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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO REDES DIGITAIS E SUSTENTABILIDADE RICARDO BARRETTO Corpo e sustentabilidade no habitar atópico Argumentos sobre antigas e novas relações entre ser humano, natureza e tecnologia SÃO PAULO 2013

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO REDES DIGITAIS E SUSTENTABILIDADE

RICARDO BARRETTO

Corpo e sustentabilidade no habitar atópico Argumentos sobre antigas e novas relações entre

ser humano, natureza e tecnologia

SÃO PAULO

2013

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RICARDO BARRETTO

Corpo e sustentabilidade no habitar atópico:

Argumentos sobre antigas e novas relações

entre ser humano, natureza e tecnologia

Monografia apresentada ao Centro de Pesquisa Atopos,

da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de

São Paulo, como exigência parcial para obtenção do

Título de Especialista em Redes Digitais e

Sustentabilidade.

Área de concentração: Comunicação

Orientação: Prof. Dr. Massimo di Felice

Coorientação: Mestre em Ciências da Comunicação

Mariana Marchesi

SÃO PAULO

2013

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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio

convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

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Nome: BARRETTO, Ricardo

Título: Corpo e sustentabilidade no habitar atópico: argumentos sobre antigas e novas

relações entre ser humano, natureza e tecnologia

Monografia apresentada ao Centro de Pesquisa Atopos

da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo

para obtenção do título de Especialista em Redes Digitais e Sustentabilidade

Aprovado em:

Banca Examinadora

Nome e Titulação: _________________________________________________

Instituição ________________________________________________________

Julgamento _____________________ Assinatura: _______________________

Nome e Titulação: _________________________________________________

Instituição ________________________________________________________

Julgamento _____________________ Assinatura: _______________________

Nome e Titulação: _________________________________________________

Instituição ________________________________________________________

Julgamento _____________________ Assinatura: _______________________

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Aos mestres das artes do movimento que ajudaram a

despertar outras percepções do corpo e suas relações

com a vida.

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Agradecimento

Agradeço aos professores e pesquisadores do Centro de Pesquisa Atopos que compartilharam

saberes, questionamentos e descobertas ao longo dos últimos 18 meses.

A Mariana Marchesi pelas orientações valiosas para o aprimoramento desse estudo.

Ao Prof. Dr. Massimo Di Felice por fazer a conexão com uma nova trama de conhecimento e

perspectivas sobre o ser humano, os fluxos comunicativos e o mundo contemporâneo.

Ao Prof. M. Andre Stangl pela leveza, bom humor e sapiência com os quais se zelou pelo

curso nessa primeira turma.

E a todos os amigos, familiares, colegas de trabalho e de estudos que de algum modo

participaram e apoiaram a jornada até aqui.

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RESUMO

As arquiteturas informativas em rede desempenham no mundo contemporâneo

uma importância que vai muito além da perspectiva de meios de comunicação,

uma vez que condicionam uma nova sociabilidade, interativa e colaborativa, que

está associada a novos modos de percepção e a novas formas de entrelaçamento

do corpo com o mundo. Esse é o contexto em que a humanidade enfrentará as

mudanças cada vez mais intensas na natureza em decorrência, principalmente, dos

efeitos de séculos de ação antropogência predatória do homem sobre o meio

ambiente, fundamentadas na noção cartesiana de que o ser humano está apartado

da natureza, assim como a mente está separada do corpo. Nesse sentido, faz-se

urgente uma mudança de mentalidade e de modelos de desenvolvimento. O corpo

entendido como dimensão perceptiva primoridial do ser humano tem papel

fundamental nessa transformação. É nessa perspectiva que o presente trabalho

realiza uma revisão bibliográfica e levanta diversos exemplos de iniciativas pelas

redes digitais que revelam como o corpo tem um potencial de participação

espontânea nesse processo de mudança, mas também pode ser encarado como

fonte de saber que o catalise.

Palavras-chave: habitar, sustentabilidade, tecnologia, natureza, corpo

ABSTRACT

The network information architectures play a role in the contemporary world that

overcomes the media perspective, once they engage a new sociability, that is

interactive and collaborative, as well as related to new ways of perceiving the

world and intertwining with it. This is the context in which humanity faces the

ever more intense changes in nature caused by centuries of predatory exploitation

of the environment by men, something bound to the Cartesian notion that human

beings are separated form nature, the same way the body is understood as

separated from the mind. Therefore, a change in mindsets and development

models is urgent. The body understood as the primordial perceptive dimension of

human beings plays a major role in such quest for transformation. With that in

mind, the present study enrolls in a bibliographical review of concepts towards the

relations between human beings, nature and technology; sustainability; and the

body. And also raises several examples up from digital networks that reveal how

the body holds a potential of spontaneously participating of that process, as well

as it can be considered a source of knowledge to enhance change.

Key words: inhabit, technology, nature, body, sustainability

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................9

AS FORMAS DO HABITAR ......................................................................... 15

2.1. O estar no mundo, tecnológico e natural .................................................... 15

2.2. Habitar empático, habitar exotópico .......................................................... 20

2.3. A forma do habitar atópico ....................................................................... 26

SUSTENTABILIDADE NO HABITAR .......................................................... 31

3.1. Entropia ................................................................................................... 31

3.2. Perspectiva integrada ................................................................................ 36

3.3. Prosperidade ............................................................................................. 38

CORPO E ENTRELAÇAMENTO NO MUNDO CONTEMPORÂNEO ........... 45

4.1. Sensorialidade e percepção ....................................................................... 45

4.2. Entrelaçamento e o habitar ........................................................................ 51

4.3. O corpo no habitar atópico ........................................................................ 56

ESPONTANEIDADE NO CORPO, INTENCIONALIDADE PARA A VIDA .. 68

5.1. A sustentabilidade e o corpo no habitar atópico .......................................... 68

5.2. Espontaneidade do corpo para a sustentabilidade ........................................ 71

5.3. Intenção no corpo ..................................................................................... 77

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 85

REFERÊNCIAS .............................................................................................. 88

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1. Introdução

“(...) a dimensão corpórea é imposta como um

dado essencial para a transformação da

civilidade contemporânea e para a instância de

emancipação e de liberação que a atravessa.

(MARIANI, 2004:11)1

Os rumos da história humana a partir do século XXI parecem estar

intimamente ligados a dois fatores essenciais: a relação do homem com a natureza

e a configuração da sociedade em rede.

O primeiro fator nos remete à situação limite em que nos encontramos de

depleção das condições de vida que sustentam nossa existência no planeta e a de

inúmeros outros seres. Após séculos de uma exploração intensa dos recursos

naturais, notadamente a partir da Revolução Industrial, chegamos a um panorama

no início do terceiro milênio do calendário cristão de exaurimento dessas fontes

para além da capacidade de regeneração da natureza, o que tem pressionado por

uma mudança no modelo econômico de crescimento a qualquer custo e de

reflexão sobre as relações do homem com a natureza, marcadas por um

pensamento cartesiano de separação do meio ambiente.

Esta situação vem associada a um contexto de relações humanas

igualmente marcadas pela exploração do outro e pelo distanciamento, que se

traduz num quadro de graves condições sociais para uma grande parte da

população e de um desenvolvimento que não é sinônimo de prosperidade. A

reflexão sobre as relações do ser humano com o outro e com o meio ambiente,

principalmente na perspectiva de propor modos alternativos, menos impactantes à

sociedade como um todo e à natureza que garante sua existência, nos remete nas

últimas décadas ao termo sustentabilidade.

Toda essa trajetória da história humana guarda forte ligação com o

desenvolvimento tecnológico das diferentes sociedades, que abarca perspectivas

tão diversas como de meios de produção e da própria comunicação. Seja da forma

mais simples, como o uso de uma pedra como ferramenta, até outras mais

1 Livre tradução: “ (...) la dimensione corpora si è imposta come um dato essenziale per la trasformazione dela

civiltà contemporanea e per la istanze di emancipazione e di liberazione che l’attraversano.”

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complexas, como de arquiteturas informativas digitais, a tecnologia é uma

constante na história humana. De fato, é tão difícil pensar no ser humano sem a

relação com a tecnologia, que ela se torna essencial para a compreensão da

existência da espécie.

Essa relação se revela tanto nas ações antropogênicas de transformação da

natureza, como na extensão de estruturas, habilidades e sentidos do corpo e na

própria relação com as coisas. Daí a concepção de que novas tecnologias

influenciam fortemente a sensorialidade, a sociabilidade e a relação do ser

humano com o mundo, como nos ajuda a entender Marshal McLuhan (1964)

quando afirma que “o meio é a mensagem”.

Na contemporaneidade, essa relação entre o ser humano, as tecnologias

digitais e também o território suscita uma nova forma de estar no mundo –

denominada por Massimo Di Felice (2009) de habitar atópico. O papel

fundamental das arquiteturas informativas em rede no condicionamento dessa

nova forma de habitar – que é simultânea ao desafio da busca pela

sustentabilidade - muitas vezes camufla a influência constante do corpo na relação

do ser humano com a natureza e com a tecnologia.

Se o homem é indissociável dessas duas dimensões interdependentes,

conforme aponta Di Felice (2009), não continua a acontecer pelo corpo a

percepção e a interação com esse mundo que hibridiza o orgânico e o tecnológico?

Para responder a essa pergunta convém aproximar a relação entre habitar

atópico e sustentabilidade a conceitos sobre corporeidade.

Tantas são as possibilidades de um estudo com esse foco, que faz-se

necessário restringir esta pesquisa inicial a um mapeamento de conceitos e

argumentos que ajudem a vislumbrar caminhos que evidenciam o corpo na

relação do ser humano com o território e a tecnologia. E que, espera-se, possam

estimular novos estudos sobre a noção do corpo na relação entre habitar atópico e

sustentabilidade. Em outras palavras, a proposta dessa pesquisa é de um tatear

inicial do tema, que surge mais como um questionamento do que como uma

afirmação.

Vale observar ainda que este é um estudo marcado pelo “talvez”. Da

transição de uma época (modernidade) para outra que ainda está em configuração

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e parece ter na forma do habitar atópico suas características mais contundentes.

Também pelo talvez de uma perspectiva de futuro incerta, em meio a previsões

científicas e evidências empíricas sobre o estado da ecosfera. E ainda a dúvida se

as novas arquiteturas digitais reticulares, por onde se amplificam os fluxos

comunicativos na contemporaneidade, continuarão a dissipar fronteiras, chegando

a abolir a barreira histórica que separa mente, corpo e natureza, desde a

consolidação do pensamento cartesiano.

O presente estudo trata dessa perspectiva do corpo frente à relação do

homem com a natureza, a sociedade e a tecnologia, trazendo referências e

integração entre assuntos como a comunicação, a economia, a filosofia, as

ciências sociais, aspectos da medicina, das artes e estudos sobre a corporeidade.

Evocar um leque tão diverso visa, em primeiro lugar, responder à

complexidade do tema que se apresenta. E, concomitantemente, atender ao anseio

por um olhar mais horizontal sobre a discussão, capaz de reunir argumentos

relevantes e instigantes para futuros estudos de caráter mais verticalizado, a partir

das constatações feitas nesse primeiro momento.

1.1. Objetivos, justificativa e objetivos específicos

Esta pesquisa pretende levantar referenciais teóricos para discutir como o

corpo revela, influencia e potencializa a relação entre sustentabilidade e o

conceito de habitar atópico proposto por Massimo di Felice (2009) na obra

“Paisagens pós-urbanas: o fim da experiência urbana e as formas comunicativas

do habitar”2. Para tanto, foi realizada uma revisão bibliográfica focada em três

grupos de assuntos: as formas do habitar como pensadas por Di Felice, com

destaque para o habitar atópico; a sustentabilidade; e o corpo e sua relação de

percepção e expressão no mundo.

A opção por um recorte dessa amplitude se justifica nas fortes evidências

sobre a ligação entre esses três temas, suscitadas ao longo da primeira edição

(2012-2013) do curso de pós-graduação Redes Digitais e Sustentabilidade da

Escolad de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP).

2 Na Justificativa deste projeto será melhor apresentado o conceito de habitar atópico, que é resumido por Di Felice da seguinte forma: “(...)

um específico modo de estar no mundo delineado pela forma comunicativa digital, sendo assim, pelo fim da dialética entre sujeito e

território ocasionada pela configuração do espaço (Di Felice, 2009).” (DI FELICE, 2012:42)

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A ideia é compartilhar um misto de inquietação pessoal aliada à percepção

de que autores de diferentes áreas de estudo e abordagens têm falado sobre

questões muito próximas quando tratam das características do mundo

contemporâneo e do desafio da sustentabilidade. E que perceber, refletir e atuar

sobre essas questões pode ter no corpo um catalizador comum.

A escolha do objeto aqui proposto também está ligada a outra referência de

caráter pessoal, uma vez que há mais de dez anos trabalho com o tema de

comunicação e sustentabilidade e também desenvolvo uma prática de formação

em dança contemporânea e educação somática do corpo, tendo atuado como

bailarino profissional durante alguns anos. Essa trajetória tem me permitido

constatar na prática ligações entre o diálogo nas redes digitais, iniciativas pró-

sustentabilidade e o potencial do corpo em aguçar as percepções que

fundamentam a colaboração no contexto da sustentabilidade.

De fato, o início dessa pesquisa foi conduzido de modo simultâneo à

elaboração de um trabalho de dança contemporânea com base na relação entre

corpo e tecnologia, com apoio de um grupo de estudos coordenado pela bailarina

e educadora somática Lucilene Favoreto. Não foi possível manter as duas

pesquisas simultaneamente, como era a intenção inicial, mas a vivência realizada

durante quatro meses ajudou a intensificar a reflexão e as percepções sobre o tema

desse estudo.

Algumas perguntas que serviram de referência para a pesquisa acadêmica

apresentada a seguir foram: A nova cultura comunicativa em formação,

influenciada pelas arquiteturas digitais reticulares, e que parece por vezes

intensificar um afastamento da relação com o corpo biofísico, pode ser um fator

de aproximação com a corporeidade? As características intrínsecas da forma do

habitar atópico coadunam com o processo de construção da sustentabilidade? De

que modos o corpo pode intensificar a relação entre o habitar atópico e a

sustentabilidade?

Para ajudar a responder a essas e outras perguntas que surgem ao longo do

trabalho, foram estabelecidos os seguintes objetivos específicos:

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Realizar um estudo exploratório para levantar conceitos que

fundamentam a relação entre habitar atópico e sustentabilidade e a relação

entre o corpo e o habitar atópico;

Estabelecer correlações de argumentos que revelem conexões

entre o corpo e a sustentabilidade no habitar atópico;

Apresentar reflexões que mostrem o papel do corpo na

hibridização das dimensões presencial (física) e virtual da sociedade

contemporânea em rede;

Levantar exemplos nas redes digitais que permitam constatar na

prática evidências dos argumentos apresentados ao longo da reflexão sobre

a relação entre ser humano, natureza e tecnologia.

Para lidar com as questões e objetivos aqui propostos, o trabalho a seguir

foi estruturado do modo abaixo:

Capítulo 2 – “As formas do habitar”: Explora a relação homem-natureza-

tecnologia por meio do conceito das formas do habitar proposto por Massimo Di

Felice, tendo como obra de referência “Paisagens Pós-urbana: O fim da

experiência urbana e as formas comunicativas do habitar” e destaca o conceito de

habitar atópico para levantar elementos reveladores do modo do ser humano estar

no mundo contemporâneo, a partir da influência da revolução comunicativa

digital e dos fluxos informacionais em rede. Especialmente relevante para o

entendimento dessa discussão, bem como para todo o estudo que dela decorre, a

ideia de que “o meio é a mensagem”, tal qual propõe Marshall McLuhan (1964),

indicando a influência que as tecnologias exercem sobre a sensorialidade e a

sociabilidade humanas.

A revisão teórica empreendida nesse capítulo abarca conceitos de autores

visitados por Di Felice (2009) e por alguns outros, no que concernem diferentes

aspectos da relação entre tecnologia, sociabilidade humana e território, a partir de

uma perspectiva comunicativa – como no caso de Argan (1994), Baldini (1995),

Benjamin (1966), Castells (2013), De Kerckhove (2009), Foucault (2006), Garcia

(2008), Heidegger (1954), Latour (2007), Lèvy (1996), Lyotard (1984), McLuhan

(1964), Morin (1994), Puech (2008), Serres (1993) e Vatimo (1989).

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Capítulo 3 – “Sustentabilidade no habitar”: Tem por foco estabelecer um

entendimento sobre desenvolvimento sustentável e algumas de suas premissas e, a

partir daí, relações com o habitar atópico. Foram observados argumentos de

Abramovay (2012), Cechin (2012), Di Felice (2009), Elkington (1997),

Georgescu-Roegen (1971), Jackson (2009), Lovelock (2007), Pádua (2010),

Pereira (2012), Raworth (2012), Resende (2013), Sachs (2002), Sen (2000), Shiva

(1988) e Veiga (2005).

Capítulo 4 – “Corpo e entrelaçamento no mundo contemporâneo”: Traz

conceitos importantes sobre a percepção do corpo e sua relação com o estar no

mundo, fazendo paralelos com característica que fundamentam o habitar atópico,

tendo como apoio argumentos de Bergson (1948), Cardim (2009), Damasio

(1994), Doczi (1990), Foucault (1985), Husserl (1998), Mariani (2004), Merleau-

Ponty (1968), Nietzsche (1997), Sarsini (2004), Serres (2004) e Silva (2009).

Capítulo 5 – “Espontaneidade do corpo, intencionalidade para a vida”:

Realiza, por fim, a intersecção dos argumentos levantados anteriormente para

identificar o papel do corpo na relação entre ser humano, natureza e tecnologia,

resgatando conceitos dos autores trazidos anteriormente e estabelecendo algumas

novas ligações com referências de pesquisadores, profissionais da educação

somática, artistas e ativistas do corpo, como Bertazo (2004), Beziérs e Piret

(1992), Favoreto (2006), Garaudy (1984), Glennie (2012), Morin (1994), Vianna

(2005).

Ao longo dos capítulos são apresentados diversos exemplos que ajudam a

compreender a relação do corpo com os temas discutidos, a partir de reportagens

da imprensa, de referências de websites, aplicativos, e vídeos. Aqui cabe uma

ressalva que algumas questões sobre o potencial do corpo no habitar atópico e na

sustentabilidade só podem ser de fato compreendidas pelo trabalho de experiência

física e proprioceptiva. Mas espera-se que os exemplos apresentados ajudem a

construir imagens e indicações sobre os processos experienciais aos quais se

referem, clarificando a discussão conduzida ao longo do texto.

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2. As formas do habitar

“Enquanto adotarmos a atitude de Narciso, encarando

as extensões de nossos corpos como se estivessem do

lado de fora, independentes de nós, enfrentaremos os

desafios tecnológicos com a mesma sorte, a mesma

pirueta e queda, de quem escorrega numa casca de

banana.” (MCLUHAN, 1964, p. 89)

2.1 O estar no mundo, tecnológico e natural

A vida humana sempre esteve associada e dependente dos artefatos e da

tecnologia, seja o pedaço de pau usado por um ancestral coletor ou os pigmentos a

partir de elementos orgânicos da pintura rupestre, sejam as arquiteturas digitais

em rede que hoje permitem fazer negócios, lutar pela conservação do meio

ambiente, pedir uma pizza enquanto se joga um game online com desconhecidos

que se tornam guerreiros num mundo virtual.

Esses exemplos nos ajudam a entender porque a cultura técnica é

indissociável da natureza humana, conforme propõe Michel Puech (2008). O autor

mostra que a história humana foi marcada por uma coevolução da técnica, da

linguagem e da interface cérebro-mão, que é a união entre a excepcional

habilidade manual do homem e sua capacidade de refletir sobre e representar o

que manipula, o que realiza. Cada um desses elementos foi influenciado pelos

outros num processo contínuo e definidor do ser humano:

“Essa coevolução deve servir de modelo à coexistência de uma

cultura humana (referente aos hábitos da linguagem, simbólica) e de

uma cultura tecnológica (material) que constituem na realidade uma

só e mesma cultura para um só e mesmo homo sapiens.”3 (PUECH,

2008, p. 28-29)

Essa constatação reforça que a técnica não existe isoladamente, mas

encontra-se num sistema caracterizado pela interdependência com a relação do ser

humano com o mundo. A indissociabilidade entre o homem e a técnica vai além

3 Livre tradução: “Cette coévolution doit servir de modèle à la coexistence d’une culture humaine (langagière, symbolique) et d’une culture

technologique (matérielle) qui constituent en réalité une seule et même culture pour un seul et même Homo sapiens.”

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de uma relação instrumental e ganha contornos de uma relação de intimidade com

as coisas, algo que Puech exemplifica ao citar o costume de civilizações antigas

de enterrarem os mortos junto a objetos (PUECH, 2008, p. 27).

O que está por trás da reflexão arqueológica, antropológica e poética de

Puech é o convite para irmos além de concepções da ficção científica que

mostram o homem dominado pela tecnologia; além do foco da essência da

técnica, da visão da tecnologia como meio para chegar a um fim; além das

relações de poder que possam estar presentes. Ele nos convida a olhar para a

existência de uma ligação íntima, emocional, com a tecnologia - sem deixar de

lado o fato de que o meio técnico nunca é neutro, pois as tecnologias são

produzidas com uma intenção e uma ética por trás (PUECH, 2008, p. 49-52).

Puech localiza a relação do ser humano com a técnica como ontológica:

“Ela é um modo de ser no mundo, de estender o mundo no qual

existimos por suas ações, A tecnologia é nosso modo de habitação do

mundo. É por isso que somos Homo Technologicus.”4 (PUECH, 2008,

p. 55)

Para esclarecer o conceito trazido pelo autor, vale aludir ao entendimento

de técnica expressado por Heidegger – referência para a argumentação de Puech –

conforme resume Di Felice:

“Segundo Heidegger, a ‘tékhne’, desde a sua etimologia grega,

pertencia ao âmbito do “produzir”, e, ao mesmo tempo, aquele da

‘poiésis’, conceito que, unindo em si tanto o significado técnico como

aquele artístico, aproxima a interpretação ao sentido de “tornar

visível o que estava oculto” e, consequentemente, àquele de

“descoberta”, de “revelação”.” (DI FELICE, 2009, p. 121)

Desse modo, aprofunda Di Felice (2009), o entendimento de técnica a

partir de Heidegger não é o de um “fazer puro do homem”, nem algo que possa

ser restrito a uma dimensão instrumental, mas remete à relação com a tecnologia

que resulta numa forma de habitar o mundo.

Puech ajuda a esmiuçar essa ideia da seguinte maneira:

4 Livre tradução: “Elle est un mode d’être-au-monde, de déployer le monde en y existant par ses actions. La technologie est notre mode

d’habitation du monde. C’est pour cela que nous sommes Homo technologicus.”

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“(...) nós habitamos naturalmente o mundo tecnológico (dirigir um

carro é para nós natural como andar a pé) e nós habitamos

tecnologicamente o mundo natural (uma incursão a uma montanha

elevada não se concebe hoje sem equipamentos de alta tecnologia). É

preciso compreender esse modo de habitação.”5 (PUECH, 2008, p.

59)

Essa relação ontológica com a técnica ajuda a entender porque, ao longo

da história ocidental, o surgimento de novas tecnologias desempenhou influência

fundamental no desenvolvimento de novos modos de sociabilidade, do

pensamento e da relação entre o homem e a natureza.

É o caso da roda que encurtou distâncias, acelerou e ampliou a circulação

de pessoas e coisas e a troca com culturas antes desconhecidas. São as ferramentas

e técnicas de transformação de matérias primas que potencializaram a força, a

destreza e a engenhosidade do corpo e permitiram a criação de novos artefatos e

de novos modos de ocupação do território e de dinâmicas sociais tão vastas como

a agricultura, as moradias e a guerra. E, certamente, as tecnologias comunicativas,

como as primeiras formas escritas dos hieróglifos, as linhas de telégrafo que se

estenderam ao longo das estradas e pelos oceanos, e a internet que levou o

conceito de rede a um novo significado em termos dos fluxos informativos sem

intermediários e fora da divisão emissor-receptor, da interatividade e da

colaboração (Di Felice, 2009).

