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tr. UM ESTUDO DAS CARACTERÍSTICAS DOS PRIMÓRDIOS DO CRISTIANISMO

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tr.

UM E S T U D O DAS CARACTERÍSTICAS D O S P R IM Ó R D IO S D O CRISTIANISM O

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0 livro Unidade e Diversidade no N T de James Dunn apresenta-se como um repositório dos melhores resultados da ciência bíblica do Novo Testamento e suas aplicações às reflexões mais urgentes da Teologia e da Pastoral. Concebido para ser um intermediário entre as disciplinas: Introdução ao Novo Testamento e Teologia do NT, a pesquisa de James Dunn dá continuidade e, ao mesmo tempo, explora mais profundamente temas que foram apenas observados na obra de seu mestre DoctorFather C. F. D. Moule: As Origens do Novo Testamento, publicada em Português pela Editora Paulinas em 1979 e que está sendo reeditada pela Editora Academia Cristã.

Seu conteúdo pode ser captado até mesmo pelo leitor não acostumado com as pesquisas bíblicas. Tal leitor do Novo Testamento será confrontado com uma série de escritos cuja diversidade inclui autores e gêneros literários que revelam a ele a riqueza da forma e da mensagem cristã desde as origens do cristianismo. Entretanto, a leitura atenta e cuidadosa mostra as diferenças entre os autores e seus respectivos enfoques, sendo que essas diferenças suscitam as seguintes perguntas: diante dessa multiforme diversidade: há também uma unidade?

Pode-se perceber um fio condutor a perpassar toda essa coleção de literatura denominada canônica? Para responder essas questões foram avaliados esses autores e suas obras pelo exame da cristologia, ministério, sacramentos, cristianismo judaico, cristianismo helenístico, cristianismo apocalíptico, cristianismo entusiástico, catolicismo primitivo, cristianismo e judaísmo, e a perenidade do cânon do NT, que são apenas alguns dos temas abordados.

James Dunn trabalha com uma rica tradição de estudos bíblicos em que esses temas já foram tratados, mas agora ele lhes dá um novo alento organizando-os em uma forma de manual. Deve-se ainda enfatizar que sua obra visa estabelecer temas para um colóquio intereclesiástico e intra-eclesiástico. Tal proposta é urgente, pois considera a expressão caleidoscópica das denominações cristãs no Brasil; sendo que é uma contribuição importante para testemunhar para aqueles que buscam pelo mosaico das visões individualistas eclesiásticas sem compreender o que realmente acontece. Unidade e Diversidade é uma obra apaixonada e apaixonante; um leitor engajado na trajetória cristã será fortalecido e estimulado por ela a seguir adiante em seu papel de testemunhar a mensagem salvífica revelada em nosso Senhor Jesus Cristo.

José Roberto C. Cardoso fez seu doutoramento em História e Literatura do Mundo Bíblico pela UMESP. É professor de Novo Testamento na Escola Superior de Teologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie e do Seminário Presbiteriano do Sul, Campinas, S P .

ACADEMIACRISTÃ

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Próximos lançamentos:Dicionário de Jesus e dos Evangelhos Editores: JoeIB.Green,Scot McKnight, I.Howard Marshall

Cristologia Paulina Gordon Fee

Teologia do Novo Testamento Udo Schnelle

Paulo Vida e Pensamento Udo Schnelle

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UNIDADE E DIVERSIDADE NO NOVO TESTAMENTO

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JAMES D. G. DUNN

UNIDADE E DIVERSIDADE NO NOVO TESTAMENTO

UM ESTUDO DAS CARACTERÍSTICAS DOS PRIMÓRDIOS DO CRISTIANISMO

Santo André

2009

ACADEM IACRISTÃ

Page 7: 207805161 Unidade e Diversidade No Novo Testamento James Dunn

© Editora Academia Cristã © SCM Press

Título original:Unity and Diversity in the New Testament

Supervisão Editorial:Luiz Henrique A. Silva

Paulo Cappelletti

Layout, e arte final:Pr. Regino da Silva Nogueira

Tradução:José Roberto C. Cardoso

Revisão:Silvana Perrella Brito

Assessoria para assuntos relacionados a Biblioteconomia: Neusa Pedroso Mateus Gomes

D923 Dunn, James D. G.Unidade e diversidade no Novo Testamento: Um estudo das características dos primórdios do cristianismo./ James D. G. Dunn; tradução: José Roberto C. Cardoso - Santo André : Editora Academia Cristã Ltda, 2009.

Título original: Unity and Diversity in the New Testament

16x23 cm: 694 páginas

ISBN 978-85-98481-30-2

Bibliografia

1. Bíblia-NT - Teologia 2. Cristologia 3. Cristianismo Judaico 4. Cristianismo I Título

CDU 225.017

índice para catálogo sistemático:

1 - Novo Testamento - Teologia - 225.017

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer forma ou meio eletrônico e mecânico, inclusive através de processos xerográficos, sem permissão expressa da editora (Lei n2 9.610 de 19.2.1998).

Todos os direitos reservados à

Editora A cademia Cristã LtdaRua Vitória Régia, 1301 - Santo André Cep 09080-320 - São Paulo, SP - Brasil Fonefax (11) 4424-1204 / 4421-8170 Email: [email protected] Site: www.editoraacademiacrista.com.br

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SUMARIO

ABREVIATURAS...........................................................................................09

PREFÁCIO.......................................................................................................13

APRESENTAÇÃO À 3a EDIÇÃO.............................................................. 17Um olhar retrospectivo........................................................................... 17Por que uma terceira edição?.................................................................19O capítulo ausente....................................................................................21Parte I I .........................................................................................................25Conclusões e reflexões finais..................................................................31

APRESENTAÇÃO À 2a EDIÇÃO.............................................................. 37

Capítulo I - INTRODUÇÃO........................................................................63§ 1. A "Ortodoxia" é um Conceito Significativo Dentro do Período

do Novo Testamento?........................................................................... 63

Primeira Parte Unidade na Diversidade?

Capítulo II - KERYGMA OU KERYGMATA?........................................ 75§ 2. Introdução................................................................................................ 75§ 3. O Kerygma de Jesus.............................................................................. 78§ 4. O Kerygma em Atos.............................................................................. 82§ 5. O Kerygma de Paulo............................................................................. 87§ 6. O Kerygma de João................................................................................ 94§ 7. Conclusões............................................................................................... 97

Capítulo III - FÓRMULAS CONFESSIONAIS PRIMITIVAS............103§ 8. Introdução.............................................................................................. 103

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U n id ad e e D iversidade

§ 9. Jesus é o Filho do Homem............................................................... 106§ 10. Jesus é o Messias................................................................................ 113§ 12. Jesus é o Filho de Deus......................................................................118§ 12. Jesus é Senhor......................................................................................125§ 13. Os Lugares Vivenciais das Fórmulas Confessionais

Primitivas............................................................................................. 131§ 14. Conclusões...........................................................................................133

Capítulo IV - O PAPEL DA TRADIÇÃO................................................137§ 15. Introdução............................................................................................ 137§ 16. "A Tradição dos Anciãos"............................................................... 139§ 17. Tradições das Comunidades Primitivas....................................... 144§ 18. Tradições a Respeito de Jesus......................................................... 149§ 19. Conclusões........................................................................................... 158

Capítulo V - O USO DO ANTIGO TESTAMENTO.............................163§ 20. Introdução............................................................................................ 163§ 21. A Exegese Judaica no Tempo de Jesus......................................... 165§ 22. Exegese Cristã Primitiva do Antigo Testamento....................... 171§ 23. Citações Pesher.....................................................................................176§ 24. Princípios de Interpretação............................................................. 179§ 25. Conclusões........................................................................................... 188

Capítulo VI - CONCEITOS DE MINISTÉRIO...................................... 191§ 26. Introdução............................................................................................ 191§ 27. Jesus e Seus Discípulos.....................................................................192§ 28. Ministério na Comunidade Primitiva........................................... 195§ 29. O Ministério nas Igrejas Paulinas...................................................199§ 30. Em Direção a Inácio........................................................................... 205§ 31. A Alternativa Joanina........................................................................209§ 32. Conclusões...........................................................................................214

Capítulo VII - PADRÕES DE ADORAÇÃO......................................... 219§ 33. Introdução............................................................................................219§ 34. Diversidade de Atitudes e de Formas.......................................... 220§ 35. Hinos Cristãos Primitivos.................................................................229§ 36. "Pan-Liturgismo"?............................................................................. 240§ 37. Conclusões....................................>..................................................... 249

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S um ário

Capítulo VIII - OS SACRAMENTOS...................................................... 253§ 38. Introdução............................................................................................ 253§ 39. O Batismo............................................................................................. 255§ 40. A Ceia do Senhor............................................................................... 267§ 41. Os Sacramentos no Quarto Evangelho......................................... 275§ 42. Conclusões........................................................................................... 279

Capítulo IX - O ESPÍRITO E EXPERIÊNCIA........................................ 283§43. Introdução............................................................................................ 283§ 44. Cristianismo Entusiástico.................................................................286§ 45. A Experiência Religiosa de Jesus....................................................295§ 46. A Experiência Religiosa de Paulo...................................................302§ 47. Caminhos Divergentes...................................................................... 309§ 48. Conclusões........................................................................................... 313

Capítulo X - CRISTO E CRISTOLOGIA.................................................317§ 49. Introdução............................................................................................ 317§ 50. A Continuidade entre o Jesus Histórico e o Cristo

Kerygmático........................................................................................319§ 51. "Um Jesus, Muitos Cristos?"........................................................... 333§ 52. Conclusões........................................................................................... 347

Segunda Parte Diversidade na Unidade?

Capítulo XI - CRISTIANISMO JUDAICO..............................................357§ 53. Introdução............................................................................................ 357§ 54. Quão "Ortodoxo" Era o Cristianismo Palestinense?.................360§ 55. O Cristianismo Judaico Dentro do Novo Testamento:

(1) Adesão à Lei...................................................................................370§ 56. O Cristianismo Judaico Dentro do Novo Testamento:

(2) Exaltação de Tiago e Depreciação de Paulo...........................379§ 57. Cristianismo Judaico Dentro do Novo Testamento:

(3) Cristologia Adocionista...............................................................386§ 58. Conclusões........................................................................................... 390

Capítulo XII - CRISTIANISMO HELENÍSTICO...................................397§ 59. Introdução............................................................................................ 397

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U n id ad e e D iversidade

§ 60. "O Primeiro Cisma Confessional na Históra da Igreja"...........398§ 61. Tendências Gnósticas Dentro do Cristianismo do Século 1..... 407§ 62. A "Predisposição Gnosticizante" de Q ?....................................... 419§ 63. Paulo - "O Maior de Todos os Gnósticos"?.................................425§ 64. Foi João "Culpado" de "Docetismo Ingênuo"?.......................... 437§ 65. Conclusões........................................................................................... 449

Capítulo XIII - CRISTIANISMO APOCALÍPTICO..............................453§ 66. O Que é "Apocalíptica"?...................................................................453§ 67. "Apocalíptica - A Mãe de Toda a Teologia Cristã"?.................462§ 68. Literatura Apocalíptica no Novo Testamento.............................473§ 69. Conclusões...........................................................................................485

Capítulo XIV - CATOLICISMO PRIMITIVO........................................ 493§ 70. O que é "Catolicismo Primitivo"?..................................................493§ 71. O Desvanecimento da Esperança da Parusia,

"A Expectativa Iminente".................................................................498§ 72. A Institucionalização Gradual........................................................ 506§ 73. Cristalização da Fé em Formas Estabelecidas.............................516§ 74. Conclusões........................................................................................... 521

Capítulo XV - A AUTORIDADE DO NOVO TESTAMENTO..........525§ 75. Sumário................................................................................................ 525§ 76 O cânon Possui uma Função Contínua?....................................... 531

APÊNDICE - Unidade e Diversidade:....................................................561Uma Perspectiva Neotestamentária...................................................5611. Introdução............................................................................................ 5612. Unidade Fundamental......................................................................5643. Tensão Fundamental.........................................................................5714. Diversidade Fundamental............................................................... 5785. Conclusões...........................................................................................586

BIBLIOGRAFIA............................................................................................591

ÍNDICE DE AUTORES............................................................................... 631

ÍNDICE DOS TEXTOS BÍBLICOS .....................................................647' 4

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ABREVIATURAS

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Arndt-Gingrich

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ETEvThExpTFRP

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Apostolic History and the Gospel: Biblical and Historical Essays Presented to F. F. Bruce, ed., W. W. Gasque e R. P. Martin, Paternoster 1970 W. F. Arndt e F. W. Gingrich, A Greek-English Lexicon of the New Testament, ET Chicago 1957 Bulletin of the John Rylands Library The Background of the New Testament and its Escha- tology: Studies in Honour of C. H. Dodd, ed., W. D. Davies e D. Daube, Cambridge University Press 1954Biblische Zeitschrift Catholic Biblical QuartelyCurrent Issues in New Testament Interpretation, ed., W. Klassen e G. F. Snyder, SCM Press 1962 Christ and Spirit in the New Testament: Studies in Honour of C. F. D. Moule, ed., B. Lindars e S. S. Smalley, Cambridge University Press 1973 editorEvangelisch-Katholischer Kommentar zum Neuen TestamentE. Käsemann, Essays on New Testament Themes, ETSCM Press 1964English translationEvangelische TheologieExpository TimesThe Future of our Religious Past: Essays in Honour of Rudolf Bultmann, ed., J. M. Robinson, SCM Press 1971Eusebius, Historia Ecclesiastica

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10 U n id ad e e D iversidade

Hennecke Apocrypha

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E. Hennecke, New Testament Apocrypha, ed., W. Schneemelcher, ET ed., R. McL. Wilson, SCM Press, vol. 1 ,1973, vol. II, 1974 Handbuch zum Neuen Testament Harvard Theological ReviewThe Interpreter's Dictionary of the Bible, Abingdon 1962,4 vols.IDB Supplementary Volume 1976 Journal of Biblical LiteratureJesus Christus in Historie und Theologie: Neutes­tamen tliche Festschrift für H. Conzelmann. ed., G. Strecker, Tübingen 1975 Jounalfor the Study of Judaism Journal for the Study of the New Testament Journal for the Study of the Old Testament Journal for Theology and Church Journal of Theological Studiel Jesus und Paulus: Festschrift für W. G. Kümmel, ed., E. E. Elis e E. Gässer, Göttingen 1975 Kritisch-exegetischer Kommentar über das Neue Testament Kerygma und Dogma SeptuagintLexikon für Theologie und Kirche Mélanages Bibliques en hommage au R. P. Béda Rigaux, ed., A. Descamps e A. de Halleux, Gembloux 1970New English BibleThe New International Dictionary of New Testament Theology, Paternoster 1975s Novun Testamentum new seriesDas Neue Testament Deutsch New Testament Essays: Studies in Memory of T. W. Manson, ed., A. J. B. Higgins, Manchester Univer­sity Press 1959Neues Testament und Kirche: für R. Schnackenburg, ed., J. Gnilka, Fjreiburg 1974

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A breviatura s 11

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Strack-Billerbeck

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E. Käsemann, New Testament Questions of Today,ET SCM Press 1969New Testament StudiesparalelosRevue BibliqueDie Religion in Geschichte und Gegenwart, 3a ed., 1957ssSociety of Biblical LiteratureSociety of Biblical Literature Monograph SeriesScottish Journal of TheologyStudies in Luke Atcs, ed., L. E. Keck e J. L. Martyn,Abingdon 1966, e SPCK 1968Supplement to Novum TestamentumSociety for New Testament Study MonographSeriesH. L. Strack e P. Billerbeck, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch, 1920ss Theological Dictionary of the New Testament, ET of Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament, ed., G. Kittel e G. Friedrich, 1933ss Theologische Rundschau Theologische ZeitschriftWissenschaftliche Untersuchungen zum Neuen TestamentZeitschrift für Kirchengeschichte Zeitschrift für Katholische Theologie Zeitschrift für die neutestamentliche Wissenschaft Zeitschrift für Theologie und Kirche

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PREFACIO

Em 1969 tive o privilégio de ser membro de um grupo de estu­do em Edimburgo que gastou algum tempo discutindo as questões suscitadas pela obra de W a lte r Bauer, Rechtgläubigkeit und Ketzerei im ältesten Christentum (2a ed., 1964, ET Orthodoxy and Heresy in Earliest Christianity, 1971). No verão de 1970 eu participei de outro grupo de estudo na Tyndale House, Cambridge, que se ocupou do tema Diversidade e Desenvolvimento na Teologia do NT. O interesse que esses seminários suscitaram em mim resultou em uma série de dez pre- leções sobre a matéria da Unidade e Diversidade no NT como a seção final da Parte I de um curso para a graduação de Teologia do NT na Universidade de Nottingham em 1971-72. Após três anos, mudan­ças curriculares tornaram viável transferir o que já era concisamente os conteúdos da Parte II (terceiro ano da graduação). Tais preleções estão agora escritas com os detalhes necessários e a documentação devida.

O livro tem diversos propósitos. Primeiro, busca explorar os temas suscitados por Bauer a respeito do NT. Podemos falar com proprieda­de de "ortodoxia e heresia no cristianismo primitivo"? O que é "unidade do NT"? Quão ampla é a diversidade dentro do NT? Os temas são esclarecidos e acentuados na Introdução. Há muitas contribuições so­bre a temática, é claro, mas elas são muito breves e muito populares, ou muito limitadas e muito especializadas. O que torna grandemente necessário é um simples estudo que una os diferentes aspectos da pes­quisa com suficientes detalhes dentro das capas de um só livro. E o que tento fazer nas páginas seguintes. Espero que o tema da unidade e da diversidade do NT alcance um foco mais nítido, e que suas implicações e ramificações se tornem objeto para pesquisas e debates posteriores. Tomei a liberdade de incluir algumas considerações no encerramento de diversos capítulos relacionando as conclusões à época atual, e esboço

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alguns dos corolários para nossa compreensão da "Autoridade do NT" na seção final (§76).

Segundo, busca-se aproximar as lacunas que, muito freqüente­mente, existem entre estudo crítico literário dos documentos do NT, inquirições histórico sociológicas dos inícios do cristianismo e a pes­quisa das crenças e práticas dos cristãos do séc. I. Somente quando todas essas disciplinas diferentes estão integradas podemos ter algu­ma esperança real de captar o interior das situações que deram surgi­mento aos escritos do NT; somente assim podemos começar a alcançar a realidade do cristianismo do séc. I. Um único estudo, é claro, não poderá fazer totalmente justiça à complexidade da realidade histórica. Mas o tema escolhido, Unidade e Diversidade no NT, fornece tanto uma ferramenta de análise como um foco para síntese que nos capacita a penetrar com alguma profundidade e a sustentar os diferentes temas e discernimentos conjuntamente. Para enfatizar o caráter entrelaçado das várias discussões tenho favorecido razoavelmente as referências cruzadas entre os capítulos.

Terceiro, como um subproduto dos dois propósitos anteriores, o livro também deve servir como um tipo de introdução avançada ao NT e ao cristianismo do séc. I. Introduções ao NT, temos muitas. Mas quando o estudante completa sua tarefa em Crítica das Formas, nas questões sobre quem escreveu o que, quando, por que e onde, sobre me­todologia exegética, etc., ele, com freqüência, tem pouca escolha para aprimorar suas opiniões e para se ocupar de áreas particulares, mo­nografias e comentários especializados. O que é preciso é um volume que forneça uma visão panorâmica de áreas e temas que vão além do percurso usual de questões introdutórias, que apresenta o estudante avançado problemas particulares sem requerer dele, uma vez mais, emaranhar-se em uma discussão massiva cheia de pormenores, mas que o estimule a sentir a realidade das Origens Cristãs por si mesmo em um nível mais profundo. É minha esperança que a presente obra satisfaça tal necessidade e fornecerá tal estímulo. É dedicada ao profes­sor C. F. D. Moule com o mais profundo respeito e terna afeição - seu Birth of the New Testament (1962) foi algo pioneiro nesta área.

O material que se segue foi escrito com vistas principalmente ao terceiro ano da graduação que já possui dois anos completos nos estu­dos do NT. Sem dúvida, pode servir também como um texto ou ponto de partida em alguns programas de> mestrado. Ademais, eu espero que

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P refá cio 15

não seja irrelevante aos estágios superiores do estudo especializado, enquanto que ao mesmo tempo os detalhes operativos e os temas que suscita não devem estar além da competência do "leigo instruído". Cada capítulo pode por si mesmo fornecer a função de trampolim para um estudo independente, mesmo que tudo esteja ligado pelo tema global.

Brinquei com a idéia de apresentar o material em um formato mais popular, como Ernst Kàsemann fez em Jesus Means Freedom [Jesus significa liberdade] (ET 1969). Mas sem documentação e argumenta­ção, declarações controvertidas podem, rapidamente, ser ignoradas e descartadas. Ao refletir melhor estender para um formato que forne­cesse detalhes suficientes para indicar as bases e as sustentações de minhas conclusões como se espera de colegas especialistas. Ao mesmo tempo, visto que a área coberta é tão grande eu esperarei tratar de cada objeção ou discutir cada interpretação alternativa, seja no texto, seja nas notas. Portanto, tentei de uma maneira que não fosse geral, uma concessão satisfatória - reduzindo as notas a um mínimo necessário, mas oferecendo suficiente variedade na bibliografia para capacitar os estudantes a chegar por si mesmo às alternativas e alcançar suas pró­prias conclusões.

Visto que o livro objetiva principalmente os graduandos limitei a bibliografia de língua inglesa ou aquelas em vias de tradução. As únicas exceções a que tenho me permitido são os estudos clássicos e as recentes contribuições de alguma importância. Pela mesma razão evi­tei o uso do grego no texto e nas notas. Embora o estudo avançado do NT não possa progredir muito sem o conhecimento operante da língua original, o estudante sem o grego não é menos incapaz de alcançar a compreensão dos temas históricos e teológicos estudados nas páginas seguintes.

Um livro como este deve muito aos comentários e conselhos de outros. Desejo aqui expressar minha gratidão aos membros dos grupos originais de estudo em Edimburgo e em Cambridge, e também aos meus alunos nos diversos anos cujas questões e discussões auxiliaram e salientaram os temas e eliminaram diversas fraquezas. A maior parte dos meus sinceros agradecimentos vão para aqueles que deram seu valioso tempo para comentar um rascunho inicial do livro no todo ou em parte - ao Dr. G. I. Davies e ao Rev. S. G. H a ll, meus colegas em Nottingham, ao Professor Moule de Cambridge, que também bondo­

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samente me permitiu ler seu Origin of Christology (1977) em estágio de prova, e particularmente a Robert M organ de Oxford e o Dr. Graham Stanton, Professor efetivo do King's College, Londres. Acima de tudo o encorajamento e consideração de minha esposa me capacitaram a sustentar uma agenda mínima quando homens mais sábios, provavel­mente, teriam optado por um passo mais lento. Por último, mas não em menor medida, agradeço a minha filha caçula, Fiona, por não ter cortado mais que seis páginas de texto datilografado no último Natal- "são flocos de neve, papai"!

James D. G. Dunn (1976)

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APRESENTAÇÃO A 3â EDIÇÃO

Um olhar retrospectivo

Meu interesse no tema da unidade e diversidade no NT data dos meus tempos de novato no estudo do NT. Eu sempre achei fascinan­te o caráter do material partilhado pelos três evangelhos. Unidade e diversidade descrevem bem esse caráter. Pois há, claramente, uma unidade na apresentação: o mesmo Jesus sendo apresentado em ter­mos muito similares, freqüentemente, mais ou menos com as mesmas palavras. Mas as três apresentações são deveras diferentes - diferentes na estrutura interna e nos detalhes de seu conteúdo. Logo percebi que não ganharia nada negando esse caráter, fosse por ignorar a diversi­dade, ou por buscar espremê-lo em uma unidade rigorosamente mais definida. Ao contrário, ignorar ou negar o caráter do texto escriturís- tico é recusar aceitá-lo como ele é, e pode-se muito bem não entender algo importante de seu caráter santificado: a saber, que o Evangelho de Jesus é multiforme quando se endereça as diferentes situações; e que insistir sobre um só testemunho autêntico para Jesus é operar contra a própria capacidade do Evangelho de falar diferentemente a pessoas diferentes, e assim amordaçar sua palavra1.

Uma segunda influência antiga foi a confrontação com o caráter do início do cristianismo, quando comecei a preparar uma disciplina universitária sob esse título. Para tal estudo, rapidamente, vi-me dian­te dos traços que levaram famosamente F. C. Baur a encarar a história do cristianismo primitivo como um conflito maciço e de longa duração

1 Uma das mais gratificantes (e repetida) experiências de meu magistério foi par­ticipar de seminários com a obra Gospel Parallels de B. H. T hrockmorton , Nelson,2a ed., 1957, 5a ed., 1992, com a tarefa de (a) listar as diferenças tão cuidadosa­mente quanto possível, e (b) sugerir explicações para elas. O som das janelas mentais se abrindo era quase audível.

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entre o cristianismo petrino e o cristianismo paulino2. 0 traço-chave, bem atestado pelas cartas de Paulo, era a tensão que obviamente prevalecia entre os cristãos judeus e a missão de Paulo aos gentios. Aqui havia, novamente, abundante evidência de unidade e diversidade: unidade no que eles pregavam: o Evangelho de Jesus Cristo; diversidade nos termos em que Cristo era pregado; unidade ao considerar a herança de ambos crentes judeus e gentios partilhada pelo menos no AT, diversidade no modo que entendiam essa herança afetava seu discipulado.

Esses dois fatores iniciais continuaram a nutrir minha obra cons­tantemente. O caráter da tradição de Jesus, unidade na diversidade, es­tabilidade na variação, foram os principais estímulos por trás do meu mais recente estudo, Jesus Remembered3, em que eu tento explicar mais completamente como a unidade e diversidade que testemunham como os evangelhos sinóticos surgiram. E o tema judeu/gentio ou a tensão foi um estímulo constante em minha obra sobre Paulo, assim tenho tentado conciliar seu significado merecido em nossa compreensão da teologia de Paulo4, e em minha tentativa de explicar mais claramente como e porque foi que o cristianismo emergira da matriz do judaísmo do Segundo Templo5.

2 F . C. B a u r , Paul: The Apostle o f Jesus Christ, 1845 2 vols, W illia m s & Norgate 1873, 1875. M. D. G o u ld e r, Paul and the Competing Mission in Corinth, Hendrickson 2002, tentativas de sustentar a tese principal de B a u r resistem por outro século.

3 Christianity in the Making: Vol. I. Jesus Remembered, Eerdmans 2003; consulte tam­bém nota 44 mais adiante.

4 The Theology of Paul the Apostle, Eardmans/T&t. Clark 1998; The New Perspective on Paul, Mohr Siebeck 2005; também "Paul: Apostate or Apostle of Israel?", ZNW, 89,1998 pp. 256-71; "Who Did Paul Think He Was? A Study of Jewish Christian Identity", NTS, 45,1999, pp. 174-193; "The Jew Paul and his Meaning for Israel", emU. Schnelle & T. Söding, org., Paulinische Christologie: Exegetische Beiträge, H . H übner FS, Vandenhoek & Ruprecht 2000, pp. 32-46, reimpresso em T. L inafelt, org., A Shadow of Glory: Reading the New Testament after the Holocaust, Routledge 2002, pp. 201-15.

5 The Partings o f the Ways between Christianity and Judaism and their Significance for the Character o f Christianity, SCM Press 1991; também "Two Covenants or One? The Interdependence of Jewish and Christian Identity", em Geschichte - Tradition - Reflexion: Festschrift fü r Martin Hengel. III. Frühes Christentum, org. H. L ichtenberger, J. C. B. M ohr 1996, pp. 97-122 = "Zwei Bünde oder Einer? Die wechselseitige Abhängigkeit der jüdischen un christlichen Identität", em P. F iedler & G . D autzenberg , org., Studien zu einer neutestamentlichen Hermeneutik nach Auschwitz, Stuttgarter biblische Aufsatzbände 27, Kath. Bibelwerk 1999, pp. 115-54.

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A presen ta çã o à 3 a E d içã o ___________19

Unidade e Diversidade no Novo Testamento6, todavia, foi minha prin­cipal tentativa para esclarecer o fenômeno muito amplo da unidade e diversidade no NT e pensar mediante algumas de suas implicações. Como tal parece ainda ter muitas milhas para percorrer antes que seja necessário ou deva ser descartado. Assim respondi prontamente à sugestão da SCM Press para que eu preparasse uma terceira edição, pelo menos atualizar a bibliografia e contribuir com mais uma apre­sentação.

Por que uma terceira edição?

A segunda edição (1990), escrita sob vários constrangimentos, permitiu algumas atualizações e somente uma pequena parcela de reestruturação. E outros compromissos não me permitem dar ao cor­po do livro uma reelaboração completa para esta terceira edição. Para a maior parte eu não penso que importa muito. Para os capítulos da Parte I, em particular, eu estava conscientemente tentando trabalhar diretamente a partir do texto o tanto quanto possível. Isso quer dizer, não via o projeto, principalmente, como uma revisão da literatura se­cundária - isso rapidamente teria se tornado mais obviamente obso­leto, como é o destino de tais revisões. Minha preocupação era antes deixar o texto falar por si mesmo - dispor o caráter do material do NT em sua rica diversidade. O procedimento foi, simplesmente, uma extensão de meu procedimento ao lidar com os evangelhos sinóticos- documentar as diferenças entre os três evangelhos tão objetivamen­te quanto possível, e então refletir sobre seu significado. E visto que o texto permanece constante, seu caráter de unidade e diversidade também permanece constante, de modo que a maior parte da docu­mentação pode falar tão prontamente de uma geração a outra. Certa­mente, se eu escrevesse Unidade e Diversidade no Novo Testamento hoje, a linguagem seria diferente as referências à literatura secundária te­ria refletido o estado atual do debate das matérias do início do séc. XXI. Mas muito dos dados textuais e exemplos do NT provavelmente seriam os mesmos. Esses eram os textos cujo exame tomavam minha atenção conforme representavam em si mesmos mais claramente o

" SCM Press 1977.

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tema da unidade e diversidade. E eles ainda fazem isso. Assim um reescrever poderia ter sido muito trabalho extra com muito pouco para mostrar7.

De fato, para muitos dos capítulos da Parte I a literatura clássica sobre esses tópicos foram o produto das décadas intermediárias do séc. XX, e os debates que seguiram floresceram por somente uma década ou duas - a pregação apostólica (C. H. Dodd), as fórmulas confessionais pri­mitivas (O. Cullmann, W. Kramer), o papel da tradição (A. M. Hunter), o uso do AT (E. E. Ellis, B. Lindars), ministério (E. Schweizer, U. Brockhaus), adoração (G. Delling, K. Wengst), e sacramentos (G. R. Beasley-Murray, J. Jeremias). Igualmente, questões postas pelo borbulhar dos movimen­tos Pentecostais e Carismáticos a respeito da importância da experi­ência no NT têm permanecido ainda sem muito esclarecimento novo. Estudos subseqüentes refinaram ou reforçaram muitos dos temas já claros, e isso se refletirá na bibliografia atualizada adicional; mas os temas examinados pelos estudos clássicos ainda apresentam questões de unidade e diversidade tão nitidamente quanto necessário e com fre­qüência mais nitidamente do que seus sucessores. Por exemplo, minha própria obra sobre o caráter oral da tradição de Jesus8 somente torna a questão de como a tradição funcionava mais complexa, mas o tema da unidade e diversidade é o mesmo. A abordagem sociológica continua muito breve desde a segunda edição9, e continua a iluminar muito as realidades históricas das quais o NT testifica, com 1 Coríntios forne­cendo o foco principal10, mas o tema daquilo que uniu tal diversidade social sob o nome de "cristão" é ainda principalmente teológico (ou ideológico, se você desejar). E Richard Hays m ostrou que o tema do uso do AT pelo NT deve incluir a presença e influência do eco e da alu­são11, mas isso simplesmente reforça a questão-chave da extensão em que o AT funcionava autoritariamente e sua razão. Para a maior parte, contudo, e vejo pouca necessidade de elaborar mais sobre os comentá-

7 Assim eu racionalizo minha inabilidade de fazer uma reelaboração completa!8 Veja nota 3 acima.9 Apresentação à Segunda edição, pp. 37ss abaixo.10 Ver particularmente E. A dams & D. G. H orrell, org., Christianity at Corinth: The

Quest for the Pauline Church, Westminster 2004.11 R. B. H ays, Echoes o f Scripture in the Letters of Paul, Yale 1989; ver também,

particularmente, F. W atson , Paul and the Hermeneutics o f Faith, T. & T. Clark International 2004.

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rios feitos nos capítulos da Parte I na apresentação da segunda edição e permanece mais ou menos o conteúdo como à maneira dos capítulos da Parte I propõe o tema da unidade e diversidade no NT.

Até mesmo o capítulo final sobre "Cristo e Cristologia", em que o tema de quão rapidamente Jesus começou a ser adorado e conside­rado como D/deus recebeu novo destaque em anos recentes12, pode ainda permanecer como está - de preferência mais cruamente do que eu me expressaria hoje, mas ainda eficaz em posicionar o tema dos diferentes modos/conceitos/títulos pelos quais essa simples realida­de de Jesus foi apreendida e verbalizada. Meu foco sobre essa reali­dade simples de Jesus como o núcleo unificador que sela a diversida­de do NT, sem dúvida, continua a ser considerado muito pequeno por alguns. E minha tentativa na apresentação da segunda edição ao referir a tais críticos para as considerações já reunidas na primeira edição13 parece que tiveram pouco impacto. Aqui eu só posso repetir que muito mais que Cristo sustenta o NT unido, é a dimensão de Cristo em cada caso que fornece a liga distintivamente cristã. A con­vicção de que Jesus de Nazaré, crucificado e ressuscitado dos mor­tos, é, e continua a ser, determinante para nossa aproximação (da hu­manidade) de Deus, aceitação por Deus, e o viver comunitário para Deus, é o que faz tudo no NT (e no cristianismo) cristão, é o que une a diversidade religiosa e social, e a diversidade literária do NT em uma coisa só.

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O capítulo ausente

Na apresentação à segunda edição eu confessei certo deslize ao não pensar em incluir um capítulo sobre ética na primeira edição. In­cluir agora um capítulo sobre ética, provavelmente, romperia muitís­simo o formato da obra. Mas, pelo menos, poderia indicar alguns dos materiais e temas que desejaria incluir14.

12 Particularmente, L. W. H urtado , Lord Jesus Christ: Devotion to Jesus in Earliest Christianity, Eerdmans 2003.

13 Apresentação à segunda edição, pp. 37ss, referindo-se as pp. 5 5 0 s ,.14 A bibliografia mais recente inclui M. B ockmuehl, Jewish Law in Gentile Chur­

ches: Halakhah and the Beginning o f Christian Public Ethics, T. & T. Clark 2000;

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O motivo unificador, certamente, seria o mandamento do amor: os evangelhos mostram Jesus resumindo a resposta humana a Deus em termos do Shemá (Mc 12.28-31 pars.) e a responsabilidade do dis­cípulo para com os outros em termos de amar o seu próximo (Lv 19.18); o resumo de Jesus é ecoado por Tiago (2.8), bem como por Paulo (Rm 13.9; G1 5.14). O modelo de tal amor que o próprio Jesus desempenhou era evidentemente um fator unificador de grande im­portância nas igrejas do NT15. Mas mesmo ali deve ser notado que há diversidade como a ausência de tal fala em Atos e o modo em que os Escritos Joaninos parecem focar (ou estreitar?) o amor ao próximo para o amor ao irmão.

O papel da lei (judaica), a Torá, em determinar a conduta é uma das principais causas da diversidade dentro do NT. Uma das questões que continuam a dividir os eruditos é se, ou mais plausivelmente, a medida que o próprio Jesus observava a lei. Ele presumivelmente sustentava a prática básica de pureza ritual; por outro lado ele nunca entrou no Tem­plo16. E de acordo com Mt 5.21-48, suas exposições de leis cruciais que determinavam a conduta foram levadas de volta ao seu lugar de ori­gem ainda que em um nível mais profundo. Ao mesmo tempo, contudo, ele parecia já haver eliminado as considerações secundárias e determi­nava a sua própria conduta pela primazia do mandamento do amor17.

R. B. H ays, The Moral Vision o f the New Testament: A Contemporary Introduction to New Testament Ethics, H a rp e rS a n F ra n cisco 1996; R. N. L ongenecker, o rg ., Patterns o f Discipleship in the New Testament, E erd m an ss 1996; E. L ohse, Theological Ethics o f the New Testament, F o rtre ss 1991; W. A. M eeks, The Origins o f Christian Morality: The First Two Centuries, Y a le U n iv e rs ity P ress 1993; O Mundo Moral dos Primeiros Cristãos, P a u lu s 1996; W. M arxsen, New Testament Foundations for Christian Ethics, Fortress 1993; W. S chräge, Ética do Novo Testamento, Sin od al/ IE E PG 1994; J. S tarr & T. E ngberg-P edersen, org., "E a rly C h ristian P araenesis in C o n tex t", B Z N W 125, de G ru y ter 2004.

15 O assunto não recebeu atenção concentrada em Unidade e Diversidade, mas é recorrente - ver p p . 8 5 ,8 7 ,9 7 ,1 4 7 ,2 0 9 ,3 0 4 ,3 7 4 ,3 9 3 ,4 1 3 ,4 3 3 ,446s, 431,526. Ver também V. P. F urnish, The Love Command in the New Testament, Abingdon 1972; J. P iper, Love your Enemies: Jesus' Command in the Synoptic Gospels and the Early Church Paraenesis, SNTSMS 38, Cambridge University Press 1979; T. S öding, Das Liebesgebot bis Paulus. Die Mahnung zur Agape im Rahmen der paulinischen Ethik, Aschendorff 1991.

16 Ver meu "Jesus and Purity: An Ongoing Debate", NTS, 48,2002, p p . 449-67.17 Jesus Remembered, p p . 563-83. ’

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A diversidade desse discernimento básico aparece pelas diferentes maneiras que Mateus e Marcos podem retratar o comentário de Jesus sobre a lei (compare Mc 7.19b com Mt 5.17-20) e pelo fato de Paulo ir além do claro ensino de Jesus a respeito do divórcio (ICor 7.10-16) e se sentir liberado em consideração ao mandamento de Jesus para sustento financeiro (ICor 9.14s.).

O tema de Paulo e a lei, certamente, são muito mais amplos do que isso18. Poderia ser resolvido pela distinção entre lei cerimonial e lei ética, como os teólogos da Reforma geralmente ensinavam? Mesmo que a resposta seja um não, como a maioria atualmente diria, perma­nece o caso que o ensino ético de Paulo é, consistentemente, baseado sobre a Torá - como testemunha sua antipatia para com a licenciosida­de sexual (porneia) e a idolatria. Mas, novamente, é importante notar que a citação mais explícita de Paulo da ética da Torá é resumida no mandamento do amor (Rm 13.8-10); a única lei que Paulo queria que determinasse a sua vida era a "lei de Cristo" (G1 6.2). O quanto isso se liga com sua promulgação de um tipo de "ética carismática" (G1 5.16- 25) não é tão claro como poderia ser. Mas aqui também o fato de que ele entendia: "Andar de acordo com o Espírito" como o: "A fim de que o preceito da lei se cumprisse em nós" (Rm 8.4) precisa ser integrado mais plenamente do que usualmente é o caso para a unidade e diver­sidade de sua ética19.

A questão do fraco e forte em assuntos de práticas discutíveis e de conduta (Rm 14.1-15.6; ICor 8-10) fornece muito material para a reflexão sobre a diversidade da fé e prática do que poderia/deveria ser admitido dentro de uma única igreja.20 O fato de que um relacio­namento comum com o mesmo Senhor viria se expressar em condutas divergentes é uma ilustração eloqüente de unidade e diversidade (Rm 14.5-7). E assim como é eloqüente a prioridade absoluta da submissão de cada pessoa ao seu próprio Senhor como o único e ainda suficiente catalisador de unidade (Rm 14.4, 10-12). Ao forte é aconselhado a res­tringir sua liberdade por amor dos fracos, não devido a este se sentir

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18 Ver p.ex. B. R osner, org., Understanding Pau's Ethics: Twentieth Century Approaches, Eerdmans 1995; J. D . G. D unn , org., Paul and the Mosaic Law, WUNT 89, Mohr Siebeck 1996, Eerdmans 2001.

19 Ver mais meu New Perspective on Paul, cap. 1.20 Teologia de Paulo §24, particularmente §§24.3, 7.

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agredido pela conduta do forte, mas para não encorajar o fraco a agir contra a sua própria consciência (ICor 8.10); a definição de Paulo da conduta pecaminosa em Rm 14.3 tem o mesmo efeito. Notável, uma vez mais, é que a preocupação é com aquele "Por quem Cristo mor­reu" (ICor 8.11; Rm 14.15), e o modelo é a maneira pela qual Jesus se recusou a dar prioridade: "A buscar sua própria satisfação" (Rm 15.1- 3). Em que medida o cristão deve estar socialmente envolvido com os de fora preocupante, Paulo adverte, na verdade: "Não pergunte, não fale" (ICor 10.24-29), é mais uma ilustração de quão diversa pode ser a imitação de Cristo (11.1).

A recente discussão das implicações políticas da mensagem cris­tã primitiva21 realça algo nessa imensidão de temas. A afirmação do Senhorio de Jesus visava ser uma declaração abertamente política: Cristo ordenando uma lealdade mais alta do que a Cesar? Que era cer­tamente como uma implicação a ser inferida, como sugere Atos 17.7. Mas o fato de a perseguição por oficiais romanos ser esporádica du­rante todo o séc. I sugere que tal implicação não foi nem aplicada nem recorrida em muitas ocasiões (compare At 18.13-16; 26.30-32; 28.30s.). E o conselho de Paulo em Rm 12.9-13.7 - de ser um bom cidadão, não reagir às provocações, pagar tributos - fala de alguém que sabia muito bem que os membros de pequenas igrejas-domésticas na Capital eram aconselhados a manter suas cabeças baixas e evitar atrair a atenção22. Mesmo assim, o fator catalisador para todas essas pequenas congrega­ções era a primazia da sua lealdade a Jesus como o Senhor.

Os códigos domésticos que se tornaram um traço das cartas da segunda geração do NT (particularmente Cl 3.18-4.1; Ef 5.22-6.9; lPd 2.18-3.7) colocam ainda uma outra dimensão da temática: se vermos nelas evidência de uma conformidade crescente com o ethos da época, e a suavização de uma ética mais radical do discipulado ao qual Jesus chamara (Mc 3.31-35; Lc 14.26). Certamente, a afirmação de uma moral tradicional e respeitada da época (a sujeição das esposas aos maridos, escravos obedientes aos senhores) é formidável e um tanto perturba­dora para os ouvidos modernos. Mas era, evidentemente, mais impor­

21 Particularmente R. A. H orsley & N. A. S ilberman, The Message and the Kingdom: How Jesus and Paul Ignited a Revolution and Transformed the Ancient World, 1997, Fortress 2002; ver também N. T. W right, What Saint Paul Really Said, Eerdmans 1997.

22 Theology o f Paul, §24.2. ■>

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tante que os cristãos primitivos não fossem vistos como subversivos da sociedade estável e das normas sociais do que eles se posicionassem aberta e desafiantemente como uma contracultura. O ponto-chave, e, novamente, altamente significativo para um estudo do fator unifi­cador na diversidade da ética cristã primitiva, é a inserção regular nesses códigos padronizados da pequena frase "no Senhor" e seus equivalentes (como em Cl 3.18,20,22-24; 4.1). O relacionamento vivo com o Cristo, o Senhor, como o determinante primário de conduta e outros relacionamentos (2.6) era a semente que crescia mais e mais até quebrar o molde anterior. Tal núcleo mínimo de unidade dentro da diversidade era, contudo uma sociedade moldando a força de um enorme poder23.

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Parte II

O que escrevi a respeito da Parte II na apresentação da segunda edição ainda continua valendo depois de 16 anos. Os quatro capítu­los (XI-XIV) tornaram-se um pouco mais defasados para o meu gos­to. Embora, não muito defasados, eu espero, visto que continuam a documentar a diversidade do cristianismo do séc. I, ou as diferentes correntes que fluindo dentro do rio maior que era o cristianismo primi­tivo. E as ilustrações de como esse rio com suas diferentes correntes de­sembocariam no séc. II, em expressões diversas e divergentes da fonte original; retêm a validade e posicionam a mesma questão à força em que ponto a diversidade se torna ou se tornou tão variada? E em que ponto a diversidade cai/caiu fora do empuxo gravitacional do núcleo unificador? Mas a esse respeito a muito ainda a ser dito.

Sobre o tema do cristianismo judaico eu somente preciso ensaiar o tipo de temas que surgiram mais acentuadamente nas últimas duas décadas: a ampla rejeição da caracterização cristã mais tradicional do judaísmo (do Segundo Templo) como, de fato, uma religião fracassa­da (legalista e estéril); a questão de quão judeus eram Jesus e Paulo; o tema da continuidade e descontinuidade entre o judaísmo do Segundo

23 Ver mais em meu "The Household Rules in the New Testament", em S. C. B arton, org., The Family in Theological Perspective, T. & T. Clark 1996, pp. 43-63; também Theology o f Paul, §§23-24.

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Templo e o cristianismo embrionário; se a antítese entre Evangelho e Lei deveria continuar paradigmática na análise da teologia paulina; em que sentido Paulo considerava o cristianismo como Israel; e assim por diante24. As tentativas de empurrar Jesus ainda mais firmemente de volta ao judaísmo25 e a discussão a respeito de a nova perspectiva sobre Paulo26 aguça as sensibilidades cuja temática suscita. A questão se Jesus ou Paulo foram os fundadores mais significativos do cristianismo permanece profundamente problemática. O efeito de tudo isso é não alimentar uma redundância da questão posta pelo capítulo XI, mas po- sicioná-la mais claramente: a forma original de cristianismo (em Jeru­salém) era mais verossímil para a inspiração e ensino de Jesus, e o cris­tianismo judaico do segundo ao quarto séculos uma continuação mais verossímil daquela forma original do que a que se tornaria o veio prin­cipal do cristianismo? Similarmente a crescente consciência de que: "A separação dos caminhos" entre cristianismo e judaísmo levou muito mais para acontecer do que era, geralmente, esperado, a despeito dos melhores esforços tais como os de Inácio e de Crisóstomo27. E saudável

24 A b ib lio g ra fia re ce n te é en o rm e. U m seleção q u a se a lea tó ria in c lu i J. M. G. B a r c la y , Jews in the Mediterranean Diaspora from Alexander to Trajan (323 BCE-117 CE), T. & T. C la rk 1996; W . H orbury , Jews and Christians in Contact and Contro­versy, T. & T . C la rk 1998; J. M. Lieu, Christian Identity in the Jewish and Graeco- Roman World, O x fo rd U n iv e rs ity P ress , 2004; M. Low e, o rg ., The New Testament and Jewish-Christian Dialogue, D. F lu sse r F S , Immanuel, 24 /25 , 1990; C. S e tz er , Jewish Responses to Early Christians: History and Polemics, 30-150 CE, F o rtress 1994; H . Sh an k s, org ., Christianity and Rabbinic Judaism: A Parallel History o f Their Origins and Early Development, B ib lica l A rch a e lo g y S o cie ty 1992; L. Sw id ler, et. a l , Bursting the Bonds? A Jewish-Christian Dialogue on Jesus and Paul, O rb is 1990;C. M. W illiamson, A Guest in the House o f Israel: Post-Holocaust Church Theology, W e stm in ste r 1993; S. G. W ilson , Related Strangers: Jews and Christians 70-170 CE, F o rtre ss 1995.0 m e u en g a ja m e n to n a q u estã o a p a re ce n a s n o ta s 4-5 acima.

25 Ilustrado por G. V ermes, The Authentic Gospel o f Jesus, Penguin 2004, e H . M accoby, Jesus the Pharisee, SCM Press 2003; ver também a crítica mais antiga de D. A. H agner, The Jewish Reclamation o f Jesus, Zondervan 1984.

26 Ver particularmente meu New Perspective on Paul.27 V e r a g o ra D. B o y a rin , Border Lines: The Partition o f Judaeo-Christianity, U n iv e rs ity

o f P en n sy lv a n ia 2004: ta m b é m m u ito d as n eg lig e n c ia d a s o b ra s m a is a n tig a s d e J. P ark es , The Conflict o f the Church and the Synagogue: A Study in the Origins of Antissemitism, Je w ish P u b lica tio n S o c ie ty o f A m e rica 1934, e M. Sim on, Versus Israel: A Study of the Relations between Christians and Jews in the Roman Empire (AD 135-425), 1964, ET O x fo rd U n iv e rs ity P ress L ib ra ry 1986.

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recordar que o cristianismo era cristianismo judaico por mais de uma geração ou duas. E se a resolução a partir da perspectiva do veio principal do cristianismo está ainda em termos de desenvolvimento, quanto desenvolvimento a compreensão a respeito do Jesus histórico (o mesmo Cristo da fé) justificando ser uma ligação determinativa?

Mais instigante de tudo é a emergência de judeus messiânicos e judeus por Jesus como vim fator substantivo complicador judaico - relações cristãs da atualidade. Pois o desaparecimento do cristianismo judaico (herético) no séc. IV(?) abriria um abismo entre judaísmo (rabínico) e (a corrente principal) do cristianismo, um abismo que - o diálogo judeu cristão se esforça por construir uma ponte. Mas agora o buraco está sendo aberto de novo, e para o desalento, pelo que parece de ambos os lados do diá­logo - judeus messiânicos, evidentemente, ameaçando a integridade de cada lado do diálogo, precisamente, porque isso apaga a clara distinção e separação dos dois - como fez o cristianismo-judaico dos primeiros quatro séculos. Assim, a questão do que é cristianismo judaico e em que medida o cristianismo só pode, apropriadamente, entender-se como cristianismo- judaico foi revitalizado e pede uma atenção renovada.

Os temas focados sob o tema do Cristianismo Helenístico (cap. XII) tornaram-se ainda mais tensos. Na apresentação da segunda edição eu indiquei isso colocando o assunto em termos de gnosticismo que tem sido muito determinado pelas teses particulares com respeito ao gnos­ticismo pré-cristão, que dominou a discussão da religionsgeschichtliche do cristianismo primitivo nas décadas da primeira metade do séc. XX. Talvez eu tenha me aventurado, o tema poderia ser melhor coloca­do em termos de cristianismo sincrético28. Essa sugestão foi reforçada pela mudança que aconteceu na fase corrente da análise da religions­geschichtliche das origens do cristianismo. Pois, visto que o foco anti­go estava sobre a literatura paulina, ou se Paulo fosse contrário aos gnósticos, em Corinto ou em qualquer outro lugar, e se Paulo adotava um gnosticismo modificado para levar vantagem contra tais oponen­tes, o foco agora recai muito mais sobre os evangelhos e o caráter da tradição que contém29. E enquanto aqueles que desejam continuar a

28 Apresentação à segunda edição, pp. 37ss abaixo.29 Note particularmente J. D. C rossan, The Historical Jesus: The Life o f a Mediterranean

Jewish Peasant, HarperSanFrancisco 1991; R. W. F unk & R. W. H oover, The Five Gospels: The Search for the Authentic Words o f Jesus, Macmillan 1993.

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falar de um gnosticismo pré-cristão como um fator explicativo para mui­tos dos dados do NT parecem ser uma minoria, o tema de uma influ­ência mais misturada sobre e a recepção do ensino do próprio Jesus, resultando em muitos cristianismos diversos e divergentes, torna-se um tópico importante de controvérsia no início do séc. XXI30. Mesmo se o gnosticismo ainda é melhor considerado como um fenômeno do séc.II, influenciado pelo cristianismo ao mesmo tempo em que compete com ele,31 a questão de se desde o início as tradições que se tornaram fundadoras para o cristianismo haviam sido purgadas de um caráter mais sincrético atualmente está firmemente em discussão.

O rumo já estava assinalado no §62: "A propensão gnosticizan- te de Q?". A análise posterior de Q suscitou a possibilidade de que Jesus fora, primeiramente, relembrado por muitos como um mestre de sabedoria, de algum modo estranho, possivelmente até mesmo em conflito, com outros que viam a missão de Jesus através das lentes de sua crucificação e sua conseqüência (ressurreição); que Q representa tal comunidade (ou comunidades), que persistiam na Galiléia por, no mínimo, diversas décadas; que o Evangelho de Tomé, e outros evan­gelhos, tradicionalmente, considerados como apócrifos ou heréticos, contêm, como parte de sua tradição original, material que os vencedores da corrente principal escolheram ignorar, descartar, destruir ou esque­cer32. Isso, certamente, coloca o tema da unidade e diversidade de um modo mais agudo: a figura unificadora de Jesus é algo como um nariz

30 Particularmente B.; L. M ack, The Christian Myth: Origins, Logic and Legacy, Con­tinuum 2001; R. C ameron & M . P. M iller, org. Rediscovering Chrisitan Origins, Society of Biblical Literature 2004.

31 S. P etrem en t, A Separate God: The Christians Origins o f Gnosticism, HarperSan- Francisco 1990; A. H. B. L o g a n , Gnostic Truth and Christian Heresy: A Study in the History o f Gnosticism, Hendrickson 1996; C. B. Sm ith, N o Longer Jews: The Search for Gnostic Origins, Hendrickson 2004.

32 Os temas são apresentados, particularmente, por B. L. M ack, A Myth of Inno­cence: Mark and Christian Origins, Fortress 1988; The Lost Gospel: The Book o f Q and Chrisitan Origins, Harper Collins 1993; R. W. F unk, Honest to Jesus, Harper- SanFrancisco 1996. J. S. K loppenborg 's The Formation o f Q, Fortress 1987, fornece um ponto de apoio para a maioria das teorias C. M . T uckett fornece um esboço moderno do senso comum na maior parte dessas questões: Nag Hammadi and the Gospel Tradition, T. & T. Clark 1986; Q and the History of Early Christianity: Studies on Q, T&T Clark, 1996. Para minha crítica pessoal ver em Jesus Remem­bered, particularmente as pp. 147-60. ’

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de cera que pode ser moldado como se desejar? Ou para colocar o tema mais responsavelmente: a missão de Jesus seria mais diversa do que os evangelhos canônicos nos levam a crer, mais sincrética que simples­mente messiânica-judaica, mais aberta à diferente apropriação do que Atos e Paulo sugerem? A tradição unificadora de Jesus é de fato mais cuidadosamente vista como uma seleção do ensino de Jesus, uma sele­ção feita a partir de uma perspectiva particular como uma tentativa (uma tentativa bem sucedida!) de monopolizar a autoridade resultante para o nome e ensino de Jesus? Os temas em questão são ainda aqueles do capítulo XII, e o mais antigo debate ainda os ilustra bem. Mas eles necessitam ser transpostos em termos do debate atual, do contrário sua relevância se tornará rapidamente obscura para geração atual de eruditos e estudantes.

O capítulo XIII original ("Cristinismo Apocalíptico") também re­fletia os debates da geração erudita pós-Bultmann - como ilustrada pela citação de Ernst Kàsemann que intitula o §67 ("Apocalíptica-a mãe de toda a teologia Cristã?").33 E as reservas e qualificações expressas na apresentação da segunda edição nesse capítulo ainda são as mesmas. O fato permanece que ainda há material apocalíptico e uma perspec­tiva apocalíptica em uma substancial proporção dos escritos do NT e também permanece importante que ambos, o material e a perspectiva, sejam incluídos em qualquer avaliação do caráter do cristianismo primi­tivo. Sem reconhecimento e apreciação da dimensão da diversidade no NT fracassaríamos completamente em apreciar o caráter da unidade do NT em sua capacidade de sustentar tal diversidade dentro de sua órbita. Contudo, os temas têm continuado, e dois em particular devem ser tidos em mente em qualquer avaliação atualizada da perspectiva apocalíptica dos primeiros cristãos.

Um dos temas é o que Kàsemann apresentou, mas que agora adiciona força por atrair a história do material de Q e o Evangelho de Tomé ao debate. Isto é, o tema se o próprio Jesus foi influenciado pela escatologia apocalíptica em um grau determinante. Se a resposta for negativa, como Crossan e M ack respondem34, e uma perspectiva

33 Como o índice para a primeira edição indica, K äsemann foi meu principal estí­mulo e o Gesprächspartner para a totalidade do livro.

34 Ver acima as notas 29 ,30 ,32 ; M. J. B org, Jesus in Contemporany Scholarship, Trinity Press International 1994.

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apocalíptica tornar-se determinante somente no período pós-pascal, então o vão entre Jesus e os primeiros cristãos, novamente, torna-se um abismo significativo que parece distender a diversidade a um pon­to de ruptura. Alternativamente, se o quadro de A lbert Schweitzer de Jesus em termos de "escatologia consistente" transpôs o imaginário metafórico para uma descrição literal, como Tom W right fortemente argumenta35, então a questão se levanta mais uma vez é a respeito da expectativa da parusia de Jesus sobre as nuvens dos céus, e o status de outro material apocalíptico no NT se torna mais problemático. Em tal caso, a diversidade do NT poderia encontrar espaço para uma inter­pretação literal de alguma linguagem apocalíptica?

O outro é a antítese salientada por J. L. M artyn em sua insistência de que a perspectiva apocalíptica de Paulo implica a ruptura de toda a continuidade entre o AT e o NT e a rejeição de qualquer alternativa de perspectiva da heilsgeschichtliche.36 Aqui, novamente, a questão apre­sentada é de se tanto uma perspectiva apocalíptica como qualquer forte afirmação de continuidade entre Israel e cristianismo (AT e NT) podem ser sustentadas dentro da diversidade do NT. O tema é o teológico: se as afirmações do cristianismo com respeito a Cristo (encarnação e a ressurreição em particular) implicam tal ruptura do desenvolvimento da hipótese total como torná-las sem valor em significância, o tipo de distorção da verdade do Evangelho que M artyn atribui aos oponentes de Paulo na Galácia. Neste ponto a sobreposição de temas colocados no capítulo XI se torna pronunciada: quando a diversidade se torna a diferença irreconciliável?

O título do capítulo XIV, "catolicismo primitivo", já era antigo quando escrevi a apresentação da segunda edição, e os equívocos e qualificações feitos aí ainda são válidos. O ponto importante, contudo, é que tinha que ter esse capítulo, seja qual fosse o seu título, já que o livro precisava ser, apropriadamente, equilibrado. Para a Parte II co­meça a traçar correntes (ou trajetórias) que vão do séc. I até o II (e além). E nos capítulos XI-XIII foca a atenção em tais correntes que podem ser vista como (por quaisquer razões) divergentes em maior ou menor grau da corrente principal. O capítulo XIV não poderia ter outro foco

35 N. T. W right, Jesus and the Victory o f God, SPCK 1996.36 J. L. M artyn , Galatians, AB 33A, Doubleday 1997; Theological Issues in the Letters

o f Paul, T. & T. Clark 1997.

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sobre a corrente principal. Entender como o cristianismo primitivo se tornou a Igreja antiga e o que poderia ter sido perdido (e ganho) no pro­cesso é de importância crucial para qualquer autocompreensão cristã. E assim como os capítulos XI-XIII indicam os elementos importantes de continuidade entre as expressões primitivas do cristianismo e ex­pressões subseqüentes vistas como divergentes ou heréticas pela gran­de igreja, então é importante que o capítulo XIV suscite a questão de se a grande Igreja em si mesma tem sido suficientemente fiel a sua fons et origo. Essa diversidade se tornou muito variada e escapou do empuxo gravitacional do centro que é Cristo, não discutirei isso no momento. Mas a questão permanece se a unidade que prevaleceu era mais es­treita do que o espírito de Jesus e de Paulo poderiam ter acolhido, se a institucionalização e creãalização do cristianismo empurraram para as margens algo vital para a identidade e conforto do cristianismo. Estou insuficientemente informado a respeito das complexidades da história da Igreja antiga para imprimir qualquer resposta a tal questão. Mas acredito que a questão deve ser feita e o caráter da unidade na diversi­dade do cristianismo e do NT constantemente devem ser reavaliados.

______________________________ A presen ta çã o à 3 a E dição___________________________ 31

Conclusões e reflexões finais

No caso do capítulo final, eu tive a oportunidade de cinco anos atrás de revisitar o conteúdo do §76 - "O cânon possui uma função contínua?" - e provou-se possível encorporar as ulteriores reflexões adicionada naquela época37 a esta edição. Talvez devesse enfatizar mais uma vez que eu me limitei às minhas reflexões concludentes ao cânon como emergira e fora consolidado nos séculos antigos. Não tra­tei de temas, tais como, em primeiro lugar, Por que um cânon? Por que apenas esses escritos no cânon e não outros? Pareceu-me importante então, e ainda hoje me parece, apreciar mais completamente que tendo um cânon, no caso o NT, significa para nós (cristãos) reconhecimen­to e realização da unidade e diversidade que é o cristianismo em si. Estabelecer o cânon do NT não encerra o debate de como o cristianis­mo é e de como não é. Ao contrário focaliza o debate na unidade e

37 J. D. G. D u n n , "Has the Canon a Continuing Function?", em L. M . M c D o n a ld & J. A. San d ers, orgs., The Canon Debate, Hendrickson 2002, pp. 558-79.

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diversidade que é o NT. Esse debate é mais que suficiente para auxi­liar a sustentar a vitalidade intelectual (e institucional) do cristianismo; ampliá-lo mais poderia distrair e prejudicar o assunto de ser fiel a am­bas: a unidade e a diversidade que são ambos o NT e o cristianismo.

Pode ser apropriado, contudo, na conclusão, salientar dois aspec­tos das reflexões ulteriores do capítulo XV revisado. Um que já possui indícios é o das implicações ecumênicas do reconhecimento da unida­de e diversidade do NT. Tenho a impressão que a força crescente so­bre uma ou duas décadas passadas que a imagem de Paulo da Igreja, como o corpo de Cristo, reforça muitas das lições extraídas da unidade e diversidade do NT. Pois, como era muito apreciado pelos filósofos políticos do tempo de Paulo, a quem Paulo, sem dúvida, pelo menos, em alguma medida está em dívida pela imagem da comunidade como um corpo38, o corpo é um tipo único da unidade: uma unidade que consiste e é possível somente porque os membros são todos diferentes e têm diferentes funções; isto é, uma unidade que não é uma unida­de de semelhanças, não uma unidade ameaçada pela diferença, mas uma unidade que só pode funcionar como tal devido a tais diferenças; uma unidade que envolve reconhecimento de e um vivência dentro da interdependência mútua de cada um para com o outro; a unidade que só pode prosperar pela diversidade integrada e coordenada. Isso tem implicações para uma congregação individual, como 1 Coríntios 12 deixa claro, para o funcionamento conjunto de diversas igrejas em qualquer lugar, como pressupõe Romanos 12, e para a Igreja univer­sal, como Efésios 1 e 4 sugerem. O elemento unificador de confessar Jesus como Senhor (ou equivalente) seria suficiente para manter juntas a diversidade de confissões elaboradas; suficiente para a diversidade operar conjuntamente para o compromisso comum de servir esse Se­nhor. Requerer assento para as confissões mais elaboradas ou práticas halakicas/ tradicionais é ficar do lado dos fariseus que criticavam Jesus por comer com os pecadores (Mc 2.16s.),39 ou ficar do lado de Pedro a quem Paulo condenou por: "Não andar segundo a verdade do Evangelho" (G1 2.14).40 Desonramos a centralidade única de Cristo

38 Mais detalhes em minha Theology o f Paul, pp. 548-52.39 Ver meu Jesus's Call to Discipleship, Cambridge University Press 1992.40 Ver meu "Should Paul Once Again Oppose Peter to his Face?", Heytrop Journal,

34,1993, pp. 58-65. »

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quando exigimos uma ampla unidade e recusamos a reconhecer a diversidade mediante o que o compromisso com Cristo pode ser expresso.41

A outra linha de reflexão digna de nota é a das implicações her­menêuticas do mesmo tema da unidade e diversidade42. Em 1977 eu não me empenhei em desenvolver o ponto óbvio que um texto dá sur­gimento a diversas interpretações, além da breve discussão de "um cânon dentro do cânon" (§76.1). Isso teria adicionado mais uma di­mensão ao estudo que poderia ter se afastado de seu foco principal, que era prestar atenção à diversidade que não é, simplesmente, uma matéria de diversas leituras de textos individuais. Mas o encontrar de uma unidade genuinamente unificadora e integradora dentro da di­versidade e por meio dela é estritamente para a asserção de um Sache (substância ou questão material; assunto) unificador dentro e por meio da diversidade do Sprache (palavra usada para expressar essa substân­cia ou questão material; linguagem). Tão logo quanto a leitura real ou a audição de um texto parece ser integrante do sentido que no evento é lido ou ouvido desse texto se torna impossível falar de um significado inequívoco ou, simplesmente limitado para aquele texto. E ainda não se conclui porque o significado do texto se torna incontrolavelmente diverso; pois o texto em si permanece o mesmo, o elemento unificador dentro da diversidade das interpretações43.

Esse ponto se tornou mais claro para mim em meu estudo da tra­dição de Jesus como tradição oral. Pois, a lição que aprendi da discus­são da cultura oral é que alguém não pode falar de uma versão original de uma história, mas somente das versões multiformes; e ainda, tipi­camente, a substância da história permanece a mesma44. Assim, com

______________________________ A presen ta çã o à 3 a E dição____________________________33

41 Ver também meu ensaio, "Unity and Diversity in the Church: A New Testament Perspective", Gregorianum, 71,1990, pp. 629-56, em que assumo as reflexões sur­gidas da segunda edição de Unity and Diversity in the NT, e o qual é reproduzido como o apêndice para este livro.

42 Já apresentei alguma reflexão adicional na revisão do §76 nesta edição.43 Minhas mais recentes reflexões são resumidas em "W hat Makes a Good Exposi­

tion?", The Expository Times Lecture, June 2002, ExpT, 114, 2002-03, pp. 147-57.44 Eu desenvolvo o assunto em "Altering the Default Setting: Re-envisaging the

Early Transmission of the Jesus Tradition", New Testament Studies, 49, 2003, pp. 139-75 (aqui nas pp. 240-1,262-3); e A New Perspective on Jesus: What the Quest for the Historical Jesus Missed, Baker Academics/SPCK 2005, pp. 50-1,96-8,123.

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a tradição de Jesus como vemos nos sinóticos: podemos falar de um impulso único originado (o ensino e ações de Jesus), mas não de uma versão original. Pois Jesus pode ter dado o mesmo ensino (em substân­cia) em diversas ocasiões e em diferentes palavras ou com diferentes ilustrações. E suas ações (e palavras) sem dúvida tiveram (ligeiramen­te) impactos diferentes nos discípulos diferentes. Assim, suas recor­dações do que ele havia ensinado e feito foi inevitavelmente diversa, e desde o começo não havia uma versão original única da qual todas as outras versões derivaram. A pressuposição de que deve haver uma versão original única de cada ensino e de cada evento, para recuperar, portanto, aquilo que se torna a meta da pesquisa do Jesus histórico, é simplesmente um equívoco, para não dizer falsa. O fator unificador permanece Jesus, o próprio Jesus, mas o impacto que ele causou era diverso, uma diversidade que ainda é evidente nas variações da tradi­ção sinótica.

Um corolário importante para essa visão é que as diferenças e di­vergências na tradição sinótica não querem dizer que uma ou outra está no erro. Isso poderia se aplicar se houvesse apenas uma versão original em cada caso. Essa versão original poderia então ser consi­derada como sendo a autêntica. E a não autenticidade seria avaliada por se medir o grau de divergência do original. Mas se a diversidade é integrante, até constitui a unidade do impacto feito por Jesus, então a diversidade é um aspecto importante da autenticidade da tradição. O ouvir/ler (interpretação) conservado por Mateus sobre Jesus e sobre a Torá é tão válido quanto autêntico, como o ouvir/ler (interpretação) mais radical de Marcos sobre o mesmo tema. E o fato de que o Evan­gelho era ouvido em seus corolários esboçados nos termos mais con­servador e radicais (como G12 pressupõe), e ainda era o Evangelho, não deveria nos surpreender.

O ponto hermenêutico mais geral já estava claramente implícito em minhas conclusões ao capítulo II (= 7). Pois o kerygma dentro da di­versidade dos kerygmata é equivalente ao Sache dentro da inadequação do Sprache. Assim como o elemento unificador do próprio Jesus não é finalmente reduzível à alguma fórmula precisa, assim o Evangelho não é reduzível a alguma formulação final de aplicação universal, e as­sim também a teologia (palavras que tentam falar a respeito de Deus) não é reduzível somente a qualquer fórmula autoritária final. A Pala­vra dentro das palavras escapa à ijossa compreensão; ela nos agarra.

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Ela nos agarra, e somente então começamos a apreendê-la, mas nunca podemos finalmente agarrá-la; nunca compreendê-la. Pensar que po­demos ou devemos fazê-la compreensível é cair no erro da idolatria das eras antigas. Como é in-imaginável (não imaginável), assim aqui­lo que é mais verdadeiramente de Deus está sempre além de nosso alcance. Nunca precisamos tornar o ícone em um ídolo; não precisa­mos confundir o símbolo com a realidade; não precisamos confundir as palavras com a Palavra. Pensar que, de alguma forma, nós pode­mos, finalmente, identificar-nos ou determinar a unidade e, portanto, estritamente, controlar ou legislar a diversidade é o pecado moderno contra o Espírito Santo.

Universidade de Durham Julho de 2005.

James D. G. Dunn

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APRESENTAÇÃO A 2â EDIÇÃO

O problema de um manual introdutório é de se tornar rapida­mente desatualizado - particularmente se tentar fornecer uma visão geral e uma síntese da erudição recente, incluindo as bibliografias. Um dos principais objetivos do Unidade e Diversidade no Novo Testamento era fornecer tal manual. Não como um exemplo de preleções comple­tas abrindo seu primeiro ano do curso de preleções em "Introdução ao IMT" diante de um público mais amplo; já existe o suficiente disso! Mas como uma introdução em um segundo nível, planejada para os alunos do terceiro ano, ou para aqueles que desejam um curso de mestrado que os levem a maior profundidade no material do NT, ou ainda para aqueles que desejam ampliar e renovar seu conhecimento após alguns anos a obtenção do título de mestre ou o estudos anteriores do NT. Mas agora, doze anos desde que Unidade e Diversidade no Novo Testamento foi, primeiramente, publicado, e, devido ao rápido desenvolvimento na pesquisa do NT durante esse período, certamente, ficou defasado.

Felizmente, a necessidade iminente de uma nova reimpressão (5a) coincidiu com a próxima conclusão de uma tradução alemã, autoriza­da pela Vandenhoeck & Ruprecht, Gõttingen.1 A coincidência estimu­lou meu leve entusiasmo para reconsiderar a possibilidade de uma revisão. E a SCM Press encorajou-me a revisar pelo menos ao ponto de escrever uma nova apresentação e atualizar a bibliografia. Mas uma revisão poderia conter tais limitações? Certamente, não havia dúvidas de que uma revisão maior seria impossível, pelo menos para a edição inglesa, pois isso demandaria mais tempo do que eu teria. Mas não se­ria necessário pedir algumas revisões seletivas e mínimas do próprio lexto, sempre dentro da limitação de manter a mesma paginação da edição em inglês? Do contrário o texto defasado estaria repetidamente embutido com bibliografia atualizada.

Trad.: Ilse von Loewenclau, Vandenhoeck & Ruprecht.

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38 U n idade e D iversidade

Um modo intrigante de resolver meu dilema agilmente foi sugeri­do - pedir o auxílio do NT Postgraduate Seminar at Durham. A resposta foi calorosa e encorajadora. E assim depois de quinze encontros do seminário nós tínhamos ido por todo Unidade e Diversidade no Novo Testamento, capítulo por capítulo, em uma revisão crítica (e eu quero enfatizar: crítica!). Foi uma experiência fascinante e (em sua maior par­te) revigorante. A maior parte do tempo eu me senti como se estivesse no banco dos réus, sendo forçado por contínuo e persistente questiona­mento para me justificar e me defender, sobre pontos detalhados, sobre os termos e categorias utilizadas, sobre assuntos em que o debate seguiu em frente, sobre as simplificações excessivas, sobre as lacunas na biblio­grafia. E muitos pontos, um tanto surpreso, eu achava que eu queria me defender, e, freqüentemente o fiz, visto que ao moldar o texto original eu recordava ter levado em conta muitas considerações similares. De muitos outros a brevidade do tratamento significava que o texto era in­suficientemente variado ou modificado; mas atender a esses pontos teria requerido uma expansão mais substancial do texto do que seria prático. E, em muitos outros, eu somente poderia conceder que o texto fosse ago­ra inadequado e deveria ser alterado se fosse possível.

Até onde a extensão da revisão foi tratada, portanto, a proposta produzida pelos seminários foi a de que a maior parte da revisão de­veria ser mínima, juntamente com a bibliografia atualizada. Não havia como não concordar, e o que se segue é minha tentativa de implemen­tar essa conclusão e explicar suas razões.

Como eu me familiarizei mais uma vez com o texto, antes e du­rante cada seminário, uma das principais impressões foi como rapida­mente a agenda mudara. Em minha preleção inaugural em Durham, somente sete anos após a publicação, eu havia notado as três principais tendências nos estudos do NT2. Todas elas com a força de seu impacto posdatam Unidade e Diversidade no Novo Testamento. Elas ainda consti­tuem as principais mudanças de agenda e assim podem servir como um resumo da virada de perspectiva e interesse desde que Unidade e Diversidade no Novo Testamento foi publicada pela primeira vez3.

2 Testing the Foundations. Current Trends in New Testament Study. University of Durham 1984.

3 De um lado, a tentativa de J. A. T. R obinson em Redating the New Testament, SCM Press 1976, para antes de 70 d.C. não alcançou muita convicção dentro da asso­ciação dos estudiosos do NT, embora veja E. E. E llis, "Dating the New Testa­ment", NTS 26,1979-80, pp. 487-502.»

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Na época em que eu completei o manuscrito original a nova onda dos estudos sociológicos, cujo precursor principal fora as obras de G. Theissen4, estava apenas começando. Desde então eu já estava convencido de sua importância e um pouco otimista anunciara minha esperança no prefácio do Unidade e Diversidade no Novo Testamento de encorporar uma dimensão sociológica, embora precise confessar que o manuscrito já estivesse na penúltima fase antes dessa luz particu­lar ter surgido completamente. Mas, desde então, a onda do interesse sociológico tem ganhado força5 e para contemplar uma revisão com­pleta do Unidade e Diversidade no Novo Testamento eu teria que reela- borar a maior parte do material quase inteiramente o que não seria possível para esta segunda edição. O impacto sobre a Parte II em par­ticular teria sido considerável, indicando a complexidade das diversas tendências e desenvolvimentos esboçados aí. Como uma alternativa, eu indico em diversos pontos nos parágrafos seguintes em que uma perspectiva completa, incluindo a sociológica, teria influenciado a for­mulação dos capítulos em questão.

Unidade e Diversidade no Novo Testamento foi publicado no mesmo ano, e pela mesma editora, em que E. P. Sanders lançou Paul and Pales- linian Judaism.6 A obra de Sanders marcou uma mudança decisiva na reavaliação das relações entre os cristãos primitivos e o judaísmo do qual faziam parte, uma reavaliação provinda de uma combinação de fatores, incluindo a aversão provocada pelo Holocausto, a consciência gradativa da longa história do anti-semitismo cristão, a descoberta dos manuscritos

____________________________ A pr esen ta çã o à 2 a E d içã o____________________________39

1 G. T heissen , The First Followers of Jesus. A Sociological Analysis o f the Earliest Chris­tianity, SCM Press 1978 = Soziologie der Jesusbewegung, Kaiser 1977; Studien zur Soziologie des Urchristentums, WUNT 19, Tübingen 1979 = reimpressão de uma série de artigos que retrocedem a 1973. J. Z. S mith , "The Social Description of Early Christianity". Religious Studies Review I, 1975, pp. 19-25 e A. J. M alherbe, Social Aspects of Early Christianity, Louisiana State University 1977, alertava os leitores da língua inglesa para a importância da obra de T heissen .

'' Ver p.ex. H. C. K ee, Christian Origins in Sociological Perspective, SCM Press 1980; B. J. M alina, The New Testament World. Insights from Cultural Anthropology, SCM Press 1981; W. A. M eeks, The First Urban Christians. The Social World of the Apostle Paul. Yale University 1983; J. H . E lliott, org., Social-Scientific Criticism o f the New Testament and its Social World, Semeia 35, 1986. Bibliografia adicional emD. J. H arrington, "Second Testament Exegesis and the Social Sciences. A Biblio­graphy", Biblical Theology Bulletin 18,1988, pp. 77-85.

'' London: SCM Press 1977.

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do Mar Morto, a obra de J. Neusner sobre as tradições rabínicas7, e o interesse renovado na assim chamada literatura intertestamentária ou obras peseudepigráficas judaicas.8 Essa reavaliação resultou em uma nova reafirmação da judaicidade de Jesus e ocasionou o que agora é chamada de: "A terceira busca do Jesus histórico"9. Isso desencadeou um debate vigoroso sobre Paulo e a Lei, em que tenho o privilégio de participar10. Na releitura de diversas passagens do Unidade e Diversi­dade no Novo Testamento eu me dei conta de como eram "pré-Sanders" algumas de minhas breves caracterizações de Jesus e a Lei em particu­lar. Tais não poderiam continuar imutáveis, mesmo em uma pequena revisão.

7 J. N eusner, The Rabbinic Traditions about the Pharisees before 70, Brill 1971; From Politics to Piety. The Emergence o f Pharisaic Judaism. Prentice-Hall 1973; Judaism. The Evidence o f the Mishná, University of Chicago Press 1981; Judaism in the Beginning o f Christianity, Fortress/SCPK 1984.

8 G. W. E. N ickelsburg , Jewish Literature between the Bible and Mishná. Fortress/ SCM Press 1981; J. H. C harlesworth, org., The Old Testament Pseudepigrapha, 2 vols., Darton, Longman & Todd 1983,1985; H. F. D. S parks, org., The Apocryphal Old Testament, Clarendon 1984; M. E. S tone, org., Jewish Writings o f the Second Temple Period. Van Gorcum/Fortress 1984; R. A. K raft e G. W. E. N ickelsburg , org., Early Judaism and its Modern Interpreters, Scholars 1986; E. S chürer, The History of the Jewish People in the Age o f Jesus Christ, revised and ed., G. V ermes, revisão e org., T. & T. Clark, vol. 3 ,1986,1987.

9 Particularm ente, T. W right em S. N eill & T. W right, The Interpretation of the New Testament 1861-1986, 2 edition, O xford U niversity 1988, pp. 381ss W right refere- se a B. F. M eyer, The Aims of Jesus, SC M Press 1979; A. E. H arvey, Jesus and the Constraints o f History, D uckw orth 1982; M. }. Borg, Conflict, Holiness and Politics in the Teachings o f Jesus, M ellen 1984; e E. P. Sanders, Jesus and Judaism, SC M Press 1985. O utros que poderiam ser m encionados com o pesquisadores da terceira busca, de outras perspectivas, incluem B. C hilton, A Galilean Rabbi and his Bible. Jesus' Own Interpretation o f Isaiah, SPC K 1984; F. G. D owning, Jesus and the Threat o f Freedom, SC M Press 1987; R. A. H orsley, Jesus and the Spiral o f Violence. Popular Jewish Resistance in Roman Palestine, H arper & R ow 1987; R. Leivestad, Jesus in His Own Perspective, A u gsburg 1987; G. Theissen, The Shadow o f the Galilean, SC M Press 1987; S. F reyne, Galilee, Jesus and the Gospel, G ill & M acm illan 1988; I. M . Z eitlin, Jesus and the Judaism o f his Time, P olity 1988; J. H. C harlesworth, Jesus within Judaism. New Light from Exciting Archaelogical Discoveries, SPC K 1989.

10 J. D . G. D unn , Jesus, Paul and the Law: Essays on M ark and Galatians, London SPCK, 1990, com bibliografia.

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Uma terceira onda de pesquisa relacionada com o NT é o que eu simplesmente qualifico como acepção da "crítica literária"11. Embora eu reconheça a sua importância na questão hermenêutica para o senti­do dos textos do NT, tenho muito menos compulsão para considerá- la no preparo desta revisão do que nos dois primeiros casos. Isso é, particularmente, porque à principal força condutora no movimento da crítica literária tem sido a de libertar os textos do NT das ques­tões iniciais restritivas próprias da inquirição histórica. Enquanto minha preocupação em Unidade e Diversidade no Novo Testamento é in­teiramente histórica, como o seu subtítulo indica - An Inquiry Into the Character of Earliest Christianity [um estudo das características dos primórdios do cristianismo], No nível histórico, certamente, questões de gênero e forma literária são de suma importância. Mas de fato, e de algum modo surpreendente, elas não incidem em grande medida em Unidade e Diversidade no Novo Testamento, com a principal exceção do capítulo a respeito do "cristianismo apocalíptico". E embora a diversidade de gênero seja um traço importante da diversidade do MT, minha preocupação em Unidade e Diversidade no Novo Testamento é mais explorar a gama de temas consensuais, as crenças e práticas e as tendências que passam pelos documentos e por meio deles, pre­ferivelmente que documentos particulares como tais. Conseqüente­mente, dada a revisão limitada da segunda edição, tenho que deixar a outros essa dimensão de unidade e diversidade.

Se a agenda mudou tanto, e se esta segunda edição pudesse incor­porar somente uma revisão limitada, é viável assim proceder? Essa foi uma questão que eu e o seminário consideramos seriamente. A conclu­são foi clara e firme: uma segunda edição era desejável e necessária. As principais razões foram as que se seguem:

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11 V er p.ex. D . R h oad s & D . M ich ie , Mark as Story, An Introduction to the Narrative of a Gospel, F o rtre ss 1982; R. A . Culpepper, Anatomy o f the Fourth Gospel. A Study in Literary Design, F o rtre ss 1983; E. V . M cK n ig h t, The Bible and the Reader. An Introduction to Literary Criticism, F o rtress 1985; R. T a n n e h ill , The Narrative Unity of Luke-Acts. A Literary Interpretation. Vol. 1: The Gospel according to Luke, F o r­tress 1986; D. Jasper, The New Testament and the Literary Imagination, M a cm illa n 1987; N. R. P etersen , Literary Criticism for New Testament Critics, F o rtre ss 1978. P ara o q u e p o d e m o s ch a m a r d e crítica lite rá r ia h is tó r ica v e r p a rticu la rm e n te D.E. A une, The New Testament in its Literary Environment, W e stm in ste r 1987. P ara um a crítica p o sitiv a v e r R. M organ & J. Barton , Biblical Interpretation, O xfo rd U n iv ersity P ress 1988, ca p ítu lo 7. ‘

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42 U n id ad e e D iversidade

Primeira, em uma nota puramente pragmática, a edição alemã estava quase pronta. Seria uma pena se consistisse, simplesmente, de uma tradução da versão inglesa defasada, de 1977. E ainda que a edi­ção inglesa achasse difícil revisar o texto, não havia tal constrangimen­to no caso da edição alemã, visto que o manuscrito do tradutor havia ainda não estava no prelo. Ao mesmo tempo seria indesejável para a edição alemã ter uma variação significativa com relação a segunda edição inglesa. A solução óbvia seria um texto minimamente revisado que atualizaria onde fosse necessário e possível, sem alterar a pagina­ção da edição original. Quando eu revisava cada capítulo, seguindo a discussão do seminário, eu ficava aliviado em achar que eu poderia realizar toda a revisão essencial e mais desejável mesmo trabalhando dentro desses limites.

Segunda, a despeito de certo grau de defasagem, há uma grande importância contínua mesmo na versão original do Unidade e Diversi­dade no Novo Testamento. Os assuntos e temas estudados na Parte I e as tendências estudas na Parte II ainda são importantes em qualquer pesquisa dentro do caráter do cristianismo primitivo. Seria um grave prejuízo tanto para a erudição do NT atual como a passada sugerir que as três novas ondas de interesses, discutidas abreviadamente acima, constituem a agenda total para o estudo moderno do NT. Há muito de interesse permanente e de importância duradoura no material reunido e ordenado nos capítulos seguintes, que permanece não afetado pe­los desenvolvimentos durante os vinte anos passados. Há muitos da­dos solidamente concentrados e acondicionados que ainda espero que forneçam uma das introduções mais úteis e breves pontos de partida para discussão e estudo posterior dos tópicos e tendências. A apre­sentação deveria ainda desafiar e provocar os leitores a ver o NT e o cristianismo primitivo em uma nova e brilhante luz esperançosa, e, se os seminários em Durham existem para orientação, fornecer estímulo e percepção novos àqueles que trabalham em diversas partes do NT. Se uma revisão mínima pode aumentar o valor por eliminar os traços mais defasados e atualizar a bibliografia, então a sua vida útil pode ser estendida para uma geração posterior de estudantes do NT.

A terceira razão, acima de todas, é a grande importância do tema- unidade na diversidade. O objetivo principal não era fornecer uma introdução ao NT em segundo nível, mas explorar a realidade histó­rica do cristianismo do séc. I e o cristianismo dos documentos do NT,

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explorar a tensão histórica e teológica entre sua unidade e sua diver­sidade. Como eu convivi com esses assuntos por oito anos, antes da publicação em discussão, no ensino, na reflexão e na redação, tornei- me cada vez mais convencido da função positiva da diversidade dentro da unidade cristã12. A questão ganhou mais importância para mim nos doze anos subseqüentes, quando vi ainda mais claramente que a unidade cristã é impossível sem a diversidade, que sem diversidade Muficiente a unidade cristã seria estreita (hereticamente), espremendo o que também é a vida do Espírito e o que também expressa a graça de Deus em Cristo, que sem a diversidade de tipo e função a unidade cristã será tão ridiculamente torta e grotesca como o corpo que consiste Homente de um olho ou de uma orelha (ICor 12.17-20).

Umas das conseqüências mais ternas do Unidade e Diversidade no Novo Testamento é o número de convites para participar em consul­tas e conferências ecumênicas, precisamente a contribuição de trazer o que há de melhor e refletir posteriormente sobre o que a unidade e a diversidade do NT têm a dizer às preocupações ecumênicas da atuali­dade13. Estou mais que feliz ao fazer isso, visto que eu acredito que as conclusões do capítulo XV são fundamentais para qualquer pessoa que leve a sério o caráter histórico do cristianismo e a definição dele que o NT fornece14. Se uma segunda edição atualizada pode ajudar mais estudantes do NT e cristãos a entender a realidade e a importância da unidade na diversidade (ênfase igual em ambas as palavras), então eu certamente desejo fazê-la.

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12 Uma das mais surpreendentes resenhas de Unidade e Diversidade no Novo Testa­mento criticava-me por não levar a diversidade do NT seriamente o suficiente e deixá-la em importância periférica (T. R adcliffe, New Blackfriars, July 1978, pp. 334-6)! A observação me escapa.

" O ponto principal acerca da unidade sendo consistente e consistindo na diver­sidade tem sido considerado na discussão ecumênica; ver p.ex., M. K innamon , Truth and Community, World Council of Churches/Eerdmans 1988, pp. 1-7.

" Somente um dos meus trabalhos escritos foi tão publicado - "Die Instrumente kirchlicher Gemeinschaft in der frühen Kirche", Una Sancta 44.1,1989, pp. 2-13. Um aspecto do que eu tentei dizer está resumido em meu protesto contra o abu­so da metáfora da convergência, visto que convergência quer dizer, por definição, estritamente: o tráfego de duas auto-estradas que convergem, consequentemente, para uma auto-estrada, restringindo assim, sua largura a de uma auto-estrada. Uma metáfora melhor seria aquela da confluência: dois rios confluindo em um único rio, porém mais caudaloso e mais profundo do que qualquer um dos dois afluentes. Ver mais abaixo nota 15.

