que não estava bem, era a cabeça que não

estava bem. Porque a gente quando tem uma enfermidade no

corpo, tá com uma perna com defeito, quebrada, uma coisa

você não pode se locomover. Espera se recuperar... Aí depois

você desenvolve. Mas a cabeça tando ruim você quer ir, ela

não deixa você ir. (...) Aí o corpo padece né? O corpo... você

acha dor no corpo, dor nas pernas, dor na cabeça, dor na

barriga, onde você imaginar você sente dor. A cabeça não

deixa você fazer nada. Quem controla tudo é a cabeça, né?

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Você não pode andar... daí eu não podia fazer nada.

(Francisco)

Porque depressão é um fraqueza que nós temos no cérebro. É

uma coisa que a gente não sabe...não sabe distinguir. Não

sabe chegar no ponto que...se valorize. Eu vejo assim. (Maria)

Nestes depoimentos fica claro que a tradição a que se vincula o

pensamento científico convencional, inspirado no modelo cartesiano que reduz

o corpo aos dados psicofisiológicos, permeia, inclusive, a concepção popular, e

o homem atual passa a adotar uma noção de corpo dissociado, dividido em

partes e separado de sua existência como um todo. A partir de seu conceito de

corpo próprio, Merleau-Ponty (1945/2006) sugere as suas implicações na

cultura e na história do sujeito, destacando que a doença se expressa em toda

a existência do indivíduo, não apenas em circunstâncias físicas, como é tratada

pelos padrões da ciência tradicional. As repercussões de tal forma de

pensamento têm contribuído para o fortalecimento da concepção dicotômica

entre físico e psíquico e prejudicado as noções de corporeidade, de existência

e de existência integrada. Na pessoa que vive a experiência da depressão, tal

perspectiva dicotômica é bem presente:

Eu num sei te explicar...Mas é assim... Porque a gente

espiritualmente, né? Num tava mais prestando pra nada. Aquilo

só era um corpo. Só o corpo. Porque espiritualmente eu

num...prestava mais pra nada. Perdi o gosto de tudo que pode

existir na vida. Toda a minha vida, né? Neto, filho... (Rosa)

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A ideia de corpo dividido influencia, também, a forma como os

sujeitos colaboradores descrevem as causas da sua depressão:

Eu já li também que é um hormônio que tem na cabeça, a

serotonina, conhecido como o hormônio da alegria que quando

tem depressão passa a diminuir, esse hormônio. Aí você não

sente vontade de fazer nada... Perde a alegria. (...) Eu já li

muito que, em muitos casos é assim talvez por má

alimentação, muitas vezes é por traumas que a pessoa tem,

muitas tem depressão porque morre algum ente querido, aí fica

deprimido... (Mauro)

Carlos, em seu depoimento, se aproxima da ideia de todo, de

conjunto, de unidade e relata que experimenta a depressão como uma reação

em cadeia:

Num tem uma coisa isolada. São vários fatores que contribui. É

uma reação em cadeia. Num é algo que você diga: ah... agora

eu tô só com o incômodo, só com aquele peso, aquela

ansiedade, aquela agonia ou tô só com cansaço ou tô só sem

rumo. É tudo junto. Então eu acho que não tem assim... o

melhor, o menos suportável ou o mais suportável. É tudo uma

reação em cadeia, tudo vem junto tudo é pesado e tudo é... lhe

põe pra uma situação de total desespero de ficar pra baixo de

não querer mais viver. (Carlos)

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No seguinte depoimento, Jane se refere à relação entre as questões

emocionais e o seu corpo; no entanto, ainda manifesta uma forte tendência a

percebê-las do ponto de vista da causalidade:

É... hoje eu vejo assim... os problemas emocionais é que

causam todas as doenças no nosso corpo. Eu tenho essa

consciência. Uma dor na unha... a dor na unha, ela não vem

assim de graça, gratuitamente tem alguma coisa assim...é uma

conseqüência na verdade. As dores é conseqüência de alguma

atitude, de alguma ação. Eu tenho essa consciência. (Jane)

Merleau-Ponty (1945/2006) afirma que “sistema de potências

motoras ou de potências perceptivas, nosso corpo não é um objeto para um „eu

penso‟: ele é um conjunto de significações vividas que caminha para seu

equilíbrio” (p. 212), o que destaca a importância de tratar o corpo como

expressão da existência, transcendendo o modelo científico tradicional que

prega a dualidade de corpo e mente.

5.3 A Depressão como um Fenômeno Exterior

Alguns depoimentos evidenciam que, para os sujeitos colaboradores

a depressão é um processo externo que se apodera de seu corpo:

Aí de quarta feira até o dia dele viajar eu já tinha... uma coisa

já tinha tomado conta de mim, só que ninguém percebia. (...) E

essa coisa em mim era como um desgosto, uma raiva, uma

coisa terrível que me dominou mesmo. (Rosa)

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Para Rosa, a depressão se manifesta como uma “coisa” que tomou

conta dela e passou, desde então, a determinar seu comportamento. É

interessante notar que, no relato de sua história, ela se apresenta como uma

pessoa bastante dependente do marido, e parece que, ao experimentar uma

situação na qual ela se sente excluída por ele, os sintomas depressivos

passaram a assumir a função que, antes, era do marido: a de determinar sua

forma de estar-no-mundo. Ela descreve sua relação com ele da seguinte forma:

Porque eu nunca tive nada doutora, nunca! Eu só tive mesmo

ele e meus filhos. (...) Quando eu casei, eu casei sabendo que

meu filho eu num ia criar pra mim eu ia criar pro mundo. E o

marido eu sabia que ia ser pra mim. Ele ia assumir minha mãe

e meu pai, né? Então quando eu vi que eu num tive o que eu

queria, aí veio o pior de tudo. (Rosa)

Vítor fala, também, de algo que é exterior ao indivíduo, associado à

sua crença religiosa:

Eu não sei se a senhora acredita em espiritismo, acredita? Não

é que...Quando a pessoa ta ruim aí parece que o espírito ruim

vem na pessoa. Eu freqüento o espiritismo... Aí melhorei um

bocado. Tem tanto espírito ruim no mundo, né? Tem pessoas

que acredita e tem outras que não acredita. Aí fica atentando

aquela pessoa: vai, se mata, se mata... É tipo escutando

vozes... (Vítor)