De fato, as mudanças na sociabilidade propiciadas pelas tecnologias

comunicativas foram muito mais intensas do que os conteúdos transmitidos por

essas tecnologias. É o que McLuhan (1964) defende com a célebre expressão “o

meio é a mensagem”. Ele esclarece que seu estudo se refere a toda forma de

transporte de bens e de informação, seja como metáfora6, seja como intercâmbio:

“Toda forma de transporte não apenas conduz, mas traduz e

transforma o transmissor, o receptor e a mensagem. O uso e qualquer

meio ou extensão do homem altera as estruturas de interdependência

entre os homens, assim como altera as ratios entre os nossos

sentidos.” (MCLUHAN, 1964, p. 108)

5 Livre tradução: “nous habitons naturellement le monde technologique (conduire une voiture nous est aussi naturel que marcher à pied) et

nous habitons technologiquement le monde naturel (une randonnée en haute montagne ne se conçoit pas aujourd’hui sans équipements de haute technicité). Il s’agit de comprendre ce mode d’habitation.” 6 Segundo McLuhan, a palavra metáfora vem do grego meta perein, que significa conduzir através ou transportar. (MCLUHAN, 1964, p.

108)

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É nessa perspectiva que pode-se compreender como transformações

associadas a certas tecnologias comunicativas são tão intensas a ponto de

representaram revoluções comunicativas, que por sua vez estão associadas ao

surgimento de novos tipos de cultura, conforme ideia proposta por Baldini (1995).

O filósofo da comunicação destaca quatro tipos de culturas: a oral, caracterizadas

pela comunicação primordialmente pela palavra falada; a cultura manuscrita ou

quirográfica, baseada na escrita; a cultura tipográfica, que tem nas páginas

impressas o meio principal de transmissão de saberes; e a cultura das mídias

elétricas e eletrônicas, caracterizadas por veículos de massa como a televisão, o

rádio e o cinema.

Massimo Di Felice (2009) toma como referência a concepção de diferentes

culturas a partir da perspectiva comunicativa para desenvolver sua reflexão sobre

distintas formas de habitar, ressaltando primeiramente as revoluções

comunicativas que as originaram, a partir da definição de Baldini:

“Três foram as revoluções mais importantes que se sucederam no

tempo, isto é, a revolução quirográfica (com a invenção da escrita

ocorrida no quarto milênio a.C.), a revolução gutenberguiana (com a

invenção da imprensa que aconteceu por volta da metade do séc. XV)

e a revolução elétrica e eletrônica (com a invenção do telégrafo, e

sucessivamente do rádio e da televisão).”7 (BALDINI, 1995 apud. DI

FELICE, 2009, p. 65)

Di Felice atualiza a reflexão de Baldini ao identificar que a tecnologia

digital da Internet - que propicia uma comunicação em rede inédita - está

associada a uma cultura da interação e, a interatividade da chamada web 2.08, que

surge num segundo momento, está associada a uma cultura da colaboração (DI

FELICE, 2009, p. 66).

Se observarmos algumas das transformações associadas a cada uma dessas

culturas comunicativas, poderemos constatar a simbiose entre o ser humano, sua

percepção do mundo, as tecnologias midiáticas e a natureza, conforme indica Di

Felice (2009) ao propor que tal simbiose se traduz numa forma de habitar.

7 BALDINI, M. Storia della communicazione. Milão: Tascabili Economici Newton,1995, p. 9.

8 Refere-se às arquiteturas e fluxos informativos que têm como foco a interação e a participação a partir de linguagens diversas e pela

conexão de pessoas e interesses diferentes.

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19

A abordagem do habitar apresentada por Di Felice (2009, p. 20) vai além

de concepções arquitetônicas ou topográficas e lança um olhar para as interações e

articulações entre mídia, sujeito e território, em épocas tecnológicas diferentes e

no interior de arquiteturas comunicativas distintas. As diferentes formas do

habitar revelam não só novas características de sociabilidade, mas também de

nossa condição perceptiva, de relação com as coisas e com a natureza.

Para conceituar o habitar, Di Felice (2009) se remete a Heidegger, que o

apresenta como “o modo através do qual os mortais estão sobre a terra"

(Heidegger, 1977, apud DI FELICE, 2009, p. 54)9. O habitar seria então uma

condição ontológica do ser humano, que reúne em si os quatro elementos do que

Heidegger denomina “Quadratura” (a terra, o céu, os mortais e os divinos) e é

entendido numa perspectiva temporal, isto é, o ser é transitório, um projeto, uma

possibilidade:

“Salvando a terra, acolhendo o céu, aguardando os deuses,

conduzindo os mortais, é assim que acontece propriamente um

habitar.” (HEIDEGGER, 1954, Não paginado)

Onde - de modo bem mais simplificado e menos poético que o escrito por

Heidegger - a terra remete às fontes do sustento da vida, “sustento de todo o gesto

de dedicação”; o céu remete aos ciclos e fenômenos da natureza; os deuses, à

dimensão do sagrado; e os mortais dizem respeito aos homens, que habitam ao

deixar a terra “livre em seu próprio vigor”, ao acolher o céu e aguardar os deuses

(HEIDEGGER, 1954, Não paginado).

Assim, a realização da Quadratura – a condição de ser humano – é algo

que acontece pelo relacionar-se com o mundo. Na leitura de Di Felice (2009, p.

56), o habitar “remonta a um relacionar-se e, portanto, a um comunicar”,

perspectiva que inclui também o “permanecer junto às coisas”, ou seja, a relação

com os objetos e as extensões tecnológicas do homem, uma vez que tal relação

acontece permeada pela Quadratura.

Heidegger expressa o habitar junto às coisas do seguinte modo:

“Quando os mortais protegem e cuidam das coisas em seu

crescimento. Quando edificam de maneira própria coisas que não

9 Heidegger, M. Costruire, Abitare, Pensare. In: Saggi e discorsi. Milão: Mursia, 1977, p. 96.

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crescem. Cultivar e edificar significam, em sentido estrito, construir.

Habitar é construir desde que se preserve nas coisas a quadratura.”

(HEIDEGGER, 1954, Não paginado)

Podemos entender melhor essa relação pela metáfora da ponte, que não

vem a ocupar um lugar, mas cria e constitui uma nova identidade territorial e

relacional. Ela gera uma interação comunicativa – seja de distanciamento, seja de

proximidade - entre as coisas, os espaços e o ser humano:

“Os espaços que cada dia percorremos são dispostos e abertos por

lugares; a essência destes se funde em coisas como a ponte (...).

Falar sobre a relação entre homem e espaço faz pensar que o homem

esteja de um lado e o espaço, de outro. Ao invés disso, o espaço não é

algo que esteja à frente do homem. Não é nem um objeto externo, nem

uma experiência interior. Não há os homens e, além deles, o espaço;

já que, se digo um homem e entendo com este termo aquele ente que é

no mundo do homem, ou seja, que habita, com isto indico já com o

termo um homem o permanecer da Quadratura junto às coisas.

Também quando nos relacionamos com coisas que não são uma

vizinhança alcançável, permanecemos, mesmo assim, junto às

próprias coisas (...). Os espaços se abrem em virtude do fato de que

são admitidos dentro do habitar do homem. Que os mortais são quer

dizer que, habitando, abraçam espaços e se mantêm neles sobre a

base do seu habitar junto às coisas e lugares.” (HEIDEGGER, 1977

apud DI FELICE, 2009, p. 61)10

Com o conceito de habitar em mente, lançamos agora um olhar para a

relação ser humano-natureza-tecnologia nas três formas do habitar destacadas por

Di Felice, a partir das revoluções comunicativas às quais se referem.

2.2 Habitar empático, habitar exotópico

À fase comunicativa caracterizada pelo advento da escrita – a revolução

quirográfica definida por Baldini (1995) - Di Felice associa a forma do habitar

empático, marcada pela sequência do alfabeto, pela organização do texto e pela

“prática comunicativa instaurada com a mediação da leitura que, por um amplo

período, fará coincidir o habitar com o ler” (DI FELICE, 2009, p. 75). O homem

enxerga a paisagem por meio de textos, preenchendo-a de significados e

10

Heidegger, M. Costruire, Abitare, Pensar. In: Saggi e discorsi. Milão: Mursia, 1977, p. 103-104.

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edificando-a à sua imagem e semelhança. Trata-se de uma forma comunicativa

unidirecional, com o sujeito emissor ativo de um lado e o espaço receptor passivo

de outro. Assim, a percepção e a interação do homem com o ambiente é de caráter

transitivo.

“No nível filosófico, o antropocentrismo, surgido com a difusão da

escrita, não situa o indivíduo na natureza, mas o coloca diante dela,

tornando-o habitante da própria razão e somente morador temporário

e ativo do ambiente ao seu redor.” (DI FELICE, 2009, p. 76)

Essa nova forma de habitar também traz uma afastamento da cultura oral

anterior, cindindo o mundo visual do auditivo, conforme aponta McLuhan:

“A palavra fonética escrita sacrificou mundos de significado e

percepção, antes assegurados por formas como o hieróglifo e o

ideograma chinês. Estas formas de escrita culturalmente mais ricas,

no entanto, não ofereciam ao homem os pontos de passagem do

mundo magicamente descontínuo e tradicional da palavra da tribo

para o meio visual, frio e uniforme.” 11

(MCLUHAN, 1964, p. 102-

103)

O autor vai além e afirma que o uso do papiro e do alfabeto criam os

incentivos para a construção de vias pavimentadas mais rápidas, que foram

decisivas para o fim das cidades muradas e das cidades-estados:

“A alteração dos agrupamentos sociais e a formação de novas

comunidades ocorre com a aceleração do movimento da informação,

por meio das mensagens em papel e do transporte rodoviário. Esta

aceleração significa mais controle a maiores distâncias.

Historicamente, representou a formação do Império romano e o

desmantelamento das cidades-estados do mundo grego.”

(MCLUHAN, 1964, p. 108)

Ao longo do tempo, a difusão da escrita e da prática da leitura vai

permitindo o acesso individual das informações, o que estimula a emancipação do

indivíduo do seu grupo. Nesse contexto, o espaço vai sendo ordenado de modo

lógico-sequencial - como a estrutura do livro organizado em parágrafos, capítulos,

11

McLuhan distingue do seguinte modo os meios quentes e frios: “(...) Um meio quente é aquele que prolonga um único de nossos sentidos

e em “alta definição”. Alta definição se refere a um estado de alta saturação de dados. Visualmente, uma fotografia se distingue pela “alta

definição”. Já uma caricatura ou um desenho animado são de “baixa definição”, pois fornecem pouca informação visual. O telefone é um

meio frio, ou de baixa definição, porque ao ouvido é fornecida uma magra quantidade de informação. A fala é um meio frio de baixa definição, porque muito pouco é fornecido e muita coisa deve ser preenchida pelo ouvinte. De outro lado, os meios quentes não deixam

muita coisa a ser preenchida ou completada pela audiência. Segue-se naturalmente que um meio quente, como o rádio, e um meio frio, como

o telefone, têm efeitos bem diferentes sobre seus usuários.” (MCLUHAN, 1964, p. 38)

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páginas e volumes - com foco em funções e identidades preestabelecidas, o que Di

Felice chama de “forma escrita do habitar” (DI FELICE, 2009, p. 78), e que será

uma característica da arquitetura nas cidades – típica nos mosteiros e burgos - e da

própria vida cotidiana dessas cidades, com a regulamentação do trabalho e com a

elaboração de projetos políticos para o espaço urbano.

Essa lógica da escrita aplicada à vida cotidiana e à organização do espaço

nos revela como a nova forma de habitar se configura mesmo havendo uma

grande parte da população não letrada. Ou seja, o acesso direto às novas

tecnologias não é determinante para a configuração de novas formas de habitar e

para a substituição de formas anteriores.

Como veremos adiante, esse é um processo gradual em que uma acaba

predominando sobre a outra, mas durante o qual elas convivem e se influenciam

mutuamente. Ainda assim, essa característica da convivência e eventual

substituição de formas de habitar revela faces mais ostensivas, por exemplo, nos

projetos de ocupação e urbanização levados pelos colonizadores e missionários

europeus a outras regiões do mundo, que impuseram a lógica da cultura escrita

sobre formas nativas do habitar, ligadas à cultura oral.

Em meados do século XV, a invenção da imprensa, com seus caracteres

móveis, leva à segunda revolução comunicativa descrita por Baldini (1995), que

altera o modo de guardar e transmitir informações, a maneira de pensar e de

organizar e de se relacionar com o espaço. Era o surgimento, em meio ao habitar

empático, do “homem tipográfico”, termo de McLuhan (1964).

Um dos elementos característicos da cultura tipográfica, segundo Di

Felice, é a aplicação do princípio matemático ao meio ambiente, que permitirá,

por exemplo, representar graficamente o globo como uma superfície plana.

“A cidade, com seus espaços simétricos e esteticamente

harmonizados, e o espaço renascentista, representado em mapas e

cartas de navegação, assumem uma forma objetiva, tornando-se

modelos ideal-típicos e, ao mesmo tempo, projetos a serem impressos

na prática cotidiana.” (DI FELICE, 2009, p. 102)

O autor reflete que a definição geométrica do território leva ao

aprimoramento das rotas de navegação, demarcação das fronteiras e das

propriedades de terras, e traz para o espaço urbano a busca por uma forma estética

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perfeita e real, evidente nos desenhos arquitetônicos e no distanciamento dos

projetos políticos idealistas da antiguidade clássica. Se, como já mencionado, essa

transformação no entendimento e na relação com o espaço se estende até os

projetos de colonização e evangelização - com a substituição da mentalidade e do

espaço nativos pelas formas de concepção europeias -, Di Felice (2009) mostra

que é possível identificarmos mesmo nos países europeus uma força motriz

impositiva, quando os problemas decorrentes da expansão urbana pós-revolução

industrial terão na organização e controle do espaço um foco prioritário para

governos, políticos e sociedade, com destaque para mudanças arquitetônicas

destinadas a provocar mudanças no estilo de vida dos cidadãos.

Assim, a sistematização da vida e da paisagem exprime uma forma

empática e confortadora de lidar com o espaço – no sentido de que faz dele algo

conhecido, dominado - e que, conforme afirma Di Felice (2009, p. 118), “o sujeito

habita, conquistando-o”.

“Desde a forma imaterial e escrita até aquela impressa, e nas formas

funcionais da época moderna, a cidade e o habitar ocidentais se

revelam como consequências de um processo comunicativo específico

e de um modo particular de transferir informações do sujeito-texto

para o espaço, elegendo-o como o objeto a ser moldado e

transformado.” (DI FELICE, 2009, p. 114)

Cabe observarmos que as características do habitar empático não podem

ser circunscritas exclusivamente ao período entre a revolução quirográfica e a

revolução elétrica. Seus elementos perpetuam-se até hoje, convivendo com a

forma do habitar exotópico – cuja configuração foi impulsionada com a

popularização da lâmpada elétrica e da fotografia a partir do fim do século XIX - e

convivendo com o habitar atópico, cujos indícios surgem a partir do fim do século

XX.

De modo análogo, foi no início do século XVII que surgiu uma forma de

interação midiática que estaria no âmago do habitar exotópico séculos mais tarde.

Por meio da observação do universo pelo telescópio, Galileu Galilei inaugurou

uma relação entre sujeito e território que se dá por uma experiência perceptiva

mediada por um instrumento tecnológico mecânico.

“Com o invento do telescópio de Galileu, será possível descobrir um

outro universo, distinto daquele passível de ser descoberto pelos

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livros. Trata-se de um olho e um olhar estendidos, e transformados

pela lente do telescópio, um olho e um olhar não mais unicamente

biológicos, mas também técnicos e não orgânicos – mecânicos. (...)

Galileu representa a passagem dos filósofos do livro para os filósofos

matemáticos, a passagem do conhecimento teórico-abstrato para

aquele científico-experimental, e, acima de tudo, introduz o conceito

de observação exata, aquele obtido pela mediação através de

instrumentos e meios de visão. É a visão tecnológica da natureza. A

partir de então, olhar e conhecer o mundo se dará pela intermediação

ativa de um instrumento e de um artefato de visão.” (DI FELICE,

2009, p. 191)

Essa intermediação que gera um olhar híbrido, ao mesmo tempo orgânico

e inorgânico, tem como desdobramento fundamental para se compreender o

habitar exotópico o deslocamento do sujeito para além do ambiente geográfico,

para além do espaço físico, em direção a um espaço em movimento.

“A partir de então, o espaço e o habitat tornam-se o resultado de uma

observação técnica, que introduz uma nova forma de habitar, baseada

na reprodução tecnológica da paisagem. A passagem de um habitar

“natural”, estático e geometricamente dominado, para um habitar

flutuante e tecnológico é objeto de um ulterior e decisivo incremento

na época industrial com o advento da fotografia, da luz elétrica, do

cinema e da mídia de massa.” (DI FELICE, 2009, p. 119)

Isto significa que estamos falando de um habitar associado à metrópole

moderna. Enquanto a cidade do habitar empático apresentava um espaço estático

diante do sujeito e manipulável, no habitar exotópico o espaço se realiza por uma

apreensão mediada pela tecnologia, desde o bonde até o cinema – que surgem

como extensões elétricas em meio à floresta de cabos que transformam a estrutura

urbana em redes comunicativas e estendem o sujeito nas esferas eletrônicas e nas

formas de relações metageográficas. É o que Di Felice chama de “espaço-

artefato”:

“(...) tecnologicamente emancipado do sujeito, que faz do habitar uma

experiência deslocativa, não somente no sentido geográfico, como,

sobretudo, com a difusão da mídia de massa, no nível eletrônico-

cognitivo.” (DI FELICE, 2009, p. 118)

Aqui, o autor se refere à relação com o cinema, o rádio, a TV, as

mensagens publicitárias, que configuram “metapaisagens”, “ecossistemas

informativos”.

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Para salientar o significado dessas “imagens-moradias flutuantes” do

habitar exotópico, Di Felice traz argumentos de Simmel e Argan. Para o

primeiro, a cidade vai criando uma forma de sociabilidade visual, na qual as

imagens em movimento intensificam “a vida nervosa e os sentidos” Simmel

(SIMMEL, 2005 apud DI FELICE, 2009, 155)12

, emancipando os cidadãos dos

ritmos da existência comunitária, e sujeitando-os àqueles ritmos frenéticos e

eletrônicos da metrópole industrial-produtiva e seus circuitos eletrônicos.

Em complemento, Di Felice destaca a observação de Argan sobre como o

significado do território na perspectiva do habitar exotópico apresenta uma

mudança em relação ao do habitar empático:

”A cidade deixa de ser lugar de proteção, de refúgio, e passa a ser,

sobretudo, lugar de comunicação: comunicação no sentido de

deslocação e de relação, mas também no sentido de transmissão de

determinados conteúdos urbanos.”13

(ARGAN, 1994, apud DI

FELICE, 2009, p. 150)

Assim, a experiência de um habitar exotópico se realiza tanto pela

possibilidade do espaço em movimento de modo emancipado ao sujeito – por

meio de trens, bondes, elevadores -, como pela percepção visual do espetáculo nos

“espaços-imagens”, “paisagens artificiais”, “meta-geografias reais e sintéticas ao

mesmo tempo”.

McLuhan nos ajuda a compreender esse contexto:

“Quem ainda se sinta inclinado a duvidar que a roda, a fotografia ou

o avião alteram nossos hábitos de percepção sensível, não pode mais

duvidar ante a iluminação elétrica. Neste domínio, o meio é a

mensagem, e quando a luz está ligada, há um mundo sensório que

desaparece quando a luz está desligada.” (MCLUHAN, 1964, p. 150)

A reflexão de McLuhan remete à questão sensorial no habitar exotópico

fortemente ligada ao olhar. Primeiramente, pela relação da cidade com a era

industrial, onde a expansão urbana e da aglomeração das pessoas tira da fala a

prioridade no estabelecimento das relações interpessoais e dá ao olhar essa

responsabilidade. É também pelo olhar que se faz a experiência das paisagens em

12

SIMMEL, G. Le metropoli e la vita dello spirito. Roma: Armando, 2005. 13

ARGAN, G. C. Storia dell’arte come storia della città. Roma: Editoria Riuniti, 1994, p. 120.

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movimento e dos espaços-imagens - que será motivo de agregação entre as

pessoas - e do surgimento dos novos olhares intermediados pelas tecnologias,

como no caso da fotografia:

“A reprodução técnica da paisagem determinará, como destaca W.

Benjamin, um efeito dilatador e multiplicativo do espaço, que

resultará na perda do ‘hic et nunc’, isto é, do seu sentido objetivo e

único, e, ao mesmo tempo, no surgimento de uma natureza

tecnológica que se coloca à frente do sujeito como alteridade

autônoma: “entende-se assim como a natureza que fala para a

câmera seja distinta daquela que fala para os olhos”. (DI FELICE,

2009, p. 119)

Essa possibilidade de outro olhar é potencializada pelos meios de

comunicação em massa que ajudam a mostrar, como aponta Vattimo (1989), a

crise do colonialismo e do eurocentrismo, mostrando que o ideal europeu de

humanidade era um dentre outros possíveis e que muitas vezes foi imposto a

outras sociedades pela violência. É o que Vattimo chama de dissolução dos pontos

de vista centrais e que coaduna com a ideia de fim das metanarrativas – como

aponta Lyotard (1984) ao referir-se ao forte abalo sofrido por noções que outrora

foram sustentáculos da sociedade ocidental, como o progresso, a modernidade e o

racionalismo.

2.3. A forma do habitar atópico

Se a interação com as tecnologias da eletricidade representou um estalo

para um novo olhar e uma nova sociabilidade, associado à expansão do sentido do

lugar (genius loci) para os espaços informativos, geográficos e imateriais, é de se

imaginar que as tecnologias digitais exerçam impacto de grande intensidade.

Difundidas a partir do final do século XX e com a rede planetária da internet, as

tecnologias digitais possibilitaram a circulação instantânea de informações, por

meio de uma comunicação que, de modo inédito na história da humanidade, não

se baseia na separação emissor e receptor.

“O resultado do surgimento desse novo social interativo e ilimitado é

a construção de uma sociabilidade e um habitar pós-territorial. Além

da arquitetura e da geografia, o habitar atópico não é mais ligado às

coordenadas topográficas nem a um genius loci, mas a fluxos

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informativos e a uma espacialidade morante, nem externa nem

interna, um habitar nem sedentário nem nômade que por meio da

tecnologia wireless e da computação móvel, faz do corpo o suporte da

informação, aglomerando a “biomassa” com a “infomassa”, numa

inter-relação fluida.” (DI FELICE, 2009, p. 226)

No capítulo 4 abordaremos uma perspectiva um pouco diversa da

concepção do corpo enquanto suporte da informação. Pelo momento, manteremos

foco na perspectiva contemporânea que Di Felice apresenta do conceito de

habitar, proposto por Heidegger, que o leva a definir uma sociabilidade

transorgânica:

“Referimo-nos aqui aos estudos do filósofo Michel Serres14

e do

antropólogo Bruno Latour15

, segundo os quais as redes digitais

produzem um significado de interação que une os elementos

orgânicos àqueles inorgânicos, desenvolvendo formas simbióticas

entre a técnica e o humano.” (DI FELICE, 2012, p. 41-42)

Outro autor que reflete sobre a ligação contemporânea entre o homem e a

tecnologia é Puech (2008), que a contextualiza num mundo onde não se pensam

mais questões filosóficas fundamentais, como liberdade, conhecimento, valores –

uma mudança que guarda paralelo com o fim das metanarrativas descrito por

Lyotard.

Puech afirma que “nesse mundo do conforto e da democracia, as pequenas

coisas da cotidianidade se tornaram uma grande questão” (PUECH, 2008, p. 10).

Segundo ele, essa concepção está associada ao argumento de Heidegger na obra

Ser e Tempo de que a contemporaneidade é marcada por uma sensação de

abandono e que a necessidade de reflexão foi substituída pela noção de

“utensilidade”, pela qual todos os entes – humanos e não humanos – estão à

disposição de uso e dos quais “nos servimos”. Puech resgata essa reflexão de

Heidegger para falar de uma filosofia da tecnologia.

Nessa perspectiva, ele encara o ser humano na contemporaneidade como

Homo sapiens technologicus , para o qual:

“(...) é mais fácil fazer que pensar, mais fácil realizar uma ação que

compreender seu sentido ou que a respaldar em uma decisão, é mais

14

SERRES, Michel. Filosofia mestiça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. 15

LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de uma antropologia simétrica. São Paulo: Editora 34, 1994.

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fácil construir e fazer funcionar sistemas de objetos que assumir

existencialmente a responsabilidade por eles. O desamparo é também

um atraso crônico do pensamento sobre o fazer e o saber fazer.”

(PUECH, 2008, p. 18)

Localizemos na reflexão de Puech outra característica importante do

habitar atópico, quando ele indica que se o mundo moderno era científico, o

mundo contemporâneo é tecnológico; se a ciência é um discurso, a técnica é uma

ação (PUECH, 2008, p. 21-22).

