corpo e carne - dunn - aspectos da antropologia paulina
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Faculdade Unida Teologia do Novo Testamento 1
Corpo e Carne
Aspectos da antropologia paulina
(DUNN, James D. G. A Teologia do Apstolo Paulo. So Paulo: Paulus, 2003, p. 103-106)
Introduo A antropologia paulina segue a tradio cultural e teolgica hebraica, e
no o dualismo da tradio filosfica e religiosa do mundo helnico. O ser
humano visto como uma totalidade indivisvel, mas plural, ou seja, no se
restringe dimenso fsica, incluindo tambm uma dimenso no-fsica, a que
costumeiramente chamamos de espiritual. No faz sentido, para a teologia
paulina, perguntar se o ser humano composto de duas ou de trs
substncias corpo e alma, ou corpo, alma e esprito. No pensamento judaico
e paulino, o ser humano no tem duas substncias ao contrrio, um corpo
animado de vida pelo Esprito de Deus. Isso fica evidente no relato da criao
em Gn 2: Deus fez Adam (termo hebraico que significa ser humano, mas
tambm o nome prprio do primeiro ser humano criado) do barro (em
hebraico, o termo adamah, em um interessante jogo de palavras o
humano , literalmente, terreno) e ao soprar nele o Seu (de Deus) esprito,
adam se tornou um ser vivo (literalmente no hebraico garganta vivente
sendo que a palavra hebraica nefesh, garganta, comumente traduzida por
psique, alma, em textos gregos e em verses modernas).
Como entender, ento, textos paulinos que usam os termos corpo, alma
e esprito com sentidos diferentes? Devemos entend-los como expressando
dimenses do ser humano integral, e no como substncias diferentes que,
quando juntadas, formam a pessoa1. O mesmo vale para outras duplas
1 Na disciplina de Introduo Filosofia, um dos temas discutidos foi o do ser humano em que tratamos das
definies filosficas do monismo e do dualismo. Para entender melhor este pargrafo sobre a antropologia paulina ser bom rever esse tpico. Para aprofundar o conhecimento deste tema, voc pode consultar as obras indicadas na bibliografia desta disciplina, especialmente os verbetes do Novo Dicionrio Internacional de
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contrastantes como, por exemplo, mente e corao, alma e esprito essas
palavras no devem ser entendidas conforme a mentalidade metafsica grega
antiga substncias em si mesmas mas devem ser entendidas conforme a
mentalidade hebraica, como expressando diferentes aspectos e relaes do
ser humano em sua integralidade.
Outra caracterstica da antropologia paulina a pecaminosidade huma-
na, conceito que Paulo tambm traz de sua cultura judaica, mas o rel a partir
de sua compreenso do mistrio de Cristo. O ser humano sem Cristo des-
crito por Paulo como uma pessoa carnal. Carne, ento, no tem o sentido
literal da carne fsica do corpo, mas um sentido figurado: a pessoa afastada
de Deus. A seguir, voc ler trechos da teologia paulina de James Dunn, um
evanglico ingls, especialista no pensamento paulino, em que ele apresenta
sua compreenso do sentido dos termos corpo e carne em Paulo.
Soma e sarx2
Estamos agora em condies de esclarecer a relao entre esses dois
termos em Paulo. Isso no de importncia menor, pois a coincidncia e a
diferena entre eles na teologia de Paulo tornam o seu uso altamente distinto.
Entretanto, surpreendentemente, a significao da sua antropologia nesse
ponto, como tambm suas potenciais ramificaes, foram largamente ignora-
das na teologia subseqente a um custo considervel.
O primeiro ponto o prprio fato de que Paulo faz distino entre soma
e sarx. O pensamento hebraico, ao contrrio, tinha apenas a nica palavra
basar, que geralmente significa carne. Conforme j foi assinalado, no h
equivalente direto para soma em hebraico. Por outro lado, no pensamento
grego, soma e sarx, corpo e carne, eram sinnimos muito mais prximos
que em Paulo. Daqui, mais uma vez, a tendncia mais dualista da antropolo-
Teologia do Novo Testamento: corpo, alma, esprito, corao.
2 Soma a palavra grega normalmente traduzida por corpo. Sarx a palavra grega normalmente traduzida por carne.
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gia grega, com os termos corpo e carne capazes de expressar, mais estrei-
tamente equivalentes, um sentido de aprisionamento no mundo material.3
Mas Paulo faz uma distino muito mais clara entre as duas palavras.