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Quarta, uma nova edição me dá a oportunidade de esclarecer a intenção, o escopo e as limitações do Unidade e Diversidade no Novo Tes­tamento. Por exemplo, teria sido suficientemente claro que eu partisse para a questão da unidade na Parte I perguntando o que historicamen­te serviu para unificar o cristianismo, ou ter considerado como parte de seu núcleo característico ou essência. A que medida a agenda foi fornecida pela história subseqüente do cristianismo. Similarmente, na Parte II, as correntes e as tendências examinadas se tornaram mais claramente desenvolvidas em sua distinção no período pós-NT - com efeito, as principais alternativas para dever-ser cristão no séc. II. A pesquisa, portanto, não foi uma exploração aleatória do cristianismo do NT ou do séc. I, e certamente em nenhum sentido uma tentativa de tratar o NT e o período inicial do cristianismo isolado do cristia­nismo daí em diante. O resultado foi, embora não surpreendente, um panorama mais integrado e coerente do que de outra maneira pode­ria surgir. O que o fez mais difícil para considerar acrescentar novos capítulos (há muito tenho tido algumas dúvidas a respeito da ética) 15, ou a mudança de foco e imaginário longe da unidade e diversidade para, como diz, o esquema útil de J. C. B eker "coerência e contingên­cia", que serve para uma questão similar16.

De outro lado, talvez eu devesse mostrar, mais claramente que de­liberadamente, que eu estou me movendo em dois níveis em Unidade e Diversidade no Novo Testamento. Um é a realidade histórica das igrejas tratadas no NT. O outro é o NT em si. A última está, certamente, conti­da dentro da primeira, mas não são as mesmas. O fato de que a diver­sidade dos documentos do NT ser mais estreita do que a diversidade das igrejas primitivas não deveria ocultar o fato da própria unidade do NT. Mas nem deveríamos ignorar o fato de que a diversidade mais estreita dos documentos do NT funcionava como uma prova de teste e limitação para a diversidade mais larga.

Novamente, o caráter dos capítulos seguintes como introdutórios ou tratamentos resumidos precisa ser relembrado. Em cada caso os tó­

15 O tema foi abordado por W . S chräge, "Zur Frage nach der Einheit und Mitte neutestamentlicher Ethik", Die M itte des Neuen Testaments. Einheit und Vielfalt neutestamentlicher Theologie, E. S chweizer Festschrift, org. U. Luz & H. W eder, Vandenhoek 1983, pp. 238-53.

16 J. C. B eker, Paul the Apostle, Philadelphia: Fortress, 1980.

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picos escolhidos fornecem conteúdo suficiente para muitas monogra­fias. Frequentemente, no curso do seminário de Durham, tivemos que aceitar que certamente mais poderia ser dito e necessita ser dito sobre u questão ou que, mas somente ao custo de uma expansão considerá­vel do texto. Os dados e o tratamento fornecido é somente um ponto de partida para a discussão, uma ferramenta nas mãos do prudente líder da discussão. As subdivisões do texto são esquematizadas de modo a facilitar o uso comum. O grau de repetição é uma tentativa de assegurar que cada capítulo é tão compacto e auto-suficiente o quanto é possível, línquanto as referências cruzadas tornariam possível expandir as dis­cussões de pontos particulares conforme o desejado. A bibliografia não consiste, simplesmente, de itens que o documento faz referência, mas lambem de itens que os discute ou que levam a discussão adiante em outras direções. Minha esperança é que uma discussão que se utilize do Unidade e Diversidade no Novo Testamento como ponto de partida, e cujos membros estudem os textos citados do NT e a bibliografia sugerida para eles, forme um quadro mais completo e mais aperfeiçoado do que seria possível realizar pelo próprio Unidade e Diversidade no Novo Testamento.

Como parte de meu objetivo em fornecer estímulo para a discus­são, tenho, deliberadamente, sido provocativo ao colocar questões a serem respondidas e corolários a serem extraídos. Em muitos pontos, durante a revisão, eu me perguntei se deveria temperar alguns das de­clarações mais ousadas, e em alguns momentos concluí que a questão colocada não é muito concreta. Mas para a maior parte o objetivo de estimular e desafiar conclusões "mais seguras" é algo que continuo a perseguir. Se o custo de abrir as janelas de algumas mentes é o exagero ocasional eu estou satisfeito. Se no fim resulta em uma percepção mais clara da realidade histórica do cristianismo primitivo e do caráter do NT, fico satisfeitíssimo.

Outros esclarecimentos serão incorporados nas revisões do texto ou nas notas, ou nas novas introduções a cada capítulo abaixo.

Quinta, uma edição revisada dá a oportunidade de me defen­der contra àqueles que criticaram a primeira edição impropriamente. Diversos resenhadores do Unidade e Diversidade no Novo Testamento me culparam de estreitamento da unidade e de enfatizar a diversidade desmedidamente17. Pergunto-me se eles leram as pp. 525-7 e 550-2s

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17 Assim também R obinson (nota 22 abaixo) p. 25, n. 62; mas ver também sua própria afirmação da necessidade de reconhecer a diversidade dentro da unidade cristã

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com suficiente cuidado, e consideraram a importância completa da centralidade cristológica do núcleo unificador18. Confesso que tam­bém me perguntei se tais leitores consideraram com mais seriedade o simples fato da diversidade que é, e sempre será, cristianismo, ser desconfortável, como esse fato pode ser, para aqueles que desejam a segurança de ter outros que crêem e agem da mesma maneira que eles crêem e agem.

Outro ataque freqüente procede do lado conservador, a acusação de que eu acho o NT repleto de contradições19. Não é isso! A palavra contra­dição nunca esteve em meus lábios (ou impressa); e de propósito. Pois essa não era a questão; e a acusação se mostra falha ao se agarrar a essa ques­tão. A questão, como já mostrada de forma clara o suficiente no capítulo II, é que qualquer declaração e cada evangelho no NT estão historicamente condicionados e no contexto específico. A Palavra de Deus fala à condição humana em sua especificidade diversa. Isso porque é diversa e diferente em suas várias expressões. O reconhecimento desse fato no NT deveria ser algo libertador e empolgante, visto que reveste a afirmação de que Deus continua a falar às diversas e específicas situações de hoje. O fracas­so em reconhecer a diferença e a diversidade do evangelho nas diversas situações do passado e presente simplesmente resulta no aprisionamento do evangelho em formas e fórmulas menos significativas20.

primitiva (p. 29); e compare R. A. M arkus, "The Problem of Self-Definition: From Sect to Church". Jewish and Christian Self-Definition. Vol. One: The Shaping of Chris­tianity in the Second and Third Centuries, org. E. P. S anders, SCM Press 1980, p. 8.

18 Ver também o cap. XV, nota 7 (abaixo), K. B erger em sua resenha da primeira edição (ThR 53,1988, p. 366) deu-me uma reprimenda por propor "um pálido, ecumenismo humanista, cuja virtude maior é a tolerância, para o que se dese­jaria algo mais da - entendido positivamente - intolerância do AT e da crença judaica em Deus...". Em defesa eu, simplesmente, direi: (a) a tolerância em si não é virtude, mas a tolerância em face da intolerância; (b) o próprio Jesus é o modelo de tal tolerância (p.ex., Mc 9.38-40; Mt 11.19) - outro aspecto do centro determinador da circunferência; (c) é tal aceitação (ou seja, tolerância dinâmica) dentro da moldura da fé comum (ver novamente cap. XV, nota 9) que ainda é necessário ao ecumenismo moderno. Todavia, reconheço que há uma tensão desconfortável a ser sustentada aqui, entre o compromisso fervoroso e a abertu­ra/tolerância, e gostaria de refletir posteriormente mais a respeito de como de um dos maiores desafios que confronta a reivindicação cristã à verdade (como qualquer outro).

19 Ver p.ex. aquelas citadas em meu The Living Word, SCM Press 1987, p. 175, n. 6.20 Ver mais The Living Word (nota 19). ]

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À acusação de preconceito anti-católico procedente de um ou dois resenhadores católicos romanos; eu retornarei a isso abaixo na nova introdução ao capítulo XIV21.

Finalmente, talvez deva ser dito, pelo menos em favor dos futu­ros resenhistas, que a questão principal a ser levantada com respeito ao Unidade e Diversidade no Novo Testamento não seja se as opiniões e ca­racterizações oferecidas nas páginas seguintes estão corretas ou coman­dam um consenso em cada particular. Isso, dificilmente, seria possível, especialmente quando tantas decisões exegéticas tenham que ser feitas sem detalhes suficientes e justificativas. A principal questão é se o amplo quadro está certo e no total é uma reflexão honesta do NT e do caráter do cristianismo primitivo. Se eu estiver certo ou errado em diversos, ou até mesmo em muitos detalhes, o importante é o fato de que o núcleo unificador e distintivo do cristianismo no começo se centrava irreduti- velmente sobre Jesus Cristo, o fato da diversidade como algo inevitável em cada tentativa de trazer esse núcleo unificador para uma expressão concreta, e, não menos, o fato de que a unidade do cristianismo do NT consistia na diversidade e por meio dela.

A luz de todas essas considerações, uma revisão do Unidade e Diversidade no Novo Testamento para a nova edição foi limitada ao se­guinte: (a) uma bibliografia revisada completamente para cada capí­tulo; (b) notas expandidas e adicionais para somar esclarecimentos ocasionais ou qualificações ao texto, e considerar o mais relevante da literatura mais recente, incluindo meus próprios estudos adicionais que fornecem escoras em vários pontos; (c) geralmente, pequenas cor­reções ao próprio texto, para remover infelicidades menores e lingua­gem sexista inadvertida, e para refletir a mudança de perspectiva ou de opinião; a mais substancial dessas aparece nas páginas 232s e no capítulo XIII, o capítulo com o qual eu fiquei insatisfeito mais rapi­damente; a dificuldade de levar tais revisões dentro da estrutura es­tabelecida e da paginação dos parágrafos era considerável, mas espe­ro ter realizado o objetivo sem introduzir muitos constrangimentos; (d) novas introduções para cada capítulo para dar oportunidade a es­clarecimentos posteriores, quando necessários, e indicar onde uma perspectiva sociológica mais plena, particularmente, daria a oportuni­

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Com franqueza talvez eu deva também notar que em geral as resenhas Católicas Romanas estão entre as mais positivas e receptivas.

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dade para uma revisão muito mais completa do que a que foi possível. Essas novas introduções se seguem imediatamente.

Com referência ao Capítulo I, visto que funciona simplesmen­te como uma introdução, pouca coisa devo adicionar ao que já foi dito. A discussão da tese de Baur continuou no ínterim22, e H. Kõester po­siciona o tema em termos ainda mais extremos23. Mas no capítulo I eu foquei o estudo em seus próprios termos (unidade e diversidade); e dado a gama, caráter e condicionamento histórico dos documentos do NT, a questão da unidade e diversidade é algo que não pode ser evitada por estudiosos sérios. Talvez deva ser repetido, que os capítulos seguintes não pretendem, em nenhum sentido, ser um inventário exaustivo do NT ou do cristianismo do séc. I. Os capítulos da Parte I são, simplesmente, seqüências de perfurações através da massa variada e dos elementos das tradições que fizeram o NT; enquanto a Parte II tenta traçar esquemati­camente uma visão geral das principais continuidades descontinuida- des entre o séc. I e o período antigo da patrística primitiva.

Em vistas de algumas respostas nas resenhas e de outros comentá­rios, talvez seja necessário recordar os leitores que o Capítulo II, ''Keryg­ma ou Keriymata?", possui um objetivo limitado. Isso já foi indicado nas pp. 90-1, 78 e 103. E uma visão geral do material do NT - e delibera­damente isso. Seu propósito era, simplesmente, mostrar que o tema da unidade e diversidade está ali, claramente visível, ainda que em uma leitura apressada. Não se trata de algo forçado artificialmente sobre o texto por estudiosos céticos24. Conseqüentemente, por exemplo, não há necessidade, neste ponto, de justificar o uso das tradições sinóticas como evidência do ensino de Jesus, visto que nossa preocupação no capítulo II é, simplesmente, com o fato de que isso é apresentado como ensino de Jesus. Então, quando no §3 eu falo do "kerygma de Jesus" eu quero dizer simplesmente a pregação de Jesus como registrada pelos sinóticos.

22 Ver particularmente, D. J. H arrington , "The Reception of Walter Bauer's Orthodoxy and Heresy in Earliest Christianity During the Last Decade", HTR 73, 1980, pp. 289-98; J. A. T. R obinson, The Bauer Thesis Examined. The Geography of Heresy in the Earliest Christian Church, Edwin Mellen 1988.

23 H . K ö e ste r , Introduction to the New Testament. Vol. 2 History and Literature o f Early Christianity, Fortress 1982.

24 Talvez deva referir ao comentário similar e aos rogos que faço em The Evidence for Jesus, SCM 1985, cap. I.

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Capítulo III, "Fórmulas confessionais primitivas", volta-se pela progressão natural para a formulação confessional. Não porque a resposta da fé ao kerygma seja principalmente cerebral ou finalmente reduzível a conceitos; para tanto, voltaremos a outras respostas nos capítulos subseqüentes. Mas, simplesmente, porque a confissão verbal é um traço fundamental e proeminente do cristianismo quando crescia e se desenvolvia. Uma perspectiva histórica é ligada a pergunta se era assim no começo e como esse instinto básico da fé (para confessar com os lábios) veio à expressão. O capítulo se limita a discutir as fórmulas con­fessionais, visto que, mais uma vez, o cristianismo sempre achou isso necessário para expressar sua fé em breves fórmulas explicativas. Isso, contudo, não quer dizer que as confissões verbais de fé não podem conter formas mais plenas e mais largas. O recente estudo literário dos lextos bíblicos, por exemplo, enfatizam apropriadamente o papel da teologia narrativa; a tradição de fazer uma confissão ao narrar uma história é algo bem estabelecido no AT. Conseqüentemente os próprios evangelhos podem muito apropriadamente ser considerados como de­clarações confessionais. E se as narrativas da paixão eram recontadas em parte ou no todo durante o culto cristão primitivo, elas certamen­te funcionavam como confessionais dentro dos termos do §13. Aqui, novamente, o escopo limitado da discussão não é pretendido como algum tipo de reivindicação de que somente esse material é qualifica­do para a discussão sob esse título. Ao contrário, a esperança em tentar tal apresentação em forma concisa era o de provocar, precisamente, essa ampla gama de reações e reflexões.

Capítulo IV, "O Papel da Tradição", é um exemplo de onde uma perspectiva sociológica plena poderia ter ajudado a esclarecer a maior complexidade da situação histórica, particularmente quando conside­ra a atitude de Jesus frente à Lei e a halaká. Certamente os termos mais simplificados da discussão são, na realidade, mais próximos aos ter­mos usados dentro do próprio texto do NT; mas até então, eles não re­fletiriam a realidade social do período com suficientes detalhes. Assim, no caso da reação de Jesus para com a tradição um tratamento mais suavizado deveria ter notado que a própria interpretação de Jesus da Torá, a partir de um aspecto, estava bem dentro da gama do debate corrente sobre a halaká entre os próprios fariseus, e, de outro, era em si um tipo de tradição. Espero que seja, suficientemente, claro dos §§15 e 17-18 que o cristianismo não era contra a "tradição" em si; §16 é acerca

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da tradição judaica; e a principal tese em curso é que tal tradição não era um ponto unificador dentro do cristianismo primitivo.

Capítulo V, "O uso do Antigo Testamento", pede mais refinamento ao considerar Jesus e a Lei e sobre os métodos de exegese. Os termos em que o primeiro foi colocado, na primeira edição, era somente a tradição recebida da época, mas essa própria tradição tinha sido alterada (um bom exemplo de como uma tradição se desenvolve); e eu desejaria unir minha voz àquelas pressionando por um estabelecimento mais comple­to de Jesus dentro do judaísmo de seus dias25. Quanto ao segundo, as discussões dos termos tem sido grandemente expandidas, e as defini­ções modificadas e remodeladas. Todavia, o objetivo do capítulo não era a precisão da definição, mas antes documentar que havia uma ampla gama de diversidade e uso exegético, ambos no judaísmo do séc. I e no cristianismo primitivo, e explorar as ramificações desse fato. O capítulo continua a servir bem a esse objetivo, com alguma revisão requerida.

O tópico do Capítulo VI, "Conceitos de ministério", é algo em que a análise sociológica tem provado fornecer resultados frutíferos26. Mais interação com tais discussões seriam valiosas, particularmente ao trazer o tema da autoridade e da legitimação a um foco maior, e tor­nando mais precisas as categorias tais como carismático e institucional. É suficiente dizer que no balanço eu ainda prefiro usar carismático no sentido dado por Paulo, e não tanto ou tão diretamente na definição cunhada novamente e tão central para Weber; principalmente porque a categoria weberiana pode tão facilmente ser usada sem considerar o uso mais específico paulino e assim dispensar o caráter intrinseca­mente teológico do termo (carisma como a expressão da graça), e por isso perder algo fundamental para a discussão do modelo paulino em particular. De modo que eu continuo a preferir institucionalização a um termo como rotineiro (Weber), não porque eu pense que a visão paulina de comunidade era ausente de estrutura, incluindo estrutura institu-

25 Ver os caps. 1-3 (.acima nota 10), e o que é citado na nota 9.26 Ver J. H . S chütz, Paul and the Anatomy of Apostolic Authority, SNTSMS 26, Cam­

bridge University 1975; B. H olmberg , Paul and Power. The Structure o f Authority in the Primitive Church as Reflected in the Pauline Epistles, CWK Gleerup 1978; R. B anks, Paul's Idea of Community, Paternoster 1980; M eeks (nota 5 acima), parti­cularmente o cap. 4; M . Y. M acD onald, The Pauline Churches. A socio-historical study o f institutionalization in the Pauline and Deutero-Pauline Writings, SNTSMS 60, Cambridge University 1988.

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donal, mas devido à força da palavra institucionalização ser claramente auto-evidente para descrever os desenvolvimentos de uma adoração mais espontânea e a organização das igrejas paulinas antigas27.

Ao escrever o capítulo VI, eu estava consciente de que o foco sobre ministério era muito limitador e não permitia discussão suficiente de outras categorias como comunidade e organização28. A escolha, como o livro todo, foi determinada pelo fato de que o ministério era um fa­tor de importância fundamental no desenvolvimento da autodefinição cristã durantes os primeiros séculos, um fator decisivo na determina­ção do molde da tradição católica, e permanece central nas discussões ecumênicas de hoje29. Aqui, de novo seria possível suscitar os mesmos temas ou os posteriores ao colocar as questões diferentemente. Mas é igualmente óbvio que a categoria longamente estabelecida e bem re­conhecida de ministério compreende um dos mais importantes itens no todo do movimento, passado e contínuo, da história cristã. Como um exemplo de uma das principais perfurações dentro do cristianismo primitivo ele continua a servir a um propósito útil dentro do tema ge­ral do livro que, dificilmente, poderia ser negligenciado. Aproveitei a oportunidade de uma página em branco final para adicionar um pará­grafo sobre a questão do sacerdócio e o ministério feminino.

No Capítulo VII, "Padrões de Adoração", a necessidade era du­pla. Primeiramente para modificar a seção sobre Jesus para refletir uma apreciação mais clara da espiritualidade judaica contemporânea.

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27 Cf. a discussão de H olmberg, Paul and Power, e M . Y. M acD onald, Pauline Churches, em que ambos desejam distinguir graus de institucionalização - "institucionaliza­ção cumulativa" (H olmberg), "comunidade em fase de institucionalização" - Pau­lo, "institucionalizador de comunidade estabilizada" - Colossenses e Efésios, e "Protetor de comunidade institucionalizada" - Pastorais (M acD onald).

28 Ver o cap. VI, nota 26. E a discussão de comunidade como focada no ministé­rio que explica porque a ênfase sobre o individualismo joanino ainda sustenta; não como uma negação do que poderíamos chamar de comunidade joanina (ou comunidades), mas como um modo de caracterizar a espiritualidade inculcada nessas comunidades (ver também as pp. 514s).

w A importância histórica de ministério como uma categoria na tradição católica e como discussão ecumênica é claramente mostrada pela proeminência que rece­be em tais documentos como Lumen Gentium, a declaração do Vaticano II sobre a igreja, 1965; a do "Anglican-Roman Catholic International Commision's Agreed Statement on Ministry and Ordination", 1973; e " Baptism, Eucharist and Ministry, World Council of Churches 1982".

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E a segunda, para modificar o tratamento dos "hinos a Cristo" (§35.3), particularmente Filipenses 2.6-11: no ínterim, o caráter de como uma miragem do mito do redentor gnóstico pré-cristão continua sendo ainda mais amplamente reconhecido, e meu próprio trabalho sobre os começos da cristologia foi suficiente para me convencer que a cristologia adâmica era o fator mais óbvio na formulação do hino filipense.

Parecia e ainda me parece que o Capítulo VIII, "Os Sacramentos", tinha que tomar como ponto de partida e foco o significado histórico dos dois sacramentos cristãos (quase) universais, mesmo quando o re­conhecimento de que a definição de sacramento esteja entre os pontos de discussão. Certamente deixei-me aberto à crítica por que a discussão foi ditada pelas discussões das perspectivas das épocas tardias. Eu não teria me recusado, como no capítulo III, a delimitar a exploração para as categoria que dominaram mais tarde o pensamento desse assunto- ao perguntar, simplesmente, como a fé e a espiritualidade chegaram à expressão ritual nos inícios? Alternativamente, se categorias tardias são permitidas para situar a agenda, por que limitar a discussão uni­camente ao batismo e à ceia do Senhor? Contudo, eu continuo impeni­tente nisso. Fica claro mesmo de um estudo bastante superficial do NT, que o batismo e a ceia do Senhor (incluindo aqui as tradições da última ceia) têm uma importância que perpassa uma ampla gama de material do NT que não tem paralelos em outros casos, tais como o lava-pés, o ósculo santo ou mesmo a imposição de mãos. E provável, na verdade, que a razão porque apenas esse dois atos rituais se tornaram sacramen­tos é que eles eram capazes de incorporar uma importância cristológica mais rica do que qualquer outro.

Visto que posso ser criticado por usar sacramentalismo como um termo tanto quanto pejorativo, simplesmente, indicarei que eu uso a palavra no sentido do dicionário - "alguém que atribui grande impor­tância aos sacramentos" - com a implicação de que há um risco de atri­buir muita importância a eles, isto é, à medida que eles chegam a ser considerados como exclusivos meios de graça. Eu ainda acredito que os ministérios de Jesus, Paulo e João constituem protestos vigorosos contra tais estreitamentos e delimitações da graça de Deus.

No Capítulo IX, "Espírito e Experiência", uma definição preliminar mais completa de entusiasmo poderia ser desejável. Talvez eu presu­misse tanto o retrato selado do entusiasta que o concluí em Jesus and the

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Spirit (p. 157). Mas a sentença final do primeiro parágrafo do §43 seria um ponto de partida suficiente, e o primeiro parágrafo de §43 suficiente para preencher o primeiro esboço preliminar. Certamente aqueles que entendem entusiasmo nos termos clássicos fornecidos por Ronald Knox30 teriam poucas dificuldades em reconhecer os traços característicos sen­do indicados. Eu adicionaria que não desejo que entusiasmo seja conside­rado somente em termos negativos. Ele também deveria ser considerado como tendo uma dimensão positiva. Ou, pelo menos, deva ser visto mais como um espectro - desde que mais desejável (liberação de emoções reprimidas e aproveitamento de motivação profundamente enraizada) para o menos desejável (emoções irrestritas e elitismo autopromocio- nal). Minha preferência por carismáticos reflete tanto meu trabalho mais antigo nessa área31 e a influência contínua do uso positivo e (para mim) determinantemente paulino. Fenomenologicamente, é claro, carismático e entusiástico se sobrepõem como tipos e eu talvez devesse expressar o modo característico deles mais explicitamente; mas espero que a discus­são nas pp. 295-6 seja suficiente para o propósito.

O foco do Capítulo X, "Cristo e Cristologia" é, com certeza, de­terminado, tanto pela questão deixada suspensa no fim do capítulo II (p. 99) como pelo achado repetido dos capítulos precedentes (de que a unidade em cada ponto analisado estava centrada cristologicamen- te). Funciona, portanto, como uma conclusão para as séries distintas de investigações que constituem a Parte I. Como tal seu objetivo é limitado. Há, com certeza, outros fatores na continuidade entre pré-e pós-pascal, e eu precisei incluir no documento o fato da unidade e diversidade antes de tentar explorar por que a cristologia primitiva se desenvolveu dessa maneira. Um aspecto importante da última se tornou a principal preocupação de meu próximo projeto de estudo32. Mas a preocupação aqui é, simplesmente, demarcar o fato da uni­dade e diversidade dentro do próprio núcleo unificador. Dado esse objetivo delimitado, somente uma revisão modesta foi necessária.

Em comparação com os outros três capítulos da Parte II, Capítulo XI, "cristianismo Judaico", veio a ser peneirado pelo seminário reque­rendo, surpreendemente, uma pequena revisão. Eu espero que esteja

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10 Ver K nox no cap. IX, n. 2, pp. 1-4.■" Jesus and the Spirit, SCM Press/Westminster 1975.12 Christology in the M aking, SCM Press/W estminster 1980.

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suficientemente claro, a partir do §53, que os títulos usados em cada um desses quatro capítulos são insatisfatórios em um ou outro grau33 Eles funcionam, simplesmente, como rótulos para denotar áreas de pesquisa, não como definições. Nem devem ser considerados como descrevendo movimentos coerentes e distintos. Simplesmente deno­tam as principais facetas e tendências dentro de movimentos muito mais complexos, e um ou mais, certamente, estariam presentes em maior e menor grau nas igrejas e áreas particulares. Deve ficar claro cjue, como antes, eu segui a direção dos desenvolvimentos no séc. II. E uma questão prática por que na segunda parte do séc. II, havia, em termos muito simplistas, quatro reivindicações principais ao título "cris­tão". Minha questão é simplesmente, como isso veio a ser? O que isso nos fala acerca do caráter do cristianismo do séc. I? Em que medida to­das as quatro alternativas podem, apropriadamente, ser descritas como "cristãs"? O seminário, sobre esse capítulo, evocou uma discussão fas­cinante sobre o tema, por que o ebionismo estava errado? E por que seu desenvolvimento estava certo? Minha resposta curta e provisória seria que o principal corpo de cristianismo judaico primitivo no evento permitiu uma diversidade em que ambos trouxeram para o centro crístológíco e refletiram a própria sinceridade de Jesus, enquanto que o cristianismo judaico herético era condenado precisamente por seu fracasso em reco­nhecer e respeitar essa diversidade. Nesse capítulo I eu sou incapaz de tratar com a questão perturbadora do anti-semitismo no NT, onde o de­bate desde a primeira edição do Unidade e Diversidade no Novo Testamento é particularmente fértil,34 retornarei a isso em uma publicação futura.

33 Ver, particularmente, R. M urray, "Jews, Hebrews and Christians: Some Needed Distinctions", Nov Test 24,1982, pp. 194-208. De outro lado, talvez eu deva indicar que a conclusão do capítulo XI (p. 357 abaixo) em grande medida antecipa categori- zação quadrúplice sugerida por R. E. B rown, "Not Jewish Christianity and Gentile Christianity but Types of Jewish/Gentile Christianity", CBQ 45,1985, pp. 74-9.

34 Ver particularmente S. S andmel, Anti-Semitism in the New Testament, Fortress 1978; A. T. D avies, org., AntiSemitism and the Foudations o f Christianity Paulist, 1979; J. H oening , Jesus and Christians in Dialogue. New Testament Foundations, Westminster 1979; F. M ussner, Tractate on the Jesus. The Significane o f Judaism for Christian Faifth, 1979, ET Fortress/SPCK 1984; J. G . G ager, The Origins o f Anti- Semitism. Attitudes Towards Judaism in Pagan and Christian Antiquity, Oxford University 1983; N. A. B eck, Mature Christianity. The Recognition and Repudiation of the Anti-Jewish Polemic of the New Testament, Associated University Presses 1985; P. R ichardson, org., Anti-Judaism in Early Christianity. Vol. I. Paul and the

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Como as introduções aos capítulos XI e XII deixam claro, o obje­tivo do Capítulo XII, "Cristianismo Helenístico", é explorar a interface entre o movimento provindo da Palestina e a religião helenística mais ampla. Essa interação era fantasticamente complexa e examiná-la ade­quadamente, mesmo dentro dos alvos da presente pesquisa, requereria uma seqüência de estudos inter-relacionados dos relacionamentos do cristianismo infante com as antigas religiões greco-romanas, mágica e astrologia, filosofias religiosas correntes, cultos de mistérios, para não mencionar as estruturas sociais mais amplas. Isso é, obviamente, uma tarefa impossível para este volume. O capítulo original, é claro, refle­tia o interesse nas influências gnósticas e proto-gnósticas do séc. I que foram um traço importante dos estudos do NT para muitos do presen­te século. E ainda que esse interesse esteja desvanecendo, as teses de K õ e s t e r e daqueles que foram aflitos com a "febre de Nag Hammadi" se ocuparam da temática suficientemente e desafiadoramente para man- tê-la viva para que a idéia central do capítulo fosse mantida. Mais im­portante ainda, o gnosticismo em suas multiformas foi, rapidamente, tornando-se o principal desafio para o cristianismo (católico) no séc. II. De modo que continua ser apropriado perguntar se e em que medida esse desafio foi prenunciado no período do NT - especialmente quan­do ambos os lados nas disputas subseqüentes asseveraram corajosa­mente a sua fundamentação dos textos para si mesmos.

Por outro lado, visto que os movimentos gnósticos do séc. II eram os primeiros exemplos do sincretismo religioso, muitas das questões propostas no capítulo XII poderiam também ser reformuladas em ter­mos de cristianismo sincrético. Pois ao cristianismo, por falar ao mundo helenístico, algum grau de sincretismo era inevitável; isto é, simples­mente, uma aplicação da conclusão extraída em retrospecto do capí­tulo II, que a fim de ser ouvido, o Evangelho precisa ser colocado em termos que pode ser apreciado pela audiência particular endereçada. Mas até onde pode ir essa adaptação para contextos e mudanças par­ticulares? E até onde poderia ir antes de deixar de ser cristã, ou seja, inaceitavelmente diversa? A despeito de suas limitações, portanto, a tentativa de traçar um ou dois dos estratos dessa diversidade do séc.

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Gospels, Wilfrid Laurier University 1986; S. G. W ilson, org., Anti-Judaism in Early Christianity. Vol. 2. Separation and Polemic. Wilfrid Laurier University 1986; M. R. W ilson, Our Father Abraham. Jewish Roots of the Christian Faith, Eerdmans 1989.

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I, que demonstra o problema da unidade na diversidade sincrética e que com alguma plausibilidade pode ser (o que pode ser descrita como uma luz em retrospecto) colocada como uma trajetória gnosticizante, mantendo o seu valor dentro da edição revisada.

Como já foi mencionado, o Capítulo XIII, "Cristianismo Apoca­líptico", foi um capítulo com o qual rapidamente fiquei um pouco insatisfeito tão logo foi publicado. A caracterização de apocalíptico da qual sou herdeiro e na qual estruturei o capítulo foi rapidamente subvertida pela nova onda de interesse na pseudepígrafa judaica e pela abordagem inovadora e análises mais detalhadas, particular­mente de J. J. C ollins e de C. Rowland. Eu considerei muito se uma revisão do tipo "retocar e remendar" seria adequada para o mesmo. O seminário concordou que a questão, principalmente, resumia-se àquela da definição. O uso tão abrangente da apocalíptica deveria ser abandonado, e a confusão e sobreposição entre apocalíptica e escato- logia resolvidas ao se deixar claro que o principal foco do capítulo era sobre escatologia apocalíptica - isto é, não meramente referente ao (ou eventos do) fim (escatologia), mas aquilo que lhe diz respei­to como caracterização, ainda que não exclusivamente expresso na literatura apocalíptica35. Todavia, as caracterizações de apocalipse e escatologia apocalíptica (§§66.2 e 66.3) permanecem válidas como caracterizações, assim tudo o que foi requerido foi uma reescrita da p. 454 para esclarecer a questão de definição, e uma implemen­tação consistente dessas definições por todo o restante do capítulo. Visto que o ponto foi suscitado em uma ou duas revisões, talvez deva ser reiterado que cristianismo apocalíptico não existia como uma entidade separada dentro do cristianismo primitivo. Era uma ten­dência ou faceta ou dimensão, característica de todo o cristianismo primitivo em maior ou menor grau. É, e sempre foi, precisamente, a minha questão porque a escatologia apocalíptica era também parte integrante do cristianismo do séc. I e do cristianismo do NT para ser ignorada ou descartada.

35 Ver a declaração mais acurada em J. J. C ollins, The Apocalyptic Imagination, Crossroad 1984, p. 9. Assim eu aceito os principais pontos de R owland na pri­meira edição de The Open Heaven, SPCK 1982, pp. 354-6, embora ele não dê su­ficiente peso ao fato de que a ressurreição dos mortos seja em si uma categoria apocalíptica no sentido que primeiramente emergiu na literatura apocalíptica e seja um traço de diversos apocalipses importantes.

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Com o Capítulo XIV, "Catolicismo primitivo", o principal proble­ma era o próprio título. "Catolicismo primitivo" tornou-se um termo fora de moda, o produto do confessionalismo Luterano, e possuidor de um tom caracteristicamente pejorativo36. Esse comentário partiu de um membro Luterano do seminário concordante com a crítica de um ou dois resenhistas Católicos Romanos da primeira edição porque no Unidade e Diversidade no Novo Testamento eu demonstrava um precon­ceito anti-Católico.37 Certamente, em uma nova leitura do capítulo, eu vi como se deu a insinuação de: "Que o Catolicismo Primitivo era uma distorção do verdadeiro cristianismo".38 Isso, contudo, não foi a minha intenção. Espero que haja enfatizado isso o suficiente nas diversas notas do catolicismo primitivo já presentes dentro do NT, as quais considero fornecer a definição normativa do verdadeiro cristianismo. Como indi­co no capítulo XIV, eu sigo a velha tese de F. Baur pelo menos na me­dida em que o catolicismo emergente era uma síntese católica de diver­sas correntes e tendências (e facções) dentro do cristianismo primitivo. A nota crítica que se suscita eu não posso negar, mas não se trata de uma crítica ao catolicismo (ou Catolicismo) como tal. Antes, minha preocupa­ção é apontar o risco de um catolicismo que não é católico o suficiente. Quando catolicismo faz uma reivindicação monopolista e daí exclui outros elemen­tos que também são herdeiros legítimos do cristianismo primitivo, tal se torna mais sectário do (qualquer que seja a largura) do verdadeiramente católico39. Ao dizer isso, eu não pretendo passar um juízo negativo sobre a

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16 "Uma construção protestante alemã, mais usada na anatomia ecumênica do que no estudo do Novo Testamento" (M urray, "Jews, Hebrews and Christians" p. 197). Ver também F. H ahn, "Das Problem das Frühkatholizismus", Exegetische Beiträge zum Ökumenischen Gespräch, Göttingen 1986, pp. 62-6; W. T rilling, "Bemerkungen zum Thema 'Frühkatholizismus', Eine Skizze', em J. R ogge & G. S chille, org., Frühkatholizismus im ökumenischen Gespräch, Berlin 1983, pp. 62-70.

17 R. K ugelman, C. P., em Theological Studies, December 4,1978, p. 780.lK Ibid. Por outro lado, como F. H ahn nota, eruditos Católicos Romanos muito

naturalmente entenderam o termo em seu valor como evidência dos inícios Católicos do cristianismo o que já seria uma resposta apologética (F. H ahn , "Frühkatholizismus als ökumenisches Problem", Beiträge pp. 59-60). Para uma discussão positiva e moderada ver H . S chürmann , "'Auf der Suche nach dem 'Evangelisch-Katholischen', Zum Thema 'Frühkatholizismus" em J. R ogge & G. S chille, Frühkatholizismus im ökemenischen Gespräch, Berlin 1983, pp. 71-107.

n Espero que esta declaração de minha questão encontre a crítica de B erger em ThR 53,1988 (p. 366).

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recusa católica do gnosticismo ou do ebionismo. Mas quero perguntar se um catolicismo que abraçou o anti-semitismo e condenou os montanistas e messalianos era suficientemente católico. Estou plenamente cônscio do risco de brincar com as palavras aqui. Como poderia uma igreja católica não incluir todos os cristãos, visto que católica quer dizer universal? O ris­co, contudo, permanece, de que no evento católico se torne o nome de um partido ou reivindicação faccionária que exclua outros que têm o direito legítimo ao título Cristão40. 0 problema do catolicismo primitivo é precisa­mente aquele da maioria buscando desenhar as fronteiras do círculo que inclui e exclui do corpo total de crentes cristãos.

Como, então, evitar o tom pejorativo do Catolicismo Primitivo? Não existe uma resposta fácil41. Ortodoxia Primitiva poderia ter servido; mas isso simplesmente significaria saltar da panela para o fogo, visto que Or­todoxia se tornou o nome coletivo do cristianismo oriental, assim como Catolicismo se tornou o nome coletivo para o cristianismo ocidental. Além disso, catolicismo primitivo não se liga a uma importante tendência da dis­cussão corrente na maior parte do séc. XX. No final, decidi ficar com o termo original, com única modificação de não usar letras maiúsculas para as letras iniciais (católica primitiva/catolicismo, no lugar de Católica pri­mitiva/Catolicismo), na esperança de a possível confusão entre catoli­cismo e Catolicismo Romano pudesse ser atenuada. Mas também com a esperança de que a ambigüidade incorporada no título pudesse servir como lembrete constante do problema histórico da anulação completa da diversidade legítima dentro das formas reconhecidas da igreja universal.

Finalmente, no Capítulo XV, "A autoridade do Novo Testamento", é importante reconhecer a natureza, deliberadamente, limitada da dis­cussão. Não tive nenhuma intenção de suscitar questionamentos acer­ca da propriedade de um cânon ou da legitimidade de incluir alguns

40 O. Cullmann registra que o esboço escrito de certo discurso do Papa João PauloII, durante a celebração de 1980 do aniversário da Confissão de Augsburg, con­tinha a declaração: "O Espírito de Deus nos permitiu reconhecer novamente o quanto a igreja não tem realizado a plenitude da catolicidade desejada por Deus ao vislumbrar de que há elementos Católicos autênticos fora de sua comunida­de visível" (Unity through Diversity, Fortress 1988, p. 21).

41 Parte do problema é o fato de que Catolicismo Primitivo é uma tradução inglesa do alemão Frühkatholizismus, e que em alemão Katholik e katholish se referem a Católico Romano. Não há nenhum equivalente alemão real para o inglês "ca- tholic" = universal. Na versão alemã dos credos a frase equivalente para "santa igreja católica" é "heilige christliche Kirche" (Santa Igreja Cristã).

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escritos e não outros. Isso teria ampliado demais a discussão para além do escopo do capítulo. De fato eu aceito a legitimidade de se ter um cânon, uma definição ou régua para medir o cristianismo (os documen­tos constitucionais do cristianismo), e estaria preparado para defender a inclusão senão de quase todos os documentos do NT e a exclusão dos (quase todos) restantes. Mas no capítulo XV era mais importante levar a discussão a um passo adiante disso: dado o fato do cânon e o que ele contém, note-se o que isso quer dizer. Significa unidade e diversidade. Significa que a igreja católica em sua sabedoria reconheceu a autoridade normativa de uma gama de escritos que realmente documentam que o catolicismo verdadeiro abrange - unidade por meio da diversidade.

Mas seria o cânon do NT suficientemente católico? Em termos polêmicos, não seria a vitória das facções vencedoras que escolheram apenas esses documentos para compreender e autenticar suas reivin­dicações de serem os verdadeiros herdeiros dos apóstolos? O cânon representaria verdadeiramente a plena diversidade do cristianismo do séc. I? A resposta é não. Já tratei do assunto de que no Unidade e Diversi­dade no Novo Testamento e transito entre dois níveis - a diversidade his­tórica das igrejas primitivas, e a diversidade mais limitada dos escritos do NT. Saliento dois pontos. Primeiro, a extensão da diversidade do NT precisa ser reiterada: caso eu esteja certo, também deve ser reconhecido que Paulo e João, para nomear somente os mais proeminentes, estavam engajados em explorar a circunferência ao redor do novo movimento e trazê-la de volta. Mas, segundo, ambos insistiam que uma linha deveria ser traçada, uma linha, ou linhas, entre a diversidade aceitável e inacei­tável. A reivindicação que faço, portanto, e a de que o cânon reflete a largura da diversidade aceitável que as figuras principais, Pedro, Paulo e João reconheciam (e em uma medida menor, Tiago). O cânon, portan­to, continua a dar as linhas mestras que já haviam sido traçadas no séc. I- linhas mestras traçadas de modo a incluir Tiago e o Paulo primitivo, o Apocalipse e Atos, João e também os sinóticos.

Mas a Igreja não selecionou o cânon? E isso não quer dizer queo catolicismo primitivo é mais a norma do que o NT como tal?42 Não.

42 "A fraqueza fundamental da posição D é negligenciar as implicações que fluem do fato histórico de que foi o Catolicismo Primitivo do séc. II que selecionou os escritos do NT e constituiu essa seleção como o cânon, a norma e medida do cristianismo genuíno" (Kugelman, p. 781).

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Dizer que a Igreja escolheu o cânon é um equívoco de meia-verdade. Uma maior aproximação deveria dizer que a Igreja reconheceu o cânon. Isso quer dizer, o catolicismo primitivo reconhecia que havia certos documentos que exerciam autoridade dentro do amplo círculo de igre­jas desde que foram entregues aos seus primeiros leitores. Era fato que os evangelhos e Paulo foram reconhecidos e já estavam funcionando como canônicos, mais ou menos, desde o começo o que tornou inevitá­vel que fosse reconhecido como canônico quando a idéia de um cânon fechado se tornou importante43. Na maioria dos casos, o ato formal de canonização (em si um modo também formar de descrever o que aconteceu) não atribuiu uma autoridade aos documentos do NT que já não possuiam44. Em um sentido muito real e importante, os prin­cipais documentos do NT escolheram a si mesmos, o cânon do NT se escolheu! Mas isso também quer dizer que o catolicismo primitivo não estava livre para pinçar e escolher dentro desses documentos, ainda que com certeza as notas interpretativas estariam e seriam adicionadas em algumas versões. Eles foram escolhidos, canonizados como estavam, em toda a sua diversidade, a despeito da gama de sua diversidade. Não hesito em declarar que foi a condução do Espírito que capacitouo catolicismo a reconhecer como canônicos uma gama de documentos, que tão ricamente incorporava a vitalidade diversa daquele movimen­to messiânico de renovação judaico durante as primeiras duas ou três gerações de sua existência, como uma inspiração e recurso para reno­vação similar nos séculos posteriores.

Essa também é uma questão que achei necessária fazer nas dis­cussões ecumênicas de que participei: a autoridade canônica do NT precisa ser reafirmada. A despeito do cuidado com que foi formulada, deve-se perguntar se a declaração de Montreal sobre "Escritura, Tradi­ção e Tradições", não tem, antes de tudo, tido o infeliz efeito unilateral de des-canonizar o cânon45. Se a Escritura é simplesmente uma expres­são da Tradição (o Evangelho) e não pode ser entendida exceto dentro da(s) tradição(ões) da(s) igreja(s), então há um perigo real que o gênio

43 Ver também meu "Levels of Canonical Authority", Horizons in Biblical Authority 4,1982, pp. 13-60, reimpresso em The Living Word, SCM Press 1987, pp. 141-74.

44 Contudo, a declaração é possivelmente verdadeira para alguns dos documentos que foram aceitos somente após longos debates.

45 Republicado em Apostolic Faith Today, org. H.-G. Link, World Council of Churches Geneva 1985, pp. 79-83.

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inspirado que reconheceu apenas esses, mas todos esses documentos, como canônicos seja subvertido e tornado de pouco efeito. Isso não ser­ve de modo algum, para discutir como esses textos devem ser interpre­tados. Simplesmente, significa que afirmar a Escritura como o critério da verdade do Evangelho precisa também significar que à Escritura deve ser permitida funcionar na crítica da tradição da igreja. Se esse princípio for perdido na prática, o cânon da Escritura se torna letra morta. A menos que as funções do NT em um papel crítico dentro da tradição, mas também contra o resto da tradição tenha cessado de ser canônico! Meu apelo final, então, ao revisar Unidade e Diversidade no Novo Testamento é que a igreja mais uma vez deveria deixar o cânon ser o cânon, como uma força e vara de medir para que a unidade na diversidade e por meio dela é a única verdadeira unidade46.

Resta-me a tarefa prazerosa de expressar minha gratidão aos rese- nhistas que acolheram e / o u criticaram a primeira edição do livro e aos leitores individuais que fizeram o favor de me fazer saber que acharam a temática do livro proveitosa. Contudo, os meus agradecimentos mais calorosos vão para os membros do "Durham Postgraduate NT Semi- nar" pelo auxílio magnífico que me prestaram na preparação da revi­são, particularmente àqueles que dispensaram o seminário nos capítu­los individuais - Jane A llison, John Chow, Ellen Christiansen, David Kupp, Bruce Longnecker, N icholas Taylor, Ray W itbeck, e meu colega Stephen Barton. Ellen Christiansen também prestou auxílio inestimá­vel ao revisar a bibliografia. Finalmente, resta um pensamento, o leitor típico, para um autor que acha que as palavras mais citadas que ele escreveu são aquelas que concluem o prefácio original para este livro. Um resenhista, com efeito, perguntou se "um cristão de mente sim­ples" não desejaria "que F iona Dunn tivesse destruído mais do que seis páginas do material datilografado". É o preço da fama!

Universidade de Durham Julho de 1989

James D. G. Dunn

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1 Cf. a valiosa agenda de questões propostas por Schürmann, "Suche", pp. 90-91.

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C a p í t u l o I

INTRODUÇÃO

§ 1. A "ORTODOXIA" E UM CONCEITO SIGNIFICATIVO DENTRO

DO PERÍODO DO NOVO TESTAMENTO?

A relação entre ortodoxia e heresia tem sido muito importante du­rante a história do cristianismo. Ortodoxia é entendida tradicionalmente como a conformidade com "a fé apostólica". Até a virada do séc. XX a tendência sempre foi de toda igreja, denominação ou seita reivindicar o monopólio dessa fé, para negá-la aos outros, para ignorar, denunciar ou perseguir os outros como heréticos. Uma determinada linha de inter­pretação (raramente reconhecida como tal) comprova a apostolicidade da fé que sustenta, e às restantes nega a apostolicidade - pois, então a polêmica acontece, porque eles também adicionaram, subtraíram ou de algum modo corromperam "a fé". O teste ou critério de apostolicidade é extraído diversamente dos escritos apostólicos: "do evangelho", das tradições apostólicas secretas, do desenvolvimento da tradição da Igreja, dos credos ecumênicos; ou, em termos mais institucionais, da sucessão apostólica, da Igreja em concílio, do Papa; ou, em termos mais individu­alistas, da inspiração direta do Espírito, uma "luz interior".

Há um problema imediato com os termos. "Ortodoxia" implica que uma distinção clara pode ser feita entre verdade e erro. A "or­todoxia" implica que há uma fé pura, não contaminada, um ensino correto; todas as variações disso, então, a um só tempo são "heréti­cas" em maior ou em menor grau. Na forma de uma antítese simplista, "ortodoxia" significa a verdade absoluta de Deus revelada à Igreja, e "heresia" denota qualquer desvio dessa fé única e claramente definida.I )isso resultam dois problemas.

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(a) Primeiro, um problema teológico, o problema da interpretação, resumido na pergunta, qual ortodoxia? Um fato simples é que não há nenhuma ortodoxia única no cristianismo moderno: o conceito de ortodoxia no cristianismo do ocidente é muito diferente daquele pre­dominante entre os cristãos orientais; ortodoxia católica romana não é a mesma que a ortodoxia protestante, e a ortodoxia pentecostal tam­bém é alguma coisa diferente; a ortodoxia "ânglo-católica" não é a ortodoxia "evangélica", e nem satisfaria à "liberal" e à "radical". Cada uma claramente entende e interpreta o conceito "ortodoxia" ao seu próprio modo. Mesmo aqueles que concordam com um único crité­rio de ortodoxia acham a interpretação um problema. Por exemplo, os protestantes geralmente concordam que a Bíblia precisa ter um papel central e fundamental para determinar a fé e a vida (sola scriptura); mas a fragmentação do protestantismo e as seitas protestantes demonstram que nenhuma ortodoxia protestante emergiu.

O problema da interpretação suscita assim a pergunta básica: há uma expressão final da verdade cristã cujo significado é inequívoco? Haveria tal expressão final? A verdade finalmente seria redutível a uma fórmu­la ou a uma declaração ou a um modo de fazer as coisas que é eterno ou imutável? Ou a subjetividade de nossa apreensão e a relatividade de nossa situação significa que tal finalidade nunca poderá ser reali­zada? Não é significativo que mesmo para o cristianismo tradicional a revelação final da verdade seja feita em uma pessoa, Jesus de Nazaré, e não em uma declaração? - pode um homem ser reduzido a uma de­claração?1 As ramificações desse problema alcançam espaços amplos e distantes pelo cristianismo e pela teologia. Teremos isso em mente por todos os capítulos subseqüentes e retornaremos a isso no final.

(b) O segundo problema acerca da mesma idéia de uma ortodoxia cristã é um que fornece a pauta para o presente estudo - um proble­ma histórico. Já havia de fato tal ortodoxia? - uma única fé claramente definida que separava a cristã da herética? A resposta tradicional de dentro do cristianismo tem sido a de que havia sim. A visão clássica de

1 Em uma resenha incompreensível B. M eyer, The Early Christians, pp. 194-5 abor­da essas questões (tendenciosamente editadas) como uma definição ou descrição de "ortodoxia". Contudo, deveria ficar claro que as questões são simplesmente, modos de apresentar o assunto - com efeito, meu estilo usual. Eu aceito comple­tamente, embora uma discussão de ortodoxia e heresia requeira um tratamento mais detalhado e mais matizado do que forneço aqui.

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ortodoxia é que sempre houve uma fé única e pura retrocedendo dire­tamente aos apóstolos, que a Igreja tem guardado o ensino de Jesus e dos apóstolos imaculado. Na luta contra a heresia das décadas finais do séc. II em diante o quadro típico apresentado pela ortodoxia é o de que a heresia era um ramo corrompido da fé verdadeira; em todos os casos o ensino puro da ortodoxia havia sido estabelecido primeiro; somente em um estágio tardio os lobos e falsos mestres aparecem para perturbar o rebanho e distorcer a fé. Assim, por exemplo, Eusébio cita Hegesipo para o efeito de que o erro ímpio somente começou a penetrar na Igreja no séc. II quando todos os apóstolos haviam falecido, antes desse tempo a Igreja: "Permanecera uma virgem, pura e imaculada" (HE, III.32.7-8). Similarmente, Tertuliano, um dos mais antigos e dos mais valentes defensores dessa visão de ortodoxia e heresia:

Achavam -se cristãos antes de Cristo? Ou a heresia antes da verdadeira doutrina? M as em tudo a verdade precede sua contra- parte. Seria absurdo considerar a heresia com o anterior à doutrina visto que foi profetizado que a heresia surgiria (prae.haer., 29).

E o mesmo escritor condena e caracteriza Marcião como: "Um de­sertor antes de se tornar herético" (adv.Marc.,1.1).

Essa foi geralmente a visão aceita de ortodoxia até o séc. XX. Mas a importante obra de W. Bauer, Orthodoxy and Heresy in Earliest Chris- tianity,2 demonstrou o quão fraca era a sustentação histórica dessa visão a não poder ser mais mantida seriamente. Bauer mostrou que o cristianismo do séc. II era de um conteúdo muito mesclado. Não havia nenhuma forma pura de cristianismo que existisse no princípio para poder ser chamada propriamente de ortodoxia. De fato não havia absolutamente nenhum conceito uniforme de ortodoxia - somente for­mas diferentes de cristianismo competindo pela lealdade dos crentes. Em muitos lugares, particularmente no Egito e na Síria oriental, é mais provável que aquilo que os clérigos tardios chamavam de cristianismo heterodoxo fosse a forma inicial de cristianismo, a força dominante nas primeiras décadas do estabelecimento do cristianismo nessas áreas. O conceito de ortodoxia somente começou a emergir no combate entre

' W. B auer, Orthodoxy and Heresy in Earliest Christianity, 1934, 2a ed., 1964, ET Fortress 1971 e SCM Press 1972.

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pontos de vistas diferentes - o partido que vencia reclamava o título "ortodoxo" para si! O ponto de vista atual é distorcido porque ouvi­mos somente a voz de um dos partidos - Clemente, Inácio, Policarpo, Ireneu, etc. - e somente os ecos e as citações dos ebionitas, de Marcião, dos montanistas etc.

Bauer delimitou suas pesquisas mais ou menos ao séc. II. O que dizer do cristianismo do séc. I? Ali o mito da igreja virgem foi compos­to pela crença no período inicial do cristianismo como um tempo de inspiração única (apostólica) - com o período subapostólico freqüen­temente representado como um tipo de queda da pureza primordial. Essa visão idealizada de uma era canônica do cristianismo primitivo, em que os apóstolos falavam como uma única voz autorizada sobre to­dos os assuntos de importância, já havia sido duramente desafiada um século antes de W. Bauer por seu quase homônimo F. C. Baur. Quando a ortodoxia Católica havia assegurado seu quadro de pureza primitiva por (com efeito) subordinar Paulo a Pedro, e a ortodoxia Protestan­te por fazer Paulo o foco unificador do cristianismo primitivo, Baur postulava um conflito entre o cristianismo paulino e o petrino, como particularmente evidenciado pelos Gálatas, e arrazoava que o curso inteiro do cristianismo primitivo fora modelado pela oposição entre essas duas partes. Baur tentou forçar o fluxo da história cristã antiga para um canal mais estreito. Mas seu reconhecimento de que havia mais de uma corrente nesse rio e que seu curso estava longe de ser calmo e imperturbável foi de importância permanente. Desde então, viemos a perceber que o rio do cristianismo do séc. I era muito mais largo do que Baur imaginou que havia muitas correntes e contracor- rentes existentes nele, e que seus bancos de areia desmoronavam em muitos trechos. Em particular, duas disciplinas novas e importantes do séc. XX - a pesquisa da história das religiões (Religionsgeschichte), e o estudo da história das tradições do cristianismo primitivo (Tradi- tionsgeschichte) - têm confirmado que a antítese do cristianismo judai­co (petrino) e o cristianismo helenístico (paulino) era muito definida; em muitos pontos temos de reconhecer um cristianismo helenístico anterior a Paulo e distinguir o cristianismo judaico palestinense - por sua vez, é claro, sem deixar esses se tornarem categorias rígidas. Ou posto de outro modo, Religionsgeschichte e Traditionsgeschichte têm conduzido ao lar da erudição do NT a relatividade histórica do cristia­nismo do séc, I e a natureza fragmentária de nosso conhecimento do mesmo.

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Não é mais possível conceber, do cristianismo do séc. I, uma enti­dade tão claramente definida, facilmente extraível de seu contexto histórico como uma noz de sua casca; a realidade histórica era muito mais complexa, e nossa visão dela é muito menos clara do que foi pensada3.

Segue-se, obviamente, que o conceito tradicional de ortodoxia do cristianismo do séc. I não pode permanecer intocável por esses desen­volvimentos. Isso tem sido visto mais claramente por R. Bultmann e seus alunos. Por exemplo, o próprio Bultmann na parte final de sua magistral Theology of the New Testament4, dá atenção à considerável di­versidade dos interesses e idéias teológicas no período primitivo, e in­dica que não havia "uma norma ou uma corte autorizada de apelação para a doutrina" por todo esse período.

No início, a f é é um term o que distingue a com unidade cristã da com unidade dos judeus e da dos gentios, não ortodoxia (doutrina certa). O último tem seu correlato com heresia, que nasce das dife­renças que surgem dentro das com unidades cristãs5.

Os alunos de Bultmann levaram a discussão adiante com algumas reivindicações corajosas. H. Braun sustenta que "o elemento essencial­mente cristão, a constante... no NT" é o: "Auto-entendimento da fé"6, lí. Kàsemann considera o Quarto Evangelho não como a voz da ortodo­xia, mas como uma expressão de docetismo ingênuo - uma maneira de apresentar Jesus que desembocaria na própria heresia do Docetismo7. Mais corajoso ainda foi seu tratamento de 3 João: o autor (o presbíte­ro) não é um defensor da ortodoxia atacando o herético Diótrefes; ao contrário, Diótrefes é o líder ortodoxo da comunidade endereçada, en­quanto o presbítero é um cristão gnósticol Diótrefes age como um bispo

' Ver particularmente a apresentação forçada de W . W rede, "The Task and Meth­ods of 'New Testament'" (1897), ET em R. M organ, The Nature o f New Testament Theology, SCM Press 1973, pp. 68-116, especialmente as pp. 95-103.

1 R. Bultmann, Theology o f the New Testament, ET SCM Press, vol. I, 1952; vol. II, 1955.

1 Bultmann, Theology, II, p. 135. Veja mais abaixo pp. 9 9 ,525s." "The Meaning of New Testament Christology", God and Christ: Existence and

Province, ed., R. W. Funk, JThC, 5,1968.' 'I'lie Testament of Jesus, 1966, ET SCM Press 1968,1. Ver mais abaixo § 64.2.

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monárquico defendendo-se contra um falso mestre8. E H. Kõester, ao estender o método de W. Bauer para uma pesquisa do cristianismo do séc. I, escreve:

Temos que lidar aqui com um movimento que é sincrético na aparência e conspicuamente marcado pela diversificação des­de muito cedo. Porque sua individualidade não pode ser tomada como um a priori estabelecido9.

A questão, portanto, se torna mais e mais insistente: Houve alguma vez uma única ortodoxia dentro do cristianismo primitivo, dentro do Novo Testamento? Até mais básica, podemos usar apropriadamente os conceitos ortodoxia e heresia? E significativo falar de ortodoxia dentro do contexto do cristianismo do séc. I? H. E. W. Turner tentou defender o conceito em suas preleções Bampton de 1954, The Pattern of Christian Truth: A Study in the Relations between Orthodoxy and Heresy in the Early Church.10 Ele rejeitou a principal idéia da tese de Bauer e arrazoou em contraste que o cristianismo do séc. II poderia ser visto em termos de uma orto­doxia circundada por uma penumbra ou margem onde a linha frontei­riça entre ortodoxia e heresia estava ainda borrada (pp. 164-180). No período primitivo "ortodoxia era assunto de um sentimento instintivo antes que de normas doutrinárias definidas e fixas (p. 75s). Antes do credo escrito havia uma lex orandi: "Uma compreensão experimental relativamente completa e fixa daquilo que envolvia religiosamente ser um cristão" (pp. 94-95 - ênfases minhas). Mas isso é satisfatório? Ela presta atenção o suficiente à diversidade em larga escala (e discordân­cia) dentro do cristianismo primitivo do qual os estudiosos do Novo Testamento se tornaram cada vez mais conscientes desde F. C. Baur?

8 "Ketzer und Zeuge: zum johanneischen Verfasserproblem" (1951), Exegetische Versuche und Besinnungen, Göttingen, vol. 1 ,1960 , pp. 168-87. Veja abaixo p. 476.

9 "Gnomai Diaphoroi: the Origin and Nature of Diversification in the History of Early Chrisitianity", HTR, 58, 1965, reimpresso em Trajectories through Early Christianity, ed., J. M. R obinson & H. K öester, Fortress 1971, p. 117. Cf. H. D. B etz, "Orthodoxy and Heresy in Primitive Christianity", Interpretation, 19,1965: "A fé cristã não existia no início. No início havia meramente o judeu "herético", Jesus de Nazaré. Qual das diferentes interpretações pode ser chamada de autentica­mente cristã? E quais são os critérios para fazer essa decisão? Isso me parece o problema cardeal dos estudos do Novo Testamento de hoje" (p. 311).

10 H. E. W. T urner, The Pattern o f Christiah Truth, Mowbray 1954.

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No extremo oposto J. Charlot sustenta que: "Nenhuma posição teoló­gica... é comum a todos os escritores e níveis de tradição no Novo Tes­tamento"11. Mas isso é ainda mais satisfatório? Os cristãos primitivos não tinham nada em comum?

Na tentativa de examinar todo esse tema novamente pareceria mais sábio evitar o uso dos termos ortodoxia e heresia, pelo menos como categorias básicas da discussão: os conceitos requerem também muitas perguntas, são muito emotivos, fornecem categorias, que são de longe muito rígidas, e tendem a bloquear as vias da investigação antes que abri-las. Há uma terminologia alternativa? Uma possibilidade é usar a metáfora introduzida na discussão por J. M. Robinson. Ele convida os estudiosos do Novo Testamento a fugir do que é antigo, com suas ca­tegorias antes estáticas e fazer uma re-investigação do NT e de outros materiais dos sécs. I e II, muito mais em termos de trajetória ou direção de movimento. As deficiências da metáfora são óbvias, e Robinson está consciente delas12, mas a linguagem da trajetória revela o fato que o cristianismo primitivo era um processo vivo, dinâmico, desenvolven­do-se continuamente em diferentes modos e direções ao responder às diversas influências e desafios. A metáfora provará ser de alguma va­lia na Parte II do presente estudo, todavia, menos na Parte I onde exa­minaremos uma série de seções cruzadas por meio do material do NT. A terminologia mais útil para nossos propósitos é a linguagem de nosso título - unidade e diversidade: ambas são menos coloridas e menos emoti­vas e, penso eu, permitirão uma maior flexibilidade na discussão.

A nossa questão básica será então: havia um elemento unificador no cristianismo primitivo que o identifica como cristianismo? Se for assim, quão bem definido era? Era um estrato amplo ou estreito? Era definido em diferentes modos? Havia uma diversidade de fé e prática? - diversidade dentro da unidade, diversidade em torno do centro unificador? Sendo assim, quão amplo era o alcance da diversidade? Onde a diversidade válida ou aceitável incidia sobre uma conduta ou ensino inaceitável? Que concordância havia a respeito de tais marcas fronteiriças sobre temas diferentes, em diferentes ambientes? Por toda a discussão tere­mos de nos recordar que o problema da unidade e da diversidade não

11 J. C harlot, New Testament Disunity: its Significance for Christianity Today, Dutton, 1970, p. 111.

12 Trajectories, pp. 14ss, 69.

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se refere somente ao próprio cristianismo, mas se torna alguma coisa mais urgente quando incluímos dentro disso a relação do cristianismo com o próprio Jesus. Existe uma unidade entre Jesus e os diferentes desenvolvimentos pós-pascais? O conceito e a prática religiosa do pró­prio Jesus e seu auto-entendimento pessoal estendem a diversidade do cristianismo do séc. I, além disso, ainda? Resumindo, o que era a unidade, o elemento unificador, a força unificadora no cristianismo primitivo? Qual o tamanho da diversidade existente no cristianismo desde o princípio?

O estudo que se segue pretende ser mais provocativo do que defi­nitivo, para demonstrar a unidade e a diversidade antes que para do­cumentá-las de um modo exaustivo. Começamos por perguntar quais eram as ênfases características no evangelho como apresentado pelas quatro figuras cujos ensinos ou escritos formam a maior parte do NT- Jesus, Lucas, Paulo e João. Veremos que mesmo quando tomamos os documentos do NT diante da importância da amplitude da diversida­de não é sem consideração, ainda que seja possível falar de um cen­tro unificador para o kerygma pós-pascal de alguma maneira (cap. II). Subseqüentemente, na Parte I, nos empenharemos em penetrar abaixo da superfície dos documentos do NT, submergindo, por assim dizer, em uma série de poços exploratórios dentro do material do NT em vários pontos-chave. Nossa tarefa em cada caso será examinar os di­versos filamentos e camadas descobertas a fim de averiguar se o mes­mo elemento unificador ou se de fato algum elemento unificador está presente em tudo. Estudaremos primeiro a área da pregação e ensino do cristianismo primitivo, as várias tradições orais e/ou formulações escritas pelas quais sua fé distintiva veio a se expressar em palavras ou em que encontrou inspiração e autoridade para essa fé - fórmulas confessionais primitivas (cap. III), várias tradições orais, algumas her­dadas e algumas criadas pelos primeiros cristãos (cap. IV), e o próprio AT (cap. V). Em um segundo momento, nos voltaremos para a área da organização e culto do cristianismo primitivo, seus conceitos de minis­tério e comunidade (cap. VI), seus padrões de adoração (cap. VII), seus atos rituais (cap. VIII). A Parte I será concluída com um estudo dos dois elementos fundadores e comuns mais obviamente na primeira ge­ração do cristianismo primitivo, a experiência do Espírito (cap. IX) e a fé em Cristo (cap. X). Mesmo aí não há nenhuma diversidade pequena- mas há unidade também?

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Na Parte II nosso objetivo muda. Onde previamente víamos uni­dade dentro da diversidade, agora procuramos mapear de um modo limitado o alcance e o espectro dessa diversidade. Conseqüentemente nosso procedimento muda também, e tentaremos identificar e traçar as principais correntes dentro do curso da primeira e da segunda geração, para ver como o cristianismo se desenvolveu durante o séc. I e como os cristãos do séc. I reagiram aos desenvolvimentos tanto dentro como ao redor do cristianismo. Sem deixar de esquecer o que foi dito acima (p. 67) nosso estudo aqui é mais convenientemente pautado sob os títu­los do cristianismo judaico (cap. XI), cristianismo helenístico (cap. XII), cristianismo apocalíptico (cap. XIII) e catolicismo primitivo (cap. XIV). Essa investigação da unidade e diversidade no NT inevitavelmente suscita muitas questões a respeito do status do próprio NT dentro do cristianismo, e nas Conclusões olharemos para algumas repercussões de nossos achados sobre a idéia do cânon do NT e sua autoridade para os cristãos hoje (cap. XV).

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Primeira Parte

UNIDADE NA DIVERSIDADE?

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C a p í t u l o I I

KERYGMA OU KERYGMATA?

§ 2. INTRODUÇÃO

A Pregação tem um papel de importância fundamental no NT. O ministério público de Jesus é regularmente caracterizado em termos de pregação. Em Atos a conversão se dá pela pregação. A pregação caracteriza de modo marcante o modelo de evangelismo empregado por Paulo. João também une a palavra com o Espírito como o poder re­cria ti vo de Deus. Tiago e 1 Pedro, igualmente, atribuem à regeneração espiritual à palavra pregada. De modo que proclamação do evangelho, ou kerygma, para usar o termo técnico do debate moderno, é uma área chave para se estudar.

O problema que nos confronta pode ser posto simplesmente as­sim: podemos falar do "kerygma do NT"? Ou devemos falar de keryg- mata do NT? Havia uma única expressão normativa do evangelho no tempo dos primórdios do cristianismo? Ou havia muitas expressões diferentes do evangelho, com nenhuma tendo uma melhor reivindi­cação de ser o evangelho que qualquer outra, mas todas era o evan­gelho?

O primeiro problema é o de definição. Kerygma pode significar o que é pregado, ou o ato de pregar (cf. Rm 16.25; ICor 1.21; 2.4 em que poderia ter um ou outro sentido). No debate a respeito do kerygma no NT, C. H. Dodd focalizou sua atenção sobre kerygma como conteúdo e R. Bultmann sobre kerygma como pregação.1

Estatisticamente euaggelion (evangelho) e marturia (testemunho) são mais impor­tantes que kerygma no NT. Mas kerygma tem sido o termo dominante no debate que cobre metade das décadas do séc. XX, e serve para colocar os temas para nós mais claramente, sem restringir a discussão subseqüente de algum modo.

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Em seu conhecido estudo: "The Apostolic Preaching and its Developments"2, Dodd extraiu de uma análise dos discursos de Atos e das epístolas paulinas o seguinte esquema como o coração do kerygma primitivo:

As profecias são cum pridas, e a nova era é inaugurada pela vinda de Cristo.Ele nasceu da semente de Davi.Ele m orreu de acordo com as Escrituras, para nos libertar do pre­sente século mal.Ele foi sepultado.Ele ressuscitou ao terceiro dia de acordo com as Escrituras.Ele está exaltado à m ão direita de Deus, com o Filho de Deus e Senhor dos vivos e mortos.Ele virá novam ente como Juiz e Salvador dos Hom ens (p. 17).

Dodd considera que isso é: "O esquema positivamente claro e certo que perfaz a pregação dos apóstolos" (p. 31). Reconhece que: "Dentro do NT há uma imensa gama de variedade na interpretação que é dada ao k e r y g m a mas está igualmente convencido que: "Em cada interpretação os elementos essenciais do kerygma original cons­tantemente são considerados. Com toda a diversidade dos escritos do Novo Testamento, eles formam uma unidade em sua proclamação do único evangelho" (p. 74). A posição de Dodd é clara: a despeito da diversidade, ainda há algo que ele pode chamar o kerygma, o único Evangelho.

Os assim denominados teólogos kerygmáticos, por sua vez, têm focado sua atenção, principalmente, sobre o kerygma como pregação, sobre o ato da proclamação na imediação do presente antes que sobre o registro do que foi proclamado no passado. O kerygma, reivindicaBultmann,

não é nem um a iluminação W eltanschauung (visão de mundo) fluin­do em verdades gerais, nem um relato m eram ente histórico, que, como a relato de um repórter, recorda ao público de fatos im por­tantes, mas passados. Ao contrário... é, por natureza, um discurso pessoal que aborda cada individuo, lançando à própria pessoa a

2 C. H. D odd, The Apostolic Preaching and its Developments, Hodder & Stoughton 1936, re-impresso em 1963. 1

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questão de entregar seu problemático auto-entendim ento, reque­rendo um a decisão dele3.

Até certo ponto o caso de Bultmann depende do uso da palavra kerygma no NT que ele edifica sobre um fundamento firme; pois das sete ocorrências da palavra algumas são melhores entendidas como denotando o ato de pregar (particularmente Mt 12.41/Lc 11.32; ICor15.14) e nenhuma requer referência ao conteúdo. Uma questão impor­tante, portanto, uma vez mais emerge: que kerygma no NT, provavelmen­te, inclui a iáéia de proclamação em um tempo e lugar particulares. Ou seja, kerygma sempre é situacional em alguma medida - em alguma medida, condicionado pelas circunstâncias que pediam a irrupção da procla­mação. Isso, por sua vez, torna muito improvável que o kerygma pos­sa, simplesmente, ser abstraído desses contextos diferentes como uma fórmula fixa que pode ser aplicada sem troca ou modificação em toda e qualquer situação. Nossa questão assim se torna: podemos encontrar uma fórmula absoluta do kerygma no NT? Ou ele sempre será relativo em alguma medida? E se é assim, quão relativa é? Há diferentes formas subjacentes a um elemento comum, contudo diferentemente concebi­do e expresso? Digno de nota é que Bultmann, e igualmente Dodd, está muito satisfeito em falar de o kerygma. Mas podemos propriamente fa­lar desse modo? - Kerygma ou kerygmata? Um evangelho ou muitos evangelhos?

Ao lançar essa questão há o risco constante de perder de vista a floresta por causa das árvores. Parece mais sábio, portanto, não se precipitar na análise de textos particulares, mas se concentrar sobre a edificação de um quadro mais amplo. Nosso método então neste ca­pítulo é, de certo modo, dar um panorama das mais importantes pro­clamações do evangelho no NT, concentrando-nos em reconhecer os traços característicos de cada kerygma antes que tentar um tratamento balanceado do todo. As respostas às nossas perguntas, que este méto­do fornece, inevitavelmente serão primeiras aproximações; mas pelo menos, no fim do capítulo, deveremos ver mais claramente que a di­versidade dos escritos do NT é um fator de importância considerável em nossa avaliação do cristianismo do séc. I e que tem muitas facetas e ramificações. Então, tendo mostrado que há um caso de prima facie

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1 Bultmann. Theology I, p. 307.

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para o nosso estudo, podemos continuar a examinar isso com muito mais cuidado e mais detalhadamente.

§ 3. O KERYGMA DE JESUS

Todos os três evangelhos sinóticos4 descrevem o ministério pú­blico de Jesus em declarações sumárias como "pregando o evangelho de Deus" (Mc 1.14), "pregando o evangelho do reino" (Mt 4.23; 9.35), "pregando as boas novas do reino de Deus" (Lc 4.43; 8.1; 16.16). A ex- pressão-chave aqui, obviamente, é "reino de Deus"; pois Marcos tam­bém continua a definir a proclamação de Jesus do evangelho de Deus em termos do "reino de Deus": "O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo; arrependei-vos, crede no evangelho" (Mc 1.15). Nessa única sentença os principais traços do kerygma de Jesus estão resumidos.

1. O reino de Deus está próximo. (Mc 1.15; Mt 10.7; Lc 21.31). O rei­no de Deus denota aqui o governo manifesto de Deus cuja intervenção conduzirá a um fim à história deste mundo como o conhecemos e ao seu julgamento (Mt 10.15/Lc 10.12; Mt 24.37-4.4/Lc 17.26-36). O reino está próximo - virá dentro do período de vida da própria geração de Jesus (Mc 9.1; 13.28-30; Mt 10.23). Por isso os pobres são benditos, por­que a eles pertence o reino vindouro (Lc 6.20/Mt 5.3), quando Deus corrigir todas as injustiças dos homens (Lc 16.19-31; 18.17s; Mt 23.33). Esta é a boa nova para os pobres (Mt 11.5/Lc 7.22; Lc 4.18). É por isso que os discípulos de Jesus têm de orar: "Venha o teu reino" (Mt 6.10/ Lc 11.2).

A iminência do reinado de Deus no final dos tempos salienta o desafio do kerygma de Jesus para o ponto da crise. À luz do reino vin­douro os homens precisam decidir-se, e decidirem já. Daí encontrar­mos entre as parábolas de Jesus, o mais característico meio/modo da pregação de Jesus, um bom número de parábolas de crise, onde a nota de advertência soa alta e clara - em particular, a(s) parábola(s) do

1 O Quarto Evangelho não faz uso das palavras kêrussõ, kerygma, euaggelizomai ou euaggelion. Por isso, e por outras razões (ver abaixo pp. 9 4 ,156ss) delimitaremos nossa análise do kerygma de Jesus aos pirimeiros três evangelhos.

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K eryg m a o u K eryg m a ta? 79

senhor ausente, por cujo retorno os servos têm de estar preparados (Mc 13.34-36; Lc 12.36-38; Mt 24.42,45-51/Lc 12.42-46); a parábola a respei­to do ladrão que aparece inesperadamente (Mt 24.43s/Lc 12.39s); e a parábola das dez virgens (Mt 25.1-12). Ver também Marcos 13.14-20 (e mais abaixo pp. 9 4 ,465s).

O fracasso dessas expectativas em se materializar, no mínimo da maneira mais óbvia, sempre foi um problema para a teologia cristã (ver mais abaixo §§7.2; 50.3). Mas precisamos reconhecer que essa ex­pectativa da iminência do reino de Deus é parte do kerygma de Jesus, de outro modo não fazemos justiça a uma ênfase chave e caracterís­tica de sua proclamação pública (veja mais abaixo §67.2). Mas, ainda, o mais marcante de seu kerygma era sua proclamação de que o reino de Deus de alguma maneira já estava sendo realizado mediante seu ministério.

2. O tempo está cumprido. De acordo com os sinóticos, Jesus tam­bém proclamou que o reinado de Deus do fim dos tempos já estava se manifestando mediante suas próprias palavras e ações. A esperança longamente acalentada da era messiânica já estava começando a ser cumprida (Mt 11.5/Lc 7.22; Mt 11.11/Lc 7.28; Mt 11.12/Lc 16.16; Mt 12.41s/Lc 11.31s).

Bem -aventurados, porém , os vossos olhos, porque vêem; e os vossos ouvidos, porque ouvem. Pois em verdade vos digo que m ui­tos profetas e justos desejaram ver o que vedes e não viram ; e ouviro que ouvis e não ouviram (Mt 13 .16s/L c 10.23s).

Em termos específicos, o reino já estava no meio de seus ouvintes (Lc 17.20s); o aprisionamento de Satanás era esperado no tempo do fim, mas Jesus reivindicou que Satanás já estava sendo derrotado (Mc 3.27; Lc 10.18); o poder de Jesus sobre os maus espíritos, nos exorcis­mos, era prova positiva que o reino de Deus já havia chegado sobre eles (Mt 12.28/Lc 11.20).

A mesma nota de cumprimento chega por meio de diversas outras parábolas de Jesus - o quadro da festa nupcial (Mc 2.18s), a parábola do remendo novo em veste velha e a do vinho novo em odres velhos (Mc 2.21), as parábolas do tesouro escondido no campo e da pérola de grande valor (Mt 13.44-46), e a metáfora da ceifa do tempo final (Mt 9.37s/Lc 10.2).

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A tensão na proclamação de Jesus do reino entre esperança já cumprida e ainda não iminente também é um problema para a teolo­gia do NT. É resolvida com mais simplicidade pelo reconhecimento de um final próximo entre os entendimentos próprios de Jesus de sua missão. A certeza de que o reinado de Deus, no tempo do fim, já estava operante por meio seu ministério trouxe a convicção de que sua mani­festação plena não poderia estar longe de ser realizada (veja também §§45.3, 50.5).

3. Arrependei-vos e crede no evangelho. Nos sinóticos a resposta que Jesus requer de seus ouvintes pode ser resumida nestas duas palavras- arrepender, crer. A importância do arrependimento é marcada em di­versos lugares (Mt 11.21/Lc 10.13; Mt 12.41/Lc 11.32; Lc 13.3, 5; 15.7, 10; 16.30). O chamado é para algo radical, uma virada completa na direção básica da vida e das atitudes de seus ouvintes, é claramente indicada por algumas de suas parábolas, particularmente a do filho pródigo (Lc 15.17), e por alguns de seus encontros, particularmente com o jovem rico (Mc 10.17-31) e com Zaqueu (Lc 19.8); talvez antes de todas as coisas seus seguidores devessem se converter e se tornar como crianças (Mt 18.3; Mc 10.15/Lc 18.17).

O outro lado dessa dependência infantil em Deus é a fé. Nos sinó­ticos a fé é geralmente expressa em relação aos milagres, em que Jesus encoraja essa abertura para o poder de Deus a qual fará a cura possível (Mc 5.36; 9.23s.; Mt 9.28), ou recomenda que a fé alcance a completude (Mc 5.34; 10.52; Mt 8.10/Lc 7.9; Mt 15.28; Lc 7.50; 17.19; compare com Mc 6.5s.). Precisamos notar que em nenhum exemplo registrado Jesus requer a fé nele. A fé que procurava era a fé no poder de Deus no final dos tempos agindo por meio dele. Aqui encontraremos um problema ulterior quando viermos a comparar a proclamação de Jesus com o kerygma pós-pascal (veja §§7.2, 50.4).

4. A oferta que a mensagem de Jesus faz ao arrependimento e à fé era de participação no reino de Deus no final dos tempos e nas suas bênçãos: "Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus" (Lc 6.20/Mt 5.3). Em particular, isso incluía as bênçãos do per­dão e da aceitação (Mc 2.5; Lc 7.36-50) - uma oferta que é apresentada em diversas parábolas, por exemplo, a parábola da dívida gigantesca e o credor incompassivo (Mt 18.23-^5 - "o reino é semelhante..."), a pará­

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bola dos dois devedores (Lc 7Ais.), a parábola do fariseu e o publicano (Lc 18.9-14) e a parábola do filho pródigo (Lc 15.11-32).

Em seu próprio ministério Jesus incorporou esse perdão e aceita­ção do reino do fim dos tempos, particularmente em sua comunhão e mesa. Essas reuniões, das quais Jesus não excluía ninguém, nem mesmo os abertamente pecadores, expressavam o coração de sua mensagem, pois eram a amostra do banquete messiânico da nova era (Lc 14.13, 16-24). Daí Marcos 2.17 - "não vim chamar os justos (isto é, para a festa de núpcias), e sim pecadores" (ver também p. 249). Assim também seu grupo imediato de discípulos ao incluir dois ou três publicanos e ex-prostitutas. Essa era a razão de ele ser chama­do depreciativamente de "um amigo de publicanos e pecadores" (Mt11.19/Lc 7.34; 15.1s; 19.7).

5. Finalmente, podemos notar simplesmente o corolário ético da mensagem de Jesus. Em um contexto onde a lei escrita e de manei­ra crescente a lei oral determinavam a inteireza dos relacionamentos dos homens, tanto com Deus como com outros homens (ver o §16.1), a mensagem de Jesus era simples, contudo revolucionária. Ele radica­lizou a reivindicação de Deus: atinge o lugar mais recôndito da moti­vação humana secreta (Mt 5.21-32). Conseqüentemente, viver somente no nível de regras e estatutos é evitar as reivindicações de Deus (Mc 7.21-23); o arrependimento que Jesus buscava leva essa reivindicação a sério (Mt 23.26). Ao mesmo tempo, ele reduziu a reivindicação de Deus em uma palavra - amor. O primeiro e maior mandamento é, amar a Deus com todo o seu ser e o seu próximo como a si mesmo (Mc 12.28- 31); qualquer coisa que atrapalhar a expressão desse amor, até mesmo a Lei, deve ser descartada e ignorada (Mt 5.38-48).

6. Para resumir. Os traços característicos do kerygma de Jesus são estes: (1) a proclamação do reino de Deus, tanto a sua iminência como a sua presença - Jesus via a si mesmo como o instrumento dessa so­berania do fim dos tempos, mas ele não se colocava como o conteúdo de seu kerygma; (2) o chamado para o arrependimento e fé frente ao poder e reivindicação de Deus no fim dos tempos - Jesus mesmo não era o objeto da fé; (3) a oferta de perdão e de uma participação no banquete messiânico da nova ordem, com seu corolário ético do amor.

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§ 4. O KERYGMA EM ATOS

Já esboçamos o sumário do kerygma que Dodd extraiu amplamente dos sermões registrados em Atos. Aqui, contudo, não nos preocupare­mos como Dodd se preocupou em descortinar a proclamação das igrejas primitivas. Nossa tarefa é mais simples: usaremos os sermões em Atos simpresmente como o retrato de Lucas do kerygma dos crentes primiti­vos e teremos a atenção focada sobre seus traços distintivos. Também te­remos a oportunidade de inquirir seu valor histórico quando cavarmos mais fundo ulteriormente. Mas, aqui simplesmente, perguntamos: qual é o kerygma dos cristãos primitivos como retratado por Lucas em Atos?

1. Jesus proclamou o reino. Os sermões em Atos proclamam Jesus. Jesus se tornou o conteúdo da mensagem; o proclamador se tornou o proclamado. De modo particular, o principal foco recai sobre a ressurreição de Jesus; constantemente isso forma o elemento central da mensagem, tanto aos judeus como aos gentios (p.ex.: At 2.24-32; 4.1-2,3 — uma passagem que é um resumo; At 10.40s; 13.30-37; 17.18, 30s). Como veremos isso coincide com a ênfase da mensagem herdada e passada adiante por Paulo (ver a p. 87ss), mas está em contraste evidente com a mensagem de Hebreus, na qual a ressurreição aparece somente no último minuto na doxologia concludente (Hb 13.20).

Em contraste, nos sermões de Atos dificilmente qualquer preocupa­ção é mostrada pelo Jesus histórico: seu ministério ao todo, mal é apre­sentado; as únicas referências estão em At 2.22 e 10.36-39. Mais extra­ordinário ainda, os sermões reais em Atos contêm consideravelmente poucos ecos da própria mensagem e ensino de Jesus (contudo cf. At 8.12; 14.22; 19.8; 20.25,35; 28.23,31). Uma questão-chave, portanto, mais uma vez se levanta: há alguma unidade, alguma continuidade entre a proclamação de Jesus do reino e a proclamação da ressurreição de Jesus de Atos?

2. Um importante corolário para a concentração de Atos sobre a ressurreição é a ausência de qualquer teologia da morte de Jesus. Sua morte é mencionada, mas somente de passagem como um mero fato (comumente salientando a responsabilidade judaica). O fato histórico não é interpretado (At 2.23,36; 3.13-15; 4.10; 5.30; 7.52; 10.39; 13.27s). Nunca é dito, por exemplo, que "Jesus morreu em nosso favor" ou

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"por nossos pecados"; não há nenhuma sugestão de que a morte de Jesus foi um sacrifício. As poucas e breves alusões a Jesus como o Servo (do Dêutero-Isaías) pinçam o tema da vindicação seguindo o sofrimen­to, não de um sofrimento vicário como tal (At 3.13,25; 4.27,30; assim também 8.30-35). Similarmente a alusão a Dt 21.22s, em Atos 5.30 e 10.39 ("pendurando-o num madeiro" - cf. At 13.29) parece ser inten­cionada (por Lucas) para salientar a vergonha e desgraça de Jesus, e assim servir ao mesmo motivo de humilhação-vindicação; extrair a te­ologia de G1 3.13 desses textos é pedir mais do que a exegese do texto permite5. E mesmo 20.28 (a igreja do Senhor - ou de Deus - que ele obteve com seu próprio sangue - ou com sangue dele próprio), não está, pro­priamente, falando de uma peça da proclamação evangelística, perma­nece mais que um pequeno quebra-cabeças, obscuro. Em suma, uma teologia explicita da morte de Jesus está marcadamente ausente no kerygma dos sermões de Atos.

Aqui novamente somos confrontados com uma extraordinária va­riação; pois a suficiência vicária da cruz é um traço proeminente do evangelho de Paulo (Rm 3.25; ICor 15.3; 2Cor 5.14-21)/ como é em 1 Pedro e Hebreus, para não mencionar Marcos 10.45. Se isso é uma re­presentação verdadeira do kerygma primitivo ou um reflexo da teolo­gia do próprio Lucas não fica inteiramente claro. A presença de "por nossos pecados" no kerygma repassado a Paulo (ICor 15.3) e o fato de Lucas omitir Marcos 10.45, ou no mínimo preferir uma versão signifi­cativamente diferente do dito (Lc 22.26), sugere a última6. Uma possí­vel explicação é a de que Lucas foi, de alguma maneira, influenciado pelo judaísmo da Diáspora de seu tempo, que também via com certa indiferença o conceito de expiação pelo sacrifício7. Seja como for, até onde o kerygma dos sermões de Atos diz respeito, temos de dizer que falta uma teologia da cruz, não se faz nenhuma tentativa de atribuir um significado expiatório à morte de Jesus. Assim, aqui está outro ele­mento importante da diversidade entre os diferentes kerygmatas conti­dos no Novo Testamento.

5 Ver E. K rankl, Jesus der Knecht Gottes, Regensburg 1972, pp. 102-29.6 É provavelmente significativo nessa conexão que uma outra passagem nos evan­

gelhos sinóticos, na qual uma clara teologia da morte de Jesus está presente, mais uma vez sendo textualmente confusa em Lucas (Lc 22.19s.).