Já em relação ao território, a atopia não seria um “não-lugar”, mas, como

propõe Di Felice (2009), uma localidade “on demand”, “plural e tecno-

subjetiva”. Vêm daí, por exemplo, novos rumos das cidadanias contemporâneas,

que não mais estão restritas a um espaço e a um tempo únicos e objetivos, mas

desenvolvem-se simultaneamente e com maior velocidade em diversos lugares,

virtual e presencialmente, a partir da interação digital. Di Felice cita Lèvy para

refletir a respeito:

“A multiplicação contemporânea dos espaços faz-nos nômades de um

novo estilo: em vez de seguirmos linhas de errâncias e de migração

dentro de uma extensão dada, saltamos de uma rede a outra, de um

sistema de proximidade ao seguinte. Os espaços se metamorfoseiam e

se bifurcam aos nossos pés, forçando-nos à heterogênese.” (LÈVY,

1996 apud DI FELICE, 2009, p. 239)16

E é Latour quem nos traz em forma de pergunta uma síntese provocadora

que serve como referência ao habitar atópico: “Será nossa culpa se as redes são

ao mesmo tempo reais como a natureza, narradas como a discurso, coletivas

como a sociedade?” (LATOUR, 2001, p. 12)

É importante pontuar aqui que ao fundir realidade, discurso e coletividade

as redes digitais amplificam tanto o caráter interativo e colaborativo das relações

humanas, como também alimentam sua dimensão de controle. A diferença é que

as instituições que outrora regulavam os fluxos comunicativos perdem esse papel

nas arquiteturas reticulares do habitar atópico. Assim, o coletivo que muitas vezes

é dado a “bisbilhotices”, a difundir padrões de comportamento - como dos corpos-

mercadoria esculpidos por cirurgia e musculação - (Garcia, 2008) e a lançar

16

Lèvy, P. O que é o virtual. São Paulo: Editora 34, 1996, p. 77.

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informações a público a revelia de quem é constrangido por elas, exerce também

um papel de revelador das estratégias e ações das instituições, trazendo a

transparência (Vattimo, 1989) como valor incontornável, capaz de por em xeque

manipulações, monopólios, ingerências, incongruências entre discurso e prática.

Para citar apenas alguns casos: Vatileaks, sobre desvio de recursos pelo

Banco do Vaticano; o caso Snowden, sobre espionagem internacional em meios

digitais pelo governo dos EUA; a tentativa da Monsanto de estabelecer

propriedade intelectual sobre alimentos produzidos em todo o mundo; a lei contra

homossexuais em Uganda; o uso de mão de obra escrava por grandes marcas

fabricantes de roupas no Brasil.

Lembrando que a rede tem o caráter de hibridizar real e virtual, tornando-

se fundamental para a eclosão de manifestações que também tomam as ruas, como

no caso dos Indignados na Espanha, da Primavera Árabe, do Occupy Wall Street e

das manifestações pelo Brasil em 2013.

Manuel Castells resume do seguinte modo a nova configuração propiciada

pelas redes: “Sem depender das organizações, a sociedade tem a capacidade de

se organizar, debater e intervir no espaço público.”17

A sociedade em rede vai muito além das ações de controle social e torna-

se propositora e executora de alternativas pelo engajamento colaborativo e a co-

criação (Garcia, 2008) que faz surgir novas práticas como o crowdsourcing e o

crowdfunding18

, que parecem apontar não para as resistências indicadas por

Foucault (2006), que realimentam o controle e o poder das instituições, mas para

caminhos sinuosos, inesperados e imprevisíveis que propiciam a recusa ao jogo

como jugo, conforme indica Queiroz (2008) em sua leitura da obra de Jean

Baudrillard.

Por fim, as visões de Di Felice (2009) e Latour (2001) sobre a rede nos

ajudam a fiar uma ligação estreita com a concepção de complexidade como

tecido, apresentada por Morin (1994);

“O que é a complexidade? A primeira vista, a complexidade é um

tecido (complexus: o que está tecido em conjunto) de constituintes

17

Afirmação feita por Castells durante a conferência “Redes de indignação e esperança”, realizada no evento Fronteiras do Pensamento

2013, em São Paulo. Disponível em: http://www.fronteiras.com/canalfronteiras/entrevistas/?16%2C68. Acessado em: 29 jul. 2013. 18

Iniciativas baseadas na inteligência e na produção coletiva a partir das redes digitais são genericamente conhecidas como crowdsourcing,

e muitas vezes têm como desdobramento o crowdfunding, que é a apresentação de projetos dos mais diferentes tipos, em plataformas digitais.

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30

heterogêneos inseparáveis associados: apresenta o paradoxo do uno e

do múltiplo. Ao mirar com mais atenção, a complexidade é,

efetivamente, o tecido de eventos, ações, interações, retroações,

determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico.

Assim é que a complexidade se apresenta com as linhas inquietantes

do emaranhado, do inextricável, da desordem, da ambiguidade, da

incerteza (...)”19

(MORIN, 1994, p. 32)

O pensamento de Morin nos permite compreender as arquiteturas e

dinâmicas reticulares do habitar atópico como fenômenos da complexidade,

hibridizando real e virtual, conectando ser humano, natureza e tecnologia num

diálogo constante e mutável. Um diálogo capaz de fundir ideias outrora

impensáveis e de rever paradigmas tidos como incontestáveis.

É neste sentido que investigaremos a seguir como o habitar atópico se

relaciona com o desafio da sustentabilidade que lhe é contemporâneo e

constitutivo. E, posteriormente, a manifestação do corpo nessa relação.

19

Livre tradução: “¿Qué es la complejidad? A primera vista la complejidad es un tejido (complexus: lo que está tejido en conjunto) de

constituyentes heterogéneos inseparablemente asociados: presenta la paradoja de lo uno y lo múltiple. Al mirar com más atención, la complejidad es, efectivamente, el tejido de eventos, acciones, interacciones, retroacciones, determinaciones, azares, que constituyen nuestro

mundo fenoménico. Así es que la complejidad se presenta con los rasgos inquietantes de lo enredado, de lo inextricable, del desorden, la

ambigüedad, la incertidumbre.”

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31

3. Sustentabilidade no habitar

“(…) nosso foco no futuro deve ser não só nas

mudanças em tecnologia e nos sistemas de

gestão, mas nos valores e mentalidades.”

(ELKINGTON, 1997, p. 7)20

O habitar atópico descrito no capítulo anterior se configura a partir do

advento das tecnologias digitais, das arquiteturas informativas reticulares e de

uma sociabilidade interativa e colaborativa. Mas, também, em meio à mudança

fundamental das condições ecológicas necessárias à vida no planeta,

simultaneamente a um quadro de diferenças extremas de oportunidade e

condições de vida entre os seres humanos.

O enfrentamento desses dois desafios, que guardam uma relação de

interdependência, é o foco das reflexões e ações da chamada sustentabilidade,

tema que será abordado neste capítulo. A ideia é explorarmos alguns conceitos

sobre sustentabilidade e identificar a coincidência de suas premissas com

características da forma do habitar atópico, que lhe é contemporânea.

3.1 Entropia

As alterações ambientais de origem antropogênica fazem parte da relação

do ser humano com a natureza, mas o acúmulo de seus impactos sobre o planeta,

principalmente a partir da Revolução Industrial, passou a representar obstáculo à

capacidade de suporte à vida e de regeneração da natureza.

Interessante notar como esse contexto surge em meio à forma do habitar

empático, em que a natureza, como exposto no capítulo anterior, é vista como

algo a conquistar.

“A revolução científica na Europa transformou a natureza de terra

mater, em uma máquina e uma fonte de material bruto; com essa

transformação, foram removidos todos os laços éticos e cognitivos

contra sua violação e exploração. A revolução industrial converteu a

20

Livre tradução: “(…) our focus in future must not only be on changes in technology and in management systems, but also on values and

mindsets.”

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32

economia da prudente gestão de recursos para o sustento e a

satisfação de necessidades básicas em um processo de produção de

commodities para a maximização do lucro. O industrialismo criou um

apetite sem limites para a exploração de recursos, e a ciência

moderna forneceu a licença ética e cognitiva para tornar possível tal

exploração, aceitável e desejável.(...)”21

(SHIVA, 1988, p. xiv-xv)

Entre os inúmeros exemplos dos desdobramentos que surgem dessa

relação, destaca-se a abrupta mudança das condições climáticas, associada ao

aumento da concentração de gases do efeito estufa na atmosfera – que em 2013

chegaram à marca das 400 partes por milhão, algo jamais ocorrido ao longo da

história do ser humano no planeta22

.

Como aponta o Relatório Estado do Mundo 2013:

“(...) o uso da atmosfera, da crosta, das florestas, dos estoques

pesqueiros, da água e demais recursos já é uma força tão grande

quanto a da natureza.” (BROWN, 2013, p. 8)

Isto se reflete, por exemplo, na diminuição da água disponível para

consumo, seja por assoreamento de rios, pela poluição das águas ou pela

perturbação dos regimes das chuvas. Na perda de vegetação nativa, com impactos

para a qualidade dos solos para agricultura, o controle de pragas e doenças, o

desenvolvimento de remédios, a alimentação de comunidades locais. Ou ainda na

redução das populações de abelhas em taxas superiores a 30% em algumas

regiões, por impacto de agrotóxicos no sistema nervoso desses insetos, e a

consequente queda no serviço ecossistêmico da polinização, essencial para a

perpetuação de vegetação nativa e da agricultura mundial23

. Entre diversos outros

fenômenos ocasionados pela ação do homem - que já utiliza recursos em uma

escala correspondente a 1,5 planetas Terra24

- se impõem como obstáculos a sua

própria condição de vida, principalmente de populações de baixa renda que já se

21

Livre tradução: “The scientific revolution in Europe transformed nature from terra mater into a machine and a source of raw material;

with this transformation it removed all ethical and cognitive constraints against its violation and exploitation. The industrial revolution

converted economics from the prudent management of resources for sustenance and basic needs satisfaction into a process of commodity production for profit maximization. Industrialism created a limitless appetite for resource exploitation, and modern science provided the

ethical and cognitive license to make such exploitation possible, acceptable- and-desirable.” 22

Dado apresentado pelo Scripps Institution of Oceanography, da Universidade de San Diego, conforme noticiado pelo Instituto Carbono

Brasil em 10 mai 2013. Disponível em: http://www.institutocarbonobrasil.org.br/mudancas_climaticas1/noticia=733981. Acessado em 14

ago. 2013. 23

Informações que fazem parte de reportagem especial do serviço de informação da Universidade de Yale, o Environment 360. Disponível

em: http://e360.yale.edu/feature/declining_bee_populations_pose_a_threat_to_global_agriculture/2645/. Acessado em 14 ago. 2013. 24

Segundo informações da organização Global Footprint Network. Disponível em:

http://www.footprintnetwork.org/en/index.php/GFN/page/world_footprint/. Acessado em 14 ago. 2013.

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encontram em situação de vulnerabilidade ou que dependem diretamente dos

recursos naturais da região que habitam para sobreviver.

Se a ameaça que representam os efeitos ambientais da ação antropogênica

não é uma novidade - no Brasil, por exemplo, tem-se conhecimento de relatos a

respeito desde a época do Império (DEAN, 2001) -, é a partir da segunda metade

do século XX que a questão ganha tons alarmistas por meio de estudos científicos,

da organização do movimento ambientalista e dos protestos de movimentos

sociais.

Esse panorama guarda relação com a forma do habitar exotópico, que ao

estimular uma perspectiva deslocativa do olhar, intensifica a crise dos pontos de

vista centrais (VATTIMO, 1989) já mencionada no capítulo 1, trazendo à tona a

pressão de novos grupos contrários à ideia de desenvolvimento enquanto

crescimento econômico per se. Entre outros desdobramentos, podemos identificar

a defesa de um modo diferente de relação com a natureza e dentro da sociedade,

que não mais fundamentados na conquista e domínio do território, na imposição

de diretrizes sociopolíticas que não respeitam o meio ambiente e as singularidades

locais e na geração de riqueza com desigualdade e no desrespeito à diversidade,

para citar apenas alguns fatores.

O reverberar da questão ambiental entre governos tem como primeiro

marco no plano internacional a Conferência de Estocolmo, em 1976, que foi o

primeiro encontro oficial da Organização das Nações Unidas para discutir a

questão, inaugurando décadas de debates, de negociações de tratados e de

implementação e discussão de políticas internacionais, tendo como alguns de seus

marcos a Rio 92 e a criação da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre

Mudança do Clima e a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Diversidade

Biológica (PEREIRA, 2012).

É desse processo que surge a ideia de sustentabilidade, para a qual uma

grande variedade de conceitos foi elaborada. Muitos deles, de modos diferentes,

pregam a busca por formas de harmonizar as atividades antrópicas com a

manutenção de condições ambientais necessárias à vida humana no planeta e a

garantia de equidade nos direitos, oportunidades e condições de vida na

sociedade, a exemplo do que propõe Raworth (2012).

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Se a multiplicidade de proposições já existentes para um termo tão novo na

história do pensamento humano torna difícil exaurir as possibilidades de seu

entendimento, é relevante nos debruçarmos sobre algumas definições para

estabelecer associações entre seus fundamentos e as premissas do habitar atópico.

A abordagem da relação entre os limites da natureza e o impacto das

atividades humanas é foco de estudos da Economia Ecológica, que traz uma

perspectiva de interdependência e coevolução da economia e dos ecossistemas.

Essa escola de pensamento tem como um dos pilares a concepção de Georgescu-

Roegen, que aponta, como veremos a seguir, para a degradação dos recursos

naturais pelas atividades humanas, numa referência ao conceito de entropia, da

segunda lei da termodinâmica25

.

Esse é um argumento que será explorado por muitos autores, como Cechin

(2010), que faz uma análise dos conceitos do economista Georgescu-Roegen26

para mostrar como, no mundo contemporâneo, a natureza representa um limite à

economia. Ele explica que a economia é um subsistema aberto, dentro de um

sistema finito que é o planeta, por sua vez sujeito à lei da entropia. Esta implica

que as mudanças na qualidade da energia de um sistema tendem a torná-la

inutilizável, isto é, parte da energia não pode ser transformada em trabalho. Sendo

o processo econômico um processo aberto, ele depende da entrada de energia e

materiais de baixa entropia, com capacidade de realização de trabalho, e libera

resíduos de alta entropia, seja em forma de calor, seja em forma de particulados,

como o caso da poluição.

Portanto, se é fundamental pesquisa em tecnologia para melhora de

eficiência dos modos produtivos, só pode haver sustentabilidade com a

minimização do fluxo de matéria e energia que atravessam o subsistema economia

– o que diminuiria a pressão sobre os estoques de recursos naturais e a geração de

resíduos.

25

Como esclarece o Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, existem três formas referenciais para enunciar a

segunda lei da termodinâmica. O enunciado de Kelvin: “É impossível remover energia térmica de um sistema a uma certa temperatura e

converter essa energia integralmente em trabalho mecânico sem que haja uma modificação no sistema ou em suas vizinhanças”; o enunciado de Clausius “Não há nenhum processo onde o único efeito de energia térmica seja o de transferir energia de um corpo frio para

outro quente”; e o enunciado de Kelvin-Planck: “É impossível que uma máquina térmica, operando em ciclos, tenha como único efeito a

extração de calor de um reservatório e a execução de trabalho integral dessa quantidade de energia”. Disponível em http://www.if.ufrgs.br/~dschulz/web/segunda_lei.htm. Acessado em 20 ago. 2013. 26

Cechin cita em sua pesquisa onze obras de Georgescu-Roegen que apoiam sua litura sobre o conceito da entropia para o desenvolvimento

sustentável.

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Acompanhando essa premissa, Cechin (2010) traz o entendimento de que,

a partir de certa escala, a economia degrada as fontes de recursos e os sorvedouros

de resíduos e, portanto, no estágio atual, notadamente em países desenvolvidos,

deveria haver uma mudança do modelo baseado em crescimento, para um de

decrescimento, com redução da entropia.

É importante sublinhar que a questão da entropia na perspectiva da

sustentabilidade vai além de um olhar econômico. Uma concepção complementar

é inspirada pela noção de complexidade, como nos aponta Morin:

“Descobriu-se no universo físico um princípio hemorrágico de

degradação e de desordem (segundo princípio da Termodinâmica);

logo, no suposto lugar da simplicidade física e lógica, descobriu-se a

extrema complexidade microfísica; a partícula não é um ladrilho

primário, mas sim uma fronteira sobre uma complexidade talvez

inconcebível; o cosmos não é uma máquina perfeita, mas sim um

processo em via de desintegração e, ao mesmo tempo, de

organização.”27

(MORIN, 1994, p. 33)

O autor nos remete a ideia de que os seres vivos são sistemas abertos em

constante estado de desequilíbrio que é organizado em um dinamismo

estabilizado, por meio da relação com o ambiente, não como simples dependência,

mas como relação constitutiva. Apesar dos seres vivos parecerem sempre os

mesmos, seus constituintes estão sempre se renovando por dinâmicas internas e

pelo diálogo com o ambiente. Trata-se, portanto, de “sistemas auto-eco-

organizadores” (MORIN, 1994, p. 45). E se tal organização acontece por meio de

fluxos informativos – entendidos aqui como todo tipo de troca -, quanto maior o

estabelecimento de interações entre si e o ambiente, maior a possibilidade de

organização que reduza a entropia.

Outra forma de entender o conceito de entropia na perspectiva da

sustentabilidade envolve desdobramentos sociopolíticos relevantes, como os

indicados por Vandana Shiva:

“A segunda lei da termodinâmica prevê que o desenvolvimento

econômico intensivo em recursos e intensivo em resíduos deve se

tornar uma ameaça à sobrevivência da espécie humana no longo

prazo. Lutas políticas baseadas na ecologia em países industrialmente

27

Livre tradução: “Se ha descubierto en el universo físico un principio hemorrágico de degradación y de desorden (segundo principio de la

Termodinámica); luego, en el supuesto lugar de la simplicidad física y lógica, se ha descubierto la extrema complejidad microfísica; la

partícula no es un ladrillo primario, sino uma frontera sobre una complejidad tal vez inconcebible; el cosmos no es una máquina perfecta,

sino un proceso em vías de desintegración y, al mismo tiempo, de organización.”

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avançados têm raiz nesse conflito entre opções de sobrevivência de

longo prazo e superprodução e superconsumo de curto prazo. Lutas

políticas de mulheres, camponeses e tribos baseadas na ecologia em

países como a Índia são bem mais agudas e urgentes, uma vez que

têm raiz na ameaça imediata às opções de sobrevivência para a maior

parte da população, imposta pelo crescimento econômico intensivo

em recursos e perdulário em recursos para o benefício da minoria.”28

(SHIVA, 1989, p. 9)

3.2. Perspectiva integrada

Contextos como os apresentados acima e as possibilidades de

entendimento da entropia em nossa relação com o mundo apontam para o que

Veiga (2005) considera a inevitabilidade da sustentabilidade, cuja complexidade

demanda uma abordagem integrada:

”(...) todas as esferas do conhecimento devem trazer a natureza de

volta. Não por arrependimento romântico, mas como consequência de

renovação das humanidades baseada nos mais recentes avanços

obtidos.” (VEIGA, 2005, p. 151)

Essa demanda por integração de informações e conhecimento guarda

interessante paralelo com a perspectiva do habitar atópico, caracterizado pela

comunicação em rede e pelas iniciativas colaborativas – o que inclui as diferentes

áreas do conhecimento acadêmico. Nesse contexto, vale ressaltar ainda que

“trazer a natureza de volta” é algo que prevê uma relação íntima com a tecnologia

digital – outra característica do habitar atópico - uma vez que as informações

sobre a natureza, a serem consideradas em diferentes esferas de conhecimento,

estão bastante associadas hoje à sua digitalização por satélites, câmeras,

dispositivos de medição, georreferenciamento etc. E que, a partir desses dados, a

mudança de interação com a natureza acontecerá também por meio dos

dispositivos tecnológicos digitais, numa perspectiva reticular que reúne actantes

humanos e não humanos29

.

28

Livre tradução: “The second law of thermodynamics predicts that resource intensive and resource wasteful economic development must

become a threat to the survival of the human species in the long run. Political struggles based on ecology in industrially advanced countries

are rooted in this conflict between long term survival options and short term over-production and over-consumption. Political struggles of

women, peasants and tribals based on ecology in countries like India are far more acute and urgent since they are rooted in the immediate threat to the options for survival for the vast majority of the people, posed by resource intensive and resource wasteful economic growth for

the benefit of a minority.” 29

Conforme termo proposto por Latour (2001) e apresentado no capítulo anterior.

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Quando Veiga (2005) fala em integração de conhecimentos, nos indica que

concepções fora da economia – uma das esferas que mais tem refletido

sistematicamente sobre a questão da sustentabilidade - devem ser trazidas para o

diálogo sobre o tema.

De fato, o entendimento sobre sustentabilidade extrapola a perspectiva

primeiramente econômica e traz outros recortes. Um exemplo, é a proposta de

Sachs (1998) de interação de atores, esferas de conhecimento e dimensões da

sociabilidade, que podem ser agrupados em oito dimensões para refletir a

sustentabilidade: social, cultural, ecológica, ambiental, territorial, econômica e

política (nacional e internacional).

Já a Teoria de Gaia, de Lovelock (1998), tem por foco a interação dos

organismos na Terra com os arredores inorgânicos, formando um sistema

complexo autorregulador que contribui para manter as condições para a vida no

planeta.

Aqui é possível identificarmos novamente a característica do habitar

atópico de interação dos mais variados actantes, na perspectiva do que propõe

Latour (2001), ou seja, a interação reticular entre humanos e não-humanos, em

sentido amplo.

Dentre as abordagens que nos ajudam a entender a sustentabilidade a partir

de uma perspectiva relacional do ser humano com a natureza, destaca-se também

o conceito de história ambiental, tal qual apresentado por Pádua (2010), que

propõe a reflexão sobre uma história não da humanidade, mas da biosfera, da qual

o homem é parte:

“(...) A visão de uma natureza em permanente movimento e

transformação ao longo do tempo, obviamente, não favorece a

capacidade de persuasão de teorias deterministas (mesmo que elas

ainda possam existir nos quadros do grande politeísmo teórico da

atualidade). É nesse ambiente teórico renovado, na virada do século

XX para o XXI, que a história ambiental procura repensar, na

definição de Elinor Melville e Guillermo Castro, “as interações entre

os sistemas sociais e os sistemas naturais, e as consequências dessas

interações para ambas as partes, ao longo do tempo” (Castro, 2007).”

(PÁDUA, 2010, p. 85)

Vale citar ainda abordagens que, embora dentro da economia, fazem a

junção entre diferentes perspectivas, como no caso de Abramovay (2012), que

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ressalta o ponto de vista socioambiental da sustentabilidade ao defender, como

resposta aos limites da natureza, a inserção da ética no centro da vida econômica.

Isto significa olharmos também para os desdobramentos sociais dos modos de

produção e distribuição de riquezas. Novamente, a perspectiva integrada.

3.3 Prosperidade

Uma abordagem econômica que ganhou especial atenção recentemente, e

que é desenvolvida a partir de argumentos trazidos de outras áreas do

conhecimento que não só a economia - mas também a antropologia, a psicologia e

até mesmo noções do islamismo - é a de prosperidade sem crescimento, proposta

por Jackson (2009). Segundo o autor, o modelo econômico centrado no

crescimento contínuo trouxe de um lado o endividamento pessoal e de nações e de

outro foi incapaz de distribuir de modo razoavelmente equânime as riquezas do

mundo, gerando desigualdades sociais gigantescas que levam a tensões entre os

mais pobres e que resultam em impactos para toda a sociedade. Neste sentido, o

autor analisa a crise econômico-financeira mundial, deflagrada em 2008, como

evidência da “irresponsabilidade sistêmica” necessária para manter o modelo de

crescimento constante:

“A era da irresponsabilidade demonstra uma cegueira de longo prazo

em relação às limitações do mundo material. Esta cegueira é tão

evidente em nossa inabilidade para regular mercados financeiros,

como o é em nossa inabilidade de proteger recursos naturais e de

reduzir danos ecológicos. Nossas dívidas ecológicas são tão instáveis

quanto nossas dívidas financeiras. Nenhuma delas é contabilizada

apropriadamente na incansável busca pelo crescimento do

consumo.”30

(JACKSON, 2009, p. 27)

Nessa mesma perspectiva, Resende (2013) resume do seguinte modo o

esgotamento do modelo econômico vigente:

“Diante da evidência de que o dano da atividade econômica sobre o

planeta se aproxima do limite do tolerável, a identificação do

crescimento econômico com o aumento do bem-estar tornou-se

obrigatoriamente questionável. (...) O desafio de continuar a elevar a

30

Livre tradução: The age of irresponsibility demonstrates a long term blindness to the limitations of the material world. This blindness is as

evident in our inability to regulate financial markets as it is in our inability to protect natural resources and curtail ecological damage. Our

ecological debts are as unstable as our financial debts. Neither is properly accounted for in the relentless pursuit of consumption growth.”