Percebo no depoimento de Paulo, uma descrição da depressão

como um monstro:

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Pois é...o que você quer saber mais sobre essa doença que é

um monstro...(...) Eu cheguei aqui arrastando as pernas. A

cabeça chegou dominada pela depressão, pelos monstros da

depressão. Você lembra dos monstros daquele filme uma

Mente Brilhante? Pois, aqueles monstros, você não vê, eu não

vejo, mas eles estão dentro de mim. Ele está dominando a

minha pessoa. Dominando a minha pessoa... Dominando a

minha pessoa, desse jeito... (Paulo)

Tal percepção da depressão como um monstro leva Paulo a se sentir travando

uma constante luta contra a depressão, o que corrobora a ideia de que ele a

percebe como um processo externo que o domina:

A depressão ela é tão potente que ela pega uma cara de quase

100 Kg igual a mim e joga no chão. Ela é muito forte. (...) Olha,

nós somos mais fracos do que a depressão. É por isso que eu

tô procurando ajuda. Se eu não estivesse tendo uma ajuda

médica, como eu estaria hoje? Eu estaria arrasado. O que eu

teria feito de mim? (Paulo)

Em outras entrevistas, também, se manifesta a luta contra a

depressão, evocando a idéia dicotômica de interior/exterior:

Apesar de estar consciente, eu não tinha... eu não era dona do

meu corpo é como se...(...) a coisa era tão forte dentro de mim

que parece que eu reagia de uma forma...reagia até aos

remédios.(Jane)

Mas eu disse assim: Eu não vou fazer! Eu não vou fazer! Eu

não vou dar esse gosto a esta depressão! Eu vou me tratar,

mas não vou me matar não! (Paulo)

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É uma doença que ela mata você aos poucos. E é muito difícil

sair dela... só com muito ajuda mesmo e você ter que correr

atrás. Mas não é fácil... Muita gente diz assim: Ah,

frescura...tem um problema... deixa o problema pra lá! Mas eu

não conseguia... (Norma)

Para Merleau-Ponty (1945/2006), não há um homem interior, pois o

homem está no mundo, engajado em situações. Percebo, no entanto, a partir

dos depoimentos acima, que o fenômeno da depressão provoca, no indivíduo,

um sentimento de que vive algo de fora dele, com o qual ele tem que lutar

constantemente. Referindo-se a alguns processos patológicos, Merleau-Ponty

explica que, por meio da doença, as possibilidades do corpo como expressão

da existência “se travaram em um sintoma corporal, a existência amarrou-se e

o corpo tornou-se o esconderijo da vida” (p. 227). Tal explicação pode,

perfeitamente, ser aplicada ao sujeito que vive a experiência da depressão,

pois, para ele, a recusa em relação ao corpo, ao outro e ao agora é evidente.

5.4 A Postura e o Ritmo do Corpo Deprimido

No corpo próprio, o espaço e o tempo ganham a dimensão de

postura e ritmo corporais, transcendendo as noções de espaço-tempo,

representativas do contexto físico-biológico. Considero, nesta pesquisa, a

corporalidade na perspectiva da fenomenologia de Merleau-Ponty (1945/2006),

entendendo que o corpo não é um objeto do mundo, mas um meio de

comunicação com ele, ou seja, nosso corpo nos proporciona um mundo

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sinalizado por sua história. A ideia do filósofo é que “não se deve dizer que

nosso corpo está no espaço nem tampouco que ele está no tempo” (p. 193),

pois ele os habita. A partir desta concepção, percebo claramente, na fala dos

sujeitos colaboradores, que a experiência da depressão é marcada pela

sensação de estar separado do mundo e do outro. Neste sentido, a postura e o

ritmo corporais se tornam vazios no espaço e estagnados no tempo, marcando

a sua corporalidade ou a forma de ser-no-mundo.

Nos depoimentos abaixo, observo como tais pessoas descrevem

seu estar-no-mundo e evidencio que a espacialidade é marcada por estados do

corpo semelhantes a experiências descritas como estar em “um muro”, “no

fundo do poço” ou “em um lugar escuro”:

Olha, eu passei foi quase um ano meio pra abrir a boca dentro

do grupo. Que eu não falava! Parecia que eu tava dentro de um

muro, entre quatro paredes, e num via ninguém. Isso é horrível.

(Maria)

Porque a depressão... Depressão é uma coisa que...faz a....

Você vai caindo dentro de uma cacimba e se você não se

acordar com o tempo você se afunda mesmo, que é arriscado

vir até a morte. (Maria)

Tudo pra mim é... como se nada pra mim desse certo. Como se

o mundo pra mim fosse escuro.

Entrevistador: Como é viver num mundo escuro?

Um mundo escuro é...sem perspectiva de nada, você vive

porque você tá vivo mesmo mas... (Norma)

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Cara, é muito ruim! Você fica...você se sente como se...no final

do poço! Você se sente assim...Só, no meio da escuridão, com

tanta gente, como se as pessoas não te ouvissem, como se

você não fosse nada e as que estão ali ainda te pisam! Não tão

nem vendo! (Jane)

Tais sentimentos, muitas vezes, se concretizam em ações práticas e o mundo

vivido do deprimido parece se restringir ao isolamento físico:

É muito ruim. Eu ficava trancado no meu quarto. Não saía pra

nada. (Vítor)

Se você chegasse assim pra mim: Maria vamos numa festa?

Eu num tenho vontade de ir pra festa, meu problema era só me

isolar. Me trancar num quarto, viver... só pra mim. Nada tinha

sentido. (...)Uma pessoa chegava: Maria sai de dentro desse

quarto! Você falou pronto! Eu ouvia a sua palavra... Às vezes

eu nem abria o quarto pra sair. Só escutava. Mas eu nem abria

o quarto. (Maria)

Para Carlos, a sensação de estar preso, típica da experiência da

depressão, o remete à descrição de um mundo diferente, estranho e incômodo

e um sentimento de estar fora do contexto:

E...é...mentalmente você fica desnorteado, você fica...é

estranho. Uma sensação que... você parece que vive em outro

mundo. Você não consegue ver as coisas com...com a clareza

que você tem quando você não está doente é como se... tudo

tivesse diferente, tudo tivesse... como se você tivesse preso em

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algum lugar, num sei, como se você tivesse...como se tudo ao

redor tivesse funcionando e você tá num lugar totalmente sem

contexto, sem fazer parte de nada. Você sente que...tudo lhe

incomoda: o som, às vezes as pessoas, enfim, você não

consegue fazer nada. Se sente totalmente perdido. (Carlos)

A Tal modo de estar-no-mundo, alia-se uma relação com o tempo

bastante particular, pois o tempo vivido é experimentado, na depressão, a partir

da lentidão e da estagnação do corpo. Alguns relatos traduzem este aspecto:

Fisicamente, você tanto fica esgotado questão de sono que

você perde, como também cansaço físico, apesar de você não

fazer nada, mas aquilo parece que consome uma energia...

acho que você... talvez por pensar demais, num sei, num

assunto você também se sente esgotado mentalmente e

conseqüência o corpo sente, né? Aquele esgotamento.