7 E. L ohse, Märtyrer und Gottesknecht, Göttingen 1955, p. 71.

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3. Completamente ausente nos sermões de Atos está a tensão entre cumprimento e iminente consumação que era como tal um proeminente traço da proclamação do reino feita por Jesus e que é igualmente forte na mensagem de Paulo (abaixo p. 87ss). A parusia, ou segunda vinda de Jesus, o equivalente mais próximo do reino na mensagem de Jesus, é notável pela sua falta de proeminência. O senso de sua iminência me­ramente se espreme por entre a formulação de Lucas em Atos 3.20s, e o dia do julgamento dificilmente parece oferecer mais que uma ameaça distante - certamente não uma crise imediata, tal como Jesus previa (At 10.42; 17.31; 24.25). Também está ausente a forte nota de escato­logia realizada, a convicção de que os últimos dias estão aí (a despei­to de Dodd - acima p. 76); está presente em At 2.15-21 e 3.24, mas do restante inteiramente ausente. Aqui o contraste é pronunciadamente espantoso. Pois temos visto que Jesus proclamava a presença das bên­çãos dos tempos finais e a iminência do reino como uma parte impor­tante de sua mensagem (acima §§3.1,2). Igualmente, Paulo acreditava firmemente que a ressurreição de Jesus e o dom do Espírito era o início (os primeiros frutos) da ceifa dos últimos tempos (ICor 15.20,23; Rm 8.23); e pela maior parte de seu ministério Paulo proclamou a iminên­cia da parusia e o fim (lTs 1.10; 4.13-18; ICor 7.29-31). Particularmente digna de nota é a preservação em ICor 16.22 de um apelo aramaico da igreja primitiva - "Maranata, vem Nosso Senhor!". Quase não é possível que nas comunidades primitivas em Jerusalém e na Palestina faltassem esse mesmo sentimento de fervor escatológico e de urgência. Com efeito, como notaremos mais tarde, a comunhão de bens de que Lucas nos fala em Atos 2 e 4 é melhor explicada como uma expressão desse tipo de entusiasmo escatológico - propriedades sendo vendidas sem se considerar as necessidades daí um ano, pois Cristo teria retor­nado antes disso (ver mais abaixo §§51.1. 67.3). Conseqüentemente, pa­rece inevitável a conclusão de que Lucas tenha suprimido ou ignorado esse elemento do kerygma primitivo, provavelmente por que o lapso de tempo e a demora da parusia fizessem isso menos apropriado (ver mais abaixo §71.2).

4. A despeito do senso de que um abismo de longo tempo havia sido aberto entre a ressurreição e a parusia de Jesus, e a despeito da ên­fase sobre a ressurreição de Jesus, dificilmente há qualquer papel atri­buído ao Jesus exaltado em Atos t além do derramamento do Espírito

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em Pentecostes, o início dessa nova época da história da salvação (At 2.33), e o seu papel de juiz no final (At 10.42; 17.31). Jesus foi, presumi­velmente, entendido como a autorização por trás daqueles que agiam em nome de Jesus (At 2.38; 3.6; 4.10,30; 8.16; 10.48; 16.18; 19.5 - e cf. 9.34), e ele aparece em, não poucas, visões (At 7.55s; 9.10; 18.9; 22.17s; 23.11;26.16,10), mas não há nada do senso de união entre o crente e o Senhor exaltado, traço típico das mensagens de Paulo e João.8 Em particular, a relação entre o Senhor exaltado e o Espírito Santo que Paulo e João manejam tão sensivelmente (Rm 1.3-4; 8.9-11; ICor 12.3-13; 15.45; Jo 14.15s, 26; 16.7-15), é somente insinuada em Atos (16.6s). E até mais extraordinário, de fato espantoso, a total ausência em Atos do conceito e experiência de filiação que é tão central tanto para Jesus (ver particu­larmente Mc 14.36; Lc 11.2/Mt 6.9; Mt 11.25s/Lc 10.21; e, abaixo, §45.2) e para Paulo, que preserva para nós a oração aramaica das igrejas pri­mitivas e algo da intensidade de sua experiência de filiação (Rm 8.15s; G14.6).

5. Finalmente sob o título da proclamação de Jesus, em Atos, de­vemos notar o forte elemento subordinacionista dentro dos sermões de Atos. Jesus é raramente retratado como o sujeito da ação descrita; tudo o que ele faz: ministério, ressurreição, exaltação, etc., é atribuí­do a Deus (p.ex.: At 2.22,32; 3.26; 5.30s; 10.38,40). A única referência à parusia é emoldurada em ternos de Deus enviando Cristo (At 3.20); e nas duas referências a Jesus como juiz é especificamente declarado que Deus o indicou para esse ofício (At 10.42; 17.31 - no qual Jesus não é, nem mesmo mencionado pelo nome). Além disso, pelo menos em duas ocasiões, nós deveríamos falar mais precisamente de uma ênfase ado- cionista dentro do kerygma de Atos - onde a ressurreição introduz Jesus a um novo status como Filho, Messias e Senhor (At 2.36; 13.33). Isso concorda muito bem como outras formas primitivas de kerygma (Rm 1.3s; Hb 5.5) e assim, muito provavelmente, reflete a ênfase das comu­nidades primitivas (ver mais abaixo §§11.2,12.3; 51.1 e p. 367). Mas isso contrasta marcadamente com a visão cósmica do Cristo que encontra­mos particularmente nas cartas paulinas tardias e no Apocalipse.

! C. F. D. M oule, The Christology ofA cts, SLA, fala apropriadamente da "Cristolo­gia ausente" de Atos (pp. 179s). Ver também abaixo p. 335.

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6. Como a proclamação de Jesus o kerygma dos sermões de Atos tematiza em um chamado para o arrependimento e fé. Aqui a diversidade é interessante. Pois, de um lado, a demanda para arrependimento em Atos (2.38; 3.19, 26; 14.15; 17.30; 26.20) é estreitamente paralela àquela de Jesus, mas marcadamente em contraste com Paulo e João. Paulo de fato tem pouco ou nada a dizer acerca do arrependimento como tal (so­mente Rm 2.4; 2Cor 7.9s; 12.21) e João não faz nenhum uso da palavra em absoluto. Mas no chamado para fé a similaridade e a diversidade correm em direções opostas. A ênfase de Lucas sobre fé (At 2.44; 4.32; 5.14; 10.43; 13.12,39,48; 14.1; etc.) está em estreito paralelo por ambos, o quarto evangelista, que usa o verbo crer 98 vezes, e as epístolas pauli- nas, que usam o verbo e o substantivo quase 200 vezes. Mas o chamado é especificamente para fé no Senhor Jesus (At 9.42; 11.17; 14.23; 16.31) e isso distingue o kerygma em Atos claramente do kerygma do próprio Jesus (ver acima p. 78ss). Outro aspecto da apresentação de Lucas, da fé nas comunidades primitivas, talvez devesse ser mencionado, visto que é tão distintivamente colocado a parte do resto dos escritos do NT. Eu me refiro ao modo que Lucas retrata a fé em Cristo como o efeito de milagre, aparentemente, sem quaisquer dúvidas sobre o ponto (At 5.14; 9.42; 13.12; 19.17s) uma vez que em outros lugares no NT o aspecto evangelístico do valor propagandístico do milagre é antes depreciado (Mc 8.11s; Mt 12.38s/Lc 11.16, 29; Jo 2.23-25; 4.48; 20.29; 2Cor 13.3s).

7. Com a reivindicação está associada uma promessa - em Atos, ge­ralmente, em termos de perdão (At 2.38; 3.19; 5.31; 10.43; 13.38s; 26.18), salvação (At 2.21; 4.12; 11.14; 13.26; 16.31) ou o dom do Espírito (At 2.38s; 3.19; 5.32; cf. 8.15-17; 10.44-47; 19.1-6). Aqui a sobreposição é antes mais extensiva com os outros kerygmata do NT. O kerygma de Jesus susten­tava a oferta de perdão e aceitação (ver acima §3.4), e a idéia de Paulo de justificação não está assim muito longe daquele perdão (ver abaixo pp. 87), ainda que a palavra perdão propriamente dita ocorra somente em Efésios 1.7 e Cl 1.14 não ocorra nos Escritos Joaninos. A idéia de salvação (substantivo ou verbo) é freqüentemente atribuída a Jesus nos evangelhos sinóticos (Mc 3.4; 5.34; 8.35; 10.52; etc.) e é usada regular­mente por Paulo (Rm 1.16; 5.9s; 8.24; 9.27; 10.1,9s,13 etc.), apesar de aparecer pouco nos Escritos Joaninos (7 vezes). Com a promessa do Espírito a sobreposição é diferente. Jesus falou muito pouco a respeito do Espírito como tal, no mínimo,; de acordo com a nossa evidência;

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somente Marcos 13.11 poderia ser tomado como uma promessa do Espírito, e então não como parte do kerygma, mas como uma promessa aos discípulos em épocas de julgamento9. Mas o Espírito é, muito cla­ramente, parte do kerygma básico tanto para Paulo como para o círculo joanino (ver p.ex. Rm 2.29; 8.2,9,15; ICor 6.11; 12.13; 2Cor 1.22; G1 3.2s; Jo 3.5-8; 7.39; 20.22; ljo 2.27; 3.24).

Novamente, Atos surpreende pela ausência de qualquer corolário ético para o kerygma que retrata. Lucas sugere que os crentes se apóiem em dependência mútua: não há cristãos isolados em Atos (aqui é parte da importância dos episódios em At 8 e 18.24-19.7). Mas há pouco em Atos de uma obrigação moral derivada da aceitação da proclamação. Mais atordoante é o fato de que a palavra "amor" (substantivo ou ver­bo) não ocorra em absoluto em Atos; enquanto integrava as mensa­gens de Jesus (ver acima p. 80), das epístolas paulinas (108 vezes) e do Evangelho de João e das epístolas joaninas (95 vezes). Aqui o contraste é notável.

8. Para resumir, podemos falar de um único kerygma em Atos? Pode-se reconhecer dentro dos diferentes sermões reproduzidos por Atos um esquema regular que se possa dizer que forneça um sólido núcleo e que possamos chamar de básico kerygma nuclear da Igreja pri­mitiva, pelo menos na apresentação de Lucas sobre isso? A resposta é: sim. Os elementos mais regulares e básicos são estes: (1) a proclama­ção da ressurreição de Jesus; (2) o chamado para uma resposta a essa proclamação, para arrependimento e fé nesse Jesus; (3) a promessa de perdão, salvação e Espírito àqueles que assim responderem.

§ 5. O KERYGMA DE PAULO

Até agora temos sido capazes de recorrer ao material que é especi­ficamente apresentado como kerygma, como proclamação missionária. Porém, não é tão fácil descobrir a pregação missionária de Paulo a partir

1 Atos 1.5, 11.16 é mais fácil encaixar na reconstrução de Lucas da vida de Jesus como o estágio na história da salvação anterior à era da Igreja (ver mais abaixo pp. 502ss), que no ensino do Jesus histórico como somos aptos a reconstruir ago­ra. Sobre as referencias no Evangelho de João ver abaixo pp. 331ss.

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de suas cartas, visto que são dirigidas àqueles que já são convertidos e se referem somente à pregação que conduziu às conversões. Mas nossa tarefa também não é tão difícil quanto possa parecer, desde que, de um lado, temos várias fórmulas kerygmáticas e confessionais que Pau­lo preserva e as quais ele deve ter utilizado na condução de seus lei­tores a ponto do compromisso. E, de outro lado, podemos recorrer as grandes características de sua mensagem como um todo e estar bem certos que elas foram moldadas na proclamação inicial de Paulo do evangelho em maior ou menor medida, como determinavam as cir­cunstâncias. Com efeito, já temos aludido a muito do kerygma paulino por meio de comparação com o kerygma em Atos. Aqui, necessitamos fazer somente umas poucas considerações resumidas; então recorre­mos a outro material das epístolas paulinas de relevância imediata para o nosso tema.

1. Paulo, como os sermões, em Atos, proclamou a Jesus. Sabemos a partir das fórmulas kerygmáticas e confessionais transmitidas por Paulo que Jesus, como ressuscitado, era provavelmente o traço mais proeminente do evangelho de Paulo (Rm 1.3s; 4.24s; 8.34; 10.9; ICor15.3-11; lTs 1.10; cf. 2Tm 2.8). Como em Atos, também o Jesus histó­rico, dificilmente, apresenta em absoluto a mensagem de Paulo. So­mos informados somente de meros detalhes da vida de Jesus pelas cartas paulinas (nascimento, descendência davídica, santa ceia e trai­ção - G1 4.4; Rm 1.3; ICor 11.23-25), Paulo dificilmente faz qualquer uso (explícito) da tradição da pregação do próprio Jesus (contudo ver abaixo §§17.2,3). De novo, nesse ponto, aqui a questão da unidade e continuidade entre os kerygmata de Jesus e de Paulo nos é imposta de modo enérgico. De outro lado, a morte de Cristo recebe, de longe, mais proeminência do que em Atos (Rm 3.24s; 4.25; ICor 1.23; 2.2; 15.3; 2Cor 5.14-21; G1 3.1), e lTs 1.10 e 2Ts 2.5 são provas suficientes de que a parusia iminente era de algum modo, uma parte integral da proclamação missionária de Paulo, durante a primeira metade de sua carreira missionáriá (ver abaixo §71.1). Contudo, as expressões mais distintivas e características do evangelho de Paulo devem ser encon­tradas em sua ênfase sobre Jesus como Senhor (ver abaixo p. 125), e sobre o Cristo exaltado como representante da nova humanidade (o último Adão - ver particularmente ICor 15.20-23, 45-49), de modo que a conversão significa entrar em união com Cristo (p.ex.: Rm 6.3;

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ICor 12.13; Gl 2.19s.; Cl 3.1,3), e é por isso que os crentes são o seu corpo (Rm 12.5; ICor 12.27) e vivem, cultuam, conduzem a si mesmo em Cristo, no Senhor (frases que ocorrem mais de 160 vezes nos es­critos de Paulo). Para Paulo a essência do cristianismo é a aceitação por Deus (justificação) em um relacionamento íntimo, introduzido e vivido pela fé, por parte do homem, tornado possível e capacitado mediante o dom da graça, o dom do Espírito (ver particularmente Rm 3.21-5.21; G12.16-4.7). Isso parece ser o núcleo do kerygma de Pau­lo, marcante tanto em suas ênfases centrais como em suas expressões desenvolvidas.

Como no caso de Jesus, também implícita no kerygma de Paulo está uma tensão entre o já cumprimento e o ainda não da consumação. A crença na ressurreição de Jesus como um evento do passado e a ex­periência do Espírito, como já dado, cria uma tensão escatológica nos crentes que ainda são os mesmos na carne, ainda não ressuscitados da morte, ainda não controlados plenamente pelo Espírito (corpos espiri­tuais) - uma tensão expressa mais fortemente na batalha entre carne e Espírito (Rm 8.12s; Gl 5.16s), nesse "cabo de guerra" entre velha natureza e nova natureza (Rm 7.22-25; Ef 4.22-24; Cl 3.5-10).10

A variedade e o alcance dos escritos de Paulo nos capacitam assim a termos uma idéia precisa do que o kerygma básico era para Paulo. Mas eles também revelam a diversidade da proclamação que Paulo reconhecia como kerygma. Daí neste capítulo tentarmos somen­te a uma pesquisa preliminar a que nos limitaremos aos pontos mais óbvios.

2. Em Gálatas, Paulo fala, no mínimo, de três evangelhos. Primeiro, o seu próprio - o evangelho para os gentios, "para a incircuncisão" (G1 2.7): esse traz a liberdade da maldição da Lei e da sujeição à Lei como meio para a justiça (G1 2.16-5.12). Paulo caracteriza seu evangelho dessa maneira porque deseja distingui-lo claramente de outros dois evangelhos (cf. particularmente G1 3.1-14). O segundo é o evangelho para os judeus, para a circuncisão (G1 2.7), representado pelos apóstolos pilares, Pedro em particular, centrado em Jerusalém. Paulo reconhece essa versão judaica do evangelho como uma forma legitima de kerygma

10 Ver J. D. G. D unn, Jesus and the Spirit, SCM Press, 1975, §53; também "Rom. 7.14-25 in the Theology of Paul", TZ, 31,1975, pp. 257-73.

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cristão, apropriada aos judeus11. Supostamente, não era muito diferen­te do conteúdo do evangelho de Paulo (G1 2.2, 6-9), ainda que, certa­mente, Paulo haja zombado de seus resultados, visto que em sua visão esse envolvia uma maior sujeição à Lei do que ele próprio pensava ser o certo (G1 2.11-21). Contudo, desde que os proponentes de cada um desses dois evangelhos reconhecessem a validade um do outro e não procurassem impor seu próprio evangelho àqueles que sustentassemo outro, Paulo se contentava. Mas evidentemente as igrejas na Pales­tina tinham uma ala direita legalista que se opunha à missão gentia sem-Lei. Dela é o outro evangelho que Paulo ataca com uma linguagem feroz em G1 1.6-9. Não está totalmente claro se Paulo negou o status cristão a esse terceiro evangelho (G11.7 provavelmente, signifique: não é outro evangelho, mas a perversão do evangelho de Cristo). Mas ele não deixa dúvidas do que pensava das tentativas dos assim chamados judaizantes em forçar seu entendimento do evangelho sobre os outros: não é a boa nova, o caminho da servidão; aqueles que o pregam são falsos cristãos, eles corromperam a verdade plena e deveriam se castrar (G1 2.4s; 5.12)!

Paulo lança um ataque que soa similar ao de 2Cor 10-13. Aqueles que são atacados se consideravam claramente cristãos, de fato como servos de Cristo e apóstolos de Cristo (2Cor 11.13, 23). Mas na visão de Paulo eles pregavam um evangelho diferente, outro Jesus; eram servos de Satanás, falsos apóstolos (2Cor 11.4,13s) (ver mais abaixo §§56.1, 2).

Essas duas cartas de Paulo são indicações suficientes em si mes­mas que havia mais de um kerygma defendido entre e dentro das igre­jas primitivas. Onde o mesmo conceito e a reivindicação do apostolado eram matérias de controvérsia, qual é o significado que podemos dar à frase "a fé apostólica''?

3. Das outras cartas de Paulo torna-se claro que, até onde ele estava preocupado, não havia nenhum modelo padronizado, nenhum aumento nas linhas gerais da proclamação cristã. O esboço básico de Paulo

11 Juntamente com outros, M eyer, Early Christians desaprova falar de três evange­lhos aqui. Para Paulo há somente um evangelho (pp. 185-6). Eu não discuto a questão desde que a profundidade da discordância entre cristãos sobre como esse evangelho significava na prática seja reconhecido (Gl 1.6s; 2.11-14). Falar de três evangelhos é , simplesmente, uma maneira de salientar a questão. O Paulo de M eyer, nessa questão, é o Paulo de Átos (ambos ignoram G12.11-14).

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do kerygma em ICor 15.13s é limitado a uma declaração a respeito da morte de Jesus e a afirmação de sua ressurreição. Ele insiste que os coríntios se mantenham fiéis a isso. Mas quando chega a diver­sidade da crença acerca de se ou não havia uma ressurreição geral por vir (ICor 15.12 - uma questão central para o tipo de salvação oferecida no kerygma), Paulo não denuncia aqueles que sustentam a visão contrária à sua como apóstatas e renegados; ele meramente ar­gumenta contra isso. Ele é um pouco severo, mas não acusador (ICor 15.12-57)12. Similarmente ele aceita a diversidade da crença acerca do batismo (ICor 1.10-16; 15.29). Ele não insiste somente na legitimida­de de sua própria visão ou de uma visão particular do batismo. Ao contrario ele não dá importância ao papel do batismo; é o kerygma que o preocupa não é do batismo (ICor 1.17). E ainda que em 10.1-12 ele esteja, provavelmente, argumentando contra uma visão mágica do batismo, em ICor 15.29 ele não mostra nenhuma desaprovação da crença no batismo vicário, batismo pelos mortos; ao contrário, ele usa a pratica como um argumento para a crença na ressurreição (ver também abaixo §39.5).

1 Coríntios nos revela uma comunidade cristã cheia de abalos e tensões, de diversas crenças e práticas, todas em nome de Cristo (ICor l . l l s ; 3.1-4; 4.6-21; etc.), e podemos reconhecer discordâncias similares indicadas nas Epístolas aos Tessalonicenses (lTs 5.19-22; 2Ts 2.2; 3.14s), em Romanos (particularmente 14.1-4; 16.17s), em Fili- penses (1.15-18; 3.2, 12-19) e em Colossenses (2.8.16-23). Isso sugere que a imagem de uma igreja primitiva inteiramente unificada perten­ce mais ao mundo da doce ilusão dogmática que à realidade históri­ca. Por ora não podemos nos deter nesse assunto, a isso retornaremos na Parte II.

4. Devemos notar também a extensão em que Paulo variava sua proclamação do evangelho de acordo com as circunstâncias. ICor 9.19-23 claramente pressupõe que Paulo permitia as circunstâncias e situa­ções determinarem a declaração do seu kerygma em uma considerá­vel medida. Assim reconhecemos uma ênfase diferente como a fonte

: M eyer, pp. 196-9, parece não reconhecer que a ênfase principal aqui é para con­trastar a restrição relativa no ataque de Paulo em ICor 15 com a intensidade de suas denúncias em Gálatas e 2Cor 10-13 (acima §5.2).

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de seu evangelho em G1 1.1, 11-17 e ICor 15.3ss (ver abaixo §17.1). E em uma extraordinária passagem Jesus dificilmente é apresenta­do de qualquer modo, onde seu evangelho toma a forma de obras (praticar a Lei) de justiça (Rm 2.6-16); ainda que aí, como ele próprio diz, ele está falando a respeito daqueles que nunca ouviram a Lei, muito menos o Evangelho13. Em algumas circunstâncias ele mostra firmemente sua face contra o evangelho proclamado pelos cristãos palestinenses: seu próprio evangelho é intensamente defendido e Pedro é denunciado por seu compromisso em Antioquia (G1 2); ou novamente missionários de Jerusalém (como parece ser) são fran­camente condenados como apóstolos falsificados (2Cor 10-13; ver abaixo §§56.1, 2), e um evangelho da Lei é fortemente repudiado (G1 5.1-13; Cl 2.16-23). Em outras circunstâncias ele se mostra satisfeito de o evangelho para a circuncisão permanecer, na verdade em suas próprias igrejas (ICor 8; cf. Rm 14) e satisfeito porque o Evangelho é proclamado até por aqueles o fazem, então, em oposição ou para irritar Paulo (F11.15-18).

Também digno de nota sob esse título é o grau de desenvolvimento evidente na mensagem de Paulo durante os anos. O exemplo mais claro é sua orientação escatológica. Em 1 e 2 Tessalonicenses a iminência da parusia é muito real; e a parusia iminente formava um importante ele­mento na proclamação de Paulo, se a situação que se desenvolveu em Tessalônica a partir de sua pregação é algo para se orientar (ver parti­cularmente lTs 1.9s; 4.13-18; 2Ts 2.5). A mesma ênfase brilha claramen­te por ICor 7.29-31, 15.51s. Mas em Filipenses 1.20s Paulo reconhece seriamente a probabilidade de sua morte antes da parusia, e em Colos- senses o foco oscilou do futuro para o passado. Onde em Rm 6.5, 8.11 Paulo pensa da ressurreição com Cristo como algo ainda futuro, em Cl 2.12,3.1 a ressurreição com Cristo já é algo no passado (ver mais abaixo p. 499). Essas não são simplesmente expressões diferentes da mesma mensagem em circunstâncias diferentes14. A linha de desenvolvimento

13 Em vista de nossa discussão posterior (§§55 e 56) é digno de nota neste ponto que paralelos mais próximos entre Mateus e Paulo vêm precisamente em Ro­manos 2; ver C. H. D odd, "Matthew and Paul" (1947), New Testament Studies, Manchester University Press 1953, pp. 63s.

14 Contudo, note C. F. D. M oule, "The Influence of Circumstances on the Use of Eschatological Terms", JTS, n. 15, 1964, pp. 1-15; reimpresso em: Essays in New Testament Interpretation, Cambridge University Press 1982, pp. 184-99.

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também é clara e consistente para isso: da expectativa de uma parusia que é proclamada como tão iminente que a morte de alguns crentes anteriormente a isso resulta em um choque para seus convertidos, para o reconhecimento claro que alguns morrerão antes da parusia, ainda que ele provavelmente permaneça, para a calma aceitação de que mui­tos morrerão, incluindo ele próprio, antes da parusia; para declaração mais antiga de fé na qual a metáfora da "ressurreição com Cristo" é uma antecipação, reservada para o "ainda não" iminente, para a ênfa­se posterior, na qual a metáfora da ressurreição de Cristo relembra o que já foi realizado - é uma clara mudança de perspectiva (veja abaixo §71.1).

5. Podemos resumir nossos achados aqui como se seguem. (1) Pau­lo tinha uma idéia clara do que era o evangelho de Cristo. Todavia, seu entendimento e expressão do mesmo não tomaram qualquer forma fi­nal ou fixa. Pois, (2) ele reconhecia a validade de outras proclamações e também as chamava de "evangelho". E (3) seu próprio kerygma tomou formas diversas quando as circunstâncias exigiam e se desenvolveu durante os anos se alterando em ênfase e tom. (4) O mais impressio­nante de tudo é que em diversas situações ele resolutamente se opu­nha às formas de evangelho que outros crentes consideravam como autênticas e chamando-as de "evangelho algum". Na verdade, é um pouco duvidoso se Paulo pode até mesmo ter dado aprovação de todo o coração aos dois documentos do NT que mais claramente expressamo entendimento cristão judaico de kerygma - Mateus e Tiago15. Certa­mente, Paulo nunca teria falado da Lei simplesmente como "a lei da liberdade" (Tg 1.25); era uma reivindicação completamente falsa por sua própria experiência, e algo quase sempre impróprio nas circuns­tâncias da missão gentia. Mas então, Tiago sem nenhuma dúvida teria ficado igualmente insatisfeito com o kerygma de Paulo (ver mais abaixo §55).

Um ponto de importância crucial começa a emergir aqui: que dentro do próprio NT não temos, simplesmente, diversos kerygmata, mas de fato kerygmata que parecem ser incompatíveis - isto é, evangelhos que são incompatíveis quando comparados diretamente, um com o outro, sem referência aos seus diferentes lugares vivenciais.

15 Para o sentido em que eu uso "cristão judaico" aqui ver abaixo p. 358.

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§ 6. O KERYGMA DE JOÃO

O Quarto Evangelho nos dá como seu propósito: "para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo tenhais vida em seu nome" (Jo 20.31). Podemos tomar isso como o sumário conciso do próprio evangelista de seu evangelho.

1. Isso pretende estimular a f é - isto é, conduzir o não crente à fé ou encorajar o crente em sua fé (o verbo poderia ser considerado das dus maneiras), ou ambos. João marcadamente sublinha a importância de crer. O verbo "crer" ocorre mais exaustivamente no Quarto Evangelho (98 vezes) do que em qualquer outro escritor do NT. Isso é algo reque-

■rido dos ouvintes (lembramos que João nunca fala de arrependimen­to) se estão experimentando a "vida em nome de Cristo", "crer" aqui significa tanto a aceitação da veracidade da reivindicação que "Jesus é o Cristo, o Filho de Deus" (crer que - p.ex.: Jo 6.69; 8.24; 11.27; 16.27; 20.31; l jo 5.1, 5), e comprometimento com esse Jesus (crer em - o uso predominante e característico joanino - p.ex.: Jo 1.12; 3.16; 6.29; 11.25s; 17.20; ljo 5.10). Também é distintivo do uso joanino a extensão em que0 verbo conhecer (56 vezes) se torna um quase equivalente a crer.

2. O conteúdo da fé é que "Jesus é o Cristo, o Filho de Deus". Podemos falar o que isso significa para João pela maneira na qual ele apresenta Jesus em seu evangelho. Dois aspectos, em particular, mar­cam a distinção do kerygma de João nesse ponto. Primeiro, a extensão em que o Jesus histórico e o Jesus exaltado se sobrepõem no Quarto Evangelho - a extensão em que o Jesus histórico é visto em termos do Cristo exaltado. Isso é o que, quase certamente, representa para as notáveis diferenças entre o Jesus do Quarto Evangelho e o Jesus dos si- nóticos. Eu estou pensando especialmente nos seguintes traços: dos tí­tulos cristológicos arrolados que nos confrontam diretamente em João1 - Cordeiro de Deus, Messias, Filho de Deus, Rei de Israel, Filho do Homem - enquanto que nos sinóticos tal reconhecimento se dá a Jesus muito mais tarde em seu ministério; das reivindicações do famoso "Eu sou" de Jesus, no Quarto Evangelho (6.35; 8.12; 10.7, 11; 11.25; 14.6;15.1), que dificilmente teriam sido ignorados tão completamente pe­los sinóticos, se eles tivessem pertencido à tradição original dos ditos de Jesus; e da notável auto-consciência de Jesus particularmente da

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pré-existência que nos confronta regularmente por todo o Quarto Evan­gelho (p.ex.: 3.13; 6.38; 8.38, 58; 10.36; 17.5, 24) e que, de novo, precisa ter deixado alguma marca equivalente na tradição sinótica tendo tais ditos sido parte da mensagem do Jesus histórico. A melhor explicação é que João não está tentando dar um retrato histórico do homem Jesus, mas do que ele vê como o verdadeiro retrato do Jesus histórico - o Jesus histórico como João agora o vê ser, o Jesus histórico com a glória que era para ser dele pela virtude de sua morte, ressurreição e ascensão já visível em sua vida terrena (ver particularmente Jo 1.14; 2.11; 11.4; 12.13; 13.31; 17.5)16. Outro kerygmata no NT mantém o Jesus histórico e o Cristo exaltado que estão bem mais separados: Atos e Paulo parecem estar bem pouco interessados no Jesus histórico; os sinóticos, apesar de apresentar Jesus à luz da fé pascal, não deixam as duas imagens se fundirem em algo com a mesma extensão. A proclamação de João é, por conseguinte, muito distintiva - tão distintiva quanto a cristologia do último Adão, de Paulo, e a cristologia sumo sacerdotal de Hebreus (ver mais abaixo pp. 342,442).

Segundo, ao mesmo tempo João indica uma ênfase muito crescen­te sobre a realidade histórica da vida terrena de Jesus, quando com­parado com Paulo e Atos. Isso, sem dúvida, em grande parte é de­vido à crescente influência e desafio, representados pelo gnosticismo emergente. A forma particular corrente no tempo de João, conhecemos como docetismo. Visto que o dualismo gnóstico considerava a matéria, a carne, o físico como mal, o docetismo negava que o redentor divino pudesse ter abraçado totalmente o físico, tornando-se encarnado na matéria. A humanidade de Jesus deveria ter sido somente uma aparên­cia, uma semelhança (dokei - parecer). Daí os Escritos Joaninos enfati­zarem a realidade da humanidade de Jesus; a materialidade de Jesus é enfatizada de um modo que não há nenhuma comparação real no kerygma de Atos e Paulo (Jo 1.14; 6.51-58; 19.34s.; ljo 4.1-3; 5.6-8). Aqui está uma evidência clara que as circunstâncias e os desafios mudaram ao fim do séc. I d.C. desempenhando um grande papel ao moldar o kerygma endereçado aos mesmos (ver mais abaixo pp. 441ss).

’ Ver p.ex. F. M ussner, The Historical Jesus in the Gospel o f St. John, Herder 1967; O. Cullmann, The Johannine Circle, SCM Press 1976, pp. Mss; D. M. Smith, "The Presentation of Jesus in the Fourth Gospel", Interpretation 3 1 ,1 9 77, pp. 367-78; J. D. G. D unn, The Evidence for Jesus, SCM Press/W estminster 1985, cap. 2.

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3. Crer que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, conduz à vida. Aqui está outro tema importante e característico de João: o verbo e o substan­tivo (viver, vida) juntos ocorrem 67 vezes no Evangelho e nas Cartas de João. As palavras ocorrem tão regulamente nas cartas paulinas (96 ve­zes), embora com menos freqüência em Atos (20 vezes). João faz pouco ou nenhum uso dos conceitos de perdão, justificação e salvação, mas ele liga a promessa de vida estreitamente com o Espírito (Jo 4.10-14; 6.63; 7.38s; 20.22), e sua fala da habitação mútua (p.ex.: Jo 6.56; 14.18-23;15.4-7; l jo 2.27s, 3.24; 4.12-16) tem paralelos próximos com a idéia de Paulo da união com Cristo (ver acima, p. 87), embora a concepção de João seja muito mais individualista em sua realização (ver abaixo §31.1). Talvez devamos simplesmente reconhecer tudo isso como expressões amplamente equivalentes de promessa kerygmática. Sua diversidade, como entre Atos, Paulo e João, foi presumivelmente determinada mais pelas preferências pessoais do proclamador e da apropriação da lingua­gem à situação endereçada, do que pelas diferenças de substância e conteúdo na promessa em si.

Onde o kerygma joanino se torna distintivo é na maneira que apresenta a promessa de vida como um definido "isto ou aquilo". Os ouvintes precisam escolher a vida ou a morte, e se eles escolherem a vida, nesse momento, passarão da morte para a vida, deixando a morte e o juízo para trás (Jo 3.36; 5.24; 11.25s; l jo 3.14; 5.12). Tal an­títese clara é típica da mensagem de João - entre luz e trevas, visão e cegueira, verdade e falsidade, Espírito e carne, etc. (Jo 1.5; 3.6,19-21; 6.63; 8.12, 44s; 9.39-41; etc.). Não há lugar aqui para concessão, para uma posição intermediária de nuances indiferentes. Não há idéia de vida como um processo, de uma que está somente começando, do ainda-não da vida no Espírito que caracteriza a mensagem de Pau­lo. No círculo joanino a distinção entre crente e descrente é precisa (ver p.ex.: l jo 2.4, 23; 3.6, 9s, 14s; 4.5s). Isso é claramente um dualis­mo ético, a antítese de decisão - o(s) escritor(es) joanino(s) quer(em) representar o desafio do evangelho tão severa e claramente quanto possível. Mas isso nos deixa antes com uma visão bem simplista da realidade. Divide a humanidade em duas classes; enquanto que em Paulo a divisão passa pelo coração do crente como tal (acima p. 87). Daí claramente a tensão escatológica do kerygmata de Jesus e Paulo ter-se afrouxado e se tornado o "tudo ou nada" da escatologia reali­zada de João. Em parte alguma' isso é mais aparente que nos vários

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lestes de vida que 1 João oferece aos seus leitores - habitação do Espí­rito, amor, confissão adequada, obediência (p.ex.: l jo 2.4; 3.24; 4.2s, 7). Evidentemente o autor presumiu que aqueles que amam fazem uma confissão como deve ser. Não é absolutamente evidente o que o autor faria da pessoa que mostra um amor como o de Cristo e que ainda assim recusa a crer em Cristo. A antítese joanina marcante não fornece resposta ao problema (cristão) do bom pagão, do ateu amoroso. Paulo, por sua vez, com seu reconhecimento do estado dividido de cada indivíduo e por seu anseio pelo Israel descrente, no mínimo, entenderia o problema e seria apto a oferecer alguma resposta. Enquanto 1 João nada tem a dizer.

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§ 7. CONCLUSÕES

Nós não examinamos todos os escritos do NT, somente fizemos uma descrição panorâmica do kerygma de Jesus, do kerygma dos pri­meiros cristão como retratado em Atos e dos kerygmatas apresentados pelos dois outros mais importantes teólogos no NT - Paulo e João. Eles partilham um kerygma comum? Podemos falar de "o" kerigma? Dei­xando a mensagem de Jesus de lado por um momento, comparemos o primeiro dos três exemplos de kerygma pós-pascal.

1. Os sermões de Atos, Paulo e João partilham um kerygma comum? Se pensarmos na individualidade de sua proclamação, as suas ênfases distintivas, a resposta tem de ser: não! Mas um exame mais próximo torna evidente que há um elemento comum presente nessas diferentes proclamações; elas dão expressão em suas maneiras diferentes de alguma coisa que podemos chamar "um kerygma comum". Há três componentes para esse núcleo de kerygma.

Primeiro, a proclamação do Jesus ressuscitado, exaltado - expres­so pela ênfase sobre a ressurreição de Jesus pelos sermões de Atos como tal, pela ênfase de Paulo sobre o presente Senhor e significância representativa de Jesus e pela apresentação de João do Jesus histórico na plena iluminação da fé pascal.

Segundo, o chamado para fé, para aceitação da proclamação e comprometimento ao Jesus proclamado. Isso é o traço mais consis­tente de todos os casos, de tal modo que sustenta a reivindicação de

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Bultmann de que fé é o termo que mais claramente distingue o cristia­nismo primitivo, antes que o de ortodoxia (ver acima p. 67).

Terceiro, a promessa estendida à fé - se deve ser posta em termos do Espírito, de seus vários aspectos (remissão, salvação, vida) ou de uma relação contínua assim estabelecida entre o Cristo exaltado e o crente (união com Cristo, mútua habitação). Nem sempre é tão clara­mente extraído o corolário que a relação de fé em Cristo envolve uma comunidade de fé, bem como a responsabilidade do amor dentro (e além?) dessa comunidade.

Isso é a unidade do kerygma pós-pascal. Mas, apesar disso, colo­ca-se a considerável diversidade dos diferentes kerygmata. Necessita- se entender que o núcleo de kerygma unificado delineado acima é uma abstração. Nenhum escritor do NT proclama esse kerygma como tal. Nenhum escritor reduz o kerygma a esse núcleo. O kerygma bási­co em cada um dos casos examinados acima é mais amplo que esse núcleo. Eles partilham esses elementos comuns, mas em diferentes proporções. E, no evento da proclamação, nem dois kerygmata eram exa­tamente o mesmo. Não somente isso, mas a diversidade significava di­ferença e discordância - diferença, por exemplo, sobre a significância do ministério terreno de Jesus e de sua morte, discordância sobre a relevância contínua da Lei, sobre a dimensão escatológica do evan­gelho e sobre seu desdobramento ético. Essas diferenças e discor- dâncias freqüentemente são profundas, mas os kerygmas envolvidos poderiam, contudo, serem formulados (e aceitos) como expressões válidas de kerygma cristão nas circunstâncias apropriadas. Expoen­tes de diferentes kerygmas podem nem sempre concordar sobre "o kerygma". De fato, eles podem até discordar sobre o que o kerygma é em uma situação particular. Mas, em circunstâncias diferentes, eles podem concordar em diferir e respeitar essas diferenças como aceitáveis e válidas.

Precisamos, portanto, estar conscientes quando falamos de o keryg­ma do NT, porque, se entendemos com isso o núcleo do kerygma, então estamos falando a respeito de um kerygma que nenhum evangelista no NT realmente pregou. E se nos referimos com isso a um dos diversos kerygmas, essa é somente uma das formas de kerygma, e não necessa­riamente a mais apropriada e aceitável aos diferentes evangelistas no NT ou às suas circunstâncias. Colocando de outro modo, se insistimos na unidade do kerygma no NT, precisamos insistir também na diversidade

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do kerygmata no NT. Uma pessoa pode, algumas vezes, dizer, em uma situação particular e em resposta a um desafio também particular: Este é o evangelho; não há outro (cf. G11.6-9). Mas, se o NT é um guia, nun­ca pode dizer: Esta formulação particular é o evangelho para todos os tempos e para cada situação.

2. Se podemos falar da unidade do kerygma pós-pascal, já não é tão fácil falar de uma unidade entre o kerygma pós-pascal e o keryg­ma de Jesus. No plano da proclamação pública, as diferenças são acentuadas: Jesus proclamava o reino, os primeiros cristãos procla­mavam a Jesus; Jesus chamava ao arrependimento e à fé com res­peito ao reino, os primeiros cristãos chamavam para a fé em Jesus; Jesus ofertava o perdão e aceitação de Deus, os primeiros cristãos sustentavam uma oferta similar, mas mediada por Jesus. Muito cla­ramente, Jesus se põe no centro do kerygma pós-pascal de uma ma­neira que realmente não encontra paralelo em seu próprio kerygma. Por enquanto, é claro, temos somente feito a comparação ao nível da proclamação pública, em termos das ênfases características de cada kerygma. A questão é se algum grau de continuidade entre os dois pode ser traçado mais profundamente, se Jesus viu a si mesmo como integral ao seu próprio kerygma, se ele viu uma conexão en­tre o reino e ele próprio, isto é, entre o reino que proclamou e sua proclamação disso, ou entre a vinda do reino e seu próprio destino. Em suma, podemos discernir uma suficiente continuidade entre o Jesus proclamador e o Jesus proclamado que nos habilite afirmar que o kerygma de Jesus e o kerygma dos primeiros cristãos são, em última análise, um e o mesmo? Essa questão sublinhará muito de nossa discussão por todos os capítulos seguintes e a ela teremos de retornar, à luz dessa discussão, no fim da Parte I.

Por enquanto, devemos reconhecer e sublinhar as mais óbvias di­ferenças entre a proclamação pré-pascal e a proclamação pós-pascal- e que é pascal em si, crença na ressurreição de Jesus. Isso necessita ser dito por causa da tendência ainda forte de tentar retornar ao kerygma pré-pascal, para sumarizar o cristianismo em termos do sermão do monte ou do filho pródigo. Mas não pode haver nenhum retrocesso à proclamação de Jesus como tal. Os kerygmas de Atos e de Paulo, de uma maneira diferente do de João, demonstram que os primeiros cristãos não estavam preocupados simplesmente em reproduzir a mensagem de Jesus.

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Na visão das igrejas primitivas, um desenvolvimento decisivo tinha tomado lugar que, em si mesmo, tornou-se as boas-novas par excellence- que Jesus ressuscitou dos mortos e foi exaltado nos céus. E esse novo desenvolvimento que forma a essência distintiva da proclamação pós- pascal e que lhe dá seu caráter distintivamente cristão. Como Paulo explicitamente declara um kerygma sem a proclamação de Jesus como ressurreto ou exaltado não seria proclamação cristã, deixaria de ser válida como evangelho (ICor 15.14-19). Em suma, a Igreja cristã está construída em torno do kerygma pós-pascal, não sobre o ensino do Jesus his­tórico, ou, no mínimo, não sobre esse ensino independente do kerygma pós-pascal.

3. Resumindo: (1) Há um elemento unificador que sustenta todos os kerygmas juntos e nos habilita a apreender o caráter distintivo do evangelho cristão primitivo. (2) Na situação concreta, o real evange­lho estava muito mais definido e era mais amplo em conteúdo - de­finição e conteúdo amplamente determinados pela situação referida. (3) Em diferentes situações, o evangelho real era diferente, e poderia ser tão diferente quanto às próprias situações. Essas diferenças eram freqüentemente consideráveis e incompatíveis quando transportadas para outras situações. (4) Essas diversidades foram com freqüência parte integrante dos evangelhos, em suas situações diferentes; não seria possível abandoná-las na situação em que exigiam uma forma particular de proclamação, sem alterar seu conteúdo de boas-novas àquela situação.

Dois importantes corolários seguem-se, cujas aplicações se es­tendem aos dias atuais, (a) Qualquer tentativa de encontrar um úni­co, de uma vez por todas, kerygma unificador está fadada ao fracasso. Pois a situação concreta sempre pede um kerygma mais estreitamente definido e mais amplo - uma forma de proclamação que, na situ­ação concreta, não pode ser reduzida à expressão mais simples do núcleo unificador, sem perder seu sentido e sua relevância à situação concreta. E é nessa mais completa proclamação que as diferenças e discordâncias recaem, (b) Os cristãos simplesmente terão de aceitar o fato de expressões e interpretações diferentes de "o kerygma" e con­viver com isso - aceitando a necessidade e a validade dessas diferentes expressões, e não ficarem desconcertados e desgostosos com isso, como divisões pecaminosas ou como cismas heréticos. Ao mesmo tempo,

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a abstração (e é uma abstração) do núcleo do kerygma dá indicação clara o suficiente do caráter distintivo do cristianismo - base suficien­temente clara para a ação, serviço e culto comuns. Exigir mais que isso como mínimo indispensável seria equivalente a pedir a Paulo para excomungar Tiago, Lucas ou João!

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C a p ít u l o I I I

FÓRMULAS CONFESSIONAIS PRIMITIVAS

§ 8. INTRODUÇÃO

Do estudo do kerygma, voltamos nossa atenção para o estudo das fórmulas confessionais. Ao mesmo tempo em que os primeiros cristãos proclamavam sua nova fé, também a confessavam. Ao buscar uma ca­mada mais abaixo da superfície na qual temos somente arranhado, é natural procurar primeiramente pela confissão de fé subjacente à pro­clamação e a que a proclamação produziu no convertido. Como os pri­meiros cristãos confessavam sua fé? Que forma de palavras escolhe­ram para se distinguir de outras crenças religiosas de seu tempo?

Essa área tem estado sujeita a uma pesquisa considerável desde o início do séc. XX. Os estudos em questão salientam diversos riscos dos quais os estudiosos cautelosos devem se conscientizar desde o começo.

(a) O risco da leitura do NT por meio das lentes dos grandes credos ecumênicos. A investigação dos credos primitivos é provavelmente o melhor exemplo da maneira em que o padrão de ortodoxia tem sido lido retroativamente aos escritos cristãos do séc. I. Até os primeiros anos de 1940, com poucas e respeitosas exceções, o ponto de par­tida para tais investigações quase sempre era o dos credos padro­nizados do cristianismo ocidental e oriental. Dadas as declarações básicas da fé cristã no Credo dos Apóstolos, no Credo Niceno, etc., a tarefa parecia clara: encontrar expressões primitivas ou latentes dessas fórmulas de fé presentes no próprio NT.1 A pressuposição

Ver p.ex. E. S a t a u f f e r , New Testament Theology, 1941, ET5 SCM Press 1955, cap. 62-5.

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orientadora, mas não escrita, parecia, em muitos casos, ser o axioma de que o cristianismo é um conjunto de credos, estes a expressão normativa do cristianismo confessante; portanto, os escritos do NT devem expressar essa fé resultante no credo, se não em tantas pala­vras, pelo menos em uma maneira oculta ou ainda não iluminada, ou seja, fórmulas potenciais. O risco aqui é óbvio - o de se extrair, à força, o material do NT em um padrão unificado tardio de modo que o caráter distintivo desse material (e sua diversidade?) acabasse perdido para nós.

(b) O segundo é o risco de se procurar por um único credo unificado- o risco de se fazer uma colcha de retalhos dos pedacinhos e fragmen­tos daqui e dali no NT e chamá-la de toga sem costura. Essa foi uma fraqueza da reconstrução de D od d do kerygma primitivo. E A . Seeberg caiu na mesma armadilha em seu estudo pioneiro, na área de que nos ocupamos agora2. A tentação é pinçar formas confessionais dos diver­sos estratos da tradição primitiva e agrupá-las em uma única fórmula, desconsiderando questões a respeito de seus contextos. Em tal caso, "a confissão de fé da Igreja primitiva" nada mais é que um amálgama enviesado de elementos disparatados em uma colagem feita pela me­todologia do séc. XX.

(c) Se o segundo risco é o de procurar por uma única fórmula uni­ficada, o terceiro risco é aquele de procurar por um único contexto uniforme para as confissões primitivas. E fato notável que a grande maioria de eru­ditos, pesquisando nesse campo, tenha presumido ou concluído que um e somente um contexto tenha produzido e preservado as fórmu­las confessionais primitivas - e esse contexto é o batismo. Novamente aqui a tendência inevitável de extrair à força o formato do material do NT em um molde predeterminado - deixar a teologia altamente sacra­mental de séculos posteriores que determine nossa compreensão do cristianismo primitivo.

(d) Quarto risco; devemos também nos conscientizar da ten­dência oposta, evidente em algumas pesquisas da história das tra­dições - aquela de super-fossilizar a estratificação do material em diferentes camadas estanques (cristianismo judaico-palestinense, cristianismo judaico-helenístico, cristianismo gentílico-pré-pau- lino, etc.), esperando encontrar um desenvolvimento cronológico

: A. Seeberg, Der Katechismus der Urchristhnheit, 1903. München 1966.

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coerente nas fórmulas confessionais de camada em camada, estágio em estágio. Não devemos nos esquecer de que uma parte expressi­va da comunidade primitiva de Jerusalém falava, cultuava e teolo- gizava em grego desde o início ("os helenistas" - At 6.1; veja abaixo §60). Nem podemos dividir facilmente os escritos do NT em tais escaninhos claramente distintos; em um sentido muito importante e real, todos os escritos do NT são documentos cristão-judaicos3. De fato, eu creio que temos de reconhecer ênfases diferentes dentro do material do NT que podem ser apropriadamente rotuladas cris- tão-judaicas, judaico-helenístico, gentílico. Mas precisamos sempre estar conscientes para não impor tais categorias sobre a evidência e sempre deixar o texto ditar suas próprias categorias para nós (ver também abaixo p. 358).

Como ponto inicial, todos precisam presumir aqui que os crentes primitivos formularam sua nova fé encontrando palavras que expres­sassem essa fé, e que, no mínimo, algumas dessas confissões primitivas foram preservadas. Se desejarmos reconhecer e entender apropriada­mente essas confissões, precisamos colocar todos os credos tardios e suas categorias de lado e vir aos escritos do NT, com uma questão em aberto: como os crentes primitivos expressavam sua nova fé de um modo confessional? E, ao perseguirmos essa questão, precisamos evitar impor sobre nosso material as unidades de cristianismo sacramental ou ecu­mênico, ou ainda as diversidades de uma abordagem pré-empacotada de história da tradição. Somente assim podemos deixar que o material fale por si mesmo.

Como os principais estudos de fórmulas confessionais primitivas têm mostrado, as formas primitivas se focalizam sobre Jesus; aquilo que é confessado é a fé em Jesus. Isso é o que devemos esperar, de al­gum modo, de nossos achados no último capítulo, que os kerygmatas do cristianismo primitivo eram basicamente uma proclamação de Je­sus e um chamado à fé em Jesus. Nosso estudo, portanto, classifica-se o mais honestamente possível em um exame dos diferentes modos em que Jesus era confessado. Concentraremos-nos sobre o que parecem ter sido as principais formulações utilizadas.

_________________________ F ó rm ulas C on fessio n a is P rim itivas______________________105

1 Ver M. H engel, "Christology and New Testament Chronology", Between Jesus and Paul, SCM Press/Fortress, 1983, pp. 30-47.

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§ 9. JESUS E O FILHO DO HOMEM

Um século atrás, W. Bousset sugeriu que a confissão de Jesus como o Filho do Homem foi a primeira confissão cristã e o ponto focal da comunidade cristã primitiva4. Uma década depois ou pouco mais, E. Lohmeyer sustentaria que o cristianismo originado na Galiléia (tão distinto daquele cristianismo de Jerusalém) fora expresso nitidamente na cristologia do Filho do Homem5. Mais recentemente, a pesquisa se concentrou sobre Q e produziu a tese de que Q incorpora uma expres­são primitiva de fé em Jesus como o Filho do Homem celestial, distin­ta da e ainda não fundida com a apresentação centrada na paixão de Jesus (evidente em Marcos)6. Podemos, então, dizer que Jesus é o Filho do Homem era uma das mais primitivas, talvez a mais primitiva forma de expressão que os primeiros cristãos usaram para confessar sua fé?

1. Como é bem sabido, o título: o Filho do Homem pertence quase que exclusivamente aos evangelhos (sinóticos 69 vezes, João 13 vezes, restante do NT 1 vez), e, em todos esses casos, ele aparece somente nos lábios de Jesus. Jesus nunca é endereçado como o Filho do Homem nas narrativas, quer saudado, quer confessado como Filho do Homem por seus discípulos. Nossa questão pareceria, portanto, ser respondida ra­pidamente - na negativa: "o Filho do Homem" é uma expressão utili­zada por Jesus, não é uma confissão utilizada pelas igrejas primitivas. Mas isso não é tão simples como parece. Durante o séc. XX, eruditos do NT têm estudado os ditos do Filho do Homem e chegaram à conclusão de que é impossível se referir a todas elas como retrocedendo a Jesus; algumas, pelo menos, atingiram a sua forma presente na situação pós- pascal. As principais razões são as seguintes: (1) um bloco inteiro de material do Filho do Homem está ausente de Q. Isso quer dizer que não há quaisquer referências em Q ao sofrimento (e ressurreição) do Filho do Homem tal como encontramos claramente em Marcos 8.31; 9.12, 31; 10.33s, 45. Poderia ser arrazoado plausível, portanto, que Q

4 W. Bousset, Kyrios Christos, 1914, 2a ed., 1921, ET Abingdon 1970, p. 51.5 E. Lohmeyer, Galiläa und Jerusalem, Göttingen 1936, pp. 68-79.6 H. E. Tödt, The Son o f Man in the Synoptic Tradition, 1959. ET SCM Press, 1965,

pp. 232-69; cf. P. H offmann, Studien zur Theologie der Logienquelle, Münster 1972, pp. 142-58. '

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vem de um estágio anterior à fusão da tradição do Filho do Homem tio kerygma da paixão em Marcos, e que os ditos do Filho do Homem sofredor como tais não se fundiram até depois do material de Q atingir sua forma atual. (2) A comparação de tradições sinóticas paralelas su­gere outros casos em que a expressão: o Filho do Homem, é uma adição tardia - Mateus 16.28 (cf. a forma mais antiga em Mc 9.1/Lc 9.27); Ma­teus 24.30a parece uma adição a Marcos 13.26 e Mateus 26.2 poderia bem ser uma expansão editorial de Marcos 14.1; outras ocasiões onde "o Filho do Homem" pode ser o produto de edição: Marcos 9.9, Lu­cas 19.10 e Mateus 13.37, 41. Além do mais, quase todas as referências joaninas ao Filho do Homem são tão obviamente coladas com a termi­nologia e temas especificamente joaninos que precisam ser contadas como parte da teologia joanina desenvolvida (em especial 3.13; 6.62- tema da subida/descida; 3.14; 8.28; 12.34 - Jesus sendo levantado; 12.23; 13.31 - a glorificação de Jesus). (3) Em parte alguma, na tradição sinótica, encontramos um dito do Filho do Homem como constituinte da proclamação do reino feita por Jesus. Admitido que essa última é a marca mais distintiva da mensagem de Jesus, é bem possível concluir que os dois estratos distintos de material foram, de fato, originalmente independentes - o material do reino estimando-se provir de autêntica tradição de Jesus; o material do Filho do Homem estimando-se provir da comunidade primitiva7. Em contrapartida, este último argumento é duplo: é mais provável que os ditos de Jesus emergentes da inspiração profética das comunidades primitivas tenham-se emaranhado ou sido desenvolvimentos já aceitos da tradição de Jesus; ditos proféticos que eram completamente um novo desvio eram provavelmente de menor aceitação como ditos do Jesus ressurreto8. No todo, contudo, há sufi­ciente indicação de que a tradição do Filho do Homem passou por algum desenvolvimento, no mínimo dentro da comunidade primitiva. Isso sugere, fortemente, que as igrejas primitivas pensavam em Jesus como o Filho do Homem de uma maneira criativa, ou seja, a convicção de que Jesus era o Filho do Homem era parte importante de sua fé.

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7 P. V ielhauer, "Gottesreich und Menschensohn in der Verkündigung Jesu" (1957), Aufsätze zum Neuen Testament. München, 1965, pp. 55-91.

K Ver o meu artigo: "Prophetie T - Sayings and the Jesus-tradition: the Importance of Testing Prophetic Utterances within Early Christianity", NTS 24, 1977-78, pp. 175-98.

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2. Podemos ser mais específicos? Quão importante era essa crença para eles? Em que extensão nosso presente material de ditos do Filho do Homem como tal é a obra da comunidade primitiva? Isto é, em que extensão o material do Filho do Homem assim escolhido por eles é uma expressão da fé dos primeiros cristãos? O problema básico aqui é que a evidência é receptiva a diversas interpretações, não sendo possí­vel sustentar certas conclusões. As seguintes são as mais importantes das interpretações alternativas9.

(a) Todos os ditos do Filho do Homem provêm das igrejas primiti­vas; nenhum deles retrocede absolutamente a Jesus. No caso em que a crença de que Jesus era o Filho do Homem era provavelmente a ex­pressão primitiva da nova e distintiva fé pós-pascal dos discípulos de Jesus. Além do mais, isso tem desempenhado um papel criativo no desenvolvimento da fé cristã, em especial no desenvolvimento da tra­dição dos ditos de Jesus, inigualável por quaisquer outras formulações de fé. Em contrapartida, é difícil, sobre esse ponto de vista, explicar por que os primeiros cristãos tomaram a iniciativa de identificar Jesus com o Filho do Homem10, é até mais difícil entender por que essa nova fé produziu o presente padrão de tradição, na qual todas as afirmações do Filho do Homem aparecem nos lábios do próprio Jesus e nenhuma está preservada em outro contexto. Por que a crença de que Jesus é o Filho do Homem não aparece em quaisquer declarações kerygmáticas? Por que essa com­pleta ausência do título de qualquer ensino ou fórmulas primitivas? O fato é que não há nenhum desenvolvimento comparável nos casos dos outros "títulos de majestade". Ao contrário, a comparação com o desenvolvimento dos títulos examinados abaixo fala, com firmeza, contra tal hipótese.

(b) Alguns dos ditos do Filho do Homem retrocedem a Jesus mais ou menos na forma preservada para nós na tradição. Esses são os di­tos em que Jesus olha para a vinda futura do Filho do Homem como

9 Os pontos de vistas opostos são m uito bem conhecidos para que requeira docu­m entação. V er p.ex. I. H. M arshall, "T h e Synoptic Son of M an Sayings in Recent D iscussion", NTS 12, 1965-66, pp. 327-51; R. P esch & R. Schnackenburg, org. Jesus und der Menschensohn: Für Anton Vogtie. Freiburg 1975; C. C. C aragounis, The son o f Man, WUNT 38. Tübingen 1986, pp. 19-33.

10 Para um possível esquema ver N. Perrin, Rediscovering the Teaching o f Jesus, SCM Press 1967, pp. 164-85; também A Modern Pilgrimage in New Testament Christology, Fortress 1974, cp. II, III, V.

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alguém distinto de si mesmo - em particular, Marcos 8.38, Lucas 12.8s; veja também Mateus 24.27/Lucas 17.24; Mateus 24.37,39/Lucas 17.26, 30; Mateus 24.44/Lucas 12.40; Mateus 10.23; Lucas 11.30; 17.22. A razão básica de esses ditos poderem ser alistados por retroceder a Jesus, com alguma confiança, é a improbabilidade de que a comunidade primitiva tivesse distinguido o Jesus exaltado do Filho do Homem dessa manei­ra. O papel criativo das igrejas primitivas nesse caso começou com a identificação do Filho do Homem com o agora, com o próprio Jesus exaltado. Não somente Jesus foi identificado com o Filho do Homem nesses ditos, em que Jesus olhava para frente, para a vinda do Filho do Homem, mas novos ditos emergiram na tradição de Jesus - ditos ulteriores descrevendo a atividade celestial do Filho do Homem e sua vinda em glória, e dai ditos envolvendo a atividade terrena e sofredora de Jesus.

A questão-chave aqui é se Jesus, de fato, esperou pela vinda de alguém maior que ele próprio. E a dificuldade sob a qual essa hipótese trabalha é a de que esses ditos do Filho do Homem já mencionados são as únicas evidências reais para tanto. E forte o suficiente? Lucas 12.8s e Marcos 8.38 requerem de nós reconhecermos uma distinção entre Jesus e o Filho do Homem? De fato, tal interpretação vai contra o elemento realizado da proclamação de Jesus em que Jesus contras­tava o cumprimento escatológico de seu próprio ministério com a na­tureza preparatória do que veio antes, na qual o Batista ocupou o pa­pel do precursor (veja especialmente Mt 11.11/Lc 7.28; Mt 12.41s./Lc11.31s.). Além do mais, uma vez mais podemos perguntar por que e o quanto essa crença em Jesus como o Filho do Homem celestial teria levado ao desenvolvimento da tradição em que a atividade terrena de Jesus se referia com um título apocalíptico - por que especialmente tais ditos inconseqüentes como Mateus 8.20/Lucas 9.58 teriam apa­recido como expressões de fé em Jesus, o ser glorioso no céu. Nada similar aconteceu com os outros títulos de exaltação; com efeito, em contraste, o uso de "Senhor" por Lucas em seu Evangelho é nitida­mente editorial e reflete seu ponto de vista pós-pascal inequivocamen­te (ver abaixo p. 126).

(c) Uma terceira visão é a de que pelo menos alguns dos ditos do Filho do Homem retrocedem a um (não-titular) estilo de falar de Jesus- que Jesus usou algumas vezes a frase aramaica bar ’cnãsã ("o filho do homem") no sentido do Salmo 8.4b (cf. Hb 2.60) = "homem" em geral,

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isto é, sem auto-referência distintiva11. Esse seria o sentido original por trás de certos ditos sinóticos, em especial Marcos 2.10; 2.28 ("O sábado foi feito para o homem... portanto o filho do homem = homem é senhor do sábado"), Mateus 8.20/Lucas 9.58 e Mateus 11.18s./Lucas 7.33s. Al­guma sustentação para essa visão é dada pelo Evangelho de Tomé que preserva somente um dito do Filho do Homem - logion 86, um estreito paralelo com Mateus 8.20/Lucas 9.58 (citado abaixo p. 420). Diversos dos logia de Tomé parecem brotar de uma primitiva fonte aramaica e independente12. Portanto, isso poderia ser tomado como confirmação de que o estágio primitivo da tradição do Filho do Homem era um uso não-titular de bar ,cnãsã.

O papel da comunidade primitiva ao moldar os ditos "Filho do Homem" então teria sido o seguinte: a busca através do AT de uma linguagem para expressar a fé em Jesus como exaltado teria pinçado a figura do filho do homem de Daniel 7.13, bem como ditos que identifi­cavam o Jesus ressurreto com essa figura teriam emergido, seja na base do tipo original do Salmo 8.4 seja independentemente disso. No desen­volvimento da tradição, esses ditos originais se tornaram ditos-titular ("o filho do homem" se tornou "o Filho do Homem"); esse é o estágio que encontramos cristalizado em Q, subseqüentemente, a tradição in­teira continuou a se expandir, fundindo-se com o kerygma (paulino), em desenvolvimento, da cruz para formar os assim chamados ditos do Filho do Homem sofredor em Marcos.13 O Quarto Evangelho ci­mentou essa conexão por ligar a expressão "Filho do Homem" com os temas peculiarmente joaninos de Jesus sendo levantado e glorificado (ver abaixo p. 158s), e ulteriormente expandiu a tradição para abranger a implicação de preexistência (Jo 3.13; 6.62).14

Todavia, a sustentação do Evangelho de Tomé aqui é de valor questionável, desde que a escatologia de Tomé dificilmente é típica da proclamação de Jesus ou dos kerygmatas primitivos, de modo que isso

11 Ver, particularmente, M. C asey, Son o f Man. SPCK 1979, cp. 9; "The Jackals and the Son of Man (Mt 8 .20/L c 9.58)", JSNT 23,1985, pp. 3-22.

12 Ver ex. K õester, "Gnomai Diaphorai". Trajectories, pp. 129-32.13 Cf. mais abaixo p. 465. P errin argumenta que "o evangelista Marcos é a principal

figura no uso criativo das tradições 'Filho do Homem' no período do Novo Tes­tamento" (Modern Pilgrimage, pp. 77-93).

14 Ver também F. J. M o lo n ey , The Johan nine Son o f Man, Rome 1976, 2a ed., 1978, com bibliografia completa. ;

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bem pode refletir um estágio pós-apocalíptico no desenvolvimento da tradição Jesus (antes que um estágio pré-apocalíptico), do qual ditos apocalípticos "Filho do Homem" foram eliminados (ver abaixo p. 422). De maior peso é a consideração de que aqueles ditos que foram identi­ficados como ditos do tipo do Salmo 8.4 dificilmente fazem sentido exceto como auto-referência. Em particular, simplesmente, não é verdade que "homem em geral tenha lugar algum para deitar sua cabeça"; como se coloca esse logion é unicamente realidade inteligível como uma re­ferência à própria missão de Jesus como um pregador itinerante (Mt 8.20/Lc 9.58). O ponto é até mais claro no caso de Mateus 11.18s./Lu- cas 7.33s. Se esses ditos são de Jesus originalmente, refletem um estilo de Jesus no qual se referia a si mesmo na expressão idiomática da ter­ceira pessoa, bar ,enãsã.

(d) Uma quarta visão é uma variação da terceira - que Jesus usou bar ,enãsã, mas de si mesmo, e em uma maneira deliberadamente ambígua = "alguém". Há alguma disputa sobre a questão se há quaisquer paralelos para esse uso de bar Hnãsã na Palestina dos dias de Jesus15. Seja como for, a melhor evidência de que Jesus usou bar ,enãsã como uma auto-referên­cia provém da própria tradição sinótica: é a melhor explicação dos textos mencionados acima [começando de (c)]; as atuais formas divergentes de outros textos são melhores explicadas se reconhecermos uma ori­ginal forma comum bar ’enãsã (em particular, Mc 3.28/Mt 12.31s./Lc12.10)16, é a melhor explicação do porque em versões em paralelo uma lê o "Eu" e a outra "o Filho do Homem" visto que bar ,enãsã poderia ser tomada de um modo particular (principalmente em Mt 5.11/Lc 6.22; Mt 10.32/Lc 12.8; Mt 16.13/Mc 8.27).

O problema com o qual essa tese tem de contender é o seguinte: a que ponto a franca influência de Daniel 7.13 começou a se exercitar sobre os ditos "Filho do Homem"? Notamos como é difícil aceitar que um imaginário apocalíptico original extraído de Daniel 7.13, tenha se expandido para abranger um material nitidamente não-apocalíptico

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15 Ver de um lado G. Verm es in: M. B la c k , An Aramaic Approach to the Gospels and Acts. Oxford University Press, 3a ed., 1967, pp. 310-30; também seu Jesus the Jew. C o llin s , 1973, pp. 163-8, 188-91; Casey (acima n otall); no outro J. A. Fitzm yer, resenha de B la c k in CBQ, 30, 1968, pp. 424-8; também "Methodology in the Study of the Aramaic Substratum of Jesus' Sayings in the New Testament", em: J. D u pont, Jésus aux origins de la christologie. Gembloux 1975, pp. 92-4.

16 V er D unn. Jesus, pp. 49-52.

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como Mateus 8.20/Lucas 9.58. É quase tão difícil como aceitar que Jesus usasse a forma bar ,enãsã que abrangesse tanto o linguajar do Sal­mo 8.4 como o imaginário de Daniel 7.13 em si. Não obstante, uma am­bígua forma bar Hnãsã que Jesus usou minimamente em algumas instâncias aludindo a Dn 7.13 parece ser o que há de menos objetável da quarta hipóte­se17. O problema é substancialmente aliviado se vermos a influência de Daniel 7.13 como mais difusa sobre o uso de Jesus de bar ,enãsã, e ao mesmo tempo, reconhecermos que Daniel 7.13 é, em si, não de uso titu­lar, mas fala somente de uma figura humana que representa ou sim­boliza os leais perseguidos dos dias dos Macabeus em sua vindicação final, na corte dos céus18. Tal caso torna bem possível que (alguns dos) ditos como: "Filho do Homem" sofredor também retrocedam a uma ambígua formulação bar ,enãsã de Jesus - a despeito de sua ausência de Q19.

A visão mais provável do papel da comunidade primitiva no de­senvolvimento da tradição "Filho do Homem" seria, portanto, a se­guinte: os primeiros cristãos herdaram um bom número de ditos bar ,enãsã falados por Jesus, (quase?) todos se referindo a si mesmo, e al­guns, pelo menos (a maioria? Todos?), aludindo a ou influenciados em maior ou menor medida pela visão de Daniel 7.13, e contendo assim uma cristologia implícita. Em todo caso, as comunidades primitivas removeram a ambigüidade seja por tomar bar ,enãsã como a primeira

17 Isso seria o reconhecimento do efeito geral do uso de bar ’cnãsã que sugeriu o uso do Salmo 110.1, ligado como é não somente ao Salmo 8 (Mc 12.36; ICor 15.25- 27; Ef 1.20-22 - note especialmente o SI 8.6), mas também com Daniel 7.13 (Mc 14.62)?

18 Assim C. F. D. M o u le . "Neglected Features in the Problem of 'the Son of Man'", NTK, pp. 413-28; reimpresso em: Essays in New Testament Interpretation, Cam­bridge University Press, 1982, pp. 75-90. Ver também M. D. H o o k er, "The Son of Man in Mark", SPCK 1976; W. G. Kümmel, The Theology o f the New Testament,1972, ET SCM Press, 1974, pp. 76-90; B. L in d ars, "Re-Enter the Apocalyptic Son of Man", NTS, 22,1975-76, pp. 52-72; J. B ow ker, "The Son of Man", JTS, 28,1977, pp. 19-48; S. Kim, "The 'Son o f M an”' as the Son o f God. WUNT 30, Tübingen 1983; C a ra g o u n is , Son o f Man.

19 Ver especialmente B. L in d ars, Jesus Son of Man, SPCK, 1983, cp. 4. A idéia de so­frimento e rejeição talvez esteja presente em outros ditos do "Filho do Homem" preservados em Q (Mt 8 .20/L c 9.58; Mt 10.32s./Lc 12.8s.; Lc 11.30/M t 12.40; Lc 22.28-30/M t 19.28). Ver também 10.38/Lucas 14.27; Mateus 23.37-39/Lucas 13.34s. *

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pessoa do singular, seja por elaborá-la em um título intensamente inspirado "Filho do Homem" com referência explícita ou implícita a Daniel 7.13.

3. Assim, concluindo, podemos dizer que a convicção de que fesus era o Filho do Homem fazia parte da fé da Igreja primitiva. Mas a evi­dência decisiva de que os primeiros cristãos se utilizavam de uma cristologia do Filho do Homem para confessar a distinção de sua fé aos outros ou para alcançar um auto-entendimento mais claro dessa fé para si mesmo, está ausente. O fato permanece porque, até onde nossa evidência nos leva, a atividade da igreja primitiva, nesse ponto, es­tava confinada a elaborar a tradição dos ditos de Jesus. A fé em Jesus como o Filho do Homem não tinha nenhum lugar vital fora dessa tradição (At 7.56 é a única real exceção). A cristologia do Filho do Homem não fornecia um ponto crescente para a teologia distintiva das igrejas primitivas. Na medida em que qualquer confissão caracterizasse as comunidades palestinenses primitivas isso aconteceu porque "Jesus é o Messias". E embora Jesus fosse reconhecido como o Filho do Ho­mem vindouro encontra sua expressão muito mais clara na confissão de Jesus como o Senhor.

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§ 10. JESUS É O MESSIAS

Esta parece ter sido uma expressão-chave de fé dentro da missão judaica antiga; a afirmação de que Jesus era o Messias provavelmente formou o passo de fé decisivo para os judeus conversos. Esse é com certeza, o testemunho de Atos 2.3ss; 3.18; 5.42; 8.5; 9.22; 17.3; 18.5, 28, e não há nenhuma razão para duvidar do relato de Lucas nesse ponto, visto que tais passagens refletem o uso titular (antigo) antes que o uso de nome próprio (tardio). Em qualquer outra parte nos escritos do NT (à parte da tradição Jesus preservada nos sinóticos), Christos geralmente serve como um nome próprio, um modo de se referir a Jesus em vez de uma confissão de fé real em Jesus como o Cristo (esp. Paulo e a Igreja ou Epístolas Católicas; ainda que se note passagens como Rm 9.5 e 15.3). Todavia, algo surpreende, o Quarto Evangelho preserva o uso primitivo de Christos. Apesar de escrito no final do séc. I, João rara­mente usa Cristo como um nome próprio (Jesus Cristo); ao passo que

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ele regularmente fala de: o Cristo (p.ex. Jo 1.20; 3.28; 7.26,41; 10.24) e até mesmo preserva a forma hebraica (ou aramaica) Messias (Jo 1.41; 4.25). Seu objetivo declarado, como vimos, (p. 94), é demonstrar que "Jesus é o Cristo, o Filho de Deus" (Jo 20.31). E, em 11.27, Marta se torna o mo­delo para a confissão cristã plena: "Eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus" (cf. o Batista - Jo 3.28).

1. A história dessa confissão dentro do séc. I é evidentemente marcada. Em essência, ela retrocede ao próprio período da vida de Jesus. A evidência decisiva provém das circunstâncias de sua morte. Sem di­minuir os sérios problemas históricos relativos ao julgamento de Jesus, é difícil, não obstante, que Jesus fora levado à morte como um não pretendente messiânico - alguém que punha uma ameaça nacionalista às autoridades políticas (Mc 15.26; Mt 27.37; Lc 23.38; Jo 19.19 - em que "rei dos judeus" é simplesmente a acusação do pretendente messiâni­co expressa de outro modo para o benefício do governador romano). Traços de um entusiasmo para com Jesus tal como reclamante ao mes­sianismo político são visíveis no episódio subjacente a alimentação dos 5000 (Mc 6.30-45), especialmente quando a comparamos com o relato provavelmente independente, preservado em João 6.1-15 (cf. Mc 6.45 com Jo 6.15). A confissão em si provavelmente também retroceda ao contexto do ministério de Jesus (Mc 8.29); mas, se for assim, a confissão de Pedro muito possivelmente objetivava um messianismo nos mes­mos termos nacionalistas e políticos.

O que fica claro dos três episódios é que Jesus rejeitou tal papel. Com efeito, nem uma vez somente na tradição sinótica Jesus usa o tí­tulo Messias para si mesmo. A razão presumivelmente é a de que o conceito de messianismo inextricavelmente ligava-se ao título Messias, pelo menos na esperança e imaginação popular, era uma coisa que Je­sus mesmo não abraçou. Para Jesus, então, a confissão de si próprio como Messias significava um mal-entendido de sua missão. Conseqüen­temente ele desencorajava tal confissão.

Em contrapartida, não podemos dizer que Jesus igualmente ne­gasse um papel messiânico. Seu intróito em Jerusalém e ataque sobreo abuso do Templo podem muito bem conter deliberadas tonalidades messiânicas. Marcos 12.35-37, se originado em Jesus, teria sido enten­dido como portando algum tipo de auto-referência (ver também abaixo p. 126). O principal peso da acusação contra Jesus em seu julgamen­

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to recaía sobre o dito obscuro a respeito da destruição e reconstrução escatológica do Templo, que precisa retroceder a Jesus de alguma for­ma (Mc 14.58/Mt 26.61; Mc 15.29/Mt 27.40; Jo 2.19; cf. Mc 13.2 pars.; At 6.14; Evang. Tomé 71), e o que teria constituído algum tipo de reivindi­cação ao messianismo (2Sm 7.12-14 como interpretado por Qumran20;I Enoque 90.28s.; IV Esdras 9.38-10.27; cf. Ezequiel 40-48; Jubileus 1.17, 27s., Test. Benj. 9.2; II Baruc 32.4; Orac. Sibilinos V.423s.). E a resposta de Jesus às acusações especificamente messiânicas de Caifás e de Pila- tos é melhor se tomada no sentido: "Se tu queres pôr dessa maneira" (Mc 14.62; 15.2)21, implicando que isso dificilmente fora uma expressão escolhida pelo próprio Jesus. De acordo com a nossa evidência então (Mc 8.29-33; 14.61s.), a preocupação primária de Jesus nesse ponto era a de explicar seu papel em termos de sofrimento e consumação escatológicos antes que discutir conceitos de messianismo.

2. É neste ponto que a comunidade primitiva parece ter assumido. Onde Jesus mostra uma marcada ambivalência em sua atitude ao títu­lo Messias, devido a suas conotações políticas, os apologistas cristãos acharam necessário lutar pela retenção do título; mas sutilmente re­definido em termos do Jesus sofredor que antecipou e da morte que sofreu. É esta redefinição do título Messias em termos do sofrimento e mor­te de Jesus que parece ter dominado seu uso primitivo como uma confissão. Nos primórdios do cristianismo, quando a nova seita ainda não era distinta do judaísmo, a confissão "Jesus é o Messias" obviamente foi um ponto-chave no debate contra os judeus mais tradicionais - com o ponto em questão sendo a morte de Jesus. Como poderia um judeu crer que um homem crucificado fosse o Messias de Deus? - "Cristo crucificado... um escândalo para os judeus" (ICor 1.23). Daí se tornou de importância cardeal para esses primeiros cristãos demonstrar que "Cristo crucificado" não era uma contradição em termos. As Escrituras foram vasculhadas e passagens trazidas à luz (sem dúvida, incluindo

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20 Ver. O. B etz , What do we Know about Jesus? 1965, ET SCM Press 1968, pp. 83-93.21 O texto mais longo de Marcos 14.62 é possivelmente original - "Tu dizes que

eu sou". Explica as versões divergentes de Mateus e Lucas; uma abreviação do copista ao mais breve e inequívoco "Eu sou" é mais provável que a alteração reversa. Assim p.ex., V. T a y lo r , The Gospel according to St Mark, Macmillan, 1952, p. 568; O. C u llm a n n , The Christology o f the New Testament, 1957, ET SCM Press 1959, pp. 118s.

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Is 53) que poderiam ser tomadas para mostrar que o Messias precisava sofrer (At 3.18; 17.2s; 18.28; 26.23; ICor 15.3; cf. acima pp. 82s). Lucas 24.26, 46 pode, no mínimo, ser tomados como uma indicação de que esse reconhecimento de um Messias sofredor dentro das Escrituras foi um elemento importante no desenvolvimento do auto-entendimento da fé primitiva. Ao mesmo tempo, Atos 3.20s., com certeza, conta como evidência que as igrejas palestinenses primitivas falaram de Jesus em conexão com sua esperada parusia iminente. Mas, mesmo assim, o peso da evidência sugere que, para o período anterior a Paulo, esse não fora o foco primário de sua utilização. Aliás, vemos o que parece ser um grau de continuidade entre Jesus e a Igreja primitiva, isto é, sobre a as­sociação básica de messianismo com o sofrimento. O problema para Jesus, na situação pré-pascal, era ligar sofrimento e morte com o conceito dado de messianismo - um problema que Jesus aparentemente nunca solucionou, pelo menos durante sua vida. O problema para a Igreja primitiva, na situação pós-pascal, era ligar o messianismo com os fatos dados do sofrimento e morte de um homem - um problema com o qual ela teve maior sucesso, apesar de provavelmente a custo de largamen­te restringir o título a essa função específica (de superar a antipatia judaica para com a proclamação de um Messias crucificado).

3. O uso de Paulo do título Cristo reflete a mesma ênfase - Cris­to crucificado é o Messias, proclama Paulo (em especial ICor 1.23; 2.2; G1 3.1). Mas seu uso também implica que isso foi uma batalha já ven­cida para Paulo. Ele não faz nenhuma tentativa de provar que Jesus realmente é o Cristo a despeito de seu sofrimento e morte. Cristo não é mais um título cujo vigor em sua aplicação a Jesus deve ser demons­trado. A crença em Jesus como o Cristo se torna tão firmemente estabe­lecida em seu pensamento e mensagem, que ele, simplesmente a toma como garantida e Cristo funciona, simplesmente, como um modo de falar de Jesus, como um nome próprio para Jesus (isso até mesmo em ICor 15.3).

A evidência das cartas paulinas, portanto, é que a confissão “Jesus é o Cristo" tinha pequena relevância ou vida dentro do meio, predominante­mente, gentílico ou helenístico - como teríamos esperado. Essa conclusão é sustentada por duas outras observações. Primeira, o modo em que o título Cristo tem de ser suplementado e definido em termos de "Filho de Deus" nos escritos cristãos judako-helenísticos (ver abaixo pp. 120ss).

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Isto quer dizer, mesmo dentro do cristianismo judaico-helenístico a confissão parece ter desaparecido, aos poucos, em significância. Segunda, a alternativa confissão messiânica, "Jesus é o Filho de Davi", também parece ter tido pouca ocorrência fora da Palestina, bem como ter sido amplamente "subordinada" à expressão Filho de Deus22. Ma­teus sozinho faz muito disso (Mt 1.1; 9.27; 12.23; 15.22; 20.30s; 21.9, 15 - compare 21.9 com Mc 11.9s.), e ecos de sua antiga significância estão preservados em Atos 13.23; 2 Timóteo 2.8 e Apocalipse 5.5; 22.16. Mas, em nenhum lugar, mesmo entre os judeus-helenísticos, as pou­cas alusões a tal referida fé confessional parece implicar certo grau de embaraço com a reivindicação (Mc 12.35-37; Jo 7.42 - nos lábios da volúvel multidão; Rm 13s. - "conforme a carne" regularmente soa negativamente, talvez uma nota pejorativa em Paulo23, cf. At 2.29-31). A razão possível é que o título fosse tão claramente definido em termos políticos, nacionalistas, sendo ainda menos capaz que o termo "Mes­sias" de ser remodelado dentro do contexto mais amplo do helenismo (cf. At 17.7 e a espiritualização do conceito de senhorio de Jesus em Jo 18.33-38 e Hb 7.1s.).

De maior importância para nós, neste ponto de nosso estudo, é o fato de, também preservado em Paulo, vermos os inícios da uma fórmula confessional mais plena - Cristo morreu (por nós), mas ressurgiu (veja particularmente Rm 4.24s; 8.34; 14.9; ICor 15.3-5; 2Cor 5.15; 13.4; lTs4.14).24 Mas se isso era uma fórmula confessional em si, ou meramente uma ênfase dual padrão na proclamação, não fica claro. E, mesmo se era uma fórmula confessional, ainda assim estamos muito longe do segundo artigo do Credo dos Apóstolos.

4. Se a confissão "Jesus é o Cristo" perdeu sua significância fora dos limites da Palestina, certamente parece ter mantido sua importân­cia dentro dos círculos judaicos mais definidos. Isso é sugerido pela pre­servação do uso titular no material especial de Mateus e na redação

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22 C. B u rg er, Jesus als Davidssohn: eine traditionsgeshichte Untersuchung, Göttingen, 1970, p. 41.

23 J. D. G. D unn, "Jesus - Flesh and Spirit: an Exposition of Rm 1.3-4", JTS ns., 24,1973, pp. 40-68.

24 Ver mais detalhadamente W . K ram er, Christ, Lord, Son o f God, 1963, ET SCM Press 1966, §2-8; K. W en g st, Christologiche Formeln und Lieder des Urchristentums. Gütersloh 1972, pp. 27-48, 55-104.

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de Marcos (Mt 1.17; 2.4; 11.2; 16.20; 23.10; 24.5). Mas o ponto é melhor demonstrado pela tensão apresentada dentro do cristianismo judai­co durante a queda de Jerusalém e a reconstituição do Sinédrio em Jâmnia, quando o judaísmo começou a girar sobre si mesmo e o cris­tianismo e o judaísmo se distanciaram. Onde previamente cristãos podiam permanecer judeus e continuar a cultuar regularmente na si­nagoga, desde por volta da metade dos 80s em diante, cristão-judeus enfrentaram a escolha de se conformar ao novo, mais estreitamente definido, judaísmo ou de serem excomungados da sinagoga. Essa é uma das situações que parece subjacente aos Escritos Joaninos25. Nes­sas circunstâncias, "Jesus é o Cristo" parece ter se tornado a fórmula teste. Para os cristãos, tornou-se o teste da fé verdadeira (ljo 2.22;5.1). Para a sinagoga se tornou o teste da heresia (Jo 9.22). Resumin­do, podemos dizer que, onde a confrontação entre judaísmo e cristianismo permanecia um fator de importância no desenvolvimento do cristianismo confessional, a confissão "Jesus é o Cristo" reteve sua significância e impor­tância (cf. Justino, Dial. 35.7; 39.6; 43.8; 48.4; 108.2; 142); mas quase em nenhum outro lugar.

§ 11. JESUS E O FILHO DE DEUS

1. Está se tornando muito provável que a expressão o Filho de Deus do cristianismo primitivo tenha suas raízes dentro do próprio ministério de Jesus. (1) Ao passo que, anteriormente, parecia que "Filho de Deus" não tinha nenhuma significância messiânica dentro do judaísmo do tempo de Jesus, a evidência proveniente dos Manuscritos do Mar Mor­to começa apontar agora em outra direção. Não somente 2 Samuel 7.14 e Salmo 2 estão ligados juntos e interpretados messianicamente26,

25 Ver especialmente J. L. M artyn, History and Theology in the Fourth Gospel, Harper, 1968, Abingdon, 2a ed., 1979; e ainda J. D . G. D unn , "Let John be John", Das Evangelium und die Evangelien, org. P. S tuhlmacher, WUNT 28. Tübingen 1983, pp. 309-39; cf. W. C. van U nnik, "The Purpose of St John's Gospel", Studia Evan­gélica, I. Berlin 1959, pp. 382-411.

26 Convenientemente apresentado em V ermes, Jesus, p. 198. Cf. E. L ovéstam , Son and Saviour: a Study o f Acts 13.32-37, Lund 1961; E. S chweizer, "The Concept of the Davidic 'Son of God' in Acts and its Old Testament Background", SLA, pp. 186-93. •'

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mas um fragmento da caverna 4; recém-traduzido de modo específico, aplica o título "Filho de Deus" a um ser humano, em uma situação apocalíptica (4Qps Dan A)27. E bem possível, portanto, que quaisquer especulações messiânicas, que adicionadas a Jesus durante seu minis­tério, também alcançavam o título Filho de Deus (daí a plausibilidade da questão em Mc 14.61 par.; ver acima p. 115, nota 21). (2) Há algumas indicações de que Hassidim judaicos reconhecidos por possuir poderes carismáticos também fossem chamados de filhos de Deus, ou homens santos (de Deus)28. Se for assim, então, é bem possível que alguns indi­víduos, a quem Jesus ministrava, saudassem-no como "Filho de Deus" ou "Santo Homem de Deus" - como algumas das narrativas de seus exorcismos sugerem (Mc 1.24; 3.11; 5.7; cf. Jo 6.69). (3) Talvez o dado mais firme seja o próprio hábito distintivo de Jesus de se dirigir a Deus como 'abba (Pai) em todas as suas orações (em especial Mc 14.36; Mt11.25s./Lc 10.21). Evidentemente, Jesus pensava de si mesmo como Fi­lho de Deus em um sentido diferente, e parece que tenha expressado algo desse sentido aos seus discípulos (Mt 6.9/Lc 11.2; Lc 22.29). Con­tudo, devemos estar certos da leitura retroceder à própria autoconsci­ência de Jesus nesse ponto29.

2. As igrejas primitivas não parecem ter feito muito uso do título “Filho de Deus" como uma confissão. Hebreus 1.5 sugere que assumiram (da comunidade de Qumran?) a associação do Salmo 2.7 e 2 Samuel 7.14 com referência ao Jesus exaltado. Note que esse uso primitivo do Sal­mo 2.7 era claramente adocionista em seu sentido: Jesus foi gerado por Deus como seu Filho mediante sua ressurreição e sua exaltação (assim explicitamente At 13.33; note também Rm 1.3s e Hb 5.5)30. Ainda que já tivesse sido Filho de Deus durante sua vida, seu status de filho foi grandemente aumentado por sua ressurreição (Rm 1.3s). Mesmo aqui,

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27 J. A. F itzmyer, "The Contribution of Qumran Aramaic to the Study of the New Testament", NTS, 20,1973-74, pp. 382-407, aqui pp. 391s; reimpresso em: A Wan­dering Aramean. Collected Aramaic Essays, Scholars 1979, cap. 4, aqui pp. 102s.

28 V ermes, Jesus, pp. 206s; M. H engel, The Son of God, 1975, ET SCM Press 1976,20, 1973-74, pp. 1-44.

29 Ver mais D unn , Jesus, §4-6; Christology in the Making, SCM Press, 2a ed., 1989, §4; e abaixo §45.2,50.4.

30 Apesar da nota de cautela com respeito ao uso da palavra "adocionista" em minha Christology, p. 62.

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a importância fundamental da ressurreição de Jesus como o ponto inicial e principal catalisador na reflexão cristológica é sublinhada (ver também abaixo pp. 334 e 367). A referência primária do título, nesse estágio, à exaltação de Jesus ao poder régio e à iminente consumação de sua pa­rusia é claramente sugerida por essas referências (cf. Mc 13.32; 14.61s.; Lc 1.32s.; ICor 15.24-28; lTs 1.9s.).