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qualidade de vida, o bem-estar, de uma forma sustentável — palavra

que se tornou um horrível lugar-comum — se mostra tão relevante

como sempre foi. Assim como a imposição de sacrificar a contínua

melhora da qualidade de vida em nome dos limites ecológicos parece

irrealista, mais irrealista ainda, absurdo mesmo, é imaginar que a

mera incorporação do neologismo “sustentável”, aposto a

crescimento, a consumo ou ao que quer que seja, nos permitirá seguir

o curso do aumento dos níveis de consumo observados no século

passado. Se formos necessariamente obrigados a crescer e a

enriquecer para continuar a melhorar a qualidade de vida, estaremos

diante de um impasse, pois é evidente que não será mais possível

crescer, enriquecer e sobretudo consumir, nos padr es de hoje, por

muito mais tempo, sem esbarrar nos limites físicos do meio ambiente”

(RESENDE, 2013, p. 24)

Como alternativa de desenvolvimento, Tim Jackson propõe mudar o foco

para a ideia de prosperidade, que vai muito além das questões materiais:

“Prosperidade tem dimens es sociais e psicológicas vitais. Estar bem

é em parte a habilidade de dar e receber amor, desfrutar o respeito de

nossos pares, contribuir para trabalhos úteis, e ter um senso de

pertencimento e confiança na comunidade. Resumindo, um importante

componente da prosperidade é a habilidade de participar da vida da

sociedade com sentido.”31

(JACKSON, 2009, p. 7)

Esta concepção está relacionada à ideia de “capacidade para

florescimento” humano que Amartya Sen apresenta em sua reflexão sobre

desenvolvimento como liberdade (Sen, 2000). Impossível ignorarmos o fato de

que existe aí um paralelo com o conceito de habitar, de Heidegger (1954). Isto é,

quando Jackson fala em participação com sentido, existe aí terreno fértil para

entendermos aí a realização da Quadratura (céu, terra, deuses, mortais) proposta

por Heidegger, e a condição para o estar do ser humano no mundo.

Tim Jackson oferece então uma definição que pode ser tomada como

possível conceito de sustentabilidade:

“Uma prosperidade justa e duradoura não pode estar isolada das

condições materiais. Capacidades fazem fronteira por um lado com a

escala da população global e, por outro, com a ecologia finita do

planeta. Ignorar essas fronteiras naturais ao florescimento é

31

Livre tradução: “Prosperity has vital social and psychological dimensions. To do well is in part about the ability to give and receive love,

to enjoy the respect of your peers, to contribute useful work, and to have a sense of belonging and trust in the community. In short, an

important component of prosperity is the ability to participate meaningfully in the life of society.”

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condenar nossos descendentes - e nossas criaturas companheiras – a

um planeta empobrecido.”32

(JACKSON, 2009, p. 7)

Assim, a prosperidade como norte da sustentabilidade implica um

entendimento das interdependências que caracterizam a relação entre a sociedade

e a natureza. É nesse contexto de delimitação por fronteiras sociais e ambientais

que se desenrolam as capacidades para florescimento do ser humano e que emerge

a liberdade do seu desenvolvimento (Sen, 2000). Por isso, Tim Jackson reforça a

ideia de capacidades delimitadas.

Na perspectiva do habitar atópico, é possível compreendermos o respeito a

essas fronteiras, a esses limites sociais e ambientais, como resultado do diálogo

homem-natureza-tecnologia no habitar atópico, onde as fronteiras entre actantes

humanos e não humanos são dissipadas, consolidando uma percepção de

inseparabilidade e interdependência condizente com o respeito aos limites sociais

e ambientais.

Tim Jackson faz uma reflexão ainda sobre a relação do ser humano com as

coisas como parte da ideia de prosperidade. Por um lado, a antropologia e estudos

sobre consumo mostram, diz Jackson, que o ser humano tem uma tendência a

incutir sentidos sociais e psicológicos em coisas materiais:

“Produtos de consumo representam uma linguagem simbólica pela

qual nos comunicamos continuamente uns com os outros, não apenas

sobre coisas em si, mas sobre o que é realmente importante para nós:

família, amizade, senso de pertencimento, comunidade, identidade,

status social, sentidos e propósitos na vida.”33

(JACKSON, 2009,

p.38)

Tim Jackson argumenta que a relação com as coisas é, portanto, parte da

conversação social – em outras palavras, da comunicação. E ressalva, a partir de

estudo da antropóloga Mary Douglas34

, que este não é um fenômeno

exclusivamente ocidental e moderno e que já foi reconhecido em diversas outras

sociedades. Tim Jackson afirma assim que as dimensões material e não-material

32

“A fair and lasting prosperity cannot be isolated from these material conditions. Capabilities are bounded on the one hand by the scale of

the global population and on the other by the finite ecology of the planet. To ignore these natural bounds to flourishing is to condemn our

descendants – and our fellow creatures – to an impoverished planet.” 33

“Consumer goods provide a symbolic language in which we communicate continually with each other, not just about raw stuff, but about

what really matters to us: family, friendship, sense of belonging, community, identity, social status, meaning and purpose in life.” 34

Douglas, M. 2006 (1976). Relative Poverty, Relative Communication, in Halsey, A. (ed), Traditions of Social Policy, Oxford: Basil

Blackwell; reprinted as Chapter 21 in Jackson 2006a.

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da prosperidade estão interligadas “por meio da linguagem das coisas”. Aqui,

novamente, um paralelo possível com a reflexão de Heidegger (1954) que

argumenta que os mortais habitam junto às coisas e lugares.

Tal aproximação é sublinhada quando Jackson (2009) busca apoio em uma

noção da psicologia para reforçar a ligação do homem com as coisas:

“Um dos processos psicológicos vitais aqui é o que o pesquisador em

consumo Russ Belk chamou de cathexis: um processo de ligação que

nos leva a pensar (e até sentir) possessões materiais como parte de

um eu estendido.”35

(JACKSON, 2009, p. 64)

De outro lado, Tim Jackson mostra por meio de pesquisas e dados

estatísticos que a acumulação de renda e a acumulação material passam a gerar

pouca ou nenhuma satisfação adicional após determinado patamar. Portanto, o

crescimento contínuo não seria uma condição para a prosperidade. Também cita

estudos que mostram que um aumento na renda per capta não leva

automaticamente a melhoras em saúde, educação e expectativa de vida. Em outras

palavras, “(…) não há uma regra rígida e direta para a relação entre aumento da

renda e incremento do florescimento”.36

(JACKSON, 2009, p. 43)

Sobre esse contexto, Resende (2013) argumenta:

“Não há como melhorar a qualidade de vida de comunidades

excessivamente pobres sem aumentar sua renda, mas a partir de um

patamar mínimo, capaz de assegurar as necessidades básicas, o

aumento da renda não está necessariamente associado à melhora da

qualidade de vida. Mais renda nem sempre significa mais bem-estar.”

(RESENDE, 2013, p. 25)

O economista afirma que, pelo contrário, o estilo consumista, a partir de

certo nível, passa a contribuir para a redução do bem-estar. Desse ponto de vista,

ele aprofunda a discussão:

“O que então explicaria o aumento da qualidade de vida a partir do

patamar mínimo de renda que a grande maioria dos países já

atingiu? Qual o fator mais importante para a melhoria do bem-estar

nos países que já saíram da pobreza absoluta? Segundo he Spirit

evel, a resposta é uma só: a redução das desigualdades. A melhor

distribuição de renda é o fator determinante da melhora da qualidade

35

Livre tradução: “One of the vital psychological processes here is what consumer researcher Russ Belk called

cathexis: a process of attachment that leads us to think of (and even feel) material possessions as part of the ‘extended self’.” 36

Livre tradução: “ (…) there is no hard and fast rule here on the relationship between income growth and improved flourishing”

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42

de vida, do bem-estar, da felicidade de um país.” (RESENDE, 2013,

p. 28)37

Fica claro, portanto, que o caminho apontado por Resende encontra

obstáculo na exacerbação do fenômeno humano de relação com as coisas, que

toma a forma de uma cultura consumista, como apontado anteriormente por

Jackson (2009) ao tratar da “gaiola do consumismo”, onde a economia depende

do crescimento do consumo para sua sobrevivência, levando indivíduos, empresas

e governos a abdicar de liberdades de atuação pelo ideal do maior consumo:

“Esse é um sistema ansioso e definitivamente patológico. Mas em

certo nível ele funciona. A incansável busca por novidades pode

minar o bem-estar. Mas o sistema continua economicamente viável

contanto que a liquidez seja preservada e o consumo cresça. Ele

colapsa quando um deles paralisa”38

(JACKSON, 2009, p. 65).

Assim, a “gaiola do consumismo” é vista por Jackson como um obstáculo

à liberdade e à sustentabilidade e mudanças em valores, estilos de vida e estrutura

social são necessárias para o estabelecimento de outra relação entre sociedade e

natureza. Na perspectiva do habitar junto às coisas proposta por Heidegger,

poderíamos pensar que a “gaiola do consumismo” vem a ser um obstáculo à

própria realização da Quadratura na relação junto às coisas.

Jackson traz alguns breves exemplos de iniciativas piloto criadas pela

sociedade civil como alternativas aos modelos vigentes e propõe também algumas

diretrizes para empresas e governos. Mas para o presente trabalho, basta termos

em mente a seguinte proposição:

“A limitada busca por crescimento representa uma distorção horrível

do bem comum e de valores humanos correlatos. Ela também debilita

o papel legítimo do governo. No fim do dia, o Estado é o dispositivo

de compromisso da sociedade, par excellence, e o principal agente

para a proteção da nossa prosperidade compartilhada. Uma nova

37

Resende faz referência ao estudo dos médicos infectologistas ingleses, Richard Wilkinson e Kate Pickett, no livro “The Spirit Level”,

publicado em 2010, em que ao pesquisarem motivos para a queda no nível de saúde da população em diferentes países, constatam que a

redução da desigualdade contribui mais para o bem-estar do que o crescimento da economia. E isso acontece numa perspectiva não de renda absoluta, mas de renda relativa, conforme esclarece Resende: “(...) Não é o fato de ser pobre que faz alguém infeliz, mas o fato de ser mais

pobre que seus pares. Há algo profundamente corrosivo na desigualdade. O crescimento econômico, nas sociedades onde existe grande

desigualdade, não aumenta o bem-estar ao contrário, substitui as doenças e as dificuldades da pobreza absoluta pelas doenças e as infelicidades da riqueza material. Nas sociedades desiguais, o crescimento transfere para os pobres as doenças anteriormente associadas

aos ricos, que se tornam muito mais frequentes nos pobres que nos ricos.” (RESENDE, 2013, p. 31). E como observa Resende, ambos

pobres e ricos são afetados e mais infelizes na desigualdade e mais felizes numa sociedade equânime. 38

Livre tradução: “It’s an anxious, and ultimately a pathological system. But at one level it works. The relentless pursuit of novelty may

undermine wellbeing. But the system remains economically viable as long as liquidity is preserved and consumption rises. It collapses when

either of these stalls.”

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43

visão de governança que abrace esse papel é necessária com

urgência.”39

(JACKSON, 2009, p. 11)

O autor enxerga o Estado como tendo um papel central para uma

sociedade mais sustentável. Mas a nova sociabilidade reticular e colaborativa

associada ao habitar atópico aponta para caminhos que não passam

necessariamente por uma centralidade do Estado. Exemplos desses embriões

existem nos mais diferentes contextos: iniciativas de modificação do espaço

urbano nas grandes metrópoles a partir de ações colaborativas sem a presença do

governo40

; as populações indígenas que inauguram uma nova fase de valorização

de sua cultura pela conexão com as arquiteturas digitais reticulares (Pereira,

2007); as comunidades de permacultura baseadas na convivência e na produção

coletiva de alimentos e bens41

; a recomposição de florestas pela parceria entre

ONGs, doadores individuais e empresas apoiadoras42

; projetos para promover

inovação tecnológica na cadeia de valor de grandes empresas a partir da conexão

com pequenos negócios43

etc.

Por diferentes caminhos, essas iniciativas nos revelam possibilidades de

novas relações na sociedade e entre homem e natureza - todas elas permeadas pela

perspectiva reticular característica do habitar atópico -, que parecem traduzir o

sentido da sustentabilidade.

Em outras palavras, a sociabilidade reticular e colaborativa do habitar

atópico abre espaço para uma inédita integração de conhecimentos e saberes para

lidar com a perspectiva sistêmica necessária ao reconhecimento e respeito dos

limites da natureza e da sociedade, numa dinâmica não de centralidades, mas de

diálogo e construção conjunta de alternativas. A tecnologia vem inserida nesse

caminho como actante que conecta e potencializa os diálogos em rede; que

favorece a transparência e o controle social de processos decisórios, de aplicação 39 Livre tradução: “ he narrow pursuit of growth represents a horrible distortion of the common good and of underlying human values. It

also undermines the legitimate role of government itself. At the end of the day, the state is society’s commitment device, par excellence, and the principal agent in protecting our shared prosperity. A new vision of governance that embraces this role is urgently needed.” 40

Referência nesse tipo de iniciativa é o movimento Transition Towns, que acontece em diversos países, entre eles o Brasil. Disponível em:

http://transitionbrasil.ning.com/. Acessado em 20 ago. 2013. 41

Lista de links com experiências e informações de grupos de pessoas e organizações que desenvolvem a Permacultura no Brasil disponível

em: http://www.permacultura.org.br/. Acessado em 20 ago.2013. 42

Uma referência desse tipo de iniciativa no Brasil é da organização não-governamental SOS Mata Atlântica. Disponível em:

http://www.sosmatatlantica.org.br. Acessado em 20 ago. 2013. 43

Como exemplo, o projeto Inovação para Sustentabilidade na Cadeia de Valor, promovido pelo Centro de Estudos em Sustentabilidade

(GVces) da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV/EAESP). Disponível em:

http://www.fgv.br/ces/inova. Acessado em 20 ago. 2013.

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44

de recursos e de produção de resultados; bem como ampliando a voz dos actantes

humanos – principalmente dos que são comumente alijados da construção dos

rumos da sociedade – e dos actantes não-humanos, notadamente a natureza, que,

como veremos a seguir, tem sua visibilidade ampliada e presentifica-se em vídeos,

mapas, sons, dados. Tudo isso colaborando para outros modos de perceber e para

a emersão de novos sentidos para o habitar.

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45

4. Corpo e entrelaçamento no mundo contemporâneo

“Na era contemporânea, não se parte nem se retorna.

O mar é em qualquer lugar. Dentro e fora de nós. Nós

somos mar.” (DI FELICE, 2009, p. 24)

Damos início agora a uma reflexão sobre como o corpo constitui e ajuda a

compreender a relação homem-natureza-tecnologia na complexidade reticular do

habitar atópico. Evidenciar aí o corpo é um misto de exercício poético, de convite

ao olhar de dentro e de caminhar pela ponte que conecta diferentes aspectos dessa

forma contemporânea de habitar.

Isso porque o corpo, como veremos a seguir, desempenha papel

fundamental na percepção e na expressão da sociabilidade reticular que é

reveladora do habitar atópico, além de aparecer cada vez mais constituído - em si

ou por meio de extensões - numa forma híbrida entre o orgânico e o tecnológico e

relacionar-se com a natureza também virtualmente.

4.1. Sensorialidade e percepção

Um convite velado para pensarmos sobre a corporeidade nas

transformações advindas das revoluções tecnológicas comunicativas pode ser

identificado em Di Felice (2009), a partir de uma citação indireta que faz de

McLuhan44

sobre as mudanças na sociabilidade:

“O seu ponto de partida está na constatação de que a introdução de

um novo médium em uma cultura muda o ‘equilíbrio sensorial’ e,

consequentemente, as formas e as práticas das interações.” (DI

FELICE, 2009, p. 161)

Essa reflexão de McLuhan (1964) é notória quando comenta a mudança de

sensorialidade na passagem das culturas orais para as culturas da escrita:

44

MCLUHAN, M. Gli instrumenti del comunicare. Milão: Il Saggiatore, 1967.

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46

“(...) ao falar, tendemos a reagir a cada situação, seguindo o tom e o

gesto até de nosso próprio ato de falar. Já o escrever tende a ser uma

espécie de ação separada e especializada, sem muita oportunidade e

apelo para a reação. O homem ou a sociedade letrada desenvolve

uma enorme força de atenção em qualquer coisa, com um

considerável distanciamento em relação ao envolvimento sentimental

e emocional experimentado por um homem ou uma sociedade não-

letrada.” (MCLUHAN, 1964, p. 97)

Ele amplia essa reflexão ao associar um caráter visual à sensorialidade da

cultura escrita e um caráter auditivo á sensorialidade da cultura oral:

“A civilização se baseia na alfabetização porque esta é um

processamento uniforme de uma cultura pelo sentido da visão,

projetado no espaço e no tempo pelo alfabeto. Nas culturas tribais, a

experiência se organiza segundo o sentido vital auditivo, que reprime

os valores visuais. A audição, a diferença do olhar frio e neutro, é

hiperestética, sutil e todo-inclusiva. As culturas orais agem e reagem

ao mesmo tempo. A cultura fonética fornece aos homens os meios de

reprimir sentimentos e emoções quando envolvidos na ação. Agir sem

reagir e sem se envolver é uma das vantagens peculiares ao homem

ocidental letrado.” (MCLUHAN, 1964, p. 105)

Portanto, quando McLuhan fala na mudança de sensorialidade ou na

“alteração dos hábitos de percepção sensível” (MCLUHAN, 1964, p. 34) está

indicando que o corpo possui um papel importante = não único - nas formas e

práticas de interação com o mundo, as quais são modificadas conforme novas

tecnologias são desenvolvidas.

Mais adiante dedicaremos foco maior a esse tipo de situação no habitar

atópico, mas, para o momento, voltemos nossa atenção para dois argumentos que

guardam uma relação estreita entre si, e são especialmente relevantes para

compreender o papel do corpo na relação entre homem, natureza e tecnologia: a

questão da percepção e o habitar do mundo.

Benjamin (1966), McLuhan (1964), Serres (2004) e Di Felice (2009)

associam às mudanças de culturas comunicativas o surgimento de diferentes

modos de percepção, que reverberam em novas formas de sociabilidade. Cabe,

portanto, visitarmos algumas reflexões sobre como a dimensão perceptiva do

corpo se realiza, conforme indicam conceitos de diferentes autores. A intenção

não é equiparar seus argumentos, mas ressaltar, em concepções diversas, como o

corpo é em si a dimensão perceptiva que possibilita o relacionar-se com o mundo.

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47

Destaca-se primeiramente Bergson (1948), que reflete sobre a relação

entre o corpo e as coisas condicionando a interação do ser humano com o

ambiente:

“Pois se nosso corpo é a matéria à qual nossa consciência se

aplica, ele é coextensivo à nossa consciência, ele compreende

tudo que percebemos, ele vai até as estrelas.”45

(BERGSON,

1948, p. 138)

Bergson define essa relação como nosso “corpo imenso”, e lhe confere um

caráter de mão dupla, concepção que melhor compreendemos com a leitura de

Cardim (2009):

“As coisas têm uma ação à distância sobre nosso corpo, mas

também nosso corpo exerce uma ação à distância sobre as

coisas, isto é a percepção.” (CARDIM, 2009, p. 65)

O corpo imenso, nos diz Bergson, muda a todo instante por estar em

conjunção com o que chama de “corpo mínimo”:

“Esse corpo interior é central, relativamente invariável, é sempre

presente. Ele não é apenas presente, ele é agente: é por ele, e por ele

somente, que nós podemos mover outras partes do grande corpo. E

como a ação é o que conta, como se entende que nós somos onde

agimos, há o costume de aprisionar a consciência no corpo mínimo,

de negligenciar o corpo imenso.”46

(BERGSON, 1948, p. 138)

Embora não aborde a questão das interações com as tecnologias – que

também nos permitem mover “outras partes do grande corpo” -, Bergson faz

importante alerta sobre como um entendimento restrito da corporeidade está

respaldado na perspectiva da ciência cartesiana, que centra na mente a relação do

corpo com o mundo, como vemos na continuação da reflexão exposta acima:

“Isso parece, de outro lado, autorizado pela ciência, a qual mantém a

percepção externa por um epifenômeno de processos intracerebrais

que a ela correspondem: tudo que é percebido sobre o corpo maior

será então apenas um fantasma projetado para fora pelo menor. (...)

45 Livre tradução: “Car si notre corps est la matière à laquelle notre conscience s'applique, il est coextensif à notre conscience, il comprend

tout ce que nous percevons, il va jusqu'aux étoiles.”

46

Livre tradução: “Ce corps intérieur et central, relativement invariable, est toujours présent. Il n'est pas seulement présent, il est agissant :

c'est par lui, et par lui seulement, que nous pouvons mouvoir d'autres parties du grand corps. Et comme l'action est ce qui compte, comme il

est entendu que nous sommes là où nous agissons, on a coutume d'enfermer la conscience dans le corps minime, de négliger le corps

immense.”

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48

Mas a verdade é outra, e nós somos realmente, embora por partes de

nós mesmos que variam sem cessar e onde residem apenas as ações

virtuais, dentro de tudo o que percebemos.”47

(BERGSON, 1948, p.

138)

Bergson propõe assim uma comunhão entre matéria, corpo e ambiente, por

meio da percepção. O sentido dessa ideia será abordado por outros autores e será

bastante relevante para pensarmos o corpo no habitar atópico.

Outro autor de referência na reflexão sobre corpo, percepção e a relação

com o mundo é Husserl. Ele fala em um corpo sujeito, que coexiste com um corpo

objeto (matéria) e, como nos ajuda a compreender Cardim (2009), é responsável

por desempenhar um acesso a todos os objetos por meio dos sentidos e da emoção

– uma extereocepção - e pela consciência encarnada, que é decorrência do corpo

que é envolvido pelo mundo circundante e que se encarna no interior desse mundo

para, a partir daí, as coisas se tornarem coisas para ele.

“Dizer, em minha existência natural, “Eu sou, Eu penso, Eu vivo”

significa que sou um ser humano entre outros no mundo, que eu tenho

uma relação com a natureza através do meu corpo físico, e que nesse

corpo meus cogitatos, percepções, memórias, julgamentos etc. são

incorporados como fatos psicofísicos.”48

(HUSSERL, 1998, p. 9-10)

A extereocepção e a consciência encarnada atuam conjuntamente com a

propriocepção49

e resultam no potencial perceptivo do corpo, que é ao mesmo

tempo sensível e senciente50

, como observa Cardim sobre a reflexão de Husserl:

“Compreendido em sua forma espaço-temporal orgânica e em sua

relação interna com o viver, o corpo torna-se o lugar da inscrição do

sensível.” (CARDIM, 2009, p. 57)

47

Livre tradução: ”On y paraît d'ailleurs autorisé par la science, laquelle tient la perception extérieure pour un épiphénomène des processus

intra-cérébraux qui y correspondent : tout ce qui est perçu du plus grand corps ne serait donc qu'un fantôme projeté au dehors par le plus

petit. (...) Mais la vérité est tout autre, et nous sommes réellement, quoique par des parties de nous-mêmes qui varient sans cesse et où ne siègent que des actions virtuelles, dans tout ce que nous percevons.” 48

Livre tradução: “ o say, in my natural existence, “I am, I think, I live,” means that I am one human being among others in the world, that

I am related to nature through my physical body, and that in this body my cogittationes, perceptions, memories, judgments, etc. are incorporated as psycho-physical facts.” 49

Termo que exprime a capacidade que temos de reconhecer internamente (sem uso da visão ou do tato) a posição, orientação e localização

espacial do corpo, seu tônus muscular e a posição de cada “parte” do corpo em relação às demais. Bem como a pulsação, a respiração, a temperatura, entre outras características. 50

A expressão indica que o corpo tem a capacidade de sentir, de ser afetado pelo mundo por meio dos sentidos, e que se reconhece nesse ato,

percebe-se sentindo.