(Carlos)

Às vezes todo mundo terminava sua carga horária à noite, seis

horas. E eu ficava até nove hora, dez horas da noite. Pra ajeitar

todos os meus pedidos, a minha parte. Por quê? Porque eu

tava lenta, eu num tava sendo a Maria que eu era. Tá

entendendo?” (Maria)

“Perde a alegria, a vontade de fazer as coisas... Isso também é

por causa da depressão também. Isso acho que acontece com

todas as pessoas que tem. Além de ter os sintomas físicos

tinha esse também. Que prejudicou muito. Aí eu fiquei vários

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anos sem estudar, ainda não terminei os estudos, já era pra ter

terminado. (fala em tom de voz mais baixo). (Mauro)

Outro aspecto bastante significativo do tempo vivido na depressão

consiste no fato de que o tempo presente não é significativo, pois a pessoa,

frequentemente, se remete ao passado, permanecendo presa ao fato

desencadeador do processo, ou ao futuro, distante, nebuloso e incerto:

Acho que uma das coisas de quem tem depressão é...sofre

mais e piora o quadro é essa questão de que ele se concentra

muito no fato causador. Se ele conseguisse desfocar um

pouco, talvez as coisas mudariam mais rápido, mas, ele se

concentra muito. Seja uma pessoa que ele perdeu, seja em

algo que aconteceu na vida dele, enfim, a questão de se

concentrar demais na mesma coisa é...que lhe faz não

conseguir sair da situação. Fica aquela coisa batendo na sua

cabeça, martelando, martelando... (Carlos)

Eu me lembrava de que...me lembrava que... aquele A tinha

feito algo comigo que eu não conseguia tirar da cabeça, que eu

não conseguia esquecer. Pra mim aquilo dali era muito difícil,

pra mim aquilo dali tinha marcado e nunca ia sair do meu juízo.

Aquilo dalí tava me acabando eu achava que aquilo dali nunca

ia sair. Nunca... Eu nunca ia esquecer aquela coisa que tinha

acontecido. Pra mim era assim. (Maria)

Aqui acolá eu quero recair quando eu me lembro daquele

desgosto do começo, né? (Rosa)

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Me preocupava com o meu futuro,né? Como é que vai ser. Se

vou ficar assim pra sempre. Não vou melhorar? Vou só viver

dependendo de remédio? Pensava assim. Essas eram as

minhas preocupações. Passava muito tempo só, né? Pensava

muito. Muitos pensamentos perturbando. É uma coisa assim

que desespera você. (Mauro)

Ana relata, insistentemente, os fatos que desencadearam o

processo depressivo, que, embora tenham ocorrido há quase dez anos, ainda

são lembrados com bastante pesar. Queixa-se, durante toda a entrevista, de

suas dificuldades, chegando a perder o contato com o tema da entrevista:

Ahhhh! Eu moro numa casinha, a minha sorte é que eu faço

crochê, tô aprendendo a bordar, eu ocupo minha cabeça,

minha mente com isso. Eu não posso fazer caminhada pq eu

tenho problema circulatório e de esporão, tenho que fazer

hidroginástica mas eu não posso pagar. E... Cada dia que

passa tô com dificuldade de andar tem hora que dá uma dor na

perna...Mas...Eu tô... O que foi que você perguntou? Eu me

perdi... (Ana)

Na perspectiva do corpo próprio, o movimento ou a corporalidade

não se submete ao espaço e ao tempo, mas os assume ativamente, pois, como

afirma Merleau-Ponty (1945/2006), “considerando o corpo em movimento, vê-

se melhor como ele habita o espaço e também o tempo” (p. 149). A lentidão e o

isolamento em que se percebe imerso o deprimido expressam o seu

movimento no mundo e refletem uma existência vazia. Tal ideia se coaduna

com o pensamento de Tatossian (1979/2006), que reconhece um núcleo de

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desrealização-despersonalização no melancólico, marcado pela separação do

mundo e do outro, que refletem uma separação de si mesmo.

5.5 O Paradoxo de Querer Morrer

A relação com a morte foi um tema bastante desenvolvido nas

entrevistas e revelou que o sofrimento causado pela depressão leva,

constantemente, os pacientes a terem pensamentos relativos à própria morte,

como se fosse a solução para o seu problema:

É uma coisa desesperadora! Chega a você pensar que é

melhor morrer do que tá sentindo aquilo, num sei, nunca tive

uma doença maior grave, mas acho que é uma sensação de

quem tem uma doença assim já terminal sente também. Dá

vontade de não mais viver... de... tão pesado, de tão ruim que

aquilo é... sobre o seu corpo. (Carlos)

Olha, essa doença, a depressão, ela é uma coisa que chega a

ser desumana, sabe? Porque a única exclusividade da

depressão... é que ela manda você se matar. (Paulo)

Você fica sem...é como se você perdesse a direção da vida,

como coordenar sua vida...E... aquela doença vai lhe

arrastando, lhe arrastando cada dia, você vai perdendo.Como

se você fosse uma planta: cada dia morresse um galho seu...

Assim é a depressão até você murchar, murchar, murchar e

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muitos chegam até a morrer. Porque você fica tão triste, você

acha que a única saída é morrer. Você acha que você sair...Pra

você sair daquele problema, pra você sair daquilo que você

não quer ver, daquela situação que você não quer viver você

às vezes acha que a única saída é a morte. (Norma)

É muito ruim...É... tem vontade de morrer, vontade de morrer,

muito ruim. A gente tem um vazio dentro da gente. Pensa que

ninguém gosta da gente, fica só, solitário num canto. Aí...Já

tentei suicídio. Meu pai é policial já peguei a arma dele aí eu...