Também, provavelmente, seja antiga a moldagem do elo entre Jesus como filho de Deus e a expressão "Servo" proveniente do Dêu- tero-Isaías (com o conceito do messianismo de Jesus presumivelmen­te fornecendo o denominador comum). Isso pode subjazer (ou ser o resultado de) o elo entre o Salmo 2.7 e Isaías 42.1 nas palavras da voz celestial dirigidas a Jesus no Jordão (Mc 1.11), e possivelmente pode também explicar a ambigüidade da expressão em Atos 3.13, 26; 4.27, 3031. Diante da discussão acima (§11.1), é digno de nota que, na última dessas referências de Atos, Jesus é descrito como "teu santo filho/servo Jesus".

3. Se, de um lado, a confissão de Jesus como Filho de Deus de­sempenha um pequeno papel no testemunho dos cristãos primiti­vos, de outro lado, certamente veio a vicejar completamente dentro da crescente missão do cristianismo judaico-helenistico. Conforme Lucas, a primeira proclamação de Paulo nas sinagogas de Damasco pode ser resumida na confissão: "Ele é o Filho de Deus" (At 9.20). Em Romanos 1.3s., Paulo usa evidentemente uma fórmula mais antiga e aceitável como garantia de sua boa fé ao recomendar-se aos cristãos romanos; nessa afirmação, é a filiação de Jesus que é mais conceitu­ada. 1 Tessalonicenses 1.9s pode muito bem ser um sumário do tipo de pregação cristã judaico-helenistico aos gentios32 - "deixando os ídolos, vos convertestes a Deus, para servirdes o Deus vivo e verda­deiro e para aguardardes dos céus o seu filho..." - uma associação da filiação de Jesus com sua parusia exclusiva na literatura paulina.

31 Que a expressão "Servo Sofredor" fosse usada a Jesus pelos primeiros cristãos é provável (ver p.ex.. R. N. L ongenecker, The Christology ofEarly Jezvish Christianity, SCM Press 1970, p. 104-9, e as referências aí), mas inicialmente a serviço de um tema humilhação-vindicação (ver acima pp. 82ss). Não há nenhuma evidência de qualquer confissão cristã primitiva da forma: "Jesus é o Servo de Deus".

32 Ver E. B est, The First and Second Epistles to the Thessalonians, A. & C. B lack 1972, pp. 85s. e as que são citadas aí. !

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Em outros lugares, se bem que Paulo relativamente faça pouco uso do título, ele aparece mais freqüentemente naquelas cartas onde dialoga, mais de perto, com a tradição judaica do cristianismo (Rm 7; G1 4). Em Hebreus, o conceito central é, com certeza, o Sumo-sa- cerdócio de Cristo. Mas isso pertence mais à cristologia caracterís­tica do escritor do que à sua fé comum. A confissão básica comum aos seus leitores e a si mesmo deve ser "Jesus é o Filho de Deus" (Hb 4.14; veja também 6.6; 7.3; 10.29). O mais impressionante é a manei­ra em que a terminologia "Pai-Filho", tão parcamente utilizada em Marcos, em Q e em Lucas, prolifera em Mateus e especialmente em João ("Pai" = Deus nas palavras de Jesus - Mc 3; Q 4; Lc 4; Mt 31; Jo 100)33. Note também como o início da filiação de Jesus, originalmen­te associada com a ressurreição-ascensão de Jesus, agora retrocede em alguns casos à sua experiência no Jordão (Mc 1.11; Q? - cf. Mt 4.3, 6/Lc 4.3, 9), em outros ao seu nascimento (Lc 1.32; 35), e em outros à eternidade (Jo 1.14, 18; cf. Rm 8.3; G1 4.4; Cl 1.15; Hb 1.2s.- veja também abaixo §51.2).

Um dos mais interessantes desenvolvimentos é o modo claro em que a confissão "Filho de Deus" é levada a suplementar e a definir a confissão do messianismo de Jesus. João, como vimos, preserva o modo primitivo de falar de Jesus como "o Cristo". Mas, no Quarto Evange­lho, a frase, em geral, aparece nos lábios da multidão - isto é, como uma pergunta, uma confissão vacilante, não uma confissão de fé (cf. seu uso do título "profeta" - em especial Jo 6.14; 7.40). Evidentemente, "Messias/Cristo" não fornecia uma confissão inteiramente adequada à fé para João. A melhor confissão primária para o círculo joanino é "Jesus é o Filho de Deus" (Jo 1.34,49; 10.36; l jo 4.15; 5.5). Os escritores joaninos, com certeza, retêm a confissão do messianismo de Jesus (veja acima §10.4), mas também sentiam a necessidade de redefini-la e trans­formá-la na confissão "Jesus é o Filho de Deus". Daí, João 11.27; 20.31, onde temos de traduzir: "Tu és o Cristo, isto é, o Filho de Deus, ...crês que Jesus é o Cristo, isto é, o Filho de Deus" - e não "...Cristo e Filho de Deus" - (assim ljo 2.22s; 5.1,5-12).

Muito de Mateus é a mesma coisa. Ele retém a confissão de que Jesus é o Messias, filho de Davi - sem dúvida, ainda importante para seus leitores judeus (palestinenses) (ver acima p. 117). Mas com vistas a

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1 Ver J. J eremias, The Prayers o f Jesus, 1966, ET SCM 1967, p p . 29-35.

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um círculo mais amplo de leitores, ele assume a terminologia "Filho de Deus". A importância da confissão "Filho de Deus" parg. Mateus é clara de 14.22 - o episódio de Jesus ao andar sobre as águas. Sua fonte, Marcos, encerra notando o espanto e a dureza de coração dos discípulos (Mc 6.51s.). Mateus transformou isso na indiscutível e cla­ra confissão: "Verdadeiramente tu és o Filho de Deus" (cf. também Mt 27.40, 43 da redação de Mc 15.30). E, na narrativa da confissão de Pedro em Cesaréia de Filipe, ele faz precisamente o que João faz: explica a confissão "Tu és o Cristo" (Mc 8.29) pela adição: "Isto é, o Filho do Deus vivo" (Mt 16.16) - adição interpretativa, obviamente. Assim como em João 11.27 e 20.31, Mateus diz como efeito: "Esta é a maneira que você tem de entender a confissão 'Jesus é o Cristo'" (veja também Mc 2.15; 4.3, 6; 11.27; 28.19, e cf. 8.29 mudança redacional de Mc de 5.7, 26.63 e 14.61).34 Uma conclusão interessante oferece o uso de Mateus das fórmula "o Filho de Davi" e "o Filho de Deus": a saber, que este Evangelho foi objetivado como algum tipo de docu- mento-ponte entre um cristianismo judaico mais estreitamente de­finido de um lado, e um cristianismo judaico muito mais a par das categorias helenísticas de outro lado (ver mais abaixo p. 555). Quan­do adicionamos a evidência de João e Hebreus, sendo os três juntos a mais clara expressão do cristianismo judaico-helenistico no NT, a conclusão parece ficar ainda mais firme, isto é, que "Jesus é o Filho de Deus" era a confissão mais significativa nos círculos cristãos judaico- helenísticos.

Por que isso? É provável que o título "Filho de Deus" fosse mais significativo para uma audiência gentílica, que seria o de Messias. Além do mais, podia servir como uma boa ponte entre o pensamento judaico e gentílico: ambas as sociedades estavam familiarizadas com a idéia de que um bom ou grande homem podia ser chamado de um filho de Deus, e em ambas as sociedades "Filho de Deus" tinha cono­tações de divindade. Talvez também fosse uma tendência de evitar kyrios (Senhor) em alguns círculos judaico-cristãos devido ao termo poder ameaçar o monoteísmo judaico (kyrios nunca é usado nas car­tas joaninas). Filho de Deus seria uma alternativa óbvia e atraente. E, por preencher-se de conteúdo caracteristicamente cristão, podia

34 Ver também J. D. K ingsbury, Matthew: Structure, Christology, Kingdom, Fortress, 1975, e SPCK, 1976 cp. II-III.

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se tornar uma confissão tão exaltada quanto "Jesus é Senhor" (veja abaixo §12.4). Isto é, com certeza, o que aconteceu no uso do corpus joanino (Jo 1.14, 18; 3.16, 18; 10.36; l jo 4.9). Ao mesmo tempo, tinha tonalidades especiais para o cristão de que kr/rios podia não ter, e ofe­recia um elo com o próprio auto-entendimento de Jesus, o que kyrios não podia fornecer.

4. A confissão de Jesus como Filho de Deus também era de consi­derável significância dentro do cristianismo gentílico. Isso fica bem claro de seu uso em Marcos, em que o título "Filho de Deus" desempenha um papel central (note, atentamente, Mc 1.1,11; 3.11; 5.7; 9.7; 12.6; 13.32; 14.61; 15.39). Contudo, não devemos super-enfatizar a distinção entre cristianismo judaico-helenistico e cristianismo gentílico nesse ponto. Tendo em mente nossos comentários anteriores (acima p. 103), seria mais preciso descrever Marcos (e também Mateus) como uma espécie de documento-ponte - no caso de Marcos entre cristãos gentílicos e cristãos da Diáspora judaica. A tradição de que foi escrito pelo judeu Marcos e a impressão que foi escrito em uma situação gentílica sus­tentariam tal sugestão. O ponto que devemos notar é que nas palavras "Jesus é o Filho de Deus" temos uma confissão que tinha a capacidade de cruzar os limites nacionais e culturais e ainda assim permanecer significativa- um atributo que demarcava a confissão Filho de Deus daquelas exa­minadas acima.

Todavia, esse mesmo atributo pode facilmente se tornar uma fraqueza e um risco para a fé confessada. Pois a palavra ou frase que passa facilmente de uma expressão terminológica para outra, nunca permanece de fato a mesma, a despeito das aparências; pois nessa nova cultura ela tende a extrair seu sentido do contexto da expressão terminológica dessa cultura antes que de seu contexto prévio. E assim uma gama diferente de sentido pode ser transferida a uma palavra ou frase mesmo que ela em si permaneça a mesma. Algo semelhan­te, possivelmente aconteceu a confissão "Filho de Deus" dentro das igrejas da missão gentílica; pois há algumas indicações de que Jesus é o Filho de Deus se tornou um veículo dentro do cristianismo helenís­tico35 antes para cristologias díspares e divergentes. Ao ler Marcos nas entrelinhas, a terminologia Filho de Deus parece ter sido usada para

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1 Para o meu uso de "cristianismo helenístico" ver abaixo p. 358.

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apresentar Jesus simplesmente como um grande realizador de mila­gres, o que tem sido denominado (enganosamente) uma concepção de "homem divino" (ver em especial Mc 3.11; 5.7; 9.7)36. Mais obvia­mente detrás de João se coloca um entendimento docético de Cristo (ver abaixo p. 149ss). Ambos, Marcos e o círculo joanino opõem-se de modo resoluto a tais cristologias. Marcos o faz mediante sua apresen­tação de Jesus como o Filho de Deus que também é o sofredor Filho do Homem. O círculo joanino o faz por nos apresentar outra fórmula confessional: "Jesus Cristo veio em carne" (ljo 4.2; 2Jo 7; cf. Jo 1.14; l jo 5.6) - naturalmente um slogan polêmico contra idéias docéticas de Cristo, e contra qualquer mal-entendido de sua confissão "Filho de Deus". Como já havíamos notado (p. 111) João permite que sua fé no Jesus como o Filho de Deus exaltado colorir sua apresentação do Jesus terreno em grau considerável - exagerado, alguns diriam. Às vezes ele chega perigosamente próximo de empurrar sua fé em Jesus á beira do mito (ver mais abaixo pp. 440). Foi a confissão explícita de João, que Jesus Cristo veio em carne, que torna afinal claro que o cír­culo joanino nunca saiu dos trilhos. Ambos, João e 1 João, firmemen­te, mantêm a realidade da vida terrena de Jesus, e também mantém a unidade e a continuidade entre o Jesus terreno e carnal e o Filho de Deus exaltado (ver abaixo pp. 440-442).

Uma olhada para além dos documentos do cristianismo do séc. I deve nos lembrar que a confissão de Jesus como Filho de Deus se tor­naria a descrição chave nos credos clássicos, a terminologia principal para expressar tanto a divindade de Jesus como a sua diferença de Deus o Pai - "o Filho de Deus, gerado do Pai, único gerado... gerado, não feito...". Em que extensão essa confissão Nicena pode reclamar es­tar de acordo com as Escrituras examinadas acima, ou ser uma exten­são própria da confissão primitiva de Jesus como Filho de Deus é uma questão importante e digna de se ponderar. Se isso não bastar, ela nos relembra que o reconhecimento da unidade e diversidade dos Escritos do NT tem ramificações que se estendem para além do próprio NT (ver mais abaixo caps. X e XV).

36 O desinteresse relativo de Paulo nesse título ("Filho de Deus" 3 vezes, "o Filho"12 vezes) pode, em parte, refletir um abuso similar do título na missão gentílica (ver abaixo pp. 149ss); mas a dominância expressiva da confissão "kyrios", em Paulo (ver abaixo p. 125) pode ser explicação suficiente.

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§ 12. JESUS É SENHOR

1. Essa é sem dúvida a principal confissão de fé para Paulo e para suas igrejas. As epístolas paulinas usam o título Senhor (kyrios) para Jesus quase 230 vezes. Que "Jesus é Senhor", uma afirmação central do keryma paulino (2Cor 4.5; Cl 2.6). "Jesus é Senhor" é a confissão básica para a conversão- iniciação (Rm 10.9). "Jesus é Senhor" é a marca diferenciadora da inspi­ração pelo Espírito de Deus (ICor 12.3). "Jesus é Senhor" é a expressão climática do culto do universo em Filipenses 2.11. Kyrios também é muito usado com referência a Jesus pelos autores de Lucas-Atos e das Epistolas da Igreja, menos freqüente em outros lugares, e, surpreendentemente, de modo algum nas epístolas joaninas. Menos importante é a invocação ara- maica primitiva preservada por Paulo em 1 Coríntios 16.22, "Maranatha”, "Vem, Nosso Senhor!", onde Mara(n) é equivalente de kyrios.

A história dessa confissão de Jesus como Senhor no cristianismo primitivo em grande parte gira em torno da questão: quão significante é a aplicação desse título a Jesus? Qual papel ou status essa confissão atribui a Jesus ou reconhece como pertencente a Jesus? As respostas do cristianismo primitivo variam e não podemos sempre estar certos de ouvi-las corretamente. O problema é que "senhor" pode denotar uma gama inteira de dignidade - desde uma forma respeitosa de se endere­çar como a um mestre ou juiz até um título completo para Deus37. Onde

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37 Argumentou-se que o mara aramaico tinha uma gama mais restrita que o grego kyrios - que enquanto foi, regularmente, usado por judeus de fala aramaica ao se dirigirem às autoridades humanas, quase nunca era usado em referência a Deus e nunca na forma absoluta "o Senhor" (S. Schulz, "Maranatha und Kyrios Jesus", ZNW, 53,1962, pp. 125-44; seguido por P. Vielhauer, "Ein Weg zur neu- testament-lichen Christologie?", EvTh, 25, 1965, pp. 28-45; H. Boers, "Where Christology is Real", Interpretation, 26, 1972, pp. 315s). Todavia os manuscritos de Qumran dão um retrato mais completo e, aliás, diferente do uso aramaico do séc. I de mara, e agora temos que lidar não com poucos exemplos em que mar, incluindo ambas as formas, a forma absoluta e enfática é usada para Yahweh (ver particularmente IQGen.Ap. 20.12-16; 4QenbI.iii.l4 (En 9.4); 4QEnb I.iv.5 (En 10.9); IIQtg Jó 24.6-7; 26.8) (ver Vermes, Jesus, pp. 111-14; M. Black, "The Chris- tological Use of The Old Testament in the New Testament", NTS, 18,1971-72, p. 10; Fitzmyer (como nota 27 acima), p. 387ss, também "The Semitic Background of the New Testament K yrios-Jiüe" , A Wandering Aramean, Scholars 1979, pp. 115- 42. Para os fragmentos de Enoque ver J. T. Milik, The Books o f Enoch: Aramaic Fragments of Qumran Cave 4, Oxford University Press, 1976).

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as referências cristãs primitivas ao senhorio de Jesus aparecem dentro desse âmbito? A resposta parece ser a que durante as primeiras décadas do cristianismo a confissão de Jesus como “Senhor" moveu-se em direta sig­nificância do lugar mais baixo desse "âmbito de dignidade" para o lugar mais alto e constantemente reunindo para si tonalidades crescentes de deidade.

2. Conforme Mateus e Lucas, Jesus foi regularmente tratado como "Senhor" durante seu ministério - em Mateus, principalmente, dentro do contexto de histórias de milagres (Mt 8.2, 6, 8, 25; 14.28, 30; etc.), em Lucas, principalmente, nos contextos de ensino (Lc 9.59, 61; 10.4Q;11.1; 12.41; etc.). Não precisamos duvidar que o aramaico mari subjaza o grego kyrie (vocativo) pelo menos nesses exemplos. Mar foi usado durante o séc. I a.C. para o homem santo Abba Hilkiah, supostamente em reconhecimento dos poderes carismáticos atribuídos a ele38. Além disso, "senhor" era amplamente sinônimo de "mestre" no tempo de Jesus, e Jesus certamente era reconhecido por ter a autoridade de um rabbi ou mestre (Mc 9.5, 17, 38; 10.17, 35, 51; etc.). Essa equivalência de "mestre" e "senhor", provavelmente, reflete-se em João 13.13s. e pode bem estar por trás do uso de kyrios em Marcos 11.3 (cf. Mc 14.14). Portanto, podemos dizer que a confissão de Jesus como Senhor estava en­raizada dentro do ministério de Jesus até certo ponto que ela era usada ampla­mente para exercitar a autoridade de um mestre (carismático) e taumaturgo (cf. Mc 1.22,27; 6.2; 11.28). Se "Senhor" já tinha uma significância mais alta para Jesus mesmo durante seu ministério depende de como ava­liamos Marcos 12.35-37. Mesmo se contiver uma palavra autêntica do Jesus histórico (como é bem possível) precisa somente significar que ele entendia que o Messias era uma figura superior a Davi em sig­nificância e especialmente favorecido por Yahweh. Isso não implica necessariamente que ele pensasse no Messias como uma figura divina (SI 110, além de tudo, é possível que se referisse originalmente ao rei; ver também p. 129, nota 45 abaixo).

3. Como uma corifissão "Jesus é Senhor" brota primariamente da fé pós- ressurreição dos primeiros cristãos. Obvia era a crença de que o Jesus res­surgido dos mortos deu a "senhor" o empuxo necessário ao "espectro de dignidade" para a conotação de divindade. Conforme Atos 2.36 e

; Verm es, Jesus, pp . 118s.

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com o hino citado por Paulo em Filipenses 2.9-11, kyrios foi o título dado a Jesus em sua exaltação na ressurreição e pela sua virtude. Uma afirmação espantosa da significância da ressurreição nesse ponto é o próprio uso de Lucas do título. Em seu Evangelho, quando está nar­rando algum episódio, muito naturalmente se refere a Jesus como "o Senhor". Mas nunca faz os personagens nesses episódios falarem nesse modo. A primeira vez que Jesus é chamado "o Senhor" por um de seus contemporâneos é imediatamente após sua ressurreição (Lc 24.34)39. Similarmente, no Quarto Evangelho. A despeito da alta cristologia da apresentação do Logos encarnado de João (inclusive a lista dos títulos em 1 João e a consciência de pré-existência de Jesus) kyrios não é usado pelos contemporâneos de Jesus até João 20.28, e o próprio evangelista, diferente até de Lucas, mostra uma reserva marcante em seu próprio uso do título para Jesus antes da ressurreição.40 Em outras palavras, o que foi preservado aí, como explicitamente em outros lugares, é a convicção de que Jesus se tornou Senhor como uma conseqüência áe sua ressurreição e exaltação.

Não está totalmente claro qual status era afirmado de Jesus como Senhor ressurreto nesse estágio primitivo. Se 1 Coríntios 16.22, Tiago 5.7s., Apocalipse 22.20, e 1 e 2 Tessalonicenses (as epístolas paulinas mais antigas, onde kyrios é muito usado) são algum guia, a dignidade e autoridade do Senhorio de Jesus eram aquelas de juiz que retorna em breve. Aí, Senhor começou a absorver o significado de: "Filho do Ho­mem" de Daniel, possivelmente por meio da combinação do Salmo 110 e Daniel 7.13 na apologética cristã primitiva41. Não podemos dizer até que ponto "Senhor", desse modo, moveu-se ao longo do "espectro de dignidade" ou se tonalidades de divindade já estavam presentes para aqueles que assim confessavam Jesus (cf., afinal de contas, Mt 19.28/Lc 22.29s.). De outro lado, o sentido de Senhor usado para Jesus por seus contemporâneos já há muito ficara para trás42 (ainda que pos­sa se argumentar que a ressurreição de Jesus foi considerada em parte

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39 M oule, "Christology of Acts", SLA, pp. 160s.40 V. T aylor, The Names o f Jesus, Macmillan 1953, p. 43.41 Cf. B. L indars, New Testament Apologetic, SCM Press 1961, pp. 45-9; P errin, Teaching,

pp. 175ss.42 A. E. RXwlinson, The New Testament Doctrine o f the Christ, Longmans 1926; '"M es­

tre, vem!' é uma tradução impossível (de ICor 16.22); a frase significa, só pode significar, '"Vem, Senhor!"' (p. 235).

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como o selo divino de aprovação sobre a autoridade que exerceu como mestre e taumaturgo; veja mais abaixo §50.3). O que podemos dizer com mais confiança é que a confissão mara não foi, provavelmente, a mais importante confissão das igrejas primitivas. Em particular não parece ter fornecido um meio de evangelismo na missão judaica, como fez a confissão Messias e a confissão Filho de Deus (com judeus hele- nísticos)43 - apesar de Marcos 12.35-37 e Barnabé 12.10s bem possam implicar que isso se caracterizava dentro da apologética judaico-cristã desde muito cedo. 1 Coríntios 16.22, Apocalipse 22.20 e Didaquê 10.6 sugerem, contudo, que a confissão mara dos primeiros cristãos pertefi- cia primariamente ao seu próprio culto, no qual havia deixado sua marca mais duradoura. Somente dentro do cristianismo helenístico a confis­são "Jesus é Senhor" veio à completude em seus próprios termos.

4. Nos círculos helenísticos a confissão mara naturalmente seria traduzida pelo grego kyrios. Com efeito, de acordo com Atos 11.20, foi a expressão kyrios a escolhida por aqueles que primeiro prega­ram o evangelho aos pagãos. Com essa transição, a confissão "Jesus é Senhor" adquiriu maior importância. Para começar, kyrios estava bem estabelecido como um título para o culto da deidade em diver­sas religiões de mistérios (principalmente Isis e Serápis), e estava em processo de se tornar o título chave no culto ao imperador ("César é Senhor"). Mas ainda mais importante, nas versões gregas do AT usadas por Paulo e suas igrejas, kyrios era a tradução do nome divi­no, Yahweh. Em outras palavras, foi somente nesse ponto de transição de mara para kyrios que a confissão "Jesus é Senhor" claramente se tornou uma afirmação da divindade do Jesus exaltado. E isso se fez muito delibe­radamente. De fato, é muito espantoso como Paulo usa os textos do AT falando de Yahweh com referência direta a Jesus (p.ex. Rm 10.13; ICor 2.16). Mais extraordinário de tudo é a aplicação de uma das pas­sagens monoteístas mais acalentadas do AT (Is 45.23) ao Jesus exal­tado em Filipenses 2.10s - um hino já em circulação antes de Paulo tomá-lo (ver abaixo pp. 231). Aí "Jesus é Senhor" evidentemente se tornou uma confissão não apenas de autoridade dada divinamente, mas divinamente em si mesmo.

43 Dificilmente apresentadas nas fórmulas kerygmáticas pré-paulinas observadas acima (§5 - K ramer, Christ, § § 8 g , H e ) .1

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Então, diremos que Jesus foi confessado como Deus desde mui­to cedo no cristianismo helenístico? Isso seria reivindicar muito.(1) A emergência de uma confissão de Jesus, em termos de divinda­de, foi amplamente facilitada pelo uso extensivo do Salmo 110.1 des­de muito cedo e daí em diante (mais evidentemente em Mc 12.36; At 2.34s.; ICor 15.25; Hb 1.13).

Disse o Senhor ao m eu senhor:Senta-te à minha direita,até que eu faça de teus inimigosum estrado para teus pés44 (At 2.34)

Sua importância aqui está no uso duplo de kyrios. Um claramente é Yahweh, mas quem é o outro? Obviamente não é Yahweh, mas um ser exaltado a que o salmista chama de kyrios45. (2) Paulo chama Jesus de kyrios, mas parece ter fortes reservas acerca de realmente chamar Jesus de "Deus" (Rm 9.5 é o único candidato real dentro do principal corpus paulino, e até mesmo aí o texto não é claro). Similarmente ele abstém- se de orar para Jesus. Mais típico de sua atitude é que ele ora para Deus mediante Cristo (Rm 1.8; 7.25; 2Cor 1.20; Cl 3.17).46 (3) "Jesus é Senhor" é somente parte de uma confissão mais completa para Paulo. Ao mesmo tempo em que afirma "Jesus é Senhor" ele também afirma "Deus é um só" (ICor 8.5s.; Ef 4.5-6). Aí o cristianismo se mostra como uma forma mais desenvolvida de judaísmo, com sua confissão monoteísta como uma das partes mais importantes de sua herança judaica; pois no juda­ísmo a confissão deveras fundamental é "Deus é um só", "Há somente um Deus" (Dt 6.4). Daí também Romanos 3.30, Gálatas 3.20,1 Timóteo2.5 (cf. Tg 2.19). Dentro da Palestina e da missão judaica tal afirmação seria desnecessária - judeu e cristão partilhavam uma crença na uni­cidade de Deus. Mas na missão gentílica essa pressuposição judaica

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44 Ver especialmente D. M. H ay, "Glory at the Right Hand: Psalm 110" em Early Christianity, S B L Monograph 18, Abingdon 1973; W. R. G. L oader, "Christ at the right hand - Ps 110.1" em The New Testament, NTS, 24,1977-78, pp. 199-217.

45 O hebraico do Salmo 110.1 usa duas palavras diferentes - Yahweh e Adonai. Como o verso deveria ser lido em aramaico é assunto de controvérsia (Mara maril).

46 2 Coríntios 12.8 usa a palavra significando "suplicar" (ou até "exortar"); não é linguagem típica de oração (p.ex. Rm 1.10; Ef 1.16s.). 1 Coríntios 16.22 é mais uma invocação do que uma oração.

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dentro do cristianismo teria emergido à proeminência, frente a mais ampla crença em "muitos deuses". O ponto em questão para nós é que Paulo pode saudar Jesus como Senhor não afim de identificá-lo com Deus, mas antes, de certa forma, para distingui-lo do único Deus (cf. esp. ICor 15.24- 28; ver também abaixo pp. 346ss). Assim também o Senhorio de Jesus poderia ser expresso em dimensões cósmicas sem representar muitos problemas para o monoteísmo, visto que a especulação da Sabedoria já fornecia uma terminologia pronta e apropriada (particularmente ICor 8.6; Cl 1.15-20; Hb 1.3s.; ver abaixo pp. 339ss).

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5. A confissão de Jesus como Senhor é, a princípio, somente uma adição à confissão do único Deus. Aqui vemos os inícios de uma confissão de duas partes: Deus é um, Jesus é Senhor. Desde que a Igreja primitiva estivesse satisfeita de viver com a ambigüidade da confissão kyrios não haveria problemas. Mas desde o início houve uma tensão intrínseca entre as duas partes, e que veio gradativamente à superfície: como afir­mar a unicidade de Deus sem desmerecer do Senhorio de Jesus; como afirmar o Senhorio de Jesus sem desmerecer da unicidade de Deus. Os escritores do NT não tentam investigar muito além. Paulo estava satisfeito em des­cansar com a solução delineada em 1 Coríntios 15.24-28? Efésios 1.20- 23 e Colossenses 1.15-20 colocariam essa solução sob alguma tensão. O autor de Hebreus parece estar satisfeito em justapor a forte lingua­gem adocionista a um salmo saudando o Cristo exaltado como Deus (Hb 1.9 - ver mais abaixo pp. 342, 388s). Somente o Quarto Evangelista faz algo como uma tentativa sustentada para encarar o tema em sua cristologia Pai-Filho. Seu Evangelho chega a um clímax surpreendente na aclamação de Tomé do Jesus ressurreto, "meu Senhor e meu Deus" (Jo 20.28). Aí, com certeza, kyrios moveu-se de sua significância direta junto ao espectro de dignidade para o seu termo superior - embora as palavras de Tomé talvez pudessem ser melhor descritas como a extra­vagância de culto antes que a formulação cuidadosa de uma confissão (ver também Jo 1.1,18; l jo 5.20; cf. Tt 2.13).

Nos séculos seguintes, a trajetória da tensão entre o Senhorio de Jesus e a unicidade de Deus se tornaria o problema central da teologia. E até o presente permanece a principal pedra de tropeço no diálogo cristão-judeu, cristão-mulçumano. Em uma importante medida, tam­bém, é o problema básico subjacente em muito da teologia cristã mo­derna: como falar de Deus e de Jesus hoje?

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§ 13. OS LUGARES VIVENCIAIS DAS FÓRMULAS CONFESSIONAIS PRIMITIVAS

No levantamento do material feito até aqui diversas situações confessionais bem claras ficam aparentes - situações que pediam para os cristãos primitivos colocar em uma forma explícita e concisa qual era o elemento central em sua nova fé, o que agora demarcava sua fé como distintiva.

í . O contexto mais óbvio é o da proclamação: "Jesus é o Cristo" - Atos 5.42; 9.22; 17.3; 18.5,28; 1 Coríntios 1.23; "Jesus é o Filho de Deus"- Atos 9.20; Romanos 1.3s.; "Jesus é Senhor" - Atos 2.36; 10.36; 11.20; Romanos 10.9; 2 Coríntios 4.5; Colossenses 2.6. Deve ser totalmente esperado que o caráter diferenciador do evangelho cristão encontrasse expressão em formulações do tipo confessional - especialmente quan­do essa proclamação é apresentada de forma resumida.

Como notamos no início deste capítulo, muitos eruditos consi­deraram o batismo como o contexto predominante e quase exclusivo para essas confissões (p. 104). E, com certeza, espera-se que declarações confessionais desempenhassem uma parte proeminente no processo de alguém se tornar cristão, particularmente ao ponto de comprometi­mento. Todavia, o fato é que não há nenhuma associação firme no NT entre o batismo e as fórmulas confessionais. O exemplo mais claro é o do texto ocidental de Atos 8.37, em que o eunuco etíope confessa: "Eu creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus" antes de ser batizado. Mas o texto ocidental não é original; conseqüentemente Atos 8.37 tem de ser reconhecido como uma fórmula confessional de uma geração tardia (ver também abaixo p. 243). No próprio NT a coisa mais próxima de uma fórmula batismal assim como está em Romanos 10.9: conversão e confissão pública estão ligadas - e isso naturalmente sugere uma cena batismal. Fora disso, não há bases intrínsecas para ligar quaisquer das fór­mulas confessionais dentro do NT a um contexto especificamente batismal47.

2. O culto. É um tanto surpreendente que várias das formas con­fessionais mais explícitas sejam encontradas em um contexto cultual

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47 Ver particularmente H. von C ampenhausen , "Das Bekenntnis im Urchristen­tum", ZNW 63,1972, pp. 226-34; também abaixo §36.2.

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-Jo ão 20.28; 1 Coríntios 12.3; Filipenses 2.11; 1 João 4.1-3 (veja também ICor 16.22). Seria fácil falar da origem litúrgica dessas confissões, mas é errôneo fazer isso. Pois a liturgia implica alguma coisa pensada de antemão, estruturada, estabelecida; enquanto que esses contextos cul­tuais são notáveis por sua espontaneidade. Em particular, duas das confissões (ICor 12.3; ljo 4.1-3) são entendidas como faladas sob ins­piração imediata do Espírito, talvez como pronunciamentos extáticos (ainda que "êxtase" tenda também a ser um termo enganoso). Em am­bos os casos a situação prevista é a reunião cultual, quando o pronun­ciamento inspirado poderia ser testado pelo restante da congregação. Nem necessitamos presumir, por causa de Didaquê 10.6, que 1 Corín­tios 16.22 ("Nosso Senhor, vem!") pertencesse originalmente ou até in­teiramente a um contexto eucarístico no tempo de Paulo. Não há nada na carta em si (ou em Ap 22.20) para sugerir tal contexto específico48. Em particular, que Paulo esperasse a leitura de sua carta fosse feita ao mesmo tempo na ceia do Senhor (a conclusão de sua carta servindo como a introdução à ceia!)49 concorda muito pouco com o nosso conhe­cimento, seja das igrejas de Paulo ou de suas relações com elas. Poderia ser pressuposto um grau de regularidade na ordem e forma no culto Coríntio, dificilmente confirmado pela 1 Coríntios, em si (ICor 11.24s.- o pão e o vinho como parte de uma refeição completa). E Paulo es­peraria que sua carta, simplesmente, fosse lida (como uma leitura das Escrituras em uma eucaristia moderna!) sem qualquer período para re­flexão e/ou discussão (cf. ICor 14.29)? Resumindo, o que é verdadeiro do batismo (acima §13.1) se aplica muito mais aqui (ver também abaixo p. 335, nota 21).

Parece, então, que exclamações do tipo-confessional e os clamo­res pontuavam o culto das igrejas primitivas com muita freqüência. Crentes arrebatados (ou congregações?) declaravam que se unir em clamor com alguém e ao mesmo tempo resumia sua fé, expressava o seu culto e identificava-os com a congregação. Aqui as fórmulas con­fessionais desempenhavam um importante papel no desenvolvimen­to da própria consciência e auto-identidade da Igreja; e sem dúvida

48 Cf. C. F. D. M oule, "A Reconsideration of the Context of M aranatha" , NTS, ft, 1959-60, pp. 307-10; reimpresso em: Essays in New Testament Interpretation, Cam­bridge Press 1982, pp. 222-6; W engst, Formeln, pp. 52-4.

49 Assim H. L ietzmann, Mass and Lord's Shipper, 1926, ET Leiden 1954, p. 186.

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servia também, em várias ocasiões, como uma forma de evangelismo (cf. ICor 14.23-25).

3. Confrontação. Na confrontação com outras crenças uma fórmula confessional obviamente tem um importante papel na demarcação da caracterização da fé confessada pelos cristãos. Não surpreende, então, que muito do material pertença aos contextos polêmicos e apologéticos: Atos 9.22; 17.3; 18.28 - uma situação mais apologética; João 9.22; 12.42- uma situação onde a confrontação com o judaísmo se tornou muito acentuada; 1 Coríntios 8.5s. - que pressupõe confrontação com religiões politeístas do paganismo grego; 1 João 2.18-23; 4.1-3,2 João 9-11 - onde a confissão de Jesus é o critério diferenciador da fé verdadeira em um debate ocasionado por forças sincréticas dentro da comunidade joa­nina (cf. ICor 12.3); 1 Timóteo 6.12s.; Hebreus 3.1; 4.14; 10.23 - onde a confissão de Jesus é a marca diferenciadora do cristão em um tempo de perseguição, o firme pilar ao qual ele se agarra quando a fé está amea­çada pelo grande número de tentação e tribulação.

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§ 14. CONCLUSÕES

1. A principal função de uma confissão é expor a distinção da fé expressa. Qual é a distinção das fórmulas examinadas acima? E, eu su­giro, a convicção que a figura histórica, Jesus o judeu, é agora um ser exaltado

por que esse Jesus é e continua a ser o agente de Deus, supremo sobre Iodos os outros pretendentes aos títulos, Senhor e Filho de Deus. Há vários pontos dignos de nota aqui.

(a) Primeiro, é Jesus quem é confessado - não suas idéias, fé ou ensino em si. Não é a fé de Jesus que aqui vem à expressão, mas a fé em lesus. O NT não conhece nenhuma confissão que seja meramente uma confissão da significância do Jesus histórico. O que Jesus fez ou disse nunca fornecem o elemento único ou exclusivo na fé confessional.

(b) Segundo, é o status presente de Jesus que é confessado - não o *.|lte ele era, mas o que ele é. Isso é muito óbvio no caso da confissão /. i/r/os, desde que é um título de majestade exaltada, somente aplicado >i |esus de modo mais comum após a sua ressurreição. Mas isso tam­bém é verdade a respeito dos títulos: Filho do Homem, Filho de Deus i‘ mesmo o de Messias. Filho do Homem começou a se aproximar de

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um papel confessional somente quando a expressão bar ,enãs de Jesus foi cristalizada em uma declaração, explícita ou implícita, de signifi­cado apocalíptico do presente Jesus exaltado. Similarmente, a crença primitiva de que "Filho de Deus" e "Cristo" era um status para o qual Jesus entrou, ou pelo menos, entrou plenamente, somente na Páscoa, reflete-se em Romanos 1.3s.; Atos 13.33 e Atos 2.36; 3.20. Somente com a confissão, "Jesus Cristo veio em carne" faz a confissão delimitar-se a um retrospecto histórico - e mesmo aí é o presente, Jesus Cristo glo­rioso de quem a confissão é feita. Mas com as três confissões básicas é sempre o tempo presente que é usado: "Jesus é...”.

(c) Terceiro, V. N eufeld nos recordou que em cada caso Jesus é o objeto da confissão50: é a pessoa histórica que é então confessada. Em outras palavras, cada confissão em si sustenta o elo vital entre a pessoa histó­rica e aquele que é o presente autor da vida, justificação e poder. Jesus, o Jesus que era, é, agora é e continua a ser Cristo, Filho de Deus, Se­nhor. Aqui emerge uma importante conclusão em nossa questão para um elemento unificador dentro do cristianismo primitivo: a saber, a marca distintiva que vem à expressão em todas as confissões que exa­minamos, a base da fé cristã confessada nos escritos do NT, é a unidade entre o Jesus terreno e o exaltado que está de alguma forma envolvida no nosso encontro com Deus ou em parte dele aqui e agora. Conclusões mais especí­ficas surgiram deste capítulo sobre a questão da continuidade entre a própria mensagem de Jesus o auto-entendimento e a fé dos primeiros cristãos precisam esperar um estágio adiante em nossa discussão (abai­xo §50).

2. As confissões expõem a distinção da fé confessada em situ­ações particulares diferentes. Não temos descoberto nenhuma única, confissão final apropriada a todas as circunstâncias em todos os tempos. Qualquer tentativa de encontrar uma única confissão pri­mitiva certamente fracassará. Nossa pesquisa revelou no mínimo três confissões, das quais todas merecem o epíteto: "básica e primi­tiva". Três diferentes confissões - diferentes porque os cristãos que as usaram eram diferentes, e as usaram em circunstâncias diferentes. Em termos super-simplificados, e deixando à parte a tradição Filho do Homem, que foi uma expressão importante da fé escatológica da

50 V. N eufeld, The Earliest Christian Confessioús, Leiden 1963, p. 11.

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comunidade primitiva, podemos dizer que "Jesus é o Messias" pa­rece ter sido a principal confissão dos cristão-judeus palestinenses, "Jesus é o Filho de Deus" dos cristão-judeus helenísticos, "Jesus é Senhor dos gentios-cristãos. Ou em termos mais precisos, "Jesus é o Messias" foi a confissão mais importante na Palestina judia, "Jesus é o Filho de Deus" na situação judaico-helenística e "Jesus é o Senhor entre os gentios".

Por que cada uma delas foi importante em suas próprias esferas? Presumivelmente porque cada uma delas era a expressão mais rele­vante e significativa da fé cristã naquela situação. Elas eram as mais im­portantes, porque eram as mais relevantes e significativas. Mas isso também mostra que a situação em que a fé era confessada tinha um dizer determinante na formação da confissão. A situação suscitava a confissão. Ajudava a fornecer a linguagem, conteúdo da confissão e contribuía com alguma coisa para o seu sentido. Assim encontramos essa linguagem que era importante e cheia de significado em um con­texto, tornando-se menos significativa e redundante em outro (Filho do Homem), ou uma fórmula confessional ampliada em significân­cia quando se movia de uma linguagem para outra (Jesus é Senhor). O desenvolvimento da confissão "Cristo" é talvez o melhor exemplo de todos. Inicialmente rejeitada, ou no mínimo não bem-vinda por Jesus, por causa de suas conotações na Palestina dos tempos de Jesus, tornou-se a confissão-chave do cristianismo palestinense buscando de­marcar sua fé diferenciada dentro do contexto do judaísmo, primeiro apologeticamente, depois polemicamente. Mas quanto mais e mais o cristianismo se movia para fora do judaísmo, a confissão "Jesus é o Messias" se tornava menos e menos relevante. Cristo tornara-se um pouco mais que um nome próprio, e a confissão precisava ser expli­cada, suplementada, e assim, com efeito, substituída pela confissão "Jesus é o Filho de Deus". Mas então em uma confrontação com visões docéticas "Jesus é o Filho de Deus" deixou de ser uma expressão ade­quada da fé cristã (muitos gnósticos também podiam fazer essa confis­são), de modo que toma a ser suplementada pela confissão "Jesus veio em carne". E assim continua. O fato é, muito simples, que as confissões modeladas em um contexto não permanecem as mesmas quando esse contexto muda. Novas situações reclamam novas confissões. Um cristianismo que cessa de desenvolver uma nova linguagem confessional cessa de confessar sua fé ao mundo contemporâneo.

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3. Repare, finalmente, a simplicidade das confissões que temos exa­minado - Jesus é o Cristo, Jesus é o Filho de Deus, Jesus é o Senhor. E importante que a fé possa ser reduzida em tais asserções ou reivindicações simples. Ser apta a resumir a distinção da fé de alguém em uma única frase; ser apta para expressar o culto de alguém em uma única pala­vra; ser apta para unir em torno de um único estandarte; ser apta para agarrar à convicção simplesmente declarada em face à perseguição e tribulação - isso é importante. As confissões do NT não se perdem em abstrações filosóficas ou profundidades teológicas. Elas não são to­lhidas por qualificações circundantes. Elas são confissões que o assim chamado "crente simples" pode usar bem como o cristão de fé mais sofisticada. Elas são como slogans publicitários, breves fórmulas epi­gramáticas que resumem a grande afirmação a ser feita. Tais slogans são necessários, pois sem eles uma fé nunca poderá ser a fé das massas. Mas eles são epigramas, com todas as simplificações e a falta de uma definição de um epigrama, com todas as forças e perigos de epigramas (um slogan presumivelmente é forte quando é uma expressão vital de um principio fundamental; um slogan é perigoso quando se torna me­ramente o instrumento de um fundamento estúpido ou uma divisa facciosa - cf. Mt 7.22s.; ICor 1.12).

E também importante perceber que a unidade da fé em uma situa­ção particular depende, em larga extensão, da simplicidade da confis­são. Qualquer slogan é uma super-simplificação. Mas uma definição mais completa rapidamente se torna separativa - desnecessariamente separativa. A fé das igrejas primitivas é reduzível a essas fórmulas pa­drão, apropriadas para diferentes situações; mas a interpretação des­sas fórmulas nunca é rigidamente definida - nem elas permitem uma expansão padronizada do credo ou requerem um padrão uniforme de conduta.

Então, aqui mais uma vez um esquema de unidade e diversida­de começa a emergir: unidade nas diferentes confissões básicas em que os crentes primitivos, desse modo, confessaram a exaltação do homem Jesus e uma continuidade entre Jesus de Nazaré e aquele que os capaci­tou a chegar a Deus: diversidade nas confissões básicas diferentes em si mesmas, nos diferentes contextos que as suscitaram, na maneira que a fé foi confessada em situações diferentes, e na maneira que foram interpretadas, suplementadas e alteradas.

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C a p í t u l o I V

O PAPEL DA TRADIÇÃO

§ 15. INTRODUÇÃO

Poucos discutiriam a importância do evangelho ou dos credos em um estudo relativo à unidade do cristianismo. Mas muitos estariam dispostos a negar que a tradição seja um foco possível de unidade. Por definição tradição significa aqueles ensinos e práticas, da Igreja, herdados do passado, que são formalmente distintos das palavras das Escrituras. E muitos protestantes, em particular, reagiriam fortemente contra qualquer sugestão de que a tradição poderia rivalizar com as Escrituras em determinados ensinos e práticas cristãs, talvez recordan­do, com alguma antipatia, o que o Concílio de Trento (1546) opôs à idéia Protestante da única suficiência das Escrituras pela ordenança de que a tradição deve ser recebida pela Igreja, com as Escrituras, como autoridade equivalente1. Mas, com certeza, o fato é que cada igreja e cada denominação, Protestante ou ao contrário, têm sido moldadas em uma extensão considerável pela tradição - a tradição de uma maneira parti­cular de interpretar as Escrituras, a tradição de uma gama particular (limitada) de ênfases extraídas da Bíblia, a tradição de uma maneira particular de adoração, a tradição de um modo particular de governo eclesiástico. E a aceitação dessas tradições particulares dentro de uma denominação que é o fator unificador para tal denominação. Assim também a dificuldade que uma tradição encontra no reconhecimento completo da validade da outra tradição tem sido o principal entrave

1 Cf. a reafirmação do Vaticano II: "Ambas, a sagrada Tradição e as Sagradas Escrituras, devem, portanto, ser recebidas e veneradas com igual devoção de reverência. A sagrada Tradição e a Sagradas Escrituras constituem um só depó­sito sagrado da Palavra de Deus, confiado à Igreja" (Dei Verbum, II. 9-10).

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para o movimento ecumênico. Aqueles que falham ou se recusam em reconhecer o papel da tradição na modelagem de seu próprio ensino e prática, estão em risco muito maior de serem escravizados por essa tra­dição do que aqueles que não fazem segredo de sua dívida para com a tradição2. Certamente, portanto, um estudo dos fatores unificadores e diversificadores dentro do período do começo do cristianismo precisa informar o papel ulterior da tradição na formação do ensino e da prá­tica do cristianismo desse período.

A questão colocada aqui é peculiarmente intrigante, em particular quando a tradição é definida por se distinguir das Escrituras (como aci­ma). Pois, é claro, no séc. I não havia nenhum Novo Testamento como tal. A única "Escrituras" para os primeiros cristãos era o Antigo Tes­tamento (mais ou menos - ver p. 137ss). Tudo o que sabemos quando o Novo Testamento estava ainda em processo de formação. De fato o NT tomou a forma das tradições, tradições relativas a Jesus, tradições relativas a Pedro e Paulo, e assim por diante. Isso é algo que temos que reconhecer mais claramente mediante a disciplina da Traditions- geschichte [o estudo da história das tradições cristãs primitivas]) - a saber: que os vários documentos do NT são em si mesmos tradições, tradições em desenvolvimento reunidas em vários momentos no tempo no curso de seu desenvolvimento. Todavia, muito delas são obras de inspiração criati­va, os escritos do NT também incorporam o ensino e a prática fixados por escrito em pontos definidos em seu desenvolvimento. Por isso é que a Traditionsgeschichte é tão importante: por tentar reconstruir as condições históricas da situação e do contexto para cada tradição na esperança de que essa tradição possa ser vista de novo como uma força viva na história do cristianismo do séc. I. E precisamente essa "força viva" da tradição em geral que queremos nos ocupar no presente ca­pítulo.

Nossa tarefa, então, é investigar o papel da tradição no cristia­nismo primitivo. Como os cristãos primitivos consideravam o que lhes era transmitido por aqueles que eram veteranos na fé? Como, por exemplo, Paulo respondeu ao que ele ouviu de Ananias, Pedro, etc. a respeito de Jesus e do evangelho? Em particular, a tradição recebida pelos primeiros cristãos era a base de sua unidade, o elemento unifi­cador prático de sua vida comunitária? Em certo sentido já estamos

: Cf. F. F. B ruce, Tradition Old and New, Pafernoster 1970, pp. 13-18.

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bem localizados nessa investigação; pois o que fizemos nos capítulos II e III foi examinar a diversidade e o desenvolvimento de tradições particulares - a saber: as tradições kerygmáticas e confessionais. E em um capítulo mais a frente, nos incumbiremos da questão das tradições litúrgicas e catequéticas (abaixo §36). No presente capítulo é o papel da tradição como tal que requer a nossa atenção: Qual papel desempenhou a tradição no cristianismo primitivo? Quanta força ela teve para a unidade?

§ 16. "A TRADIÇÃO DOS ANCIÃOS"

Visto que Jesus era judeu e o cristianismo começou como uma sei­ta judaica, precisamos primeiro olhar para a tradição judaica do séc. I. Como Jesus e os primeiros cristãos responderam às tradições religiosas que desempenhavam um papel a parte em sua própria educação como judeus?

1. O papel da tradição dentro do judaísmo. Não é de pouca importân­cia para nós notar que isso era uma matéria de discussão dentro do judaísmo do tempo de Jesus. Havia, basicamente, uma disputa entre os fariseus e os saduceus. Para os fariseus a Torá era tanto a escrita (o Pentateuco) como também a não escrita (tradição oral). Enquanto que os saduceus consideravam somente a Torá escrita como autoridade3. Decorre daí os fariseus terem recebido geralmente uma má impressão, por conta disso devemos perceber porque eles tinham considerado tanto a tradição oral. Os fariseus reconheciam que nenhuma Lei escrita poderia cobrir todas as exigências cotidianas; a Torá escrita se tornaria uma relíquia arcaica a menos que fosse interpretada e suplementada para ir ao encontro das condições mutáveis da sociedade. Para os fari­seus a Torá era alguma coisa maior, mais santa e mais imediatamente relevante à vida que a palavra escrita em si mesma. O que isso signifi­

3 "Os fariseus haviam transmitido ao povo certos regulamentos de gerações anteriores e não registradas na Lei de Moisés, por essa razão eram rejeitados pelo grupo dos saduceus, que sustentavam que somente esses regulamentos deveriam ser válidos, os que foram escritos, e que aqueles que foram transmiti­dos por gerações anteriores não precisavam ser observados" (Josefo, Ant. XIII.x.6 (297)).

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cava na prática era o crescimento de preceitos e ordenanças capazes de atender as demandas das situações não previstas pela Lei escrita. Para os fariseus essas eram cheias de autoridade; mas não por seu próprio direito - somente se pudessem ser consideradas como interpretações da Lei escrita, como uma tradução explícita do que, em todo o tempo, havia estado implícito na Torá escrita4. Mas se a tradição era uma inter­pretação justificável da Torá escrita, então era parte da Torá e detentora de autoridade como tal. Enquanto que aos olhos dos saduceus, por que ela não era parte da Torá escrita, não podia reivindicar autoridade.

A interpretação tomava duas formas - Halaká e Haggaâá. Halaká era uma declaração específica da vontade de Deus em um caso parti­cular, uma regra de conduta reta para guiar o inquiridor no caminho que devia andar. Quando uma geração passava a outra, as regras dos mestres mais antigos eram preservadas e repassadas, de modo que durante as gerações um considerável arcabouço da Lei se desenvol­veu para cobrir o todo da vida prática, matérias civis e criminais bem como religiosas. Essa longa cadeia de ensinamentos transmitidos, uma série de halakot interligados, é o que Marcos e Mateus chamam de a tradição dos anciãos. Isso foi primeiro codificado e transcrito na Mishná (séc. II d.C.); a Mishná, por sua vez, tornou-se a matéria de estudo que resultou no Talmude. Mas o processo já estava em anda­mento antes de 70 d.C 5.

Haggadá é o termo usado para a interpretação das Escrituras que é destinado a edificação e não a regulamentação da conduta. Era mui­to mais livre que a Halaká, resultado de deixar a imaginação livre dos limites das Escrituras com o objetivo de desenvolver lições religiosas ou lições de morais propícias à piedade e à devoção. Alguma Haggadá foi preservada no Talmude, mas a maioria dela foi preservada sepa­radamente nos vários Midrashim. Neste capítulo estaremos ocupados primariamente com a Halaká. No capítulo V teremos a oportunidade de observar alguns dos métodos empregados pelos mestres do tem­po de Jesus para derivar suas interpretações e lições da Lei escrita (§21).

4 "Todo discípulo perspicaz aprenderá, daqui em diante, na presença do seu Rabbio que já foi dito a Moisés no Sinai" (J. P eah II.5; citado por R. T. H erford, The Pharisees, 1924, Beacon 1962, p. 85).

5 Ver particularmente J. N eusner no Prefácio, nota 7 acima, também os caps. 1-3 de meu Jesus, Paul and the Law, SPCK 1990. *

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2. A atitude de Jesus para com a tradição. Fica muito claro que Jesus rejeitou muito da Halaká prevalecente. Qualquer que tenha sido sua atitude para com a Lei escrita (ver abaixo p. 184), não pode haver ne­nhuma dúvida que ele reagira fortemente contra diversas regras bem estabelecidas da Lei oral. Não seria verdade dizer que ele rejeitou toda a tradição, pois ele regularmente freqüentava a sinagoga no sábado (Mc 1.21; Lc 4.16; 13.10 e cf. Mt 23.3). Mas o fato permanece que as únicas referências a tradição, tais como nos evangelhos, mostram Jesus, radicalmente, opondo-se a ela (Mc 7.1-3/Mt 15.1-9). Nessa passagem Jesus coloca a tra­dição dos anciãos em clara antítese aos mandamentos de Deus e à palavra de Deus. Os fariseus podiam ver a Halaká como parte da Torá de Deus e se deleitarem nela - obediência a ela era obediência a Deus. Mas, eviden­temente, Jesus achou tal tradição irritante e estranha para um espírito motivado pelo amor de Deus e amor ao próximo, uma seqüência de regramentos detalhados que reprimiam, antes de estimular, de uma obediência amorosa livre.

O questionamento radical de Jesus da tradição oral chega a uma expressão mais clara sobre três temas - o sábado, o ritual de pureza e voto corbã. Em sua interpretação do mandamento do sábado os rabinos distinguiam 39 diferentes tipos de trabalho que eram proibidos no sába­do (incluindo "...duas laçadas... costurar duas pregas... escrever duas le­tras...").6 Na visão de Jesus essa atitude fazia do povo escravo do sábado. Tal tradição do sábado o impedia de cumprir o mandamento do amor. A halaká sabática não explicava a vontade de Deus, mas de fato corria con­tra a vontade de Deus (Mc 2.23-3.5). Similarmente se dava com as dispo­sições Farisaicas a respeito do ritual de lavar as mãos antes das refeições (Mc 7.1-8). "A tradição de homens" estimulava o adorador a permanecer no nível meramente exterior, superficial, e assim encorajava a hipocrisia7. Mais intenso foi seu ataque sobre o casuísmo do corbã que desobri­gava o filho de dar assistência aos seus pais pela dedicação fictícia ao Templo de tudo que era o sustento devido a eles, embora ele mesmo

6 Mishnah, Shabbath 7.2. Ver também meu "Mark 2.1-3.6: a Bridge between Jesus and Paul on the Question of the Law", NTS, 30, 1984, pp. 395-415, reimpresso em: Law (acima nota 5) cap. I, que entre outras coisas observa quão bem desen­volvida estava a Halakah Sabática durante o tempo de Jesus.

7 Ver mais adiante meu "Jesus and Ritual Purity: a study of the tradition history of Mark 7.15", A Cause de VEvangile, Cerf 1985, pp. 251-76; reimpresso em: Law (acima nota 5) cap. 2.

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externasse rancor e ira (Mc 7.9-13). A tradição que começara como uma maneira de interpretar a Lei se tornaria na prática mais importante que a Lei.

Jesus apareceu em um estágio primário, antes da tradição se tor­nar tão extensiva, antes da tendência de controlar e restringir a con­duta aceitável, antes de se tornarem tão pronunciadas, e por isso sua atitude frente à tradição como um todo poderia ter sido mais positiva. Mas nas circunstâncias de seu ministério o efeito de tais regras levava- o a rejeitar completamente muitas das tradições que regiam a religião de seus contemporâneos farisaicos e a se opor resolutamente à atitude que fazia a conduta da religião e dos relacionamentos pessoais depen­dentes da observância de tal tradição.

3. Se a atitude de Jesus para com a tradição foi radical, a atitude dos cristãos primitivos de Jerusalém parece ter sido muito mais conservado­ra. A preocupação exibida pelos crentes de Jerusalém sobre Pedro co­mer com o incircunciso Cornélio (At 11.2s.) claramente implica que o ritual de pureza das refeições ainda era importante para os cristãos de Jerusalém. A história essencial de Atos, neste ponto, no mínimo, é confirmada pelo fato de que a mesma preocupação é evidente entre os cristãos de Jerusalém que ocasionaram o confronto entre Pedro e Paulo em Antioquia (G12.12; ver mais adiante §56.1). Além disso, Atos 21.20s caracteriza muitos dos crentes de Jerusalém como zelosos pela Lei, isto é, em particular, pela observação contínua da circuncisão e dos costumes. E, semelhantemente, a implicação clara de Atos 6.14 é que, antes de Estêvão, os crentes de Jerusalém eram fiéis ao Templo e aos "Costumes que Moisés nos entregou" (cf. nota 4 acima). Provavelmente, essa leal­dade para a Torá e a sua observação, ambas escrita e oral, que transfor­mou as oposições dos fariseus a Jesus em uma absolvição muito mais tolerante para com as atividades de seus seguidores (At 5.33-39) atraía muitos fariseus à nova seita ao mesmo tempo em que permaneciam fariseus (At 15.5; 21.20; ver mais adiante §54).

4. Marcadamente diferente é a atitude de outro Fariseu (ou ex- Fariseu) - Paulo. Paulo havia sido inteiramente devoto às tradições de seus pais (G11.14), mas sua conversão e, subseqüente, missão aos gen­tios forçaram-no a concluir que as tradições do judaísmo tolhiam a fé; elas não conduziam a fé à expressão, antes atrapalhavam e destruíam

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sua liberdade. Daí a única obrigação tradicional que ele aceitou dos apóstolos de Jerusalém foi a preocupação com os pobres (G12.10). Daí também as palavras fortes de G1 4.8-11 e as admoestações contra "as tradições de homens" em Cl 2:

N ão manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro, segundo os preceitos e doutrinas dos homens? Pois que todas estas coisas, com o uso, se destroem. Tais coisas, com efeito, têm apa­rência de sabedoria, culto de si m esm o, e de falsa humildade, e de rigor ascético; todavia, não têm valor algum contra a sensualidade (Cl 2.21-23).

Aqui Paulo está rejeitando abertamente a visão de um cristia­nismo sincrético influenciado pelo farisaísmo judaico - a visão em particular de que cristãos gentios precisam observar uma tradição oral elaborada (Halaká) (ver mais abaixo p. 415). Ele era mais tolerante quando se tratava de um cristão judeu que sentia que devia permane­cer nas tradições de seus pais, por exemplo, em assuntos de alimen­tação e dias santos (ICor 8; Rm 14). Com certeza, ele pensava que tal crente era "fraco em sua fé" e se regozijava em sua própria liberdade (Rm 14.1, 14; ICor 10.25s.); mas não insistia que a fé em Cristo re­quereria de um judeu abandonar suas tradições nem de um gentio abraçá-las. Até o ponto em que estamos interessados, tais tradições não tinham valor em si mesmas (cf. ICor 8.8; G1 6.15); e ele próprio estava muito satisfeito em manter suas velhas tradições quando na companhia de judeus ortodoxos, sem desse modo, retomar seu com­promisso com elas (ICor 9.19-22; At 21.23-26; cf. Rm 14.19-15.2; ICor 8.9-13). O que ele desaprovava era qualquer tentativa de impor a alguém a tradição de um indivíduo (ou alguém impor a liberdade de um indivíduo para a tradição).

Resumindo, a atitude de Paulo para com a tradição judaica era simples: a fé em Cristo não podia e nem precisava depender da observação de certas tradições. Se a tradição herdada atrapalhasse a liberdade de Cristo e o culto a Deus, ela deveria ser abandonada. Uma fé forte deve­ria observar ou ignorar, igualmente, as regras haláquicas, sem nenhum prejuízo. A fé fraca poderia achar que permanecendo ou fracassando com os modos tradicionais de judaísmo era algum tipo de apoio, mas isso confessava assim sua fraqueza.

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5. Assim vemos, dentro do cristianismo da -primeira geração, uma sur­preendente diversidade de atitude para com a tradição judaica - desde uma intensa e contínua lealdade para com ela por um lado até a completa rejeição da mesma, por outro lado. Em particular, é muito evidente que a tradição judaica não demonstrou força para a unidade nas Igrejas cristãs primitivas: os helenistas começaram cedo a reagir contra ela na própria igreja primitiva de Jerusalém (veja mais adiante §60), e nas igrejas que incluíam tanto gentios como judeus ela era mais um assunto de discus­são do que a base da comunidade. Paulo certamente não recomendava a tradição judaica como algo de valor de toda a lealdade do cristão. Além disso, sobre esse ponto, há um grau maior de descontinuidade do que continuidade entre Jesus e os primeiros cristãos.

§ 17. TRADIÇÕES DAS COMUNIDADES PRIMITIVAS

O que há então a respeito das tradições mais especificamente cris­tãs, que circulavam entre os crentes primitivos? Elas serviam como a base da unidade entre as primeiras comunidades cristãs? Nesta seção focaremos nossa atenção sobre o corpus paulino, visto que essas cartas contêm a mais completa evidência da tradição da comunidade primiti­va (fora dos evangelhos), e visto que o próprio Paulo conscientemente encara a questão do papel da tradição na vida de uma comunidade cristã. Paulo via a tradição como estrato unificado dentro da diversi­dade do cristianismo primitivo? As tradições em questão se dividem, convenientemente, em três categorias - tradição kerygmática, tradição da igreja, e tradição ética - ainda que não haja nenhuma divisão rigo­rosa e firme entre qualquer uma delas.

í . Tradição kerygmática. Já notamos as várias fórmulas kerygmáticas e confessionais que Paulo herdou e usou em sua própria pregação (aci­ma p. 87). Em ICor 15.1-3 ele, explicitamente, declara que transmitiu aos coríntios o que ele mesmo recebeu (parelabon). Como isso se enqua­dra com sua insistência em G11.11 s.,

que o evangelho por mim anunciado não é segundo o homem, por­que eu não o recebi (parelabon), nem o aprendi de hom em algum, m as mediante revelação de Jesus Cristo (cf. também G 11 .1 ,16s.)?

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Por um lado, ele expressa claramente seu evangelho na lingua­gem da tradição repassada a ele por seus antecessores na fé, enquanto por outro ele insiste que seu evangelho veio diretamente de Deus e não como tradição herdada. Como podemos explicar essa tensão no pensamento de Paulo?

A melhor explicação é a de que Paulo considerava a tradição kerygmática como confirmação de suas próprias convicções a respeito de Jesus que brotaram imediatamente de sua conversão e comis­sionamento na estrada de Damasco, e, também, como provisão de uma maneira inestimável de expressar o que era o seu evangelho de algum modo, por que era uma fórmula amplamente aceita e não apenas seu próprio modo idiossincrático de expressão. Para esclare­cer esse ponto, o que estava em questão entre Paulo e aqueles contra quem ele escreveu, em Gálatas, não era a formulação tradicional do evangelho, mas a interpretação do evangelho de Paulo. Paulo estava convencido que o Jesus ressurreto o havia escolhido para apóstolo aos gentios e que o evangelho para os gentios era livre da lei ju­daica, escrita e oral. Essa era a interpretação de seu apostolado e da tradição kerygmática que incitou a oposição de muitos cristãos judeus. Tradição kerygmática para Paulo, então, era tradição interpre­tada - interpretada à luz de seu próprio encontro com o Jesus ressurreto. O mesmo ponto emerge de sua própria descrição de sua pregação. O evangelho que ele pregava era efetivo, não por causa de suas pa­lavras serem a tradição correta, mas antes, porque suas palavras lhe foram dadas pelo Espírito (cf. esp. ICor 2.4s.; lTs 1.5; 2.13). Em outras palavras, até quando sua pregação usava a linguagem do kerygma tra­dicional, era uma tradição pneumática, tradição re-expressa, re-formu- lada na inspiração e poder do Espírito8. Podemos concluir, portanto, que tradição kerygmática era um elemento unificador entre as comunidades cristãs primitivas, mas que estava sujeita as diversas interpretações. Muitos cristãos judeus interpretaram-na à luz da tradição dos anciãos, enquan­to que Paulo a interpretou à luz da revelação de Jesus Cristo dada a ele fora de Damasco.

; Ver particularmente L. G oppelt, “Tradition nach Paulus", KuD, 4 ,1958 , pp. 213- 33; K. W engst, "Der Apostel und Die Tradition", ZTK, 6 9 ,1972, pp. 145-62. Ver ainda as funções complementares de profeta e mestre nas comunidades paulinas em: D unn , Jesus, pp. 186s. 282ss.

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2. Tradição da Igreja. Paulo usa a linguagem da tradição em uma passagem onde fala a respeito da ceia do Senhor:

Porque eu recebi do Senhor o que também vos entreguei: queo Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tom ou o pão... (IC or 11.23-25).

Aqui está uma tradição das palavras de Jesus que Paulo clara­mente acredita que deveria reger as refeições comuns dos coríntios. Ao mesmo tempo ele não tem nenhum escrúpulo sobre adicionar o que parece ser sua própria interpretação da fórmula recebida ("Por­que, todas as vezes que comerdes este pão e beberdes o cálice, anun­ciais a morte do Senhor, até que ele venha" - ICor 11.26)9. Além do mais, ele designa especificamente a fonte da tradição da ultima ceia como "o Senhor". Isso parece significar não tanto que o Jesus terreno fosse a fonte original da tradição, mas antes que Paulo entendia que o presente Jesus exaltado era a fonte imediata da fórmula histórica- isso quer dizer, que era uma autoridade não porque era uma tradição, mas porque foi recebida e aceita sobre a autoridade direta do Exaltado (cf. e observe o tempo presente em ICor 7.10)10. Aqui, outra vez, evidente­mente, estamos de volta à idéia de "tradição pneumática", tradição que é fidedigna por causa de sua inspiração imediata e de sua rele­vância direta.

Paulo também apela em diversas ocasiões em 1 Coríntios às práti­cas de outras igrejas na missão gentílica (ICor 4.17; 7.17; 11.16; 14.33). Aqui, evidentemente, uma forma de tradição da igreja estava crescen­do à qual se poderia apelar como algum tipo de elemento unificador. Mas se 1 Coríntios 7.11 e 14 são algum guia essas eram simplesmente práticas que serviam para recomendar os novos grupos cristãos às so­ciedades em que viviam. E Paulo, como o criador dessa tradição, certa­mente não considerava isso como tendo uma autoridade independen­te. Antes servia somente em um papel confirmatório - para confirmar que a instrução e direção que ele dava em uma igreja era a mesma que nas outras.

9 Ver mais adiante §40. Cf. o modo pelo qual ele adiciona a aparência de sua pró­pria ressurreição à lista de testemunhas transmitidas em ICor 15.3-7.

10 C f. O. C ullmann, "The Tradition" (1953), The Early Church, ET SCM Press 1956, pp. 66-9; F. F. B ruce, Paul and Jesus, Baker 1974, p. 43.

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3. Tradição ética. Paulo usa a linguagem da tradição mais freqüen­temente quando fala a respeito da conduta e responsabilidades morais de seus convertidos (ICor 7.10; 9.14; 11.2; F14.9; Cl 2.6; lTs 4.1; 2Ts 2.15; 3.6). Um dos traços mais extraordinário dessa tradição ética é aquilo que parece extrair sua força muito amplamente (talvez até inteiramente)n da vida de Jesus, isto é, da tradição de Jesus, tanto de suas palavras (ICor 7.10/Mt 5.32; ICor 9.14/Lc 10.7) e de sua conduta (Rm 6.17; ICor 11.1; 2Cor 10.1; F12.5; Cl 2.6; Ef 4.20).12 Até onde o apelo imediato é seguir o próprio exemplo de Paulo (ICor 4.16s; 11.Is.; F13.17; 4.8s.; 2Ts 3.6-9) o apelo somente tem força porque Paulo considerava essa conduta como modelada sobre a de Cristo (ICor 11.1; cf. lTs 1.6).

Pareceria, então, que Paulo é capaz, nesses pontos, de extrair uma tradição bem extensiva a respeito de Jesus, e presumir que seus con­vertidos também fossem familiares com ela - uma conclusão que é provavelmente confirmada pela quantidade de ensinos de Jesus, que Paulo parece (conscientemente) ecoar, particularmente nas seções de suas cartas dedicadas ao ensino ético (p.ex. Rm 12.14; 13.9; 16.19; ICor 9.4; 13.2; G1 5.14; F14.6; lTs 5.2,13,15). Isso sugere por sua vez, que as tradições, que Paulo transmitia quando ele, primeiramente, estabelecia uma nova igreja (ICor 11.2; 2Ts 2.15; 3.6), incluíam consideravelmente a tradição a respeito de Jesus, se de forma fragmentária ou já reunida em várias coleções de tópicos não podemos afirmar13.

Essa herança comum da tradição-Jesus, obviamente, servia como um fator unificador de alguma significância entre as comuni­dades primitivas. Paulo é capaz de falar dela como a: "Lei de Cristo" (G16.2; cf. ICor 9.21)14. Mas isso não deve ser mal interpretado como

11 Eu não estou incluindo aqui as disposições domésticas de Colossenses e Efésios ou as listas de vícios e virtudes que não são chamadas de tradição, nem são dis­tintamente cristãs (provavelmente, por fim, de proveniência estóica).

12 Sobre Rm 6.17 ver abaixo (pp. 244ss). Sobre F1 2.5, ver C. F. D . M oule, "Further Reflections on Philippians 2.5-11", AHGFFB, pp. 264ss.

13 Ver também D . L. D ungan , The Sayings o f Jesus in the Churches of Paul, Blackwell 1971; J. W. F raser, Jesus and Paul, Marcham 1974, cap. 6; B ruce, Paul, cap. 5; J. D. G. D unn , "Paul's Knowledge of the Jesus Tradition: the Evidence of Roman's, Christus bezeugen. Festschrift fiir W. Trilling, Leipzig 1989, pp. 193-207, bibliogra­fia adicional.

14 Cf. C. H. D odd , "Ennomos Christou", M ore New Testament Studies, Manches­ter University Press 1968, pp. 134-48; R. N. L ongenecker, Paul Apostle o f Liberty, Harper: 1964, pp. 187-90; J. B arclay, Obeying the Truth. A study of Paul's Ethics

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se Paulo considerasse essa tradição uma regulamentação de força de amarração sobre todos os seus convertidos. A ética de Paulo era muito mais carismática para isso, também muito consciente da dire­ção imediata do Espírito (Rm 8.4,14; G15.16,18, 25), também, muito liberada da mentalidade de um manual de regras (Rm 6.14; 7.6; 8.2; 2Cor 3.3, 6 ,17; G1 5.16), muito mais dependente do dom do Espírito de discernimento em matérias duvidosas ou discutíveis (Rm 12.2; F1 1.9s.; Cl 1.9s.; Ef 5.10)15. Isso é claramente evidenciado pela ma­neira pela qual ele mesmo desconsidera uma das palavras explícitas de Jesus preservadas na tradição-Jesus (lTs 2.6, 9; 2Ts 3.7-9; cf. ICor 9.14). Parece, então, que ele considera a tradição ética extraída das tradições a respeito de Jesus não como uma série de leis que têm de ser obedecidas quaisquer que sejam as circunstâncias, porém mais como um conjunto de princípios que têm de ser aplicados à luz das circunstâncias. Em outras palavras, o que temos mais uma vez é a tradição pneumática, quer dizer, tradição que não é algo independente do Espírito ou de autoridade independente, mas tradição que tem que ser interpretada sob a direção do Espírito e seguida somente até onde for reco­nhecido ser uma direção do Espírito.

4. A tradição nas pastorais. Bem outra é a atitude para com a tradi­ção, na verdade é um traço dominante, dos últimos membros do cor- pus paulino. Evidentemente, por ocasião das cartas a Timóteo e a Tito serem escritas (fim do séc. I?) um corpo coerente de tradição havia se estabelecido para servir como critério definido da ortodoxia. Isso é diversamente descrito como "a doutrina" (lTm 4.16; 6.1; 2Tm 3.10; Tt 2.7, 10) ou mais especificamente sã doutrina (lTm 1.10; 2Tm 4.3; Tt 1.9; 2.1), "a boa doutrina" (lTm 4.6), ou "ensino que concorda com a piedade" (lTm 6.3), "a fé" (11 vezes), "sãs palavras" (lTm 6.3; 2Tm 1.13), ou aquilo que foi confiado (lTm 6.20; 2Tm 1.12, 14). O conteúdo da tradição não é muito claro, mas se a expressão "fiel é a palavra" é algum guia, inclui as três categorias distintas acima - tradição keryg­mática (lTm 1.15; 2Tm 2.11; Tt 3.5-8), tradição da igreja (lTm 3.1; cf. Tt 1.9), e tradição ética (lTm 4.8s.; 2Tm 2.11-13) - e supostamente in­

in Galatians. T. E T Clarck:1988, pp. 125-42. Igualmente V. P. Furnish , Theology and Ethics in Paul, Abingdon 1968, pp. 59-65.

15 Ver D unn , Jesus, §40.5. ’

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cluídas tradições a respeito de Jesus(?). A atitude para com a tradição é inteiramente conservadora: é para ser mantida (lTm 6.20; 2Tm 4.7), agarrada (Tt 1.9), guardada (lTm 6.20; 2Tm 1.12, 14), protegida (lTm6.1) e transmitida fielmente de uma geração à outra (2Tm 2.2). Muito típica é a passagem de 2Tm 1.12-14):

...estou certo de que ele é poderoso para guardar o m eu depósi­to até aquele dia. M antém o padrão das sãs palavras que de mim ouviste,... Guarda o bom depósito, mediante o Espírito Santo que habita em nós.

Note particularmente que até mesmo Paulo é retratado mais como o guardião da tradição do que como seu autor, e que o Espírito é en­tendido não como o intérprete ou recriador de tradição, mas, simples­mente, como o poder para preservar a herança do passado16. Com as Pastorais então temos quase um círculo completo, pois aqui parecemos estar mais próximos à atitude dos fariseus para com a lei oral do que as atitu­des de Jesus e Paulo para com a tradição de seu tempo.

§ 18. TRADIÇÕES A RESPEITO DE JESUS

Temos visto que tradições kerygmáticas e tradições a respeito de Je­sus serviam como algum tipo de estrato unificador ligando as diferen­tes igrejas cristãs primitivas em um conjunto. Vimos alguma coisa da diversidade do papel e da autoridade atribuídos a essas tradições, como entre o próprio Paulo e seu discípulo mais conservador nas Pastorais. Quanto ao conteúdo dessas tradições, temos demonstrado, suficiente­mente, a diversidade das formas tomadas pelas tradições kerygmáticas e confessionais nos capítulos II e III. Mas agora é necessário falar mais a respeito do conteúdo e molde das tradições acerca de Jesus. Em que extensão havia um grupo combinado de tradições a respeito de Jesus que foi transmitido de um cristão a outro e fornecido um tipo de tri­bunal comum de recursos? Talvez fosse até mesmo uma tradição fixa cuidadosamente preservada desde o começo e de força regulamentar

16 Ver também K. W engst. Das Verständnis der Tradition bei Paulus und in den Deuteropaulinen. Neukirchen: 1962, pp. 139-43.

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para ensino e para solução de disputas, como as Pastorais parecem sugerir?

1. Até onde podemos dizer, as tradições a respeito de Jesus fo­ram reunidas em diferentes modos. A narrativa da paixão parece ter sido o único bloco substancial a ser moldado muito cedo e conectado a um relato. Aqui se reflete a preocupação da comunidade primitiva em entender e retratar Jesus, o crucificado, como Messias (ver aci­ma §10.2). Discute-se a existência de uma fonte (Q) dos evangelhos sinóticos contendo somente ditos de Jesus. Mas as fortes indicações de dentro dos próprios sinóticos foram grandemente intensificadas pela descoberta do Evangelho de Tomé, que é precisamente como um documento. O ponto de significância é que em Q, certamente, falta uma narrativa da paixão. Quer dizer, aqui temos a evidência de um interesse cristão primitivo nos ditos de Jesus como tais, e não no que ele fez ou em sua morte e ressurreição (ver mais abaixo §62). A suges­tão de uma sobreposição extensiva entre as tradições Q e a tradição ética à qual Paulo se refere (acima §17.3), obviamente, recomenda a si mesma.

Mais recentemente houve um grupo crescente de opiniões que por trás tanto de Marcos como de João tinha algum tipo de "fonte de milagres" - quer dizer, um ciclo de histórias de milagres usado por alguns pregadores cristãos para retratar Jesus como um operador de milagres, como autenticado diante de Deus e dos homens por suas obras poderosas. Paulo parece reagir contra tal apresentação de Jesus em sua segunda Carta aos Coríntios - supondo uma correlação entre a proclamação de "outro Jesus" pelos falsos apóstolos (2Cor 11.4), e a supervalorização deles dos milagres, visões e discursos extraor­dinários (2Cor 10.10; 11.16-20; 12.1, 12 - ver abaixo pp.289); daí sua ênfase de que o poder de Deus somente chega a sua plena expressão na fraqueza (2Cor 4.7-12; 12.9; 13.3s.), adicionando uma dimensão mais profunda à sua ênfase mais antiga sobre o "Cristo crucificado" (ICor 1.23; 2.2). Marcos parece dar uma resposta similar ao retrato similar de Jesus como operador de milagres par excellence; Daí sua ênfase sobre o Filho do Homem como alguém que sofre e morre (Mc 8.29-33; 9.31; etc.), que serve com uma correção para qualquer apresentação de Jesus em termos somente das histórias de milagres usadas por Marcos na primeira parte de seu Evangelho (particularmente

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Mc 4.35-5.43; 6.31-56)17. A evidência mais clara que alguma coisa como uma fonte de milagres estivesse efetivamente em circulação provém do Quarto Evangelho, onde há evidência tanto de uma Fonte de Sinais (particularmente Jo 2.11; 4.54) e também da corre­ção do Quarto Evangelista de sua ênfase enquanto incorpora esse material (Jo 4.48)18. Aqui então está a evidência de outro uso das tradições de Jesus dentro do cristianismo primitivo, novamente, sem qualquer elo com a morte e a ressurreição de Jesus - uma con­centração, por alguns crentes primitivos, sobre Jesus como opera­dor de milagres.

Um dos traços mais surpreendentes dos escritos primitivos do NT é a ausência de interesse declarado e exposto por Paulo nas tradições a respeito de Jesus. Como vimos ele parece ser familiar e aludir também a grande quantidade de material (acima pp. 146s), mas ele se refere explicitamente a somente um episódio do ministério de Jesus (ICor 11.23-25 - retrata a última ceia) e cita explicitamente somente dois outros ditos que devem ter vindo a ele pela tradição (ICor 7.10; 9.14). O que devemos concluir disso não é totalmente claro, mas munidos da evidência citada acima, temos uma pista da diversidade do uso e do não-uso das tradições a respeito de Jesus entre os primeiros cristãos.

2. O que realmente acontecia às tradições particulares quando eram transmitidas e postas em uso? Há alguma evidência de que a tradição-Jesus estivesse fixada desde uma data muito antiga e passa­da adiante sem mudança significativa de uma comunidade a outra? Assim como muitas das questões que temos feito no curso de nosso estudo, esta última requer um tratamento melhor do que podemos dis­pensar aqui. Portanto, concentraremos a maior parte de nossa atenção

17 Ver ex. D. G eorgi, The Opponentes o f Paul in Second Corinthians, 1964. ET Fortress 1986 (sobre Marcos, pp. 170-3); L. E. K eck, "Mark 3.7-12 and Mark's Christology", JBL, 84,1965, pp. 341-58; K öester, "One Jesus and Four Primitive Gospels," HTR, 61, 1968, reimpresso em: Trajectories, pp. 187-91; P. J. A chtemeier, "The Origin and Function of the Pre-Marcan Miracle Catena", JBL, 91,1972, pp. 198-221; R. P. M artin, Mark: Evangelist and Theologian. Paternoster, 1972 cap. VI; E. T rocmé, Jesus and his Contemporaries, 1972, ET SCM Press 1973, cap. 7. Ver também abaixo pp. 296s e cf. p. 110, nota 7.

18 Ver J. M. R obinson, " Kerygma and History in the New Testament" (1965), Trajec­tories, pp. 46-66 e cap. 7; e ver mais abaixo p. 296s e o cap. 12, nota 106.

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naquele estágio da Traditionsgeschichte que é o mais fácil de analisar- de Q e Marcos para Mateus e Lucas19.

Em primeiro lugar, as tradições narrativas. (1) Algumas narrativas parecem ter sido transmitidas com pouca mudança além daquela de conveniência e estilo editorial (p.ex. Mc 1.16-28; 2.1-12; 5.21-43; 8.1-9). (2) Com outras vemos certo desenvolvimento ou diversidade de tra­dição que não é de grande destaque: por exemplo, a experiência de Jesus no Jordão ("Tu és meu filho..." - Mc 1.11; "Este é meu filho..."- Mt 3.17; mas também a expansão de Mt 3.14s.); a cura do servo do centurião (ele veio pessoalmente ao encontro de Jesus - Mt 8.5s.?, ou ele enviou amigos - Lc 7.6s.?); a cura de Bartimeu, ou eram dois cegos, entrando em Jericó, ou saindo de Jericó (Mc 10.46-52 par.)? (3) Maior liberdade no manuseio da tradição-Jesus é indicada pelo fato de que há certa inconsistência histórica entre os lugares respectivos de algumas das narrativas: Marcos tem a maldição da figueira antes da "purificação do Templo", Mateus no dia posterior (Mc 11.12-25; Mt 21.12-22); João situa a purificação do Templo no início do ministério de Jesus, os sinóticos no fim (Jo 2.13-22); e a dificuldade de reconci­liar a cronologia de João como do relato dos sinóticos da última ceia e a crucifixão já é bem conhecida. (4) Muitos eruditos pensam que o duplo relato do milagre da multiplicação dos pães (Mc 6.30-44; 8.1-9) e o retrato de Lucas de duas missões delegadas por Jesus (Lc 9.1-6; 10.1-12) resultaram de duas tradições divergentes do mesmo episódio che­gando a Marcos e a Lucas de fontes separadas (cf. as duas versões com seus paralelos sinóticos). (5) Um desenvolvimento mais teologica­mente calculado da tradição é visto em um número de casos nos quais o evangelista muito claramente emendou ou corrigiu sua fonte. Por exemplo, onde Marcos diz: "Jesus não pôde fazer ali nenhum milagre, senão curar uns poucos enfermos, impondo-lhes as mãos" (Mc 6.5), Mateus alterou isso para, "Não fez ali muitos milagres" (Mt 13.58). Na conclusão de Marcos do caminhar sobre a água se lê: "Ficaram en­tre si atônitos, porque não haviam compreendido o milagre dos pães; antes, o seu coração estava endurecido" (Mc 6.51s.); mas, como foi notado acima (pp. 146ss), Mateus transformou isso em, "Verdadeira­

' Ver também o meu: The Evidence for Jesus, SCM Press 1985, cap. 1; também, The Living Word, SCM Press 1987. 1

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mente és Filho de Deus!" (Mt 14.33). (6) Em um caso as diferentes ver­sões divergem tanto uma da outra que é quase impossível discernir sua forma primitiva. Eu me refiro aos dois relatos da morte de Judas (Mt 27.3-10; At 1.18s.). Sobre os relatos variantes dos Doze ver abaixo (p. 198, nota 7). Em nenhum desses casos desejo negar que haja um evento real subjacente às tradições divergentes - mas antes, o inverso. O ponto em questão aqui, contudo, é o fato de que relatos diferentes do "evento real" parecem em muitos casos ter divergido um do outro no curso da transmissão, seja por causas naturais ou por projeto teológico, e que em alguns casos o grau de divergência é muito significante para ser ignorado.

3. Das tradições narrativas a respeito de Jesus nos voltamos para as tradições dos ditos de Jesus. Aqui vemos uma gama de diversidade na transmissão similar à esboçada acima (§18.2). (1) Muitos dos ditos de Jesus estão preservados com um extraordinário grau de concordância verbal entre os diferentes evangelistas (p.ex. Mc 2.19s; Mt 8.9s; 12.41s; 24.43-51). Podemos notar de passagem como muitos dos logia preser­vados no Evangelho de Tomé têm paralelos próximos na tradição si­nótica (ver abaixo p. 420, nota 40). (2) Alguns ditos estão preservados em contextos diferentes. Por exemplo, o dito a respeito de achar e perder a vida está situado em dois ou três contextos diferentes (Mt 10.39; Mt 16.25/Mc 8.35/Lc 9.24; Lc 17.33; Jo 12.25); Lucas reproduz duas vezes o dito acerca da lâmpada (Lc 8.16; 11.33); o dito "por seus frutos" foi espremido em um por Lucas 6.43-45 ou separado em dois por Mateus (7.16-18; 12.33-35); talvez a variante mais significativa seja, sem dúvida, as admoestações de Marcos 8.38, Mateus 10.32s., Lucas 9.26; 12.8s. (ver também abaixo p. 334). (3) Notemos também os ditos com boa reivin­dicação de serem autênticas logias de Jesus que foram preservados fora dos evangelhos, e que, portanto, fornecem evidência de tradições parti­culares que foram contornadas ou omitidas pelos evangelistas. Bons exemplos disso estão em Atos 20.35; o códice D da versão de Lucas6.5 (um homem trabalhando no sábado) - "Homem, se tu sabes o que estás fazendo és abençoado; mas se tu não sabes, tu és maldito e um transgressor da Lei", e no Evangelho de Tomé logion 82 - "Jesus disse: 'Quem está perto de mim está perto do fogo, e quem está longe mim

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está longe do reino'"20. (4) Alguns ditos foram interpretados diferente­mente no curso da transmissão. Assim um original aramaico traduzido diferentemente para o grego parece ser a fonte de versões divergentes significativas: Marcos 3.28s. ("filhos dos homens"), mas em Mt 12.32/ Lc 12.10 ("o Filho do Homem") (ver acima p. 111, nota 16); Marcos 4.12 ("para que"), mas Mt 13.13 ("porque").21 Assim também há muito a ser dito para a visão de C. H. D odd e J. Jeremias de que a várias parábolas têm produzido um sentido diferente, no curso da transmissão, do que aqueles intencionados por Jesus. Aqui, particularmente digna de nota é a transformação das "parábolas de crise" nas parábolas acerca da segunda vinda (Mc 13.34-36 e vários par.; Mt 24.43/Lc 12.39s.; Mt 25.1- 13).22 Compare também os diferentes modos em que a proclamação do Batista é apresentada - o pregador do juízo abrasador de Q (Mt 3.7-10/ Lc 3.7-9) é somente um pregador de arrependimento em Marcos (1.4-8- sem fogo, sem julgamento), é somente uma testemunha de Jesus em João (1.19-34; 3.27-30 - sem fogo, sem julgamento, nenhum chamado ao arrependimento). Talvez mais extraordinário aqui seja a história da tradição do dito de Jesus acerca da destruição e a restauração escatoló- gica do Templo. Está preservado somente como um falso testemunho em Marcos 14.58/Mateus 26.61, mas João o atribui ao próprio Jesus (Jo 2.19; ver acima p. 115). Como os primeiros crentes de Jerusalém enten­deram isso não fica muito claro (como um falso testemunho? Ou uma promessa de que o Templo seria o foco de renovação escatológica para Israel? - ver abaixo pp. 470s). Seja como for, a implicação de Atos 6.14 é claramente de que Estêvão a compreendeu como uma palavra de juízo sobre o Templo (ver abaixo pp. 184,403). (5) Precisamos notar também como alguns ditos de Jesus foram deliberadamente alterados no curso da transmissão - alterados de tal maneira a dar um sentido claramente di­ferente do original. Por exemplo, a interlocução aberta de Jesus com o

20 Ver J. J eremias, Unknown Sayings o f Jesus, 3a ed., 1963, ET SPCK 2a ed., 1964, pp. 61-73; O. Hofius, "Unbekannte Jesusworte", Das Evangelium und die Evangelien, WUNT 28, Tübingen 1983, pp. 355-82.