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49

Husserl, assim como Heidegger e Sartre, foi referência importante para

Merleau-Ponty, que dedicou grande parte dos seus estudos à questão da percepção

e desenvolveu conceitos divididos em duas fases de seu pensamento. A primeira,

bastante conhecida pela obra “Fenomenologia da percepção” (Merleau-Ponty,

1971), em que recusa - como nos ajuda a esclarecer Cardim (2009) - a distinção

tradicional da filosofia entre sujeito como coisa (em si) ou como consciência (para

si). Para Merleau-Ponty, nessa fase, o homem é sujeito e objeto, ao mesmo tempo,

e o corpo está no mundo em duas camadas justapostas, a do corpo objeto e a do

corpo habitual (fenomenal). É daí que Merleau-Ponty propõe o corpo como

mediador da percepção:

“(...) a experiência da percepção nos põe em presença do momento

em que se constituem para nós as coisas, as verdades, os bens; que a

percepção nos dá um logos em estado nascente, que ela nos ensina,

fora de todo dogmatismo, as verdadeiras condições da própria

objetividade; que ela nos conclama as tarefas do conhecimento e da

ação. Não se trata de reduzir o saber humano ao sentir, mas de

assistir ao nascimento desse saber, de nos torná-lo tão sensível

quanto o sensível, de reconquistar a consciência da racionalidade

(...)” (MERLEAU-PONTY, 1971, p. 67)

Para o autor, o corpo é o lugar da percepção, mas não como unidade

isolada e, sim, como dimensão perceptiva que se associa ao que é percebido:

“Eu organizo com meu corpo uma compreensão do mundo, e a

relação com o meu corpo não é a de um Eu puro, que teria

sucessivamente dois objetos, o meu corpo e a coisa, mas habito

o meu corpo e por ele habito as coisas.” (MERLEAU-PONTY,

1971, p. 106)

Aqui, o autor traz a ideia de habitar, que, como veremos adiante, sofrerá

um ajuste na segunda fase de seu pensamento. Tendo como principal referência a

obra inacabada “O visível e o invisível” - que nos interessa especialmente para o

presente estudo -, a segunda fase do pensamento de Merleau-Ponty traz a

substituição da ideia de corpo em camadas por um corpo que é simultaneamente

sensível e senciente.

Apesar de ser, à primeira vista, uma concepção similar à de Husserl,

Merleau-Ponty se distancia das noções que o filósofo alemão preserva do Ego, da

consciência e da subjetividade na relação do corpo com o mundo. Merleau-Ponty

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50

afirma que sua concepção se aproxima mais da reflexão de Sartre sobre a

subjetividade:

“O único modo de assegurar meu acesso às coisas mesmas seria

purificar minha noção de subjetividade completamente: não há nem

mesmo qualquer “subjetividade” ou “Ego” a consciência não tem

“habitante”, eu devo desembaraça-la completamente da apercepção

secundária que faz dela o reverso de um corpo, a propriedade de um

“psiquismo”, e devo descobri-la como o “nada”, o “vazio”, que tem

a capacidade de receber a plenitude do mundo, ou melhor, que

precisa dele para lidar com seu próprio vazio.”51

(MERLEAU-

PONTY, 1968, p. 52)

Esse “nada” permeável ou ávido pelo mundo é o lugar da percepção, que

acontece pelo “entrelaçamento” entre a “carne” do corpo e a “carne” do mundo.

Merleau-Ponty explica que não existe definição na filosofia para o que chama de

carne, e por isso remete-se a ela como elemento (ar, água, fogo, terra). Mas

esclarece que se refere a uma “gravidez dos possíveis”, à dimensão do “sensível e

senciente” no corpo vivo e apenas do “sensível” quando se trata da carne do

mundo – já que esta não é senciente:

“É em termos de seu significado intrínseco que o mundo sensível é

“mais velho” que o universo do pensamento, porque o mundo sensível

é visível e relativamente contínuo, e porque o universo do

pensamento, que é invisível e contém lacunas, constitui à primeira

vista um todo e tem sua verdade apenas sob a condição que esteja

apoiado na estrutura canônica do mundo sensível.”52

(MERLEAU-

PONTY, 1968, p. 12)

O invisível não está, portanto, escondido e sim em estado latente,

vinculado ao entrelaçamento entre a carne do corpo e a carne do mundo:

“(…) uma vez que uma relação corpo-mundo é reconhecida, existe

uma ramificação do meu corpo e uma ramificação do mundo e uma

correspondência entre seu interior e meu exterior, entre meu interior

e seu exterior.”53

(MERLEAU-PONTY, 1968, p. 136)

51

Livre tradução: “The only way to ensure my access to the things themselves would be to purify my notion of the subjectivity completely:

there is not even any "subjectivity" or "Ego"; the consciousness is without "inhabitant," I must extricate it completely from the secondary

apperceptions that make of it the reverse of a body, the property of a "psychism," and I must discover it as the "nothing," the "void," which

has the capacity for receiving the plenitude of the world, or rather which needs it to bear its own emptiness.” 52

Livre tradução para o trecho a seguir: “It is in terms of its intrinsic meaning and structure that the sensible world is "older" than the

universe of thought, because the sensible world is visible and relatively continuous, and because the universe of thought, which is invisible

and contains gaps, constitutes at first sight a whole and has its truth only on condition that it be supported on the canonical structures of the

sensible world.” 53

Livre tradução para o trecho a seguir: “One can say that we perceive the things themselves, that we are the world that thinks itself—or that

the world is at the heart of our flesh. In any case, once a body-world relationship is recognized, there is a ramification of my body and a

ramification of the world and a correspondence between its inside and my outside, between my inside and its outside.”

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51

É desse entrelaçamento entre o corpo e o mundo que acontece o que

Merlea-Ponty denomina quiasma, conforme esclarece Silva:

“(...) não há aí limite algum demarcável, pois o corpo e o mundo se

engendram reciprocamente num só circuito, numa só experiência

comum. Há, entre eles, um quiasma ou um regime de promiscuidade.”

(SILVA, 2009, p. 173)

4.2 Entrelaçamento e o habitar

Merleau-Ponty fundamenta no entrelaçamento, no quiasma, o caminho

para o habitar as coisas, o habitar o mundo - ideia que nos remete ao conceito de

Heidegger54

, pelo qual o habitar acontece por meio da Quadratura (céu, terra,

deuses, mortais) e se dá, também, junto às coisas.

Como vimos anteriormente, este conceito heideggeriano, que indica uma

relação ontológica de intimidade com o mundo, é base para a proposição do

habitar atópico enunciada por Di Felice (2009). Merleau-Ponty (1968) também se

refere por diversas vezes ao conceito de Ser em Heidegger, quando reflete sobre o

habitar. Essa aproximação da ideia de habitar em Heidegger e do habitar em

Merleau-Ponty é especialmente relevante para o presente estudo, uma vez que

Merleau-Ponty localiza o corpo como dimensão perceptiva fundamental para que

esse habitar se realize. E assim, nos abre um caminho para o entendimento da

corporeidade no habitar atópico.

É interessante notar como essa perspectiva não está ausente da obra de Di

Felice:

“A impossibilidade de perfeita distinção dos limites que separam os

nossos corpos do mundo e daqueles outros entrepostos entre os

instrumentos técnicos e a nossa percepção, induz, em nossos dias a

necessidade de repensar os significados e as formas das relações

comunicativas com o ambiente, a partir das tecnologias utilizadas

para comunicar com ele. O próprio conceito de mídias, analisado

nesta perspectiva, pode ser pensado, no caminho dos estudos

propostos por D. De Kerckhove [2009], como uma psicotecnologia,

ou seja, como uma tecnologia de inteligência, que interpreta e

54

Cf. Capítulo 3

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52

organiza as informações em simbiose com a nossa estrutura mental

(...)” (DI FELICE, 2009, p. 63-64)

A expressão “simbiose transorgânica”, utilizada por Di Felice (2009), nos

ajuda a compreender o corpo no habitar atópico, e remete tanto às interações entre

homem, natureza e tecnologia - que se mostram imbricadas em rede – como ao

sentido da constituição híbrida do corpo, como veremos adiante.

A simbiose entre corpo e tecnologia indica que há um quiasma entre o

corpo e as arquiteturas informativas reticulares e seus fluxos e dinâmicas

comunicativas, que, segundo a ideia de que “o meio é a mensagem” (McLuhan,

1964), condicionarão os modos de perceber, de interpretar e de dialogar,

fortalecendo a sociabilidade reticular dessa forma contemporânea do habitar.

Di Felice chama atenção para a simbiose cérebro-tecnologia. Mas é

importante observarmos que mesmo quando falamos em cognição, o corpo todo

tem participação na produção de pensamentos e ações. É o que nos ajuda a

entender Damasio (1994):

“Não é costume fazer referência aos organismos quando falamos de

cérebro e mente. Tem sido tão óbvio que a mente evolve da atividade

dos neurônios, que apenas os neurônios são discutidos como se seu

funcionamento pudesse ser independente do resto do organismo. Mas

conforme eu investiguei problemas de memória, linguagem e razão

em diversos seres humanos com danos cerebrais, a ideia que

atividades mentais, dos aspectos mais simples aos mais sublimes,

demandam que o cérebro e o corpo estejam adequados, tornou-se

especialmente contundente. (...) A alma respira pelo corpo, e

sofrimento, tenha início na pele ou numa imagem mental, acontece na

carne.”55

(DAMASIO, 1994, p. 17)

Para compreender como a percepção e a realização cotidiana das

interações entre homem, natureza e tecnologia passam pelo corpo, temos

novamente a referência do habitar que acontece pelo quiasma entre o corpo e o

mundo. Isto vale dizer que o caráter de dimensão perceptiva do corpo funde-se à

rede de actantes humanos e não humanos (Latour, 2008). Em outras palavras, as

funções e sentidos corporais que constroem a percepção se estendem por

55

Livre tradução: “It is not customary to refer to organisms when we talk about brain and mind. It has been so obvious that mind arises

from the activity of neurons that only neurons are discussed as if their operation could be independent from that of the rest of the organism. But as I investigated disorders of memory, language, and reason in numerous human beings with brain damage, the idea that mental activity,

from its simplest aspects to its most sublime, requires both brain and body proper became especially compelling. (…) he soul breathes

through the body, and suffering, whether it starts in the skin or in a mental image, happens in the flesh.”

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53

dispositivos, por fluxos comunicativos, pela digitalização da natureza, do outro e

de si mesmo.

Cabe lembrar aqui a referência que Di Felice (2009) faz ao conceito de

Psicastenia, de Olalquiaga (1998)56

:

“ o indivíduo passa a se confundir com o espaço, sem delimitar ao

certo o que é seu corpo e o ambiente, nele se camuflando.” (DI

FELICE, 2009, p. 161)

Para Di Felice, este é o fenômeno observado no habitar atópico, quando

“(...) os habitantes habitam nas jazidas informáticas e nos interstícios das

interações” (DI FELICE, 2009, p. 256)57

. Mas também um lembrete de que o

habitar atópico acontece primordialmente pelas interações reticulares - que podem

ou não estar diretamente associadas a dispositivos tecnológicos – mas que estão

ligadas a uma sociabilidade em rede, uma rede que hibridiza o que é presencial e o

que é virtual.

Ainda assim, no momento de configuração do habitar atópico em que nos

encontramos, cabe ressaltar que a sociabilidade reticular que o caracteriza – e que

reverbera nos modos de percepção e interação do corpo - é algo em processo de

estabelecimento e parece se revelar de modos variados. Isso é de se esperar

quando entendemos estar num período de transição entre as formas do habitar

exotópico e atópico e que mesmo que uma passe a se configurar mais fortemente,

não significa extirpar a outra - ou mesmo o habitar empático, que continua a

mostrar indícios na complexa sociabilidade humana. Uma imagem que ilustra essa

noção é a da coexistência de mídias de épocas diversas no mundo contemporâneo

(os livros, o cinema, o rádio, os discos de vinil, a televisão, o computador, os

dispositivos móveis etc.).

Para avançar a compreensão a respeito do corpo na configuração do

habitar atópico, vale uma reflexão a partir da visão de Michel Serres (2004) sobre

o papel fundamental do corpo para o estar no mundo:

“A origem do conhecimento, e não somente a do conhecimento

intersubjetivo, mas também do objetivo, reside no corpo. Não se pode

56

Olalquiaga, C. Megalópolis: sensibilidades culturais contemporâneas. São Paulo: Studio Nobel, 1998. 57

Di Felice traz essa reflexão a partir de um desdobramento da ideia de Deleuze e Guatarri (1997) sobre o artesão que mora na matéria que

trabalha.

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54

conhecer qualquer pessoa ou coisa antes que o corpo adquira a

forma, a aparência, o movimento, o habitus, antes que ele com sua

fisionomia entre em ação. É dessa forma que o esquema corporal é

adquirido, exposto, aprimorado, refinado e armazenado em uma

memória viva e esquecidiça. Receber, emitir, conservar, transmitir:

estes são, todos, atos especializados do corpo. ” (SERRES, 2004, p.

68-69)

Serres não especifica sua concepção de habitus, mas cabe trazer aqui a

proposição de Bourdieu (1996, p. 14=22), que remete a estruturas incorporadas

que revelam práticas entre seres humanos que são ao mesmo tempo distintas e

distintivas no que diz respeito aos gostos, comportamento, interpretações,

percepções, opiniões e que podem condicionar escolhas pessoais, práticas e estilos

de vida.

Ao destacar a importância do corpo para o estar no mundo, Serres

menciona mudanças que acontecem no corpo com a introdução de novas

tecnologias, usando como exemplo as mídias da palavra escrita:

”Os novos suportes de memorização e de transporte de signos, como

as tábuas de cera, o pergaminho ou a imprensa, fizeram com que

esquecêssemos a prioridade do corpo nessas funções; as culturas sem

escrita ainda os conhecem.” (SERRES, 2004, p. 68-69)

Se as mídias da palavra escrita tiveram tal efeito sobre o corpo, cuja

presença no mundo e percepção foram modificadas pela relação com essas

tecnologias, é de se esperar que da relação com o digital também emerjam novas

formas de perceber e relacionar-se. Daremos atenção a isso mais adiante. Mas

pelo momento vamos nos ater à questão da “prioridade do corpo” levantada por

Serres – ou seja, dos modos próprios do corpo orgânico se relacionar com o

mundo.

Ao argumentar que o intercâmbio de informação das culturas escritas

exige pouco da “prioridade do corpo”, Michel Serres nos faz lembrar da mudança

de equilíbrio sensorial nas formas e práticas de interação decorrente da introdução

de novas mídias. Quando McLuhan (1964) traz esse seu argumento para o

contexto de mudança da cultura oral para a cultura escrita, ele ressalta que o

hábtio de percepção sensível que é alterado nessa passagem diz respeito à

hiperestesia – a enorme interação entre os sentidos – típica das populações da

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55

tradição oral. Nos indica, portanto, que o grau de estímulo e interações entre os

sentidos do corpo gera uma mudança perceptiva estrondosa.

Podemos entender essa dinâmica ao refletir que os fluxos comunicativos

eram primordialmente de caráter oral e a palavra era acessada a partir da fala - que

reverbera em frequência, ritmo e melodia internamente nos ouvidos, ossos, carne,

mucosas de quem fala e de quem ouve, criando uma relação de intimidade com a

palavra pela experiência do corpo e pelo contato direto entre os interlocutores. Já

na forma escrita e lida num suporte à frente, externo ao corpo, a relação é de

afastamento, Na perspectiva de meio que influencia a sociabilidade, destacamos a

observação de Marchesi (2012) sobre o impacto da escrita:

“cria uma relação de indiferença e exterioridade entre o observador e

o mundo que o cerca. (...) A visualidade da palavra escrita,

principalmente aquela reproduzida mecanicamente pela tipografia,

põe o mundo à frente do sujeito, e este, por sua vez, do lado de fora

do mundo.” (MARCHESI, 2012, p. 44)

O corpo passa a habitar o mundo tanto por essa relação de afastamento,

como condicionado pela lógica linear da palavra escrita. Tal forma de habitar gera

um outro tipo de quiasma entre corpo e mundo, o que pode ser apreendido, por

exemplo, no ambiente que se busca dominar pela construção das cidades

estruturadas pela lógica dos livros divididos em parágrafos, páginas e capítulos.

Em relação à corporeidade, temos o exemplo dos corpos vigiados, punidos,

disciplinados, normalizados tanto por técnicas de enquadramento do

comportamento, como pela própria arquitetura dos espaços, a exemplo do que

observa Foucault (2004) em relação às escolas, hospitais, prisões, fábricas.

No contexto do presente estudo, localizamos as provocações de Foucault

no argumento de Heidegger de que construir é também uma forma de habitar -

nesse caso, a forma do habitar empático definida por Di Felice (2009)58

. A

recursividade de que fala Morin (1994) nos alerta que se uma tecnologia redefine

modos de relação do corpo no mundo, é possível que eles não tenham um marco

zero no surgimento da tecnologia, mas mudanças de percepção e interação já em

curso foram criadoras da nova tecnologia. Portanto, um processo influencia o

outro, sem que haja uma raiz definida.

58

Cf. Capítulo 2.

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56

Assim, se o surgimento da escrita traz uma mediação com o mundo que

afasta o corpo orgânico, devemos ponderar que ele próprio esteve envolvido em

sua concepção.

A questão, portanto, não seria identificar – a partir das mudanças de

culturas comunicativas e de formas de habitar - onde há perda da “prioridade do

corpo”, mas como os modos do corpo se relacionar com o mundo são alterados e

se mantêm participantes do desenvolvimento e da interação com as tecnologias,

ao mesmo tempo em que essas abrem espaço para que outras “prioridades do

corpo” emerjam.

É o caso, por exemplo, do surgimento das mídias da eletricidade, que,

segundo McLuhan, trazem em certo grau uma volta à sinestesia, à interação entre

os sentidos do corpo que havia na cultura oral. Essas mídias estimulam mais

amplamente os sentidos do corpo do que o fazia a escrita. É nesse sentido, que o

autor fala em uma “sensibilidade áudio-tátil” – em que a audição é mais próxima

daquela da oralidade e onde o tato é entendido por McLuhan como uma conexão

do corpo com o mundo – e não simplesmente o sentido específico do tato: “(...) a

tatilidade é a inter-relação dos sentidos, mais do que o contato isolado da pele e

do objeto.” (MCLUHAN, 1964, p. 352)

Temos aí, um paralelo interessante entre a perspectiva da sinestesia do

tato, de McLuhan, com a ideia de carne do corpo que se entrelaça com o mundo,

na concepção de Merleau-Ponty.

4.3 O corpo no habitar atópico

Essa breve revisitação de alguns dos aspectos da corporeidade nas formas

do habitar empático e do exotópico torna mais fácil a tarefa de vislumbrar a

trajetória que o corpo está a percorrer no habitar atópico. Nele, o relacionar-se

com o mundo pela experiência corporal passa pela relação de integração com as

extensões tecnológicas digitais e com as potencialidades aparentemente infinitas

das funções, do alcance, do poder de sistematizar informações e de estabelecer

conexões, próprias dos dispositivos digitais.

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57

Os desdobramentos daí decorrentes ainda são imprevisíveis. Por exemplo,

não existe consenso entre estudiosos de áreas como psicologia, neurologia e

pedagogia sobre os impactos da relação com as tecnologias para o corpo e sua

capacidade cognitiva59

.

Mas algumas emanações corporais da nossa relação com as tecnologias

digitais reticulares nos permitem constatar que está em formação uma

corporeidade diferente. Relatos médicos sobre pessoas conectadas às novas

tecnologias trazem constatações como: diminuição de concentração e memória,

aumento da capacidade para realização de multitarefas 60

, maior propensão a

lesões na coluna cervical (pelo uso excessivo de computadores, tablets e

smartphones)61

, ampliação do potencial comunicativo (pelo alcance da fala, da

escuta, da visão, das informações escritas e de interação entre os seres humanos)

(ZYWIKA; DANOWSKI, 2008), aumento de transtornos de ansiedade62

, dentre

diversas outras constatações.

Se ainda é cedo para determinar a consolidação de efeitos corporais e se o

desdobramento de fatores tão variados ainda é nebuloso, podemos nos remeter ao

próprio corpo que habita o mundo reticular - virtual e presencial - para vislumbrar

que essas novas condições são experienciadas por meio da sociabilidade em rede.

Em outras palavras, qualquer das possíveis situações mencionadas anteriormente é

facilmente assimilada pela rede, que passa a dialogar a respeito, a trocar

informações, a conectar referências que ajudam a construir caminhos para lidar

com os desafios e as oportunidades identificadas. O que parecia ser uma questão

restrita ao corpo orgânico, passa a ser tratada pela inteligência coletiva propiciada

pela rede (híbrida entre virtual e presencial) e, assim, torna-se repertório potencial

do corpo em sua dimensão transorgânica.

Ainda assim, cabe uma ressalva que nos remete aos modos próprios do

corpo orgânico, conforme indicação de Serres (2004) acima. Quando, por

59

Conforme evidencia a reportagem “A internet faz mal ao cérebro?”, publicada no website da Revista Época em 20 out 2011. Disponível

em: http://revistaepoca.globo.com/ideias/noticia/2011/10/internet-faz-mal-ao-cerebro.html. Acessado em 20 ago. 2013. 60

Cf. Artigo “A evolução da memória”, publicado em One Health Mag em 25 jul. 2013. Disponível em:

www.onehealthmag.com.br/index.php/a-evolucao-da-memoria/. Acessado em 21 ag0. 2013. 61 Cf. Artigo “Uso abusivo de smartphones e computadores causam lesões graves nos membros superiores”, do serviço Em Dia com a Saúde,

a Sociedade Beneficiente Israelita Brasileira – Albert Einstein. Disponível em: http://www.einstein.br/einstein-saude/em-dia-com-a-

saude/Paginas/uso-abusivo-de-smartphones-e-computadores-causam-lesoes-graves-nos-membros-superiores.aspx. Acessado em 21 ago. 2013. 62

Cf. Artigo “Smartphone: atractive but dangerous”, publicado pelo jornal Bangguk Post, de 26 jul. 2013. Disponível em:

www.dgupost.com/news/articleView.html?idxno=1269. Acessado em 21 ago. 2013.

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58

exemplo, identificamos uma lesão na coluna cervical causada pela cabeça que se

mantém baixa diante de um smartphone, temos aí a corporificação da mensagem

de que o engajamento com um dispositivo tecnológico pode exceder os limites do

corpo orgânico. Isso nos lembra que permanecemos sendo um corpo com

demandas e sensibilidades biológicas e psicofísicas em seu sentido mais amplo.

Ou seja, permanece latente a voz da “prioridade do corpo” indicada por Serres

(2004) – em algum momento ela se faz ouvir, não para bradar uma ruptura com a

tecnologia, mas para orientar um cuidado de si63

, agregar um saber corporal à

relação com a tecnologia, com o habitar, e reforçar a sabedoria do corpo à qual se

refere Nietzsche: “Existe mais sagacidade em teu corpo que em tua melhor

sabedoria.”64

(NIETZSCHE, 1997, p. 40)

Essa expressão do saber humano que tem no corpo sua fonte é reforçada

pela reflexão de Damasio (1994):

“(...) o corpo, como representado no cérebro, pode constituir a

moldura indispensável de referência aos processos neurais que

experienciamos como a mente, que nosso próprio organismo, mais do

que alguma realidade absoluta externa, é usada como referência

fundamental para as construções que fazemos do mundo a nossa volta

e para a construção do sempre presente senso de subjetividade que é

parte e agrupamento das nossas experiências; que nossos mais

refinados pensamentos e ações, nossas maiores alegrias e mais

profundas tristezas, usam o corpo como medida.”65

(DAMASIO,

1994, p. XVI)

Damasio nos lembra ainda que esse papel do corpo na experiência humana

é algo que a engrandece nas mais diferentes relações – e aqui podemos pensar

mesmo a interação homem-natureza-tecnologia:

“Descobrir que um sentimento particular depende da atividade em um

número de sistemas cerebrais interagindo com um número de órgãos

do corpo não diminui o status daquele sentimento como um fenômeno

humano. Nem a angústia nem o envolvimento que o amor ou a arte

podem suscitar são desvalorizados pelo entendimento da miríade de

processos biológicos que fazem deles o que são. Precisamente o

63

O termo é proposto aqui a partir do estudo de Foucault (1985), que aponta para uma atenção e uma dedicação a atividades que podem

envolver a meditação, a busca por conhecimento, os exercícios físicos, a alimentação, mas aqui a perspectiva não é a do corpo como doente ou como réu - que deve ser constantemente tratado ou julgado - mas no sentido de aceitação da condição humana e de cultivar o saber do

corpo proposto por Nietzsche – o corpo como revelador de si próprio e do mundo, a dimensão perceptiva que realiza o habitar 64

Livre tradução: ”There is more sagacity in thy body than in thy best wisdom.” 65 Livre tradução: “(…) the body, as represented in the brain, may constitute the indispensable frame of reference for the neural processes

that we experience as the mind; that our very organism rather than some absolute external reality is used as the ground reference for the

constructions we make of the world around us and for the construction of the ever-present sense of subjectivity that is part and parcel of our

experiences; that our most refined thoughts and best actions, our greatest joys and deepest sorrows, use the body as a yardstick.”