Mas não vale a pena não... (Vítor)

No entanto, apesar de bastante evidente nas entrevistas, a ideia de

suicídio se manifesta como um pensamento paradoxal, pois parece contemplar

muito mais a necessidade de eliminar o sofrimento do que de morrer

concretamente:

Aí comecei a ter medo de...eu num queria morrer. Eu tinha

medo de morrer e queria morrer. Aí eu ia pro meio da rua rezar.

É um paradoxo, mas era verdade. Eu tinha medo de ficar só,

morrer. Mas tinha momentos que eu preferia tentar

assim...essa besteira do que vir a sofrer. (Francisco)

Aí uma vez eu peguei um monte de comprimido e botei na

minha mão. Mas aí eu não tive coragem... Eu desisti na hora. E

daí eu falei que minha vida não era boa, mas eu num queria

morrer mais não. Apesar de eu num... Eu nunca dava muita

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importância, mas eu mesma num queria tirar, entendeu? Se eu

morresse num tinha problema, mas eu tirar minha própria vida

eu não queria. (Norma)

Não se matar não, mas vontade de morrer... Eu na verdade

não queria era morrer era acabar com isso, mas não via

solução e a primeira intenção é essa. (Mauro)

Os pensamentos em relação à morte, também, se manifestam como

solução para a necessidade de chamar a atenção das pessoas para o

sofrimento do deprimido:

Inclusive também já tive... já pensava... em resolver esse

problema de uma forma mais rápida que era me matar. Mas

eu... quando chegava, eu... esse pensamento eu dizia assim:

Não vai adiantar nada. Ninguém vai... Ninguém vai...Vou

morrer e aí? Eu não vou resolver nada, as pessoas vão me

esquecer mesmo...Não vai adiantar. Não é por aí! Acho que a

questão é assim: é uma carência tão grande, é uma...é uma...

é uma fragilidade tão grande que parece que você se torna um

bebezinho, assim, vc quer ser cuidado, você quer ser tratado,

você quer atenção é...é...

Entrevistadora: E aí o que é que esse bebezinho faz pra ter a

atenção das pessoas?

Bom, ele acha que morrer resolve, né,(risos )como...como

acontece...Você quer chamar atenção e a forma de chamar

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atenção é você... fazer alguma coisa grave. Só que, é...não é

por aí, né? (Jane)

Eu só não queria dar esse desgosto a minha mãe, mas eu não

teria medo, eu teria até... ôôô meus filhos talvez fossem sentir

pq a gente só sente a obra de mãe depois que perde. Mas a

gente vê que as pessoas morrem, dá 7 dias e ninguém nem se

lembra mais... uma mãe, pai,né? uma coisa que... conviveu

muitos anos, né? a vida continua... (Ana)

É importante destacar que os depoimentos dos entrevistados sobre

a relação entre suicídio e depressão estão de acordo com a descrição de

Tatossian (1979/2006). Ele afirma que a angústia vital que marca o fenômeno

da depressão se encerra na angústia de não poder viver, ou no sentimento de

ser impotente para viver, o que leva o deprimido a uma relação com a morte

bastante peculiar, marcada pela familiaridade e pelo desejo de morrer. O

deprimido vive um projeto paradoxal em sua relação com a morte: o desejo da

morte imanente que é o desejo de vida. Morrer, definitivamente, seria o

fracasso de seu projeto, ao passo que viver pequenas mortes ou a morte

parcial seria o seu recurso para suportar o peso que o corpo carrega em

relação à sua existência. No entanto, sendo este projeto inviável, pois não se

pode viver mortes parciais, o deprimido se confunde com a perda e com a

morte: ele mesmo é perda e morte.

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5.6 Autoestima e Valor Pessoal

Foram unânimes nas entrevistas as falas que se referiam à falta de

autoestima e de valor pessoal como postura existencial, nas quais se

reconhece que partem de uma experiência vivida única, que reflete uma

história pessoal, mesmo quando tais falas parecem repetidas, por estarem

presentes em todos os depoimentos, traduzindo-se em metáforas comuns do

cotidiano. É freqüente, nos depoimentos a descrição de sentimentos de baixa

autoestima e perda do amor próprio:

Acho que você perde a questão do amor próprio, né? Se

coloca numa situação, deixa-se levar, deixa-se definhar aos

poucos... você vai como uma plantinha que vai murchando,

murchando, murchando e.... parece que não quer fazer nada

para aquilo mudar. Assim, de certa forma eu quis fazer porque

eu procurei tratamento, procurei ajuda, mas...você se sente

muito...não se preocupa com você. Acho que perde um pouco

do amor próprio também. Auto-estima não tem, né...auto-

estima não tem nenhuma você fica totalmente vulnerável fica

se achando uma nada. Acha que... não tem mais valor. Você

perde o valor total, você perde a noção. Auto-estima é o que o

deprimido não tem. (Carlos)

Você perde seu amor próprio, você perde sua dignidade, você

perde teu respeito, as pessoas, minha família então me cobra

como é que eu tinha competência numa empresa passei 14

anos que não foi pelos meus lindos olhos... e de repente eu me

anular, eu não ser mais a pessoa, eu não ser mais aquilo que

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eu era. Dá pra entender? Da pra entender porque que eu me

anulei, porque que eu fracassei porque... eu não entendo

explicar o porque. E cada dia que passa tá mais difícil.(Ana)

O que me incomoda mais... é a ansiedade! A ansiedade

me...me...me coloca numa situação muito...muito

desagradável. Sabe? Porque... Porque...ela tira todo o meu

brilho. (Choro) Ansiedade é aquela angústia que você tem, que

você não se suporta mais de tão angustiado, de tão

deprimido... Você não se aguenta mais. (Paulo)

Para Francisco, a sua baixa autoestima provoca medo e angústia,

que contribuem para uma descrição de si mesmo como “um nada” e a

sensação incapacitante provocada pela depressão:

Você sente medo, angústia, medo de morrer. Medo de

qualquer coisa. Medo de não ter feito nada. O que você fez na

vida, nada adiantou você ter feito. Você acha que não serviu de

nada aquilo que você fez, ou as pessoas não agradecem... o

que não é verdade, né? Tudo o que se faz a pessoa agradece.

Tem um agradecimento. Mas é assim você se sente: nada!