21 Cf. T. W. M anson , The Teachings o f Jesus, Cambridge University Press 1931, pp. 75-80.

22 C . H. D odd , The Parables o f the Kingdom, 1935, Nisbet 1955, cap. V; J. J eremias, The Parables o f Jesus, 6a ed., 1962, ET SCM Press 1963, pp. 48-63; ver também C. E. C arlston, The Parables o f the Triple Tradition, Fortress 1975; e ver mais abaixo p. 467. ’

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jovem rico: Marcos 10.17s: "Bom mestre, o que preciso fazer para her­dar a vida eterna? Por que me chamas bom? Ninguém é bom senão um, que é Deus"; Mas Mateus 19.16s. - "Mestre, que farei eu de bom, para alcançar a vida eterna? Por que me perguntas acerca do que é bom? Bom só existe um". Note também o modo em que o veredicto claro e curto contra o divórcio, preservado em Marcos 10.11, foi suavizado pela adição da cláusula da incontinência em Mateus 19.9, e por disposi­ção mais indulgente no caso de casamentos mistos em 1 Coríntios 7.15 (ver mais abaixo p. 373). Ou ainda considere como Lucas, cuidadosa­mente, evitou a necessidade de retratar as aparições da ressurreição na Galiléia ao omitir Marcos 14.28 e por transformar a promessa das apa­rições na Galiléia em Marcos 16.6s em lembranças das palavras faladas por Jesus enquanto ainda estava na Galiléia (Lc 24.6s; ver mais abaixo pp. 508s). (6) Finalmente há claras indicações em diversos, ainda que não em muitos, casos que um dito particular originado nas igrejas primiti­vas e adicionado à tradição-Jesus durante o curso de sua transmissão. Assim, por exemplo, Mt 18.20 é quase certamente uma promessa fala­da no nome do Jesus exaltado por um profeta cristão primitivo e aceita pelas igrejas como um dito de Jesus. Similarmente, ainda que não seja muito certo, Lucas 11.49-51. Mateus 11.28-30 é provavelmente uma in­terpretação profética do dito Q 11.25-27, em que o Jesus exaltado que falou na terra como mensageiro da Sabedoria é agora entendido falar como a própria Sabedoria (ver mais abaixo pp. 378s, 420s). E um dos melhores exemplos de adição interpretativa, conseqüente da mudan­ça de perspectiva ocasionada pela missão aos gentios, é Marcos 13.10 (peculiar a Marcos, perturbando o fluxo de pensamento, e o uso de "o evangelho" - particularmente de Marcos). Com efeito, Marcos 13 como um todo propicia alguns dos materiais mais frutíferos para a investiga­ção da história da tradição (ver abaixo p. 471, nota 27).

Devemos concluir, portanto, que as igrejas primitivas não tinham nenhuma concepção da tradição-Jesus como algo fixado, um grupo de tradição cujos conteúdos e esquema estavam firmemente estabelecidos desde o primeiro momento23. O fato de que muitas tradições das palavras e feitos de Jesus

! A tese defendida por B. G erhardsson , Memory and Manuscript, Lund 1961; cf. a mais antiga, H. R iesenfeld, The Gospel Tradition and its Beginnings, Mowbray 1957. Sobre a possibilidade de Mateus destinar seu Evangelho como uma forma mais fixa do ensino de Jesus, ver abaixo pp. 517ss.

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serem preservados indicam que foram entesourados pelas comunida­des primitivas, e precisam, portanto, ter desempenhado um papel de autoridade na formação de seu ensino e prática (ver acima p. 107, nota 8). Mas as próprias tradições não eram entendidas como já captadas em uma forma final e de autoridade, e sua autoridade era sujeita à adapta­ção e interpretação suscitadas pelo espírito profético em circunstâncias de mudança (cf. Mt 13.52).

4. A mais clara demonstração desse último ponto é a tradição acerca de Jesus ela como reaparece voltada ao fim do séc. I no Quar­to Evangelho. Até uma comparação superficial de João com os sinóti­cos revela que Jesus é retratado de um modo muito diferente, que as tradições acerca de Jesus, temos que afirmar, sofre um desenvolvimento extraordinário. Por isso, eu não entendo que a apresentação joanina de Jesus tenha perdido o contato com a realidade histórica - pois há indicações suficientes em pontos onde João tem paralelos com os sinóticos de que ele está extraindo de boa tradição (p.ex. Jo 1.19-34; 2.13-22; 6.1-15).24 Por conseguinte podemos presumir com alguma confiança que mesmo onde faltem paralelos há um sólido funda­mento tradicional ancorando a superestrutura joanina na história (cf. p.ex. Lc 13.34 e Mc 14.13s. que apóiam João ao sugerir que Jesus tinha maior contato com Jerusalém do que os sinóticos, por outro lado, indicam).

O ponto que precisa ser notado aqui, contudo, é a extensão em que esse material tradicional, acerca de Jesus, foi elaborado por João. Eu já dei atenção aos vários traços da cristologia de João que ilus­tram o ponto (ver acima pp. 95,107,118,122). Dois outros traços da apresentação joanina, mais diretamente relevante ao presente capí­tulo, demonstram o grau em que João moldou a tradição-Jesus para encontrar as exigências de sua própria situação. Primeiro, ele situa todo seu material dentro e como parte de uma estrutura dramática, de modo que o evangelho todo se movimenta para frente para o clímax de a hora, a hora quando Jesus será glorificado, levantado, assunto de

24 R. E. B rown , "The Problem of Historicity in John", CBQ, 24, 1962, reimpresso em: New Testament Essays, Chapman 1965, cap. IX; C. H. D odd, Historical Tradi­tion in the Fourth Gospel, Cambridge University Press 1963; L. M orris, Studies in the Fourth Gospel, Eerdmans 1969, cap. 2), D unn , Evidence, cap. 2.

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onde ele desceu25, para que o movimento em direção a esse clímax seja caracterizado pelo julgamento crescente ou pela separação (krisis) ocasionada pela presença de Jesus (ver particularmente Jo 3.17-19; 5.22-24; 7.43; 9.16; 10.19; 12.31; 16.I I ) 26. A fim de encaixar e expli­car esse desenrolar do drama João costurou os feitos e as palavras de Jesus de tal maneira que seu colorido, distintamente joanino, quase não pode ser negado (ver p.ex., as seções extensas, Jo 4.1-42; 9; 11).

Em segundo lugar, devemos notar o caráter distintivo dos discursos de Jesus no Quarto Evangelho. Uma comparação dos vários discursos revela uma impressionante regularidade de padrão, onde o pensamento parece progredir em uma série de círculos concêntricos, usualmente começando com uma declaração de Jesus que é mal-entendida por seus ouvintes e que então fornece o ponto inicial para uma mais completa redeclaração de Jesus, e assim por diante27. Daí o padrão ser sustenta­do seja qual for a audiência - por exemplo, o judeu intelectual (Jo 3), a prostituta samaritana (Jo 4), a multidão da Galiléia (Jo 6), as autorida­des judaicas hostis (Jo 8), os discípulos (Jo 14 - e daí a ausência de qual­quer paralelo real nos sinóticos, é difícil escapar da conclusão que esse padrão é um produto literário, a maneira de João apresentar seu próprio entendimento aprofundado da tradição-Jesus original. Resumindo, a melhor explicação dos discursos joaninos é a de que eles são uma série de meditações ampliadas ou sermões sobre os ditos originais de Jesus, ou sobre traços originais de seu ministério.

Aqui, então, muito claramente não há nenhuma concepção das tradições acerca de Jesus como uma entidade estabelecida somente para ser guardada e passada adiante, como se já estivesse em uma for­

25 "hora" - Jo 2.4; 7.6, 8, 30; 8.20; 12.23, 27; 13.1; 16.25, 32; 17.1."glorificar" - Jo 2.11; 7.39; 11.4; 12.16, 23, 28; 13.31s; 17 .1 ,4s."levantar" - Jo 3.14; 8.28; 12.32, 34."ascender" - Jo 3.13; 6.62; 20.17.

26 C. H. D odd, The Interpretation o f the Fourth Gospel, Cambridge University Press 1953, pp. 344-89; ver também J. B lank, Krisis: Untersuchungen zur johanneischen Christologie und Eschatologie, Freiburg 1964.

27 Cf. R. S chnackenburg, The Gospel according to St John, vol. I, 1965, ET Herder 1968: "A técnica dos 'discursos parabólicos' também exibe o método de pen­samento concêntrico que progride em novos círculos: um modo meditativo de pensamento que usa poucos argumentos, mas aprofunda mais e mais o assunto a fim de obter um melhor e mais alto entendimento do mesmo" (p. 117).

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ma fixa e final. Ao contrário, a tradição-Jesus aparentemente está preser­vada na e pela comunidade joanina somente em uma forma desenvolvida e in­terpretada; ou antes, é parte da vida cotidiana da comunidade, vivendo e amadurecendo como ela vivia e amadurecia, respondendo com eles aos desafios de cada nova situação - mais como a tradição de Paulo do que a "sã doutrina" das Pastorais.

§ 19. CONCLUSÕES

1. A tradição formava um estrato unificador de certa importância dentro da diversidade do cristianismo primitivo. Mas não as tradições caracterís­ticas do judaísmo, desde que Paulo e seus gentios convertidos rejeita­vam ou ignoravam a maioria delas, uma vez que a igreja em Jerusalém as entendia como sendo de contínua importância e permaneciam leais a elas. Mas a tradição kerygmática e as tradições acerca de Jesus - quer di­zer, aquelas fórmulas kerygmáticas e confessionais e várias (coleções de) narrativas e de ditos de Jesus que eram de ocorrência comum entre as diferentes igrejas. Aqui um novo elemento de unidade emerge que não é de pouco significante. Pois já estamos familiarizados com a pro­clamação e confissão da morte e ressurreição de Jesus como elemento unificador. Mas agora vemos também atados com isso uma aceitação comum de tradições a respeito de Jesus, isto é, tradições do ministério ter­reno e do ensino de Jesus.

2. Dentro desse estrato unificador há diversos traços marcados de diversidade. Já foi dito o suficiente sobre a diversidade do uso e forma das tradições kerygmáticas e confessionais (caps. II e III). Vi­mos agora que o uso feito da tradição-Jesus é similarmente diverso. Q parece ocupada em preservar as palavras reais de Jesus de um modo, em uma forma e extensão não exatamente como os de Paulo. Marcos usa as narrativas do ministério de Jesus de um modo que claramente o situa contra quem desejasse retratar Jesus primaria­mente como um operador de milagres. Há diferenças fundamentais considerando o papel da tradição entre Paulo e as Pastorais. Assim também o molde e conteúdo da tradição-Jesus é muito diferente. O es­tágio de transmissão entre Q e Marcos, por um lado, e Mateus e Lu­cas, por outro, revela algo da liberdade bem como o respeito com que

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a tradição era manuseada. E o Quarto Evangelho exibe em quanta extensão essa liberdade devia ser sentida, demonstrando uma liber­dade em interpretar e desenvolvendo a tradição a partir da geração primitiva que parecem ser os pólos separados do conservadorismo das Pastorais - ainda que os autores pertencessem à mesma geração do cristianismo. Certamente não há nenhuma evidência anterior às Pastorais da tradição sendo vista como alguma coisa fixada, à qual o mestre era inteiramente subserviente, seu papel sendo confinado a preservar e passá-la adiante. Ao contrário, a evidência de Paulo e de todos os evangelistas, mas particularmente do quarto evangelis­ta, é que cada comunidade e cada nova geração aceitaram a responsabili­dade de se debruçar sobre ela (implicitamente ou explicitamente mediante o Espírito) para interpretar outra vez a tradição recebida e relacioná-la à sua própria situação e necessidades.

3. Algo mais deve ser dito acerca dessa particularidade do concei­to paulino e joanino (e também sinótico) e o uso da tradição como inter­pretada ou pneumática e suas repercussões sobre a autoridade atribuída à tradição. Para Paulo e João as tradições kerygmáticas e as tradições de Jesus são autorizadas, mas não em si mesmas, não são autorizadas independentemente. Elas são autorizadas somente quando tomadas em conjunção dinâmica com a inspiração presente do Espírito. A tradição que cessa de ser relevante é também abandonada (tradição judaica) ou in­terpretada e adaptada (kerygmática e tradições de Jesus). Isso poderia ser feito porque, tanto para Paulo como para João, o foco da revelação não é simplesmente o passado (Jesus terreno), mas o presente também (o Espírito Santo). Conseqüentemente, a autoridade não gira em torno de um, mas de dois focos - tradição e Espírito - e a expressão autori­zada de pregação e ensino e qualquer caso particular toma a forma de tradição interpretada28.

28 Cf. o papel da tradição na Ortodoxia oriental: "Lealdade à tradição significa não somente concordar com o passado, mas, em certo sentido, liberdade do passa­do. Tradição não é somente um principio protetor, conservador, é primariamen­te o princípio de crescimento e regeneração... Tradição é a constante habitação do Espírito, e não somente a memória das palavras. Tradição é um princípio carismático, não um princípio histórico" (G. V. F lorovsky, "Sobornost: The Ca- tholicity of the Church", The Church o f God, org., E. M ascall, SPCK 1934, pp. 64s).

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João fornece o que parece servir (no mínimo em parte) como sua apologia para isso em duas passagens do Paráclito em João 14-16. Pois em 14.26 e 16.12-15 o Paráclito tem a dupla função de recordar a mensagem original de Jesus e de revelar a verdade nova, e desse modo a de reproclamar a verdade de Jesus. Em outras palavras, o próprio considera sua própria elaboração ampla da tradição-Jesus como se, contudo, ainda continuasse controlada pela tradição original. Há equilíbrio similar pretendido em 1 João entre o papel presente e con­tínuo do Espírito como mestre (ljo 2.27; 5.7s.) e o ensino que foi dado "desde o princípio" (ljo 2.7, 24; 3.11). Ainda teremos que retornar a esse assunto mais tarde e vê-lo de outra perspectiva (abaixo pp. 304s, 31 ls), mas no momento podemos dizer, na forma de resumo, que a tradição do passado era autorizada por Paulo e João quando era tra­dição interpretada, interpretada pelo Espírito presente e para a pre­sente situação.

4. Por todos os capítulos da Parte 1 estamos ajuntando mate­rial sobre a relação da mensagem de Jesus para o(s) evangelho(s) das igrejas primitivas. Do atual capítulo dois pontos de relevância emer­gem. Primeiro, o fato de que as igrejas primitivas consideravam as tradições acerca de Jesus ao todo como indicações autorizadas que a mensagem do Jesus terreno tinha uma importância continua para elas. Mas desde que fosse autorizada para elas como tradição interpreta­da, sua autoridade não recaía tanto em seu ponto de origem histórico, mas muito mais no fato de que foi falada por aquele que era no presente Senhor da comunidade e que poderia ser considerada como expressando sua vontade presente. Em outras palavras, até em assuntos de tradição recebida o fator unificador chave era a continuidade entre o Jesus terreno (a fonte histórica da tradição interpretada) e o Senhor exaltado (a presente fonte da tradição interpretada). Essa conclusão fortalece as conclusões al­cançadas nos capítulos II e III.

Segundo, essa importância continuada da tradição-Jesus não de­veria ser tomada como significar uma sobreposição substancial entre o kerygma de Jesus e os kerygmata dos primeiros cristãos. O fato é que enquanto a linguagem da tradição é usada por Paulo tanto para a tradição-Jesus e a tradição kerygmática, a tradição-Jesus é citada por Paulo somente em assuntos éticos e com referência à ceia do Senhor, enquanto que a tradição kerygmátic% como tal usa somente a tradição da

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morte e ressurreição de Jesus29. Isso confirma que Paulo não havia pen­sado sobre o kerygma como se, simplesmente, expressasse novamente a mensagem ou o ensino de Jesus. O kerygma proclamava o crucificado e ressurreto, não o ensino passado do Jesus terreno. A questão acerca da rela­ção da proclamação de Jesus com a proclamação dos primeiros cristãos em parte foi respondida, mas permanece largamente não resolvida.

5. Para aqueles cujo valor da tradição ou a tradição do cristianis­mo do séc. I em particular, alguns corolários seguem das investigações acima que são de relevância contemporânea. Primeiro: não devemos ficar alarmados pelas diferenças marcadas de opinião considerando a tradição corrente no cristianismo moderno, pois vimos quão marcado era o grau de diversidade de atitude para com e uso da tradição den­tro do cristianismo primitivo. Em particular, aqueles que acham mais agradável a atitude conservadora da igreja de Jerusalém para a tradi­ção judaica e das Pastorais para a tradição cristã antiga deveriam ter em mente que Paulo e João, para não mencionar o próprio Jesus, eram muito mais liberais para com a tradição do passado; e aqueles que são mais liberais em si mesmos deveriam ter em mente que as Pastorais também são parte do NT. Ambos, liberais e conservadores fariam bem em seguir o conselho de Paulo ao fraco e ao forte (em questões de tra­dição) em Romanos 14.1-15.6 e 1 Coríntios 8-10: não dar importância indevida aos assuntos da tradição e respeitar plenamente as opiniões e práticas daqueles que diferem, com os conservadores não condenando o liberal por seu exercício da liberdade, nem o liberal desprezando os conservadores por seus escrúpulos (particularmente Rm 14.3; ver mais abaixo pp. 538s)30. Não há tal coisa como tradição não-interpretada, até no princípio e desde dele. A questão real, então, é como a diversidade de interpretação deve ser manuseada.

Segundo, se é tradição interpretada que se torna a expressão au­torizada em qualquer dada situação, o que dizer de séries inteiras de tradições interpretadas que enchem as páginas da história da igreja

29 Nesse ponto a distinção de C. H. D odd entre kerygma e didaquè (ensino) está profundamente baseada. Ver também J. I. H. M cD onald, Kerygma and Didache, SNTSMS 37, Cambridge University 1980.

30 Ver D unn, Romans, p p . 802ss; R. J ewett, Christian Tolerance. Paul's Message to the Modern Church Westminster 1982.

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por todos os séculos? Elas retêm uma autoridade continuada desde que a tarefa de interpretação já havia sido feita, ou era essa interpre­tação somente autorizada para seus próprios dias? Ou elas se torna­ram parte da tradição que deve, mais uma vez, ser interpretada? Se for assim, a interpretação no presente deve considerar o todo da tra­dição interpretada, ou algum elemento dentro dela serve como uma norma para o restante? Ou mais uma vez, o processo de interpreta­ção desvia, ou até desconsidera, interpretações anteriores e trabalha somente com a tradição original? Se for assim, o que é a "tradição original"? Ela inclui João e as Pastorais, ou até Clemente, Inácio, etc.? Ou a tradição é o que subjaz Paulo e os evangelhos sinóticos bem como João? Essas são questões de importância para o cristianismo do séc. XX e um do conceito de cristianismo e pratica de autoridade. Mas elas suscitam questões mais amplas, particularmente sobre o NT e sua canonicidade que não podemos tratar aqui e se reservam para o nosso capítulo final31.

Por enquanto, podemos simplesmente repetir na forma de resu­mo, que muito do mesmo padrão de unidade e diversidade emerge de nosso estudo da tradição cristã primitiva como encontramos nos capítulos II e III - unidade nas tradições da morte e ressurreição de Jesus e nas tradições sobre Jesus, e diversidade sobre a necessidade de re-interpretar a tradição do princípio e na gama de interpretação que realmente nos con­fronta.

1 Ver D unn, Living Word, capI. 6.

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C a p í t u l o V

O USO DO ANTIGO TESTAMENTO

§ 20. INTRODUÇÃO

Um dos mais importantes fatores unificadores no cristianismo é o mútuo reconhecimento de certos escritos como fundamentais, nor­mativos ou, mais precisamente, como escrituras. Além disso, aqueles que mais vigorosamente contestaram o papel da tradição o fizeram em defesa da autoridade primeira e inigualável da Bíblia. A mesma coisa pode ser dita da Bíblia das igrejas primitivas? A única Bíblia que elas conheciam e reconheciam eram as Escrituras judaicas, isto é, a Lei e os Profetas, juntamente com outros Escritos, cuja autoridade e cujo núme­ro não havia ainda concordância, mas que coincidiam mais ou menos com o que os cristãos chamam de "O Antigo Testamento". Usaremos esse termo (AT) por conveniência. Mas reconhecemos que no séc. I a.C. não havia uma delimitação precisa e um anacronismo, visto que Antigo Testamento pressupõe que há já houvesse um Novo Testamento, o que também ainda não existia como tal.

Precisamos gastar um pouco de tempo demonstrando que o AT é um elemento unificador importante no cristianismo primitivo e na literatura cristã primitiva. Isso é obviamente verdade nos escritos cristãos judaicos mais especificamente: note-se o uso freqüente da frase "para que fosse cumprida" em Mateus e em João e o importante papel desempenhado pela citação escriturística nos discursos de Atos, em Romanos 9-11 e em Hebreus. Mas também é verdade para todo o NT. Um vislumbre no texto grego de N estle mostra que em quase cada página palavras de diferentes tipos, denotam uma referência direta das escrituras (as Epís­tolas Joaninas são uma notável exceção) - e que não incluem as mais precisas alusões. Nesse sentido todo o cristianismo no NT é cristianismo

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judaico; quer dizer, a influência do AT perfaz o todo, determina o sig­nificado de suas categorias e conceitos.

C. H. Dodd estudou bastante o presente assunto em sua obra sig­nificativa, Accoráing to the Scriptures, com o subtítulo "The Substructu- re of New Testament Theology":

Todo o corpo desse material - as passagens das Escrituras do AT, com sua aplicação aos fatos do evangelho - é com um em todas as principais porções do NT, e, em particular, isso forneceu o ponto de partida para as construções teológicas de Paulo, o autor de Hebreus, e para o quarto evangelista. E a subestrutura de toda a teologia cristã e já contém suas idéias reguladoras principaisl.

Trata-se de uma reivindicação corajosa. Se for verdade então, de fato, temos um elemento unificador de primeira grandeza, talvez tão importante quanto a fé no próprio Jesus - não apenas "fatos evangé­licos" mas "Escrituras do AT", não apenas Jesus, mas também o AT. Até onde vimos isso no kerygma, na confissão e na tradição, Jesus so­zinho dá unidade e coerência à diversidade de formulações. Agora te­mos que adicionar outro bloco ao fundamento do cristianismo - o AT? A base real da unidade cristã primitiva é Jesus e o AT?

A relação entre NT e AT, e vice-versa, é uma das coisas que mais fascinou os eruditos por séculos, e uma grande quantidade de litera­tura que apareceu nos anos recentes, indica que o debate foi particu­larmente vivaz durante as duas épocas passadas. Felizmente, as pre­ocupações do presente estudo capacitam-nos a delimitar a questão e também salientá-la. Pois a questão-chave não é tanto se as Escrituras judaicas eram autoridades, mas como sua autoridade era entendida na prá­tica. A mesma coisa é verdade sobre o significado do debate moderno a respeito da autoridade bíblica: qual é a autoridade da Bíblia quandoo significado de um texto não pode ser inteiramente determinado, mas permanece ambíguo? Qual é a autoridade da Bíblia quando, sobre um mesmo tópico, um autor diz uma coisa e outro diz outra bem diferente? Já vimos bastante desse tipo de diversidade nos últimos três capítulos, e a diversidade de denominações dentro do cristianismo é o testemu­nho vivo da diversidade de possíveis interpretações na exegese bíblica.

1 C. H. D odd . According to the Scriptures. Nisbet 1952, p . 127, os itálicos são meus. Ver também D . J uel, Messianic Exegesis’, Fortress, 1988.

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A questão-chave para nós, então, não é se o AT era considerado como autoridade, mas qual era a sua autoridade na prática? Como as Escri­turas judaicas foram manuseadas nos primeiros anos do cristianismo? Como os primeiros cristãos realmente usaram o AT?

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§ 21. A EXEGESE JUDAICA NO TEMPO DE JESUS

Geralmente é aceito que a exegese contemporânea judaica é a base apropriada para o uso do AT pelo cristianismo primitivo. E aqui que de­vemos começar. Para os propósitos dessa discussão cinco categorias am­plas de exegese judaica podem ser distinguidas - targum, miãrásh, pesher, tipológica e alegórica. Há controvérsia considerável sobre as últimas três. Deve-se enfatizar, uma vez por todas, portanto, que essas não significam categorias sólidas e profundas, são simplesmente modos úteis de classifi­car a gama da exegese e da interpretação judaicas e que, freqüentemente, é muito difícil desenhar uma linha divisória ou classificar um modo parti­cular de exegese com toda a segurança. Mas espero que a justificação para fazer a distinção em cinco categorias se torne aparente no processo.

1. Targum basicamente significa tradução (para o aramaico). Entre o retorno do Exílio e o séc. II d.C., o hebraico foi gradualmente substituído pelo aramaico como a língua falada dos judeus. O hebraico sobreviveu por um longo tempo, particularmente como a língua estudada e sagra­da, e assim era usada em obras escritas desse período. Mas durante o séc. I d.C. o aramaico, provavelmente, era a única língua que muitos (a maioria?) judeus palestinenses realmente falavam2. Isso significa que nas sinagogas as leituras da Lei e dos Profetas deveriam ser traduzidas de modo que o povo pudesse entender. Por um longo período, traduções orais foram suficientes, mas eventualmente traduções escritas foram fei­tas. Um número de diferentes Targumim (Targuns) sobreviveu3.

: Ver p.ex., J. B arr, "Which Language did Jesus Speak? - Some remarks of a Semitist", BJRL, 53, 1970, pp. 9-29; J. A. E merton , "The Problem of Vernacular Hebrew in the First Century AD and the Language of Jesus", ]TS ns, 24,1973, pp. 1-23.

1 Veja R. le D éaut, Introduction à La littérature targumique, Prem. part., Rome 1966; J. W. B owker, The Targums and Rabbinic Literature, Cambridge University Press 1969; M . M cN amara, Targum and Testament, Irish University Press and Eerdmans 1972.

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Note-se que o targum não é uma tradução literal. Freqüentemente é mais como uma paráfrase ou tradução explicativa. Costuma envol­ver a expansão do texto, e com certa freqüência altera o texto. Não deve surpreender, visto que a LXX faz isso também, particularmente na tradução de 1 Reis. Mas os targumim não são parcimoniosos como a LXX; a tradução em diversas ocasiões incorpora uma interpretação distintamente estranha diante do original - uma tradução interpretati- va. O exemplo mais notável é o Targum de Isaías 53, onde a tradução foi deliberadamente estruturada para possibilitar uma interpretação cristã. Quer dizer, uma tradução tendenciosa:

Quem creu naquilo que ouvim os, e a quem se revelou o braço de Iahweh? Ele cresceu diante dele com o um renovo, com o raiz que brota de um a terra seca; não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair o nosso olhar, nem form osura capaz de nos deleitar.Era desprezado e abandonado dos hom ens, um hom em sujeito à dor, familiarizado com a enfermidade, com o um a pessoa de quem todos escondem o rosto; desprezado, não fazíamos caso nenhum dele. E, no entanto, eram as nossas enfermidades que ele elevava sobre si, as nossas dores que ele carregava4.

2. Midrásh significa exposição de uma passagem ou texto, uma expo­sição cujo objetivo é extrair a relevância do texto sagrado para o pre­sente. Não se preocupava não tanto com o sentido literal ou eviden­te, mas com os sentidos internos ou escondidos no texto sobre e acima dos sentidos óbvios. O midrásh típico consistia em extrair tais sentidos escondidos contidos em um texto particular.

O midrásh com eça a partir do texto (sagrado) ou mesm o de um a única palavra; porém o texto não é, simplesmente, explicado- seu sentido é estendido e suas implicações extraídas com o auxílio de toda associação possível de idéias5.

1J. F. S tenning, The Targum o f Isaiah. Oxford University Press 1949, p. 178, 180. Ver também W. Z immerli & J. J eremias, The Servant o f God. ET revised SCM Press1965, pp. 67-77. Para outros exemplos mais detalhados ver D. P atte, Early Jewish Hermeneutic in Palestine, SBL Dissertation 22,1975, cap. IV.

’ B. G erhardsson, The Testing of God's Son (Matt. 4.1-11 and par.), Coniectanea Biblica, Lund 1966, p. 14; ver também R. B loch, "Midrásh", Approaches to Ancient Judaism Theory and Practice, ed. W. S. G reen, Brown Judaic Studies I, Scholars 1978, pp. 29-50.

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Durante a época de Jesus as regras de interpretação já haviam sido reunidas - as sete middoth (regras) de Hillel. (1) Inferência ex­traída do menos importante para o mais importante, e vice-versa.(2) Inferência por analogia, onde duas passagens foram extraídas juntas mediante uma palavra ou palavras comuns. (3) Construir uma família, um grupo de passagens relacionadas pelo contexto, nos quais um traço familiar a um membro é tirado para ser aplicado a todos. (4) A mesma coisa de (3), mas onde a família consiste de somente duas passagens. (5) O geral e o particular, o particular eo geral; ou seja, a determinação detalhada da aplicação geral, para uma ocorrência particular, e vice-versa. (6) Exposição mediante uma passagem similar em outro lugar. (7) Uma inferência deduzida do contexto. As regras foram mais tarde ampliadas para trinta e duas6. Os dois tipos básicos de midrásh são: Halaká e Haggadá, que já tratamos acima (p. 140).

3. Pesher pode ser descrito como uma forma mais estreita de midrásh, ainda que muitos eruditos rejeitem reconhecê-la como uma categoria separada7. Pesher significa, simplesmente, interpretação. Ganha seu sentido característico de Daniel, na porção aramaica da qual (2.4-7.28) ocorre 30 vezes, e onde é usada para a interpretação de Daniel dos sonhos de Nabucodonosor e de Belsazar, e para a in­terpretação de Daniel, dos escritos na parede na festa de Belsazar. Ela tende a ser uma interpretação mais precisa do que midrásh. Em ter­mos muito simplificados, o midrásh expande a relevância de um texto, enquanto o pesher explica o sentido de um texto como correspondente um a um. Assim, por exemplo, cada elemento no sonho, cada palavra sobre a parede tem um sentido preciso - um sentido preciso em ter­mos do presente.

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6 Veja H. L. Strack, Introduction to the Talmud and Midrásh, 1931, Harper 1965, pp. 93-8.7 De acordo com E . E. E l l is : " o caráter distintivo do pesher de Qumran não

está em sua estrutura nem em sua m atéria específica, mas em sua técnica e, especificamente, sua perspectiva escatológica", ("M idrásh, Targum e New Testament Q uotations", N eotestam entica et Sem ítica: Studies in H onour o f M. Black, ed., E . E. E llis & M. W ilc o x , T. & T. Clark 1969, p. 62). Para P atte o caráter distintivo do pesher do Q um ran é aquele que trata o texto das Escri­turas como um sonho ou visão, um enigma a ser "resolvido" (H erm eneutic, pp. 299-308).

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A inscrição, assim traçada, é a seguinte, M ane, M ane, Tecei, Parsin . E esta é a interpretação da coisa: M ane - Deus mediu o teu reino e deu-lhe fim; Tecei - tu foste pesado na balança e foste julgado deficiente; Parsin - teu reino foi dividido e entregue aos m edos e aos persas (Dn 5.25-28).

Pesher se tornou uma palavra importante nessa área de estudo nos anos recentes por causa de seu uso nos comentários de Qumran. A co­munidade do Mar Morto se considerava como o novo pacto fiel viven­do nos dias finais antes do escaton. A comunidade cria, portanto, que certas profecias do AT se referiam a ela, exclusivamente - profecias que permaneciam envolvidas em mistérios até que o Mestre da Justiça fornecesse a interpretação necessária8. Diversos de seus comentários foram preservados em fragmentos - por exemplo, comentários sobre Isaías, Oséias e Naum. O pesher mais preservado é o Comentário sobre Habacuc. O método de exposição é citar o texto e então anexar a inter­pretação. Assim:

"Sim, eis que suscitarei os caldeus, esse povo cruel e im petu­oso" (Hab 1.6a). Sua interpretação (pesher) se refere aos Kittim (os rom anos), que são rápidos e poderosos...

Note como sua interpretação é corajosa: "caldeus" significa "kit­tim" (romanos).

Por que, contem plas os traidores, silencias quando um ímpio devora alguém mais justo do que ele? (Hab 1.13b). Sua interpre­tação se refere à Casa de Absalão e aos membros de seu conselho, que se calaram quando a repreensão do M estre da Justiça e não o ajudaram contra o Hom em da M entira, que rejeitou a Lei em meio a toda a sua comunidade...

Mas o justo viverá por sua fidelidade (Hab 2.4b). Sua interpre­tação se refere a todos os que cum prem a Lei na Casa de Judá, aos quais Deus livrará por causa de sua aflição e de sua fidelidade ao M estre da Justiça.

1 F. F. B ruce, Biblical Exegesis in the Qumran Tests, Tyndale Press 1960, pp. 7-11. Veja também M. P. H organ , Pesharim, Qumran Interpretations o f Biblical Books, CBQMS 8, Catholic Biblical Association of America 1979; W. H . B rownlee, The Midrásh Pesher ofH abakkuk, SBLMS 24,’Scholars 1979.

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Treze princípios de interpretação foram citados na técnica pesher de Qumran. Esses são mais convenientemente encontrados no livro de K. Stendahl, The School of St Matthew9.

4. A Tipologia é uma forma de interpretação que foi usada com muito abuso pelos cristãos do passado, particularmente no Protestan­tismo pós-Reforma, e ainda em algumas seitas modernas, pela qual, por exemplo, detalhes das histórias dos patriarcas ou o mobiliário do tabernáculo do deserto são vistos como tipos de Cristo ou da salvação cristã. Em parte, por essa razão, muitos eruditos questionariam se a tipologia é uma categoria apropriada para se usar em uma discussão como esta. Mas, corretamente definida, a exegese tipológica pode ser reconhecida tanto dentro do judaísmo pré-cristão como no NT.

A tipologia vê uma correspondência entre pessoas e eventos do pas­sado e do futuro (ou presente). A correspondência com o passado não é encontrada dentro do texto escrito, mas dentro do evento histórico. Quer dizer, a tipologia deve ser distinguida tanto da profecia predi- tiva, onde o texto funciona somente como uma predição do futuro, e da alegoria, onde a correspondência deve ser encontrada em sen­tido oculto no texto e não na história que ele relaciona. Da sua par­te, a tipologia não ignora o sentido histórico de um texto, mas antes toma isso como seu ponto de partida. A exegese tipológica, então, está baseada na convicção de que certos eventos na história passada de Israel, como registrados nas Escrituras, revelam desse modo, os caminhos de Deus e seus propósitos para os homens e faz isso de uma maneira típica. Em particular, grandes momentos da revelação na história da salvação, especialmente os eventos do princípio, se­jam do mundo (criação e paraíso), sejam de Israel (êxodo, deserto) e eventos do glorioso período da fé nacional de Israel (reino de Davi), manifestam um padrão dos atos de Deus e assim prefiguram o tempo futuro quando o propósito de Deus será revelado em sua plenitude na era vindoura. Nesse sentido, tipologia pode ser apropriadamente definida como "analogia escatológica".

Há alguns exemplos claros de tipologia dentro do próprio AT. O paraíso é provavelmente entendido como o tipo de felicidade esca­tológica (Is 11.6-8; Am 9.13). O êxodo e o deserto se tornam o tipo de

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K. S tendahl, The School of St Matthew. Lund 1954,2a ed., 1968, pp. 191s.

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libertação escatológica (p.ex. Is 43.16-21; 52.11s.; Os 2.14-20). Davi é o tipo do libertador vindouro (Is 11.1; Jr 23.5; Ez 34.23; 37.24). Mais tarde Moisés será visto como o tipo do profeta escatológico (com base em Dt 18.15), e nos escritos apocalípticos do período intertestamentário o pa­raíso se rivaliza com Jerusalém como o tipo do propósito consumado na nova era iminente10.

5. Alegoria. O mais proeminente alegorizador dentro do judaís­mo pré-cristão foi Filo de Alexandria. A marca distintiva do método alegórico é a que considera o texto como um tipo de código ou cifra; a in­terpretação é simplesmente a decodificação do texto em questão - em outras palavras, uma forma mais extrema de midrásh, ao contrário do pesher. Para o alegorista há (no mínimo) dois níveis de sentido em um texto - o literal, o nível superficial de sentido, e o sentido subjacente. O sentido literal não deve ser inteiramente desprezado ou desconsi­derado; mas é comparativamente insignificante em relação ao sentido mais profundo - como a sombra para com a substância. Aqueles que permanecem com o sentido literal somente são os acríticos (Quod Deus Imm.; Quis Her., 91). Assim em vários lugares Filo diz coisas como: "A história literal é simbólica de um sentido oculto que pede explicação" (De Praem., 6.1); quando interpretamos as palavras pelo sentido que está abaixo da superfície, tudo o que é mítico é removido de nosso ca­minho, e o sentido real se torna tão claro como a luz do dia (De Agric., 97 - alegorizar era a forma primitiva de desmitologizar); não nos deixe ser enganados pelas palavras reais, mas que olhemos o sentido alegóri­co subjacente (De Cong. Quaer., 172)"11.

Como indica R. W illiamson, o valor da exegese alegórica para Filo era quádruplo. (1) Isso o torna capaz de evitar, literalmente, as descri­ções antropomórficas de Deus; (2) torna-o capaz de evitar os sentidos, triviais, ininteligíveis, confusos ou incríveis de algumas passagens do AT, quando interpretadas literalmente; (3) fornecer-lhe instrumentos para lidar com as dificuldades históricas do AT - por exemplo, onde Caim achou uma esposa? (4) capacitá-lo a extrair do AT conclusões

10 Textos citados em D. S. R ussell, The Method and Message o f Jewish Apocalyptic, SCM Press 1964, pp. 283s.

11 Exemplos em S. G. S owers, The Hermeneutics o f Philo and Hebrews. Zürich, 1965, pp. 29-34. '

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que se harmonizavam com as filosofias helenísticas, e assim vindicar o AT aos seus colegas filósofos12.

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§ 22. EXEGESE CRISTÃ PRIMITIVA DO ANTIGO TESTAMENTO

Todos os cinco tipos de exegese judaica ocorrem dentro do Novo Testamento.

1. Targum. Os escritores do NT, geralmente, usam a LXX, mas com muita freqüência eles ou suas fontes fazem uso de sua própria tradu­ção direta do hebraico. Não é necessário citar exemplos. As questões da tradução targúmica, ou da citação pesher, requerem tratamento mais completo e precisaremos voltar ao assunto mais adiante (§23).

2. Midrásh. Temos bons exemplos no NT de midrashim mais estendidos. João 6.31-58 é um midrásh sobre o Salmo 78.24: "Ele deu lhes para comer pão do céu" (Jo 6.31). Aí o Jesus joanino explica que ele do texto não é Moisés, mas o Pai. O pão do céu é ele que veio do céu, isto é, Jesus, que sua carne é dada para a vida do mundo. E aqueles que comerem, portanto, não morrerão como os pais que comeram o maná no deserto, mas aqueles que ouvem Jesus: se comerem sua carne e beberem seu sangue, isto é, se crerem nele e receberem seu Espírito, nunca morrerão13.

Romanos 4.3-25 é um midrásh sobre Gênesis 15.6: "Abraão creu (episteusen) em Deus, e isso lhe foi levado (elogisthê) em conta de justi­ça". Note-se como Paulo cita isso no início (v. 3) e de novo como con­clusão (Q.E.D. - v. 22). Os versos 4-8 é sua exposição de elogisthê- onde mostra que pode se entender no sentido de atribuir um favor, ao invés de uma paga de recompensa (usando a segunda regra de Hillel para ligar Gn 15.6 ao SI 32.1s.). Os versos 9-22 são sua exposição de episteusen- onde ele apresenta três argumentos para provar que a pistis (fé) de Abraão deve ser entendida como a fé, no sentido paulino, não como

12 R. W illiamson, Philo and the Epistle to the Hebrews. Leiden, 1970, pp. 523-8.13 Ver P. B orgen, "Bread from Heaven", SNT, X, 1965.

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fidelidade, no sentido rabínico (vv. 9-12, 13-17a, [17b-21])14. Similar­mente G1 3.8-14 (ou mesmo 8-29) pode ser considerado uma interpre­tação midráshica de Gn 12.3,18.18.

2 Coríntios 3.7-18 seria classificado como um midrásh ou como uma alegoria. Paulo expõe Êxodo 34.29-35 - expondo primeiro o senti­do da face brilhante de Moisés (vv. 7-11), então o sentido de "o véu" que Moisés usava para cobrir seu rosto (vv. 12-15), por conseguinte signifi­cava o Senhor a quem Moisés falava desveladamente (vv. 16-18). Note que em sua interpretação Paulo vai além, talvez até mesmo contradiga o sentido de Êxodo: Êxodo não diz nada a respeito da glória desvane- cente; e Moisés usava o véu para ocultar o fulgor de sua face ao povo, não o seu desvanecimento15.

Similarmente, alguns dos discursos em Atos (particularmente At2 e 13) mostram-se tomar a forma de midrashim cristãos,16 e até mesmo Mateus 4.1-11 pode ser considerado como um midrásh sobre Deutero- nômio 6-8, como B. Gerhardsson demonstrou (ver acima nota 5).

3. Pesher. Os equivalentes mais próximos ao pesher do tipo de Qumran estão em Romanos 10.6-9 e em Hebreus 10.5-10. Romanos 10.6-10 é uma interpretação de Deuteronômio 30.12-14, onde cada ver­so é citado em uma tradução muito livre com sua explicação adiciona­da no estilo pesher17.

A justiça que provém da fé...12 Não digas no teu coração: Quem subirá ao céu? Isto é, para fazer descer a Cristo;13ou: Mas o que diz ela? ...14'Porque, se confessares com a tua boca que Jesus é o Senhor e creres em teu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo.

Hebreus 10.5-10 é uma interpretação do Salmo 40.6-8, embora aí a passagem seja citada na versão da LXX, que em si mesma já é uma

14 Ver mais em meu Romans, Word Biblical Commentary 38. Word, 1988, pp. 196-8.15 Ver J. D . G. D unn , "II Cor. 3.17: 'The Lord is the Spirit'", JTS ns., 21, 1970,

pp. 309-18.16 Ver, particularmente, J. W. Bow ker. "Speeches in Acts: A Study of Proem and

Yellammedenu form". NTS, 14,1967-68, pp. 96-111.17 O pesher de Paulo, provavelmente, é bem modelado sobre uma paráfrase ju­

daica corrente, ainda preservada no recém descoberto Targum Neofiti (ver M . M cN amara, The New Testament and the Palestinian Targum to the Pentateuch. Rome1966, p. 73-77); D un n . Romans, pp. 60:1-6.

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paráfrase interpretativa do texto hebraico. Seguindo a citação os tra- ços-chave são tomados e explicados no estilo pesher:

Tu não quiseste sacrifício e oferenda. Tu, porém, form aste-m e um corpo. H olocaustos e sacrifícios pelo pecado não foram do teu agrado. Por isso eu digo: E is-m e aqui, - no rolo do livro estã escrito a meu respeito - eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade. Assim, ele declara, prim eira­mente: Sacrifícios, oferendas holocaustsos, sacrifícios pelo pecado, tu não os quiseste, e não te agradaram . Trata-se, notemo-lo bem, de oferendas prescritas pela Lei! Depois ele assegura: Eis que eu vim para fazer a tua vontade. Portanto, ele suprime o primeiro para estabelecer o segundo. E graças a esta vontade é que som os santificados pela ofe­renda do corpo de Jesus Cristo, realizada um a vez por todas.

Outros exemplos de exegese pesher são Romanos 9.7s., 1 Corín­tios 15.54-56; 2 Coríntios 6.2; Efésios 4.8-11; Hebreus 2.6-9; 3.7-19. E ver mais abaixo, §23.

4. Exegese tipológica no sentido definido acima (§21.4) também pode ser encontrada no NT, ainda que seja um assunto em debate. Paulo pa­rece usar a mesma palavra (tupos - tipo) com esse sentido implícito em duas passagens. Em Romanos 5.14 ele chama Adão: "Um tipo daquele que estava para vir". Note-se que a correspondência tipológica é limi­tada: Adão é um tipo de Cristo somente na extensão em que ele exibe no propósito de Deus como o único ato de um homem pode decisiva­mente afetar o relacionamento divino-humano da raça que ele gerou. Além disso, a correspondência entre Adão e Cristo descreve-se melhor como um tipo invertido (Rm 5.15-19). Em 1 Coríntios 10.6 ele fala dos eventos que se seguiram ao êxodo como tupoi. As relações de Deus com as tribos de Israel no deserto são "típicas" (v. 11): como as bên­çãos da redenção (do Egito) e do sustento miraculoso no deserto não os impediram de fracassar sob o julgamento de Deus por sua idolatria e pecado subseqüentes, assim o batismo e a comunhão com Cristo não impedirão o julgamento que viria sobre os crentes coríntios.

O escritor de Hebreus usa a linguagem do "tipo" de modo alta­mente distinto, muito influenciado pela filosofia helenística. A instru­ção dada a Moisés em Êxodo 25.40: "Vê, pois, e faze tudo conforme o modelo o modelo (tupos) que te foi mostrado sobre a montanha" - ca- pacita-o a fazer a amarração da escatologia das duas eras (a era presente

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e a era por vir, ou a era antiga e a era nova) com a cosmologia platônica dos dois mundos (o mundo celestial da realidade e o mundo terreno da cópia e sombra). O tabernáculo no deserto e seu ofício ritual eram mais uma "sombra" (Hb 10.1) ou "antítipo" (9.24) do santuário celes­tial. Mas Cristo agora entrou no santuário real e o abriu para os crentes. Ele é o sacerdote real e o sacrifício, e não mera cópia ou sombra. Quer dizer, como a era antiga foi a era da sombra e do antítipo, assim a nova era é a era da realidade e do tipo. Cristo baniu as sombras uma vez por todas e trouxe as realidades celestiais para a experiência terrena. O que os crentes experimentam agora é a coisa real - purificação real, acesso real à presença de Deus. Resumindo, o sacerdócio, o sacrifício, o santuário e a aliança do AT são tipos do ministério de Cristo e de suas bênçãos, sendo as primeiras somente uma cópia imperfeita da realida­de celestial. A realidade celestial se tornou a realidade da experiência cristã aqui e agora.

Outra ocorrência da palavra "antítipo" no NT está em 1 Pedro 3.20, onde o livramento de Noé é tomada como o tipo do batismo (o antítipo). A correspondência tipológica é estendida já que o livramen­to de um dilúvio não é totalmente típico do modo de Deus salvar os homens. O único elo real é a água envolvida tanto no dilúvio como no batismo cristão. E 1 Pedro, ao falar da salvação de Noé "através da água", força a correspondência. Aqui não estamos muito longe da exe­gese tipológica muito esquisita dos séculos posteriores.

Outros exemplos de exegese do NT implicando alguma forma de tipologia incluiriam a representação de Jesus como cordeiro pascal (Jo 19.36; ICor 5.7), como na verdade todas as imagens sacrificiais do NT em sua aplicação a Jesus. O risco é que quanto mais nós estendemos a série de correspondência tipológica entre AT e NT mais insignificante nós tornamos a idéia do tipo, e a proximidade da exegese tipológica se torna uma espécie de alegorização menos edificante.

5. Alegoria. Alguns eruditos indiscutivelmente negariam haver qualquer exegese alegórica no NT18. O juízo mais equilibrado é que existe alguma, mas não muita - ainda que se diga: o que há na maior parte difere marcadamente da alegorização de Filo. Os poucos exemplos

1 Cf. p.ex., A. T. H anson , "Studies in Paul's Technique and Theology", SPCK 1974, pp. 159-66. ’

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evidentes são 1 Coríntios 10.1-4; Gálatas 4.22-31 e talvez 2 Coríntios 3.7-18. A exegese de 1 Coríntios 10.1-4 baseia-se no reconhecimento de uma correspondência tipológica entre as situações dos israelitas no deserto e a dos cristãos em Corinto (ver acima pp. 173s). Mas isso tem traços alegóricos bem delineados: a passagem através do Mar Verme­lho é tomada como uma alegoria do batismo em Cristo ("batizados na nuvem e no mar em Moisés" = alegoricamente, batizados no Espírito de Cristo - cf. ICor 12.13); o maná e a água da rocha são alegorias da manutenção sobrenatural do cristão (pneumatikos no vv. 3-4 é quase equivalente de "alegórico" - cf. Ap 11.8); a própria rocha é uma ale­goria de Cristo (a alegoria é explicitamente decodificada pela primeira vez mediante a explicação: "A rocha era/=Cristo").19

Até mesmo mais evidente é Gálatas 4.22-31, onde Paulo explici­tamente, afirma permitir-se a exegese alegórica (v. 24). Aí a decodifi- cação é ligeiramente complexa, mas as dificuldades não afetam muito o sentido: Agar = a aliança da Lei do monte Sinai, a Jerusalém atual, gerando filhos na escravidão da Lei; Sara = a aliança da promessa, a Jerusalém de cima que é livre; Ismael = os filhos da Lei, aqueles que nasceram "conforme a carne"; Isaque = os filhos da promessa, aqueles que nasceram "conforme o Espírito".20

Eu já tratei de 2 Coríntios 3.7-18 sob o título de Midrásh a que per­tence mais aproximadamente (§22.2). Os traços alegóricos definidos devem ser encontrados no v. 14, onde Paulo descreve o véu sobre a face de Moisés como ainda a cobrir as mentes dos judeus quando hoje lêem a Lei: "O mesmo véu"! e o v. 17, onde Paulo dá a chave decodifica- dora para o verso de Êxodo 34 apenas citado - "'O Senhor'" (de quem

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19 Não há nenhuma referência à idéia de Cristo como pré-existente aqui. O verso 4c não pretende ser como uma declaração histórica, mas como a chave inter- pretativa para a compreensão da alegoria: "a rocha representava Cristo". Simi­larmente em G1 4.24 - "Sinai é (= representa) Agar"; e 2Cor 3.17 - "O Senhor é (=representa) o Espírito". O uso de um tempo passado em ICor 10.4c, como oposto ao tempo presente das duas passagens paralelas, não prejudica o para­lelo: "Sinai" e "o Senhor" são realidades presentes (bem como passadas) para Paulo, enquanto que "a rocha" pertencia somente ao passado histórico. Ver mais em D unn, Christology, pp. 183-4.

20 Cf. R. N. L ongenecker, Biblical Exegesis in the Apostolic Period. Eerdmans 1975. pp. 127ss. Um paralelo próximo ao método alegórico de G1 4.22-31 no judaís­mo contemporâneo é CD 6.3-11 (devo essa referência ao meu colega Dr. G. I. D avies).

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esta passagem fala) = o Espírito". 1 Coríntios 9.8-10 poderia também merecer o título de alegoria visto que Paulo parece tomar a injunção mosaica: "Não amordaçaras o boi que debulha o grão" (Dt 25.4), como um mandamento para as comunidade a fim de fornecer sustento para o apóstolo deles e para o outros missionários. A dispensa de Paulo do sentido literal da norma original faz com que 1 Coríntios 9.9s seja o que temos de mais próximo da alegorização Filônica no NT (cf. Ep. Aristeas 144).

§ 23. CITAÇÕES PESHER

Até agora a diversidade no uso cristão primitivo do AT simples­mente reflete a diversidade similar dentro da exegese judaica daquela época - e, podemos inferir, reflete uma proximidade semelhante de respeito para com a autoridade das Escrituras judaicas. Mas há outro tipo ou aspecto de exegese em Qumran e no NT que ajuda a focar e esclarecer as coisas para nós, e que, portanto, merece um tratamento separado.

No caso do midrásh, do pesher (e da alegoria) o texto do AT geral­mente é citado e, então, adiciona-se a interpretação. Mas nesse outro tipo de exegese a citação real do texto incorpora sua interpretação dentro da própria citação - o que talvez seja, portanto, melhor descrita como uma tradução targúmica ou (como eu prefiro) uma citação pesher. A incor­poração da interpretação dentro do próprio texto algumas vezes deixa o texto verbalmente inalterado, mas geralmente envolve modificação na forma do texto21.

1. Citações nos quais, ao texto, dá-se um sentido diferente do original, com pouca ou nenhuma alteração na forma do texto - por exemplo:

21 Está em discussão sobre se o mesmo é verdade do texto do Qumran sobre Ha- bacuc, ou se o texto de Qumran é simplesmente derivado de versões diver­gentes do hebraico. Ver p.ex., S tendahl, Matthew, p. 185-90; J. A. F itzmyer, "The Use of explicit Old Testament quotations in Qumran literature and in the New Testament", NTS, 7,1960-61, reimpresso em: Essays on the Semitic Background of the New Testament. Chapman, 1971, cap. 1; L ongenecker, Biblical Exegese, p. 39s; H organ , Pesharim, p. 245; B rownlee, Midrásh Pesher pp. 31-4.

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M iquéias 5.1: "M as tu, (Belém) Efrata, em bora o menor dos clãs de Judá, de ti sairá para mim aquele que será dom inador em Israel";

M ateus 2.6: "E tu Belém, terra de Judá, de m odo algum és a m enor entre os clãs de Judá".

H abacuc 2.4: "m as o justo viverá por sua fidelidade";LXX: "Ele que é justo viverá pela minha fé", isto é, a fidelidade de

Deus;Rom anos 1.17: "O justo viverá da fé".Salmo 19.4: "N ão há termos, não há palavras".Rom anos 10.18: "pela terra inteira correu a sua voz; até os confins do

mundo as suas palavras".

Provavelmente o exemplo mais surpreendente aqui seja o de Gálatas 3.16, que se refere a Gênesis 12.7 (LXX) - o pacto feito com Abraão e sua semente, isto é, seus descendentes. Paulo vale-se do fato de que a LXX usa sperma (semente) um singular coletivo, e o atribui a Cristo em sua interpretação. Tomar sperma (semente) como singular, com certeza, não faz nenhum sentido à promessa original; mas no debate de Paulo, com os judaízantes, esse tipo de exegese ra- bínica capacita-o a levantar a questão de modo a ganhar força com aqueles aos quais se endereça. Para outros exemplos veja Atos 1.20; 4.11; Romanos 12.19. Devemos também nos lembrar de passagens das Escrituras não tão obviamente messiânicas que são referidas a Jesus (o Filho amado dos Salmos, o Servo de Isaías, a Pedra), mas também passagens originalmente endereçadas a Yahweh (ver acima p. 129).

2. Citações onde o sentido do texto é significativamente modificado pela alteração da forma do texto - por exemplo, 2 Coríntios 3.16 (ver acima nota 15) e Ef 4.8 (SI 68.18).

Salmo 68.18: Efésios 4.8:

Subiste para o alto, capturando cativos, recebendo homens em tri­buto.

Tendo subido às alturas, levou ca­tivo o cativeiro, concedeu dons aos homens.

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No hebraico e na LXX o rei recebe dons de homenagem de seus cati­vos. Em Paulo o Jesus exaltado concede dons do Espírito aos seus discí­pulos. Há, contudo, também um targum sobre o Salmo 68 cujo verso se refere a Moisés e que parafraseia "recebeste dons" por "ele aprendeu as palavras da Torá, e as deu como dons aos filhos dos homens" 22. Conhecesse Paulo essa versão ou não, sua própria tradução targúmica é igualmente ousada.

Talvez o exemplo mais claro de citação pesher é Mateus 27.9-10 (Zc11.13, com as orações reorganizadas para facilitar a comparação).

Zacarias Mateus

E Iahweh me disse: "Lança ao fun- didor, esse preço esplêndido com que fui avaliado por eles!” Tomei os trinta ciclos de prata e os lancei na Casa de Iahweh para o funâi- dor.

E tomaram as trinta moedas de prata, o preço do Precioso, da­quele que os filhos de Israel ava­liaram, e deram-nas pelo campo do Oleiro, conforme o Senhor me ordenara.

No texto de Zacarias, o personagem principal é o profeta, "Eu"; as 30 moedas são o seu salário; ele as arroja na casa do Senhor. Em Mateus o "Eu" se torna "eles" (sacerdotes) e "aquele" (Jesus) - ain­da que por alguma razão Mateus retenha o "me" ao fim, conduzindo de modo estranho a citação a uma conclusão dissonante. As 30 peças de prata tornam-se o dinheiro de sangue pago a Judas. O depósito do profeta na casa do Senhor torna-se a compra do campo do oleiro pelos sacerdotes.

Note também que Mateus se refere a passagem a Jeremias embo­ra ele cite Zacarias. Provavelmente, porque ele queria incluir em sua citação uma referência a Jeremias. Dois incidentes famosos na vida de Jeremias foram: seu encontro com o oleiro e o seu ato profético de com­prar um campo (Jr 18-19; 32). Assim, o texto de Mateus deve ser consi­derado propriamente uma combinação de textos - primeiramente de Zacarias, mas com referência implícita a Jeremias.

22 M cN amara , Palestinian Targum, pp. 78i81.' t

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Outros exemplos de combinação de textos são Mateus 21.5, 13; Romanos 9.33; 11.8; 2 Coríntios 6.16-18; Gálatas 3.8; Hebreus 10.37s, 13.5.23

3. Em várias ocasiões a citação pesher envolve o desenvolvimento de um texto que não tem nenhum paralelo real. Um exemplo claro disso é Mateus 2.23. Não há nenhuma profecia que diga: "Ele será chamado Nazareno". Possivelmente o texto seja formado pela combinação de uma referência em Juizes 13.5 com uma referência a Isaías 11.1. Sansão é tomado como um tipo de Jesus - assim, "ele será um Nazireu" é re­ferido a Jesus; Isaías 11.1 fala de um ramo (nêzer) de Jessé. O pesher de Mateus nazõraios (Nazareno) é estabelecido por um jogo de palavras de nazir(aion) (Nazireu) e nêzer (ramo).24 Outros exemplos de citações, que não têm nenhum paralelo no AT e devem ser formadas por uma com­binação de referências e alusões são: Lucas 11.49; João 7.38; 1 Coríntios 2.9; Tiago 4.5 (cf. 5.14).

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§ 24. PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO

Gradualmente, torna-se claro que quando falamos do AT, den­tro do cristianismo primitivo, não estamos falando de algo em si mesmo. Quando falamos do uso AT pelo NT não falamos de uma ho­nestidade de uma correspondência e cumprimento que deu ao AT uma total autoridade objetiva. As duas últimas seções mostraram sem dúvida que as citações no NT do AT são interpretações do AT. O AT foi citado somente porque podia ser interpretado a favor do ponto em questão, em relação à situação tratada; e muito freqüen­temente essa interpretação só podia ser efetuada pela modificação na forma do texto. Resumindo, os primeiros cristãos se valiam do AT não tanto como uma autoridade independente, mas muito mais como uma autoridade interpretada.

23 Para outros exemplos de modificação de um texto em favor da interpretação veja L indars, Apologetic, p. 284; e para exemplos posteriores de citação pesher gnosticizada dos ditos de Jesus ver o Evangelho de Tomé (abaixo §62).

24 E. S chweizer, "Er Wird Nazaräer heissen", Neotestamentica, Zürich 1963, pp. 51-5.

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Então, quais são os princípios que governaram sua interpretação? A interpretação era inteiramente arbitrária? Ou a sua liberdade de in­terpretação estava restrita dentro de certos limites?

1. A primeira coisa a ser dita é que a escolha de um texto do AT como regra não é arbitrária. Os escritores do NT simplesmente não se aproveitavam de qualquer texto, ou criavam textos ex nihilo. Há uma virtualidade [potencialidade] nas passagens que citavam. São passagens na maioria das vezes aceitas como messiânicas (p.ex., SI 110.1), ou que à luz da vida real de Jesus têm em uma prima facie a alegação de serem messiânica (SI 22 e Is 53). Isso é verdade até para as alegorias de Gála- tas 4.22-31 e 2 Coríntios 3.7-18. Mesmo antes de o intérprete cristão realizar uma interpretação detalhada, era plausível tomar Ismael e Isa- que como imagens dos dois tipos de relação de Abraão, plausível até para tomar o brilho da face de Moisés como uma imagem da glória do pacto Mosaico. Igualmente nos casos de textos como Mt 2.23 e Jo 7.38; não apareceram por mágica, mas mesmo agora podemos fazer, com justiça, uma boa idéia de quais textos o autor tinha em mente - as dife­rentes passagens que foram o ponto de partida para o seu pensamento e se fundiram em sua mente para formar um texto novo. Resumindo, há certa virtualidade na escolha do texto interpretado.

2. A segunda, a interpretação era realizada de novo e de novo pela leitura da passagem do AT ou o incidente citado à luz do evento Cris­to, por considerá-lo do ponto de vista da nova situação renovada por Jesus e da redenção efetuada por ele. A técnica é melhor ilustrada em Gálatas 3.8; 4.22-31; 2 Coríntios 3.7-18 e Mateus 2.23.

Ora, tendo a Escritura previsto que Deus justificaria pela fé os gentios, preanunciou o evangelho à Abraão: Em ti serão abençoa­dos todos os povos (G13.8).

Abraão de fato não ouviu o próprio evangelho. A promessa: "Em ti serão abençoados todos os povos" pode ser chamada de "evange­lho" somente quando interpretada à luz de Cristo; somente porque foi cumprida em Jesus, em algum sentido, pode ser chamada de "o evangelho"; ele tira o seu significado como evangelho, para Paulo, de Jesus e de seus atos redentores. Assirft com Isaque e Ismael em Gálatas 4.

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O sentido que Paulo vê em seus nascimentos é inspirado de suas pró­prias categorias-chave - kata pneuma e kata sarka (segundo o Espírito, segundo a carne). Isaque e Ismael foram significantes, nesse ponto, porque puderam ser interpretados alegoricamente em termos do de­bate corrente. Igualmente o véu de Moisés referido em 2 Coríntios 3 não possuía o significado que Paulo vê nele para a antiga dispensação. Seu significado está inteiramente na nova dispensação - o véu de Moi­sés entendido e interpretado como o véu sobre os corações dos judeus de agora (2Cor 3.14 - é o mesmo véu). Em outras palavras, o sentido que Paulo acrescenta ao véu não foi tão retirado do texto, quanto o foi de sua própria teologia. Similarmente no caso de Mateus 2.23. O texto: "Ele será chamado Nazareno" não teria emergido de Jesus ser proveniente de Nazaré. Nem Nazireu ou nêzer (ramo) em si mesmos ou juntamente sugerindo "Nazareno". A interpretação emergiu muito mais como tradição do evangelho do que do AT. Resumindo, podemos ver aqui algo da extensão para qual a interpretação do AT foi determinada pelo presente e não pelo passado.

3. Já podemos dizer, simplesmente, qual era o princípio de in­terpretação, como a citação pesher foi conseguida. O pesher emergiu da união de um texto dado com uma tradição do evangelho dada. Possivelmen­te o processo é melhor ilustrado no caso de Mateus 27.9s. Primeiro, existe a virtualidade do texto em Zacarias. Zacarias 11 é inquestiona­velmente messiânico: fala do rebanho e do pastor. O rebanho presu­mivelmente é Israel. O pastor é o próprio profeta que sob o comando de Deus se torna o pastor. Ele fala sempre na primeira pessoa. Isso é claramente messiânico e foi aceito como tal. Então, em primeiro lugar, havia uma passagem messiânica. Segundo havia a tradição do evento Jesus e a crença cristã de que Jesus é o Messias. Isso envolvia a crença de que as escrituras messiânicas eram cumpridas em Jesus. Então havia um impulso natural para unir a passagem messiânica e a tradição-Jesus.

Nesse caso a relevância imediata da profecia de Zacarias para a tradição-Jesus é clara. Em Zacarias 11o pastor de alguma maneira fra­cassa e é rejeitado pelo rebanho, e aí se fala das 30 moedas de prata como seu salário/preço. Na tradição-Jesus o Messias é rejeitado por Israel e traído por 30 siclos de prata. Então, evidentemente houve um óbvio e imediato "encaixe" entre a profecia do AT e a tradição-Jesus.

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Além disso, em Zacarias o pastor lança o dinheiro no Templo e o he­braico adiciona "ao oleiro" (siríaco - tesouro); e isso pode ser explicado pela referência a Jeremias, famoso por sua associação com um oleiro e por comprar um campo como ato profético. Na tradição-Jesus, Judas arremessa 30 siclos de prata no Templo e essas são usadas para com­prar um campo do oleiro.

Evidentemente os pontos de contato entre Zacarias/Jeremias e a tradição-Jesus relacionada a Judas são suficientemente próximas para jus­tificar a conclusão que esses eventos foram o cumprimento da profecia Zacarias/Jeremias. Se isso estiver de acordo, então é meramente um assunto de manobrar os detalhes exatos de um até se encaixar mais ou menos com os detalhes exatos do outro. No evento isso envolve aplicar algumas ações aos diferentes atores; deixar certos detalhes de lado (Ju­das realmente não aparece no pesher - introduzi-lo complicaria muito o pesher)-, incorporar certos elementos de Jeremias em Zacarias para fazer um todo comum; omitir detalhes que não se correlacionam ("então, o Senhor me disse").

O assunto todo - da citação pesher - requer com certeza uma análi­se mais completa. Mas Mateus 27.9s pode ser o exemplo mais claro de um texto do AT que quando citado deve muito mais a intenção teoló­gica do escritor do NT do que a qualquer versão alternativa existente que lhe estivesse disponível. Tivéssemos mais espaço o procedimento poderia ser ilustrado por vários outros exemplos mostrando como é comum o texto do AT e a tradição-Jesus original juntos formarem um texto novo, um texto interpretado, ou dar ao texto original um sentido que suas palavras originais dificilmente comportariam25.

4. A importância da situação do intérprete para a sua interpreta­ção é, além disso, ilustrada pelo fato de que em alguns casos o mesmo texto do AT é interpretado diferentemente pelos diferentes escritores do NT. Por exemplo, (1) Gênesis 15.6. Como vimos Paulo cita Gênesis 15.6

25 Ver p.ex., R. S. M cC onnell, Law and Prophecy in Matthew's Gospel: the Authority and Use o f the Old Testament in the Gospel o f St Matthews, Basel 1969, particu­larmente as pp. 135-8; E. D. F reed, "Old Testament Quotations in the Gospel of John", SNT, XI, 1965; E. E. E llis, Paul's Use o f the Old Testament, Eerdmans 1957 - quase 20 citações do AT parecem ser "uma adaptação deliberada para o contexto do NT" (p. 144); S. K istemaker, The Psalm Citations in the Epistle to the Hebrews. Amsterdam 1961.

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como prova de que Abraão foi justificado pela fé somente e não pelas obras (Rm 4.3ss.; G1 3.6). Mas Tiago cita a mesma passagem para pro­var quase o que precisamente o oposto! - que Abraão foi justificado pelas obras e não pela fé somente (Tg 2.23; ver mais abaixo pp. 377ss).(2) Salmo 2.7 - no sermão de Paulo em Antioquia da Pisídia ele se refere à ressurreição de Jesus (At 13.33; assim provavelmente Hb 1.5;5.5); mas nos sinóticos é referido à experiência de Jesus de descer sobre ele o Espírito no rio Jordão (Mc 1.11 par.; ver também abaixo p. 237).(3) Isaías 6.9s. - "Podeis ouvir certamente, mas não haveis de entender; podeis ver certamente, mas haveis de compreender..." - a explicação clássica para a descrença dos judeus. Como B. Lindars observa:

Em João 12.39s aparece com o a razão porque a resposta à mis­são de Jesus, especialmente aos seus sinais, foi tão pequena; em Atos 28.25-28 sugere a m udança de política de Paulo, voltando-se dos judeus para os gentios; enquanto em M arcos 4.11s. e paralelos é antecipada com o a razão para o m étodo de nosso Senhor do en­sino em parábolas. Todas, certam ente, se ocupam em responder.M as nenhum a delas é quase a m esm a coisa, e do ponto de vista da apologética o exemplo m arcano se desviou para um cam po inteira­mente diferente26.

(4) Isaías 8. 14-18. Isaías 8.14s. é uma das famosas passagens da "Pedra", em que Yahweh é retratado como uma pedra de tropeço e rocha de ofensa. Romanos 9.33 e 1 Pedro 2.8 referem essa passagem a Jesus: Jesus é igualado a Yahweh, a pedra. Isaías 8.17s fala da con­fiança de Isaías em Yahweh e dos filhos que Yahweh lhe deu. Hebreus 2.13 refere essa passagem a Jesus: a confiança de Isaías em Yahweh é vista como a confiança de Jesus em Yahweh. Em outras palavras, dentro de cinco versos Jesus é identificado tanto com Yahweh como com Isaías em sua fé em Yahweh. (5) Daniel 7.13 - Perrin argumenta que o NT preserva traços das três tradições exegéticas usando Daniel7.13, durante o qual a aplicação de Daniel 7.13 é gradualmente trocada da ascensão para a parusia 27Certamente isso é plausível (ainda que eu não esteja inteiramente convencido disso). (6) Mais clara é a troca na aplicação de Zacarias 12.10 da parusia (Mt 24.30; Ap 1.7) para a

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26 L indars, Apologetic, p. 18.27 P errin, Teaching, pp. 173-84.

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apologética da paixão (Jo 19.37). (7) Compare também o Salmo 110.1 que, geralmente, é usado da sessão de Jesus à mão direita de Deus (p.ex. Mc 14.62; At 2.33-35; Cl 3.1; Hb 8.1), mas também em apoio de tí­tulos cristológicos particulares (esp. Mc 12.35-37; At 2.33-36; 7.56), para afirmar a sujeição das potestades a Cristo (esp., ICor 15.25) e em consi­deração à intercessão celestial de Jesus (Rm 8.34; cf. Hb 7.25).28

5. Os exemplos mais claros do modo como a revelação do AT era interpretada pela revelação de Jesus são aqueles casos onde o AT é na verdade afastado ou abandonado - casos onde a nova revelação estava em conflito com a antiga por mais que a interpretação pudesse reconciliar as duas e o antigo desse passagem e permanecesse anulada.

Vemos isso acontecendo com Jesus, onde Jesus evidentemente situa sua própria revelação e discernimento da vontade de Deus contra a Torá - não apenas a Torá oral (ver acima §16.2), mas até mesmo a Torá escrita. Assim em Mt 5.12s, 27s ele se situa como o intérprete determinante da Lei, propondo uma interpretação mais radical do sexto e sétimo mandamento. E em outras passagens, reunidas no sermão do monte, ele não reinterpreta meramente a Lei, ele radicalmente a qualifica; em Mateus 5.33-37 ele, com efeito, deixa de lado todas as normas sobre os juramentos (Lv 19.12; Nm 30.2; Dt 23.21), e em Mt 5.38-42 ele revoga a ius talionis (Ex 21.24; Lv 24.20; Dt 19.21). Em Marcos 10.2-9/Mateus 19.3-8 ele desvaloriza a permissão mosaica para o divórcio (Dt 24.1). Talvez mais surpreendente ainda, seu ensino sobre as causas de im­pureza como registradas em Marcos 7, com efeito, corta pela raiz toda a lei ritual (como Mc percebe - 7.19b). Com certeza, a abertura de sua mesa comunhão ao "pecador" tinha o mesmo efeito - daí a obstinada oposição farisaica a Jesus29.

Um exemplo instrutivo de reinterpretação radical é o ataque de Estêvão ao Templo (At 7 - em esp. vv. 41-50). Parece inspirado pela tradição do dito de Jesus a respeito da destruição e reconstituição do Templo (At 6.14), um dito aparentemente ignorado ou interpretado de outra maneira pelos crentes de Jerusalém (ver acima p. 154). Parece que ele lê a história do culto de Israel à luz desse dito, produzindo o que

28 H ay, Glory, pp. 155-88; D un n . Christology, pp. 108-110. Para mais exemplos cf. L indars, Apologetic, sumário nas pp. 251-9.Ver meu "Jesus and Ritual Purity" (acifàa cap. IV, nota 7).

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é de fato uma interpretação altamente tendenciosa daquela história. Ao usar Isaías 66.Is., uma das poucas passagens do AT que parecem denunciar a raiz e o ramo do Templo, ele argumenta, com efeito, que a edificação do Templo no primeiro lugar, permanente, santuário esta­cionário, foi a marca da apostasia de Israel de Deus - e que a despeito de 2 Samuel 7.13, etc. (ver mais completamente abaixo pp. 402s). Em outras palavras, ao observar o AT à luz das palavras de Jesus Estêvão usou uma parte das Escrituras para justificar o abandono do ensino claro de muitas outras passagens das Escrituras.

Paulo, certamente, fornece alguns dos exemplos mais claros de um cristianismo do séc. I que rejeitou e abandonou muito de sua he­rança judaica, muito no AT que os judeus (judeus cristãos) considera­vam como ainda de força comprometedora e de relevância. Em par­ticular, o papel central da Lei no judaísmo: "Cristo", ele diz, "é o fim da Lei como um instrumento para a justiça"; a prescrição Mosaica de Levítico 18.5 ("nomismo pactuai da aliança" - Sanders) não é mais válida - Deuteronômio 30.12-14 é mais uma questão. E ele continua interpretando o que também foi pretendido como um encorajamen­to ao observador da Lei (Dt 30.11, 14), em termos de justiça/salvação mediante a fé (Rm 10.4-9)! Em outras palavras, a Lei era somente tem­porária, um tipo de "baby-sitter" até a vinda da fé (G1 3.19-25). Mas agora com a vinda da fé, agora que Cristo veio a Lei foi abolida e deixada de lado (2Cor 3.13s.; Ef 2.15).

Em todos esses casos Jesus e os seus seguidores, evidentemen­te, achavam-se tão estranhos em relação ao sentido evidente de certas passagens-chave e temas das Escrituras a ponto de eles se apartaram dos mesmos, consideraram que seu período de validade tinha passa­do. A experiência de Cristo, a liberdade trazida por Cristo requeria tal interpretação radical do AT que algumas de suas funções revelatórias teriam de ser consignadas a uma era morta e que se fora.

6. Outro tema merece uma breve consideração. Vimos em que extensão a revelação do passado estava subordinada à revelação do presente no cristianismo primitivo. A tendência oposta também era real? Os elementos realmente foram introduzidos nas tradições cor­rentes a fim de fornecer uma correspondência com o cumprimento das expectativas ou temas do AT? Em particular, desejavam estabe­lecer "a prova da profecia" que resultasse na criação de detalhes na

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tradição-Jesus, como vários eruditos desde D. F. Strauss em diante sugeriram?30

A dificuldade em testar essa hipótese é a de que muitos dos de­talhes em questão são muito breves e aparecem somente no contexto de cumprimento (p.ex., a tradição da crucifixão - Marcos 15.36 (= SI 69.21?); Lucas 23.46 (= SI 31.5?); João 19.33 (= SI 34.20?); etc. Por conse­guinte, não se pode determinar se tais detalhes já estivessem presentes na tradição (ou na memória da testemunha-ocular) independentemen­te da prova do motivo-profecia. Todavia, em casos nos quais algum tipo de verificação pode ser feita a evidência sugere que a tendência para criar a tradição-Jesus fora da expectação messiânica estava limitada. O assunto novamente requer um tratamento muito mais extenso; aqui podemos dar somente um ou dois exemplos breves.

Um exemplo claro do detalhe criado fora da profecia é o relato de Mateus da entrada de Jesus em Jerusalém montando tanto a jumen­ta e o jumentinho de Zacarias 9.9 (Mt 2.2-7; compare com Mc 11.2-7). Mas isso é um caso trivial. Mais importante, porém, os exemplos mais polêmicos seriam: a localização do nascimento de Jesus em Belém e o próprio nascimento virginal. Há diversas indicações de que Jesus teria nascido em outro lugar (Nazaré sendo a alternativa mais óbvia) - por exemplo, a questão substancial vai contra a historicidade de um censo romano que afetou a Galiléia e teve lugar antes da morte de Herodes o grande (Lc 2.1ss.), e a sugestão em Mc 12.35-37 de que Jesus ou os primeiros cristãos teriam questionado a crença de que o Messias teria de ser da descendência de Davi (cf. Barn. 12.10s.). Embora seja pertur­bador, o historiador cristão, no entanto, não pode ignorar a possibili­dade de que toda narrativa do nascimento em Belém provém, no fim das contas, da convicção de Jesus o Messias deveria ser apresentado cumprindo Miquéias 5.2. De fato, muitos eruditos cristãos se sentem desconfortáveis para negar ou ignorar a possibilidade (até mais per­turbadora para a fé cristã tradicional) de que a narrativa da concepção virginal de Jesus originou-se do desejo apologético de mostrar Jesus como o cumprimento tantas profecias do AT quanto fosse possível (no caso, Is 7.14).31

3° V er p.ex., B ousset, Kyrios Christos. pp. 106-15.31 Ver p.ex., a discussão em L indars, Apologetic, cap. V; R. E. B rown, The Virgin­

al Conception and Bodily Ressurrection o f Jesus. Chapman 1973, cap. I; também:

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Por outro lado, dois exemplos importantes de uma das áreas mais discutidas (a narrativa da paixão) apontam na outra direção. Nosso estudo de Mateus 27.9s acima (pp. 181ss) evidentemente in­dica um processo pelo qual a profecia do AT e a tradição-Jesus são colocados juntos e casados, a forma de tradição-Jesus se impõem ria citação do AT. Com certeza um cumprimento mais preciso poderia ter sido realizado pela alteração ou criação de detalhes na tradição de Judas. Mas isso aconteceu no máximo com a especificação do preço do sangue como trinta siclos de prata (Zc 11.12). Fora isso, os detalhes da profecia do AT não levam a uma reformulação da tradição-Jesus - antes o inverso. Nesse caso, pelo menos, a prova da profecia-motivo não significa a subordinação da tradição-Jesus ao Antigo Testamento.

O outro exemplo é a narrativa do Getsêmani (Mc 14.32-42 e pa­ralelos). M. Dibelius reivindicou que essa tradição foi amplamente de­terminada pelo desejo de apresentar Jesus como o mártir ideal cujos sofrimentos correspondem àqueles falados pelo salmista32. Mas os vv. 33, 35, dificilmente, são como o martírio, e o v. 34 contêm somente um eco do Salmo 42.5,11; 43.5. Mais importante, a prece real em si (v. 36) não está emoldurada nas palavras dos Salmos. Aqui, novamente, a explicação mais provável é a que temos uma autêntica tradição-Jesus que permitiu uma correlação com a linguagem do AT, mas que em nenhum ponto significativo foi determinado por ela.

Resumindo, a evidência sugere que onde a tradição-Jesus já estivesse em circulação e fosse aceita ela serviria como constatação e limitação sobre qualquer tendência de suplementá-la com detalhes ou itens de profecias mes­siânicas do AT. Mas onde a sólida tradição-Jesus fosse escassa ou au­sente aí haveria mais potencial para aqueles apologistas cristãos que entendiam ser importante apresentar Jesus como aquele que cumpriu

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The Birth o f the Messiah, Chapman, 1977, pp. 517-33; J. A . F itzmyer, "The Vir­ginal Conception of Jesus in the New Testament", Theological Studies, 34, 1973, pp. 541-75; J. D . G. D unn (com J. P. M ackey), New Testament in Dialogue, SPCK 1987, pp. 65-71. Sobre a possibilidade de que "ao terceiro dia" de ICor 15.4 foi moldada por ou mesmo derivada da atual exposição judaica de Oséias 6.2, ver H. K. M cA rthur, "On the Third Day", NTS, 18,1971-71, pp. 81-6.

32 M. D ibelius, "Gethsemane", Botschaft und Geschichte, I, Tübingen 1953, pp. 258- 71. Mas ver também D . J. Moo, The Old Testament in the Gospel Passion Narratives, Almond, 1983, pp. 245-6.

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a expectativa do AT completamente, em cada ponto de sua vida, desde o nascimento até a ressurreição (ver também acima p. 107, nota 8).

§ 25. CONCLUSÕES

É óbvio que as Escrituras judaicas eram importantes para o cristianis­mo judaico; era importante para os primeiros cristãos estabelecer continuidade entre o AT e sua nova 'fé, para identificar Jesus com as figuras messiânicas profetizadas. Se Jesus não tivesse cumprido nenhuma das esperanças do AT, então presumivelmente uma de duas coisas teria acontecido: ele não teria seguimento duradouro, ou os seus discípulos teriam aban­donado o AT mais ou menos in Toto desde o primeiro momento. Mas Jesus cumpriu muitas profecias, ou pelo menos muitíssimas das passa­gens do AT podem ser referidas a ele com pouca dificuldade. Conse­qüentemente, o AT também era valioso como meio para avaliar Jesus e para apresentá-lo aos compatriotas judeus para ser ignorado.

Desse modo se desenvolveu dentro do cristianismo primitivo o processo interpretativo pelo qual o texto do AT e as convicções cristãs a respei­to de Jesus foram unidos. Um não dominou inteiramente o outro, impon­do seu sentido completamente sobre o outro, submergindo o outro. Mas também não se misturaram completamente. Havia correlações consideráveis, e algumas passagens podem ser tomadas diretamente sobre a outra com o mínimo de reajuste. Porém, geralmente, as Escritu­ras judaicas tiveram de ser adaptadas em alguma medida à luz da tradi­ção-Jesus, à luz de sua estimativa e fé em Jesus, à luz da nova situação que ele trouxe. A adaptação foi algumas vezes somente no sentido dado ao texto. Mas, com freqüência, envolvia alguma modificação do próprio texto também, algumas vezes uma considerável modificação e combina­ção de textos diferentes. E, algumas vezes significou abandonar vários preceitos integrantes para a religião do AT, tendo sido substituídos completamente pela tradição-Jesus.

Portanto, podemos concluir que as Escrituras judaicas permane­ciam como autoridade, particularmente para os cristãos judeus, mas não em si mesmas, somente quando interpretadas. Para muitos outros dos primeiros cristãos temos de salientar que: as Escrituras judaicas per­maneciam como autoridade somente na medida em que poderiam ser ade­quadamente re-interpretadas pela e em relação à nova revelação de Jesus.

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O evento Jesus, a tradição-Jesus, a crença no Jesus exaltado, a nova experiência do Espírito - esses eram os elementos determinantes no processo de interpretação. Nisso os cristãos primitivos puderam rei­vindicar serem verdadeiros seguidores de seu Mestre. Pelo mesmo respeito para com as Escrituras judaica combinado com uma liberda­de soberana para com ela à luz de sua própria experiência de Deus e do Espírito de Deus refletida no respeito dos cristãos primitivos para com o AT combinado com uma liberdade radical ao interpretá-lo à luz do evento Cristo.

Resumindo, nos termos do nosso estudo da unidade e da diver­sidade, temos de concluir que o AT forneceu um vínculo de unidade dentro do cristianismo do séc. I - mas não o AT como tal, não o AT em si mesmo, antes o AT interpretado. Foi o AT como interpretado à luz da revelação de Jesus que auxiliou a unificar as diferentes igrejas no séc. I - assim como foram suas diferenças de interpretação que de novo sustentaram a di­versidade dentro do cristianismo do séc. I. Jesus novamente se coloca no centro - as tradições a seu respeito e a relação presente dos cristãos com ele mediante o Espírito. Portanto, o AT não rivaliza com Jesus como o fundamento da unidade cristã, pois os primeiros cristãos liam- no somente da perspectiva da revelação de Jesus. Assim, serviu como uma introdução indispensável e complemento à tradição-Jesus e à tra­dição kerygmática, crucial para sua própria auto-identidade emergente, uma ferramenta apologética vitalmente importante, particularmente na missão judaica. Mas onde a antiga revelação não se encaixasse com a nova havia pouca questão para a tendência dominante do cristianis­mo do séc. I, mas a antiga tinha que ser adaptada à nova ou mesmo ser abandonada33.

Aqui, naturalmente, uma questão contemporânea se suscita na forma de corolário. Pode ser colocada simplesmente do seguinte modo:

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33 Cf. B. L indai« , "The Place of the Old in the Formaüon of New Testament Theology", NTS, 23, 1976-77: "O lugar do Antigo Testamento na formação da teologia do Novo Testamento é aquele de um servo, pronto para correr para ajudar o evan­gelho seja onde for requerido, fortalecendo os argumentos, e completando o sentido mediante alusões evocativas, mas nunca agindo como o senhor ou con­duzindo o caminho, nem mesmo guiando o processo do entendimento atrás das cenas. A nova palavra de Deus, o "sim ", o "agora", do evangelho é Jesus, que rebaixa as Escrituras do Senhor para servo, assim como ela troca a base da religião da Lei para a graça" (p. 66).

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se os primeiros cristãos assim manusearam suas Escrituras, como deveriam os cristãos atuais tratar as Escrituras de hoje? A aceitação da inspiração divina do AT por Jesus e pelos primeiros cristãos é com freqüência tomada como paradigmática para a aceitação dos cristãos da inspiração divina de toda a Bíblia. Não deveríamos adi­cionar que a liberdade de interpretação de Jesus e dos primeiros cristãos do AT é paradigmática para a interpretação do NT pelos cristãos atuais? Essas são questões às quais precisamos retornar no capítulo da conclusão.

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C a p í t u l o V I

CONCEITOS DE MINISTÉRIO

§ 26. INTRODUÇÃO

Como, frequentemente, tem sido ressaltado, a emergência e con­solidação da ortodoxia no séc. II dependiam amplamente de dois fa­tores: o desenvolvimento da idéia de uma regra de fé (particularmente Tertuliano) e a emergência do episcopado monárquico. Em que me­dida tais desenvolvimentos do séc. II estavam enraizados no séc. I? Os últimos quatro capítulos, com efeito, procuraram responder a ques­tão em relação à regra de fé. Viu-se em alguma medida que tanto a uni­dade como a diversidade da fé cristã do séc. I chegou à expressão no kerygma, na confissão, na relação à tradição e no papel das Escrituras. Concluímos que o foco da unidade estava muito menos cuidadosa­mente definido e que a diversidade era muito mais ampla do que po­deríamos ter esperado.

Agora precisamos nos voltar ao segundo fator decisivo para a or­todoxia do séc. II - o episcopado monárquico. Sabemos, com certeza, que na época de Cipriano o bispo era o foco real da unidade e o baluarte contra a heresia. Mas tão cedo quanto Inácio, encontramos a seguinte exortação:

Segui todos ao bispo, com o Jesus Cristo segue ao Pai... Sem o bispo, ninguém faça nada do que diz respeito à igreja... Onde apa­rece o bispo, aí esteja a m ultidão, do m esm o m odo que onde está Jesus Cristo, aí está a igreja Católica. Sem o bispo não é permitido batizar, nem realizar o ágape. Tudo o que ele aprova, é também agradável a Deus, para que seja legítimo e válido tudo o que se faz (InEsm , 8.1-2).

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Esse é o séc. II, começo do séc. II, e de qualquer maneira ainda não é o típico do séc. II como um todo. Mas, de fato, a exaltação do bispo por Inácio é o lado delgado de uma larga cunha.