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59

oposto deveria ser verdadeiro: Nosso senso de admiração deveria

aumentar ante os intricados mecanismos que tornam possível tal

mágica. Sentimentos formam a base do que os humanos descreveram

por milênios como a alma humana ou espírito.”66

(DAMASIO, 1994,

p. XVI)

Mas retornemos à ideia de que, no habitar atópico, há a possibilidade da

inteligência coletiva ser indutora de uma conexão com o saber corporal. Isso traz

uma situação onde o saber para orientar uma atenção do corpo não vem

necessariamente de um profissional especializado, como um médico, ou de uma

instituição, mas da rede – na qual o médico é mais um empreendedor cognitivo67

.

Temos aí, outro potencial desdobramento do habitar atópico: o cuidado de

si num contexto de sociabilidade reticular vem da interação do coletivo e não mais

apenas dos corpos técnicos especializados. Isso aponta para uma dissolução do

monopólio das instituições especializadas em relação ao saber e à aplicação das

técnicas sobre o corpo.

Nesse contexto, não podemos ignorar o fato de que a dimensão

transorgânica do corpo também será parte do cuidado de si no habitar atópico. Por

exemplo, se pensarmos em termos de “transporte de signos e de memorização”,

conforme provocou Serres anteriormente, a associação do corpo com o digital

reticular parece intensificar esses dois processos ao permitir que em um comando

de teclas ou de voz resgatemos nas redes digitais um conhecimento ancestral ou

lancemos, de uma cultura a outra, signos que anteriormente poderiam levar anos

para ganhar permeabilidade. Ou ainda, no caso de uma eventual diminuição da

capacidade da memória orgânica pela interação com a tecnologia, podemos ter o

recurso de games online que ajudam a estimular as funções cognitivas de memória

e concentração68

.

Com a reflexão trazida aqui buscamos mostrar que uma abordagem

dialética não é o melhor caminho para se compreender o corpo no habitar atópico.

66 Livre tradução: “To discover that a particular feeling depends on activity in a number of specific brain systems interacting with a number

of body organs does not diminish the status of that feeling as a human phenomenon. Neither anguish nor the elation that love or art can

bring about are devalued by understanding some of the myriad biological processes that make them what they are. Precisely the opposite

should be true: Our sense of wonder should increase before the intricate mechanisms that make such magic possible. Feelings form the base for what humans have described for millennia as the human soul or spirit.” 67

Termo de Massimo Di Felice que indica aquele que vivencia um acontecimento ou experiência e o distribui pelas mídias digitais

diretamente, sem mediações. 68

Cf. Reportagem “Cientistas desenvolvem estímulo cerebral para aprimorar a memória”, publicada por Universia Brasil, em 25 jul. 2013.

Disponível em: http://noticias.universia.com.br/destaque/noticia/2012/02/09/910364/cientistas-desenvolvem-estimulo-cerebral-aprimorar-

memoria.html. Acessado em 18 ago. 2013.

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Não se trata de saber se a condição transorgância do corpo é positiva ou negativa,

mas de como desdobramentos aparentemente opostos se integram numa mesma e

nova configuração do corpo e de seu estar no mundo. Trata-se do caráter

complexo (Morin, 1994) do habitar atópico.

Cabe observar ainda que não é só o “corpo orgânico” que se adapta à

relação com a tecnologia, ela própria parece ser desenvolvida com maior atenção

ao corpo. Por exemplo, a percepção de que é incongruente monopolizar a atenção

do corpo para operar dispositivos comunicativos digitais parece já ter dado sinais

de alerta à indústria eletrônica. Quando pensamos no nível de interação propiciado

pelos dispositivos de realidade aumentada69

, pelos videogames que respondem aos

movimentos humanos e pelas tecnologias de vestir70

, vemos aí um novo tipo de

tecnologia digital que dá mais vazão a potencialidades do corpo do que a simples

relação com o teclado e a tela. Esse tipo de dispositivo abre espaço para que o

corpo conectado às tecnologias e às redes esteja, ao mesmo tempo, livre para

habitar a si mesmo e ao espaço, desimpedido de explorar mais amplamente as

potencialidades de suas múltiplas habilidades e sentidos, realizando a fusão do

presencial e do virtual. Encontra-se aí uma característica importantíssima do

habitar atópico que é a sociabilidade em rede – rede esta que não se limita aos

espaços virtuais mais que os integra aos meios físicos, gerando experiências

transorgânicas.

Pensar a corporeidade nesse contexto implica, portanto, refletir sobre um

corpo igualmente híbrido, como nos ajuda a pensar Sarsini (2004):

“Definitivamente os cyborgs enquanto entidades mistas de corpo e

máquina, fusões de orgânico e tecnológico, incrustrações

transgênicas, evidenciam a condição do sujeito pós-moderno-

múltiplo, sem fronteiras, multidimensionais; esses constituem a

imagem da superação dos dualismos tradicionais – corpo/mente,

natureza/cultura, orgânico/inorgânico, animal/mecânico,

homem/mulher, teoria/prática etc. – que simplificam o panorama

complexo, contraditório, heterogêneo do corpo; os cyborgs são

evocativos de contaminações, de formas diversas de interações e de

comunicações entre sujeitos; são imagens no espaço fractal mas

também potencialidades de mudanças no curso das ciências; são

figurações da globalização do mundo e do sistema complexo das

69

Tecnologias que integram em tempo real o mundo físico e informações virtuais, para além das telas de aparelhos digitais. Alguns

exemplos no vídeo “Top 5 Augmented Reality Apps”. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=NqUSfjTSLyo. Acessado em 14

ago.2013. 70

Arquiteturas informativas em forma de roupas e acessórios que interagem com a pessoa que as veste e com as redes digitais. Alguns

exemplos no vídeo “The Future of Wearable Technology”. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=4qFW4zwXzLs. Acessado em

14 ago. 2013.

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61

redes, mas também íntima experiência de fronteiras, linguagem

política para provocar os domínios da ciência e da tecnologia.”

(SARSINI, 2004, p. 212)71

A colocação de Sarsini nos estimula a pensar o caráter recursivo (Morin,

1994) do desenvolvimento das novas tecnologias e sua relação com o corpo. Em

outras palavras, as próprias mudanças de sensorialidade e percepção associadas às

novas tecnologias são simultaneamente embrionárias ao surgimento dessas

tecnologias, pairam latentes, invisíveis, como estímulos silenciosos para sua

viabilização. Delimitar o que vem antes do quê seria possivelmente uma perda de

tempo e uma recusa à compreensão da complexidade por trás de tais fenômenos.

Isso nos indica um diálogo vivo que apoia ou desvia de um caminho mais

radical da evolução transorgânica das tecnologias, representado pela disseminação

de dispositivos conectados diretamente ao corpo – subcutâneos, cerebrais,

interórgãos -– cuja interação por meio dos impulsos neurais dispensaria qualquer

gestual para o acionamento da tecnologia. Essa é uma realidade que causa

calafrios em muitas pessoas, mas que já está em curso, tendo como foco aqueles

que sofrem de paralisias e problemas motores72

. Se fará parte do cotidiano de uma

gama maior de pessoas é algo que possivelmente passará pela ponderação do

universo perceptivo do corpo sobre si mesmo e o mundo, bem como por uma boa

dose de reflexão sobre ética e a prioridade do corpo.

Mas essa não é a discussão em pauta neste estudo. A ideia foi levantar

alguns pontos que ajudam a entender o corpo na forma do habitar atópico, como

sua condição transorgânica e sua experiência segundo um modo reticular.

Aproveitemos essa digressão para acrescentar um novo parênteses sobre

uma inquietação frequente quando se trata da cultura digital: a questão do acesso.

Este também não é um tema central para o presente estudo, mas visitá-lo

brevemente tem o objetivo de desmistificar a questão do acesso como um

71

Livre tradução: “In definitiva i cyborgs in quanto entitá miste di corpo e macchina, fusioni di orgânico e tecnológico, incroci transgenici,

ben evidenziano la condizione del soggeto postmoderno-multiplo, senza confini, multidimensionale essi costituiscono l’immagine del

superamento dei dualismi tradizionali – corpo/mente, natura/cultura, organico/inorganico, animale/meccanico, uomo/donna, teoria/prassi,

etc – che semplificano la visuale complessa, contraddittoria, dis-omogenea del corpo; i cyborgs sono evocativi di contaminacioni, di forme divers d’interazione e di comunicazione fra soggetti sono immagini nello spazio frattale ma anche potenzialità di cambiarei nel corso dele

scienze; sono figurazioni dela globalizzazione del mondo e del sistema complesso dele reti ma anche intima esperienza dei confini,

linguaggio politico per sfidare il dominio dela scienza e dela tecnologia.” 72

As pesquisas do neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis nesse campo têm ganhado bastante visibilidade mundo afora. Um exemplo

sobre seu trabalho é mostrado pelo vídeo “Miguel Nicolelis: A monkey that controls a robot with its thoughts”. Disponível em:

http://www.youtube.com/watch?v=CR_LBcZg_84. Acessado em 14 ago. 2013.

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obstáculo à constituição de uma sociabilidade reticular e de uma forma atópica de

habitar. Além de indicar que o acesso traz desdobramentos diferentes para cada

grupo.

Já observamos anteriormente que a formação de um habitar atópico é algo

que está em processo, já que o próprio aparecimento das arquiteturas digitais

reticulares é um fenômeno recente. Assim como a escrita, o livro impresso, a luz

elétrica e a TV não foram tecnologias instantaneamente acessadas por todos, as

novas tecnologias digitais também estão em processo de assimilação. O

crescimento de acesso a elas, no entanto, indica que este processo tem sido

bastante rápido e abarca mesmo grupos comumente referidos como à margem,

como os mais velhos, os mais pobres, as comunidades tradicionais e aquelas

vivendo em lugares mais isolados.

Tomando por base a realidade brasileira, podemos citar como exemplos

dessa dinâmica o barateamento e a disseminação de dispositivos como os

smartphones73

; a difusão da internet nas periferias pela cultura do uso

compartilhado, seja de computadores pessoais, seja de acesso por lan houses74

; o

enorme crescimento de conexão com a internet entre os idosos75

; e a ampliação do

acesso por comunidades mais isoladas e tradicionais - revelada nos exemplos dos

povos indígenas Suruí, que habitam regiões do Mato Grosso e Rondônia, e do

povo indígena Ashaninka, que habita a Amazônia Brasileira, em aldeias no Estado

do Acre.

Todos esses exemplos revelam que o acesso ao digital e a inclusão numa

sociabilidade reticular acontecem de modo rápido. Certamente, surgem

implicações culturais de todo o tipo, que serão diferentes para cada um desses

grupos e se revelarão ao longo do tempo, como parte do caráter vivo das culturas

apontado por Geertz (1989), que longe de serem estáticas e rígidas são

caracterizadas por mudanças, fluidez e capacidade de integrar elementos

aparentemente conflitantes.

73

Cf. Reportagem “Smartphones chegarão perto de celulares básicos no Brasil até o fim de 2013”, publicada no portal IG, Tecnologia, em

13 jun. 2013. http://tecnologia.ig.com.br/especial/2013-06-13/smartphones-chegarao-perto-de-celulares-basicos-no-brasil-ate-o-fim-de-2013.html. Acessado em 14 ago. 2013. 74

Cf. Reportagem e vídeo “A internet é a nova rua da periferia” publicada no website PORVIR, em 20 jul. 2012.

http://porvir.org/porpessoas/a-internet-e-nova-rua-da-periferia/20120720. Acessado em 14 ago. 2013. 75

Cf. Reportagem “Acesso de idosos à internet cresce 225% em cinco anos”, publicada no portal UOL, 18 mai. 2013. Disponível em:

http://mais.uol.com.br/view/cphaa0gl2x8r/acesso-de-idosos-a-internet-cresce-223-em-5-anos-04020C1A3160D8A14326?types=A&.

Acessado em 14 ago. 2013.

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63

Pegando os dois casos indígenas citados, temos uma situação em que o

contato com a cultura não-indígena se amplifica, o que para alguns poderia ser um

sinal de ameaça. Mas existem indícios fortes, nessa mudança cultural pela

conexão digital, de uma valorização que se expressa, por exemplo, na exaltação de

valores dos Ashaninka pelo diálogo em rede com índios e não-indios de fora e na

defesa de seu território a partir do monitoramento que fazem de suas terras

indígenas por imagens de satélite76

.

Essa questão do monitoramento também se observa no caso dos Suruí, que

fazem uso também de GPS e que desenvolveram ainda uma versão digital de seu

território, com aldeias, bichos, aspectos da história e dos modos de vida, e que

reforça, de uma nova maneira, a identidade cultural desses povos e sua

valorização para o mundo que outrora era tido como exterior e agora mantém-se

conectado aos Suruí77

.

Pereira (2007) destaca significados importantes do que chama de

“presença nativa no ciberespaço”, como a “auto-representação”, o “fortalecimento

cultural” e o “protagonismo” frente aos conflitos étnico-sociais pela interação com

as novas configurações dos fluxos comunicativos.

Os exemplos dos Ashaninka e Suruí nos permitem retornar à discussão

desse estudo sobre a relação homem-natureza-tecnologia. Eles nos lembram que

desdobramentos culturais e das novas relações estimuladas pelas arquiteturas

digitais reticulares não estão restritos ao corpo próprio e sua relação com os outros

e as coisas. Dizem respeito também à relação do corpo com a natureza.

Aqui vale resgatar o sentido da proposição de Bergson sobre o corpo

imenso e o corpo mínimo. É possível identificar nos dias de hoje que a

criatividade e a curiosidade do intelecto humano, o senso de urgência, de

necessidade e de oportunidade frente aos limites da natureza, expressam-se de

modo cada vez mais integrado com a tecnologia, levando ao desenvolvimento de

novos dispositivos que permitem novos caminhos de relacionamento do ser

humano com o planeta. Verdadeiras extensões dos sentidos e habilidades

corporais, como as lentes e sensores para georreferenciamento que se tornam

76 Cf. Reportagem “A última fronteira”, da TV Record, de 20 mai. 2013. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=8kqGwrcY0Q0 . Acessado em 14 ago. 2013. 77 Cf. Reportagem “Índios suruis (sic!) usam celulares e GPS para defender a terra do desmatamento”, da Globo News, Programa Cidades e

Soluções. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=DLcED2du2EE. Acessado em 14 ago. 2013.

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nossos olhos e labirintos auriculares sobre a terra. Ao mesmo tempo em que

engajam a cognição humana numa rede integrada com as tecnologias e com o

planeta por elas digitalizado, ampliando nossa percepção sobre o oicos e

permitindo criar modos mais sustentáveis para os desdobramentos biofísicos de

nossa relação com a natureza.

Do mesmo modo, a digitalização da natureza aliada ao maior

conhecimento científico a seu respeito lhe confere voz, permitindo que ela emerja

como actante de fato nesta nova sociabilidade. O derretimento das calotas polares

não é mais apenas uma informação do noticiário ou de um relatório do IPCC

(Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas); é acompanhado por

câmeras, por dispositivos que a cada dia emitem o alerta dos biomas gelados:

“estou derretendo!” Os medidores de poluentes no ar das cidades e da

concentração de gases do efeito estufa na atmosfera também dão voz ao actante

natureza numa linguagem cada vez mais acessível ao cidadão comum: “o ar está

mais sujo”, “o efeito estufa está mais intenso”, “vocês estão poluindo muito”. A

natureza continua a fazer acontecer suas dinâmicas, seus ciclos – mesmo passando

por desestabilizações impostas por nós ou por ela própria – e vai nos fazendo

readaptar nossos modos de vida para que continuemos participando da mesma

rede planetária, para que mantenhamos o corpo ligado à natureza num mesmo

fluxo informativo. Permanecer nele depende da nossa sensibilidade para com a

voz digitalizada da natureza, bem como das conexões e da mobilização que

fazemos entre actantes humanos e não humanos.

Em outras palavras, a digitalização da natureza estimula uma nova relação

entre ela e o corpo. O corpo que se vê fora da natureza – que a considera ambiente

(do latim ambire, o que está em volta) – está fadado a desaparecer fisicamente, ao

exaurir as condições naturais para sua perpetuação; ou desaparecer como ideia,

abrindo espaço para um corpo que se veja e atue de modo integrado, e assim se

perpetue biologicamente.

A própria ciência, numa abordagem contemporânea e reticular, nos chama

atenção para o fato de que corpo, mente e ambiente são indissociáveis:

“(i) O cérebro humano e o resto do corpo constituem um organismo

indissociável, integrado por meio de circuitos bioquímicos e neurais

reguladores (incluindo componentes neurais endócrinos, imunes e

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autonômicos); (2) O organismo interage com o ambiente com um conjunto; a

interação não é nem do corpo sozinho nem do cérebro sozinho; (3) As

operações fisiológicas que chamamos de mente são derivadas do conjunto

estrutural e funcional e não do cérebro isoladamente; fenômenos mentais podem

ser inteiramente entendidos apenas no contexto de um organismo interagindo

em um ambiente. O ambiente é, em parte, um produto da própria atividade do

organismo, apenas ressalta a complexidade das interações que temos de levar

em conta.”78

(DAMASIO, 1994, p. 16-17)

Neste sentido, podemos afirmar que a relação entre homem, natureza e

tecnologia o leva a fortalecer o quiasma com o mundo, qual proposto por

Merleau-Ponty (1964). De certo modo, nos aproxima da imagem de corpo imenso,

proposta por Bergson, onde o corpo compreende e atua no planeta com a noção de

que influencia e é influenciado pela natureza, mesmo à distância: “coextensivo á

consciência, ele compreende tudo o que percebemos, ele vai até as estrelas”

(BERGSON, 1948, p. 138).

Esse mesmo fenômeno de digitalização da natureza que remete ao “corpo

imenso” tem ajudado a questionar a própria noção cartesiana do corpo como um

aglomerado de membros e órgãos, revelando o corpo como rede de redes -

fenômeno associada também ao conhecimento científico, à curiosidade do cidadão

comum em suas buscas digitais e à cultura do compartilhamento.

Agora a digitalização do corpo diz que não existimos mais como ser

humano uno, mas que nossos corpos são também redes, não só de átomos, células,

órgãos, sistemas, mas também dos dispositivos integrados dentro e fora do corpo

biofísico, desde próteses até os aparelhos de comunicação móvel, de estruturas

físicas que seguem a mesma arquitetura em espiral de estruturas universo afora79

(DOCZI, 1990) e de microorganismos80

, sem os quais a vida desse aparentemente

78 Livre tradução: “(i) The human brain and the rest of the body constitute an indissociable organism, integrated by means of mutually

interactive biochemical and neural regulatory circuits (including endocrine, immune, and autonomic neural components); (ii)The organism

interacts with the environment as an ensemble: the interaction is neither of the body alone nor of the brain alone; (iii) The physiological operations that we call mind are derived from the structural and functional ensemble rather than from the brain alone: mental phenomena

can be fully understood only in the context of an organism's interacting in an environment. That the environment is, in part, a product of the

organism's activity itself, merely underscores the complexity of interactions we must take into account.” 79

Em “O Poder dos Limites”, o arquiteto György Doczi nos fala de um “princípio dianérgico” – a formação de diferentes estruturas a partir

de espirais opostas que conformam uma unidade, seguindo sempre a mesma proporção, conhecida como proporção áurea. Essas espirais

estão presentes nos miolos das flores, no formato das galáxias, nos ossos do corpo humano, nos grafismos e artefatos de inúmeros povos tradicionais, É o fractal por excelência. 80

O projeto Microbioma Humano, dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, mapeou os microrganismos do corpo,

identificando cerca de 10 mil espécies, como informa a notícia “Cientistas anunciam ter completado a identificação do microbioma

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uno ser humano não vicejaria; de fluxos cognitivos que se associam aos fluxos

informativos digitais; de sentidos que se constroem mundo afora pela inteligência

coletiva e interação conectiva.

Essa noção da constituição biodiversa e tecnológica do corpo abre espaço

para uma nova forma de o compreender ao misturar-se a outro ingrediente, que é a

percepção estimulada pela sociabilidade em rede. Esta é aquela condição

perceptiva que estabelece mais facilmente conexões antes nebulosas, como entre

actantes humanos e não humanos ou entre fenômenos e entre ideias que antes

pareciam desconexos ou opostos. Em outras palavras, uma percepção avessa a

fronteiras.

Esse estímulo a uma percepção sem fronteiras não se desdobra apenas num

entrelaçamento com o mundo pela interação com o digital, mas também alimenta

um fenômeno especificamente orgânico.

A percepção das mudanças na natureza e de nossa interação com ela é

acessível ao corpo orgânico – num grau diferente do acesso potencializado pela

tecnologia, de uma ordem do sensível, própria da corporeidade, do indizível, de

dimensões que saberes da cultura oriental relacionam com o chi81

(Capra, 2000) –

algo possivelmente próximo da carne do corpo que Merleau-Ponty dizia ser

inclassificável pela filosofia. Como já nos indicou Serres (2004), ao falar da

prioridade do corpo; Damasio (1994), ao mostrar a importância das

potencialidades do corpo para o estar no mundo; e Nietzsche (1997) sobre a

sabedoria do corpo, para a conexão com a natureza precisamos apenas percebê-la.

Aqui identificamos novamente um fenômeno dialógico (Morin, 1994).

Como já observamos antes, mesmo o que parece uma relação estritamente

orgânica, fatalmente será apropriada pela dimensão transorgânica do corpo, uma

vez que uma experiência de conexão com a natureza, o luar, as mudanças

climáticas, a biodiversidade, os serviços ecossistêmicos, as geografias

eventualmente serão digitalizados, guardados em nossa memória virtual,

compartilhados na rede, acessados e comentados em nossas extensões

tecnológicas.

humano”, no website G1, de 13 jun. 2012. Disponível em: http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2012/06/cientistas-anunciam-ter-

completado-identificacao-do-microbioma-humano.html. Acessado em 03/08/2013. 81

Termo que de modo simplificado poderia ser traduzido como energia vital.

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Vimos, portanto, que as mudanças sensoriais e perceptivas associadas ao

habitar atópico estimulam um reconhecimento do reticular no mundo – uma nova

percepção das conexões das coisas e dos processos naturais e antropogênicos e

seus desdobramentos. Ao mesmo tempo em que estimulam o reconhecimento da

condição reticular e fractal do corpo próprio e de tornar suas potencialidades, sua

capacidade perceptiva, sensitiva, cinética, psico e biofísica unas com o habitar do

mundo.

É chegada a hora de entendermos que desdobramentos podem surgir da

relação do corpo com o desafio da sustentabilidade no habitar atópico.

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5. Espontaneidade no corpo, intencionalidade para a vida

“(...) todo corpo verdadeiramente mergulhado na vida

autêntica e na aprendizagem corajosa e direta recebe

delas uma força vertical igual a esse mesmo corpo,

dirigida para a descoberta.” (SERRES, 2004, p.141)

5.1 A sustentabilidade e o corpo no habitar atópico

Após entendermos como o habitar atópico (Di Felice, 2009) se relaciona

com a sustentabilidade e como o entrelaçamento do corpo com o mundo

(Merleau-Ponty, 1968) se manifesta nessa forma de habitar, podemos finalmente

explorar os desdobramentos tangíveis e rumos possíveis para a relação do corpo

com o desafio da sustentabilidade, no âmbito do habitar atópico.

Retomemos de modo breve o entendimento de sustentabilidade exposto no

capítulo 2, para então nos lançarmos às conexões com o corpo. Vimos que

conduzir a economia dentro dos limites da natureza e da sociedade, reduzindo a

entropia e impactos negativos sobre as condições de vida para o ser humano - e

para as espécies que hoje habitam o planeta - é algo que passa por uma mudança

de concepção de desenvolvimento. Não mais aquela baseada no crescimento

infinito, nem no consumo de mercadorias e nem no endividamento financeiro e

ecológico (Jackson, 2009). Colocar em prática tamanho desafio é um exercício

que exige criatividade e desapego de antigos modelos, para lidar com diferentes

perspectivas de desenvolvimento sustentável - como as encontradas em

Abramovay (2012), Cechin (2012), Lovelock (1998), Raworth (2012), Sachs

(1998), Shiva (1988) e Veiga (2005) – e, em especial, a de prosperidade

desatrelada do crescimento, tendo como horizonte não a acumulação e o consumo,

mas a “habilidade de participar da vida da sociedade com sentido” (Jakson,

2009), alimentando a “capacidade para florescimento” humano (Sen, 2000).