Você não poder fazer nada porque você não se acha em

condições de fazer nada. Você se acha uma pessoa doente.

Pronto, tá com depressão então você não presta mais. Não é

assim né? (Francisco)

Manifesta-se nesta fala, um sofrimento que, na perspectiva do corpo próprio,

reflete a ideia do sujeito que, ao viver no vazio, se designa como “um nada”.

Merleau-Ponty (1945/2006) afirma que “a existência pessoal é a retomada e a

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manifestação de um dado ser em situação” (p. 229), e reitera que é o corpo

próprio, dotado de significado, que exprime a existência total, pois a existência

se realiza nele. Tal afirmação expressa, então, todo o sentido que se manifesta

no depoimento de Francisco, que, ao descrever sua experiência de depressão,

descreve-se a si mesmo.

Encontrei no depoimento de Mauro sobre sua autoestima, uma

referência à sua relação com o outro, sentindo-se diminuído nela:

É como sendo alguém muito fraco mesmo, sua autoestima

baixa, achando que... não sei fazer nada, que num... pessoas

não gostam de mim. Pensa nisso. Vem mais pensamentos

negativos. Como se eu achasse que ninguém gostasse de

mim, como aquela pessoa tá pensando algo de mim...(...) Em

poucas palavras, eu me sentia deste tamanhozinho aqui

(coloca a mão em direção ao chão) Era isso que eu

sentia...Como se as pessoas fossem maiores, melhores do que

eu. (Mauro)

É possível compreender tal relação a partir da experiência do corpo próprio,

tomado como um eu engajado no mundo físico e inter-humano (Merleau-Ponty,

1945/2006), pois é por meio do meu corpo que percebo o mundo e que

compreendo o outro. Na depressão, a relação com o outro se encontra de tal

forma comprometida que prejudica, também, a percepção de si mesmo.

Tatossian (1979/2006) afirma que, na melancolia, há a alteração da

ressonância ou da sintonia com o outro, provocando uma anestesia afetiva,

que reflete na “afetividade-contato” (p. 120), impedindo a proximidade do

sentimento e da vivência como encontro inter-humano.

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5.7 O Corpo sem Poder: Impotência, Insegurança, Incapacidade e

Fragilidade

O sentimento de despotencialização também esteve presente nas

falas dos entrevistados, revelando um estar-no-mundo marcado pela falta de

ação no qual a impossibilidade da ação é confundida com o próprio ser. Carlos

considera que a experiência da depressão trouxe, consigo, o sentimento de

falta de controle sobre sua vida e de impotência diante de decisões a tomar,

fazendo-o se sentir no mundo como se estivesse vegetando:

Você fica perdido, você fica...aquela velha situação: você só

quer tá em casa, só quer ta sozinho, só quer ta...ou tentando

mudar um problema que não tem jeito, muitas vezes você fica

querendo que aquela situação mude e não consegue e se

sente totalmente impotente. (...) Parece que você não tem

controle mais sobre sua vida. Você se perde totalmente, você

não consegue mais decidir o que você vai fazer, o que você

quer, como você quer, quando você quer...você se sente

vegetando. (Carlos)

Para Ana, o corpo sem poder se manifesta na falta de iniciativa e no

sentimento de ser incapaz de tomar conta de sua própria vida:

Acaba as coisa eu fico sem nada dentro de casa com vergonha

de pedir e porque eu não corro atrás? Eu não sou capaz? Mas

aí eu não tenho esta... como é que se diz... é...iniciativa! Eu sei

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fazer e eu sou capaz e eu sei que daria certo, você tá

entendendo? E porque que eu não vou atrás de correr atrás do

prejuízo? (Ana)

Em outros depoimentos, a insegurança, a indecisão e a fragilidade

se manifestam na realização das tarefas simples do cotidiano do deprimido:

Por exemplo, se eu tivesse que sair do trabalho pra ir pra outro,

pra mim tomar essa decisão, pra mim é a coisa mais difícil do

mundo. Eu fico logo imaginando que eu não vou aprender, que

se não der certo eu vou ficar desempregada, o que vai ser de

mim... (Norma)

Então, foram várias situações que eu não conseguia resolver e

que isso me deixava... me fazia mal até o ponto mesmo de eu

ter essa crise de ficar... toda torta. (Jane)

Como uma doença dessa pega uma pessoa e fragiliza dessa

forma! Isso me deixou doente, mais doente ainda! Por quê?

Porque eu já não tinha alegria pra nada, eu já não tinha prazer

com nada, tanto fazia fechar portão como deixar portão aberto

pra mim era a mesma coisa, ir o trabalho, tanto fazia eu ir como

não pra mim era a mesma coisa. (Paulo)

Ah eu fico arrasada... Eu passo dias assim me sentindo a pior

pessoa do mundo. Me acho incapaz, frustrada, burra...Todos

os sentimentos ruins que uma pessoa pode sentir em relação a

sim mesma. (Norma)

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Encontrei, nesta categoria, aspectos que são compatíveis com a

concepção de Tatossian (1979/2006) que afirma que o Lebenswelt (mundo

vivido) do melancólico é marcado por um vivido generalizado do não poder. Ser

deprimido é carregar no corpo próprio um não-poder, que se expressa em não

poder trabalhar, comer, pensar, compreender e viver, mas é, principalmente,

reconhecer e assistir a tal incapacidade expressa em uma perene culpa.

5.8 O Corpo que Carrega Culpa

O sentimento de culpa foi freqüente nos depoimentos coletados. Os

entrevistados procuram em si mesmos, nos seus sentimentos e

comportamentos, algo que justifique a depressão:

Aí eu acho, porque que eu cheguei nessa depressão? Porque

eu não sabia perdoar. Eu odiava essa irmã. Mas, eu não fui a

delegacia dá parte dela, não fui falar com o gerente da ***** pra

que ele botasse ela pra fora, nem nada.(...) Eu sempre dizia:

Meu Deus! Tu vai pagar, mais cedo ou mais tarde. Tu vai pagar

o que tu fez comigo. Tu não é irmã! Tu não é gente! Eu dizia

muita coisa. Hoje em dia não.(...) Por isso que eu acho que eu

tô me curando da depressão. Porque eu aceitei agora, perdoar.