O que dizer do séc. I? Quais conceitos de ministério emergem aí? Qual era o foco de autoridade dentro da vida cotidiana das igrejas primitivas? Já havia no séc. I, talvez mesmo no começo, um esquema padrão de ministério, que servisse para ligar as congregações cristãs primitivas em uma unidade? Tais questões têm sido debatidas vigo­rosamente nos últimos 100 anos ou mais, particularmente nos 50 anos que abrangem o final do séc. XIX e começo do XX1. Uma maneira de tentar resolvê-las seria rever as diferentes posições discutidas durante o período; mas talvez uma maneira mais simples de responder essas questões seja examinar os diferentes escritos e períodos abarcados pe­los documentos do NT para descobrir que forma ou formas de minis­tério se refletem aí.2

§ 27. JESUS E SEUS DISCÍPULOS

Havia diversos grupos dentro do judaísmo no tempo de Jesus. Os saduceus, com efeito, era o partido político dominante, o " esta­blishment" aristocrático e conservador. Muito mais que uma organi­zação sectária, permanecendo basicamente um partido político-re- Iigioso, os zelotes, que apareceram mais tarde, eram nacionalistas, fervorosos e preparados para realizar seus objetivos mediante a vio­lência. Em algum lugar em meio a esse espectro religioso-político vieram os fariseus; mas eles estavam muito mais preocupados com a tarefa de interpretar a Torá do que com fazer política. Certamente era um partido distinto (fariseus = os separados?), mas não estri­tamente organizado como tal, mais caracterizado por uma série de relacionamentos mestre-discípulo. O dos essênios, por outro lado, estava em um meio-termo entre o estilo dos fariseus e o dos zelotes no espectro do judaísmo sectário, sendo muito mais organizados

1 Ver O. L inton , Das Problem der Urkirche in der neuren Forschung, Uppsala 1932.2 Para as discussões e discordâncias subjacentes §§27, 28, 29, 30.1 e 31.1 abaixo,

ver as notas em: D unn, Jesus, particularmente §§13.4,32.3, cap. IX e §§57.3 e 58.3 respectivamente.

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C on ceito s de M in istério 193

internamente e formando uma comunidade rigorosamente estrutu­rada em Qumran.

Onde Jesus e seus discípulos se encaixam dentro desse contex­to? Provavelmente o paralelo mais próximo do relacionamento de Jesus com seus discípulos seja aquele do rabi e de seus aprendizes. Isso se deve ao fato de que Jesus era amplamente conhecido como um mestre, que possuía discípulos (Mc 9.5,17, 38; 10.17, 35, 51; etc.). Mas podemos continuar a falar da comunidade de Jesus?3 Podemos dizer que a igreja mais tarde já se espelharia nos discípulos reunidos em torno de Jesus? Jesus considerava seus discípulos como uma comuni­dade? A evidência mais clara em favor de uma resposta é a seguinte. (1 )0 uso de ekklêsia (assembléia do povo de Deus, mais tarde "igreja"- Mt 16.18; 18.17). (2) Ele escolheu Doze discípulos, e considerava os Doze em algum sentido representante de Israel (doze tribos - note particularmente Mt 19.28/Lc 22.29s). (3) Ele falou de seus discípulos como rebanho de Deus (Lc 12.32; cf. Mt 10.6; 15.24; Mc 14.27 par.; e as metáforas do pastor), uma metáfora para Israel que aparece várias vezes na literatura judaica (Is 4.11; Ez 34.11-24; Mq 4.6-8; 5.4; SI de Salomão 17.45). (4) Jesus entendia seus discípulos como uma família (Mc 3.34s.); os discípulos eram aqueles que tinham se convertido e se tornaram como filhos pequenos, membros da família de Deus bem como participantes de seu reino (Mt 18.3). (5) Na última ceia Jesus, explicitamente, descreveu o companheirismo em termos da (nova) aliança (Mc 14.24 par.; ICor 11.25); quer dizer, ele via seus discípulos como "membros fundadores" da nova aliança, como o novo Israel (ver mais abaixo p. 272). (6) Também devemos notar o grau implícito de organização entre os seguidores de Jesus mostrado por Lucas 8.3 e João 12.6. De modo que há base para falar de uma comunidade de Jesus, ou da comunidade em torno de Jesus.

3 "Comunidade" não é uma palavra ideal para esta discussão, mas é difícil encontrar uma melhor; "congregação" ou "seita" sofrem até de maior fraqueza. A questão que se levanta aqui é se o discipulado ao qual Jesus chamava, envolvia não somente relações de aceitação mútua, perdão e serviço, mas uma organiza­ção estruturada com claros limites e demarcação de função (tais como encontra­mos nas igrejas pós-pascais). O melhor tratamento do tema é o G. L ohfink, Jesus and Community, Fortress/SPCK 1985 (tradução brasileira: Como Jesus Queria as Comunidades, Paulinas 1987). Ver também o meu Jesus and the Discipleship, Cam­bridge University, 1990.

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Contudo, outras considerações apontam em uma direção dife­rente. {a) O discipulado de Jesus não implicava união de algum tipo que po­deria ser apropriadamente chamada de uma comunidade. Não há nenhuma linha divisória clara entre aqueles que realmente deixavam seus lares para seguir Jesus e o círculo mais amplo de discípulos que incluíam muitos residentes: o direito de ser parte da família de Jesus dependia de se fazer a vontade de Deus, não de seguir Jesus (Mc 3.35). Simi­larmente, a oração do Senhor não era um emblema de uma comuni­dade eclesiástica fechada, mas a oração de todo aquele que desejas­se verdadeiramente a vinda do reino de Deus. Mais uma vez, Jesus não praticava nenhum ritual que distinguisse seus discípulos de seus contemporâneos. Ele abandonou o batismo de João, presumivelmen­te porque não queria que qualquer ato cúltico ou ritual se tornasse um obstáculo ou barreira a ser superado. Com certeza, sua prática de comunhão de mesa não era em nenhum sentido um ritual ou ce­rimônia de que os não-discípulos estavam excluídos (ver mais abaixo §§39.3, 40.1). Era justamente a abertura do círculo em torno de Jesus o que distinguia o seguimento de Jesus tão claramente da comunidade de Qumran4. Jesus não "fundou" nenhuma igreja nova; pois não há nenhuma salvação por se entrar em uma sociedade religiosa, ainda que, radicalmente transformada5.

(b) O papel dos discípulos como o novo Israel parece ter sido reservado para o futuro, um papel que ainda não foi desempenhado. Isso seria um traço do tempo iminente do fim, parte da nova aliança, a nova era que Jesus acreditava ser iniciada por sua morte e vindicação (cf. abaixo pp. 326). Assim, mais claramente com os Doze (Mt 19.28, Lc 22.29s), seu papel como os Doze, enquanto Jesus ainda estava presente, era somente simbólico do futuro povo escatológico de Deus. Não há nenhuma evidência que eles fossem considerados como funcionários, muito menos uma hierarquia, constituindo uma comunidade reunida em torno de Jesus na Palestina (note-se Mt 23.8; Mc 10.43s.). Em parti­cular, não há nenhum indício, deles desempenhando o sacerdócio aos outros discípulos laicos. O poder ou autoridade que eles exerciam não

4 J. J eremias, New Testament theology: Vol. 1 - The Proclamation o f Jesus, 1971, ET S C M Press 1971, pp. 174-8. (J. J eremias, Teologia do Novo Testamento: Vol. 1 - A Proclama­ção de Jesus, Teológica/Paulus 2004, pp. 177-82).

5 E. S chweizer, Church Order in the New 'Testament, 1959, ET S C M Press 1961, §2c.

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estava dentro da edificação de uma comunidade de discípulos, mas se dava por capacitá-los a partilhar a missão de Jesus (Mc 3.14s; 6.7 pars.; Lc 10.17ss.) Se uma palavra precisa ser escolhida para descre­ver os círculos em torno de Jesus esta seria "movimento" ao invés de "comunidade".

(c) É importante perceber que esse movimento centrava-se e de­pendia inteiramente e somente do próprio Jesus. Discipulado signifi­cava seguir Jesus. Ele sozinho era profeta e mestre. A única autoridade real, o único ministério real era ele. E se ele motivava seus discípulos em algumas ocasiões, pelo menos, a exorcizar demônios e a pregar as boas novas do reino, isso não era mais que Jesus realizando sua missão por procuração. Não havia nenhuma comunidade como tal funcionan­do paralelamente ou em torno de Jesus, mas havia somente grupos maiores e grupos menores de discípulos, quer observando ou atrapa­lhando ou tendo uma pequena participação em sua missão.

Parece mais sábio, portanto, deixar âe falar da comunidade de Jesus ou da comunidade em torno âe Jesus. Qualquer conceito ou padrão de ministério precisa ser derivado somente de Jesus, visto que não pode ser derivado dos discípulos ou dos Doze. E se escolhermos falar dos discípulos de Jesus como a igreja, então nós devemos reconhecer o caráter de igreja denotado aí - isto é, um grupo ou grupos de discípulos reunidos em torno de Jesus com cada um, individualmente e juntos, dependendo diretamente de Jesus somente para todo o ministério e ensino.

§ 28. MINISTÉRIO NA COMUNIDADE PRIMITIVA

Duas imagens do ministério dentro da igreja primitiva palestinen- se são possíveis. Ambos derivados da leitura de Atos: um parece mais direto, porém, provavelmente, mais inventado; o outro é menos óbvio, mas provavelmente mais histórico.

1. Na primeira visão os Doze apóstolos constituíam a liderança da comunidade de Jerusalém desde o primeiro momento e supervisiona­va sua missão - sendo Matias divinamente eleito (por sorte) para res­taurar o Doze apostólico depois da deserção de Judas (p.ex. At 1.15-26;

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2.42s; 4.3-37; 6.2, 6; 8.1,14; 15.22). Em um estágio inicial a sua função foi suplementada pela indicação de sete outros para uma função secun­dária de realizar algumas das funções administrativas dos apóstolos (At 6.1-6) - assim como Moisés havia indicado setenta para partilhar suas responsabilidades administrativas (Nm 11.16-25) e Jesus indicou setenta para assisti-lo em sua missão (Lc lO.lss.). "Anciãos" são pri­meiramente mencionados em At 11.30, mas depois disso aparecem em diversas ocasiões, exercendo autoridade juntamente com os apósto­los (particularmente At 15.2, 4, 6, 22s.). Dessa leitura, então, em uma data antiga a trilogia ministerial foi rapidamente estabelecida: bispo (sucessor de apóstolo), sacerdote (= ancião) e diácono (os sete). Além do mais, algumas vezes implícito ou discutido, esse foi o padrão de ministério que se tornou a norma para outras igrejas e congregações quando se espalharam por lugares diferentes contornando o ocidente do Mediterrâneo.

Mas há diversas dificuldades com essa visão. Seguem-se as mais importantes, (a) De acordo com as tradições primitivas de ICor 15.3-7 "os apóstolos" não devem ser identificados com "os Doze". O próprio Paulo (ICor 9.1; 15.8s.), Tiago (G1 1.19?), Barnabé (G1 2.9), Andrônico e Jú- nia (Rm 16.7), e talvez Apoio e Silvano (ICor 4.9; lTs 2.6s.) também foram apóstolos reconhecidos. Conseqüentemente, "os apóstolos" pre­cisam ter sido um grupo muito mais amplo que "os Doze". Além do mais, para Paulo o apostolado consistia primariamente em sua missão (ICor 9.1s; 15.10s.; G1 1.15s; 2.9). Isso concorda bem com o sentido primiti­vo de apóstolo como missionário preservado em Mateus 10.2, Marcos 6.30 (somente no contexto de missão os discípulos são chamados de apóstolos) e Atos 14.4, 14. Não concorda muito bem com a imagem de os apóstolos como líderes residentes da igreja de Jerusalém, particular­mente implícito em Atos 8.1 - "os apóstolos" são somente aqueles que não saíram de Jerusalém!

(b) A sugestão de que os sete indicados em Atos 6 estavam subor­dinados aos Doze e que são precursores dos diáconos se baseia muito, estreitamente no texto. Sua eleição foi muito mais o reconhecimento de uma autoridade carismática já em evidência do que a instituição de um ofício: sua plenitude do Espírito não estava ausente antes e nem foi concedida mediante a imposição de mãos (At 6.3, 5, 8,10). Além disso, de acordo com o sentido mais natural do grego, foi a multidão dos discípulos e não os apóstolos que impuseram suas mãos sobre os sete (At 6.6), e sua

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autoridade certamente não estava confinada, ou dirigida em absoluto, a servir mesas. Como a seqüência indica, sua autoridade carismática era muito mais importante e encontrava sua expressão mais comple­tamente no evangelismo e na missão (At 6.8ss; 8.4ss.) (ver mais abaixo p. 400).

(c) Os anciãos, certamente, desempenhavam um importante papel na igreja de Jerusalém (cf. Tg 5.14), e Lucas sugere que o padrão de Jerusalém se reproduziu em outros lugares por Paulo (At 14.23; 20.17). Mas isso não se originou do próprio Paulo: anciãos não são menciona­dos em lugar algum nos escritos paulinos anteriores às Pastorais, as quais possivelmente são pós-paulinas. Talvez mais surpreendente de tudo, até mesmo de acordo com o próprio relato de Lucas, a liderança da igreja em Antioquia estava nas mãos de profetas e mestres (At 13.1- 3) - indício de um tipo muito diferente de estrutura comunitária e de ministério nas igrejas da missão helenística, que encontraremos tendo origem no próprio relato das coisas por Paulo, mais abaixo (§29).

Como será confirmada mais tarde (§72.2), a probabilidade é, por­tanto, que Lucas tenha tentado retratar o cristianismo primitivo muito mais unificado e uniforme na organização do que de fato era.

2. A outra visão de Atos; ministério e autoridade dentro da comu­nidade primitiva de Jerusalém eram, por natureza, muito mais espontâneos e carismáticos, e a liderança tomou diversas formas antes de se estabelecer uma forma de administração seguindo o padrão de governo da sinagoga ju­daica.

O ministério era evidentemente submetido à injunção imediata do Espírito ou a de uma visão - e isso era considerado como autoridade suficiente. Certamente esse era o caso da igreja em Antioquia e de Pau­lo (At 13.2, 4; 16.6s, 9s; 18.9; 22.17s.). Igualmente com os helenistas e com Ananias de Damasco (6.8,10; 7.55; 8.26,29,39; 9.10). Também com Pedro e com João e "os irmãos" na Judéia (At 4.8; 10.10-16, 19; 11.18; cf. 15.28). Assim Filipe ministrou ao eunuco etíope, Ananias a Paulo e Pedro a Cornélio, sem consulta prévia aos colegas missionários, ou a igreja local ou a igreja em Jerusalém; e esses que eram, de acordo com Lucas, para "atender às mesas" pela indicação da comunidade, exer­ciam antes um ministério de evangelismo impulsionado pelo Espírito (At 6.8-18; 8). O ministério certamente não se confinava a uns poucos, e mesmo os sacerdotes que se converteram (At 6.7) parece que não

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tiveram nenhuma posição especial ou desempenharam qualquer mi­nistério dentro da igreja.

A liderança provavelmente se focava nos Doze, em seu papel como representante do Israel escatológico (Mt 19.28/Lc 22.29s.; At 1.6,20-26; 6.2).6 Mas por alguma razão seu lugar no centro das coisas diminuiu, e, aparte de duas ou três exceções óbvias, começaram a desaparecer inteiramente das vistas - provavelmente, pelo menos por causa de seu papel entendido mais em relação à ressurreição e ao retorno de Cristo (ICor 15.5; Mt 19.28/Lc 22.29s.) e combinando menos com a comu­nidade continuadora do intervalo.7 Seja como for, até onde podemos afirmar, Pedro (e provavelmente, os irmãos Tiago e João) rapidamente emergiram como os mais proeminentes, e assim podemos supor, fi­guras de liderança (At 1.13; 3-4; 12.Is.; e note-se sua proeminência na tradição evangélica). O episódio dos hebreus e dos helenistas em At 6.1- 6 revela o outro lado das coisas: os sete escolhidos eram possivelmente helenistas, e assim muito provavelmente eram as luzes condutoras entre os helenistas - já definidos por sua maturidade e autoridade espiritual (At 6.3) (ver também abaixo p. 400s). A relação da liderança do grupo em torno de Pedro para aqueles sete não é totalmente clara - Pedro não figura em absoluto no episódio central, At 6.7-8.4.

Foi somente por volta de dez anos depois na vida da igreja de Jerusalém, isto é, após a morte de Herodes Agripa em 44 d.C., que uma instituição e liderança padrão final tomou forma e a autoridade se tornou mais institucionalizada. A figura-chave aqui era Tiago o ir­mão de Jesus. Quando ele emergiu primeiramente entre a liderança de Jerusalém? Não há uma resposta clara. Mas, certamente, na época que Paulo foi à Jerusalém para sua segunda visita (46 d.C. no mais tardar) ele já era o mais proeminente dos "três pilares apostólicos" (G1 2.9). O outro Tiago havia sido assassinado algum tempo antes por Agripa (At 12.2); Pedro e João desapareceriam de cena na liderança de Jerusa­lém - Pedro porque, provavelmente estivesse sob a ameaça de Agripa e de qualquer maneira estava mais preocupado com a "missão para

6 É improvável que a igreja primitiva de Jerusalém fosse influenciada pela comu­nidade de Qumran em qualquer medida significativa, em absoluto. As diferen­ças na organização e na ordem superam em muito os paralelos.

7 A memória de quem realmente seriam "os Doze" se tornou confusa na época que as listas foram escritas nas tradições usadas pelos sinóticos (Mc 3.16-19/M t 10.2-4/Lc 6.14-16). '

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a circuncisão" (At 12.3-17; G1 2.8), de João não sabemos o porquê (ele aparece por último em At 8.14; ver também abaixo p. 550). Em todos os eventos Tiago, rapidamente, alcançou uma posição de completo desta­que que duraria até a sua morte em 62 d.C. (At 15.13ss; 21.18; G12.12), e essa deve ter sido a causa provável de ele ter adotado o padrão de go­verno da sinagoga para a igreja de Jerusalém por reunir em torno dele um corpo de anciãos (At 11.30; 15 .2 ,4 ,6 ,22s; 16.4; 21.18). Dentro dessa estrutura comunitária mais rígida podemos supor que haveria (pro­gressivamente) menos lugar para a autoridade carismática primitiva que dependia somente do Espírito e da visão, ainda que em assuntos importantes a congregação toda aparentemente fosse consultada (G12.2-5; At 15.22) e profetas ainda estivessem associados a Jerusalém (At 15.32; 21.10).

§ 29. O MINISTÉRIO NAS IGREJAS PAULINAS

1. O corpo de Cristo como comunidade carismática. O conceito de Pau­lo de ministério é determinado por seu entendimento da igreja como o corpo de Cristo. Esse entendimento em sua expressão mais evidente aparece em Romanos 12,1 Coríntios 12 e Efésios 4. Para apreciar a for­ça do imaginário de Paulo, precisamos notar os seguintes importantes aspectos.

(a) Em Romanos 12 e em 1 Coríntios 12 Paulo descreve a igreja local. Paulo ainda não fala da "Igreja" (mundial/universal) em suas cartas mais antigas, mas fala de "as igrejas" (Rm 16.16; ICor 7.17; 16.1, 19; etc.). Assim também "o corpo" em Romanos 12 e em 1 Coríntios 12 não é a Igreja universal, mas a igreja em Roma, a igreja em Corinto. E, particularmente, claro pelo modo que ele desenvolve a metáfora do corpo em 1 Coríntios 12, que o corpo referido era o corpo de crentes coríntios (v. 27 - "vós sois o corpo de Cristo" em Corinto).

(b) O corpo de Cristo era para Paulo uma comunidade carismática. As funções do corpo são precisamente os carismata do Espírito (Rm12.4). Os membros do corpo são precisamente os crentes individuais como carismáticos, isto é, funcionando como membros do corpo, ma­nifestando dons espirituais particulares, falando alguma palavra ou ocupados em alguma atividade que expressa o Espírito da comunida­de e serve à sua vida cotidiana (Rm 12.4-8; ICor 12.4-7,14-26).

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(c) Segue-se que cada membro da comunidade cristã tem alguma função dentro da comunidade; "a cada um" é dado um ou outro ca­risma (ICor 7.7; 12.7, 11). Todos, estritamente falando, são carismáti­cos. A nenhum membro falta uma manifestação da graça (= carisma). Cada um é membro do corpo somente na medida em que o Espírito consolida dentro da unidade corpórea pela manifestação da graça por meio dele. Em nenhum momento Paulo concebe dois tipos de cristãos- aquele que tem o Espírito e aqueles que não o têm, aqueles que mi­nistram aos outros e aqueles que não o fazem, aqueles que manifestam os carismas e aqueles não os manifestam. Ser cristão na visão de Paulo era ser carismático. Ninguém pode ser membro do corpo sem ser um veículo do ministério do Espírito para o corpo.

(d) Os membros do corpo têm diferentes funções, diferentes mi­nistérios (Rm 12.4; ICor 12.4ss.) - do contrário o corpo não seria um corpo (ICor 12.17,19). Cada membro deve reconhecer quando e qual carisma é aquele que o Espírito pode expressar por meio dele. E ele precisa cooperar com o Espírito para esse carisma se expresse, do contrário o funcionamento de todo corpo será afetado. Porque é dom do Espírito e não sua propriedade, não se tem nenhum crédito pesso­al. Conseqüentemente, não há nenhuma razão para se envergonhar ou se sentir inferior se seu carisma lhe parece menos importante; e não há nenhuma razão para se sentir orgulhoso ou superior se seu carisma lhe parece mais importante. Todas as funções do corpo são importantes, com efeito, indispensáveis à saúde do todo (ICor 12.14- 26; Rm 12.3). A metáfora do corpo é, e permanece, a ilustração clás­sica da unidade na diversidade, isto é, uma unidade que não emer­ge de uma conformidade organizada, mas uma unidade que resulta da harmonia de muitas partes diferentes trabalhando juntas, e que depende da diversidade para funcionar como tal.

Resumindo, o ministério nas igrejas paulinas pertencia a todos, e cada um dependia, para a sua vida dentro do corpo de Cristo, não só de um ministério especial de poucos, mas dos diversos ministérios de todos os seus membros.

2. Atos ministeriais e ministérios regulares. Carisma em Paulo signi­fica propriamente o instrumento de uma expressão particular da charis (graça), algum ato de serviço particular, alguma atividade particular, alguma manifestação particular do Espírito. E um evento, não é uma

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atitude, um dom transcendente dado em uma instância particular e para ele, não é um talento humano ou habilidade sempre "à mão"8. A unidade do corpo de Cristo consiste assim na interação dos diversos carismata. A comunidade cristã existe somente na iteração viva do ministério carismático, nas manifestações concretas da graça, na concretude de ser e de fazer aos outros em palavra e atos.

Porém, tanto quanto os atos e pronunciamentos individuais ca­rismáticos, Paulo reconhecia que alguns membros do corpo tinham ministérios mais regulares e em adição havia o papel único do apóstolo.

(a) O apóstolo possuía um ministério sem igual dentro da igreja paulina: havia sido comissionado pessoalmente pelo Cristo vivo em uma aparição da ressurreição (ICor 9.1; 15.7; G1 1.15s.); fora um mis­sionário bem-sucedido e fundador de igrejas (ICor 3.5s, 10; 9.2; 15.9ss.; 2Cor 10.13-16); seu papel era definidamente escatológico (Rm 11.13-15; ICor 4.9). Como fundador de uma igreja particular, que é uma marca da aprovação divina de autoridade ministerial por seu sucesso na fun­dação dessa igreja, ele tinha uma responsabilidade contínua de acon­selhar seus membros e dar direção em seus assuntos (daí as cartas de Paulo a Tessalônica, Galácia, Corinto, etc.). Deve-se isso ao fato de o apóstolo ser classificado em primeiro lugar dentro dos ministérios da igreja local (ICor 12.28) e, de fato, ser o primeiro em uma lista mais geral de ministérios (Ef 4.11). Em particular era sua responsabilidade transmitir o evangelho recebido por ele do Senhor ressurreto quando foi comissionado, confirmado por seus colegas apostólicos (G1 l . l ls , 15s; 2.2,6-10), e as várias tradições partilhadas por todas as igrejas (ver acima §17). Pode-se ressaltar, contudo, que ele não era um apóstolo da Igreja universal, um apóstolo cuja autoridade seria reconhecida por todas as igrejas. Sua autoridade estava restrita à sua esfera de mis­são (G1 2.7-9; 2Cor 10.13-16), para as igrejas que fundou (ICor 12.28- "a uns Deus estabeleceu na igreja [local]..."; ver abaixo p. 199). Paulo certamente contestou a reivindicação de outros apóstolos para exerce­rem autoridade dentro de suas igrejas (2Cor 10-13) e também não fazia nenhuma tentativa de lançar sua própria influência dentro da igreja de Jerusalém (At 21; cf. 15.12s.).9 Além do mais, devemos notar que,

8 Veja D unn, Jesus, cap. VIII (Sumário §43), e abaixo pp. 303s.9 G1 2.1-10 dificilmente era o caso de Paulo lançar sua própria influência; antes

de sua recusa de submissão em assuntos a respeito de sua própria esfera de

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por causa da singularidade do papel do apóstolo e de sua autorida­de, nenhuma categoria de "ofício" eclesial é adequada para descrever sua função: ele não fora indicado pela igreja, e Paulo certamente não concebia qualquer sucessão de seu apostolado (ICor 15.8 - "último de todos"; 4.9 - o último ato na arena do mundo antes do final).

(b) Menos fundamental (no sentido estrito), mas o primeiro em importância entre os ministérios regulares dentro das igrejas paulinas estavam os profetas e mestres (ICor 12.28). Em termos muito simplifica­dos, o papel do profeta era o de transmitir novas revelações à igreja, o do mestre era transmitir antigas revelações à igreja. Não há nenhu­ma sugestão nas cartas paulinas que esses eram ofícios eclesiais, a que se entravam mediante indicação, e certamente a profecia não estava confinada aos profetas, nem o ensino aos mestres (ICor 12.10; 14.1, 5, 26, 39). Segue-se daí o conceito de Paulo de ministério carismático de que os profetas eram reconhecidos como profetas por profetizarem re­gularmente. Quer dizer, não profetizavam porque eram profetas, mas antes porque profetizavam eram profetas, pois era essa a maneira do Espírito se manifestar regularmente por meio deles dentro da igreja. Similarmente com o mestre, ainda que pela natureza de seu ministério, podemos inferir que muito de seu ministério tinha um caráter mais formal (instruir nas tradições das igrejas - G16.6).

(c) Havia uma ampla variedade de outros ministérios regulares, mas bem menos definidos dentro das igrejas paulinas. Eles incluíam a prega­ção, uma ampla gama de serviços, administração e/ou alguns tipos de liderança e o atuar como um delegado eclesial ou servir na missão gentílica como um cooperador de Paulo (ver particularmente Rm 12.7- 8; 16.1, 3, 9, 21; ICor 12.28; 16.15-18; 2Cor 8.23; F11.1; 2.25; 4.3; Cl 1.7; 4.7; lTs 5.12s.). Essas formas diversas de ministério, de certo modo, não eram distinguíveis uma da outra - por exemplo, o ministério de exortação se sobrepunha ao da profecia (Rm 12.6-8); e o ministério de "socorros" (ICor 12.28) com o de "partilhar, cuidar e dar" de Romanos 12.8. A explicação dessa diversidade é óbvia: qualquer forma de ser­viço etc. que qualquer membro individual da comunidade carismática

influência para com aqueles que em Jerusalém insistiam no efeito de Jerusalém ter a supervisão universal ou, no mínimo, no padrão de membresia de Jerusalém de associação ser a norma para todos. Sobre o incidente subseqüente em Antio­quia (G12.11ss.) ver abaixo §56.1. '

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se engajasse regularmente pelo Espírito e que beneficiava a igreja era (ou no mínimo teria sido) reconhecido como um ministério regular da igreja (lTs 5.12s.; ICor 16.16, 18). Conseqüentemente, esses ministé­rios não seriam entendidos como ministérios estabelecidos ou oficiais, e não seriam certamente indicações eclesiásticas ou ofícios eclesiais. Com efeito, somos informados especificamente que no caso de Esté- fanas e sua família: "Se consagraram ao serviço dos santos" (ICor 16.15).O único que tomou uma forma que pode ter fornecido as origens de um padrão para o futuro foram os supervisores (bispos) e diáconos de Filipos (F1 1.1). Parece que algumas das áreas bem menos definidas de administração e de serviço, mencionadas acima, passariam a ser agrupadas ou combinadas em formas mais definidas de ministério, de modo que aqueles que se ocupavam regularmente delas poderiam ser conhecidos pelo mesmo nome (supervisor ou diácono). Mas se esses ministérios de Filipenses 1.1 foram de fato os precursores diretos dos ofícios do séc. II de bispo e de diácono permanecerá duvidoso; no mí­nimo porque nem Inácio e nem Policarpo conheciam qualquer ofício de bispo em conexão com Filipos. Os "evangelistas" e "pastores" de Efésios 4.11 também podem denotar mais claramente ministérios de­finidos, ainda que em Efésios a igreja (universal) seja, possivelmente, vista de uma perspectiva tardia (pós-paulina?) (ver abaixo pp. 506s). Ainda que as palavras aqui pareçam denotar funções antes que ofícios, ainda que não sejam títulos.

(d) Notemos, finalmente, o ministério da congregação, na visão de Paulo, da comunidade carismática. Fica claro, a partir de seu conceito do corpo de Cristo, que cada membro, e todos os membros do corpo juntamente, tem uma responsabilidade para com o bem-estar do todo. De modo que não nos surpreende quando Paulo exorta todos os mem­bros das diferentes comunidades a ensinar, admoestar, julgar, confor­tar (Rm 15.14; ICor 5.4s.; 2Cor 2.7; Cl 3.16; lTs 5.14). Com efeito, é notável que as instruções e exortações de Paulo sejam, geralmente, di­rigidas à comunidade como um todo. Em nenhum lugar em suas car­tas, com a provável exceção de Filipenses 1.1, ele se dirija a um único grupo de pessoas ainda que a responsabilidade recaia principalmente ou somente sobre tal para a organização, culto e bem-estar geral do restante. Isso é mais claro em 1 Coríntios onde, a despeito de uma se­qüência de situações e de problemas que pudessem parecer reclamar uma liderança mais estruturada, nenhum indivíduo ou grupo como tal

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é invocado. A implicação é evidente: se uma liderança fosse requeri­da em qualquer situação Paulo presumiria que o Espírito carismático forneceria a ela uma palavra de sabedoria ou a condução mediante algum indivíduo (cf. ICor 6.5; 12.28). A comunidade como um todo, certamente, tinha a responsabilidade de testar todas as palavras e atos reivindicadores de inspiração e autoridade do Espírito (ICor 2.12,15; lTs 5.20s), mesmo as do próprio Paulo (cf. ICor 7.25, 40; 14.37). Fazia parte de sua responsabilidade dar a aprovação, dizer o "amém" aos pronunciamentos inspirados (ICor 14.16), reconhecer a autoridade do Espírito nesses ministérios competia à sua obrigação (ICor 16.18; lTs 5.12s.).

3. Resumindo, o conceito paulino de igreja e ministério difere do discipulado do ministério terreno de Jesus em que era um conceito de comunidade carismática, caracterizado pela interdependência mútua onde cada um, ainda que se conheça o Espírito diretamente, precisa depender da companhia dos outros membros para o ensino e de todos os tipos de ministérios. Assim também, o conceito paulino de igreja e ministério difere do padrão que evoluiu em Jerusalém em que havia, essencialmente, um conceito de comunidade carismática e nada mais, "de livre companheirismo, desenvolvido mediante a interação viva de dons espirituais e de ministérios, sem o auxílio de autoridade oficial ou de 'anciãos' responsáveis."10 Em particular, isso significa que a igreja paulina não pode ser descrita como sacer­dotal com somente alguns possuindo ministério e ministérios parti­culares confinados a poucos. Para Paulo o Espírito superou a antiga distinção judaica entre sacerdote e povo e deixou-a para trás - todos têm um ministério e qualquer membro pode ser chamado a exercer qualquer ministério. Alguns teriam um ministério mais regular, que a congregação deveria reconhecer e estimular. Mas a idéia de mono- ministério ou autocracia ministerial - isto é, o mais importante de todos os dons concentrado sobre uma pessoa (mesmo um apóstolo) ou em um grupo seleto - é algo que Paulo rejeitou com certo escár­nio (ICor 12.14-27).

H. von C ampenhausen , Ecclesiastical Authority and Spiritual Power in the Church of the First Three Centuries, 1953, ET A. & fc. Black 1969; pp. 70s.

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§ 30. EM DIREÇÃO A INACIO

1. As Pastorais. Se olharmos umas poucas atrás páginas e compa­rarmos a visão de Paulo do ministério carismático com as exortações de Inácio a Esmirna (p. 191s acima), poderíamos ser tentados a concluir que os dois conceitos de ministério são pólos opostos, até irreconcili­áveis. E ainda quando nos voltamos aos últimos membros do corpus paulino (as Epístolas Pastorais) vemos uma compreensão de estrutura eclesial que parece muito mais próxima de Inácio do que de Paulol Esse grau de desenvolvimento de organização eclesiástica é um dos indicadores principais de que as Pastorais, como eles agora colocam são pós-pau- linas, refletindo a situação das igrejas paulinas talvez na última terça parte do séc. I, possivelmente até mais tarde.

Aqui estão os traços principais. (I) Os Anciãos aparecem pela primeira e somente uma vez no corpus paulino (lTm 5.1s, 17, 19; Tt1.5). (2) "Supervisores" (bispos - lTm 3.1-7; Tt 1.7ss.) e "diáconos" (lTm 3.8-13) aparecem agora como descrição de ofícios estabelecidos (lTm 3.1 - oficio de supervisor). A apresentação de lTm 3 sugere que os diáconos eram oficiais subordinados, ainda que não possamos falar a partir desse capítulo quais eram as suas funções respectivas.(3) O papel de Timóteo e de Tito dentro dessa hierarquia não é muito claro, embora, certamente, estivessem acima dos anciãos, superviso­res e diáconos. O que é significante é que as cartas são endereçadas a eles e eles parecem exercer uma responsabilidade e um grau de autoridade no gerenciamento dos assuntos da comunidade que mes­mo Paulo nunca exerceu diretamente ou por seus cooperadores ime­diatos (veja mais abaixo p. 508ss). (4) Mais notavelmente, o conceito paulino de carisma foi estreitado e regulado: somente um único dom foi dado uma vez por todas no processo de ordenação; Timóteo ago­ra o possui dentro de si mesmo e isso o equipa para suas diferentes responsabilidades. Resumindo, sendo um evento que sustenta sua autoridade em si, o carisma se torna o poder e a autoridade do ofício (lTm 4.14; 2Tm 1.6).

Talvez a melhor explicação dessa forma de ministério e de organi­zação eclesial seja a de que as Pastorais representam o fruto de uma recon­ciliação entre as estruturas mais formais que o cristianismo judaico assumiu da sinagoga e a estrutura carismática mais dinâmica das igrejas paulinas de­pois da morte de Paulo. A evidência central para essa hipótese é que nas

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Pastorais encontramos tanto anciãos de um lado como supervisores e diáconos do outro. Anciãos, já notamos como um traço das congrega­ções judaicas cristãs (acima pp. 199ss. - também Tg 5.14s.); superviso­res e diáconos (os nomes no fim) apresentados no que provavelmente seja uma das últimas cartas escritas por Paulo como um desenvolvi­mento na organização eclesial evidenciada somente em Filipos. A su­gestão é, portanto, que depois da morte de Paulo o nome (e forma?) daqueles ministérios regulares em Filipos foram copiados por outras igrejas paulinas11, ou no mínimo se tornou mais difundida entre as igrejas, enquanto que ao mesmo tempo as funções de supervisor e de diácono começaram a ser mais claramente definidas e reguladas (cf. Didaquê 15.1-2). Nesse estágio do processo começou a ser feita a ten­tativa para fundir os dois padrões, para assimilar a organização das igrejas judaicas cristãs àquelas das igrejas paulinas (ou vice-versa). As Pastorais (e 1 Clemente) parecem ter sido escritas em um estágio quando o processo de assimilação ou integração estava bem avança­do, mas não completo. Em particular, os papéis de supervisor e de ancião estavam sendo assimilados um pelo outro, mas não fica claro a partir das Pastorais se os dois termos ainda eram sinônimos, ou se, alternativamente, "supervisor" já se tornara o título de uma função particular de liderança dentro do quadro de anciãos (porque os anciãos não são mencionados em lTm 3?); cf. Atos 20.17, 28; 1 Clemente 42.4; 44.4s; 47.6; 57.1.

2. Se essa hipótese verdadeiramente espelha os desenvolvimen­tos históricos reais, então podemos ser aptos para detectar os estágios primitivos e diferentes dessa reconciliação entre igrejas cristãs judaicas e aquelas da missão paulina em outros documentos do NT. Estou pen­sando aqui em 1 Pedro e em Mateus12. A evidência é muito mais leve e mais alusiva, de modo que precisamos proceder com a devida cautela e não podemos esperar um quadro completo. Mas o que a evidência parece sustentar é a hipótese esboçada acima.

11 Se um ou ambos supervisores e diáconos em Filipos fossem responsáveis por levantar e repassar o dom financeiro a Paulo (F1 4.10-18), então a recomenda­ção de Paulo de sua generosidade (2Cor 8.1-7; F14.14-18) pode ter sido tomada como um elogio pressuposto de sua organização.

12 A apresentação da igreja primitiva em Atos requer um tratamento mais comple­to, que reservamos para o capítulo XIV (§72.2).

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1 Pedro parece vir de uma formação paulina, ou no mínimo ser muito influenciada pela teologia paulina (p.ex., o uso da linguagem e pensamento distintamente paulinos em lPd 2.5; 3.16; 4.10s, 13; 5.10,14). Note-se particularmente que o conceito paulino de carisma ainda está intacto: ele fala de cada um tendo recebido algum carisma e da: "Multi­forme graça de Deus" (lPd 4.10); e resume os carismata em termos de falar e servir, um resumo que não é amplo o suficiente para abranger a diversidade das listas paulinas em Romanos 12 e em 1 Coríntios 12, enquanto sustenta a ênfase paulina sobre o carismata da palavra e so­bre o carisma como serviço. Note-se também que o título de sacerdote não é dado a qualquer cristão individual (o que nunca se dá no NT), mas à igreja como um todo, e seu ministério como um todo pode ser descrito em termos de serviço sacerdotal (lPd 2.5, 9), o mesmo com Paulo (Rm 15.27; 2Cor 9.12; F12.17(7), 25,30). Assim também o título de "pastor e supervisor" se refere somente a Jesus (lPd 2.25). Ao mesmo tempo os únicos profetas mencionados são referidos no tempo passa­do (lPd 1.10-12 - talvez se referindo ou no mínimo incluindo profetas cristãos primitivos). Ademais, 1 Pedro parece considerar um círculo claramente definido de anciãos com responsabilidades relativamente bem definidas (lPd 5.1-5). Dessa evidência temos que considerar 1 Pe­dro como refletindo aquele estágio quando as igrejas paulinas, ou aquelas mais influenciadas por Paulo, já haviam começado a adotar ou adaptar o modelo de ordem da igreja judaica cristã, sem ainda perder a flexibilidade e a liberdade da comunidade carismática paulina13.

3. Mateus parece refletir até mesmo um estágio mais primitivo na reconciliação, mas do lado do cristianismo judaico. Assim, por exem­plo, por um lado há uma forte ênfase sobre a validade continuada da Lei (particularmente Mt 5.17-20 - ver abaixo §55.1); somente em Mateus encontramos preservados os logia restringido o conceito da missão de Jesus aos judeus (Mt 10.6, 23); e é Pedro que é destacado nas pala­vras acerca do alicerce da igreja e de "as chaves do reino do céu" (Mt 16.18s.). Por outro lado, havia evidentemente escribas cristãos (= mes­tres) na igreja mateana (cf. Mt 7.29 - "seus escribas") cujo papel não era meramente transmitir a Lei e as tradições a respeito de Jesus, mas

13 Cf. H. G oldstein, Paulinische Gemeinde im Ersten Petrusbrief, Stuttgarter Bibelstudien 80,1975, particularmente o capítulo I.

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interpretá-las novamente (Mt 13.52 - ver acima cap. IV); a igreja mate- ana era muito mais aberta e comprometida com a missão do que era a igreja primitiva de Jerusalém (28.19s); e não é Tiago que é destacado, mas Pedro14, que na tradição do séc. I é tão estreitamente identificado quanto Paulo com a missão (particularmente G1 2.8s.)15.

As passagens mais interessantes para o nosso estudo são Mt 7.15- 23; 18.1-20 e 23.8-12. Em 7.15-23 é evidente que a igreja mateana ha­via sofrido um tanto do ministério de profetas itinerantes - isto é, eles haviam experimentado um tipo de ministério carismático que, na vi­são de Mateus, pelo menos, se havia dedicado a um antinomismo (Mt 7.22s; cf. 24.11, 24). Nessa passagem Mateus não rejeita tal ministério (cf. Mt 10.7s, 41; 17.20), mas deseja antes integrá-lo com uma mais com­pleta lealdade à Lei. Na regra da comunidade de Mt 18.1-20 é digna de nota que não há nenhum líder especial distinto do membro comum da igreja, nem mesmo anciãos ou supervisores, a quem as exortações es­peciais são endereçadas. Fala-se somente "destes pequeninos" - obvia­mente o quadro de membros como um todo, daí para cada um entrar no reino do céu deve se tornar tal como um (Mt 18.1-6,10). A "regra" continua dando responsabilidade a cada um da comunidade para en­contrar a ovelha perdida, reconquistar o irmão desviado, atar e desatar (Mt 18.12-20). Quer dizer, não era simplesmente Pedro ou algum indi­víduo no cargo de portador ou grupo de oficiais que tinham a autori­dade de atar e desatar, ensinar e disciplinar, mas todo membro da igreja estava autorizado por Jesus (Mt 18.18-20)16. Em Mateus Pedro não é tão destacado como uma figura hierárquica, mas muito mais como o discípulo representativo - igualmente em Mt 14.28-31, onde ele tipifica o discipu-

14 Compare com o cristianismo judaico (abaixo pp. 362, 374); e cf. abaixo pp.555s.15 Cf. a sugestão muito corajosa de E. T rocmé de que o Evangelho de Marcos foi es­

crito, em parte, para atacar o poder de Tiago e o dos Doze na igreja de Jerusalém e defender um movimento que havia se afastado da igreja-mãe em Jerusalém e se lançado em uma aventura missionária de grande escala (The Formation of the Gospel according to Mark, 1963, ET SPCK 1975, pp. 130-137 e o cap. 3). Mais extremo e mais fantasioso é W. K elber, The Oral and the Written Gospel, Fortress 1983, pp. 91-105.

16 Mt 18.12s, 18 poderia ser lido como endereçado a um grupo especial isolado como líderes; mas no contexto da passagem inteira (endereçada aos "discí­pulos") o "tu" seria o mais provável de estar se referindo a cada membro da totalidade (ao contrário R. S chnackenburg, The Church in the New Testament, ET Herder 1965, pp. 74s). ’

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lado de "pequena fé" (cf. Mt 6.30; 8.26; 16.8; 17.20)17 - assim como os Doze são provavelmente entendidos como representativos da igreja como um todo (Mt 19.28; cf. ICor 6.2s). Finalmente, em Mt 23.8-10 há a advertência muito explícita à igreja mateana contra conferir qualquer status ou título a qualquer membro individual - somente Deus é "Pai", e somente Jesus é "mestre" e "senhor". A grandeza à qual eles são esti­mulados não é aquela de poder executivo e de autoridade, mas àquela do serviço humilde (Mt 20.25-27; 23.11s.).

A comunidade mateana, talvez, fosse melhor descrita como uma irmandade (Mt 5.22-24, 47; 7.3-5; 18.15, 21, 35; 23.8) reunida em tomo do irmão mais velho, Jesus (Mt 12.49s; 18.20; 25.40; 28.10), esforçando- se por desenvolver uma forma de vida expansiva e de ministério de todos os membros em meio à hostilidade judaica (com os ministérios mais proeminentes àqueles de Pedro, profetas e mestres), e cônscia dos perigos opostos de uma estrutura hierárquica que dificulta o ministério multiforme dos irmãos18 e de um profetismo carismático que divorcia muito salientemente os milagres e a revelação de uma lealdade apro­priada à Lei - em outras palavras tentando desenvolver uma forma de “prática eclesial" paulina dentro e mais apropriada a um contexto judaico.19

§ 31. A ALTERNATIVA JOANINA

Se as Pastorais manifestam um desenvolvimento dentro do cris­tianismo do séc. I em direção a maior institucionalização de Inácio e da grande Igreja do séc. II em diante, também precisamos reconhecer uma tendência contrária dentro do séc. I que parece correr na direção

17 Cf. Mateus 28.10, no qual Mateus não segue Marcos 16.7 ao distinguir Pedro do restante dos discípulos. Na literatura recente cf. P. H offmann , "Der Petrus- Primat im Matthäusenvangelium", NTK, pp. 94-114; J. P. M artin , "The Church in Matthew", Interpretation, 2 9 ,1975, pp. 54s. Referências mais antigas em: R. E. B rown , K. P. D onfried & J. R eumann , Peter in the New Testament, Chapman 1974, p. 14, n. 29.

18 "Ancião" em Mateus é usado somente para as autoridades judaicas hostis a Jesus.

19 Veja mais E. S chweizer, Matthäus und seine Gemeinde, Stuttgarter Bibelstudien 71,1974, particularmente o cap. X; ET em: G. S tanton , org. The Interpretation of Matthew, SPCK/Fortress 1983, pp. 129-55.

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oposta. A testemunha mais clara dessa resistência para com a institucio­nalização é o Quarto Evangelho e as Epístolas Joaninas; mas também percebemos sinais disso em Hebreus e no Apocalipse.

1. O individualismo do Quarto Evangelho é um dos mais surpreen­dentes traços desse formidável documento. Como Paulo, o autor vê o culto em termos carismáticos (ver abaixo pp. 227), mas diferente de Paulo não há nenhum conceito de comunidade carismática. Certamente há um sentido de comunidade tanto no Evangelho como na primeira Epístola de João (Jo 10.1-16; 15.1-6; 17.6-26; ljo 1.7; 2.19; 3.13-17), mas não de uma comunidade carismaticamente interdependente. E, com certeza, a responsabilidade "horizontal" recai sobre o indivíduo para amar a irmandade; nos dois escritos, como em Paulo, essa é a marca real do crente cristão (Jo 13.34s.; l jo 3.10-18, 23s; 4.20s.). Mas para João o relacionamento "vertical" com Deus, o Espírito, é essencialmente um assunto individual. Assim, em particular, há o pertencimento mútuo a Cristo, mas não a mútua interdependência nesse pertencimento: cada ovelha ouve a voz do pastor por si mesma (Jo 10.3s, 16); cada ramo está ligado diretamente à videira (Jo 15.4-7). O tema de comer a carne de Jesus, beber seu sangue, ou beber da água que ele oferece, é endere­çado mais a uma seqüência de indivíduos do que a uma comunidade que é em si mesma o corpo de Cristo (Jo 6.53-58; 7.37s.). E o clímax do "Evangelho dos Sinais" (Jo 1-12) é a ressurreição de um único indivíduo, simbolizando uma salvação individual (11) antes que a ressurreição geral dos mortos. Jesus ora pela unidade dos crentes, que mais uma vez fala de comunidade, mas mesmo aqui a unidade que João tem em mente é comparável à unidade do Pai com o Filho e está enraizada na dependente união individual do crente com Jesus (Jo 17.20-23) 20.

Talvez mais formidável ainda, o pequeno grupo de remanes­cente em torno de Jesus depois do teste tremendo (krisis) de fé e de lealdade (um motivo dominante - ver acima p. 156) não forme nenhu­ma hierarquia ou ofício particular que os deixe separados dos outros discípulos: eles nunca são chamados de "os apóstolos" (cf. Jo 13.16)

20 R. E. B rown , "The Kerygma of the Gospel According to John", Interpretation, 21,1967, reimpresso em: New Testament Issues, org., R. B atey, SCM Press 1970, p. 213. ’

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e supostamente inclui algumas mulheres marcantes nesse Evangelho (Jo 4; 11; 20); nada indica que elas tinham ministérios especiais dentro da comunidade de discípulos; são simplesmente os discípulos e mais, provavelmente destinados a representar todos (incluindo os futuros) discípulos em sua responsabilidade comum de amor mútuo e missão (Jo 14-16; 20.22).21 O mesmo é, provavelmente, verdade do "discípulo amado" em particular. Quer dizer, seja qual for a realidade histórica subjacente à sua apresentação (cf. Jo 21.20-24), João possivelmente pretendia simbolizar o crente individual na imediação e proximidade de seu relacionamento com Jesus (Jo 13.23-25; 20.2-8). Similarmente, em 1 João 2.27, a unção do Espírito remove a necessidade de mes­tres; o Espírito habitando em cada crente é o mestre necessário. Resu­mindo, por todos esses escritos não há nenhum conceito real de ministério, muito menos de ofício. Todas as coisas são vistas em termos do relacio­namento imediato do indivíduo com Deus mediante o Espírito e a palavra22.

2. De todas as cartas do NT fora do corpus paulino, Hebreus, pró­xima a 1 Pedro, é a que tem as afinidades mais estreitas com Paulo. Mas enquanto 1 Pedro é algo como a metade do caminho da casa entre Paulo e as Pastorais, Hebreus é mais a outra metade do caminho en­tre Paulo e João. Certamente há "líderes" ativos na igreja de Hebreus (13.7,17,24), mas eles são mais definidos em termos de função pastoral do que de ofício (Hb 13.17). O mesmo é ainda mais claramente verdade do ministério de ensino em Hb 5.11-6.8, em que a única qualificação mencionada é a maturidade espiritual evidenciada pela habilidade em discriminar o bem do mal - uma habilidade conquistada pela experi­ência e prática (Hb 5.14); compare a qualificação para o reconhecimen­to de um profeta ou mestre em Paulo (acima p. 203). Quaisquer outros ministérios não são referidos em absoluto aos membros individuais. Ao contrário, a responsabilidade pelo serviço e exortação recai sobre todo o quadro de membros (Hb 6.10; 10.25; 12.15). Aí também estão

21 Somente no apêndice adicionado ao evangelho subseqüente à sua composição há alguma idéia de um ministério pastoral particular exercitado dentro da co­munidade (Hb 21.15-17).

22 Note mais uma vez, a discussão em termos de ministério, não de comunidade como tal. Sobre o "ancião" de 2 João e 3 João ver abaixo p. 516ss.

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paralelos distintos com a comunidade carismática de Paulo (ver acima pp. 200s).

A marca mais formidável de Hebreus nesse ponto, contudo, é o modo em que o ministério se focaliza em Cristo de um jeito completo e fi­nal. Ele sozinho é chamado "apóstolo" (Hb 3.1). Ele completa a reve­lação fragmentária dada pelos profetas anteriores (Hb l.ls.). Acima de tudo, ele é sacerdote, sumo sacerdote de acordo com a ordem de Melquisedeque (Hb 2.17; 3.1; 4.14s; 5.1; etc.). Seu sacerdócio é tão com­pleto e exaltado, seu ministério sacerdotal tão perfeito e final, que não há nenhum papel ou espaço deixado para qualquer sacerdócio intermediário dentro da comunidade cristã. Um sacerdócio definido pertenceu somente ao passado, à era das sombras. Mas Cristo trouxe a realidade então prenunciada a cada crente (Hb 7-10). Como O Sacerdote ele ofereceu uma vez por todas e em sacrifício final e abriu o Santo dos Santos para todo crente, de modo que cada um pode experimentar, por si mesmo, a realidade que somente o sumo sacerdote experimentava na sombra para seu povo (Hb 4.16; 6.16s; 10.19-22). Resumindo, aqueles ministé­rios que tipificaram a antiga aliança foram integralmente cumpridos por Cristo e, portanto, abolidos para o povo da nova aliança. Aí então está um paralelo próximo do conceito joanino de igreja e ministério, onde o ministério é focado em um todo, mas de um modo exclusivo em Jesus e cada crente pode "intrepidamente" se aproximar da presença de Deus por si mesmo sem a dependência de outros crentes ou qualquer interme­diário humano23.

3. O conceito de ministério sugerido em Apocalipse também pa­rece pertencer a algum lugar entre Paulo e João. Aí também há uma ausência notável de qualquer idéia de hierarquia e de ofício. Todos os crentes são reis e sacerdotes (Ap 1.6; 5.10; 20.6), todos são servos de Deus (Ap 7.3). Apóstolos são mencionados, mas como pertencentes à época de fundação da igreja (Ap 21.14). Anciãos aparecem na sala do trono celestial, mas se eles não representam em absoluto contrapartes humanas (ao invés do conselho de Yahweh do AT), são a igreja toda e não apenas responsáveis por ofícios particulares dentro dela - talvez doze representando o Israel de Deus da antiga era, doze da igreja pre­sente (Ap 4.4, 10; 5.8; 11.16; 19.4; cf. 3.21). Assim também os "anjos"

23 S chweizer, Church Order; " ... Hebreus Combate a Igreja institucional" (§10c).

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das igrejas em Ap 1.20; 2-3 não devem ser tomados para representar bispos (supervisores) ou líderes particulares; visto que as mensagens endereçadas a cada anjo claramente se aplicam a cada igreja como um todo, os anjos são melhores tidos como contrapartes celestiais das vá­rias igrejas. Resumindo, não há nenhuma menção de bispos, diáconos, mes­tres ou pastores no Apocalipse, e "sacerdotes" e "anciãos" são designações para a igreja toda.

Os únicos ministérios definidos mencionados em Apocalipse são aqueles de profeta (2.20; 10.7; 11.10,18; 16.6; 18.20, 24; 22.6, 9), de tes­temunha ou mártir (Ap 2.13; 11.3; 17.6; cf. 1.2, 9; 6.9; 11.7; 12.11, 17; 19.10; 20.4). Essas palavras parecem algumas vezes denotar indivídu­os particulares dentro da igreja (Ap 2.13, 20; 22.9), mas em 11.3, 10 é provavelmente a igreja como um todo que é simbolizada como duas testemunhas ou profetas. Não fica claro se a dobradinha "santos e profetas/mártires" (Ap 11.18; 16.6; 17.6; 18.24) referem-se igualmen­te à comunidade inteira, ou distingue profetas/mártires do restante dos santos (como, provavelmente, em Ap 18.20). Mas certamente não há sugestão de uma hierarquia profética, e em que medida todos os crentes são recrutados para dar testemunho de Jesus para todos ex­perimentarem o Espírito de profecia (Ap 12.11, 17; 19.10; cf. 6.9-11;20.4). Aí, temos algum paralelo com o conceito paulino de ministério: em princípio todo santo é uma testemunha e profeta, ainda que al­guns sejam chamados para exercer esse ministério de um modo mais pleno que outros. O escritor do Apocalipse é, algumas vezes, aponta­do como reivindicando uma autoridade singular (Ap 1.3; 21.5; 22.6, 18s.), mas isso é simplesmente a autoridade da inspiração profética que qualquer profeta crê pertencer à sua profecia, e 22.18s. é pouco mais que uma convenção literária para assegurar a fiel transmissão do original do autor (cf. p.ex. Ep. Aristéias 310s.); João o vidente não se distingue daqueles a quem escreve seja como testemunha ou como profeta (Ap 1.2,9; 19.10). Resumindo, até onde o Apocalipse está pre­ocupado, a igreja é predominantemente uma igreja que vive pela e da pro­fecia24.

24 Ver mais em A. S atake, Die Gemeindeordnung in der Johannesapokalypse, Neukirchen 1966.

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§ 32. CONCLUSÕES

1. Em nosso estudo do cristianismo do séc. I não descobrimos nenhu­ma diversidade maior que aquela aparente nos vários conceitos de ministério e de comunidade resenhadas acima. No estágio do discipulado pré-pascal não pudemos usar com facilidade o termo "comunidade" para descre­ver os círculos em torno de Jesus, e o ministério estava centrado exclu­sivamente no próprio Jesus. No segundo estágio, a primeira geração do próprio cristianismo foi confrontada com dois padrões divergentes: por um lado, a antiga e um tanto caótica liberdade carismática da igre­ja de Jerusalém situada em um padrão mais conservador de ordem da igreja emprestado da sinagoga; por outro lado, Paulo vigorosamente defende uma visão muito mais livre de comunidade carismática, na qual a unidade e a maturidade cresciam da interação viva de dons e ministérios sem a dependência de qualquer ofício ou hierarquia. No terceiro estágio, a segunda geração do cristianismo, os padrões se tor­naram tanto mesclados como mais divergentes: de um lado, vemos certo desenvolvimento unido das formas do cristianismo judaico e aqueles das igrejas paulinas depois de sua morte que nas Pastorais, por qualquer razão, começava a se endurecer na direção das estrutu­ras mais rígidas do Catolicismo futuro; do outro lado, vemos o que é melhor entendido como uma reação contra tais correntes institucio- nalistas, onde em diferentes maneiras João, Hebreus e o Apocalipse protestam contra a emergência de uma igreja estruturada em torno do ofício e de intermediários e insistem na imediação da relação do crente individual com Deus por meio de Cristo e sobre a natureza comum do sacerdócio e da profecia - João em particular parecia desejar, muito depois do padrão de discipulado que caracterizou o primeiro estágio, a preservar o que chamaríamos agora de um tipo de conventículo, de acampamento ou cristianismo de convenção.

2. Isso significa que fora do cruzamento do cristianismo do séc. I somente uma estrada levava em direção à ordem da igreja ortodoxa de Inácio; outras levavam no mínimo a outra direção muito diferente. Com certeza, examinamos somente um aspecto da eclesiologia do NT, mas temos certamente visto o suficiente para reconhecer com justiça a famosa rei­vindicação de Ernst Kàsemann: "O cânon do Novo Testamento, como tal, não constitui o fundamento da unidade da Igreja. Ao contrário,

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como tal..., ele fornece a base para a multiplicidade das confissões".25 Essa conclusão não foi reconhecida suficientemente no movimento ecumênico do séc. XX, e seus corolários possíveis para diversidade denominacional moderna precisam ser pensados com muito mais ca­rinho e meticulosidade. Retornaremos a isso na conclusão (particular­mente §76.2).

3. Algum foco de unidade sustenta juntos esses esquemas de pa­drões divergentes de ministério e de comunidade, ou eles simplesmen­te são fragmentos esparsos faltando uma coerência essencial? Somente um foco de unidade pode ser percebido com alguma consistência - isto é, mais uma vez, Jesus e a fé nele.26 No movimento pré-pascal Jesus sozinho era o ministro, o profeta, o mestre. No período inicial subseqüente à Páscoa, a autoridade e a direção vinham das visões de Jesus, daque­les que agiam "em seu nome", do Espírito dado pelo Jesus exaltado; e até a elevação de Tiago o irmão de Jesus a liderança foi, em parte, devida, no mínimo, ao fato de ele ser irmão de Jesus. Na visão paulina a comunidade carismática não era nada se não fosse também o corpo de Cristo, vivendo pelo Espírito, manifestando o caráter de seu amor altruísta. Mesmo quando começamos a nos mover para a segunda ge­ração do cristianismo o foco permanece o mesmo: é Cristo sozinho que é descrito como "pastor e vigia de nossas almas" em 1 Pedro 2.25; é somente Cristo que é chamado de mestre e Senhor em Mateus 23.8- 10; é somente Cristo que é sacerdote e sumo sacerdote em Hebreus; e para o vidente do Apocalipse a igreja é apresentada como a noiva de Cristo (Ap 21.2s, 9). Até nas Pastorais é enfatizado, especificamente, que o homem Cristo Jesus é o único mediador entre Deus e os homens

25 E. K àsemann , "The New Testament Canon and the Unity of the Church" (1951), ENTT, p. 103.

26 Tivéssemos ampliado nosso estudo para incluir um exame dos vários conceitos de igreja (bem como de ministério), seríamos aptos a apontar outro importante elemento unificador - a continuidade com Israel: a convicção de que aqueles que creram em Cristo, gentios e judeus, constituem um renovado ou até mes­mo um novo Israel. Isso foi particularmente importante dentro da comunidade primitiva, em Mateus, Paulo e Hebreus, e também é proeminente em diferentes modos em Lucas, o Quarto Evangelho, 1 Pedro e Apocalipse. Mas, é claro, para os gentios-cristãos (e para a unidade do cristianismo) essa continuidade com Israel foi possível somente mediante Jesus e a fé nele - como o argumento fun­damental de Gálatas 3 e Romanos 4 deixa claro.

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(lTm 2.5), enquanto em João a centralidade de Jesus, o encarnado e Logos exaltado, e a imediata dependência de todo discípulo dele é um dos traços mais dominantes. Aqui de novo, e de um modo formidável, o único elemento unificador que une os padrões divergentes é Jesus, o homem de Nazaré agora exaltado, ainda fornecendo o foco essencial de autori­dade e ainda servindo como o padrão de ministério.

4. Dois outros traços merecem um breve comentário, visto que, a despeito de uma relevância potencial óbvia para os temas dos dias atuais, eles geralmente são ignorados. Um é o fato uniforme que den­tro do NT não há nenhum lugar para uma distinção contínua entre sacerdote e povo, entre "clero" e "laicato". O sentido de cumprimento escatológico constante, dentro das primeiras duas gerações do cristia­nismo, significa que qualquer idéia de uma ordem de sacerdócio dentro da congregação de crentes, situando alguns crentes aparte de outros, foi deixada inteiramente para trás como pertencendo à época anterior a Cristo. Somente Cristo é designado "sacerdote" (Hebreus; cf. Rm 8.34). Muitos escri­tores do NT falam de crentes como um todo tendo ministério sace- dortal (lPd 25,9; Ap 1.6) e Paulo descreve o ministério no serviço do Evangelho ou de outros crentes como serviço sacerdotal (Rm 15.16; F1 2.25). Mas não havia nenhum espaço sagrado em que somente alguns podiam entrar (Jo 4.20-24), e o sacrifício a ser oferecido pelos crentes é o auto-sacrifício nas relações comunitárias do mundo cotidiano (Rm 12.1). O culto foi secularizado. Não há nenhum espaço para uma or­dem distinta de sacerdócio de caráter ou tipo em relação ao sacerdócio de todos os crentes. Essa marca consistente dos documentos canônicos do cristianismo não parece ter tido peso suficiente em todas as discus­sões contemporâneas, seja do "ministério" ou do "ministério de todo o povo de Deus".

Igualmente surpreendente, dentro do contexto dos tempos teria sido o proeminente papel desempenhado nas origens do cristianismo pelo ministério de mulheres discípulas. Seu papel nos evangelhos é mar­cante - Mateus 28.1-10, Marcos 15.40s. e Lucas 8.1-3, e é mais ainda em João (2.3-5; 4.25-30, 39; 11.24-27; 20.1-18). Nas epístolas paulinas a discussão tem se focalizado muito além dos limites sobre 1 Coríntios11.2-16 e 14.34s. (para não mencionar lTm 2.11s.), e por outro lado Gálatas 3.28. Pouca atenção é dada à evidência clara de mulheres exer­cendo um proeminente ministério ,e sustentando a autoridade de lide­

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rança nas igrejas paulinas. Para citar somente Romanos 16 note-se Febe (16.1), a primeira a ser designada diaconisa dentro do NT, e também uma patrocinadora da igreja em Cencréia. Então Priscila (16.3), uma das cooperadoras de Paulo e, evidentemente, mais proeminente do que seu marido Aqüila, no ministério e na liderança. Então Júnia (Rm 16.7- não Júnias), provavelmente esposa de Andrônico, e uma líder apostó­lica bem antes de Paulo. E não menos Maria, Trifena, Trifosa e Pérside (Rm 16.6, 12), todas descritas como "as que trabalham duro" - uma descrição que em outros lugares é usualmente tomada como uma in­dicação de liderança (ICor 16.16; lTs 5.12). Como essas são as únicas assim descritas na lista de saudações em Romanos 16, provavelmente, deveríamos concluir que as mulheres eram particularmente proemi­nentes na liderança das igrejas primitivas em Roma.

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C a p í t u l o V I I

PADRÕES DE ADORAÇÃO

§ 33. INTRODUÇÃO

Adoração é uma das grandes forças unificadoras no cristianismo. Pois na adoração há espaço para um esbanjamento de linguagem, para uma liberdade da forma literária, que estão ausentes nas declarações kerygmáticas e confessionais. As liturgias das várias denominações, particularmente seus hinos, são tesouros de adoração extraídos de di­versas tradições passadas e presentes e que transcendem as fronteiras denominacionais e nacionais. Mesmo os hinos destinados a expressar pontos de vistas doutrinais específicos (como o "Amor divino, que ex­cede a todos os amores" de Wesley) ou os hinos dos unitarianos, tor- naram-se veículos de uma adoração cristã que, freqüentemente, fazem as divergências e as divisões eclesiásticas parecer de pouca importân­cia. Com efeito, um slogan que ganhou certa aceitação nas discussões ecumênicas do séc. XX - originada das frustrações do diálogo inter-de- nominacional - foi o "adoração une, doutrina divide". Deve-se notar também que os cristãos orientais sempre tenderam a dar mais impor­tância à adoração do que os seus irmãos ocidentais: pois a ortodoxia Ortodoxa não é tanto a respeito de doutrina, mas mais a respeito de adoração. Ser um cristão ortodoxo é pertencer àquela comunidade que louva e glorifica a Deus no espírito correto.

Aqui, então, está outra área importante merecedora de investiga­ção em nossa pesquisa a respeito da unidade e diversidade do cristia­nismo do séc. I. Quais padrões de adoração caracterizavam as igrejas do período do NT? Havia um único padrão, ou havia muitos padrões diferentes de adoração assim como os de ministério (cap. VI)? Em que medida a adoração contribuía para a unidade, quão diversas eram suas

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formas? Veremos primeiro, e muito abreviadamente, em uma amos­tra representativa do NT, concentrando particularmente em Jesus, na igreja primitiva, em Paulo e em João. Então nos focaremos, mais es­pecificamente, sobre o hinário das igrejas do NT, onde a erudição do NT provou ser mais frutífera nos últimos cinqüenta anos. Finalmente, perguntaremos se já se usava no séc. I d.C. formas litúrgicas extensas e catequéticas, fornecendo um estrato unificador muito mais amplo do que descobrirmos.

§ 34. DIVERSIDADE DE ATITUDES E DE FORMAS

í . Jesus. Não é totalmente claro qual era a atitude de Jesus para com a adoração em seus dias. Trata-se de uma das muitas matérias, na pesquisa das origens cristãs, sobre a qual os eruditos se dividem. Certamente, precisamos considerar sua perspectiva escatológica como básica à questão toda: Jesus experimentou o poder operante do reino do fim dos tempos e esperava a consumação do reino iminente (ver acima §§3.1, 2). Conseqüentemente, sua completa compreensão e ado­ração a Deus era um tanto contrastante diante da atitude típica de seus contemporâneos. Para a maioria deles Deus era o Altíssimo e Santíssi­mo, deveriam dirigir-se a ele com a máxima reverência, e a imanência de Deus era expressa em termos do nome de Deus, ou da sabedoria de Deus, etc. Mas para Jesus Deus era o Deus que estava próximo em sua própria pessoa. Deus era o Pai, não em termos de criação original ou de adoção, mas no íntimo individual e sentido familiar expresso no voca- tivo ‘abba (pai querido, papai) (ver abaixo §45.2). Essa atitude reconhecia uma continuidade com o passado - Jesus via essa revelação dada como o clímax para o que veio antes (cf. Mt 5.17; Mt 11.25s./Lc 10.21); mas também implicava uma descontinuidade com o passado - algo novo ha­via sido introduzido que não seria contido nem retido dentro da antiga estrutura (Mc 2.21s.). Vemos isso em ação na própria atitude de Jesus para com o Templo e para com a sinagoga, em sua atitude frente a Lei, e em sua prática de oração.

(a) A atitude de Jesus para com o Templo e para com a sinagoga. Não sa­bemos quantas vezes Jesus visitou o Templo (note-se particularmente Mt 23.37-39/Lc 13.34sv bem como as>diversas visitas no Evangelho de

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João). Em uma ocasião que certamente conhecemos, também sabemos o que ele fez - a assim chamada "purificação do Templo". Mas qual era o significado de seu ato? Se tomarmos Marcos 11.17 com sua citação de Isaías 56.7 como autêntica, então precisamos concluir que Jesus olhou o Templo como o ponto focal da renovação escatológica de Deus - uma interpretação que é sustentada pela atitude dos primeiros cristãos para com o Templo (ver abaixo pp. 223s, 360ss). Mas também poderia ser arrazoado que a expulsão dos vendedores de animais sacrificiais etc. implicava uma rejeição do culto sacrificial tradicional, visto que sua ação faria sua continuidade impossível; compare sua crítica das leis de pureza ritual (veja abaixo). Aqui temos que recordar, mais uma vez, que o dito de Jesus preservado em Marcos 13.2; 14.58 (ver acima p. 115) parece indicar a Jesus que o Templo (e seu culto sacrificial) pertenciam à antiga era, um tempo que já havia passado - no reino vindouro um novo templo (celestial) seria fornecido (cf. a interpretação de Jo 2.21 e At 6.14 - ver abaixo pp. 223)1. Assim ficamos com certa dúvida a respei­to da atitude de Jesus para com o Templo (cf. também Mt 5.23s. com 9.13; 12.7, e Mc 1.44; Lc 17.14 com Lc 10.31s.); também João 5.14; 7.14, 28; 8.20; 10.23; e a ambigüidade do seu ensino preservado é refletida nas diversas trilhas seguidas pelos hebreus e helenistas na comunidade primitiva de Jerusalém (veja abaixo §34.2). Quanto a sua atitude para com a sinagoga, somos informados que ele a freqüentava regularmente, ainda de acordo com nossa evidência seu propósito primário ao fazer isso era apresentar sua própria mensagem (Mc 1.21-27, 39; 3.1; 6.2; Mt 9.35; Lc 4.15-21; 13.10), não ler somente a Torá e participar das orações.

(b) Já examinamos a atitude de Jesus para com a Lei oral e escrita (veja acima §§16.2,24.5). Precisamos somente recordar aqui sua rejeição da halaká sabática, o casuísmo do corbã e as regulamentações quanto aos ritos de purificação. Sua atitude para com o jejum também causava comentários (Mc 2.18; Mt 11.19/Lc 7.34), ainda que ele esperasse que seus discípulos o praticassem no intervalo antes da vinda do reino (Mc 2.20; Mt 6.16-18). Até mais formidável é a maneira soberana em que ele manuseava a Lei escrita, determinando em que maneira e em que medida suas regulamentações deviam ser obedecidas. Em particular, notamos como "seu ensino sobre as causas de impureza, como regis-

Assim F. H ahn, The Worship of the Early Church, 1970, ET Fortress 1973, pp. 23-30. Sobre a última ceia e sua relação com a páscoa ver abaixo p. 268.

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tradas em Marcos 7, com efeito corta pela raiz toda a lei ritual" (acima p. 184). Aqui novamente há continuidade (ele re-edita em um nível mais profundo os mandamentos contra o homicídio e o adultério), mas há também notável descontinuidade.

(c) A prática âe oração de Jesus. J. Jeremias acredita que Jesus obser­vava os tempos judaicos de oração, "a oração matinal ao alvorecer, a oração vespertina quando o sacrifício da tarde era oferecido no Tem­plo, a oração noturna antes de ir dormir"2. Mas a oração para Jesus era algo muito mais espontâneo e estimulante - como mais uma vez se torna muito evidente na palavra com que ele regularmente se dirigia a Deus, ‘abba, uma expressão de confiança e obediência, enquanto que a maneira de seus contemporâneos se dirigir a Deus, até onde se pode afirmar, era muito mais formal (ver mais abaixo §45.2). Com certeza a oração que ensinou aos seus discípulos (Mt 6.9-13/Lc 11.2-4) tinha ecos das orações judaicas antigas em duas ou três petições3, mas per­manece distinta precisamente em seu sentido de intimidade e em sua marcada nota de urgência escatológica.

2. A comuniâade primitiva. Havia ambigüidade suficiente no ensi­no de Jesus acerca da adoração para interpretações e práticas âivergentes emergirem quase desde o princípio.

(a) Até onde podemos afirmar, os cristãos primitivos na Palesti­na sustentavam as tradições judaicas de adoração praticamente inal­teradas. Eles frequentavam diariamente o Templo (At 2.46; 3.1; 5.12, 21, 42), provavelmente na expectativa de ser o lugar do retorno de Jesus (Ml 3.1 - ver abaixo pp. 471s). Que essa importância contínua do Templo não é simplesmente uma conseqüência da teologia lucana (cf. abaixo pp. 508s) é confirmada por Mateus 5.23s., cuja preserva­ção também sugere que o culto sacrificial continuou a ser observado pelos primeiros cristãos. Parece que a idéia de Jesus quanto ao fim do Templo ainda não se tornara estabelecida. Eles também parecem ter observado as horas tradicionais de oração (At 3.1; 5.21; 10.9(?)) no Templo e/ou na sinagoga (cf. At 6.9; Jo 9 - ver acima p. 360).

2 J eremias, Prayers, p. 75.3 Os paralelos entre as primeiras duas petições da oração do Senhor e o que é,

provavelmente, a forma primitiva do kaddish, são notáveis (ver Jeremias, Prayers, p. 98).

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E continuavam a observar a Lei e a "tradição dos anciãos" (incluindo o sábado) com fidelidade - tal como passagens em Mateus 23.3, 23; 24.20; Atos 21.20, Gálatas 2.3ss, 12; 4.10 (cf. Rm 14.2, 5; Cl 2.16, 20s) claramente indicam (ver acima §16.3). Aparentemente a importância contínua de pureza ritual não se deu só até o episódio de Cornélio, mas foi adiante a ponto de ser recordada pelos cristãos palestinenses (At 10.14; 11.3) (ver também abaixo pp. 360s).

(b) Todavia, ao mesmo tempo novas formas de adoração parecem ter sido desenvolvidas, e isso desde o começo. Essas estavam centradas nas reuniões em casas particulares (At 2.46; 5.42). Ouvimos diferentes elementos introduzidos nessas reuniões - adoração e oração (At 1.14; 2.42; 4.23-31; 12.12), ensino - quer dizer, possivelmente, tanto das Es­crituras (AT) como também da tradição-Jesus, transmitindo e interpre­tando as duas (At 2.42; 5.42), e as refeições comunitárias (At 2.42, 46). Não há nada a indicar que tais eram padronizadas ou formavam um serviço uniforme de adoração. E mais provável que havia, pelo menos, dois tipos de reuniões, uma (mais formal?) para oração e ensino, seguin­do de algum modo o padrão do serviço sinagogal, e a outra para a re­feição comunitária, que também incluíam outros elementos, tais como o cantar, introduzidos quando apropriados de modo espontâneo (cf. a nota de exuberância em At 2.46s.). Os novos padrões de adoração que começaram a emergir nesses encontros não eram inteiramente diferen­tes daqueles que existiam anteriormente: não sabemos se recitavam a Shemá (Dt 6.4-9; 11.13-21) que todo israelita era obrigado a repetir duas vezes ao dia4, mas precisavam ter lido as Escrituras (ainda que nos falte evidência direta disso); e sem dúvida eles continuaram a usar algumas das formas típicas de ação de graças e bênçãos e o "amém" (cf. ICor 14.16). Mas também havia elementos cristãos evidentes: a ora­ção do Senhor, o uso de ‘abba nas orações, a recordação das palavras e feitos poderosos de Jesus (tudo o que fora transmitido pelas comuni­dades), no mínimo, a centralidade de Jesus em seu meio (Mt 18.20)5 e

4 A variação do fraseado de Deuteronômio 6.5 em Marcos 12.30,33 pars. Sugere a J. J eremias que "a Shemá grega não era um texto litúrgico regularmente recitado por qualquer dos três evangelistas sinóticos" (Prayers, p. 80); mas cf. a variação da oração do Senhor (Mt 6.9-13/Lc 11.2-4).

5 Dois ou três reunidos mesmo informalmente eram suficientes para fornecer um foco de adoração (Mt 18.20), enquanto que de acordo com uma especificação de adoração judaica tardia requeria a presença de dez homens (Meg. 4.3; b. San. 7a).

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a esperança do seu retorno em breve (ICor 16.22), e aqueles elementos na alimentação comum que relembrava a mesa da comunhão do mi­nistério de Jesus, em particular a última ceia, e que se desenvolveriam no que conhecemos como a ceia do Senhor (ver abaixo §40).

(c) Por algum tempo esse padrão duplo de adoração, templo e cultos domésticos, continuaram lado a lado, sem nenhuma tensão en­tre eles. Mas os helenistas e Estêvão viriam a separação dos caminhos: o papel contínuo do Templo para os seguidores de Jesus foi questiona­do claramente, e a antiga adoração (templo) e a nova foram colocadas abertamente como antitéticas.6 A evidência chave aqui é Atos 6-7, cujo status histórico se coloca um tanto em questão, mas que provavelmen­te se apresenta bastante acurada, nesse ponto pelo menos, as visões dos helenistas que deflagraram a primeira perseguição dos cristãos. A acusação contra Estêvão era a de que ele falou contra o culto do Templo (At 6.13s), e a clara implicação de 6.14 é que ele tomou a pala­vra de Jesus acerca da destruição do Templo (Mc 13.2; 14.58) e a inter­pretou como uma rejeição do Templo como o local da presença divina (ver acima pp. 154,224). Até mais explícita é a última parte do discurso preservado em Atos 7, cujo clímax é um ataque indiscutível ao Templo em que Estêvão invoca o testemunho de Isaías 66.1s. (ver acima p. 184) e descreve o Templo como "feito por mãos humanas" (At 7.48-50) - o mesmo epíteto que na polêmica judaica contra o paganismo caracte­rizava a idolatria (referências na p. 403). Se isso é uma representação direta da visão de Estêvão e/ou dos helenistas, e a seqüência fortemen­te sugere que é (At 8.1-4; 11.19-21), então precisamos concluir que de uma data muito antiga o principal foco áa adoração âos helenistas era o cul­to doméstico (reuniões nos lares), onde os elementos nitidamente cristãos eram a principal força na moldagem de um novo padrão de adoração. Ademais, não devemos ignorar o fato de que a atitude de Estêvão era uma rejeição não somente à atitude judaica ao Templo, mas também da adoração dos cristãos de fala aramaica/hebraica enquanto se centrava no Templo. Não fica claro se foi nessa época ou mais tarde que a atitu­de cristã palestinense frente a Lei também foi levantada na questão: evidentemente fora o zelo pela Lei e pelas tradições que fizeram de Paulo um perseguidor dos cristãos helenistas (G11.13s.; PI 3.5s.; e note

5 Neste parágrafo estou resumindo em muito a discussão mais completa maisadiante nas pp. 401-403. *

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At 6.13); mas o discurso de Atos 7 nunca se estende a um ataque à Lei (cf. At 6.14). Seja como for, fica claro que desde uma data inicial havia uma diversidade de atitude e de prática de adoração e uma clara divergência de opinião que deve ter imposto tensões severas sobre a unidade da primeira comunidade cristã (ver mais abaixo §60).

3. Paulo. Dos dois padrões antigos de adoração Paulo, aparente­mente, foi mais influenciado pelas igrejas domésticas independentes helenistas, ainda que não seja claro em que medida. Certamente as igrejas domésticas eram locais importantes da vida comunitária na missão de Paulo (Rm 16.5; ICor 16.19; Cl 4.15; F12), bem como de reu­niões maiores (semanais?) de toda a comunidade (ICor 11; 14; cf. 16.2). Mas seu conceito de adoração é mais que uma racionalização das for­mas herdadas e brota de seu conceito da igreja local como o corpo de Cristo. Recordemos que o corpo de Cristo é para Paulo a comunidade carismática, quer dizer, a comunidade funcionando carismaticamente. O corpo de Cristo chega à expressão, vive e se move, por meio da in­teração mútua dos dons e ministérios, a diversidade de manifestações sendo integradas em uma unidade de propósito e de caráter median­te o controle do Espírito de Cristo (ver acima §29). Mas isso significa que o corpo de Cristo chega à visível expressão pré-eminentemente na e pela adoração: é na adoração que a diversidade de funções (= carismata) de­monstra sua interdependência mútua e força unificadora (daí a dis­cussão dos carismatas em ICor 12-14 se centrar sobre a assembléia em adoração).

Como isso se realiza na prática? A resposta é dada em ICor 14.26- 33a: "Quando vos reunis, um tem salmo, outro doutrina, este traz revelação, aquele outra língua, e ainda outro interpretação..." Aqui, sem qualquer discussão, Paulo concebe a adoração como o assunto mais espontâneo, sem estrutura ou forma regulares, e inteiramente dependente da inspiração do Espírito. As únicas disposições que ele dá: que não deveria haver uma seqüência ininterrupta de pronunciamentos glossolálicos- um pronunciamento no vernáculo, uma interpretação, precisam se­guir cada pronunciamento em línguas, do contrário o falar em línguas deveria ser excluído; que cada pronunciamento profético deveria ser avaliado pelos profetas e/ou pela comunidade toda (cf. ICor 2.12-15; lTs 5.19-22); e que não mais que dois ou três pronunciamentos glos­solálicos e dois ou três pronunciamentos proféticos seriam permitidos

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em cada reunião de adoração. O período de adoração, então, consistiria em uma seqüência de contribuições em que aqueles com ministérios regulares participariam (profetas e mestres), mas onde cada membro poderia experimentar o impulso do Espírito se manifestar em um ca­risma particular (incluindo uma profecia ou ensino). Não era esperado que os ministérios regulares dominassem a reunião ou fornecessem a liderança. A liderança seria fornecida pelo Espírito, mediante um mi­nistério regular de liderança, mas também mediante um dom de con­dução ocasional ou uma palavra de sabedoria (ICor 6.5; 12.28). Como notamos acima (pp. 203ss), em 1 Coríntios de qualquer maneira Paulo não parece objetivar qualquer liderança como tal.7

Se mulheres participavam nessa adoração carismática não fica cla­ro. ICor 14.33b-36, se original, parece excluir qualquer contribuição das mulheres, mas uma interpretação menos rigorosa é possível {p.ex., proíbe-as somente de interromper o processo de avaliação de pronun­ciamentos proféticos (ICor 14.29-33a) por fazerem perguntas desne­cessárias), e provavelmente deveria se aceitar na visão de ICor 11.5 na qual claramente prevê mulheres profetizando. Compare Atos 2.17s, 21.9; Colossenses 4.15 e Romanos 16.1-12 (ver acima p. 217).

Finalmente, precisamos notar que não há nenhuma pista em 1 Co­ríntios 11 ou 14 de quanto a reunião para a adoração se relacionava com a refeição comunitária. A discussão de cada passagem não pare­ce abranger a outra ou deixar muito espaço para a outra, e é melhor presumirmos que Paulo previa duas reuniões separadas para propósitos diferentes (cf. particularmente Plínio, Epp., X.96.7).

4. Quando nos movemos para além da primeira geração do cristia­nismo descobrimos uma divergência de padrões âe adoração similar àquela de conceitos de ministério. Uma vez mais as Pastorais e João parecem demarcar as trilhas diferentes mais distintamente. Seguiremos o mes­mo procedimento do capítulo VI ainda que resumidamente8.

(a) Nas Pastorais, como poderíamos esperar, a liderança da adora­ção parece estar muito mais restrita. Em particular, a exortação e o en­sino não são mais pensados como oriundos dos carismata que qualquer

7 Todavia, um de meus orientandos de doutorado, J ohn C how , argumenta que os líderes não poderiam fornecer a resposta, porque eles eram o problema!

8 Sobre 1 Pedro ver abaixo (§36) e sobre o Apocalipse ver abaixo (§35.2).

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pessoa poderia ser chamada a exercitar, mas parece ser um dever de ofício e de autoridade (lTm 2.12; 3.2; 4.13; Tt 1.9). A profecia é profe­rida, mas somente como uma voz autorizada do passado (lTm 1.18; 4.1,14) - a profecia era muito espontânea, um dom muito criativo para ser permitido ocupar espaço dentro da igreja empenhada em manter a boa ordem e preservar a herança recebida (ver abaixo pp. 524s)? Dos outros elementos de padrões de adoração esboçados acima somente a oração parece ser uma atividade comum para a congregação (lTm 2.8). Aqui, evidentemente, há um estilo de adoração muito mais ordenado e mais regulamentado do que aquele implicado em ICor 11-14.

(b) Mateus mais uma vez parece representar um tipo primitivo de reconciliação entre o padrão original da adoração da igreja palestinense (Mt 5.23s.) e a adoração carismática mais solta das igrejas paulinas (Mt 7.22; 10.7s; 17.20). Em particular, notemos que em Mt 18.15-20 a respon­sabilidade de exercer a disciplina recai sobre a igreja como um todo (cf. ICor 5.4s; 6.4s.). Similarmente a autoridade de "atar e desatar", quer seja, uma função de ensino que está prevista (ver abaixo pp. 524s) ou a declaração de perdão de pecados (cf. Jo 20.23), pertence não somente a Pedro (Mt 16.19), mas outra vez mais a toda a congregação (Mt 18.18). Onde dois crentes quaisquer exercerem sua fé ou celebrarem sua fé, Deus reconhecerá seus atos e Jesus se fará presente (18.19s.). Aqui é aquele que crê e a comunidade a centralizar o entendimento da adoração, não uma adora­ção regulada pelo guardião do ofício e da tradição.

(c) Movendo-se na direção oposta às Pastorais, João parece rea­gir contra um crescente formalismo e institucionalização na adora­ção (assim como no ministério). Aqui a passagem chave é João 4.23s.- "Deus é espírito, e aqueles que o adoram, devem adorar em Es­pírito e verdade" - onde João é capaz de realizar seu propósito por situar a adoração cristã frente às tradições da adoração judaica e da adoração samaritana - quer dizer, situando a adoração em Espírito e verdade contra o tipo de preocupações na adoração tipificadas pelo conflito Jerusalém-Gerizim9. João está dizendo, com efeito, que Jesus

g No Pentateuco Samaritano a ordem de Moisés de fazer um altar na entrada em Canaã refere-se ao Monte Gerizim (Dt 27.4s). A leitura do texto Massorético do "Monte Ebal" pode, de fato, ser uma correção anti-samaritana do original pre­servado pelos samaritanos. O templo samaritano sobre o Monte Gerizim foi des­truído por João Hircano em 128 d.C.

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deixou de lado esse tipo de temática e de atitude, quando ele superou o Templo (Jo 2.19), as festas e sacrifícios judaicos (Jo 1.29; 6.4, 25-58; 7.37-39; 19.36), a Lei (Jo 1.17; 4.10, 14; 6.30-35) e os rituais judaicos (2.6; 3.25-36) - adorar a Deus não depende mais de um lugar sagrado ou de uma tradição sagrada ou, mesmo, de uma cerimônia sagrada. A adoração que Deus busca não é uma adoração congelada em uma edificação sagrada ou pela lealdade a uma tradição ou a ritos particulares, mas uma adoração viva, e toda nova resposta a Deus que é espírito como impelida e capacitada pelo Espírito de Deus à luz da verdade de Jesus. Em João 4.23s., João tinha, provavelmente, a intenção de uma repreensão implícita a todos que desejam continuar adorando a Deus em termos de instituição, tradição e ritual. Essa adoração em Espírito e verdade para João e para as igrejas joaninas é um tipo de pietismo individualista implícito nas passagens mencionadas em §31.1 acima e por 1 João 3.24; 4.13.

(d) Hebreus reflete não um tipo diferente de reação contra a ado­ração ritualística da antiga aliança. Tudo era somente uma mera som­bra da realidade que Jesus tornou possível aos seus seguidores - a entrada imediata e direta ao tabernáculo celestial, a própria presença de Deus (Hb 10.1). Aqui também a adoração é concebida em termos piedosos: onde todo sacerdócio e ministério se focam em Jesus (ver acima §31.2) cada membro da comunidade é dependente somente dele para a realidade da renovação na adoração (Hb 4.16; 6.19s; 10.19- 22; 13.15).