Em termos simplificados, o espectro do sentido de soma na maioria dos ca-
sos moralmente neutro, enquanto o espectro do sentido de sarx na maior
parte dos casos moralmente negativo. [...] Paulo usa soma com sentido forte-
mente negativo, quando fala do corpo de pecado (Rm 6,6) e do corpo desta
morte (Rm 7,24), ou quando fala de fazer morrer as obras do corpo (Rm
8,13). Assim tambm sarx pode ser usado de maneira completamente neutra
(como em Cor 10,18). Que h alguma equivalncia entre os dois termos tam-
bm indica-o a substituio de sarx por soma em Rm 8,13 e 1Cor 6,16. Mas a
nota negativa, quando se liga a soma, geralmente dada por frase qualificati-
va ou por adjetivo: corpo de pecado (Rm 6,6), corpo mortal (Rm 8,11). Ao
passo que sarx mais regularmente negativa sem qualquer frase ou adjetivo
qualificativo. Aqui so interessantes as duas frases em Cl 1,22 e 2,11, nicas
nas cartas paulinas, que falam do corpo de carne de Cristo em que a prpria
sarx funciona como o termo qualificativo para enfatizar a crua fisicidade da
morte corporal de Jesus.
Mas como no caso do termo soma, a passagem mais reveladora ,
mais uma vez, 1Cor 15,35-30. Aqui o ponto da significao a distino clara
entre uma carne e sangue [que] no podem herdar o reino de Deus (15,50) e
um corpo que o far (15,44). Corpo, o termo mais neutro, pode ser transfor-
mado e ressuscitado. A carne no pode. H redeno para o corpo (Rm
8,23), mas a salvao no ltimo dia envolve a dissoluo ou destruio da
carne (1Cor 5,5). Em resumo, e novamente em termos um tanto simplificados,
corpo denota um ser no mundo, enquanto carne denota um pertencer ao
mundo. Para Paulo, os seres humanos sero sempre seres corporificados por
3 Conforme foi estudado na Introduo ao Novo Testamento, na mentalidade grega era comum a idia de que a
matria (corpo, carne) aprisionava a alma, a parte imaterial e mais verdadeira do ser humano. Da, a crena na imortalidade da alma, e no na ressurreio do corpo.
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definio. Mas o clmax da salvao final o deixar para trs a carne com to-
da a sua fraqueza e corruptibilidade inerente.
[...] Qual a significao teolgica desta distino entre soma e sarx,
um tanto construda mas clara, em Paulo? Provavelmente a resposta que
ele tentou combinar elementos da antropologia hebraica e da antropologia
grega numa nova sntese. Por um lado, afirmou a concepo hebraica mais
holstica da corporificao humana, com o que isso significava para a corpo-
reidade e a socialidade da existncia humana como parte integrante do fato
de ser humano. Ao mesmo tempo reconheceu algo de importante na atitude
grega mais negativa em relao existncia na carne, que tambm queria
afirmar. Todavia, para Paulo o fator negativo no foi simplesmente a existncia
corporal em si, mas o carter efmero da existncia humana como existncia
em carne que tende para o desejo e a deteriorao e que quando o indivduo
se concentra nela e se apega a ela, subverte essa existncia como existncia
perante Deus e para Deus. A verdade que ele podia afirmar ambos os as-
pectos, e a dupla afirmao evitava tanto uma supervalorizao simplista co-
mo uma subvalorizao do fsico. Alm disso, do ponto de vista de estratgia
apologtica e missionria, tinha assim uma base comum tanto com judeus
como com gregos nas suas diferentes perspectivas sobre a realidade e assim
podia esperar ter receptividade de ambos para o evangelho enquanto se rela-
cionava com a existncia neste mundo.
Em termos mais gerais, podemos dizer que a distino de Paulo entre
soma e sarx possibilitava a afirmao positiva da realidade criada e da criao
humana bem como da interdependncia da humanidade no seu ambiente cri-
ado. Lamentavelmente, porm, esse potencial na teologia de Paulo no tar-
dou a perder-se quando se perdeu de vista essa distino. J com Incio de
Antioquia a necessidade de combater o dualismo gnstico exigiu a insistncia
em que foi a carne de Jesus que foi ressuscitada (Esmirnenses 3). E subse-
qentemente na helenizao do pensamento cristo os aspectos negativos da
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carnalidade tornaram-se cada vez mais ligados corporeidade humana e em
grande medida funo criativa da sexualidade. O que Paulo reprovara a
denigrio4 (sic) das relaes sexuais por si mesmas tornou-se uma carac-
terstica da espiritualidade crist na Antigidade tardia. A concupiscncia, o
desejo sexual, veio a ser considerada m por definio. A virgindade foi exal-
tada acima de todas as outras condies humanas. Pensava-se que o pecado
original era transmitido pela procriao humana. Os resultados dessa denigri-
o (sic) da sexualidade continuam a distorcer as atitudes crists em relao
ao sexo at hoje. A recuperao da distino de Paulo entre corporeidade
humana, que deve ser afirmada e ser motivo de regozijo, e a carnalidade hu-
mana, contra a qual sempre necessrio guardar-se e prevenir-se, poderia
representar contribuio importante para a atual reflexo teolgica nessa -
rea.
4 O texto da edio da Paulus usa um termo que comporta em si uma atitude racista, embora me parea claro que
no haja no texto essa inteno racista. O verbo denegrir, porm, deveria ser banido do nosso vocabulrio.