(Maria)

Francisco diz que a depressão é uma forma de punição por seu

comportamento arrogante:

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Eu era arrogante! Mas eu dizia que quando pobre, não, rico

quando tinha problema assim ia pra psicanálise, fazer análise,

fazer terapia né? Eu dizia no auge da arrogância, da estupidez:

pobre quando tinha esses problemas ia beber cachaça (riso). O

que não é verdade. Depressão dá em pobre, rico, branco,

preto, novo, velho, dá em toda classe social, num respeita

ninguém, né? E hoje eu to pagando por isso. Eu acho que eu

pago por isso. (Francisco)

A experiência vivida da depressão é marcada pela imobilização do

tempo vivido, o que torna o passado pesado, determinante e difícil de ser

dissipado. Tatossian (1979/2006) afirma que o peso do passado, em tal

experiência, assume o lugar de uma falta inapagável, suscitando, no sujeito

deprimido, a necessidade, sempre presente, de expiar a sua culpa:

Eu me sinto culpada por minha vida não ter dado certo, eu me

sinto culpada pelas coisas que eu sonhei não terem se

realizado... Porque talvez eu não fiz a coisa certa pra que

acontecesse certo. (Norma)

(...)Foi horrível, foi justamente na época que eu perdi este

emprego e... este emprego eu perdi porque eu não tive

discernimento nem sabedoria... porque se eu tivesse tido um

auto controle um discernimento eu não teria perdido porque ele

era tudo pra mim.(Ana)

Nos depoimentos de Norma e Ana, a culpabilidade reflete sentimentos

de ruína em relação à sua vida e manifestam, conforme afirma Tatossian

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(1979/2006), o reconhecimento de culpa por ter provocado a própria ruína, que

deve ser vivida, então, como punição.

5.9 O Corpo que é um “Ser-para-o-Outro”

Outro aspecto bastante significativo, nas entrevistas, é a vida social

do deprimido, que parece bastante comprometida. Merleau-Ponty (1945/2006)

considera o corpo como mediador de toda experiência possível; logo, a

afetividade, marcada pelo contato com o outro, não pode ser excluída de tal

perspectiva. A experiência do corpo próprio exige, pois, a presença de outro

corpo para a descoberta do mundo.

Na experiência da depressão, a relação com o outro é vivida de uma

forma bastante peculiar, pois estão presentes sentimentos que traduzem a

necessidade de se entregar ao outro. Assemelha-se a um processo simbiótico.

No entanto, as falas dos sujeitos colaboradores manifestam traços nos quais o

ser-para-o-outro é quase uma exigência de ser amado, ao mesmo tempo em

que denota uma incapacidade em relação a tal conquista. Nos depoimentos

dos seguintes entrevistados, encontrei situações nas quais, na relação com o

outro, o sujeito parece abrir mão de sua própria vida na busca de atenção e

apreço do outro:

(...)Quando eu casei, eu entreguei minha vida total a ele. Ele

era minha fortaleza, era meu tudo. Aí quando veio a decepção,

aí desencadeou essa coisa terrível.(...) Deixei de visitar meus

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pais no interior, pra não deixar ele só talvez até por... querer

bem demais a ele...E ele não percebeu isso.(Rosa)

Porque eu tinha esse problema: Eu sempre lhe respeitar, lhe

valorizar, lhe amar pra depois vir eu. E às vezes esse eu nunca

vinha. O que é que vinha? A depressão, o isolamento. (Maria)

Parece haver uma forte necessidade de demonstrar o mal-estar

causado pela depressão, ao mesmo tempo em que os sujeitos deprimidos se

acreditam incompreendidos e não aceitos pelo outro:

Aí eu tinha vontade de morrer, tinha vontade de...Eu queria

fazer...Eu queria me jogar dentro de um poço de lama. Eu

queria mostrar que eu num tava bem mas ninguém percebia.

(...) Aí ninguém aceitava que eu tava doente, ninguém...Aí

aquilo foi cada dia mais aumentando, minha tristeza, minha

angustia... Aí até que um dia ele resolveu falar num sei com

quem e essa pessoa disse pra ele: Olha fulano a tua esposa tá

com depressão e depressão mata. (Rosa)

Você perde a alegria não consegue mais ter uma vida social

normal com as pessoas. É difícil... Onde você chega, com

quem você conhece, você começa a chorar, cair em prantos

então assim...se você não tiver boas pessoa pra... que lhe

entenda, que lhe ajude, você chega até a incomodar por isso

porque você só fala nesse assunto. (Carlos)

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Em muitos casos, o isolamento, ou seja, o não-ser-para-o-outro, se

manifesta como forma de viver tais relações, quer seja por se sentir incapaz de

viver tal encontro com o mundo, a partir do outro, quer seja pela necessidade

de que o outro reconheça sua necessidade. O corpo próprio é

intersubjetividade (Merleau-Ponty, 1945/2006), mas, no caso do deprimido, ele

é marcado pela posição de vítima e a necessidade de ser cuidado.

Maria descreve sua experiência de contato com o outro como um

abismo marcado por decepções e desilusões:

Mas por que isso chegou a acontecer? Porque... Por causa de

tantas decepções, tantas desilusões, decepções que eu passei,

pessoas que chegaram no ponto de me afligir tanto, de me

machucar tanto, chegou o ponto de eu... entrar nesse abismo.

Porque isso é um abismo. (Maria)

Aí o que é que acontece: Eu me...me refugiava só pra mim.

Parecia que...eu tenho minha mãe, tenho minhas irmãs, tinha

todo mundo ao meu redor. Todo mundo queria ver eu lá em

cima como eu era. Mas eu não queria saber da opinião de

vocês. Pra mim vocês não existia. É horrível. Eu acho... Eu

num quero isso... Nunca mais quero pensar no que eu passei.