5. Mais uma vez vemos um grau considerável de diversidade: em particular, a diversidade a respeito dos padrões de adoração herdados do passado, se seria mantido ou se deveria ser confiado ao Espírito criar continuamente novas formas mais apropriadas ao povo de Deus em suas diferentes e mutáveis situações, com tudo o que envolve em termos de quebrar as tradições; e diversidade sobre à adoração ser, principalmente, assunto da alma individual diante de Deus, ou me­lhor, algo que somente pode vir a ser expressão para o indivíduo quan­do ele está funcionando como parte de uma comunidade adoradora estruturada. Um fator a mais faz a diversidade se tornar mais aparente quando olhamos mais de perto uma expressão particular da adoração primitiva - seu hinário.

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§ 35. HINOS CRISTÃOS PRIMITIVOS

Alguns hinos ou formas hínicas foram mais ou menos óbvios desde o começo - os salmos de Lucas 1-2 e as grandes atribuições de louvor no Apocalipse. Outros foram reconhecidos somente no séc. XX- hinos em louvor de Cristo, particularmente na literatura paulina.

1. Lucas 1-2. Faz tempo que a Igreja cristã está familiarizada com os quatro salmos de Lucas 1-2 como parte de sua própria adoração.

(a) O Magnificat, o cântico de Maria - Lucas 1.46-55. Possivelmente modelado no hino de Ana em 1 Samuel 2.1-10. É notável que não haja nenhuma idéia especificamente cristã nele; é tipicamente hebraico no ca­ráter e no conteúdo. Mas igualmente notável que nos primeiros dias da nova fé, cristãos fossem capazes de tomá-lo como expressão de seu próprio louvor.

(b) O Benedictus, o cântico de Zacarias - Lucas 1.68-79. O cântico é cheio de alusões ao AT, particularmente aos Salmos, Gênesis, Isaías e Malaquias. A primeira parte (vv. 68-75) em especial é de caráter ju­daico, embora na segunda parte (vv. 76-79) idéias cristãs marcantes se apresentem. Muitos eruditos crêem que originariamente era um salmo messiânico - note-se particularmente os vv. 68s, 76 e 78:

Porque visitou e redimiu seu povo,e suscitou-nos um a força de salvação na casa de Davi seu servo, [...]E tu, menino, serás cham ado profeta do Altíssimo [...] pelo qual nos visita o Astro das alturas[...]

Uma das figuras ou dos títulos da esperança messiânica judaica era "o profeta" (Dt 18.18s; Is 61.1ss.; Ml 4.5; Testamento de Levi 8.15; Testamento de Benjamim 9.2 [?]; 1QS 9.11; 4QTest. 5-8); e a palavra gre­ga usada no v. 78 para nascente (anatolê) pode ser uma alusão à LXX de Jeremias 23.5; Zacarias 3.8; 6.12, onde ela traduz a metáfora messiânica "ramo". Se o cântico de Zacarias era originalmente um salmo messiâ­nico (referindo-se a Batista como Messias?), então os cristão, que pri­meiro o tomaram, foram capazes de fazer facilmente se apropriar dele por sua própria interpretação do papel do Batista de "precursor do Senhor" para precursor de Jesus.

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(c) Gloria in excelsis - Lucas 2.14. Esta também se tornou uma mar­ca estabelecida na adoração cristã matinal de acordo com as co-institui- ções apostólicas do séc. IV. Não contém nada especificamente cristã em si, isto é, fora de seu contexto.

(d) Nunc dimitis - Lucas 2.29-32. Um salmo de louvor pela chegada do Messias, expressa o êxtase tranqüilo da fé na realização do anelo e esperança de uma vida longilínea. Deve ter servido para expressar a admiração do livramento experimentado pelos cristãos primitivos, e sua conseqüente dedicação à vontade de Deus.

Esses são todos hinos extraídos do solo do judaísmo piedoso; qualquer influência helenística está ausente. Em dois dos quatro não há nada distintivamente cristão. E até os dois restantes são mais messi­ânicos do que cristãos - quer dizer, eles se regozijam porque o Messias já chegou, mas o Messias permanece não identificado. Qualquer que seja a sua origem e derivação final, Lucas possivelmente as extraiu da viva adoração das congregações primitivas (antes que das memórias retrospectivas de oitenta anos atrás). Em outras palavras, são os salmos das comunidades palestinenses antigas, que atingiram sua forma atual em um período quando não havia quaisquer cristãos, somente judeus que acreditavam que o Messias havia chegado10.

2. No Apocalipse há muitos salmos ou doxologias, ou mais preci­samente expressões de louvor: aclamações a Deus - Ap 4.8, 11; 7.12;11.17s; 15.3s; (16.7; 19.1-3,5); aclamações ao Cordeiro - Ap 5.9s; 12; aclamações a Deus e ao Cordeiro/Cristo - Ap 5.13; 7.10; 11.15; (12.10- 12); 19.6-8. São de sabor judaico (note-se, particularmente, o uso de "aleluia" e "amém"), mas menos tradicional na forma e conteúdo que os salmos de Lucas 1-2. A influência aqui parece vir mais das sinago­gas da Diáspora, onde o santíssimo e justo Deus do judaísmo era lou­vado como Criador e Sustentador do mundo e Juiz de todas as coisas- o tema que ocorre mais freqüentemente na adoração do apocalipse joanino. A sobreposição entre o cristianismo e o judaísmo é de novo marcada, e, conseqüentemente, deveríamos ver neles expressões típicas do louvor dos cristãos judeus helenistas. As aclamações ao cordeiro seriam peculiarmente formulações do autor, mas modeladas sobre as aclamações

10 Cf. D. R. Jones, "The Background and Character of the Lukan Psalms", JTS ns. 19,1968, pp. 19-50.

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a Deus e teriam sido parte da linguagem de adoração da comunidade a qual o vidente pertencia.

Note-se a emoção e a pura exuberância do louvor. É retratado como o louvor do céu, mas modelado sobre ou representando a adoração e a linguagem com que o vidente conhecia. E difícil imaginar os adoradores falando essas palavras solenemente enquanto se sentavam formalmente em fileiras como parte de uma liturgia! Há muito entusiasmo e muita vi­talidade - indicados também pela ausência de quaisquer salmos longos como o Magnificat - a forma mais curta, sua freqüência e variação, im­plicam maior espontaneidade. Pode-se facilmente imaginar as reuniões para adoração nas comunidades cristãs primitivas judaico-helenísticas nas quais depois de uma profecia ou um salmo ou uma oração um ado­rador exuberante exclamaria: "A salvação pertence ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro!!" (Ap 7.10); ou na qual um indiví­duo começasse uma doxologia e todos se unissem a ele: "Amém. O lou­vor, a glória, a sabedoria, e a ação de graças, a honra, o poder, e a força pertencem ao nosso Deus pelos séc.s dos séculos, Amém!" (Ap 7.12).

3. A descoberta de vários hinos para Cristo embutidos no material do NT provocou muita caça as lebres na erudição do NT da qual po­demos dar somente um esboço aqui. Olharemos por primeiro os três hinos mais longos.

(a) Filipenses 2.6-11. Desde o estudo da passagem por E. Lohmeyer em 192811 houve um crescente reconhecimento de que se trata de um hino cristão primitivo que Paulo deliberadamente citou. O equilíbrio e o ritmo das orações certamente sustentam essa visão, embora a estrutura real do hino ainda esteja em discussão. A pista mais forte é o paralelismo que se torna evidente quando os versos são dispostos em pares, já que o estilo de poesia hebraica é repetir o pensamento de uma (metade da) linha em uma linguagem alternativa na próxima. Um paralelismo quase perfeito vem à luz se as três frases são consideradas como glosas expli­cativas: v. 8 - "e morte de cruz"; v. 10 - "nos céus, na terra e debaixo da terra"; v. 11 - "para glória de Deus Pai". Talvez o modo mais satisfatório de dispô-lo é seguir a proposta de R. P. Martin12.

11 E. L ohmeyer, Kyrios Jesus: eine Untersuchung zu Phil. 2.5-11, Heidelberg 1928, 2a ed., 1961.

12 R. P. M artin , Carmen Christi: Philippians 2.5-11, Cambridge University Press 1967, p. 38. Discussão mais recente discussão é resenhada nas edições revisadas,

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Ele tinha a condição divina, e não considerou o ser igual a Deus com o algo a que se apegar ciosamente.Mas esvaziou-se a si mesmo,e assumiu a condição de servo, tomando a semelhança humana.E, achado em figura de hom em, humilhou-se e foi obediente até a m orte, e m orte de cruz!Por isso Deus o sobreexaltou grandem entee o agraciou com o nome,para que ao nom e de Jesus,se dobre todo joelho dos seres celestes,dos terrestres e dos que vivem sob a terra,e, para glória de Deus, o Pai,toda língua confesse:Jesus é o Senhor.

O importante para nós são as discussões a respeito dos anteceden­tes e da teologia do hino. Alguns veriam seus antecedentes como forte­mente helenístico: o hino parece operar com uma cosmo visão grega de duas esferas simultâneas ao invés de uma escatologia judaica de duas eras sucessivas; e não poucos argumentaram que por trás do hino está o homem celestial do mito do redentor gnóstico pré-cristão13 - uma tese, que foi grandemente trabalhada nos meados do séc. XX, mas que é agora amplamente vista como uma construção do séc. XX como sen­do não mais que um fundamento histórico muito questionável. Nesse caso é muito mais justificado reconhecer uma forte influência judaica: a forma poética hebraica sugeriu a Lohmeyer que um poema aramaico perfazia originalmente o grego; há alguma influência da reflexão ju­daica do sofrimento e vindicação do justo. Mas muito mais forte influ­ência sobre o todo é a especulação dentro de vários círculos judaicos a

Eerdmans 1983 e IV P1997. Os dois parágrafos seguintes foram substancialmente alterados desde a primeira edição de Unidade e Diversidade no Novo Testamento à luz de minha análise posterior do hino de Filipenses em Christology, pp. 114-21.

13 Ver particularmente E. K àsemann , "A Criticai Analysis of Phil. 2.5-11" (1950), God and Christ, JThC, 5, 1968, pp. 45-88; W engst, Formeln, pp. 149-55. Mas ver também D . G eorgi, "Der vorpaulinische Hymnus Phil. 2.6-11", Zeit und Geschicte: Dankesgabe an R. Bultmann, ed. E. D inkler, Tübingen 1964, pp. 263-93; O. H ofius, Der Christushymnus Philipper 2.6-11, Tübingen 1976; D unn , Christology, pp. 114-21.

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respeito do pecado de Adão, suas conseqüências e o remédio de Deus. A versão cristã disso é a obediência de Jesus que se contrapõe mais a de­sobediência de Adão (cf. particularmente Rm 5.12-21). Aqui o contraste é claro: Adão existindo em imagem divina se agarrou à igualdade a Deus; apesar de ser homem ele se exaltou e foi desobediente; portanto, foi condenado a uma existência sob o poder do pecado e da morte. Em contraste, Cristo existindo em forma de Deus não se agarrou à igualda­de a Deus; tomou a forma de um servo, aceitou a condição de humani­dade (caída), e humilhou-se em obediência até a morte; portanto, Deus o exaltou e lhe deu um título e honra devido a Deus.

Outro assunto é se temos aqui uma cristologia em três estágios. O hino não fala simplesmente do cristo terreno e exaltado, mas tam­bém fala de um estágio de pré-história mítica ou de pré-existência? Todavia, não devemos exagerar isso. O motivo primário é o contras­te humilhação-exaltação, e as duas primeiras linhas não evidenciam qualquer interesse especulativo no ser e essência divinos no estágio pré-histórico. A linguagem é extraída da narrativa de Adão e é usada principalmente para enfatizar a humilhação de Cristo, quão grande foi sua auto-humilhação. Esse aprofundamento da idéia da humilha­ção terrena é combinado por um aumento correspondente da idéia da exaltação - Deus o exaltou sobremaneira (literalmente) e lhe deu o título divino kyrios (ver também abaixo p. 341).

(b) Colossenses 1.15-20. O reconhecimento da forma hínica desses versos se volta para E. N orden, em 191314. O hino, como agora se apre­senta, divide-se em duas estrofes principais - a primeira lidando com Cristo e a criação, a segunda com Cristo e a Igreja.

(A) Ele é a im agem do Deus invisível, o prim ogênito de toda criatura, porque nele foram criadas todas as coisas, no céus e na terra, as visíveis e as invisíveis:Tronos, Soberanias, Principados, Autoridades, tudo foi criado por ele e para ele.Ele é antes de tudo e tudo nele subsiste.Ele é a Cabeça da Igreja, que é o seu Corpo.

14 E. N orden , Agnostos Theos, 1913, reimpresso em Stuttgart 1956, pp. 250-4.

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(B) Ele é o Princípio,O Prim ogênito dos m ortos,(tendo em tudo a prim azia),

pois nele aprouve a Deus fazer habitar toda a Plenitude e reconciliar por ele e para ele todos os seres, os da terra e os dos céus, realizando a paz pelo sangue da sua cruz.

O paralelismo entre as estrofes é indicado pelos itálicos e é, ob­viamente, deliberado. Os parêntesis indicam possíveis adições pau­linas.

A origem do hino é novamente o pomo da discórdia, em parti­cular o grau e tipo de influência helenística. E. Kàsemann notou que se somente 8 das 112 palavras nos vv. 15-20 forem removidas, então todo motivo especificamente cristão é erradicado. Ele continua a ar­gumentar que por trás do hino está o mito do redentor gnóstico - o mito do homem arquetípico que também é redentor15. E verdade que o hino possui conceitos que podem vir de um judaísmo helenístico em que alguns elementos mais tarde inflados pelo gnosticismo já estives­sem presentes - "a imagem do Deus invisível", "primogênito de toda a criação", "coisas visíveis", "tronos", "domínios", "combinadas" (estas quatro últimas todas mais ou menos únicas em Paulo), "plenitude". Mas a teoria se estilhaça em uma frase - "o primogênito dos mortos". Isto é manifestamente integral ao hino; e também é demais cristão para ser atribuído a uma fonte pré-cristã. Muito mais plausível é a visão de que o hino colossense emergiu de uma comunidade cristã composta principalmente de judeus da Diáspora (ou, com efeito, gentios influen­ciados por idéias judaicas) que estavam acostumados a teologizar em ter­mos da especulação da Sabedoria de influência helenística. Aqui é suficiente a explanação dos dois elementos mais distintivos no hino - a afirma­ção de que Jesus deve ser identificado com o agente pré-existente da criação, e o papel cósmico atribuído ao Jesus exaltado. Para eles e para

15 E. K äsemann , "A Primitive Christian Baptismal Liturgy" (1949), ENTT, pp. 154- 9. Para o começo da história da investigação de Colossensses. 1.15-20 ver H. J. G abathuler, Jesus Christus: Haupt der Kirche - Haupt der Welt, Zürich 1965. Para bibliografia adicional ver P. T. O 'B rien, Colossians, Philemon, Word Biblical Com­mentary 44, Word 1982, pp. 31-2.

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Paulo Cristo ter tomado a direção e incorporou todos os conceitos e categorias previamente atribuídos à Sabedoria (veja também abaixo pp. 339ss) - e, como a carta continua a argumentar, assumiu-os tão com­pletamente quanto a preveni-los de aplicar a outros: Cristo não é um mediador (gnóstico ou judaico) entre muitos, mas o Mediador (note-se particularmente 2.9,17). Nisso não devemos deixar de observar quan­to a linguagem do hino é corajosa a ponto de tirar o fôlego - "todas as coisas combinadas nele... reconciliar todas as coisas por ele e para ele"- a linguagem da especulação teológica alcançada na adoração e lou­vor (veja mais abaixo pp. 308ss).16

(c) João 1.1-16 também parece incorporar o que seria um hino an­terior ao Logos, ou melhor, poema; perceba as breves orações rítmicas e de estilo límpido. O poema, provavelmente, consistiria dos vv. 1,3-5, (9), 10-12b, 14,16, com os vv. 6-8, ou 9 e 15 óbvias inserções em prosa servindo como um tipo de polêmica contra uma seita Batista, e os vv.2, 10b, 12c-13, 17-18, como expansões explicativas.17 Uma vez mais a origem do poema é muito debatida. Bultmann, por exemplo, argumen­tou que o quarto evangelista o extraiu de uma fonte gnóstica - que era originalmente um hino em louvor do redentor gnóstico18. Mas a linguagem e o pensamento do poema parecem pertencer a um estágio mais antigo na diversidade de idéias e conceitos, um estágio em que os elementos mais proeminentes eram o conceito estóico do Verbo e (uma vez mais) a especulação judaico-helenística da Sabedoria19. Nitidamen­te palavras e temas gnósticos estão ausentes. Antes devemos dizer que ambos, gnosticismo e o poeta do Verbo extraíram e desenvolveram idéias do mesmo lugar.

Também é questionável se devemos ver aqui um poema pré- cristão. Algumas ou a maioria das linhas especificamente cristãs podem ser tiradas das duas últimas estrofes 9vv. 10-16) sem mui­to transtorno. Mas é plausível remover a linha: "E o Verbo se fez

16 Ver mais em D unn, Christology, pp. 165-6,187-94.17 A questão de reconstruir a forma original do poema é muito complexa para

tomá-la aqui. Um esboço básico parece mais plausível: Estrofe I vv. 1, 3, Es­trofe II, vv. 4-5, (9), Estrofe III, vv. 10-12b, Estrofe IV, vv. 14, 16, (com diversas inserções).

18 R. B ultmann , The Gospel ofjohn , 1964, ET Blackwell 1971, pp. 25ss, 61ss.Ver particularmente o comentário de R. E. B rown , The Gospel according to John, vol. I, Anchor Bible 29, Chapman 1966; D unn, Christology, pp. 239-45.

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carne"?20 As primeiras duas linhas do v. 14 (estrofe 4) são as peças- chave do poema inteiro. Além do mais, elas estão integradas no poema inteiro em estilo e na alusão à Sabedoria (Eclo 24.8). A re­moção da quarta estrofe (vv. 14,16) mutila o poema. Uma vez mais, portanto, temos que ver no poema do Verbo a evidência de uma comunidade cristã familiarizada com o pensamento religioso sincrético da época usando essa linguagem para louvar a Jesus.

Note que aqui há até uma atenção mais focada sobre o estágio da pré-existência da cristologia. O poema termina com a encarnação de Jesus; não se estende à sua morte e ressurreição/exaltação. Isso é tanto joanino como também não-joanino. Falar de Jesus encarnado como cheio de graça e de verdade e de sua plenitude nos recorda a rapidez com que João vê o Jesus terreno em termos de sua exaltação (acima §6.2). Mas falta o forte movimento do Evangelho de João em direção ao clímax da salvação da morte, ressurreição, ascensão e Es­pírito (ver acima p. 156 e abaixo pp. 443ss). Provavelmente, o poema emergiu primeiro na comunidade joanina no estágio inicial de seu desenvolvimento.

(d) Três hinos menores em louvor de Cristo plausivelmente fo­ram identificados nos escritos do NT; esses nós precisamos observar somente de forma rápida. Primeiramente Hebreus 1.3:

E ele, que o resplendor da glóriae a expressão exata do seu ser,sustenta o universo com o poder de sua palavra;,e depois de ter realizado a purificação dos pecados,sentou-se nas alturas à direita da Majestade.

A abertura "que", os particípios, e antes o estilo cerimonioso, são todos indicações de forma hínica. O uso de palavras como "resplen­dor" e "expressão exata", e a terceira linha, tudo nos relembra de Cl 1.15-20 e indica a influência do pensamento judaico helenístico a res­peito da Sabedoria (cf., particularmente, Sabedoria 7.26s.)21.

20 E. K àsemann, "The Structure and Purpose of the Prologue to John's Gospel" (1957), NTQT, cap. VI, encerra o hino com o v. 12. J. T. S anders, The New Testa­ment Christological Hymns, Cambridge University Press 1971, pp. 20-24, encerra- o com a rejeição do v. 11, que parece muito improvável.

21 Ver mais D unn , Christology, pp. 166,206-9.

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(e) 1 Timóteo 3.16:

Ele foi manifestado em carne justificado no Espírito, contem plado pelos anjos, proclam ado à nações, crido no m undo, exaltado na glória.

As linhas estão construídas sobre uma série de contrastes - carne/ Espírito, anjos/nações, mundo/glória. Uma progressão cronológica não pretendida aqui, apesar de o hino certamente incluir um contraste entre o estado terreno de Jesus em humilhação (na carne), e sua exal­tação. O que temos aqui basicamente é uma simples e pura expres­são arrumada do tema da humilhação-vindicação tão proeminente em outros lugares (incluindo F1 2.6-11).

(/) 1 Pedro 3.18s, 22 é muito similar na forma.

Com efeito, também Cristo m orreu um a vez pelos pecados, o justo pelos injustos, a fim de vos conduzir a Deus.M orto na carne, foi vivificado no espírito, no qual foi também pregar aos espíritos em preisão [...] que , tendo subido ao céu, está à direita de Deus, estando-lhe sujeitos os anjos, as Dominações e as Potestades.

O hino está incompleto: provavelmente, em parte citado, e talvez adaptado. Note-se de novo o contraste carne/Espírito, morte/ressur­reição, e a ênfase sobre a exaltação de Jesus sobre os poderes. A teo­logia e as idéias determinando a linguagem desses dois últimos hinos são diferentes daqueles examinados anteriormente, de um tipo mais paulino, e penso que, certamente de contexto helenístico.

(g) Outras passagens sugeridas como hinos crísticos são Efésios 2.14-16, Colossenses 2.13-1522 e 1 Pedro 1.20; 2.21ss. - apesar de eu não estar persuadido de que essas são mais que "escritos rebuscados" dos próprios escritores das cartas. R. Deichgràber também classifica diversas

22 Um recente estudo destas duas passagens é o de C. B urger, Schöpfung und Versöhnung: Studien zum liturgischen Gut im Kolosser-und Epheserbrief, Neukirchen 1975.

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passagens como hinos a Deus - Rm 11.33-36; 2Cor 1.3s., Ef 1.3-14; Cl 1.12- 14; lPd. 1.3-5; veja, por exemplo, as doxologias de lTm 1.17; 6.15s23. Em nenhum desses casos, entretanto, há bases suficientes para isolar de uma forma anterior incorporada pelo escritor. Passagens rebuscadas em uma carta paulina ou petrina não indicam necessariamente um em­préstimo.

Há outro fragmento hínico que poderia ser mencionado - Ef 5.14. E geralmente aceito como sendo um hino, visto que a fórmula intro­dutória é muito menos provável de ser explicada como uma referência às Escrituras:

E por isso que se diz:O tu que dorm es, desperta e levanta-te de entre os m ortos, que Cristo te iluminará

Obviamente é muito diferente dos hinos cristológicos - não no louvor a Cristo. Antes é uma convocação para agir. Os hinários que emergiram na Grã-Bretanha na primeira metade do séc. XX são fami­liares com esse tipo de hino que teria seu lugar na seção intitulada "chamada evangélica".

(h) Também devemos recordar que as igrejas paulinas em parti­cular conheciam ainda outro tipo de hino - "cânticos espirituais" (ICor 14.15; Ef 5.19; Cl 3.16) - hinos espontâneos cantados por um indivíduo ou pela assembléia como um todo em glossolalia - um tipo de louvor que ressurgiu dentro do movimento carismático moderno.

Resumindo, há muitos elementos comuns nos primeiros seis hi­nos discutidos nesta seção. Todos os três primeiros provêm de um contexto bastante similar e refletem influências e pensamento pareci­dos. Eles têm em comum a linguagem da pré-existência e humilhação; somente o poema do Verbo não inclui o motivo da ressurreição/exal­tação e o conseqüente significado cósmico. Os hinos de Colossenses, João e Hebreus enfatizam o papel de alguém pré-existente na criação;o prólogo joanino fala da encarnação em termos claros. O hino fili- pense é determinado pelo paralelo com Adão. Os outros dois hinos

23 R. D eichgräber, Gotteshymnus und Christushymnus in der frühen Cristenheit, Göttingen 1967, cap. II.

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(1 Timóteo, 1 Pedro) também pertencem a um contexto helenístico, mas não mostram nenhuma dívida ao círculo de pensamento acerca da Sabedoria do Verbo [Logos]. Eles também enfatizam a exaltação, mas o contraste é mais simples no terreno/carne do que com a humi­lhação como tal.

4. Nosso estudo dos hinos, que nos foram preservados do período do NT, revelou mais facetas da diversidade do cristianismo do séc.I - em especial, a diversidade que surge quando a adoração reflete os mo­dos e contexto de cada grupo particular de adoradores ou que reflete sua preocupação em usar a linguagem e formas de pensamento de seus contem­porâneos e de seu meio-ambiente, para adorar das maneiras que mais significativamente falam à sua época. (1) Os salmos lucanos refle­tem um cristianismo judaico-palestinense primitivo - o louvor da pie­dade judaico-cristã simples. O fato de terem sido transcritos por ele indica que os cristãos palestinenses continuavam a usá-los, que eles eram capazes de expressar sua adoração (inteira) por salmos que são notavelmente sem elementos distintivamente cristãos (isto é, distinto dos judeus). (2) O hino filipense revela uma reflexão teológi­ca diferente, mas caracteristicamente judaica (apocalíptica, sabedoria, rabínica) de como o pecado de Adão deve ser desfeito. (3) Os hinos do Apocalipse refletem uma forma de cristianismo judaico helenístico- mais inspirativo e profético, mais influenciado pela religião entu­siástica e apocalíptica. (4) Os hinos de Colossenses, João e Hebreus refletem uma forma diferente de cristianismo judaico helenístico - mais sofisticado, mais influenciado pela especulação filosófica e religio­sa a respeito do cosmos, ligada à especulação judaica helenística a respeito da relação entre Deus e o mundo com Jesus. (5) Os hinos de 1 Timóteo e 1 Pedro refletem ainda outro lado do cristianismo helenístico - enfatizando o contraste entre o estado carnal de Jesus e sua exaltação.

Note quão diferentes esses vários hinos são. A simples piedade judaica está bem longe de um brado de sofisticação teológica e de profundidade dos hinos joanino e colossense, caracterizados por sua linguagem filosófica e consciência do pensamento religioso contem­porâneo. Diferente, de novo, é a exuberância apocalíptica dos hinos no Apocalipse. Também diferente da hinologia glossolálica entusiástica das igrejas paulinas.

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Os hinos mais sofisticados são encontrados em uma gama muito variada de literatura - Paulo, João, Hebreus, mais as Pastorais e 1 Pe­dro, se incluirmos os dois últimos. Isso sugere que eram formas típicas de adoração amplamente espalhadas pelas congregações judaico-he- lenísticas - um tipo mais intelectualizado de cristianismo. Ao mesmo tempo os cânticos espirituais eram familiares às comunidades paulinas que teriam valorizado o intelecto e a sabedoria elevadamente (1 Co­ríntios, Colossenses). As outras duas categorias estão em Lucas e em Apocalipse respectivamente - e são os únicos tipos de hinos que tais escritos contêm. Portanto, refletem uma adoração distintiva, e prova­velmente comunidades adoradoras bem mais distintas: de um lado, um cristianismo judaico que em diversos pontos permaneceu mais ju­daico que cristão, de outro um cristianismo apocalíptico no qual as profecias e pronunciamentos entusiásticos de louvor tipificavam a adoração. Examinaremos esses diversos tipos de cristianismo detalha­damente na Parte II.

§ 36. "PAN-LITURGISMO"?

Aonde encontramos unidade em toda essa diversidade? Uma resposta conquistou a proeminência na metade do século passado, é a de que havia de fato elementos unificadores extensos ligando as vidas e a adoração das diferentes comunidades cristãs. É a tese de que em uma data muito antiga formas litúrgicas e catequéticas começaram se desenvolver para a adoração e ensino de várias igre­jas e logo se espalharam amplamente entre as restantes. Caso seja verdade, então temos uma resposta importante à nossa questão: uma liturgia e um catecismo comuns serviam como uma unidade estabilizadora dentro de uma diversidade agitada da comunidade e da adoração cristã do séc. I. Mas em que medida é válida essa tese? Já vimos que várias tradições kerygmáticas, eclesiásticas e éticas cir­culavam entre as igrejas primitivas, em especial tradições acerca de Jesus (§§17-18 acima). Agora temos que ir além e concluir que não somente tradições ou grupos particulares de tradições, mas tam­bém formas catequéticas e litúrgicas estruturadas e coerentes circu­lavam? A tese ganhou suficiente suporte para darmos a ela a nossa atenção.

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1. 1 Pedro forneceu um importante ponto focal nessas pesquisas. Em 1940 P. Carrington notou que havia uma quantia significante de material comum a Colossenses, Efésios, 1 Pedro e Tiago - a saber, as exortações para despojar-se das coisas nocivas, a submeter-se (a Deus e aos anciãos), vigiar e orar e a resistir ao diabo. Ele concluiu que cada um desses escritores extraiu de um padrão comum de ensino, um catecismo batismal, ainda não escrito, mas de amplo uso: "Uma série de fórmulas que tendiam a ser enfatizadas no trato dos candidatos ao batismo nas várias tradições apostólicas, e derivadas de um modo original de procedimento que se espalhou amplamente pela igreja do Novo Testamento e se desenvolveu ao longo de linhas divergen­tes"24.

E. G. Selwyn, seguindo o exemplo de Carrington, lançou sua maior rede, em particular extraindo material de Romanos e 1 Tessa- lonicenses. Ele descobriu um catecismo batismal com cinco seções di­ferentes. (1) A entrada na nova vida pelo batismo: sua base - a Pala­vra, verdade, evangelho; e sua natureza - renascimento, nova criação, nova humanidade. (2) A nova vida: suas implicações negativas e suas renúncias (áespojar-se). (3) A nova vida: sua fé e adoração. (4) A nova vida: suas virtudes e deveres sociais. (5) Ensino motivado pela crise: vigilância e oração (sede sóbrios); e firmeza (ficai firmes). Ele data esse padrão a 50-55 d.C., e acha que circulava em um bom número de ver­sões escritas para o uso dos mestres em diferentes distritos e grupos das comunidades.25

Outros foram mais além. Em particular, H. Preisker e F. L. Cross argumentaram que 1 Pedro incorpora não apenas um catecismo batis­mal ou um sermão batismal (outra visão popular), mas de fato uma elaborada liturgia mais ou menos com se apresenta26.

O desenvolvimento da Crítica das Formas e seu aparente sucesso no caso de 1 Pedro levaria outros a vasculhar o NT por formas litúrgicas.

24 P. C arrington , The Primitive Christian Catechism, Cambridge University Press, 1940, p. 90.

25 E. G. S elwyn , The First Epistle o f St Peter, Macmillan 1947, pp. 363-466.26 H. P reisker, revisão de H. W indish, Die katholischen Briefe, HNT, 3a ed., 1951,

pp. 156-62; F. L. C ross, I Peter - A Paschal Liturgy, Mowbray 1954. Ver também M. E. B oismard, "Une liturgie baptismale dans la Prima Petri", RB, 63, 1956, pp. 182-208; A. R. C. L eaney, "I Peter and the Passover: an Interpretation", NTS, 10,1963-64, pp. 238-51.

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Efésios era um candidato óbvio por causa de seus paralelos do tipo catequético com 1 Pedro. A tese mais ambiciosa foi a de J. C. Kirby. Ele argumenta que: "Quando as seções epistolares de Efésios são removi­das, ficamos com um documento completo em si mesmo que poderia ser usado em um ato de adoração" - um ato de adoração que "teria uma estreita conexão com o batismo, embora não necessariamente com a administração do sacramento em si". Provavelmente foi: "Uma forma cristianizada de renovação da aliança; o líder de Efeso decidia usar essa cerimônia de pentecostes como a base para sua carta"27. Ao mesmo tempo, A. T. H anson descobria: "Elementos de uma liturgia batismal" em Tito 2-3, baseado principalmente em paralelos entre Tito por um lado e 1 Pedro e Efésios por outro28.

Em um grau menor, diversos dos hinos examinados acima foram especificamente identificados como batismais. P. Vielhauer considera o Beneâictus como um hino batismal29. Lohmeyer pensava que o hino fili- pense pertencia a um contexto eucarístico; mas outros são mais incli­nados a ver que o hino filipense é mais uma recordação aos cristãos do significado de seu batismo30. Kàsemann toma Colossenses 1.12-20 como uma "liturgia batismal cristã primitiva"31, enquanto G. Bornkamm liga Hebreus 1.3 com a celebração da ceia do Senhor.32 Outros argumenta­ram, por exemplo, que 1 Tessalonicenses 1.9s. é um hino batismal,33 que Colossenses 2.9-15 contém outro,34 que 1 João é uma "recordação do ba­tismo",35 e que Apocalipse 1.5 usa uma liturgia batismal estabelecida.36

27 J. C . K i r b y , Ephesians: Baptism and Pentecost, S P C K , 1968, pp. 150,170.28 A. T. H anson, Studies in the Pastoral Epistles, SPCK, 1968, cap. 7.29 P. V ielhauer, "Das Benedictus des Zacharias (Luke 1.68-79)", ZTK, 49, 1952,

pp. 255-72.30 M artin , Carmen Christi, pp. 81s, 292-4; ver particularmente J. Jervell, Imago Dei,

Göttingen 1960, pp. 206-9.31 K äsemann , ENTT, pp. 149-68.32 G. B ornkamm , "Das Bekenntnis im Hebräerbrief", Studien zu Antike und Urchris­

tentum: Gesammelte Aufsätze, II, München 1963, pp. 196s.33 G. F riedrich, "Ein Tauglied hellenistischer Judenchristen I Thess 1.9s.", TZ, 21,

1965, pp. 502-16.34 G. S chille, Frühchristliche Hymnen, Berlin 1965, p. 43.35 W . N au ck , Die Tradition und der Charakter dês ersten Johannesbriefes, Tübingen

1957, p. 96.36 P. von der O sten-S acken , "Christologie, Taufe, Homologie: ein Beitrag zu Apc.

Joh. 1.5s.", ZNW, 58,1967, pp. 255-66. Sobre as tentativas de 1er uma ordern de

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Os Evangelhos, certamente, tão pouco escaparam da rede, embora seu papel na adoração cristã primitiva seja reconhecido diferentemen­te. Assim, em particular, Carrington interpretou Marcos como um le- cionário projetado de acordo com um ano litúrgico37. G. D. Kilpatrick considera Mateus como "um livro litúrgico" designado para a leitura e exposição pública (selecionadas)38. M. D. Goulder elabora grandemen­te uma posição similar - considerando todos os três sinóticos como livros lecionários, Marcos para uma parte do ano, Mateus para um ano inteiro seguindo o ciclo festivo, Lucas para um ano, mas seguindo o ciclo sabático39. E A. Guilding sugeriu que um dos objetivos do quarto evangelista ao preservar uma tradição dos discursos e sermões sinago- gais de Jesus em uma forma que se encaixaria para o uso litúrgico nas igrejas.40

2. Avaliação. Preciso confessar que acho que muitas dessas teses não são convincentes - especialmente em dois pontos. Primeiro; não es­tou certo o quanto é válido argumentar a partir das similaridades com o ensino para estabelecer formas catequéticas. Certamente havia uma quantidade significativa de material de ensino comum - em particular os imperativos para despojar, sujeitar-se, vigiar, para se perseverar ou resistir. Mas sabemos como rapidamente indivíduos diferentes, com entusiasmo ou lealdade comum podem desenvolver uma linguagem comum, com seu próprio jargão ou termos técnicos usando palavras e frases. Com um grau razoável de mobilidade entre as comunidades cristãs diferentes, uma linguagem comum de exortação e um estilo de exortar os crentes reunidos poderiam se disseminar. Que diferentes

service religioso em Apocalipse de João ver K. P. J õrns, Das hymneische Evange- lium: Untersuchungen zu Aufbau, Funktion und Herkunft der hymnischen Stiicke in der Johannesoffenbarung, Gütersloh 1971, pp. 180-84.

37 P. C arrington , The Primitive Christian Calendar, Cambridge University Press 1952. Ver W. D . D avies, "Reflections on Archbishop Carrington's The Primitive Calendar", BNTE, pp. 124-52.

38 G. D. K ilpatrick, The Origins o f the Gospel according to St Matthew, Oxford Univer­sity Press 1946, cap. V.

39 M. D. G oulder, Midrásh and Lection in Matthew, SPCK 1974; The Evangelists Calendar. A Lectionary Explanation o f the Development o f Scripture, SPCK 1978.

40 A. G uilding , The Fourth Gospel and Jewish Worship, Oxford University Press 1960, pp. 54, 57. Ver também L. M orris, The New Testament and the Jewish Lectionaries, Tyndale Press 1964.

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autores usem as mesmas palavras e idéias ou similares para descrever a grande apropriação indébita em sua base, natureza e acabamento também é notável, mas não surpreendente. O fato é que esses autores se serviam em larga escala de um fundo de metáforas e símbolos co­muns às várias religiões de seu tempo, como os paralelos com os mis­térios helenísticos e os rolos do Mar Morto deixam claro. E, uma vez mais, idéias de re-nascimento, nova criação, luz e trevas, descartando a antiga vida e seus malefícios, aceitando a mensagem evangélica, e aderindo à nova vida e às suas práticas, havia se tornado correntes entre os cristãos, naturalmente eles emprestariam para si mesmos o tipo de exortações tão freqüentes nas epístolas do NT. Assim antes de fazer uso demasiado, por exemplo, da repetição de uma palavra como apothesthai (despojar-se), devemos perguntar que outra palavra também expressaria uma metáfora tão natural e comum para tal fala. Conseqüentemente, não estou totalmente convencido pelas tentativas de construir essas similaridades de linguagem e estilo em uma ou duas formas catequéticas amplamente reconhecidas e estabelecidas.

Segundo: meu mal-estar aumenta quando essas formas catequéti­cas se tornam explicitamente catecismos batismais.

(a) O fato é que não sabemos quão desenvolvida era a cerimônia de batismo na época dos documentos do NT. A extração de dados dos escritores tardios como Hipólito (séc. III) conforme faz Cross, ou Teo- doro de Mopsuestia (séc. IV ou V)41 nada prova de uma carta como 1 Pedro. O fato é que não há nenhuma referência expressa ao catecumenato antes da virada do ano 200.

(b) Creio que a evidência dentro do próprio NT é desfavorável a essas teses. Atos não dá nenhuma instrução aos que pediam o batismo - o fato aumenta em significância ainda mais quando entendemos que Lucas recorda práticas em sua história da Igreja primitiva (veja abaixo pp. 512ss). Algumas vezes, Atos 8.37 é citado como um exemplo de instrução pré-batismal; mas é uma adição tardia do "texto ocidental" e não deriva da séc. I, e assim, dificilmente, sustenta a teoria que vê prova de formas desenvolvidas e estabelecidas de instrução ética em Colossenses e em 1 Pedro. Além disso, não há nada formal a respeito do que é descrito como uma pergunta e uma resposta espontâneas;

41 B. R eicke, The Desobedient Spirits and Christian Baptism, Copenhagen 1946, pp. 191-5.

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antes é muito mais próximo de Atos 2.37-39 do que de uma instrução catequética. Com efeito, Atos 2.37-39 sugere que se alguma coisa po­deria ser chamada de instrução pré-batismal, nas igrejas primitivas, não foi mais que a concludente aplicação e exortação do sermão (cf. as pregações de João Batista - Lc 3.7-14). Por mais que se procurem paralelos com a instrução dada aos prosélitos antes do batismo42, o mais notável é a completa ausência de qualquer menção de tal ins­trução em quaisquer dos batismos registrados em Atos (ver também a p. 131).

(c) Rm 6.17 é, comumente, citada como a indicação mais provável de uma catequese estabelecida. Mas tupos didachês (padrão de ensino) provavelmente é mais identificado com o evangelho. A distinção co- mummente feita (por Dodd e outros) entre kerygma e didaquê (ensino) é artificial e não-paulina: transformando-se em obediência em Paulo é regularmente obediência ao evangelho (p.ex. Rm 1.5; 16.26). E tupos em outros lugares na literatura paulina sempre se refere a uma pessoa ou a conduta de um indivíduo particular (Rm 5.14; ICor 10.6; F1 3.17; lTs 1.7; 2Ts 3.9; lTm 4.12; Tt 2.7). Todas sugerem que em Romanos 6.17 temos um pensamento muito similar ao de Colossenses 2.6, sendo que o "padrão de ensino" é outra referência a tradição-Jesus (ver acima §17.3).

(d) Na medida em que a distinção entre kerygma e didaquê é vá­lida, Mateus 28.19s. sugere que qualquer ensino sistemático seguido do batismo, e que a convocação ao batismo era simplesmente a conclusão da pregação.43 Igualmente, a lista de Hebreus. 6.1s refira-se ao con­teúdo da pregação que resultaria na conversão dos leitores: todos os seis elementos (exceto a imposição de mãos) aparecem na pregação evangelística de Atos; e Paulo, certamente, lançou a fundação (ICor 3.5- 11) mediante sua pregação. Os coríntios receberam (parelabete) e Paulo transmitiu (paredõka) o depósito comum de instrução por meio de sua pre­gação evangelística (euêggelisamên) (15.1-3).

(e) A evidência dos próprios evangelhos é que elementos da tra­dição-Jesus foram retidos e passados adiante em formas reconhecidas

42 Cf. D . D aube, "A Baptismal Catechism", The New Testament and Rabbinic Judaism, London 1956, pp. 106-40.

43 Cf. W. R obinson, "Historical Survey of the Church's Treatment of New Converts with reference to Pre- and Post-baptismal Instruction", JTS, 42,1941, pp. 143-5.

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e que essas formas foram agrupadas, em certa medida, em coleções de tópicos, mas também que as formas foram livremente combinadas e re-combinadas em diversos modos para servir a uma ampla variedade de situ­ações de ensino (p.ex. o uso partilhado por Mateus e por Lucas de Mar­cos e do material de Q). Seria, portanto, injustificado presumir que tal tradição-Jesus, como os novos convertidos receberam no início (acima §17.3) foi passada adiante em algum padrão estabelecido ou mesmo necessariamente regular44.

3. Igual a sugestão de liturgias batismais elaboradas já existentes no período do NT, a evidência aqui é frágil.

(a) Não há nenhuma prova real, seja lá qual for, de que nas duas primeiras gerações do cristianismo os batismos eram cerimônias or­ganizadas em que as congregações reunidas cantassem hinos consa­grados. A informação que temos no NT sugere que pelos primeiros 50 anos pelo menos, o ritual de iniciação ainda era muito simples e espontâneo, flexível e não fixado em um esquema rígido - consistindo basicamente da confissão dos batizandos, uma imersão com a fórmula batismal (em nome de Jesus), e (em muitos lugares e em muitas ocasiões) uma imposição de mãos. Além disso, o que temos não é base firme, e entramos no campo da especulação. O fato de ritos diferentes batismais desenvolvidos no cristianismo oriental e no cristianismo ocidental não significa que um rito era original e o outro não, mas indica antes a fluidez e a informalidade dos procedimentos de iniciação nas origens- das quais as diferentes formas se desenvolveram.

(b) A evidência mais clara no NT é aquela de Atos, que vai total­mente contra a hipótese litúrgica - novamente um fato de maior sig­nificado para aqueles que pensam que Lucas estava lendo a prática eclesiástica tardia (dos anos 80 ou 90) retornando ao período primitivo. Note particularmente Atos 8.36, 38 - o pedido de batismo respondido 55 imediatamente e sem demora; At 16.14s. - O coração de Lídia foi aberto para receber a palavra de Paulo e ela foi batizada (em seguida); At 16.33 - batizado no meio da noite!; At 18.8 - muitos crendo e sendo batizados. J. M unck , razoavelmente avalia a evidência quando escreve: "Em Atos, como no restante do NT, parece não haver nenhuma hesita­ção em se aplicar o batismo. De modo que é consideravelmente casual

Ver também minha obra Living Word, ckp. 2.

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comparado com a cerimônia formal moderna, batiza-se um e passa-se a outro"45.

(c) Contra essa forte evidência de Atos tudo o que se oferece são inferências e alusões possíveis - inferências e alusões que comumente recaem em um argumento circular, visto que dependem da pressupo­sição de que o batismo era uma ocasião litúrgica formal. Pode-se ser perdoado por concluir do teor de tais argumentos que, por exemplo, o batismo era a única ocasião quando as igrejas primitivas agradeciam o perdão dos pecados, ou que o amor de Cristo era o tema exclusivo para a linguagem batismal. W. C. van Unnik adverte - contra: "Certo 'pan- liturgismo', que se vê em todo lugar nas epístolas paulinas, contexto da liturgia, sempre que um simples paralelo de fraseado entre elas e as liturgias muito mais tardias é encontrado"46.

(d) 1 Pedro em particular, provavelmente é mais que uma sim­ples carta endereçada aos novos-convertidos - uma carta em que o es­critor com freqüência retrocede aos inícios de sua experiência cristã.O tempo perfeito de lPd 1.22s parece rever um evento que ocorreu algum tempo atrás. 1 Pedro 1.5-7, igualmente sugere uma experiência presente e contínua de manter o poder de Deus seguido de um com­promisso anterior. E sua descrição dos crentes como crianças (lPd 1.14) e recém-nascidos (lPd 2.2) implica não mais que uma conversão bastante recente, não mais que isso. Outros traços, que geralmente são tomados para indicar um sermão (os sete "agora" e lPd 1.8 su­gerem tal expediente), podem adequadamente ser entendidos como parte da carta47.

(ie) Nossos achados anteriores também se refletem aqui. E digno de nota que o solo mais fértil para os pioneiros do "pan-liturgismo" são as

45 J. M unck, Paul and the Salvation of Mankind, 1954, ET SCM Press 1959, p. 18, n. 1.46 W. C. van U nnik , "Dominus Vobiscum: the background of a liturgical formula",

NTETWM, p. 272.47 Ver mais C. F. D. M oule, "The Nature and Purpose of I Peter", NTS, 3 , 1956-57,

pp. 1-11, reimpresso em: Essays in New Testament Interpretation, Cambridge Uni­versity Press 1982, pp. 133-45; T. C. G . T hornton , "I Peter, A Paschal Liturgy?", JTS ns, 12,1961, pp. 14-16. A tese da liturgia baptismal não atrai nenhuma sus­tentação nos comentários recentes - L. G oppelt, "Der erste Petrusbrief", KEK, Gõttingen 1978, pp. 38-40; N. B rox, "Der erste Petrusbrief", EKK, Benziger/ Neukirchener 1979, pp. 19-23; J. R. M ichaels, I Peter, Word Biblical Commentary 49, Word 1988, pp. XXXVIII-XXXIX.

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cartas paulinas e aquelas que pertencem ao círculo paulino (inclusive1 Pedro). Mas, como vimos, nas igrejas paulinas a espontaneidade e a flexibilidade eram traços dominantes de sua vida cotidiana; a adoração era uma combinação ad hoc das formas mais consagradas (salmos, hi­nos, leituras, etc.) e os pronunciamentos mais espontâneos (cânticos espirituais, profecias, etc.) (ver acima §34.3). E dentro desse contexto que o tipo de ensino e exortação, em que Carrington e Selwyn, etc. focaram a sua atenção, deve ser avaliado; e contra esse contexto é muito difícil dar qualquer crédito a tese de que as igrejas da missão paulina observa­ram qualquer liturgia conhecida, isolando uma cerimônia litúrgica batismal consagrada.

4. Quanto às hipóteses do lecionário considerando os evangelhos, elas são, provavelmente, as menos convincentes de todas.

(a) Não há qualquer prova de que os pressupostos ciclos de le- cionários judaicos especialmente por Guilding e Goulder já existissem no séc. I d.C. Leituras particulares das Escrituras possivelmente esti­vessem associadas com as festas nessa época, mas não há nenhuma evidência de que houvesse um lecionário festivo consagrado.

{b) As teses geralmente pressupõem que as igrejas cristãs primi­tivas queriam continuar celebrando o ano judaico. A evidência rela­cionada às igrejas paulinas é bem contrária: Paulo é francamente an­tipático a visão de que seus convertidos devessem observar as festas judaicas (Rm 14.5ss.; G14.10s.; Cl 2.16s.); mas cf. Atos 20.16. Seria jus­tificável presumir que era o contrário nas comunidades judaico-cristãs mais conservadoras. Mas onde está a prova de que Marcos ou Mateus se interessam plenamente pelas festas judaicas? O interesse de João nas festas que menciona (Páscoa, Tabernáculos, Dedicação) demonstra que Jesus é o cumprimento delas (ver acima p. 227); qualquer tentativa de demonstrar elos de lecionário, além disso, extrapola os limites do texto.

(c) Novamente as hipóteses do lecionário implicam uma preocu­pação por um grau de regularidade e de ordem na adoração nitida­mente cristã das igrejas do séc. I que não encontram nenhuma prova real. O testemunho das cartas paulinas certamente não lhes dá nenhu­ma sustentação - muito menos Mateus e João. E a descrição de Justino,o mártir, da adoração do séc. II é pertinente e reveladora: "As memó­rias dos apóstolos ou os escritos dos profetas são lidos quando o tempo

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permite" (Apol., — itálicos meus). Em outras palavras, até na metade do séc. II não havia ainda nada prescrevendo leituras - e, por conseguinte, nenhum espaço para um lecionário.

§ 37. CONCLUSÕES

1. Há pouca dúvida a respeito da diversidade de adoração que havia no cristianismo primitivo. A evidência é clara do alcance dessa diversi­dade - diversidade sobre a continuidade da relevância das tradições judaicas de adoração e a extensão em que a forma e a ordem seriam deixadas para a inspiração criativa do Espírito em cada assembléia; diversidade como se a adoração fosse um assunto principalmente in­dividual ou comunitário (acima §34.5); a diversidade dos hinos cujo estilo reflete modelos e modos diferentes de adorar e cuja linguagem e preocupações refletem os diferentes meios apologéticos dos adora­dores (§35.4).

Onde em tudo isso a diversidade encontra a unidade? Não nas formas litúrgicas e catequéticas consagradas. Havia certamente um bom número de hinos com aceitação bem ampla, pelo menos entre as igrejas influenciadas por Paulo. Tradições de Jesus forneciam um laço unificador pelo menos quando eram repetidas, interpretadas e discutidas dentro da adoração. Estilos e metáforas similares são evi­dentemente detectáveis, mais uma vez dentro da literatura do judaís­mo helenístico e das igrejas gentílicas. Mas precisamente nessas igre­jas a liberdade de adoração no Espírito significava que essas formas mais regulares somente complementavam ainda mais as contribui­ções espontâneas dos adoradores, e onde as mesmas eram usadas em combinações muito individuais e variadas pela espontaneidade da inspiração e do louvor.

2. Um elemento unificador claro parece se suscitar - e esse é Cristo. Nas comunidades primitivas, hebreus e helenistas, podiam justificar seus padrões de adoração apelando às palavras e às obras de Jesus. Os traços da adoração cristã primitiva, preservados nas igrejas de fala grega são precisamente aqueles derivados mais claramente do Jesus terreno - particularmente a oração ‘abba (Rm 8.15s.; G1 4.6) e a oração do Senhor (Mt 6.9-13/Lc 11.2-4) - ou centrada no Jesus exaltado (Mara-

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natha - ICor 16.22). Em Paulo, é precisamente a assembléia adoradora que Paulo pensa como o corpo de Cristo, precisamente a comunidade carismática da qual ele diz: "Assim também é com respeito a Cristo" (ICor 12.12). O único hino nas pastorais é um hino cristológico (lTm 3.16) e três dos cinco dos ditos "fiel é a palavra" são a respeito de Cris­to (lTm 1.15; 2Tm 2.11-13; Tt 3.5-8), focando a atenção igualmente em sua missão terrena como também na celestial. Em Mateus a adoração é capacitada e a comunidade é constituída precisamente pela presença de Jesus (exaltado) em seu meio - assim Mateus 18.20, um dito con­servado dentro do contexto (terreno) da tradição-Jesus ~ e igualmente da missão (Mt 28.18-20). Em João a adoração que o Pai procura é, pois, precisamente a adoração em Espírito de/proveniente de Jesus (o "ou­tro Consolador") e conforme a verdade revelada em Jesus (Jo 4.23s.). Finalmente em Hebreus, precisamente, é o homem Jesus, em carne e sangue como nós, que vai a frente como um desbravador ao abrir o caminho para o Santo dos Santos, à presença imediata de Deus para aqueles que o seguem (Hb 2.5-15; 10.19-22); é precisamente esse Jesus que como sumo sacerdote no templo celestial traz auxílio ao adorador atribulado (Hb 2.17s; 4.14-16).

O mesmo é verdadeiro dos hinos cristãos primitivos estudados acima. Há claramente tributos a Deus no Apocalipse e doxologias a Deus em Paulo. E o que se deve esperar nas comunidades gentílicas, assim como encontramos fórmulas confessionais que confessam não somente o Senhorio de Cristo, mas também a unidade de Deus (acima pp. 129s). Fora disso, o tema distintivo e unificador de todos os hinos é o significado que adicionam a Jesus - e isso inclui Efésios 5.14, e os salmos lucanos em que Maria e João Batista são os protagonistas, por­que Maria e João ganham significado precisamente de sua relação com Jesus, como mãe e como precursor. Os salmos lucanos concentram-se no livramento proporcionado pelo Messias. Mas no restante o elemen­to mais comum é o Jesus exaltado. Havia a consciência de seu status presente e de sua presença exaltada que evidentemente era a principal inspiração para quase todos esses hinos. Em particular, era essa a cren­ça em sua exaltação naquele momento que leva o adorador a louvá-lo na linguagem da Sabedoria pré-existente. Tão proeminente e tão re­gular, ainda que expressa em diferentes maneiras, é a identidade do Senhor exaltado atual com o Jesus humano - o Cordeiro que foi morto, o Homem (o Adão obediente) tornòu-se o Senhor de todas as coisas

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(o Adão escatológico), o primogênito dos mortos, a Palavra encarnada a fonte da graça, o homem de carne justificado no Espírito, morto, mas ressurreto.

3. Em resumo, quando estudamos a adoração das igrejas cristãs do séc. I descobrimos o mesmo tipo de padrão de unidade e de diversidade que emergiram em outras áreas de nossa pesquisa - uma unidade cen­trada na fé no homem Jesus, agora exaltado, mas em torno dessa uni­dade uma diversidade que exibe quase uma variedade interminável onde quer que olhemos.

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C a p í t u l o VIII

OS SACRAMENTOS

§ 38. INTRODUÇÃO

Portanto, as marcas da verdadeira Igreja Escocesa de Deus nas quais nós cremos, confessamos e declaramos são: primeira, a verdadeira pregação da palavra de Deus em que Deus revelou a si mesmo a nós, como os escritos dos profetas e apóstolos declaram; segunda, a correta administração dos sacramentos de Cristo Jesus, que precisa ser anexada à Palavra e promessa de Deus, para selar e formar as mesmas coisas em nossos corações. Por fim, a discipli­na eclesiástica corretamente administrada, como a Palavra de Deus prescreve e pela qual, o vício é reprimido e a virtude é nutrida... (Confissão Escocesa, 1560, artigo 18).

Ninguém negaria que aqui "a Palavra de Deus" e "os Sacramen­tos de Cristo Jesus" são de importância central como focos de unidade no cristianismo do passado e do presente - ainda que a questão do que seja a verdadeira pregação e a correta administração dos outros tenham con­tribuído mais para a divisão do que para a unidade, e a própria inter- relação entre as duas nunca tenha sido finalmente resolvida. Os sécu­los anteriores à Reforma foram marcados por uma tendência crescente em focar a graça, a autoridade e a unidade mais e mais exclusivamente por meio dos sacramentos, com uma conseqüente diminuição do papel dado à palavra pregada. Na Reforma esses papéis foram salientemente invertidos e a palavra foi exaltada acima dos sacramentos. Assim o Catecismo de Heidelberg - "a fé é produzida em nossos corações pela pregação do santo evangelho, e confirmada pelo uso dos sacramen­tos" (Questão 65). Calvino é mais incisivo - "Nada é mais absurdo do que exaltar os sacramentos acima da Palavra, cujos apêndices e selos

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são eles"1. Essa ênfase alterada se refletiu na arquitetura eclesiástica, com o púlpito ocupando a posição central na igreja reformada típica. Desde então o debate tem se processado em tons menos estridentes, mas com diferenças que ainda são profundas. O movimento litúrgico ganhou influência crescente, mais claramente marcado pela maneira em que a mesa da comunhão tem sido centralizada na adoração com o púlpito com proeminência reduzida. Ao mesmo tempo um impacto ainda duradouro tem sido feito pela teologia da palavra que ganhou seu estimulo principal de Karl Barth: "A pressuposição que faz a pro­clamação ser proclamação, e por isso a igreja ser a igreja, é a Palavra de Deus"2. Muitos sustentariam que um equilíbrio mais feliz entre a Palavra e o Sacramento se realizou em anos recentes, mas isso parece algumas vezes conquistado ao custo de obscurecer alguns dos temas vistos mais claramente nos séculos primitivos: em particular, Quais são "os meios de graça" (propriamente falando) - como Deus ministra a graça à humanidade? Quais são os papéis do símbolo e da racionalidade nesse processo? Que tipo de comunicação ou integração do divino e humano isso envolve?

Aqui, mais uma vez, encontramos algumas sugestões das discor- dâncias dos últimos séculos para investigar como as coisas se posicio­navam no séc. I. Já vimos com algum cuidado a importância da pre­gação e o papel da palavra kerygmática e escrita durante esse período (caps. II-V acima). Agora precisamos inquirir o papel dos sacramentos dentro da unidade e da diversidade das igrejas primitivas. O batismo e a ceia do Senhor certamente eram fatores unificadores de alguma significância:

Esforçando-vos diligentemente por preservar a unidade do Espírito no vínculo da Paz: Há somente um corpo e um Espírito... um só Senhor, um a só fé, um só batismo... (Ef 4.3ss.);

Porque nós, embora muitos, somos unicamente um pão, um só corpo, porque todos participam os do único pão (IC or 10.17).

Porém, o que significam essas declarações na prática? Ao redor dessa unidade o que é a diversidade? Qual sentido anexado aos atos

1 Essas referências são traçadas por de G. D. H enderson, Church and Minitry, Hodder & Stoughton 1951, p. 38.

2 Church Dogmatics, l / l , ET T.& T. Clark’1936, p. 98.

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rituais em cada estágio da expansão cristã, em cada centro da comuni­dade cristã? O que levou os cristãos primitivos a isolar somente esses dois?3 Em que extensão e de que forma derivam de Jesus? Quais influ­ências moldaram seu desenvolvimento? Que papel desempenhavam no encontro divino-humano? Podemos falar propriamente deles como "sacramentos" desde o início? Tentaremos traçar brevemente o desen­volvimento da forma e significância do batismo e da ceia do Senhor um por vez; ainda que a atitude do quarto evangelista seja um tanto característica (e muito discutida), trataremos do Evangelho de João se­paradamente.

§ 39. O BATISMO

1. Origens do batismo. Várias são as sugestões para as origens do batismo cristão - abluções cerimoniais judaicas, ritos de purificação de Qumran, batismo de prosélitos, o batismo de João. Desses o último, o ato ritual que deu a João Batista seu apelido, certamente deve ser considerado como antecedente imediato do batismo cristão. Um elo direto é estabelecido pelo próprio batismo de Jesus por João; e o Quar­to Evangelho confirma o que teria sido um palpite, que alguns dos discípulos mais antigos de Jesus foram anteriormente discípulos de João Batista (Jo 1.35-42). O batismo de João em si é provavelmente mais compreendido como uma adaptação dos rituais de ablução judaicos, com alguma influência de Qumran em particular4.

Se o batismo cristão deriva do batismo de João precisamos tentar entender o sentido que o rito tinha para o próprio João. Assim, até onde podemos afirmar, o batismo de João tinha um duplo significado para os seus ouvintes5, (a) Primeiro: era um batismo de arrependimento- um ato por meio do qual o batizado expressava seu arrependimento. Isso é como Marcos e Lucas o descrevem (Mc 1.4; Lc 3.3; At 13.24; 19.4); Mar­cos e Mateus falam que todos eram batizados no Jordão confessando

1 Eu limito minha discussão neste capítulo aos dois "sacramentos ecumênicos".1 Ver p.ex., a discussão em G. R. B easley-M urray, Baptism in the New Testament,

Macmillan 1963, pp. 15-18,39-43; Paternoster 1972.’’ Muito do que se segue no §§39.1,2 é uma tentativa de resumir a discussão con­

tida em: J. D. G. D unn , Baptism in the Holy Spirit, SCM Press 1970, caps. II e III.

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os seus pecados (Mc 1.5; Mt 3.6); e Mateus registra que o Batista pro­clamava; "Eu vos batizo com água (por ou) para arrependimento" (Mt 3.11), que é melhor compreendido como significando a própria ação de decidir ser batizado ajudando a cristalizar o arrependimento e lhe dar completa expressão. Podemos acrescentar que Marcos e Lucas usam a frase mais completa: "Um batismo de arrependimento (por ou) para o perdão de pecados" (Mc 1.4; Lc 3.3). Mas isso não deve ser tomado para pressupor que mesmo João ou os evangelistas pensavam do seu batismo como meio para alcançar ou mediar o perdão dos pecados. Mesmo que João pensasse que o perdão pudesse ser experimentado ali antes de esperar o ministério Daquele que viria, o que é discutível- a edição de Mateus em 3.2, 11 e 26.18 indica que ele era alguém que pensava que o perdão viria somente mediante o ministério de Jesus - o grego é adotado porque expressa melhor que o perdão era o resultado do arrependimento e não do batismo como tal (cf. Lc 24.47; At 3.19; 5.31; 10.43; 11.18; 26.18). Isto é, o batismo de João era visto como o meio de expressar o arrependimento que trazia o perdão de pecados.

(b) Segundo: o batismo de João era preparatório para o ministério decisivo Daquele que viria: João batizava em água, mas aquele batizaria no Espírito e no fogo (Mt 3.11/Lc 3.16). O último seria um ministério de juízo - ou fogo (Mt 3.10-12/Lc 3 .9 ,16s.), de vento e fogo, ou melhor, de espírito abrasador (cf. Is 4.4). Mas também um ministério de miseri­córdia e salvação, porque João sustenta isso como uma promessa mais do que uma ameaça para aqueles que se submetiam ao seu batismo: "Eu vos batizo... mas ele vos batizará" - o batismo de João era uma pre­paração para o batismo no Espírito e no fogo. Daí a implicação é queo batismo no Espírito e no fogo seria purificador, um ato ou processo de aperfeiçoamento, que só poderia destruir o impenitente e purifi­car o penitente6. Em outras palavras, "o batismo em Espírito e fogo" é a metáfora de João para os infortúnios messiânicos, o período da grande tri­bulação, sofrimento e destruição que era esperado preceder o estabe­lecimento do reino messiânico (ver p.ex. Zc 14.12-15; Dn 7.19-22; 12.1; lEn 100.lss., Oráculos Sibilinos 111.632-51; 1QH 3.29-36).7 "Batizâr" era uma metáfora que foi particularmente expressiva aqui, especialmente quando extraída de um rito de batismo em um rio, visto que o rio e o

6 Ver J. D. G. D unn , "Spirit and Fire Baptism", NovTest 14,1972, pp. 81-92.7 Ver mais S track-B illerbeck, 1.950; IV.9/,7-86; e nota 8 abaixo.

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dilúvio são familiares no AT como metáforas por serem subjugados pela calamidade (cf. esp. o SI 69.2,15; Is 43.2; e mais especialmente Is 30.27s.). Então, claramente João usou essa metáfora para o ministério Daquele que viria porque viu seu próprio batismo tanto como simbo­lizando seus efeitos e preparando para isso.

2. O batismo de Jesus por João. Admitindo o sentido que foi atribuí­do ao batismo de João, precisamos inevitavelmente perguntar se o ba­tismo de João se tornou alguma coisa extraordinária quando Jesus foi batizado, (a) Ainda era um batismo de arrependimento? E muito claro que a tradição de Jesus submetendo-se a um batismo de arrependimento era uma fonte de algum constrangimento para muitos dos cristãos pri­mitivos (cf. Mt 3.14s.; Jerônimo, contra Pelag., III.2). Mas porque Jesus escolheu aceitar o batismo das mãos de João? - a fim de se tornar um discípulo de João? - com vistas ao reino vindouro? - como dedicação ao ministério que acreditava a ser chamado? A resposta não é clara; mas no mínimo podemos dizer que o batismo de Jesus por João deve ter sido uma expressão da resolução de Jesus, de uma forma ou de outra, e nessa medida, pelo menos, não era tão diferente do batismo de João para arrependimento (ver acima p. 255).

(b) Era ainda um batismo preparatório? A dificuldade aqui é que de acordo com nossos registros o Espírito veio sobre Jesus diretamen­te, e não da maneira que aquela metáfora de João sobre o batismo do Espírito e fogo antecipava. Por outro lado, temos que reconhecer que a descida do Espírito não foi pensada como uma parte constituinte do batismo de Jesus por João. A linguagem dos evangelhos indica que o batismo já havia se completado ijuando o Espírito desceu. Além do mais, tam­bém está claro em todos os quatro evangelhos, que o elemento princi­pal no episódio todo é a descida do Espírito (Mt 3.16; Mc 1.10; Lc 3.21s.; Jo 1.32-34). Portanto, parece que apesar dos evangelistas quererem de nós o reconhecimento de que o Espírito foi dado a Jesus em resposta ao aeu batismo, quer dizer, presumivelmente, em resposta à sua dedicação expressa no batismo. E que em alguma medida podemos dizer que até no caso de Jesus, o batismo de João ainda era essencialmente preparatório. Não Homente isso, mas visto que Jesus claramente considerou do poder do líspírito operante através de si na proclamação e cura como o poder doI inal dos tempos (veja acima pp. 79ss e abaixo §45.3), também podemosI I izer que, mesmo no caso de Jesus, o batismo de João era preparatório

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para o ministério escatológico do Espírito. O relacionamento entre os dois estava cronologicamente mais próximo, mas não essencialmente diferente daquele previsto por João.

3. O batismo no ministério âe Jesus. Jesus batizava? João 3.22, 26, 4.1 olha muito mais como uma tradição para essa prática. Se for verdade, então a tradição também implica que ele simplesmente levou adianteo batismo de João (Jo 3.22s, 26). Mas a própria administração de Jesus do batismo é negada por João 4.2, e nos falta evidência confirmatória em outros lugares. No máximo, podemos dizer, portanto, que Jesus e/ ou seus discípulos podiam ter batizado convertidos no início, mas eles logo desistiram disso. Por quê? Por que abandonaram a prática de bati­zar tão rapidamente, ou de fato não batizaram em absoluto? A resposta parece de novo ser dúplice, (a) Porque Jesus, provavelmente, viu seu próprio ministério como cumprimento da expectativa de João. Ele mes­mo já estaria experimentando o Espírito do final dos tempos (ver abaixo §§45.3,50.5), e todo seu ministério estava construído sobre o juízo abra­sador profetizado por João em sua metáfora do batismo no Espírito e no fogo (Lc 12.49s.; cf. Mc 9.49; 10.38; 14.36; Evangelho de Tomé 10.82).8 (b) Por que ele estava relutante em erquer uma barreira ritual que as pesso­as teriam âe superar ao se unirem à sua companhia ou serem seus âiscípulos. Os de fora ficavam de fora por escolha pessoal (cf. acima pp. 194s).

4. O batismo no cristianismo primitivo. Houve algumas tentativas de argumentar que o batismo (com água) não era praticado nas primeiras comunidades cristãs, mas fora introduzido mais tarde pelos helenis­tas: somente o batismo no Espírito era suficiente (At 1.5; 11.16); não há menção do batismo em relação à efusão do Espírito em Pentecostes; referências batismais antigas (particularmente At 2.38, 41) foram in­troduzidas mais tarde; e as narrativas em Atos 8.12-17,10.44-48,19.1- 7 indicam a dificuldade em integrar dois tipos de batismo na antiga missão9. Por outro lado, o batismo já havia se estabelecido antes da

1 Ver, mais completamente, J. D . G. D unn , "Baptized in Spirit: the Birth of a Metaphor", ExpT, 89,1977-78, pp. 134-8,173-5.

' Ver J. W eiss, Earliest Christianity, 1914, ET 1937, Harper 1959, pp. 50s; F. J. F oakes Ja c k so n & K. L ak e, The Beginnings of Christianity: Part I: The Acts o f the Apostles, Macmillan, vol. 1 ,1920, pp. 332-44. ’

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conversão de Paulo - ele, simplesmente, o admite em Romanos 6.4,1 Coríntios 1.10-17, etc.; e nada sabemos de algum cristão não batiza­do no cristianismo primitivo - ainda que algumas vezes o batismo de João fosse considerado suficiente (aqueles em Pentecostes e Apoio - At 18.24-28). Tivesse o batismo cristão originado dos helenistas, então, po­deríamos ter esperado que ele apresentasse mais controvérsias entre o cristianismo judaico e o cristianismo helenístico, o último colocando o batismo acima da circuncisão como o rito necessário, enquanto nessas controvérsias a fé e o Espírito é que são colocados contra a circuncisão, não o batismo (G1 3.1-5; 5.1-6; ver abaixo pp. 263ss). Então Atos está, provavelmente, certo - o batismo era parte integral do cristianismo desde o princípio. Quase certamente, o batismo adotado foi o batismo de João, o rito que alguns deles haviam se submetido e utilizado inicialmente, o rito que o próprio Jesus se submeteu e talvez por um curto período administrou. A inspiração para adotá-lo é atribuída ao Jesus ressurreto (Mt 28.19; cf. Lc 24.47).

A importância desses primeiros batismos cristãos parece ser quá­drupla. (a) O batismo era uma expressão de arrependimento e fé: note-se a estreita relação entre arrependimento/fé e batismo em At 2.38, 41; 8.12s, 16.14s, 33s; 18.8; 19.2s. Não é surpreendente que 1 Pedro 3.21, a coisa mais próxima que temos de uma definição de batismo no NT, define o batismo cristão como "um apelo ou promessa a Deus para ou uma consciência limpa". Provavelmente desde que o primeiro batismo havia servido como a "travessia do Rubicão", o passo decisivo de compro­misso10 para ser cristão a partir do qual não havia nenhum retrocesso e sem o qual se permanecia descompromissado. (b) O batismo parece também ter retido seu caráter preparatório, seu olhar antecipado e sua orientação escatológíca. Isso é amplamente omitido em Atos, onde Lucas escolheu ignorar ou ocultar muito do fervor escatológico das comu­nidades cristãs primitivas (veja abaixo §71.2). Mas há certamente um indício disso em Atos 3.19-21, e mais que um indício em Hebreus 6.1s., para não mencionar 1 Tessalonicenses 1.9s.

111 O Rubicão era um pequeno veio que separava a Gália Cisalpina da Itália du­rante a República Romana. A decisão de Júlio César de "cruzar o Rubicão" com seu exército em 49 a.C. equivalia a uma declaração de guerra contra o Senado Romano. Desde então o Rubicão se tornou uma metáfora para o marco de cru­zamento quando alguém faz um compromisso decisivo, sem volta, para um empreendimento.

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Nesses dois elementos significativos são aqueles que nós espe­rávamos para confirmar que o batismo cristão era derivado diretamente do batismo de João. Mas há também dois elementos distintos novos que parecem ter pertencido ao batismo cristão desde o começo, (c) O batismo cristão era administrado "em nome âe Jesus" (At 2,38; 8.16; 10.48; 19.5). O uso da frase significa ou que o batizador se via como um representante do Jesus exaltado (cf. particularmente At 3.6; 16.4; 4.10 com 9.34), ou que o batizando via seu batismo como seu ato de comprometimento com o discipulado de Jesus (cf. ICor 1.12-16 e abaixo pp. 262ss). Muito provavelmente ambos os sentidos estavam pressupostos. Incidentalmente a evidência citada sugere fortemente que a formulação tríade de Mateus 28.19 é uma expansão tardia da fórmula mais antiga "em nome de Jesus", (â) O batismo servia como um rito de entrada ou iniciação na comunidaâe cristã local. Por um lado, parte da importância do "Rubicão" do batismo era o que foi expresso no compromisso do batizando com a congregação dos discípulos de Jesus, com tudo o que isso pode significar em termos de ruptura com o estilo de vida anterior, ostracismo social e possível perseguição. Por outro lado, o batismo, junto com a imposição de mãos quando praticada, sem dúvida também expressava a aceitação âo convertiâo pela comuniâaâe. Este último aspecto é mais aparente em Atos 10.47s., onde a iniciação pública para a aceitação pela igreja deve ter sido a principal razão para o batismo de Cornélio.

Esses dois últimos aspectos do batismo cristão primitivo [(c) e (â)] podem explicar porque os primeiros cristãos batizavam quando Jesus não o fazia: eles necessitavam de um moâo tangível âe expressar a fé para aquele que não estava mais presente visivelmente (cf. p.ex.: Lc 7.37s, 48-50); e eles se sentiam ser mais do que uma comunidade, como era o caso dos discípulos do Jesus terreno (ver acima §27). A decisão envolvia, é claro, o risco de o cristianismo erigir o tipo de barreira ritual e cúltica contra os "forasteiros" a qual Jesus rejeitara, um risco que tem seriamente ameaçado a teologia cristã e a prática dos sacramentos não poucas ve­zes desde então.

Outra questão que requer esclarecimento é a relação do batismo com o âom do Espírito nesse período. Muitos têm argumentado que o batis­mo desde o começo foi considerado como o instrumento de recepção do Espírito, isto é, de outorgar o Espírito. Mas não é certamente verda­de que o batismo cristão primitivo fosse entendido como o batismo no

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Espírito: a antítese entre o rito água-batismo e a metáfora do Espírito- batismo, que o Batista pela primeira vez cunhou, foi conduzida para o cristianismo (At 1.5; 11.16); e em nenhum lugar em Atos pode ser dito que o Espírito fora dado em, com ou mediante o batismo (At 2.4, 38; 8.12-17; 10.44-48; 18.25; 19.5s.), exceto quando ao batismo é dado um sentido muito maior do que quaisquer dessas passagens comprovam. O que é claro é que, pelo menos para Lucas, o dom do Espirito era o ele­mento decisivo mais importante na conversão-iniciação, o dom do Espírito era a marca da aceitação de Deus: At 2.17 - o Espírito é a iniciação decisiva para os "últimos dias" (cf. At 11.17); 8.12-17 - o batismo é insuficiente sem o Espírito; 10.44-48 - o Espírito é decisivo, o batismo serve como reconhecimento do homem da aceitação divina; At 18.25-28 - Apoio tem o Espírito, então o batismo de João é suficiente; At 19.1-7 - O Espí­rito está ausente, de modo que o processo todo precisa ser examinado. Em outras palavras, o batismo não servia como a expressão ou canal da ação de Deus - isso era papel do Espírito (veja mais adiante pp. 512s). Conseqüentemente não podemos dizer, seja da perspectiva de Lucas ou das igrejas primitivas, que a orientação do batismo mudou quandoo batismo de João foi absorvido pelos primeiros cristãos. Do batismo cristão permaneceu principalmente a expressão da ação humana (arrependi­mento/fé) voltada para Deus, enquanto que o Espírito era reconhecido como a expressão da ação de Deus voltada para a humanidade.

Note-se finalmente a diversidade de forma e padrão na conversão- iniciação em Atos - o batismo antes do Espírito, o Espírito antes do batismo, o Espírito sem o batismo, o batismo seguido pela imposição de mãos. Podemos concluir com alguma confiança que a preocupação principal, seja a dos primeiros cristãos, ou a de Lucas, não era estabele­cer um procedimento ritual particular, muito menos determinar a ação de Deus de acordo com uma ação cúltica (ver mais adiante p. 513). Ao contrário, a evidência de Atos serve para sublinhar a liberdade de Deus para encontrar a fé quando e como lhe apraz, e o que vemos em Atos é as igrejas primitivas se adaptando e seu ritual embrionário de acordo com a ação manifesta de Deus mediante o Espírito (ver também adiante §44.1).

5. Batismo no cristianismo helenístico além de Paulo. Precisamos notar que se a igreja de Corinto era de alguma maneira típica do cristianismo helenístico, então o cristianismo helenístico adotava visões de batismo muito diferentes daquelas até agora esboçadas. Fica claro a partir de

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1 Coríntios 1.10-17 que o batismo havia sido um catalisador de divi­são em Corinto. No mínimo partidos foram formados sobre a base de quem batizava quem (ICor 1.12-15). Provavelmente muitos coríntios achavam que o batismo criava uma união mística entre o batizador e o batizando - no caso propriedades quase mágicas provavelmente eram atribuídas ao batismo. Isso é confirmado por 1 Coríntios 10.1-12 em que a implicação da exortação de Paulo é a aquela da visão dos coríntios do batismo (e da ceia do Senhor) como um tipo de talismã que assegurava a salvação. 1 Coríntios 15.29 provavelmente se refere a uma pratica de batismo vicário pela qual pensavam que o batismo de alguém assegu­rava a salvação de outra pessoa já falecida. Aqui então é uma indica­ção de influências moldando a teologia do batismo e desenvolvendo visões de batismo que estão longe de qualquer coisa que já vimos. E ainda Paulo trata daqueles que mantinham tais visões como membros da comunidade cristã de Corinto - essas visões eram mantidas tam­bém por cristãos. Em outras palavras, assim que nós saímos daquela esfera de cristianismo mais influenciada pela herança de João Batista a diversidade do pensamento cristão sobre o batismo se amplia - consideravelmente.

6. O batismo na teologia paulina. O último parágrafo naturalmente levanta a questão-chave: Paulo também sustentava uma visão quase mágica de batismo? Suas opiniões também eram influenciadas pelas religiões de mistério? O quão deveria ser ampla a diversidade da teo­logia do batismo para se incorporar Paulo? Muitos sustentariam que Paulo foi influenciado de modo que: (a) sua visão do batismo como a morte com Cristo mostra a influência dos cultos da morte e ressurrei­ção de deus; (b) a frase de Paulo "batizado em Cristo" descreve o que o batismo realizava, visto que "batismo em Cristo" é uma forma mais curta de batismo "em nome de Cristo" que certamente descreve o ato de batismo; (c) as metáforas de ablução, particularmente aquelas em Efésios 5.26 e Tito 3.5, especificamente atribuem uma purificação espi­ritual e uma renovação ao ato ritual11.

Não estou convencido por esses argumentos, (a) Paulo certamente liga o batismo com a morte de Jesus em Romanos 6.4 e Colossenses

11 Cf. particularmente W. H eitmüller, Taufe und Abendmahl im Urchristentum, Tübingen 1911, pp. 18-26. Para o que se segue veja também minha obra Romans, pp. 305ss.

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2.12. Mas em Romanos 6.4 é importante notar que Paulo vincula o ba­tismo somente com a idéia da morte, não com a ressurreição, que ainda é futura (Rm 6.5; cf. 8.11). Paulo claramente pensa da imersão batismal como simbolizando sepultamento com Cristo; mas a idéia do surgi­mento da água para simbolizar a ressurreição com Cristo não se acha presente em Romanos 6. Similarmente em Colossenses. 2.12 a estrutu­ra das orações parece implicar que o batismo está ligado principalmen­te com o sepultamento, que o simboliza tão bem, e não imediatamente com ressurreição12. Isso sugere que Paulo não pensa do batismo como a realização de um morrer e um ressurgir em união com Cristo (uma ini­ciação em um culto de mistério), mas antes como simbolizando a morte e o sepultamento. Por sua vez, isso sugere que a influência mais importan­te sobre o pensamento de Paulo provinha da própria atitude de Jesus para com sua morte (Mc 10.38; Lc 12.50 - ver acima p. 258). Se Jesus falou de sua morte vindoura como um batismo, então isso pode ajudar a explicar porque Paulo falou do batismo como um meio de partilhar dessa morte. Em que caso o batismo, simbolizando sepultamento para Paulo, realmente expressava o desejo do batizando de se identificar com Jesus (aquele que com sucesso suportou os infortúnios messiânicos) em sua morte. Ao contrário do batismo com fogo que João profetizou e Jesus experimentou na realidade, o iniciado experimentava somente o batismo que o próprio João utilizou, somente o símbolo que do mesmo tipo de caminho incorporava a fé do batizando para com o que era simbolizado.

(b) "Batizado em Cristo" não deve ser tomado como uma abre­viação da fórmula completa, "batizado em nome de Cristo". O último 6 uma referência direta ao ato batismal. A fórmula grega, "em nome de", significava "por causa de", e fortalece a sugestão que o batismo ora reconhecido como um feito de transferir, um ato pelo qual o batizando passava a ser propriedade ou discípulo daquele nomeado; daí a linha de argu­mentação de Paulo em 1 Coríntios 1.12s. - "Sou (discípulo) de Paulo" implica, eu fui "batizado em nome de Paulo". A frase anterior, "batiza­do em Cristo", é melhor entendida como uma metáfora, antes que uma descrição do ritual. Assim 1 Coríntios 12.13 parece retomar à segunda metade da antítese do Batista, entre o rito de água batismal e a metá­

M A estrutura da idéia aqui é questionada. Para uma exegese completa ver D unn , Baptism, pp. 154ss.

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fora de batismo do Espírito (-e-fogo), e Romanos 6.3s parece retomar ao uso metafórico próprio de Jesus do verbo "batizar" em relação à sua morte (Mc 10.38; Lc 12.50). E em Gálatas 3.27 temos as metáforas complementares do batismo e do revestir, em 1 Coríntios 12.13 do ba­tismo e chuva, em Romanos 6 do batismo, sepultamento e crucifixão. Que a idéia de morrer com Cristo não está, de modo algum, ancorada ou dependente do batismo é confirmada pelo uso do motivo em outros lugares em Paulo onde é totalmente independente de qualquer idéia de batismo (p.ex. 2Cor 4.10; G12.19s; 6.14; F13.10). A metáfora do batis­mo é particularmente apropriada para a conversão porque simboliza muito bem o sepultamento, e porque o batismo em si, como um rito de iniciação e expressão de compromisso, sustenta um lugar importante no evento total de conversão-iniciação; mas dizer muito mais é ir além do testemunho de Paulo.

(c) Eu duvido que as metáforas da purificação possam, particu­larmente, fortalecer o caso de enxergar a influência das religiões de mistério helenísticas no pensamento batismal paulino. Efésios 5.25-27 é dominado pelo retrato da Igreja como noiva de Cristo; parte disso é a metáfora do banho nupcial, que nesse caso representa a purifica­ção e renovação, efetuadas pela palavra da pregação (cf. At 15.9; ICor 6.11; Tt 2.14; Hb 9.14; 10.22). Mesmo em Tito 3.5 a "palavra fiel" parece prever "um lavar ... do santo Espírito", que é, um lavar que o Espírito efetua e pelo qual regenera e renova a natureza interior e a mente do convertido ( cf. Rm 12.2; 2Cor 4.16; Cl 3.10). É bem possível, contudo, que o autor das Pastorais leia a "palavra fiel" em um sentido mais for­temente sacramental (ver abaixo p. 508ss).

(d) Além do mais, devemos observar que Paulo não dava ao batismo o papel que a circuncisão desempenhava no judaísmo de seu tempo. Se Paulo tivesse entendido o batismo da mesma forma que fora entendido em Corinto (acima §39.5), ou em muita teologia sacramental de hoje, ele não teria sido capaz de discutir a circuncisão da maneira que ele faz, particularmente em Gálatas, onde, com efeito, ele argumenta contra o sacramentalismo dos judaizantes. Com certeza ele argumenta contra um ritualismo sem realidade, mas não a favor de um ritualismo com realidade, até certo ponto diretamente em favor da própria realida­de. Era essa realidade da experiência do Espírito em suas vidas à qual ele recordava seus leitores (Rm 5.5; 2Cor 1.21s.; Ef 1.13s.). Era a ex­periência comum do Espírito que os ligava em unidade (ICor 12.13;

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2Cor 13.14; Ef 4.3; F1 2.1). Era a circuncisão do coração, não o batismo, que havia substituído o ato ritual do antigo Israel (Rm 2.28s.; 2Cor 3.6; F13.3; Cl 2.11 - "Não pelo intermédio de mãos de homem"). Para Paulo o batismo era relativamente sem importância (ICor 1.17). Quando ele replicava àqueles que o haviam entendido erroneamente e o tratavam como um ato quase-mágico, ele nem mesmo parava para corrigir sua teologia do batismo. Preferia antes impeli-la para o seu contexto. Fazer de outra maneira presumivelmente lhe daria o tipo de importância que os coríntios haviam adicionado, e para Paulo isso evidentemente não era tão importante.

Resumindo. (1) Paulo concordava com seus predecessores na fé cristã: o batismo é o batismo "no nome de Jesus", ou seja, é o batismo para o discipulado de Jesus, o instrumento de expressar o comprometimento com Jesus como o Senhor (cf. Rm 10.9). (2) Paulo aprofunda o significado simbólico do batismo: ele (o batismo) agora fornece uma metáfora para a união com Cristo, batismo em Cristo, o rito em si simbolizando sepulta­mento, uma auto-identificação do batizando com Cristo em sua morte. Aqui ele utiliza a linguagem que poderia dar uma conotação ex opere operato - muitos fizeram isso (e ainda fazem). Mas não nenhuma indi­cação real de que o próprio Paulo tenha mudado a orientação básica do batismo e seu papel no encontro divino-humano: o batismo ainda era a expressão da fé humana, e a manifestação da graça de Deus era suficientemente clara no momento do batismo - ou em qualquer outro momento - no dom e dons do Espírito. (3) Paulo, contudo, mudou a orientação do batismo em outro sentido. Com Paulo o ato batismal cla­ramente olha para trás, para a morte de Cristo13, e parece ter perdido quase que completamente sua visão para diante para o escaton.

7. Poucos comentários talvez sejam exigidos para o assunto do ba­tismo de crianças. Isso é uma das ironias estabelecidas pela diversidade da teologia e prática cristã, que o principal meio de realizar a regeneração por muitos séculos tenha sido tão pouco sustentado no NT, e não tem HÍdo claramente melhorado nem mesmo dentro da amplitude da diver­sidade da prática cristã do séc. II. Pois se deve reconhecer que o batismo de crianças não pode encontrar nenhum apoio real na teologia do batismo que

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11 () "Não sabeis...?" de Rm 6.3 pode muito bem ser simplesmente a maneira poli­da de transmitir novo conhecimento (ver D unn , Baptism, p. 144, n. 17).

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qualquer escritor do NT venha a expor. E por mais que reconheçamos que a função primária do batismo, durante as primeiras décadas do cristianis­mo, era a de servir como um meio de expressar a fé e o compromisso do iniciado, o menos justificado, em termos de inícios cristãos, parece ser a prática do batismo de crianças. A mais forte sustentação dentro do pe­ríodo do NT, provavelmente, vem dos coríntios (acima §39.5), mas isso não é um precedente que muitos gostariam de argumentar.