Identificamos no detalhamento dessa ideia a ligação com a Quadratura

(céu, terra, deuses, mortais) proposta por Heidegger (1954) como definidora de

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um habitar que: cultiva os gestos de dedicação às fontes de sustento da vida;

reconhece os ciclos, ritmos e dinâmicas em que ela está imersa; abre-se à

espiritualidade; coaduna com os seres humanos. Um fundamento possível para

fazer emergir a prosperidade “justa e duradoura” proposta por Jackson (2009),

interdependente da relação com a sociedade e a natureza, e desviante da trajetória

de “irresponsabilidade sistêmica” do modelo de crescimento constante. Implica,

portanto, uma mudança de pensamento e ação que se traduza numa forma de

habitar diferente daquela que nos trouxe ao atual momento de crise

socioambiental.

Encontramos aí uma ponte importantíssima entre o corpo e a

sustentabilidade, já que tamanha mudança passa involuntariamente pelo corpo,

pois ele configura o universo perceptivo que torna possível qualquer

transformação de entendimento humano do estar no mundo – como nos aponta,

em diferentes abordagens, Bergson (1948), Husserl (1998), Merleau-Ponty

(1968), Cardim (2009), Silva (2009) e também McLuhan (1964). Desse último,

destacamos o conceito de que “o meio é a mensagem” para observar como o

corpo, no habitar atópico, é estimulado e transformado pela sociabilidade reticular

no sentido de enxergar e engendrar conexões, de estar no mundo de modo

interativo e colaborativo (Di Felice, 2009). E assim traduzir em pensamentos, em

atos, em uma forma de habitar o entrelaçamento com a natureza, com as coisas,

com os outros (Merleau-Ponty, 1968).

Se no habitar atópico o quiasma do corpo com o mundo subentende a

assimilação do mundo como uma rede de sistemas abertos (Morin, 1994), e se tal

assimilação é o que impulsiona o devir da sustentabilidade, então o gérmen para a

sustentabilidade está latente no corpo que habita de forma atópica. Haveria, assim,

um potencial de engajamento “espontâneo” desse corpo com os preceitos da

sustentabilidade apontados acima – engajamento que cresce, portanto, quanto

mais o habitar se realiza de modo conectivo e reticular entre actantes humanos e

não-humanos (Latour, 2008).

Nesse momento, abre-se o espaço para refletirmos também sobre a

possibilidade de que a participação do corpo no desenvolvimento sustentável vá

além de uma emanação espontânea e seja efetivamente convocada por um olhar

intencional a esse corpo que intui e fareja a sustentabilidade. Uma atenção

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deliberada a seu universo reticular, aos saberes encarnados nesse corpo, cuja voz

ajuda a mover os novos pensamentos e ações necessárias ao desafio civilizatório

do século XXI. Essa mesma sabedoria do corpo (Nietzsche, 1999) que agrega a

relação com a tecnologia, não só pela escuta atenta às dinâmicas conectivas que as

arquiteturas digitais propõem, mas por essa relação ser condicionada pelo toque

sensível e senciente do corpo.

Mas deixemos essa ideia pairando um instante, para seguir com o

entendimento do que seria o potencial de participação espontânea do corpo na

sustentabilidade. É chave para essa compreensão a mudança de sensorialidade

(McLuhan, 1964) em consonância com as arquiteturas digitais reticulares.

Vimos a partir de Di Felice (2009) que, no passado, a sensorialidade

condicionada pelo caráter visual, de reduzidos estímulos ao corpo, segmentador e

linear da escrita esteve associada a um habitar empático, de domesticação do

ambiente, e preparou terreno fértil para o entendimento cartesiano de um corpo

fragmentado e para a sua normalização e submissão às instituições (Foucault,

2004). De modo análogo, o caráter áudio-tátil e deslocativo da sensorialidade no

habitar exotópico, condicionado pelas tecnologias comunicativas da eletricidade,

contribuiu para um questionamento dos pontos de vista centrais (Vattimo, 1989) e

das metanarrativas (Lyotard, 1984) como da modernidade, do progresso e do

domínio da natureza. No habitar atópico, a sensorialidade do corpo conectiva e

aberta a estímulos, que aflora recursivamente (Morin, 1994) criadora e

condicionada pelas arquiteturas digitais reticulares, configura uma sociabilidade

em rede, interativa, colaborativa e ávida por conexões entre actantes humanos e

não humanos (Latour, 2008). Decorre daí que modelos político-econômicos

prontos e instituições verticalizadas, surdos às vozes e à participação das redes

virtuais e presenciais, são fortemente questionados. Assim como as atividades

humanas que negligenciam as conexões com a natureza.

Temos, assim, os primeiros sinais de uma inteligência e uma actância

coletivas e de caráter reticular (Di Felice, 2009), que emergem da relação do

corpo com a tecnologia, e estão aptas a lidar com o desafio complexo da

sustentabilidade.

Ou seja, o potencial de participação espontânea do corpo na

sustentabilidade aflora desse corpo como rede de redes (átomos, células, órgãos,

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microrganismos, próteses), e em rede com o mundo, que está permeável a

perceber de novos modos os desafios e oportunidades para o desenvolvimento

humano, que passa a ser construído colaborativamente, em contraste com lógicas

de hierarquia e liderança rígidas.

5.2 Espontaneidade do corpo para a sustentabilidade

Vejamos alguns exemplos de como o corpo imerso na sociabilidade

reticular e aberto às conexões com o mundo já revela impulsos de construção de

novas dinâmicas na sociedade e na relação com a natureza, a partir da interação

com as tecnologias. Podemos citar os aplicativos que conectam diferentes actantes

para mapear problemas e encaminhar soluções nas cidades82

, a cultura de mapas

coletivos online que favorece a reconexão presencial com os espaços públicos em

uma dada região83

; laboratórios que conjugam academia e cidadãos para criar

soluções a desafios locais e globais84

, projetos artísticos que conectam artistas,

linguagens e espaços85

.

Não podemos ignorar que compartilhar e produzir seja o que for a partir da

inteligência coletiva e da colaboração não é exatamente uma novidade - por

exemplo, mutirões, escambo e trocas entre amigos e vizinhos já existem há muito

tempo86

. Por outro lado as arquiteturas reticulares e a sociabilidade do habitar

atópico potencializam, diversificam e multiplicam as modalidades colaborativas

(o surgimento do termo crowdsourcing é uma referência disso87

), conduzidas por

corpos que se percebem interdependentes das cidades, dos recursos naturais, dos

82

O brasileiro CoLab é um exemplo de conexão para coconstrução de soluções entre cidadãos e poder público. Disponível em:

http://colab.re/. Acessado em 01 ago. 2013. 83

Como exemplo, a plataforma Mapas Coletivos. Disponível em: http://www.mapascoletivos.com.br/. Acessado em: 01 ago. 2013. 84

Um exemplo é o CoLab do Instituto de Tecnologia de Massachussets, voltado para soluções nas cidades e geração de renda a partir de

parceria com comunidades locais. Disponível em: http://web.mit.edu/colab/. Acessado em: 01 ao. 2013. 85

O Conexão Cultural é um exemplo de rede que estimula tanto intervenções artísticas coletivas como a colaboração entre centros culturais

mundo afora. Disponível em: http://www.conexaocultural.org/. Acessado em 01 ago. 2013. 86

Existe até o termo “envelhação” para designar iniciativas que existiam no passado e agora são recuperadas de outros modos na cultura

digital reticular, para promover inovações, como mostra reportagem da Revista Página 22, publicada em setembro de 2011. Disponível em:

pagina22.com.br/index.php/2011/09/o-futuro-no-preterito/ . Acessado em: 01 ago. 2013. 87

Iniciativas baseadas na inteligência e na produção coletiva a partir das redes digitais são genericamente conhecidas como crowdsourcing, e

muitas vezes têm como desdobramento o crowdfunding, que é a apresentação de projetos dos mais diferentes tipos, em plataformas digitais.

No Brasil, o exemplo mais conhecido de crowdfunding é o da iniciativa Catarse. Disponível em: http://catarse.me/pt/projects. Acessado em

01 ago. 2013.

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outros corpos, das coisas, dos fluxos informativos, de saberes tradicionais, das

experiências presenciais, do diálogo virtual, dos compartilhamentos.

Um possível desdobramento desse engajamento do corpo em iniciativas

coletivas, aliado ao controle social exercido pelas redes, é o de reorientação do

Estado e das instituições na sociedade para formas mais permeáveis, dialógicas e

transparentes de atuação e para uma nova perspectiva democrática (Castels,

2013).

Sinais dessa mudança potencial têm se tornado cada vez mais frequentes.

Entre os exemplos, a Primavera Árabe, que levou a mudanças de governos em

diversos países, e das manifestações ocorridas no Brasil em 201388

. Merecem

destaque também as mobilizações por políticas públicas que ocorrem permeadas

pelo conceito de crowdsourcing (Bott; Young, 2012). É o caso das redes em torno

dos Sistemas de Informação Geográfica e Participativa (PGIS, na sigla em inglês),

voltadas ao mapeamento de questões de desenvolvimento sustentável para

fundamentar tanto políticas elaboradas pelos governos como propostas diretas das

comunidades89

. Outro exemplo é das populações de diferentes partes do mundo

que mapeiam suas necessidades em situações de crise, orientando a ação de apoio

governamental e de ajuda humanitária90

.

Essas, entre tantas iniciativas existentes atualmente, revelam um traço

importante da sociabilidade que nasce de – ao mesmo tempo em que desperta -

um corpo que assume sua condição de sistema aberto, em rede com outros

actantes. E pelo coletivo é capaz de grandes mudanças nas dinâmicas sociais, que

outrora insistiam agir como sistemas fechados.

Podemos aludir à própria economia, cujo caráter sustentável está atrelado a

repensa-la como um subsistema aberto, dentro de um sistema finito que é o

planeta, sujeito à lei da entropia (Cechin, 2012). Exemplos disso vêm tanto da

sociedade civil – por iniciativas como economia criativa, moedas sociais,

88

O resultado mais evidente das manifestações no Brasil, que combina com o estopim desse movimento, foi a redução nos preços de

passagens de ônibus em diversos municípios brasileiros após protestos em escala nacional, como mostra relato do Movimento Passe Livre.

Disponível em: http://saopaulo.mpl.org.br/2013/06/21/fomos-vitoriosos-viva-a-luta-do-povo/. Acessado em 01 ago. 2013. 89

É a proposta, por exemplo, da Aboriginal Mapping Network. Disponível em: http://www.nativemaps.org/. Acessado em: 01 ago. 2013. 90

É o caso da Ushahidi, arquitetura informativa associada a casos de desastres naturais, como o terremoto no Haiti em 2010, e conflitos

violentos, como os ocorridos no Kenya após as eleições de 2008. Disponível em: http://www.ushahidi.com/. Acessado em 01 ago. 2013.

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economia solidária e empreendedorismo social91

– quanto das próprias empresas.

Para citar apenas um caso, a Nike, após sofrer duro golpe de reputação nos anos

90, por usar mão-de-obra infantil, vem conduzindo um longo processo de

reformulação que inclui uma plataforma aberta de inovação em ecoeficiência,

onde todos podem colaborar com ideias ou utilizar as que já fazem parte do banco

de dados92

– inclusive concorrentes. Isso para que, segundo a própria empresa, a

sustentabilidade vá além de um diferencial reputacional no mercado e se torne o

pano de fundo comum à atuação do setor empresarial.93

O entrelaçamento do corpo com as tecnologias digitais reticulares revela

outro modo de engajamento espontâneo na sustentabilidade ao estimular novas

formas de consumo, menos relacionadas à compra e à posse e mais ligadas a

dinâmicas reticulares como o compartilhar. São exemplos as feiras de troca e os

bazares entre amigos94

; as redes de consumo colaborativo, que promovem

intercâmbio de serviços (uma aula de inglês por uma de violão; brigadeiros de

festa por passeio com o cachorro, uma carona para a praia por um quarto para

dormir) e/ou o compartilhamento de objetos (ferramentas, automóveis, bicicletas,

livros, utensílios domésticos)95

; e ainda as redes de criação de soluções caseiras a

produtos vendidos no mercado96

. Tais práticas são incipientes se considerarmos a

magnitude do mercado consumidor, mas sua multiplicação e a lógica que as move

constituem uma semente desestabilizadora de um dos principais obstáculos à

sustentabilidade: a “gaiola do consumismo” (Jackson, 2009).

Esses novos modos do corpo realizar o habitar junto às coisas (Di Felice,

2009) são condizentes com o espírito de compartilhar interesses comuns,

característico do habitar atópico. Esses interesses e as comunidades que se

formam em torno deles serão tão variados quanto é a própria sociedade e

escondem conexões transversais entre os actantes, que não respondem mais a uma

91

Novas modalidades econômicas que têm como norte benefícios para a coletividade, conforme descreve matéria da Revista Página 22

publicada em 14 abr. 2012. Disponível em: http://www.pagina22.com.br/index.php/2012/04/de-que-economia-estamos-falando/. Acessado em 01 ago. 2013. 92

Trata-se da plataforma digital GreenExchange. Disponível em: http://www.greenxchange.cc/. Acessado em 02 ago. 2013. 93

Entrevista a respeito com a vice-presidente de Negócios Sustentáveis e Inovação da Nike Inc., Hannah Jones, publicada na edição de

novembro de 2010 da Revista Página 22. Disponível em: http://pagina22.com.br/index.php/2010/11/a-grande-virada/. Acessado em 02 ago. 2013. 94

Matéria a respeito publicada na revista Página 22, em 13 mar. 2012. Disponível em: http://www.pagina22.com.br/index.php/2012/03/a-

liquidacao-do-consumismo/. Acessado em 01 ago. 2013. 95

Ver referências no website Adital. Disponível em: http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=73427. Acessado em: 01 ago.

2013. 96

É o exemplo do website XPOCK. Disponível em: http://xpock.com.br/9-dicas-que-podem-facilitar-sua-vida/. Acessado em 01 ago. 2013.

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lógica de segmentação de grupos. Essa sociabilidade reticular, de corpos

conectivos, sem intermediários, favorecendo encontros significativos para cada

um, alimenta a “vida com sentido” referida por Jackson (2009) como caminho

para o desenvolvimento sustentável, estimulando a emersão de novos valores e de

atividades antropogênicas condizentes com eles.

Não podemos ignorar que a atratividade dessa cultura conectiva pode

gerar, no entanto, um monopólio da atenção do corpo pelo virtual, o que se revela

em questões como transtornos de ansiedade, sedentarismo traduzido em dores nos

músculos e articulações, problemas de circulação, reclusão estimulando

comportamentos depressivos. Situações que contrariam a ideia de que o habitar

atópico torna o corpo transorgânico: nos casos acima, a dimensão orgânica parece

definhar. E a depleção do orgânico significa exclusão na rede e negligência da

sustentabilidade.

Cabe resgatar, no entanto, a observação do capítulo 3 sobre como essas

mesmas questões podem gerar novos grupos de interesse, voltados a uma

reconexão com a corporeidade97

.

Então por que refletir sobre a dimensão física presencial do corpo na rede

se ela acabará sendo assimilada pelo diálogo reticular? Primeiramente, porque o

entendimento da rede no habitar atópico é do híbrido entre o presencial e o virtual.

Depois, porque a reconexão com a corporeidade demanda uma dimensão física

presencial, uma vez que guardamos uma dimensão biológica, instintiva, ancestral

no corpo que é a da vontade de contato:

“Apesar de todo o conhecimento acumulado a seu respeito, o corpo

humano ainda não foi completamente explorado e talvez nunca

cheguemos a conclusões definitivas sobre suas potencialidades. De

qualquer forma, sua existência revela a presença de algo cuja

dimensão transcende a própria materialidade: aquilo que comumente

chamamos de energia vital.” (VIANNA, 2005, p. 116)

O contato físico com o mundo continua sendo uma força reticular sem

igual para a vida. Essa ainda é a situação cotidiana em que a rede corporal se

potencializa para além da atividade mental, do dedilhar teclados, do dialogar

97

Um exemplo é a iniciativa Design to Move, que busca estimular a atividade física frente ao fato de que o sedentarismo tem se tornado

crescente nas gerações recentes pela interação com tecnologias digitais e de mobilidade motorizada. Disponível em:

http://www.designedtomove.org/. Acessado em 01 ago.2013.

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tendo à frente uma tela que muitas vezes nos faz olhar de cima para baixo,

cabisbaixos.

Esse não é um juízo de valor, é uma noção de amplitude dos sentidos do

corpo que entram em diálogo com o mundo – e como observou McLuhan (1964),

essa amplitude dos estímulos é norteadora da percepção, dos hábitos, da

sociabilidade. Uma sociedade em rede e sustentável demanda um corpo reticular,

que cultiva a sustentabilidade para si.

Ela passa pelo abraço que conforta uma tristeza mais do que um

emoticon98

, pelo reconhecimento da nossa constituição em carne e osso que

demanda comida saudável e movimento para se perpetuar sem as limitações de

doenças e mazelas. A sustentabilidade se faz pelo corpo que reconhece que

envelhece e morre assim como a natureza que o sustenta, ainda que nossas linhas

do tempo nas redes sociais perpetuem uma memória com um recorte de nossas

existências. Faz-se pela epimelese99

que nos impulsiona ao cuidar das coisas, a

habitá-las, mas que tem origem no amamentar da cria em contato direto com o

corpo da mãe. Faz-se pelo sexo carnal que acende a rede sensória e agita os fluxos

do corpo de modo mais complexo e abrangente que a masturbação entre duas

pessoas que se veem numa superfície sem cheiro, temperatura, textura – pelo

menos no momento atual de nosso desenvolvimento tecnológico.

Fazer alarde sobre essa “prioridade do corpo”, no termo usado por Serres

(1994), não tem o intuito de estabelecer uma oposição, uma dicotomia. A intenção

é outra, de confiar no corpo para que indique o equilíbrio dinâmico da relação

transorgânica com os dispositivos tecnológicos e com o ambiente. Negociação da

qual participam intensamente as arquiteturas digitais reticulares, ajudando a

apontar oportunidades e caminhos para a experiência carnalizada, ao viabilizar

flash mobs100

, transbordar manifestações para a rua, favorecer encontros de “corpo

e alma”, animar coletivos que festejam no espaço público, engajar uma

comunidade no diálogo sobre impactos da instalação de um grande

empreendimento, conectar grupos que meditam nos parques, reunir mutirões para

98

Ícones utilizados em diálogos nas redes digitais para simbolizar sentimentos e sensações. 99

Comportamento típico dos mamíferos de cuidado e zelo pela prole que carece de maturidade para sobreviver, de acordo com explanação

de Marchesini (2010) já referida no capítulo 3. 100

Intervenções geralmente em espaços públicos, combinadas a partir das redes sociais, que resultam em aglomerações repentinas para

realização de ações inusitadas e que depois se dispersam rapidamente.

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o cultivo de hortas, emaranhar entusiastas do movimento que transformam a

cidade em território do parkour101

.

Merece atenção, ainda, a relação de intimidade entre o corpo e as

arquiteturas digitais reticulares, que o estendem por dispositivos e ampliam seus

sentidos integrando-o a uma vida digitalizada. Dimensão reveladora de mundos

que estão além do alcance da nossa sensorialidade orgânica imediata – seja pela

distância e pela ampliação da capacidade visual, auditiva e vocal; seja pela

possibilidade de digitalizar o mundo e coloca-lo ao alcance da rede.

É o caso da aproximação com a natureza por meio de satélites, câmeras,

sensores, dispositivos de georreferenciamento. E que permitirá uma interação

também por meio dos dispositivos tecnológicos digitais, numa perspectiva

reticular que se expressa desde as campanhas online contra o desmatamento, até

os aplicativos que identificam pássaros pelo canto102

, que mapeiam árvores

frutíferas pela cidade103

, que dizem quais são as frutas da estação para auxiliar o

consumo consciente104

, que registram as aventuras dos adeptos do ecoturismo e a

natureza preservada ao redor do mundo105

.

Nesse habitar reticular que não mais negligencia conexões no mundo,

temos a oportunidade de reverter a negligência histórica do corpo. Escancarar a

percepção o corpo como universo reticular e não mais apartado pela perspectiva

cartesiana e das ciências humanas enquanto pensamento, alma, natureza.

Em outras palavras, por que não ir além da emanação espontânea de uma

nova sociabilidade sustentável encarnada no corpo e intencionalmente mergulhar

em sua rede, deixar que ele nos ensine mais?

101

Também conhecida como “arte do deslocamento”, é uma movimentação que consiste em ir de um ponto a outro, o mais rápido possível,

superando qualquer obstáculo pelo caminho, como muros, escada, fossos, andaimes. Para nossa discussão, vale trazer a conversa entre

Leonard Akira, praticante e instrutor pioneiro no Brasil, e um frequentador de seu blog: “Mas Akira , voltando ao assunto principal, você não acha Prince of Persia [um jogo de computador] divertido e com movimentos que lembram o Parkour?

Claroooooo que eu curto Prince of Persia e joguei vários no meu PSP, mais galera isso já passou, por exemplo (sic!) Assasin's Creed [outro

jogo] é demais e totalmente baseado em Parkour! Só que é em terceira pessoa!”. Disponível em: http://www.leparkourbrasil.blogger.com.br/. Acessado em 02 ago. 2013. 102

Aplicativo para iPhone Aves do Brasil – Mata Atlântiva. Disponível em: http://planetasustentavel.abril.com.br/aves/app/. Acessado em

20 ago. 2013. 103

Aplicativo Neighborhoodfruit. Disponível em: http://neighborhoodfruit.com/iphoneapp . Acessado em 2 ago. 2013. 104 Aplicativo Seasons App. Disponível em: http://www.seasonsapp.com/. Acessado em 2 ago. 2013. 105 Aplicativo Project Noah. Disponível em: http://www.projectnoah.org/. Acessado em 2 ago. 2013.

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5.3. Intenção no corpo

Assumir a proposição de Nietzsche (1997) do corpo como fonte de saber é

valiosíssima e especialmente ressonante no habitar atópico.

Este entendimento vem ao encontro de e amplifica o sentido de uma

abordagem integrada do conhecimento para a construção da sustentabilidade

(VEIGA, 2005). Se entendemos que uma mudança de percepção é necessária,

recorrer ao corpo é mais que recomendável, é urgente!

O acesso a este saber do corpo pode se dar pelas abordagens mais variadas,

como nos mostram a seguir diferentes pesquisadores, educadores, artistas e

ativistas do corpo. Um primeiro exemplo vem da própria coordenação motora, a

partir da perspectiva de Béziers e Piret106

:

“A coordenação nos faz escultor se nós a pensamos como uma

escultura móvel e perpétua. Ela nos faz homem por tudo isso que nos

faz descobrir e compreender.

E você, o que vai fazer? Pegue-a em suas mãos. Coloque-a dentro de

seus olhos, dentro do seu conhecimento. Esse instrumento é também

seu. Olhe-o, você irá se encontrar e a maneira pela qual você vai se

utilizar disso é justamente o que ela fará de você.”107108

(apud

FAVORETO, 2006, p. 8)

O “olhar de dentro”, a meditação, a propriocepção, o explorar intencional,

silencioso e cinético do universo sensorial, topográfico e psicomotor do corpo

evidenciam o conhecimento encarnado de nossa relação com o mundo nas tensões

musculares, nos padrões de movimento, nos modos de expressão, nas entranhas,

nas sensações e insights que surgem durante essa imersão. É o que nos ajuda a

compreender Klauss Vianna109

:

106

Madelene Béziers e Suzanne Piret desenvolveram durante mais de 30 anos um trabalho de estudo, reflexão e sistematização sobre a

coordenação motora, e de técnicas mecânicas para a organização psicomotora do homem, que se tornou referência recorrente para terapeutas, artistas cênicos e médicos, e que faz uma ponte entre a motricidade do corpo e sua dimensão perceptiva e expressiva. 107 “Manuscrito de Piret lido por Béziers na finalização de um dos módulos do Curso de Formação na Coordenação Motora orientado por

M.M. Béziers e sua irmã Yva Hunsinger em São Paulo, 2001.” 108

Tradução da autora para o trecho a seguir: “La coordination nous fait sculptr si nous la pensons comme une sculpture móbie et

perpételle. Elle nous fait home par tout ce qu’elle nous fait découvrir et comprendre.