Não quero. Porque foi muitas decepções.(Maria)

Outros depoimentos demonstram que, para a pessoa que vive a

experiência da depressão, o distanciamento do outro passou a ser o caminho

possível, mas retratam, também, o sofrimento que atravessa tal experiência:

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Perdi minhas amizades por que ninguém gosta de estar perto

de quem é depressiva. Porque as pessoas num querem saber

de problemas... e dificuldades. Às vezes eu começava a

conversar as pessoas se afastavam de mim, muita gente se

afastou de mim, muitos dos meus amigos se afastaram. Porque

eu só falava de tristeza, só vivia chorando e...as pessoas

sempre...dizem nunca fique perto de quem só fala de tristeza

porque isso atrai tristeza também. E as pessoas foram se

afastando, se afastando... E eu... E eu cada vez mais eu ia me

enfiando num...num caminho sem volta. Como se fosse um

caminho sem eu saber qual é a saída. (Norma)

Meus familiares foram pra praia, eu fiquei em casa. E quando

eles saíram, comecei a chorar! Deveria ter ido! (...)A

depressão, ela diz assim: não vá! Fique aqui! Não vá, fique

aqui! Se você tiver fortalecido, você faz, vai, vai, vai e vai

embora. Se não, você se entrega a ela da forma que eu me

entreguei. Eu queria ter ido. Mas quando? Quando o povo já

foi. (Paulo)

Eu procuro estar o mais distante possível pra não falar.

Entendeu? O meu relacionamento com as pessoas tá muito

fora do que o povo vive hoje, entendeu? Por que? Eu quase

sempre estou ansioso, sempre estou deprimido e eu procuro

ficar o mais distante possível. Se tem uma cadeira vaga aqui

no ônibus aqui atrás eu não vou pra frente porque na frente

tem um monte de gente. Possa eu falar um besteira com o

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140

motorista, que eu falei outro dia, que me criou um problema

danado! (Paulo)

Me fechei dentro de mim. Num me abri com minha mulher com

meus filhos. Chegaram a um ponto de me chamar, e eles num

sabiam que eu tava doente, né? Com depressão. (...)Eu num

conversava, chegaram a um ponto de reunir os quatro na mesa

e dizer que... iam sair de casa e me deixar. Porque eu tava

insuportável, eu doente... Nem eu sabia nem eles sabiam.

(Francisco)

Alguns sujeitos colaboradores descrevem atitudes cujo objetivo é

fazer com que o outro sinta pena deles:

Você quer que as pessoas tenham pena de você.(...) Eu

sempre contava que minha vida era triste, por causa disso... Eu

tinha prazer em falar da minha vida pros outros. Que nada

dava certo, que eu era uma derrotada, que não tinha mais

sentido a minha vida... Eu queria contar isso aos quatro ventos,

entendeu? Eu achava que elas iam se aproximar de mim, que

iam me acalentar, que iam me dar força. E na realidade elas se

afastavam. (Norma)

Eu sou... um ser humano...um ser humano que... não sinto

mais nada. Eu sou...Eu sou...insensível! Eu não tenho

sensibilidade. Eu num olho mais às vezes nas pessoas, como é

que elas estão. Eu... O depressivo, ele é egoísta! Ele só pensa

nele. Exclusivamente nele! Nele! Só nele! Que todas as

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pessoas tenham dó dele. E não é pras pessoas ter dó de mim.

Eu to me tratando! Entendeu? (Paulo)

Para Noma, o isolamento parece provir de um sentimento de ser

diferente das demais pessoas:

Você não se sente igual às pessoas como, por exemplo, eu

que trabalho com muita gente...agora que eu melhorei com

meu corpo, mas antes eu me sentia um “ET” no meio deles, eu

num entendia porque que ah... era tão alegre, sorria, contava

coisas boas e eu só tinha tristeza pra contar e pra falar.

(Norma)

Merleau-Ponty (1945/2006) considera que “é por meu corpo que

compreendo o outro, assim como é por meu corpo que percebo coisas” (p.

253). O corpo próprio, não sendo um objeto, é sempre mundaneidade – cultural

e historicamente constituído. Não há como conhecê-lo senão através do

mundo, e nem conhecer o mundo sem que seja por meio do corpo. Na

depressão, a barreira que se estabelece entre sua existência e a do outro – por

meio da necessidade de ser cuidado, da culpa e do sentimento de

especialidade – o remete a um mundo realmente escuro e triste, mas, ainda, a

um mundo passível de ser acessado por meio do corpo próprio.

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142

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Fazer contato com pessoas diagnosticadas com depressão e

permitir que se expressem como corpo e existência foi uma experiência

bastante enriquecedora. Desde o início, tinha a certeza de que não poderia

abrir mão do conhecimento proposto pela ciência tradicional – que trata do

corpo objetivo e supervaloriza os sintomas – por ser ele o modelo de

conhecimento mais divulgado. Meu objetivo não se constituía em travar uma

batalha com qualquer outra forma de conhecimento, mas reconhecer, no

fenômeno da depressão, os múltiplos contornos que o constituem, segundo a

lente da psicopatologia crítica (Moreira & Sloan, 2002), ou seja, fazer contato

com o fenômeno da depressão, considerando seus aspectos biológico,

psicológico, social, cultural, ideológico etc. A partir das entrevistas

fenomenológicas e da sua análise, sob a lente da fenomenologia de Merleau-

Ponty, pude compreender melhor o fenômeno do corpo deprimido.

Inicialmente, pude constatar que o fenômeno da depressão é de

difícil descrição para os pacientes e que eles a reconhecem a partir de sinais

do seu corpo. A leitura destes sinais revela muito mais do que um complexo de

sintomas, pois reflete a posição existencial de um sujeito no mundo. No corpo

próprio, tais sinais revelam uma existência pesada, marcada pela indisposição

e falta de ânimo para realizar as tarefas cotidianas. No entanto, a discussão de

tais sinais e a compreensão de seus significados existenciais, ou do ser-no-

mundo, são difíceis, uma vez que a nossa cultura tende a reproduzir o modelo

de corpo vinculado ao pensamento científico tradicional, que o reduz ao corpo-

organismo, fortalecendo a concepção dicotômica entre físico e psíquico. Na

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143

pessoa que vive a experiência da depressão, a ideia de um corpo dividido –

uma mente que comanda e que adoece e um corpo que padece –, é muito

clara. O prejuízo desta forma dicotômica de pensamento é a compreensão do

corpo como um objeto, como os demais objetos do mundo, não como um

conjunto de significações vividas. Tal concepção deturpa a ideia de

corporeidade e impede a perspectiva de uma existência integrada, na qual

homem e corpo estão estreitamente entrelaçados e existem no mundo.

O pensamento dicotômico pode, ainda, interferir na forma como os

sujeitos colaboradores concebem as causas da depressão. Observei que há

uma tendência a reconhecer a depressão como um fenômeno externo a eles,

descrevendo-o como algo que se apodera deles , seja uma “coisa” que não

conseguem definir, um espírito ruim ou um monstro que se apropria de suas

mentes. Compreendo que tal forma de conceber o fenômeno da depressão faz

com que as pessoas que vivem tal experiência se sintam limitadas quanto ao

poder de exercer suas próprias vidas e passam a travar exaustivas lutas com

algo que elas percebem como um processo externo. Na minha prática clinica,

observo que tal concepção, por parte do cliente, interfere no avanço do

processo psicoterapêutico, uma vez que ele permanece, insistentemente,

ligado à necessidade de combater uma causa externa, perdendo o contato com

sua existência como um todo, na qual eventos externos e internos não se

separariam e, além das dicotomias, as suas experiências singulares e do

mundo seriam consideradas mutuamente constituídas.

A postura e o ritmo corporais de tais sujeitos, também, estão

comprometidos na experiência vivida da depressão. Neste sentido, se

manifesta uma postura marcada pelo isolamento, por se encontrarem diante de

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um mundo que descrevem como diferente, estranho e incômodo, no qual o

presente não é significativo, já que há uma exacerbação do passado, e um

sentimento de estarem fora de contexto. Aliados a isto, experimentam uma

noção de tempo que é marcada pela lentidão e pela estagnação do corpo, bem

como pela descrença em relação ao futuro. A tal movimento do deprimido no

mundo alia-se a relação que ele mantém com a morte ou com o suicídio. Tal

relação se torna bastante paradoxal, uma vez que é unânime a ideia, expressa

nas entrevistas, de que o sofrimento causado pela depressão faz com que tais

sujeitos pensem no suicídio como uma solução possível, enquanto o que

desejam, realmente, é eliminar o sofrimento, não morrer concretamente.

O comprometimento da autoestima e do valor pessoal foi tema

recorrente nas entrevistas, revelando uma corporalidade marcada, também,

pela impotência, insegurança, incapacidade, fragilidade e culpa, assim como

uma relação interpessoal empobrecida pela necessidade de deixar evidente,

para o outro, tais limitações.

Os resultados desta pesquisa descrevem o sofrimento que acomete

a pessoa em depressão e a relação do deprimido consigo mesmo, com o outro

e com o mundo, e têm como diferencial, a descrição do corpo vivido na

depressão para sua melhor compreensão. Do ponto de vista da psicopatologia,

tal compreensão é de fundamental importância para uma prática clínica que,

sem perder de vista seu significado biológico, pretenda ir além de uma

compreensão puramente sintomatológica da doença e compreenda o homem e

sua experiência de adoecimento como eminentemente mundanos, não

dicotômicos e na qual homem e mundo se atravessem na descrição do vivido.

No sentido de apreender o alcance de tal compreensão na clínica psicológica,

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sugiro a realização de futuras pesquisas que descrevam os resultados do

processo psicoterápico de clientes com diagnóstico de depressão, submetidos

à psicoterapiaterapia humanista-fenomenológica.

Finalmente, entrevistar pessoas com diagnóstico de depressão e

fazer contato com a dor que permeia sua corporalidade, me proporcionou vê-

las em uma perspectiva para além dos rótulos das descrições clássicas dos

manuais de psicopatologia, e passei a me questionar: como seria se

conseguíssemos sempre olhar o mundo e os fenômenos com os quais nos

deparamos como se fosse pela primeira vez? Como se constituiria nossa

existência se o mundo, para nós, fosse sempre uma novidade? Observo tal

comportamento em bebês e em crianças bem pequenas e consigo captar, em

seu modo de viver, a intensa alegria de conhecer, e um brilho presente,

também, no “olhar” do pesquisador que “levanta o véu” e descobre o que antes,

não se mostrava. Como seria se pudéssemos viver sob a égide do constante

êxtase, da perene descoberta do mundo? Seria possível viver assim, se

considerássemos na fidelidade aos fenômenos a intenção primordial da

descoberta do mundo. Foi com tal perspectiva que me lancei nesta pesquisa,

buscando conhecer melhor o fenômeno da depressão no corpo vivido sob a

lente da fenomenologia de Merleau-Ponty (1945/2006) – alvo de minhas

inquietações como psicoterapeuta.

O homem tem uma grande capacidade de abertura ao mundo e ao

outro por meio do corpo próprio. Concluo, com esta pesquisa, que investigar o

corpo deprimido, sob a lente da fenomenologia de Merleau-Ponty (1945/2006),

pode contribuir para uma compreensão do fenômeno da depressão como

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expressão da existência do indivíduo, não apenas como um conjunto de

sintomas, marcado por circunstâncias orgânicas ou psíquicas.

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ANEXOS

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152

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Senhor (a) Paciente,

Estou desenvolvendo uma pesquisa intitulada “Corpo deprimido: um

estudo sobre corpo vivido e depressão a partir da fenomenologia de Merleau-

Ponty”. A realização desta pesquisa justifica-se pela importância do estudo da

depressão na atualidade e tem como objetivo compreender a depressão a

partir da descrição de como ela se dá no corpo da pessoa que vive esta

experiência. Gostaria de solicitar autorização para a sua participação nesta

pesquisa a qual será realizada através de uma entrevista gravada em áudio.

Esclareço que a sua participação não é obrigatória e que a sua

identidade será mantida em sigilo. Sua colaboração na pesquisa não implica

em custos nem em ganhos financeiros para você, nem, tampouco, prejuízos ou

privilégios para seu tratamento psicológico.

Asseguro que as informações coletadas serão utilizadas apenas para os

objetivos desta pesquisa e que o senhor(a) tem o direito de desistir da sua

participação a qualquer momento.

Em caso de dúvida, entrar em contato com a pesquisadora Maria

Edvania de Araújo Leite, do Mestrado em Psicologia da Universidade de

Fortaleza – UNIFOR - telefone 9994.1074 - ou com o Comitê de Ética em

Pesquisa da Universidade de Fortaleza - UNIFOR, situada na Av. Washington

Soares, 1321 – Fortaleza, CE – 60811-905 – telefone : (85) 34773219.

*****************************************************************************

Após ler estas informações e ter minhas dúvidas esclarecidas pela

pesquisadora, eu ________________________________________________,

residente _______________________________________________________

________________________________________________________, telefone

_______________, concordo em participar desta pesquisa.

Fortaleza-CE, _____/_____/_______.Pesquisadora: _____________________

Colaborador: _________________________________________

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