Et vous qu’en ferrez-vouz? Prenez la dans vos mains. Dans vos yeux, dans votre connassance. Cet outil est aussi lê vôtr. Regarder le, vos y

retrouverez et de la maniére dont vous aller l’utiliser, c’est cela qu’il fera de vous.” 109

Bailarino, coreógrafo e professor, Klauss Vianna foi pioneiro no estudo do movimento e na conceituação de um trabalho corporal capaz

de exprimir o universo interior de dançarinos, atores e pessoas em busca de crescimento. Rejeitando modelos prontos e o formalismo que os

embasa, foi introdutor da educação somática no Brasil, num trabalho que se tornou referencial.

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“O fato de cada pessoa ser, em síntese, o próprio mundo, um

microcosmo, permite que ela encontre respostas para suas dúvidas,

paixões e ansiedades quando mergulha com coragem e técnica em seu

universo interior.” (VIANNA, 2005:114)

O horizonte não é o de reconhecimento de comportamento para lhe impor

controle. É sim o de aprimorar um saber de si, de se render à complexidade e à

poesia do corpo, de aceitar a condição humana e de compreender melhor o mundo

a partir de nossa dimensão de fractal e de interdependência com as coisas, os

outros, a natureza.

Essa condição de fractal pode se revelar, por exemplo, na atenção para e

na percepção do relógio biológico encarnado em nosso corpo. E no entendimento

– com apoio de informações nas redes digitais - de que, assim como nos animais,

ele está conectado à rotação da Terra e à órbita da Lua, como explica o

paleontólogo e biólogo evolucionário Neil Shubin110

. Já a condição de

interdependência pode ser facilmente percebida se levamos atenção ao efeito da

alimentação sobre nosso corpo ou se acompanhamos o crescimento de um bebê

que nasce com o cérebro em formação e cuja evolução depende das interações

com o mundo111

.

Ampliar o conhecimento sobre o corpo próprio e, assim, sobre as relações

que ele integra é algo certamente favorecido pelas arquiteturas digitais reticulares.

Basta ver a grande quantidade de referências sobre atividades corporais de

perspectiva somática e de realização coletiva, desde as tradições orientais, como a

Yoga e o Tai Chi, até técnicas contemporâneas como o método Feldenkrais e o

BMC112

. Todas essas vertentes de abordagem somática do corpo representam, a

seu modo, o potencial de ampliação da percepção do mundo:

110

Os argumentos de Shubin fazem parte do livro The Universe Within: Discovering the Common History of Rocks, Planets, and People

(2013), mas aqui é destacada fala do autor em apresentação para a organização RSA (Royal Society for the Encouragement of Arts,

Manufactures and Commerce). Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=vfp4Ci1b0TI. Acessado em 16 ago. 2013. 111

Esses e outros exemplos podem ser visitados na série de vídeos “Body Story” que explora alguns aspectos da complexidade reticular do

corpo e sua interdependência com o mundo. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=eILheSPdleY. Acessado em 16 ago. 2013. 112

Como referência, temos tanto o número de resultados de busca para esse tipo de atividade – por exemplo, a busca conjunta dos termos

Yoga e Brasil gera mais de 24 milhões de resultados no Google, e para Tai Chi, mais de 84 milhões, em acesso de 16/08/2013. Outra referência é a grande variedade de vídeos sobre técnicas contemporâneas. No YouTube é possível encontrar vídeos tanto sobre a vida e obra

de Moshe Feldenkrais, formulador do método de educação somática que leva seu sobrenome, como detalhamentos de aulas e discussões

sobre a técnica. Um exemplo é o próprio canal do Feldenkrais Institute. Disponível em: http://www.youtube.com/user/BodyMindCentering?feature=watch. Acessado em 16 ago. 2013. O mesmo vale para o BMC (Body and Mind

Century), com diversas entrevistas da idealizadora do trabalho, Bonnie Bainbridge Cohen, e aulas detalhadas sobre a técnica. Em destaque, o

canal oficial do BMC. Diponível em: http://www.youtube.com/user/BodyMindCentering?feature=watch. Acessado em 16 ago. 2013.

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“Ao acordar, ao sensibilizar uma dada articulação, adquiro mais um

ponto de equilíbrio em meu corpo, e isso acaba agindo sobre todo o

resto, inclusive sobre coisas que aparentemente nada têm que ver com

músculos e articulações, como a atividade intelectual.” (VIANNA,

2005:99)

O “olhar de dentro” nos ensina que existe um universo vasto resguardado,

mas não isolado, pela superfície mais visual do corpo físico, fruto da complexa

rede que nos constitui.

O melhor caminho para perceber esse universo é a vivência de

experiências corporais que aguçam a propriocepção sensível do corpo. Mas num

estudo como esse podemos recorrer à arte para tentar esclarecer melhor do que

estamos tratando.

Um primeiro exemplo seria da exposição “Body Worlds” (mundos do

corpo), que circula por diversos países desde 2004, mostrando corpos reais por

dentro e por fora, e os efeitos dos diferentes estilos de vida sobre eles. As imagens

das estruturas internas do corpo, em diferentes camadas, nos remetem a refletir e

sentir nosso próprio corpo, trazendo novas percepções sobre ele e dos efeitos de

nossos hábitos. A percepção do corpo como uma janela para nossos modos de

habitar é, em parte, a ideia por trás dessa exposição113

.

Outro exemplo contundente das potencialidades do corpo próprio é dado

pela musicista Evelyn Glennie114

. Surda desde os oito anos, ela se tornou uma das

maiores percursionistas da história da música erudita ao desenvolver a escuta por

todo o corpo e não centrada na audição pelos ouvidos.

O exemplo de Glennie nos mostra que uma perspectiva reticular do corpo

incrementa tanto a percepção de si como o próprio resultado de nossas ações no

mundo. O caso de Glennie é também uma referência para entender como o corpo

dá contornos à relação com a tecnologia. Ela explica como desenvolve uma

relação sensível com os instrumentos que toca e que busca uma empunhadura leve

113

A percepção do corpo como uma janela para nossos modos de habitar é, em parte, a ideia por trás da exposição Body Worlds, que circula

mundo afora desde 2004, mostrando corpos reais por dentro e por fora, e os efeitos dos diferentes estilos de vida sobre eles. Disponível em:

http://www.bodyworlds.com/en.html. Acessado em 16 ago. 2013. 114

Ver apresentação em vídeo para o projeto TED Talks “Evelyn Glennie: How to truly listen”, onde ela faz menção também a discussões

sobre a audição pelo corpo todo, que traz na autobiografia Good Vibrations. Disponível em:

http://www.youtube.com/watch?v=IU3V6zNER4g&list=PLtFZr15XMrnsnMBeOn3zKa5mRkGZBmvPF&index=5. Acessado em: 18 ago.

2013.

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das baquetas, mesmo quando procura soar forte um instrumento, pois ao segurá-

las com leveza evita um estresse do impacto da batida sobre os braços e faz o som

reverberar melhor. Mas, principalmente, essa forma de contato a faz se sentir mais

integrada com as baquetas, ao passo que segurando-as com força sente-se

desconectada do instrumento.

Uma excelente alegoria para pensarmos a relação com as redes digitais:

apropriar-se delas negligenciando o corpo próprio limita seu poder de

reverberação, pode gerar impactos a esse corpo e causa uma desconexão, em

comparação à conexão que ocorre quando o corpo se torna suporte para as redes e

não apenas um agente operador.

Finalmente, Glennie mostra como uma relação da rede corpórea com uma

tecnologia pede a integração dos sentidos ao máximo – ela, por exemplo, toca

seus instrumentos descalça para melhor sentir as vibrações dos sons. Se

pensarmos que a sociabilidade reticular do habitar atópico emerge de um corpo

que habita de modo reticular, então a sensorialidade que apoia esse habitar deve

encarnar a natureza da rede, não focando especificamente em um sentido

específico, mas procurando engajar diferentes sentidos de modo integrado.

Esse é o corpo capaz de abolir fronteiras e trazer aos sentidos e aos atos a

percepção de que existimos por conexões dinâmicas, noção condizente com um

planeta que pede ser reconhecido como a rede de redes habitada pelos seres

humanos.

E certamente, esse corpo permeável capaz de repensar a relação com o

mundo, se mantém aberto à relação com as arquiteturas digitais reticulares, que

criam oportunidades tanto para que ele se revisite como para compartilhar seus

aprendizados115

, estendendo o corpo em uma dimensão transorgânica de sua

experiência.

Um exemplo interessante é da disseminação da arte digital contemporânea,

que tem sido bastante focada nas interações com o corpo – um sintoma da

afinidade entre o reticular do corpo e das tecnologias, entre o presencial e o

115

Como no caso de Bonnie Cohen ao citar alguns dos aprendizados de sua formação em técnicas orientais como a yoga e o tai chi chuan,

que alimentaram a técnica Body and Mind Centering elaborada por ela: http://www.youtube.com/watch?v=LtJbxQj82Zg. Acessado em 16

ago. 2013.

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virtual. Festivais mundo afora como o Plaception116

e o File117

reúnem obras que

propõem experiências geradoras de novas percepções e de um novo imaginário

sobre o corpo próprio, pela assimilação de som, imagens, realidade aumentada,

animações. Para citar apenas um, destaca-se a obra Nigredo, de Marco

Donnarumma118

, que capta os sons de baixa frequência produzidos pelo coração,

pelos músculos e pelo corrente sanguínea dos visitantes, os amplia e retroalimenta

no sistema sensório da pessoa que interage com a obra como novos estímulos

auditivos, visuais e físicos, causando mudanças internas no corpo daquela pessoa,

como o movimento dos órgãos e o comportamento dos nervos ópticos, bem como

mudanças na percepção da imagem própria e do corpo físico como um todo.

Vemos assim que o corpo é actante fundamental para as redes que rejeitam

qualquer bloqueio de acesso ao mundo. Ele próprio se apresenta como fluxo

informativo acessível por todos, basta voltarmos nossa atenção para ele. Nesse

sentido, está ao alcance das redes chamar a atenção para o acesso a este universo

íntimo e fractal, nas mais diversas realidades. Reside aí outro componente

fundamental da sustentabilidade: a mobilização para a mudança.

Muitos são os exemplos de como o corpo é convidado, a partir das redes, a

atuar com outros corpos na mudança de realidades: o projeto Good Gym, que

conecta corredores a missões pela comunidade na Inglaterra119

; os coletivos de

contato-improvisação120

no Brasil que fazem da dança uma experiência de

negociação e prática política121

; os grupos de capoeira espalhados pelo mundo que

compartilham trajetórias sociais históricas e ensinamentos de técnica e da cultura

da capoeira (Marchesi, 2012); e trabalhos que unem dança e educação somática e

se tornam catalizadores de mudanças, como no caso a seguir:

“A modificação do imaginário deve ocorrer na forma de uma

experiência coletiva, numa relação de troca com o grupo, numa sala

de aula, por exemplo. O aluno se desenvolve observando o outro,

116

Trata-se de uma iniciativa que investiga e reúne obras de uma grande variedade de artistas que transformam o espaço em uma experiência

tangível ao modificar ou ampliar os sentidos do corpo humano. Disponível em: https://vimeo.com/62768878. Acessado em 16 ago. 2013. 117

Festival Internacional de Linguagem Eletrônica (File). Disponível em:

http://filefestival.org/site_2007/pagina_conteudo_livre.asp?a1=308&a2=308&id=2. Acessado em 20 ago. 2013. 118

Cf. Vídeo em https://vimeo.com/69743476. Acessado em 16 ago. 2013. 119

Ivo Gormely idealizou o projeto Good Gym buscando modificar o fato de que desenhamos as facilidades da vida contemporânea

excluindo a atividade física e vivemos excluindo as relações comunitárias. Mais informações em http://www.goodgym.org/how_it_works.

Acessado em 16 ago. 2013. 120

Estilo de dança contemporânea fundamentado em técnicas de propriocepção, de relações de contato físico entre os participantes e de

interação entre os diversos elementos presentes durante a performance de improvisação 121

Mais sobre esse argumento no vídeo “Uma revolução silenciosa – a prática do contato improvisação”. Disponível em:

http://www.youtube.com/watch?v=t4srxcjPgkE. Acessado em 01 ago. 2013.

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testemunhando a ação do colega. Por meio de estímulos trazidos pelo

professor e pelos companheiros, as trocas começam a ocorrer,

desencadeando uma rede de mútuas influências benéficas. A

imaginação, materializada em modos diversos de expressão, passa a

não mais se contentar com o programa de TV desprovido de ideias,

com o texto mal elaborado, com a música fácil.” (BERTAZZO, 2004,

p. 31)

Processos de mudança como o mencionado acima demandam tempo e o

corpo nos ensina até mesmo a reconhecer e desfrutar das dinâmicas e dos tempos

dos processos envolvidos nas mudanças, algo fundamental para trilhar a

sustentabilidade em época de banda larga e conexões velozes. Apoiar-se nos

ensinamentos do corpo sobre o tempo e os processos é valioso também para

refletir sobre um fenômeno tão recente quanto o habitar atópico, seja para

entender como suas características se configuram, para encarar impactos positivos

e negativos das tecnologias, seja para lidar com a eventual ilusão de que a

dimensão transorgânica do corpo aniquila seu caráter orgânico.

Para melhor compreensão dessa ideia, podemos pensar nos movimentos de

contração e expansão do corpo, como na inspiração e na expiração, na sístole e

diástole do coração, e nos movimentos de recolhimento e extensão de tronco e

membros122

. Fractais do próprio movimento de contração e expansão da matéria

no universo, essas dinâmicas nos lembram que o esvaziamento é condição para o

preenchimento, que esses processos acontecem ao longo do tempo e que não

existem irreversibilidades, nem perenidades. Se a impermanência123

é uma

característica da sociedade hoje, como nos lembra Favoreto (2006), devemos

atentar para o fato de que todo o movimento vem de uma situação de desequilíbrio

e que todo equilíbrio é cheio de movimento, de energia, de impermanência.

Completamos essa reflexão com as palavras de Klauss Vianna:

“Resumido em compressão e expansão, o movimento humano tanto é

reflexo do interior do homem quanto tradução do mundo exterior.

122

Pegando como exemplo a respiração, uma série de benefícios capazes de modificar nossa relação com o mundo podem ser mencionados,

entre eles a relativização das preocupações, angústias e certezas e uma atitude mais aberta a novas perspectivas, como mostra a reportagem “Aula de Yoga ensina a equilibrar o corpo e a mente”, da TV Globo. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=HDfCIE0zQjQ.

Acessado em 16 ago. 2013. 123

O argumento é trazido por Favoreto (2006, p. 7), em citação que faz de Zygmunt Bauman, ao refletir sobre os desafios que os artistas de

dança encontram para manterem uma frequência para o exercício cênico, o trabalho de pesquisa, a relação direta com o público: “Tudo está

agora sempre a ser permanentemente desmontado, mas sem perspectiva de nenhuma permanência. Tudo é temporário. E, por isso que

sugeri a metáfora da “liquidez” para caracterizar o estado da sociedade moderna, que, como os líquidos, se caracteriza por uma incapacidade de manter a forma. Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e convicções mudam antes que tenham

tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades ‘auto-evidentes’.” (BAUMAN, Z. A sociedade líquida. Caderno Mais!, Folha de

São Paulo, entrevista, 19 dez. 2003.)

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Tudo que acontece no universo acontece comigo, e com cada célula

do meu corpo. A espiral crescente, o universo, tem um ponto de

partida em cada um de nós , e é do nosso interior, da nossa

concepção de tempo e espaço, que estabelecemos uma troca com o

exterior, uma relação com a vida.” (VIANNA, 2005, p.101-103)

O corpo nos oferece subsídios até para compreender a necessidade de

novas perspectivas, que não as fundamentadas puramente na razão e originadas do

pensamento linear:

“A razão impõe a reta como caminho mais curto entre dois pontos,

mas nos esquecemos de que ela é tensa e dificilmente será harmônica,

no caso da musculatura humana. Quando o homem escolhe os

movimentos retilíneos e conduz seus músculos a um objetivo

predeterminado, anula a intuição, sobrepõe a racionalidade ao

instinto. Isso não aconteceria se fizesse a opção pela curva ou espiral,

na qual encontraria maior prazer em cada etapa do aprendizado, com

gradual aprofundamento e expansão da consciência.” (VIANNA,

2005, p.103)

Essa observação que se refere à experiência da dança contemporânea - mas

é igualmente verdadeira para a capoeira, por exemplo - nos ajuda a perceber que

dentre os ensinamentos da nossa carne entrelaçada com o mundo a partir de um

trabalho corporal está o de dar espaço para novas perspectivas do pensamento

humano, do próprio estar no mundo:

“Corpo e mente, corpo e pensamento, corpo e imagem constituem

obstáculos para as narrativas da ciência. Ao priorizarem as relações

sociais como foco analítico, as ditas humanidades esquecem-se de que

sentidos, sentimentos, imagens corporais integram e delimitam o

mundo da vida. Creditada ao paradigma cartesiano, essa dualidade

impede que uma hominescência124

– um diferencial da hominização –

seja posta em prática nos dias atuais.” (CARVALHO, 2008, p. 27)

No contexto da sustentabilidade, um exemplo de nova perspectiva para o

pensamento é da história ambiental, tal qual apresentado por Pádua (2010), que

propõe a reflexão sobre uma história não da humanidade, mas da biosfera, da qual

o homem é parte. Vale destacar aqui mais um fenômeno recursivo (Morin, 1994)

– tão recorrentes no habitar atópico -, onde o corpo é capaz de alimentar novas

124

Conceito de Michel Serres.

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práticas e reflexões e as novas formas de pensar e habitar também reverberam no

corpo:

“Se você chega ao ponto de integrar-se ao ritmo do universo, seu

mundo e seus limites também vão se alargando e sua musculatura se

alongando, ao contrário do que acontece no cotidiano comum, em que

as pessoas, pela repetição do dia-a-dia, reduzem gradativamente sua

vida, atrofiando os músculos.” (VIANNA, 2005, p. 103)

Assim, o quiasma do corpo com o mundo (Merleau-Ponty, 1968) tem no

corpo próprio seu indicador histórico e ontológico. O saber que emana desse

corpo é substrato para a germinação das mudanças em valores, estilos de vida e

estrutura social necessários ao florescimento de uma sociedade sustentável, que

cultiva de fato a Quadratura (Heidegger, 1954).

Algo que remete a uma espiritualidade no sentido de homens dignos de

deuses que dançam (Nietzsche, 1999), como nos permite compreender Garaudy

quando trata da dança de Shiva125

:

“(...) de início a dança é a imagem do jogo rítmico, fonte de todo o

movimento do ser; em seguida, libera o homem ilimitado da ilusão de

ser um indivíduo aprisionado nas fronteiras de sua pele; seu corpo e

seu ser são o universo inteiro finalmente, o “lugar” da dança, o

centro do universo, está no coração de todos os homens. (...) A dança

é então um modo total de viver o mundo; é, a um só tempo,

conhecimento, arte e religião. (...) Ela nos revela que o sagrado é

também carnal e que o corpo pode ensinar o que um espírito que se

quer desencarnado não conhece: a beleza e a grandeza do ato quando

o homem não está separado de si mesmo, mas inteiramente presente

no que faz.” (GARAUDY, 1980, p. 15-16)

125

O relato sobre a dança da divindade hindu associada à transformação é trazida por Garaudy a partir de relato do filósofo e historiador

indiano Ananda Coomaraswamy.

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6. Considerações finais

A sociabilidade conectiva e colaborativa condicionada pelas tecnologias digitais

reticulares é o meio no qual a sustentabilidade encontra as condições para contaminar e

transformar as características da vida humana que não são mais condizentes com os limites do

planeta e nem da própria sociedade.

Essa cumplicidade entre uma forma atópica de habitar e modos sustentáveis de

desenvolvimento, orientado à ideia de prosperidade desatrelada do crescimento, encontra no

corpo um ingrediente de intensificação das transformações que apoiam a sustentabilidade.

Falamos aqui na mudança de sensorialidade estimulada pelas tecnologias digitais

reticulares, que ajuda a abolir as fronteiras do conhecimento outrora indutoras da concepção

da vida humana separada e independente da natureza que provê as condições para seu

sustento. Falamos também do entrelaçamento com o mundo reticular que frutifica uma nova

forma de habitar, de cultivar a Quadratura, condicionando dinâmicas sociais de conectividade,

integração, colaboração e transparência. Dinâmicas capazes de modificar os fluxos

comunicativos de modo tão intenso que podem dar novo sentido à democracia e à

possibilidade do cidadão interferir, a partir das redes, nos rumos da vida da sociedade, sem a

intermediação obrigatória de instituições que atuam pela lógica dos interesses dissociados do

coletivo, do crescimento sem limites e do consumo.

Assim, o corpo que se comunica em rede, que percebe o mundo por suas conexões e

não por suas segmentações, que entende a importância dos fluxos que garantem a perpetuação

das condições de sustento da vida, é o mesmo que passa a estar no mundo como um actante

que cultiva relações conectivas, que dá passagem para e participa dos fluxos informativos

evidentes nas redes digitais, na sociabilidade presencial reticular, nos ciclos e processos da

natureza, nas potencialidades de florescimento humano.

É nesse sentido que a carne do corpo reticular, em quiasma com a carne do mundo

reticular, revela uma dimensão espontânea de engajamento na sustentabilidade.

O corpo da sensorialidade conectiva torna-se mais sensível ao próprio universo em

rede que o constitui e que o conecta ao universo reticular que ele habita e do qual é fractal.

Lançar a atenção e a propriocepção para nossa condição fractal é intensificar o

processo de transformação ao qual a sociedade se vê impelida pela crise ecossistêmica e das

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desigualdades sociais que caracterizam o mundo nesse início de século. Estamos tratando aqui

da sabedoria do corpo, das dimensões que ele revela sobre nosso estar no mundo, sobre a

contemplação de uma poesia que reside o “corpo mínimo” de modo similar à poesia do

“corpo imenso”, sobre dimensões de entrelaçamento com o mundo que vão além do consumo

e da acumulação material e dizem respeito a cultivar conexões tão vitais quanto a simbiose

entre os fluxos sanguíneos, a expansão e a contração da respiração, as habilidades cinéticas

que nos mantêm saudáveis e capazes de seguir adiante.

As conexões no universo corporal são tão vastas quanto a infinitude do cosmos e

lançar-se aos saberes que resguardam é reparar o equívoco de séculos de separação cartesiana

de “nós” com nossos corpos. A sensorialidade conectiva avessa às segmentações constitui a

ponte para reconhecer e aprender com o saber encarnado em nós mesmos, latente de um

movimento genuíno de autoconhecimento por técnicas corporais de propriocepção e de

mergulho interno capazes de edificar transformações tão complexas quanto as necessárias

para a perpetuação da espécie humana nesse momento de sua história na Terra altamente

gerador de entropia.

Falamos, portanto, de um fenômeno recursivo, em que transformações de percepção e

sensorialidade alimentam e são alimentadas pelas dinâmicas das tecnologias digitais

reticulares; e estimulam e são estimuladas por uma nova sociabilidade mais permeável aos

fluxos conectivos entre os seres humanos, a natureza e as tecnologias.

Processo esse que acontece pela conjunção entre a dinâmica espontânea e

engendradora da sustentabilidade do corpo no habitar atópico e o potencial de uma intenção,

uma atenção deliberada para esse corpo, que é capaz de indicar, intuir e incutir

transformações mais ousadas do que permitiria isoladamente a razão, fontes para novos

equilíbrios dinâmicos de nossas relações com a natureza, com as tecnologias e com os outros

seres humanos.

O saber do corpo é aquele que facilita a um só tempo conectar a noção de

espiritualidade a uma nova perspectiva científica, como da Economia Ecológica, de

interdependência e coevolução da economia, dos ecossistemas, dos seres humanos.

Após séculos de dominação do corpo por uma sensorialidade associada a tecnologias

frontais, indutoras de estímulos restritos, afastada da natureza e tão indiferente a ela que

parecia natural o ato de dominá-la, fragmentá-la e negligenciar suas conexões - do mesmo

modo como faziam a ciência e as instituições em relação ao próprio corpo -, estamos a

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desenvolver uma forma de habitar que cultiva o reticular, ligada a uma percepção que busca

as conexões, e a um corpo que concebe estar entrelaçado ao mundo. É uma oportunidade

preciosa na história humana. Aproveitar as emanações espontâneas dessa forma de habitar

para modificar as relações com a natureza e a sociedade, que parecem estar num estado limite,

é cultivar céu, terra, deuses e mortais. Buscar intencionalmente o corpo como guia nesse

processo é deixar-se levar pelo mateiro que revela os caminhos da floresta densa, o grafiteiro

que encontra as brechas na cidade e a reinventa para o espanto e encantamento de todos, o

hacker que afrouxa os nós da rede para deixar liberta sua magia conectiva e recriadora.

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