Uma justificação indireta pode ser tentada com grande promessa por meio do conceito de solidariedade familiar - que a criança de um pai crente, pela vantagem desse fato, permanece dentro do círculo da fé (dos pais) (ICor 7.14). E ninguém gostaria de negar que Jesus aben­çoou as crianças durante seu ministério (Mc 10.13-16). A questão real é se o batismo cristão ê a expressão apropriada desse status dentro da família da fé, ou se o batismo é o instrumento pelo qual as crianças de hoje são trazidos a Jesus e abençoados por ele. Os batismos domésticos de Atos 16.15, 33,18.8 e 1 Coríntios 1.16 podem fornecer precedente suficiente (NT); mas o caso é dificilmente provado, visto que não se pode ter cer­teza que os domésticos incluíam crianças pequenas: Atos 16.15 - Lídia era casada? 16.34 - todos se regozijaram no meio da noite; 18.8 - todos creram; 1 Coríntios. 16.15 - todos serviram. O argumento sustentador da circuncisão ser administrada às crianças israelitas (meninos) como parte do povo da aliança de Yahweh depende de como se considera a relação entre o antigo Israel e o novo: como vimos, a nova aliança equivalente a circuncisão da antiga aliança é a circuncisão do coração, o dom do Espírito, não o batismo; e pertencer à nova aliança aconte­ce mediante a fé em Cristo Jesus, não por descendência natural (veja particularmente G1 3). A fraqueza do argumento da solidariedade fa­miliar, então, é a que explica o status da criança dentro do círculo da fé, sem necessariamente justificar o passo posterior que ela, portanto, de ser batizada - pois certamente esse status não depende do batismo, nem é a bênção de Cristo. Conseqüentemente se o batismo retém seu significado regular dentro do NT, como a expressão de fé do batizan­do, provavelmente, deveria ser reservado para o tempo quando a pró­pria criança possa expressar o próprio compromisso, uma prática que pode ser seguida sem qualquer demérito do status da criança de pais crentes dentro do círculo da fé. Resumindo, por toda a diversidade da fé e prática no cristianismo do séc. I permanece duvidoso se tal se expandiu de modo a incluir o batismo de crianças.

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§ 40. A CEIA DO SENHOR14

1. A origem da ceia do Senhor é menos discutida e certamente deve ser encontrada dentro do ministério de Jesus - em particular em duas características de seu ministério: (a) As refeições de Jesus com amigos, e (b) a última ceia com seus discípulos.

(a) Durante seu ministério Jesus sempre foi convidado para re­feições (Mc 1.29-31; 14.3; Lc 7.36; 11.37; Jo 2.1-11), e no mínimo em algumas ocasiões fez às vezes de anfitrião (Mc 2.15; Lc 15.Is.). Com efeito, seus hábitos aí se tornaram alvo de falatório - "um glutão e um beberrão, amigo de publicanos e pecadores!" (Mt 11.19) - o que obviamente implica que, freqüentemente, fazia as suas refeições acom­panhado e em companhias questionáveis. Outras indicações de que as companhias de mesa constituíam um grande círculo incluem Lucas 8.1-3, 24.33, Marcos e 6.32-44 e 8.14; cf. João 4.8, 31; 21.12.

E importante reconhecer quão significante era isso para Jesus e seus contemporâneos. Para o oriental, a comunhão de mesa era uma garantia de paz, confiança, fraternidade; significava em um sentido muito real o compartilhar da vida de alguém. Assim, a comunhão de mesa com coletor de impostos e pecador era o modo de Jesus procla­mar a salvação de Deus e a garantia de remissão, mesmo para aqueles excluídos do culto. Isso acontecia porque seus contemporâneos reli­giosos ficavam escandalizados pela liberdade das associações de Jesus (Mc 2.16; Lc 15.2) - o piedoso podia ter comunhão de mesa somente rom os justos. Mas a comunhão de mesa de Jesus era marcada pela abertura, não pela exclusividade. Quer dizer, as refeições de Jesus eram convites à graça, não a rituais cúlticos de um grupo restrito de amigos (ver tam­bém acima p. 194).

Precisamos notar também a significância escatológica das refeições ik' companheirismo de Jesus. Isto é, precisamos situar a prática de |i\sus de comunhão da mesa dentro do contexto de sua proclamação. Aqui está claro que a preocupação de Jesus, a compartilha da mesa ik' comunhão, era antecipar o banquete messiânico (Mc 2.19; 10.35-40;

11 Nesta seção, estou particularmente em dívida a E. S chweizer, The Lord's Hupper according to the New Testament, 1956, ET Fortress Facet Book 1967, e a W. M akxsen, The Lord's Supper as a Christological Problem, 1963, ET Fortress Facet Hook 1970.

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Mt 22.1-10/Lc 14.16-24; Mt 25.10; Lc 22.30; cf. Is 25.6; 65.13; Enoque 62.14; 2Br 29.8; IQSa 2.11-22) (ver também acima p. 81).15

Cb) A última ceia que Jesus desfrutou com seus discípulos foi a expres­são final daquela amizade comunitária que fora uma parte integrante de toda a sua missão. Em particular, ela levou ao foco mais claro o caráter de sua missão como de um serviço (Lc 22.24-27; cf. Jo 13.1-20); assinalando à sua morte com muito mais clareza (note especialmente o motivo do "cá­lice" perfazendo Mc 10.38, Lc 22.20, Mc 14.36); e nisso a nota escatológica alcançou seu grau máximo, com a própria ceia sendo uma última anteci­pação da festa da consumação (Mc 14.25; Lc 22.16,18 - provavelmente um juramento de jejum em vista da iminência do reinado).

A última ceia foi uma refeição pascal? Aqui as opiniões se divi­dem. Uma resposta afirmativa é sugerida pelo fato de que a refeição se realizou em Jerusalém (não em Betânia), à noite, vinho foi bebido, e por causa das palavras da interpretação (Mc 14.17s, etc.)16. Por outro lado, a execução de Jesus é improvável ter acontecido no dia da Páscoa. Talvez a explicação mais simples seja a de que Jesus visou a ceia como uma refeição pascal especial, ou que ele deliberadamente exagerou o significado do que era, de outra maneira, uma refeição comum17.

2. A ceia do Senhor no cristianismo primitivo. Podemos falar apro­priadamente de uma ceia do Senhor no cristianismo primitivo? Somos informados que os primeiros cristãos participavam de refeições em comum diariamente (At 2.42, 46). Essas eram vistas, provavelmente, como a continuação das refeições em comum de Jesus, pois eles eram cons­cientes de sua presença em seu meio, particularmente nos primórdios (Lc 24.30s, 35; Jo 21.12-14; At 1.4; cf. Ap 3.20), e as refeições eram qua­se certamente uma expressão de seu entusiasmo escatológico (cf. At 2.46)18, e assim, como a comunhão de Jesus à mesa, era uma amostra do banquete escatológico.

15 Ver mais em meu "Jesus, Table-Fellowship and Qumran", Jesus and the Dead Sea Scrolls, ed. J. H. C harlesworth, Doubleday 1992, pp. 254-72.

16 Ver, particularmente, J. J eremias, The Eucharistie Words of Jesus, 3a ed., 1960, ET SCM Press 1966, cap. I.

17 Cf. as discussões úteis em S chweizer, Lord's Supper, pp. 29-32; B. K lappert, "Lord's Supper", NIDNTT, II, pp. 527ss; I. H. M arshall, Last Supper and Lord's Supper, Paternoster 1980, pp. 57-75.

18 Ver D unn, Jesus, §29 e abaixo §67.3.

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Que relação essas refeições têm com a última ceia? A resposta não é clara. Muito provavelmente, contudo, eram refeições triviais: somen­te o pão é mencionado (At 2.42,46) e o vinho não era bebido costumei- ramente nas refeições triviais; a mesma frase em 20.11 e 27.35s certa­mente pode denotar unicamente uma refeição ordinária; e quaisquer palavras de instituição ou de interpretação são mencionadas, ou im­plícitas. Em uma situação dominada pela expectativa da consumação iminente haveria pouco incentivo para estabelecer formas ou criar um ritual de recordação. Ao mesmo tempo permanece o fato que as pa­lavras de interpretação sobre o pão e o vinho, que retrocedem a Jesus de uma forma ou de outra (ver acima §17.2 e abaixo §40.4), foram pre­servadas e transmitidas pela comunidade primitiva. Na ausência de quaisquer dados mais definitivos a melhor explicação provavelmente é a de que a ceia do Senhor foi inicialmente uma celebração anual - o equivalente cristão da Páscoa: os primeiros cristãos eram judeus antes de tudo; e os ebionitas, cujas crenças têm paralelos próximos daqueles da comunidade primitiva de Jerusalém em outros pontos (ver abaixo §54), celebravam dessa maneira, como uma festa anual19. Contudo, não devemos presumir que houvesse uma distinção clara nas mentes dos primeiros cristãos entre refeições regulares e aquela (ou aquelas) em que eles especialmente recordavam as palavras da última ceia.

3. A ceia do Senhor em Paulo. Paulo fala da ceia do Senhor somente em ICor 10.14-22, 11.17-34, mas esses poucos parágrafos são suficien­tes para nos mostrar onde a comunhão era celebrada nas igrejas pau­linas em continuidade com a tradição primitiva e de onde havia se de­senvolvido. A continuidade com a tradição primitiva é muito evidente em três pontos. (1) Paulo cita a antiga tradição como a base para o seu entendimento da ceia (ICor 11.23-25) - uma tradição que enfatiza por fim a última ceia de Jesus com seus discípulos. Essa é a tradição que foi transmitida a Paulo pelos crentes mais antigos, ainda que sua autori­dade para Paulo recaia no fato de que a recebeu "do Senhor" (ver acima p. 146). (2) A ênfase escatológica continuada da ceia - 1 Coríntios 11.26: "... Até que ele venha"; embora devamos notar que a ênfase não seja tão forte: com efeito o v. 26 ("Pois...") se assemelha muito mais como uma nota explicativa adicionada pelo próprio Paulo do que parte da

' Orígenes, in Matt. comm. Ser., 79; Epifanio, Pan., 30.16.1.

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tradição por ele recebida. (3) A ceia ainda é vista como uma refeição de companheirismo: em 1 Coríntios 10.18-22 ele traça uma dupla compa­ração entre a refeição sacrificial no culto de Israel (Lv 7.6,15), a ceia do Senhor e a festa em um templo pagão - o ponto de comparação é que cada uma é uma expressão de companheirismo (koinõnoi, "participan­tes; companheiros" -1 0 .1 8 ,20)20, e em 1 Coríntios 11.17-34 a ceia do Se­nhor é claramente considerada como acontecendo dentro do contexto de uma refeição.

Ao mesmo tempo certos desenvolvimentos também são evidentes.(a) A relação entre refeição de companheirismo e as palavras de

interpretação sobre o pão e o vinho é algo mais claro, desde que o par­ticipar do pão e do vinho parece estar em processo de se tornar algo em si mesmo e vir no final da refeição. Isso é um tanto especulativo com base em poucas pistas, mas a probabilidade é que os cristãos ricos de Corinto antecipavam sua refeição, enquanto os pobres (escravos etc.) só podiam comparecer no momento da celebração da ceia do Senhor (ICor 11.21, 33). Daí as reprimendas de 11.27, 29: "Sem discernir o corpo" provavelmente significa comer e beber que não expressa com­panheirismo com os pobres e fracos: "Réu do corpo e do sangue do Senhor" é provavelmente uma re-expressão de 8.11s. e significa pecar contra o irmão mais fraco.21

(b) Apesar da nota escatológica presente, o olhar para trás para a morte de Jesus é muito mais forte em ICor 11.26. Aqui uma mudança na ênfase novamente se torna evidente - da refeição de companheiris­mo em sua totalidade como um símbolo do banquete messiânico, para a ceia do Senhor como proclamação da morte de Jesus.

(c) Teria também Paulo também se permitido ser influenciado pelo pensamento sincrético de modo que a ceia do Senhor tenha se tornado alguma coisa como um rito mágico? O argumento para este caso está sobre a base de que pneumatikos em ICor 10.4 deveria ser en­tendido como significando “Pneuma (Espírito) enviado", porque ICor 10.16s revela uma equação mais próxima entre pão e corpo de Cristo e entre vinho e sangue de Cristo do que aquela somente de simbolismo,

20 Não que cada uma seja uma refeição sacrificial; ver p.ex. W. G. K ümmel, An die Korinther, HNT, 1949, pp. 181s; C. K . B arrett, The First Epistle to the Corinthians, A. & C. B lack 1968, pp. 235ss. Ver também abaixo nota 23.

21 Schweizer, Lord's Supper, pp. 5s. !

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c que ICor 11.29s é a evidência da própria superstição de Paulo nesse ponto.22 A linguagem de Paulo é certamente aberta a tal interpretação. Mas fica claro de ICor 10.1-13 que Paulo está advertindo precisamente contra tal sacramentalismo da parte dos coríntios - tal visão da ceia do Senhor é uma corrupção da ceia do Senhor. E visto que ICor 10.1-4 é uma alegoria ("a pedra" na tradição deve ser interpretada alegorica- mente como Cristo, etc.) pneumatikos é melhor entendido no sentido ale­górico (veja acima p. 175). A passagem de ICor 10.16s pode ser tomada como implicando a idéia helenística de união com o culto da deidade (Cristo) mediante o comer seu corpo. Mas o v. 20 mostra que Paulo está pensando antes em termos de companheirismo ou parceria - um companheirismo expresso mediante a participação da mesma refeição, da mesma mesa. A ênfase não está tanto sobre o que era comido e bebido, mas sobre o compartilhar (koinõnia) do mesmo pão e cálice (v. 16); os crentes eram um porque partilhavam o mesmo pão (v. 17), mas não por causa de alguma efi­cácia no pão em si (ver acima p. 270, nota 20). E em ICor 11.29s. visto que os coríntios eram muito displicentes acerca da ceia do Senhor (10.1- 13), Paulo provavelmente está pensando sobre a enfermidade e morte como resultado de pecado contra a comunidade (o corpo de Cristo - cf. ICor 5.5) antes que como um efeito dos próprios elementos.23

4. Possíveis variações dentro do uso cristão primitivo. O que agora cha­mamos de ceia do Senhor, eucaristia, santa comunhão, a missa, pode ser o resultado final de uma confluência ou a padronização de um bom número de tradições diferentes.

(a) Conhecemos diferentes tipos de refeições, cada qual influen­ciou o desenvolvimento da ceia do Senhor. (1) A refeição de compa­nheirismo de Jerusalém na qual provavelmente somente o pão era usado e nenhum vinho (ver acima §40.2). (2) Uma páscoa (?) anual (?)- tipo de refeição, com o pão e o vinho como parte da refeição com­pleta, sendo o pão no início (refeição normal) ou no meio (Páscoa), e o vinho no fim (ICor 11.25 - "depois da ceia"). (3) Uma refeição completa

« Ver ex: E. K äsemann , "The Pauline Doctrine of the Lord's Supper" (1947-48), ENTT, pp. 108-35; J. H ering , The First Epistle o f Saint Paul to the Corinthians, 1948, ET Epworth 1962, p. 120.

'' Vejr p.ex.;. A. J. B. H iggins, The Lord's Supper in the New Testament, SCM Press 1952, pp. 72s; K ümmel, Theology, pp. 221s.

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em que o cálice vinha primeiro e o pão por último - isso pode estar pressuposto em 1 Coríntios 10.16, o texto Lucano mais curto (com Lc 22.19d-20 omitido)24 e Didaquê 9.

(b) As tradições textuais também sugerem formas divergentes e práticas desenvolvidas. Há no mínimo duas tradições textuais diferen­tes de palavras de interpretação na última ceia.

A. M arcos 14.22-23/M ateus 26.26-28 Isto é o m eu corpo;

Isto é o m eu sangue, o sangue da aliança, que é derram ado em favor de muitos.

B. 1 Coríntios 11.24r25[Lucas 22.19-20 Isto é o m eu corpo, [que é para vós;]Este cálice é a [nova] aliança em meu sangue [que é derram ado em favor de vós]

Nas palavras sobre o pão a frase "que é para vós" na tradição B é possivelmente a mais tardia, difícil de derivar do aramaico, ausente na tradição A, e o tipo de forma que o uso litúrgico desenvolveria.

As diferenças na segunda parte são mais impressionantes: na tra­dição A a ênfase está sobre o sangue, na tradição B sobre a aliança. Neste caso a tradição B possivelmente é a mais antiga: "o sangue da aliança" é uma forma gramatical artificial ou no mínimo muito incomum seja no hebraico ou no aramaico; o beber do sangue era uma idéia abomi­nável aos judeus (veja particularmente Lv 17.10-14; cf. At 15.20,29); e o paralelismo mais próximo das duas fórmulas na tradição A é provavel­mente o resultado de uso litúrgico.25 Tendo em mente que as palavras sobre o pão e o cálice foram originalmente dois textos separados, falados

24 Apesar do texto mais longo ser provavelmente original em Lucas - ver particu- lamente H. S chürmann , "Lk 22.19b-20 als ursprüngliche Textüberlierferung" (1951), Traditionsgeschichtliche Untersuchungen zu den synoptischen Evangelien, Düsseldorf 1968, pp. 159-92; J eremias, Eucharistie Words, pp. 139-59.

25 G. B ornkamm , "L o rd 's S u p p er an d C h u rch in P a u l" (1956), Early Christian Experience, E T S C M P ress 1969, p p . 134ss; S chweizer, Lord's Supper, p p . 10-17; M arxsen , Lord’s Supper, p p . 5-8; F. L ang , "A b e n d m a h l u n d B u n d e sg e d a n k e im N e u e n T e s ta m e n t" , EvTh, 35,1975, p p . 5-8. 527s; H. M erklein , "E rw ä g u n g e n zu r Ü b erlie fe ru n g sg e sch ich te d er n e u ete s ta m e n tlich e n A b e n d m a h lstra d itio n e n ", BZ, 21, 1977, p. 94-8; M arshall, Last Supper, p p . 43-51; ig u a lm en te K lappert, NIDNTT, II, p p . 524ss. ’’

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em pontos diferentes da refeição (veja acima p. 271), a probabilidade é que a forma do segundo texto foi assimilada àquele do primeiro somente quando o pão e o vinho vieram a ser um ritual separado no fim da re­feição (cf. também ICor 10.16); uma vez que, a tradição A tivesse sido mais antiga, torna-se muito difícil explicar como formulações paralelas originalmente vieram a divergir. Parece então como se a forma mais antiga do segundo texto (sobre o cálice antes que sobre o vinho) coloque a ênfase sobre a aliança - e isto certamente harmonizaria com a nota esca- tológica da última ceia (ver acima p. 268). O "em meu sangue..." seria uma adição tardia, mas mesmo assim pode já estar implícita - a alian­ça sendo estabelecida pelo sacrifício, Jesus vendo sua própria morte iminente como o sacrifício em questão (cf. Ex 24.8; Hb 9.20; Lc 12.49s.- ver acima nota 8); a frase "que é derramado" certamente tem fortes tonalidades sacrificiais.

Então parece que temos uma tradição dupla no segundo texto de interpretação. Aquela tradição interpretou a última ceia em termos da nova aliança; as refeições de companheirismo de Jesus mais antiga tenha simbolizado o banquete messiânico do reino vindouro; agora com a última dessas refeições a imagem da interpretação muda para a aliança, e a refeição é vista também prenunciar os meios pelos quais a aliança deve ser estabelecida, o reino vem - isto é, sua morte, como batismo de fogo, os infortúnios messiânicos preditos por Batista. Mas a ênfase está sobre a própria aliança; o cálice é o cálice da promessa do que está além de sua morte (Lc 22.18/Mc 14.25); a nota escatológica predomina sobre a soteriológica. Essa é a forma da tradição que, pro­vavelmente, originou-se diretamente do próprio Jesus, e sua preserva­ção provavelmente reflete a ênfase escatológica contínua da refeição nos ajuntamentos em que os textos eram repetidos. A outra tradição se focaliza muito mais sobre a morte de Jesus como tal, e a nota sote­riológica predomina; e envolve somente uma mudança de ênfase antes que uma mudança de conteúdo, mas provavelmente reflete um estágio antigo do desenvolvimento da ceia do Senhor como uma entidade se­parada com a perspectiva começando a se tornar mais um olhar retros­pectivo para a redenção realizada do que um olhar prospectivo para o banquete escatológico.

João 6.53-56 pode refletir ainda outra tradição, onde o primeiro texto da interpretação foi traduzido: "Isto é a minha carne", antes que: "Isto é o meu corpo". Que tal tradição variante existia é certamente

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sustentada por Inácio (Filip., 4.1; Esmirn., 6.2), embora pudesse ter sido somente desenvolvida tardiamente, como contrária a uma visão docé- tica de Cristo.

5. Portanto, prováveis desenvolvimentos na celebração da ceia do Senhor podem ser resumidos a seguir.

(a) A relação da ceia do Senhor com a refeição completa: (1) no cristianismo primitivo era, provavelmente, uma parte constituinte da refeição completa (Páscoa cristã, ICor 11.25 - a fórmula do pão mais antiga na refeição); (2) nas igrejas paulinas, ou no mínimo em Corinto, parece ter formado um elemento distinto no final da refeição; (3) a for­mulação litúrgica equilibrada das palavras de interpretação em Mar­cos e em Mateus parece indicar um estágio posterior quando a ceia do Senhor estava se tornando ou havia se tornado um evento separado, distinto.

(b) Esse provável desenvolvimento geral é refletido também no desenvolvimento na importância anexada às ações e às palavras que vieram a constituir propriamente a ceia do Senhor. Originalmente as duas ações e palavras foram entendidas separadamente e não em pa­ralelo. Elas vieram em pontos diferentes dentro do contexto da refeição completa, de modo que cada uma delas individualmente seria entendi­da como uma expressão da refeição completa, ao invés delas juntas. Isso quer dizer, a realidade do companheirismo da nova aliança era expressa na refeição completa, e em pontos separados na refeição essa expressão chegaria a um foco particular, primeiro no pão e então no cálice.

Desenvolvimentos subseqüentes parecem ter transformado esse entendimento original de três maneiras. (1) A refeição de companhei­rismo, onde a realidade sacramental recaia no ato de comunhão da mesa, foi aparentemente transformada em um ato ritual que estava mais aberto a uma interpretação mágica (ICor 10). O pão e o cálice parecem que tinham menos foco de toda a refeição, e mais significado em si mes­mos separados da refeição, como mais significado anexado ao comer e beber de fato ("Fazei isto em memória de mim" - ICor 11.24,25). Isto é, a realidade sacramental provavelmente começou a focar mais sobre os elemen­tos pão e vinho, naquilo que era consumido, do que sobre a refeição como tal. (2) Em particular, a ênfase mais antiga sobre a refeição como uma refeição da aliança expressa especialmente no cálice comum (tradição B), provavelmente, começou dar espaço para a ênfase fortalecedora sobre

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o elemento do vinho como um símbolo do sangue e o sacrifício de Jesus (tradição A). Se for isso, a nota predominante de um companheirismo de aliança desfrutada no aqui e agora teria começado dar espaço para a representação de um sacrifício de iniciação. (3) Conseqüentemente, também, o significado escatológico da refeição como uma antecipação do banquete messiânico presumivelmente começou a enfraquecer, e os elementos pão e vinho tornaram-se uma visão mais retrospectiva para a morte de Jesus, de modo que em Paulo a Ceia é especialmente um re-contar do evento redentor do passado e a dimensão escatológica está preservada somente naquilo que a Ceia serviria como uma procla­mação da morte de Jesus até a parusia. Resumindo, assim vemos que mesmo dentro de quarenta anos de desenvolvimentos da última ceia nenhum escritor do NT foi levado a considerar a ceia do Senhor como um meio distintivo de graça, bem menos como o principal ou exclu­sivo meio de graça aos crentes, mas que parecem nos mostrar o inicio daquele processo pelo qual, em anos mais tarde, a ceia do Senhor viria a ser cada vez mais o foco principal para o encontro divino-humano entre Deus e o crente mediante Cristo.

§ 41. OS SACRAMENTOS NO QUARTO EVANGELHO

Nos anos recentes as opiniões a respeito do papel dos sacramen­tos na teologia de João ficaram divididas. Elas podem ser classificadas de forma simples, mas eficaz, em três categorias aproximadas. (1) A interpretação ultrasacramental26 na qual a referência à água é sempre pensada com significado sacramental (incluindo Jo 2.1-11; 4.7-15; 5.2-9; 7.37-39; 9.7,11; 13.1-16; 19.34), e onde a ceia do Senhor é vista como es­pelhada em Jo 2.1-11 e 15.1-11. Alusões sacramentais foram detectadas no episódio da "purificação do templo" (Jo 2.13-22), no relato de Jesus andar sobre a água (Jo 6.16-21) e no discurso do Bom Pastor (Jo 10.1-18). (2) A interpretação não-sacramental27: o restante do Evangelho é tão ob­viamente anfz-sacramental que as referências claramente sacramentais

26 Ex., O. C ullmann , Early Christian Worship, 1950, ET SCM Press 1953, cap. 2; A. C orell, Consummatum Est, 1950, ET SPCK 1958, cap. 3.

27 Ex., R. B ultmann , John, pp. 138, n. 3 ,2 3 4 -7 ,677s; K äsemann , Testament, pp. 32s.

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em Jo 3.5 ("água e"), 6.51-58 e 19.34 devem ser consideradas como obra de um redator eclesiástico. (3) Uma interpretação sacramental modifica­da28, que vê somente poucas referências sacramentais - Jo 3.5 e 6.51-58 certamente, 19.34 possivelmente, mas não em definitivo, com diversas outras tais como Jo 2.1-11 e 13.1-16 somente como "possível".

A resposta provavelmente recai em algum lugar entre as duas últimas alternativas, (a) Note-se primeiramente a completa ausência de qualquer relato do batismo de Jesus (Jo 1) e da “instituição" da ceia do Senhor (Jo 13). Este silêncio só pode ser adequadamente respondido com uma das duas alternativas. Se João não quer colocar nenhuma ênfase sobre os dois sacramentos, por sua vez não retira a atenção de sobre eles ou ele quer mostrá-los no contexto de todo o ministério de Jesus. Em vista de Jo 6.51-58 o segundo certamente é possível (João usa algum simbolismo de longo alcance), mas por outro lado exige-se muito para ser lido no texto. Na totalidade a anterior parece ter maior plausibilidade.

(b) Onde quer que encontremos "água" mencionada no Quarto Evangelho ela é usada em uma de duas maneiras. Se ela simboliza as bênçãos da nova era, ou o Espírito Santo em particular: Jo 4.10,14 - "o dom de Deus" é quase um termo técnico para o Espírito Santo no cristianis­mo primitivo (At 2.38; 8.20; 10.45; 11.17; 2Cor 9.15; Ef 3.7; 4.7; Hb 6.4)29, e jorrar ou aspergir é, provavelmente, com a intenção de recordar a ação do Espírito em Juizes 14.6,19; 15.14; 1 Samuel 10.10 onde a mesma palavra é usada; Jo 7.37-39 - equação explícita com o Espírito; 19.34- a referência primária é anti-docética, daí a ênfase sobre o sangue (ele realmente morreu; ver abaixo p. 444), enquanto a água é provavelmen­te destinada como um cumprimento simbólico de Jo 7.38; em 9 e 13 a água não é mencionada, e em 9.7 assim mesmo o tanque é explici­tamente explicado como simbolizando "aquele que foi enviado" (isto é, Jesus). Alternativamente, a água representa a antiga dispensação em contraste com a que Jesus agora oferece: Jo 1.26, 31, 33 - a ênfase repetida que o batismo de João é somente com água salienta o contraste com o batismo do Espírito dado por Jesus; Jo 2.6 - a água representa os ritos de

28 Ex., B easley-M urray, Baptism, pp. 216-32; R. E. B rown , "The Johannine Sacra- mentary", New Testament Essays, Chapman 1965, cap. IV; H. K los, Die Sakra­mente im Johannesevangelium, Stuttgarter Bibelstudien 46,1970.

29 Ver J. D . G. D unn , "A Note on dorea",Exp. T, 81,1969-70, pp. 349-51.

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purificação judaica, em contraste com o vinho de Jesus da nova era; Jo 3.25-36 - assim como João Batista é de baixo, assim é o seu batismo, em contraste com Jesus que é de cima e quem tem e dá o Espírito não por medida; Jo 5.2-9 - o ponto é que a água não fornecia a cura, enquanto Jesus sim. A probabilidade é, portanto, que João tinha a intenção de se referir a água perene (Jo 3.5) para ser entendida em uma dessas duas maneiras, como símbolo do Espírito ou em contraste com o Espírito - se isso pode ser interpretado assim, de uma forma que faz sentido dentro do seu contexto, então as bases para considerá-la como uma adição secun­dária caem por terra. De fato, as duas interpretações da água em Jo 3.5 tornam o sentido plausível. Se a referência deve ser à purificação, o re­novar do efeito do Espírito de cima, ecoando passagens proféticas tais como Is 44.3-5 e Ez 36.25-27 (cf. IQS 4.20-22). Ou a referência é à água batismal (seja a de João ou cristã), ou até o rebentar das águas no nasci­mento natural (como Jo 3.4), em contraste ao nascimento do Espírito (o assunto da passagem - Jo 3.6-8): para entrar no reino de Jesus é preciso nascer da água e do Espírito, isto é, deve-se experimentar não apenas o nascimento físico, mas a renovação do Espírito, não apenas a água do batismo, mas o batismo no Espírito (cf. Jo 1.33; 3.26-34). Talvez devamos adicionar que não há nenhuma para interpretar a hendíadis30 "nascer da água e do Espírito" como equivalente para " batizado na água e no Espírito" (particularmente a vista da ênfase de João sobre a antítese do Batista entre batismo na água e batismo no Espírito - Jo 1.26, 31, 33). Mais, provavelmente, a hendíadis trata tanto da água batismal e do batismo no Espírito como partes integrantes da conversão-iniciação (nascer da água batismal e do batismo do Espírito), enquanto dando ao segundo a ênfase principal (assim como Jesus seria chamado a "hendíadis" entre o Logos que se torna carne e o Espírito vivificante - cf. Jo 3.6 e 6.63; ver o próximo parágrafo).

(c) João provavelmente toma a linguagem da ceia do Senhor em Jo 6.51-5831, como o paralelo com Inácio parece implicar (ver acima p. 274). Mas se for esse o caso, então precisamos notar como ele a utiliza e para

“ Nota do tradutor: cf. Dicionário Aurélio: Hendíadis =figura que consiste em exprimir por dois substantivos por coordenação uma idéia que normalmente se representaria subordinado um deles ao outro.

11 A referência à "carne" em Jo 6.63 torna muito difícil aceitar a visão de que tais versos são uma adição tardia.

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que propósito. Primeiro, ele usa a linguagem de "comer", "mastigar", "beber" como metáforas para crer em Jesus: a necessidade de crer em Jesus é a ênfase central da passagem inteira (vv. 29, 35, 36, 40, 47, 64, 69 - ver também acima §6.1). Segundo, ele deseja insistir que esse Jesus não é meramente o Cristo exaltado, mas aquele que veio do céu (vv. 33, 38 ,41s, 50s, 58), isto é, o verdadeiramente encarnado e crucificado bem como o agora o Jesus ascendido. Isto quer dizer, a passagem incorpo­ra uma polêmica fortemente anti-docética, que possui sua expressão mais contundente nos vv. 51-56 onde "carne" é substituída por "pão" (v. 51) e o mais agressivo "mastigar" por "comer" (v. 54): mastigar a carne de Jesus e beber seu sangue é crer em Jesus como o verdadeiramente encarnado (cf. novamente Inácio, Esmirn. 6.2; e ver também abaixo pp. 442ss). Terceiro, João também crê que é somente mediante o Espirito do Jesus ascendido que essa nova relação vivificante com esse Jesus é efe­tuada (Jo 3.3-8; 4.10, 14; 6.27; 20.22) - a "fé" é conhecida pelo dom do Espírito (Jo 7.39). Além disso, ele procura evitar a impressão que essa relação é realizada mediante ou dependente da participação na ceia do Senhor. Tendo usado a terminologia eucarística da carne (e sangue) nos vv. 51-56 para sublinhar sua rejeição do docetismo, ele uma vez mais continua a advertir que: "O Espírito é que vivifica, a carne para nada serve" (Jo 6.63). Em outras palavras, se os vv. 51-58 fazem uso de linguagem eucarística, fica muito difícil ler os vv. 62s como qualquer outra coisa que um protesto contra o literalismo sacramental, isto é, como um protesto contra a visão de que a vida, da qual João tão freqüente­mente fala, seja mediada pelo comer e beber dos elementos sacramen­tais32.

Isso parece muito mais como se João estivesse reagindo contra um tipo corrente de sacramentalismo em seus próprios dias. Assim como João sentiu ser necessário protestar contra tais tendências instituciona- Iizantes já presentes nas Pastorais e em 1 Clemente (ver acima §§31.1, 32.1), então ele, evidentemente, pensou ser necessário protestar con­tra uma tendência crescente em direção ao sacramentalismo tal como encontramos em Inácio (particularmente Ef 2.2). Ele não adota uma postura anti-sacramentalista propriamente falando, nem dá as costas aos sacramentos, pois ele alude a eles em Jo 6.51-58 (o mais provável)

32 Ver mais completamente J. D. G. D unn , "João 6 - A Eucharistic Discourse?", NTS, 17,1970-71, pp. 328-38.

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e Jo 3.5 (provavelmente). Mas o Evangelho de João precisa ser lido, em parte, no mínimo como um protesto contra um (presumivelmente) crescente literalismo sacramental33.

§ 42. CONCLUSÕES

1. Estamos agora em uma posição para responder algumas das questões postas no fim do §38, e para apreciar algo da diversidade da teologia e forma que precisa se incluída por qualquer tentativa de dis­cutir o papel dos sacramentos no cristianismo do séc. I.

(a) Talvez mais surpreendente de tudo seja a completa ausência do próprio ministério de Jesus de algum paralelo sustentador para a prática sa­cramental das igrejas tardias: ele mesmo não administrava nenhum ba­tismo (pelo menos na maior parte de seu ministério) e sua comunhão à mesa era muito oposta de uma "comunhão fechada" restrita34. Se queremos descrever o ministério de Jesus como "sacramental" em um sentido mais amplo, então precisamos notar que esse significado sa­cramental mais amplo teve uma ampla variedade de expressão, tanto ritual (imposição de mãos, lavagem dos pés dos discípulos, etc.) e não ritual (relacionamentos pessoais).

(b) Quando os dois sacramentos se tornaram parte do cristia­nismo? O batismo mais ou menos imediatamente, mas a ceia do Senhor propriamente falando não muito depois de alguns anos - a refeição comum e/ou pascal da comunidade primitiva de Jerusalém pode ser descrita não mais que um sacramento embrionário, e a ceia do Senhor como, nós podemos reconhecer, é o produto final de um processo bem longo.

(c) Inicialmente a ênfase central era escatológica - o batismo como sen­do a incorporação do batismo de João, e a refeição comum como uma

” Para a discussão das passagens relevantes em 1 João ver D unn , Baptism, cap. XVI.

14 Em que medida a última ceia era uma continuação do esquema normal de mesa de companheirismo de Jesus, e em que medida um ponto de partida disso é uma questão importante, mas quase impossível de responder. Contudo, as duas práticas não devem estar tão separadas como normalmente estão; um tanto sur­preendente, os ecos eucarísticos no discurso do pão da vida, de João 6, estão situados no contexto de uma refeição aberta.

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continuação da prática de Jesus e uma expressão do companheirismo da nova aliança. Mas enquanto o cristianismo se dirigia mais e mais para o mundo helenístico mais amplo a ênfase escatológica diminuía e era crescentemente substituída pelo olhar retrospectivo para a morte de Jesus- o batismo como uma expressão do sepultamento com Cristo, a ceia do Senhor como uma proclamação da morte de Jesus.

(d) Entre alguns cristãos pelo menos (certamente em Corinto) o desenvolvimento dos sacramentos vieram a ser entendidos em termos semi-mágicos - como efetuando ou assegurando a salvação e a união com o Senhor exaltado - uma ênfase que Paulo energicamente contes­tou.

(e) Na outra ponta do espectro temos o protesto joanino contra o sacramentalismo ou o literalismo sacramental para o fim do séc. I - um protesto que era uma modalidade inútil quando a tendência sacramen- talista em Inácio se tornou a dominante.

2. Quando procuramos por um foco unificador dentro dessa diver­sidade encontramos mais uma vez em Jesus, e precisamente na conti­nuidade entre o Jesus terreno e o Cristo exaltado que os sacramentos incorpo­ram e expressam. Desde o começo, o batismo era executado "no nome de Jesus", com o batizador representando o Jesus exaltado e/ou o ba­tizando entrando para o discipulado do Senhor exaltado. Ao mesmo tempo Paulo era capaz de acentuar, como alguma coisa que ninguém negaria que o batismo também falava do morrer de Jesus e fornecia uma metáfora para a união com Cristo em sua morte. Contudo, não há nenhuma tentativa explícita de ligar o batismo de Jesus, feito por João, com o batismo cristão. O batismo cristão não expressa tanto a conti­nuidade entre o discipulado pré-pascal e pós-pascal, bem como entre a morte de Jesus e as subseqüentes comunidades cristãs.

A ceia do Senhor, por outro lado, fornece uma continuidade em ambos os níveis. Por um lado as refeições de companheirismo das co­munidades cristãs primitivas (das quais a ceia do Senhor se desenvol­veu) era, provavelmente, a continuação da própria prática áe comunhão de mesa de Jesus; com efeito, a continuidade fosse talvez até mais marcante, visto que elas bem poderiam comer essas refeições na consciência da presença de Jesus, o Senhor da aliança (cf. Lc 24.35; At 1.4; ICor 10.21), as palavras de interpretação sendo entendidas como pronunciadas por ele próprio terreno e exaltado (mediante um profeta? - cf. Didaquê 10.7).

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Por outro lado, a tradição das palavras da última ceia sempre ocupou uma parte na formação da ceia do Senhor como um sacramento, e no evento havia o mais decisivo efeito, e isso fornece precisamente a con­tinuidade com a paixão e morte de Jesus.

3. A importância dos sacramentos dentro do NT, portanto, não é aquela que fornece algum tipo de foco exclusivo ou canal de graça- Jesus e os escritores do NT parecem ter resistido mais a tais interpre­tações do que acolhido. Ao contrário, onde os sacramentos são valo­rizados dentro do NT é por incorporar em uma maneira formidavelmente simbólica o cerne da crença cristã em Jesus, o homem que deu sua vida por muitos e que agora está exaltado, e porque eles capacitam a fé nesse Jesus a encontrar a expressão apropriada.

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C a p í t u l o I X

O ESPÍRITO E EXPERIÊNCIA

§ 43. INTRODUÇÃO

Tradicionalmente o cristianismo encontrou sua unidade no credo, no ministério e na liturgia. Mas sempre teve um elemento ou vertente do cristianismo (freqüentemente pouco mais que um pingo) que tendesse a minimizar a centralidade de credo escrito, de ministério propriamente ordenado e de culto organizado - acentu­ando antes a imediação da experiência. Para os proponentes do cris­tianismo experiencial, em sua expressão mais vigorosa comumente chamada de "entusiasmo", o que preocupa é a experiência direta com Deus - um sentimento ou consciência de Deus, uma experiên­cia de conversão, experiências significativas de revelação, inspira­ção ou comprometimento, ou alguma experiência mística final de união com Deus.

Poucos exemplos, da história do cristianismo, escolhidos mais ou menos aleatoriamente, ilustrarão a importância do cristianismo experiencial nos séculos anteriores. A seita dos chamados "messalia- nos" floresceu entre os sécs. IV e VII: de acordo com João damasceno, quando os sacerdotes costumavam dizer aos messalianos: "Nós pro­fessamos com fé que temos o Espírito Santo, não pela experiência", eles poderiam replicar, "Venham e orem conosco, e nós prometemos a experiência do Espírito." Simeão, o novo teólogo (sécs. X ao XI), o mais marcante dos místicos bizantinos medievais, sustentava que um batismo sem a genuína conversão é um batismo somente em água; é somente o "segundo batismo", batismo "do Espírito", ou o "batismo de lágrimas", que realmente faz de alguém um cristão real, uma expe­riência de iluminação que Simeão rejeitava reduzir a um mero conhe­

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cimento intelectual.1 São Vicente Ferrar (sécs. XIV ao XV) lista entre as perfeições "essenciais àquele que serve a Deus, ... desfrutar e experimentar constantemente a doçura divina". Os Recogidos, um grupo influente na igreja espanhola, na primeira metade do séc. XVI, praticavam uma forma de oração chamada "recordação" por meio da qual eles visavam experimentar, dentro de si mesmos, a verdade de sua fé, deixando Deus vir às suas almas; sua ora­ção podia e freqüentemente conduzia ao fenômeno extático como transes, gritos de alegria e gemidos. Martinho Lutero escreveu no prefácio ao Magnificat: "Ninguém pode entender a Deus ou a palavra de Deus a menos que ela seja revelada imediatamente pelo Espírito Santo; mas ninguém pode receber qualquer coisa do Espírito Santo a menos que o experimente." Como é bem sabido George Fox situava a "luz interior" acima das Escrituras em as­suntos de autoridade, em um famoso incidente interrompendo um pregador em Nottingham ao dizer: "Não são as Escrituras, é o Espírito Santo, pelo qual homens santos de antigamente produ­ziram as Escrituras, pelo qual as religiões... devem ser testadas". Conta-se que Zizendorf, fundador do assentamento moraviano em Herrnhut, entendia o processo de salvação: "Como uma imediata e jubilosa apreensão do Pai de am or"2. A influência do pietismo moraviano é evidente tanto na compreensão de F. D. E. Schleier- macher como no "sentimento de dependência absoluta", mais obviamente na experiência de João Wesley de seu coração sendo "estranhamente aquecido" e na importância que colocava sobre a segurança: "O testemunho do Espírito é uma impressão interna da alma, pelo qual o Espírito de Deus diretamente testemunha ao meu espírito que eu sou filho de Deus"3. Finalmente, nos 50 anos pas­sados o Pentecostalismo ganhou reconhecimento crescente dentro da Igreja mundial como a expressão do séc. XX do cristianismo experiencial, um forma vital e válida de cristianismo, distinta do Catolicismo e do Protestantismo - a incorporação, nos dias atuais, da convicção que se nós devemos responder a questão: "onde está

1 S. T ugwell, Did you Receive the Spirit?, Darton, Longman & Todd 1972, pp. 52ss.2 R. A. K nox, Enthusiasm, Oxford University Press 1950, pp. 152, n. 3 , 410.3 J. Wesley, Forty-four Sermons, X. “The Witness of the Spirit", Epworth 1944,

p. 115. ■>

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a Igreja?", precisamos perguntar "onde o Espírito Santo está reco­nhecidamente presente com poder?"4

Com certeza, a Igreja Católica geralmente visou restringir e des­viar esse fluxo do cristianismo, limitando-o atrás dos bastidores ou canalizando-a aos porões, temerosa de desatar uma enchente de "en­tusiasmo" a devastar seus rebanhos e redis - e, algumas vezes, com muita razão. Lutero, que embora reconhecesse a importância da ex­periência religiosa, queixava-se vigorosamente contra o espiritualista anabatista que fala facilmente a respeito "Geist, Geist, Geist", e então chuta longe a mesma ponte pela qual o Espírito Santo pode chegar... a saber, as ordenança externas de Deus como o sinal corporal do batismo e a Palavra de Deus pregada".5 A famosa consideração do Bispo Butler a João Wesley reflete a depreciação do racionalista diante da experi­ência religiosa: " 'Senhor', a pretensão às revelações extraordinárias e aos dons do Espírito Santo é uma coisa extremamente chocante."6 Mais comedido e mais imediatamente relevante ao nosso estudo é dito por Alan Richardson "que a Bíblia em si coloca pouca ênfase sobre expe­riências subjetivas... É impossível traduzir experiência religiosa para o Novo Testamento grego".7

Aqui então está uma vigorosa corrente cruzada de controvérsia como qualquer um de nós tem até aqui encontrado. A experiência re­ligiosa é um foco da unidade cristã ou um desvio dos temas centrais? Quão importante era a experiência religiosa no cristianismo primitivo- na moldagem de seu caráter, na formação de sua auto-compreensão? Por trás das expressões externas de kerygma, e credo, do ministério e da adoração, havia grande paixão ou experiência(as) comum(s) que davam origem a diversas manifestações, mas que colavam a diversida­de juntamente em uma unidade no centro? E se a experiência religio­sa é um componente importante entre os blocos básicos de edificação do cristianismo do séc. I, qual experiência - quaisquer experiências, ou apenas de um tipo? O entusiasmo dos anabatistas, ou a experiên­cia "mais fria" de Lutero? O que se diz da unidade e diversidade no

4 L. N ewbigin , The Household o f God, SCM Press 1953, pp. 87s.5 G. W illiams, The Radical Reformation, Weidenfeld & Nicolson 1962, p. 822.6 Citado por K nox, Enthusiasm, p. 450.7 Artigo sobre "Experience, Riligious", em: A Dictionary o f Christian Theology, ed.,

A lan R ichardson, SCM Press 1969, p. 127.

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tema da experiência religiosa dos primeiros cristãos? Nós cuidaremos dessas questões primeiramente observando que por natureza era am­plamente entusiástico o cristianismo primitivo (incluindo o relato de Lucas sobre ele), e então tentaremos salientar o papel da experiência religiosa, até onde podemos discernir, em Jesus, Paulo, e mais abrevia­damente nas Pastorais e em João.8

§ 44. CRISTIANISMO ENTUSIÁSTICO

Cristianismo entusiástico, a terceira, ou melhor, a quarta vertente principal do cristianismo (além da Ortodoxa, Católica e Protestante) é, algumas vezes, supostamente um desenvolvimento tangencial do cristianismo dos últimos séculos, mais influenciado pelo gnosticismo ou montanismo do que pelo cristiansimo ortodoxo, ou até mesmo uma aberração Protestante gerada pela Reforma e largamente confinada aos sécs. XVII e XVIII9. De fato, contudo, a forma primitiva de cristianismo parece não ter sido outra coisa que uma seita entusiástica.

1. Não é fácil retroceder mediante nossas fontes às comunidades primitivas na Palestina - Atos muitas vezes tanto obscurece como tam­bém ilumina. Mas podemos reconhecer diversos traços característicos de entusiasmo. Se Atos contém alguma história afinal, então é difícil negar que experiências visionárias e extáticas, milagres e inspiração imediata no falar foram traços característicos das igrejas do séc. I.

(a) Visões e êxtase. As aparições da ressurreição devem ser clas­sificas como uma forma de experiência visionária. O entendimento de Paulo da ressurreição do corpo ("espiritual" não "natural") certa­mente implica que ele entendeu o modo de vida ressurreta de Jesus como diferente da existência física (ICor 15.42-50); conseqüentemen­te seu "ver" o Jesus ressurreto (ICor 9.1) deve ser de uma ordem diferente do ver "físico" - quer dizer, precisa ser um modo de ver visionário (cf. G1 1.16 - "revelar em mim o seu filho"). Com efeito, isto é apenas como o próprio Paulo o descreve em um dos relatos de

1 O que se segue é grande parte um resumo de D unn , Jesus, onde a discussão com outros pontos de vista é plenamente documentada.

' K nox, op. cit., p. 4ss. ■*

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sua conversão em Atos (At 26.19 - "visão celestial"; mas ver abaixo a nota 17). A natureza das aparições primitivas da ressurreição descrita nos evangelhos é menos clara; mas elas também são melhores enten­didas como algum tipo de visão, em que, com certeza, todos os que viram Jesus estavam convencidos que haviam visto o Jesus ressurreto e vivo com nova vida.10

A primeira grande experiência comunitária do Espírito em Pen­tecostes, descrita por Lucas em Atos 2, tem de ser reconhecida como uma experiência extática que no mínimo incluíam elementos de au­dição (som como um vento forte), visão (línguas de fogo) e discurso automático (glossolalia). Que isso foi entendido como uma experiência do Espírito (e presumivelmente não apenas por Lucas) nos conta algu­ma coisa tanto da importância de tais experiências nos primeiros anos da nova seita e acerca do caráter atribuído ao Espírito pelos primeiros cristãos - o Espírito de entusiasmo. Isso é confirmado pela significân­cia de outras experiências extáticas atribuídas ao Espírito, em At 4.31; 8.17ss (por conseqüência), 10.44ss e 19.6. Em cada caso Lucas está ob­viamente descrevendo homens alcançados fora de si mesmos, isto é, em êxtase.

Que visões eram, frequentemente, experimentadas dentro das primeiras comunidades cristãs é o testemunho claro de Atos, e é con­firmado pelo testemunho de Paulo em 2 Coríntios 12.1, 7. Há pouco artifício no relato de Lucas neste ponto e pouca razão para questionar sua reivindicação de que visões foram experimentadas por todas as figuras-chave no desenvolvimento primitivo da nova seita - Pedro, Estêvão, Filipe, Ananias, Paulo. Não somente isso, mas de acordo com Lucas pelo menos, essas visões desempenharam uma parte significa­tiva na direção do curso da missão primitiva (particularmente At 9.10; 10.3-6, 10-16; 16.9s; 18.9; 22.17). Duas delas são explicitamente descri­tas como "extáticas" (At 10.10; 11.5; 22.17). Onáe decisões importantes são determinadas por visões nós temos puro e simples entusiasmo.

(b) Milagres. Quase não se pode duvidar de que o curso do cristia­nismo primitivo foi marcado pelos muitos acontecimentos extraordi­nários e registro de muitos milagres. O registro de Atos é aqui adequa­

10 Ver mais completamente D unn, Jesus, cap. V. Cf. W. L. C raig, Assessing the New Testament Evidence for the Historicity o f the Ressurection o f Jesus, Edwin Mellen, 1989.

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damente confirmado por testemunho de primeira mão de Paulo (Rm 15.19; ICor 12.10,28s.; G13.5). Esses incluíam curas de lepra, cegueira e paralisia (At 3.1-10; 8.7; 9.18,33s.; etc.), e o relato de Pedro restaurando Tabita da morte (At 9.36-41; cf. 20.9-12). Tais obras poderosas aparece­ram ou no mínimo foram registrados onde quer que o entusiasmo cati­vasse uma reunião ou uma comunidade por toda a história da religião. Particularmente digna de nota são as reivindicações de curas mediante a sombra de Pedro (At 5.15s.) e por meio de lenços, aventais e roupas tocados por Paulo (At 19.11s), e os milagres de juízo em 5.1-11 (a morte de Ananias e Safira) e At 13.8-11 (a cegueira de Elimas). Tais são as alegações de entusiasmo - onde o Espírito se tornou tão elevado e a imaginação tão incendiada que a experiência do poder sobrenatural se torna prontamente antecipada e as alegações para manifestações de tal poder não causam nenhuma surpresa.

(c) Inspiração. Experiências de discurso inspirado também eram freqüentes no cristianismo primitivo. Paulo certamente gostaria que todos os seus leitores coríntios experimentassem a profecia (ICor 14.5) e admoestava seus convertidos tessalonicenses contra restringir o Espírito profético (lTs 5.19s.). Com efeito, parece, a partir de Atos, que a experiência de pronunciamento inspirado era tão disseminada entre os primeiros crentes que eles podiam prontamente crer que a profecia de Joel se cumprira plenamente - todos eram profetas, jovens e velhos, pais e filhos, senhores e servos (At 2.17s.). O Espírito foi experimentado enquanto dava palavras a dizer, palavras de louvor, palavras de testemunho (At 2.4; 4.8, 31; 5.32; 6.3, 5, 10; etc.). Eles se sentiam sob a direção divina que era imediata e não devia ser nega­da (At 5.3, 9; 8.29, 39; 9.31; 10.19; 13.2, 4; etc.). Eles agiam e falavam corajosamente, com autoridade, crendo que faziam isso "em nome de Jesus", isto é, com os representantes diretos do Cristo ressurreto e como seus plenipotenciários (At 2.38; 3.6,16; 4.10,13,29-31; 5.28,40s.; etc.). Na história do cristianismo tais alegações são as maiores característi­cas de entusiasmo.

A intensidade e a freqüência dessas várias experiências alegadas por essa forma primitiva de cristianismo indicam que estamos lidando não com poucos exemplos isolados de visão poética, potência carismá­tica ou arrebatamento profético, mas com uma comunidade onde tais experiências eram características, uma comunidade que amplamente dependiam de tais experiências para ̂ ua sustentação espiritual e senso

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de direção. Tal comunidade deve ser chamada de comunidade entusi­ástica.

2. Há claras indicações em vários escritos do NT de uma tendência ou vertente muito forte (muitos diriam fortíssima) entusiástica dentro do cristianismo do séc. I.

(a) Algumas das principais dores de cabeça de Paulo foram causa­das por facções entusiásticas - particularmente em Corinto. De 1 Corín­tios 1.18-4.21 fica evidente que alguns dos cristãos coríntios achavam de si mesmos como "os espirituais" (pneumatikoi - ver particularmente ICor 3.1); que haviam alcançado um alto grau de espiritualidade, co­nheciam a mais alta sabedoria, desprezando o cristianismo de baixo- nível de Paulo entre outros (ver particularmente ICor 4.8-10). Aqui claramente é um tipo de elitismo espiritual típico de formas menos atrativas de entusiasmo. Similarmente em 1 Coríntios 8 ouvimos da­queles (provavelmente o mesmo grupo) que se achavam possuidores de um conhecimento superior que justificava a ação de serem egoístas e menosprezarem àqueles que não partilhavam as mesmas convicções. Em 1 Coríntios 14 Paulo se dirige àqueles (os pneumatikoi de novo) que pareciam pensar que espiritualidade devia ser medida pelo volu­me de discurso extático - o mais ininteligível, o mais inspirado (ICor 14.6-25)! Sua conduta também era remanescente do culto frenético dos devotos de Dioniso (ICor 12.2); eles desejavam espíritos (ICor 14.12)- isto é, dispunham-se às experiências de inspiração; seu culto era ca­racterizado pela confusão e pela desordem (ICor 14.23, 33, 40). Aqui, mais uma vez, claramente estão as marcas do entusiasmo sem medidas. Em 1 Coríntios 15.12 encontramos a visão de que não há ressurreição dos mortos - isto é, nenhuma ressurreição futura, nenhuma ressurreição do corpo. Isto era, provavelmente, outra faceta da mesma espiritualidade elitista: não haveria nenhuma ressurreição por vir porque eles já expe­rimentavam a plenitude da ressurreição da vida mediante o Espírito (cf. ICor 4.8; 15.45s.). Note-se que essa vertente de entusiasmo era parte da igreja em Corinto, não meramente alguma ameaça externa (ver mais abaixo §61.1).

A situação tratada em 2 Coríntios 10-13 desenvolveu-se a partir daquela refletida em 1 Coríntios. Mas aí também ouvimos de homens lidos em alta estima dentro da igreja coríntia porque eles exibiam tra­ços manifestamente entusiásticos: seu discurso era impressionante,

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isto é, provavelmente, inspirado e extático (2Cor 10.10; 11.6); evidente­mente, gabavam-se de suas visões e revelações (2Cor 12.1); seus "sinais e maravilhas e poderosos feitos" eram considerados como prova posi­tiva de seu apostolado. Visto que eles se avaliavam em tais termos, seu evangelho presumivelmente refletia a mesma ênfase; isto é, o "outro Jesus" de quem Paulo os acusa de pregar (2Cor 11.4) era provavel­mente Jesus apresentado como um homem poderoso detentor de tais poderes espirituais, um taumaturgo que desse modo se mostrava su­perior a todas as outras figuras na religião helenística, assim como eles mesmos demonstravam sua superioridade sobre Paulo em assuntos de experiência religiosa (cf. acima pp. 149ss).

A evidência de tendências entusiásticas dentro das igrejas pau­linas é mais clara nas Cartas aos Coríntios. Mas a situação de Corin­to não era atípica de outras igrejas paulinas, como 2Ts 2.2 e Cl 2.18 claramente demonstram. Na anterior temos outro exemplo de uma (provavelmente) palavra profética a respeito da parusia tomada acriti- camente como direção divina para a presente conduta (cf. 2Ts 3.6-13). E na última parece que havia aqueles dentro da assembléia colossense que se gabavam de suas visões experimentadas na iniciação e conside- rando-as como justificação para a prática de adoração dos anjos (ver também abaixo p. 417s).

(b) Marcos também pode ter escrito seu Evangelho para contrariar uma cristologia de tipo similar àquela que Paulo denunciou em 2 Co­ríntios 10-13, um apologética ou evangelismo que apresentava Jesus, principalmente, como preeminente fazedor de milagres (cf. acima pp. 123,149s). Se for assim, então a implicação é que dentro da situação ou da comunidade a que Marcos se dirige; havia fortes influências para o entusiasmo, similar àquele de Corinto.

(c) Outra prova de formas menos desejáveis de entusiasmo den­tro do cristianismo do séc. I pode ser encontradas em Mateus 7.21-23, onde Mateus, evidentemente, tem em mente carismáticos entusiás­ticos com uma tendência perigosa para o antinomismo, e Judas 19, onde Judas parece atacar um grupo que como aqueles em Corinto, consideravam-se como pneumatikoi, uma elite espiritual (ver mais abaixo pp. 417ss).

3 .0 próprio Lucas deve ser considerado como um pouco entusias­ta (ainda que não elitista). Quando ele olha para trás, para o começo

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do cristianismo em Atos, são os traços entusiásticos que ele sempre seleciona - assim entre os evangelhos sinóticos é somente Lucas que menciona a única experiência claramente extática de Jesus (Lc 10.18; cf. 10.21; 22.43). Além disso, ao salientar os fenômenos de entusiasmo ele o faz de um modo surpreendentemente acrítico.

(a) Fica claro de sua apresentação do Espírito (particularmente em Atos) que ele partilha pelo menos um pouco do desejo dos entusiastas pelo dramático na experiência espiritual, pois o divino se torna opaco e tangível. Para Lucas o Espírito é mais claramente visto no extraordinário e obviamen­te nos fenômenos sobrenaturais, e em Atos é difícil apresentar qualquer outra coisa. O Espírito é o poder que chega com um som semelhante a uma poderosa ventania e como em línguas de fogo visíveis (At 2.3), o poder que é claramente manifestado em glossolalia (2.4; 10.46; 19.6), o poder que afeta seus receptores de tal maneira como que despertou o maravilhoso e a inveja de um mágico consagrado (At 8.18s.). Quer dizer, quando o poder do Espírito primeiramente toma conta de al­guém na narrativa de Lucas se manifesta tipicamente e diretamente em experiência extática. Isso é porque ele usa linguagem tão dramática para descrever a chegada do Espírito - "batizado com" (At 1.5; 11.16), "vindo sobre" (1.8; 19.6), "derramado" (2.17s, 33; 10.45), "caiu sobre" (At 8.16; 10.44; 11.15). É por isso que a pergunta pode ser feita em At 19.2 - "recebestes o Espírito quando abraçastes a fé?" - pois a vinda do Espírito deveria ser algo tangível, inconfundível. É por isso que em At 2.33 "o Espírito Santo prometido" pode ser posteriormente descrito como "é isto o que vedes e ouvis", onde o comportamento extático e o discurso dos discípulos são identificados com o Espírito derramado! A compreensão de Lucas do Espírito é aquela do entusiasta.

(b) As visões extáticas ocorrem freqüentemente em Atos - pelo menos 12, sem contar as aparições da ressurreição em Atos 1 ou as experiências de Pentecostes em Atos 2 (veja acima p. 287). Há mais visões registradas em Atos do que na soma do restante do NT (aparte de Apocalipse). Lucas claramente se deleita no fato que as igrejas primitivas eram guiadas em sua missão diretamente por visões, e particularmente em momentos decisivos (At 9.10; 10.3-6,10-16; 16.9s; 18.9; 22.17s; 26.19s.). Ele não mostra nenhuma consciência do proble­ma que uma autoridade radicada em visão pode grosseiramente so­frer abusos; ele parece não partilhar nenhuma das reservas de Paulo nesse ponto (cf. 2Cor 12.1; Cl 2.18). Sabemos dessas duas passagens

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paulinas que o problema surgiu de forma aguda pelo menos duas vezes durante o tempo coberto pela história de Atos. Mas Lucas não registra nenhuma inquietação a respeito do assunto, e não oferece nenhuma medida cautelar das experiências visionárias sendo usa­das para justificar práticas ou atitudes questionáveis. Tal aceitação inquestionável de todas as visões como provenientes de Deus, tal tra­tamento acrítico de autoridade impetrada em experiências visionárias clara­mente trai a tendência entusiasta.

(c) A mesma atitude acrítica para com as reivindicações entre os primeiros cristãos para experiência direta do sobrenatural é, de algum modo, até mais pronunciada no tratamento de Lucas dos milagres em Atos. Ele regularmente os chama de sinais e maravilhas (9 vezes). Mas isso é uma frase que é geralmente usada em outros lugares do NT em um sentido mais negativo - sinais e maravilhas caracterizam a obra do falso profeta, a atitude do infiel, a arrogância dos apóstolos falsifica­dos, o engano do anti-Cristo (Mc 13.22/Mt 24.24; Jo 4.48; 2Cor 12.12; 2Ts 2.9) - isto é, eles não são confiáveis ou recomendados, mas se deve desconfiar. Mais uma vez, Lucas orgulha-se dos sinais e maravilhas das igrejas primitivas como ações que demonstravam a mão de Deus na missão das igrejas. Com certeza, há alguma contenção nos milagres que ele registra, e ele contrasta com saliência o progresso miraculoso da Palavra de Deus com a mágica (At 8.18-24; 13.6-12; 19.13-20). Mas, contudo, ele claramente pensa dos milagres da missão cristã como mais espetacular do que os de quaisquer outros rivais - os sinais e os grandes atos de poder, milagres não comuns (At 8.13; 19.11) - e tudo o que é o mais valioso e respeitável para isso.

Outro indicador notável para a própria atitude de Lucas é o seu retrato da relação entre milagres efé. Lucas parece pensar mais da fé que os milagres produzem do que da fé que faz um milagre possível em primeiro lugar (At 5.12-14; 9.42; 13.12; 19.13-18). Enquanto em outros lugares do NT a atitude é completamente o contrário: a publicidade, o valor propagandista dos milagres é depreciado e uma fé baseada no milagre é geralmente tratada com reserva e desaprovação (Mc 8.11s., Mt 12.38s./Lc 11.16, 29; Jo 2.23s; 4.48; 20.29 - ver também abaixo pp. 445; 2Cor 13.3s). Resumindo, o que os outros escritores do NT vêem no máximo como ambíguo (sinais e maravilhas), Lucas glorifica. O que Je­sus e outros escritores do NT viram como algo a ser desencorajado (fé baseada em milagres), Lucas vê como algo que pode ser estimulado.

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Ele que se apraz acriticamente em milagres, por causa do efeito de sua propa­ganda e pelos valores enraizados na fé nos milagres, pode, muito propriamen­te, ser designado um entusiasta.

(d) Muito da mesma atitude é refletida na ênfase de Lucas sobre a experiência das comunidades primitivas do discurso inspirado. Ele vê isso como uma grande marca do enchimento do Espírito individual e comu­nitário (ele não faz nenhum esforço similar para ligar o Espírito com os sinais e maravilhas que registra); ver At 2.4, 17s. ("E eles profetizarão" foi adicionado à citação de Joel para enfatizar o ponto); At 4.8,31; 5.32; 6.10; 7.55s; 10.44-46; 11.28; 13.2, 9-11; 18.25; 19.6; 20.23; 21.4, 11. Dois traços da apresentação de Lucas merecem atenção. Primeiro, ele não faz nenhum esforço real para distinguir a profecia do discurso extático: ele alinha os dois juntos em At 19.6 (cf. 10.46) e parece igualá-los em At 2, onde a glossolalia de 2.4 se cumpre na expectativa de Joel do derramamento do Espírito de profecia (At 2.16-18). Isso implica que Lucas está mais interessado ou impressionado no fato da inspiração do que pelo seu caráter (pronunciamento inteligível ou ininteligível - cf. os coríntios acima p. 289). Segundo, ele não mostra nenhuma consciência do proble­ma da falsa profecia. O único falso profeta que encontramos é de fora da igreja, seu inimigo declarado (At 13.6). Que isso poderia ser um pro­blema dentro de uma congregação cristã é dificilmente previsto. Até quando dois pronunciamentos inspirados contradizem um ao outro, ele atribui ambos ao Espírito sem escrúpulos ou problema (At 20.22; 21.4). Esta aceitação inquestionável de todo discurso inspirado dentro da comunidade como inspirada pelo Santo Espírito certamente é a atitude do entusiasta.

(e) Uma consideração contrabalançada, contudo, não deve ser ignorada. Lucas partilha muitos traços de entusiasmo, mas ele não é nenhum elitista. Ele é um entusiasta - ele vê o cristianismo como uma forma mais alta de espiritualidade. Mas ele não é elitista - não tem concepção de uma espiritualidade mais elevada dentro do cristia­nismo. Com certeza, a narrativa de Atos 8.12-17 oferece a si mesma como um texto-prova para um tipo de elitismo cristão - os samarita- nos como o tipo de crentes batizados que ainda não têm o Espírito. Mas uma exegese alternativa é que Lucas intenciona aí enfatizar a im­portância do dom do Espírito como aquilo que torna qualquer pessoa cristã (como claramente, em At 10.44-48; 11.15-18; 15.8s; 19.2s.) - em última análise a única coisa necessária. E dom do Espírito que conta

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se há de fato uma crença genuína em Deus e compromisso com Cris­to antes que uma crença simplesmente no que o pregador dizia algo importante e um desejo de agradá-lo (como a linguagem de Lucas em At 8.12s. implica: eles creram em Filipe, não em Deus ou em Cristo, a descrição regular de conversação de Lucas). O entusiasmo de Lucas, como o refletido em At 8, pode, portanto, ser melhor caracterizado assim: não há cristão que não tenha o Espírito, mas sem o Espírito não há cristãos ainda.11

Podemos concluir, portanto, que Lucas é um daqueles crentes para quem a experiência espiritual precisa ser visível, tangível, apta para servir como uma prova para os outros: o Espírito Santo desce sobre Jesus em forma corpórea no Jordão (Lc 3.22); o círculo mais próximo de três dis­cípulos realmente testemunhou a transfiguração de Jesus, eles não sonharam isso (Lc 9.32); as aparições da ressurreição de Jesus forne­ceram muitas provas incontestáveis da ressurreição de Jesus (At 1.3; cf. Lc 24.39); o anjo que libertou Pedro da prisão era real e não uma visão (At 12.9); o Espírito é realmente para ser visto nos efeitos de sua vin­da (At 2.33); os milagres do cristianismo são mais impressionantes, produzem mais convicção do que quaisquer outros; direção em mo­mentos de indecisão ou estresse pode ser esperada mediante visão ou pronunciamento inspirado; êxtase e inspiração dentro da Igreja é sempre a obra do Espírito. Há outros aspectos da apresentação de Lucas do cristianismo primitivo aos quais precisamos retornar (ver abaixo §72.2). Mas o suficiente foi dito aqui para demonstrar que o que mais impressionava Lucas a respeito do cristianismo primitivo eram seus traços entusiásticos. Ainda que seu entusiasmo se focali­ze sobre o cristianismo como um todo; diferente dos entusiastas que Paulo encontraria, ele não busca estimular uma forma mais elevada de espiritualidade dentro do cristianismo - que seria cismática e des­trutiva para a unidade da Igreja, e Lucas certamente não desejaria estimular isso (ver abaixo §72.2). E o cristianismo entusiástico como tal que Lucas retrata - e ele extrai de seus materiais e cores da própria

11 Quase não é possível que Lucas entendesse que os samaritanos já tivessem rece­bido o Espírito e somente não tivessem as manifestações do Espírito. Lucas pensa do Espírito precisamente como o poder que se manifesta clara e tangivelmente ao observador - nenhuma manifestação, nenhum Espírito (ver acima pp. 286ss. e mais completamente D unn , Baptism, cáp. V.).

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realidade. Resumindo, como bem se reconhece Lucas como evange­lista, historiador, teólogo, e com as qualificações esboçadas acima, precisamos também qualificá-lo, Lucas, o entusiasta (ver mais abaixo pp. 5 1 2 ).

§ 45. A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA DE JESUS

A vertente de cristianismo entusiástico floresceu desde muito cedo nos inícios do cristianismo por meio das igrejas da primeira geração e na segunda geração, encontrando sua primeira e talvez clássica expressão escrita em Atos dos Apóstolos. Naturalmente, a questão que surge para nós é: o próprio Jesus se colocava dentro dessa vertente? Isso aparece primeiramente em seu próprio minis­tério?

É claro que é extremamente difícil retroceder à própria experiên­cia religiosa de Jesus. Muitos diriam que é impossível, dada a natureza de nossas fontes e sua falta de interesse na própria experiência de Jesus como tal. E os esforços da erudição do NT do séc. XIX de produzir vi­das de Jesus e descobrir sua autoconsciência messiânica são advertências dos danos ameaçadores para qualquer tentativa. Certamente é verda­de que não mais podemos esperar escrever uma biografia (moderna) de Jesus, ou traçar quaisquer desenvolvimentos em sua autocompre- ensão, etc. Mas temos, no mínimo, algumas reminiscências históricas do ministério de Jesus e temos palavras reais de Jesus preservadas, pelo menos alguns exemplos. E o auto-entendimento de uma pessoa é provável vir a expressão em alguma medida no que ele ou ela diz e faz. Assim podemos nutrir alguma esperança de retorno ao entendi­mento de Jesus de sua experiência religiosa em um ou dois pontos de seu ministério.

Veremos primeiramente a evidência muito similar ao perfil do cristianismo entusiástico esboçado acima, então examinaremos mais detidamente o material que reflete a consciência de filiação de Jesus e o Espírito de Deus agindo por meio dele.

1. Jesus era um entusiasta? Há um número de pontos em que o mi­nistério de Jesus mostra claros paralelos com o cristianismo entusiásti­co descrito acima.

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(a) Jesus pode muito bem ter tido uma ou duas experiências extáti­cas12. Provavelmente um exemplo é o de Lc 10.18 - a visão de Satanás caindo como um relâmpago do céu. As narrativas de unção de Jesus com o Espírito no Jordão provavelmente retrocedem ao próprio Jesus de uma forma ou de outra (Mc l.lOs. pars.); muito provavelmente a experiência envolvida tanto em visão (o Espírito descendo como uma pomba) como em audição (a voz do céu). As narrativas da tentação possivelmente retrocedem a algumas experiências visionárias que Je­sus teve no deserto (Mt 4.1-11/Lc 4.1-12). Além disso, não podemos ir com certeza. A transfiguração foi originalmente uma visão? - mas se assim for, foi uma visão experimentada pelo círculo mais íntimo dos discípulos de Jesus antes que por Jesus (Mc 9.2-8 pars.). A aparição de um anjo no Getsêmane (Lc 22.43s.) é outra candidata possível; mas aí o texto é incerto. Tudo diz que temos um elemento mínimo de entusias­mo - dificilmente de ser comparado com os fortes elementos visioná­rios e extáticos em Atos.

(b) Jesus certamente era um fazedor de milagres, pelo menos no sen­tido que ele realizava muitas curas extraordinárias e exorcismos - um traço de seu ministério confirmado por fontes judaicas13. Contudo, en­tendemos ou explicamos o que aconteceu (o impacto hipnótico de sua personalidade, as enfermidades como desordens histéricas, as curas como o efeito do poder divino, etc.), é suficientemente claro que havia uma dimensão carismática ou entusiástica de seu ministério. Quer di­zer, havia um poder em suas palavras e ações que não era alguma coisa conferida sobre ele pelas autoridades de seus dias, nem uma técnica aprendida em alguma escola, mas uma autoridade que ele e outros reconheciam e que ele próprio atribuía ao Espírito agindo por seu in­termédio (ver abaixo p. 297 e §45.3).

Contudo, em dois pontos a atitude de Jesus para com o milagre o separa de Lucas. Primeiro, ele parece rejeitar abertamente a idéia de que os milagres eram valiosos para sua propaganda ou sinal eficaz (Mc 8.11s. pars.; cf. Mt 4.5-7 par.; Lc 16.31), mesmo que quase considerasse seu poder de

12 De acordo com Marcos 3.20 aqueles próximos a Jesus pensavam que ele estava fora de si (literalmente "em êxtase").

13 Ver J. K lausner, Jesus o f Nazareth, Allen & Unwin 1925, pp. 18-47; H. van der L oos, The Miracles of Jesus, SNT, VIII, 1965, pp. 156-75; J. D . G. D unn e G. H. T welftree, "Demon-Possession and Exorcism in the New Testament", Churchman 94,1980, pp. 210-25. '

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exorcismo como um trabalho inevitável e como expressão do controle soberano de Deus (Mt 12.28/Lc 11.20). Segundo, um dos traços mais característicos do ministério de cura de Jesus era a ênfase que ele colocava sobre a fé de quem pedia a cura (ver particularmente Mc 5.34,36; 10.52; Mt 8.10/Lc 7.9; Mt 9.28s; 15.28; Lc 7.50; 17.19). Com tal fé todas as coisas eram possíveis (Mc 9.23s; 11.23 pars.); sem isso ele não podia fazer quase nada (Mc 6.6). Este senso de ser apto a exercitar o poder efetivo de cura marca Jesus como um milagreiro carismático; mas seu senso de que esse poder era dependente da fé do recipiente e sua indisposição para valorizá-lo por sua potencial publicidade nos previne de chamá-lo de entusiasta ou de mágico.

(c) Jesus, certamente, quase se considerava como um profeta (ver particularmente Mc 6.4 pars., Lc 13.33; e abaixo §45.3), e os vários exem­plos de intuição profética (ver particularmente Mc 2.8; 9.33-37; 10.21; 12.43s; 14.18, 20; Lc 7.39ss; 19.5) e a previsão profética (ver particular­mente Mc 10.39; 13.2; 14.8, 25, 30) são atribuídas à ele. Além do mais, seu ensino possuía tanta autoridade que era amplamente reconhecido e comentado (em particular Mc 1.27; 6.2; 11.28; Mt 8.9s./Lc 7.8s.), e que chega à mais clara expressão nas palavras "...mas eu vos digo" de Mt 5, e no uso do Amém para dar peso às suas palavras (34 vezes na tradição sinótica)14. O que era atordoante acerca dessa reivindicação implícita à autoridade era que ele se situava criticamente contra as autoridades de Israel e do judaísmo passados e presentes, até mesmo a Moisés (ver acima §16.2 e p. 184). Sua fonte de autoridade não era a Lei, os pais, a tradição ou os rabis, mas sua própria certeza de que conhecia a vonta­de de Deus. Aqui está um ensino que pode propriamente ser chamado carismático. Aqui está uma autoridade reivindicada que poderia muito bem ser chamada de elitista dado que somente ele parecia a possuir. Mas era o próprio ensino que provocava a surpresa, não qualquer pro­nunciamento abertamente inspirado; e não há nenhuma evidência que Jesus valorizava o discurso extático ou a glossolalia experimentada. De modo que aqui deveria ser mais apropriado chamar Jesus de um carismático antes que um entusiasta.

Resumindo, quando começamos a tocar a própria experiência reli­giosa de Jesus encontramos diversos traços que podem justificadamente ser

14 Veja E. KAsemann, "The Problem of the Historical Jesus" (1954), ENTT, pp. 37-42; Jeremias, Theology, I, pp. 35s.

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chamados carismáticos naquilo que seu ministério era caracterizado por um poder e uma autoridade que não era nem aprendida em qualquer escola, nem atribuída por qualquer ação humana, mas que vinha a ele e mediante ele de modo direto e espontâneo. Mas visto que esse poder e autoridade não eram nem radicados no êxtase, nem expressava dis­curso extático, mas era antes dependente da resposta daqueles a quem ele ministrava, eles não podem ser prontamente considerados como as manifestações e/ou fenômenos entusiástico no ministério de Jesus. En­tretanto, na realidade, as discussões sobre os fenômenos carismáticos ou entusiastas no ministério de Jesus apenas, tem nos guiado até ago­ra; elas certamente não nos trazem ao coração da experiência religiosa de Jesus. Por isso, temos que adentrar mais profundamente.

2. A experiência de Jesus de Deus como Pai. Podemos claramente es­tar seguros que Jesus freqüentemente recorria à oração - não apenas ao feixe de orações da adoração da sinagoga ou da piedade judaica- mas momentos de oração quando ele se abria com Deus em suas próprias palavras (cf. acima p. 221). A evidência aqui não é tão forte como poderíamos pensar, mas é forte o suficiente (Mc 1.35; 6.46; 14.36; Mt 11.25s./Lc 10.21; 3.21; 5.16; 6.12; 9.18, 28s; 11.1). Podemos até mes­mo esperar responder à pergunta: Por que ele achava isso necessário para suplementar as orações da adoração judaica com tais momentos sozinho com Deus? A resposta parece ser, Porque nesses momentos de oração ele experimentava Deus como Pai em um sentido muito íntimo e pessoal.

A justificação para essa reivindicação recai quase inteiramente so­bre uma palavra - ‘abha. Novamente a evidência não é tão forte como poderíamos desejar, mas de novo é provavelmente forte o suficiente: Mc 14.36 - " ‘Abba (Pai)! Tudo é possível para ti: afasta de mim este cálice; porém, não o que eu quero, mas o que tu queres". Em outras orações de Jesus registradas nos evangelhos, o aramaico ‘abba presu­mivelmente subjaz o grego pater (Mt 6.9/Lc 11.2; Mt 11.25/Lc 10.21; Lc 23.34,46; Mt 26.42; 9 vezes em João). A conclusão de que tocamos aqui no próprio maneirismo de Jesus de orar é reforçada pelo fato de que isso aparece em todos os cinco estratos da tradição evangélica (Marcos, Q, Lucas, Mateus, João), e que ‘abba é usado em toda oração que é atri­buída a Jesus exceto uma (Mc 15.34) - mas essa exceção somente serve para reforçar o caso, como veremos em determinado momento.

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O fato de que Jesus usou ‘abba para se dirigir a Deus nos capacita ti dizer com alguma confiança que Jesus teve Deus como Pai de uma maneira muito pessoal e íntima. Por que isso? Porque, como J. Jeremias demonstrou com suficiente clareza15, ‘abba era o linguajar da inti­midade familiar: era uma palavra com a qual as crianças, incluindo crianças pequenas, dirigiam-se aos seus pais - portanto, uma pala­vra de cortesia e respeito, mas também de intimidade calorosa e con-11 ante. Além disso, até onde nossa evidência permite, dificilmente foi usada pelos contemporâneos de Jesus em suas orações em absoluto

presumivelmente porque fosse muito íntima, sem reverência e te­mor respeitoso diante do Único exaltado e santo. As orações judaicas certamente falavam de Deus como Pai, mas em um modo muito mais formal de se dirigir - Deus como Pai da nação - e sem a objetividade e simplicidade das orações de Jesus. Como as pessoas oram quando Nozinhas refletem seu entendimento de sua relação com Deus e sua experiência de Deus. O que Jesus experimentava de Deus em seus momentos de solidão e oração vem para sua expressão mais caracte­rística na palavra ‘abba. Portanto, não é injustificado concluir dessa palavra que Jesus experimentou Deus como Pai com imediatez e intimi­dade que poderia encontrar expressão somente naquele clamor, ‘Abba. E se isso é alguma coisa confirmada por uma oração de Jesus que não começa com ‘Abba - Mc 15.34 - para isso é o clamor derradeiro de Jesus na cruz; na horrível experiência de abandonado por Deus ele não pode clamar ‘Abba.

Ainda permanecem questões para serem respondidas. Mas a con­clusão parece firme o suficiente. E dada a conclusão fica difícil resistir no corolário que mediante essa palavra ‘abba tocamos uma das origens uti­lizadas da autoridade e do poder de Jesus - que por meio desse senso de filiação a Deus, de Deus como seu Pai, Jesus extraia as convicções que em grande parte governou sua vida e determinou a sua missão.

3. A experiência de Jesus do Espirito. Pertence à pedra angular da Iradição que Jesus era um exorcista bem-sucedido (cf. acima p. 296).

_______________________Os E sp ír ito e E x p e riê n c ia ___________________________ 299

1 ’ J eremias, Prayers, pp. 57-62; apesar de ver também as qualificações importantesde G. V ermes, Jesus and the World of Judaism, SCM Press 1983, pp. 41s; J. A. F itzmyer,"Abba and Jesus' Relation to God", A Cause de I'Envangile, J. D upont Festschrift,Cerf 1985, pp. 15-38; J. B arr, "Abba isn't 'Daddy'", JTS 3 9 ,1988, pp. 28-47.

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O ponto saliente aqui é que na tradição de Jesus temos dois ou três ditos de Jesus onde ele próprio fala acerca de seu ministério de exorcista, e onde indica o que ele vê como a razão de seu sucesso. Esses ditos foram preservados em dois blocos separados, porém sobrepostos do material em Marcos e Q - Mc 3.22-29 (um grupo de três ditos) e Mt 12.24-28, 30/Lc 11.15-23 (quatro ditos). A versão de Q de um quinto dito (uma variação de Mc 3.28s.) muito possivelmente pertenceu a um contexto diferente em Q (Lc 12.10/Mt 12.32). Em todos os eventos, quase não se duvida que esse material é derivado finalmente da controvérsia sobre o ministério de exorcismo de Jesus, e poucos negariam que o mesmo con­tém, no mínimo, um núcleo de autêntica tradição de Jesus.16

Os ditos-chave indicam sem discussão que para Jesus a razão de seu êxito era o Espírito ou o poder de Deus: Mt 12.28/Lc 11.20 - "Mas se é pelo Espírito (Mateus)/dedo (Luca) de Deus que eu expulso os demônios, então o Reino de Deus já chegou a vós"; a implicação é a mesma em Mc 3.27,28s. e seus paralelos em Q. No dito citado a ênfase (pelo menos no grego) cai em duas expressões - "Espírito de Deus" e "reino de Deus": era por meio do Espírito ou poder de Deus que Jesus alcançava o seu sucesso, ainda que popularmente pensassem que o Espírito tivesse sido retirado de Israel (cf. SI 74.9; Zc 13.2-6; lMc 9.27), e mesmo que os exorcistas rabínicos não mencionassem o Espírito de Deus em conexão com exorcismos; e seu sucesso por meio desse poder divino era um sinal de que o reino de Deus já estava presente, isto é, o reino escatológico, esse exercício da soberania divina marcaria o fim dos tempos. Como ele pode fazer tão corajosa e audaciosa reivindicação?- Não porque fosse simplesmente um exorcista muito bem sucedido, porque outros entre os seus contemporâneos tinham, pelo menos, algum sucesso em expulsar demônios (Mt 12.27/Lc 11.19). Então como? A resposta, provavelmente, recai em sua própria experiência quando ministrava aos endemoninhados. Em tal ministério ele era cônscio do poder espiritual operante por seu intermédio, daquele poder que pa­recia que Deus havia subtraído de Israel por muitas gerações, de tal poder como ele pode atribuir somente ao reinado de Deus do final dos tempos - era por esse poder que ele expulsava os demônios, e

1 Ver mais em D unn, "Matthew 12.28/Luke 11.20 - A Word of Jesus?", Eschatologyand The Nezv Testament, G . R. B easley-M urray Festschrift, ed. W. H. G loer,Hendrickson 1988, pp. 29-49.

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esse poder era a manifestação visível do reino escatológico de Deus. Resumindo, esses ditos implicam um conhecimento claro por parte de Je­sus da distinção escatológica de seu poder, eles indicam quão profundamente enraizado em sua própria experiência estavam as reivindicações que ele fazia considerando o seu ministério, e eles sugerem algo de sua percepção de Heu próprio papel dentro desse ministério.

Outro grupo de ditos importantes na tradição de Jesus são aque­les que ecoam Isaías 61.Is. - Lc 41.18s(?), Lc 6.20/Mt 5.3-6 e Mt 11.5/ Lc 7.22. Estes o fazem suficientemente claro (e não é muito discutido) que a compreensão de Jesus de sua missão de "evangelizar os pobres" foi retirada em grande parte da profecia de Isaías. A relevância de Is 61.1 é que aí está a unção do Espírito que fornece a autoridade e fonte para aquela proclamação. A implicação é, então, particularmente, em Mt 11.5/Lc 7.22, que Jesus entendeu todo o seu ministério, tanto suas curas (não apenas os exorcismos) e sua pregação, como operação do Hspírito de Deus sobre ele. O poder que ele sentia e cujos efeitos ele viu cm seus ouvintes, esses fluíam da própria consciência ou convicção de que o Espirito de Deus escatológico o havia ungido, tornavam-no consciente da vontade de Deus, que estava operando por seu intermédio.

Aqui, novamente, parece que tocamos outra das origens utilizadas para a autoridade e poder de Jesus - e que em apreciar algo da percepção de Jesus de Deus como Pai e o sua presença do Espírito de Deus sobre cie, seguimos pelo menos de alguma maneira em direção para adentrar enfaticamente na própria experiência e compreensão de Jesus de sua missão. Não precisamos nos aventurar mais, mesmo que fosse possível.

Dois pontos devem ser feitos na forma de sumário. Primeiro, até um breve estudo possível para nós, aqui, seria suficiente para demons­trar a importância da própria experiência religiosa de Jesus: sua experiên­cia de Deus como o Pai e da unção do Espírito eram as fontes imedia­tas daqueles traços de seu ministério que tiveram o maior impacto em seus contemporâneos. Segundo, com a percepção da filiação de Jesus e do lispírito somos aptos a adentrar em nível mais profundo da experiência religiosa do que aquela que caracteriza o entusiasmo. Onde o entusiasmo, tipicamente, experimenta Deus em manifestações visíveis e tangíveis de êxtase, visão, milagre e discurso inspirado, a experiência de Deus de Jesus estava em um nível mais profundo, em um relacionamento muito mais pessoal, mais em uma revelação direta individual "abaixo da superfície".

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§ 46. A EXPERIENCIA RELIGIOSA DE PAULO

Vimos agora quão fortemente, a vertente de entusiasmo atraves­sa o cristianismo primitivo. Também concluímos que Jesus precisa ser considerado como algo diferente de um entusiasta, porque toda a sua missão e mensagem emanavam diretamente de sua própria expe­riência religiosa e até mesmo ele pode ser apropriadamente chamado de carismático. Mas o que dizer de Paulo, a figura mais dominante da primeira geração do cristianismo - pelo menos até onde nossos registros literários testemunham? Quão importante foi a experiência religiosa na prática de Paulo e na reflexão do cristianismo? Ele tam­bém foi cativado por aquela forte vertente de entusiasmo? Ele virou totalmente as costas para uma fé e uma conduta cristãs radicadas na experiência religiosa? Ele se coloca de alguma maneira no meio- termo - semelhante ao próprio Jesus? Parte da resposta já é evidente do que dissemos acima (pp. 293-295); agora precisamos esboçá-la de modo mais completo.

1. Há poucas dúvidas de que toda concepção e pratica do cristianis­mo emanava de Paulo de modo direto de sua própria experiência religiosa. Essa observação pode ser substanciada sem muita dificuldade. Foi a experiência de ver Jesus ressurreto e exaltado na estrada de Damasco que o refreou do seu procedimento e o fez dar meia-volta em sua vida para um novo propósito (ICor 9.1; 15.8; G 11.13-16); para Paulo isso não era meramente um flash de intuição ou convicção intelectual, mas um encontro pessoal, o começo de um relacionamento pessoal que se tornou a paixão dominante de sua vida (F1 3.7-10; cf. p. 89 acima). Posto de outro modo foi sua própria experiência da graça que fez da "graça" um traço central e distintivo de seu evangelho - graça não meramente como um modo de entender a Deus como generoso e per- doador, mas a graça como a experiência do que é imerecido e de livre aceitação abraçando-o, transformando-o, enriquecendo-o, comissio­nando-o (p.ex. Rm 5.2,17; 12.6; ICor 1.4s; 15.10; 2Cor 9.14; 12.9; G12.9; Ef 1.7s; 3.7s.). Ou de novo, o cristianismo foi evidentemente descrito por Paulo e a partir de sua própria experiência de ser capacitado a oferecer uma adoração que era real, direta, procedente do coração (Rm 2.28s.; G1 4.6; F1 3.3), de um amor e alegria mesmo no meio do

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sofrimento (Rm 5.3-5; lTs 1.5s.), de liberdade de uma mentalidade de livro de regras de casuística e medo (Rm 8.2,15; 2Cor 3.3; G15.25). Tal experiência ele podia somente atribuir ao Espírito de Deus, e nisso reconhecer que a nova aliança chegava, com efeito, (a lei escrita no coração - 2Cor 3.3), a ceifa do fim dos tempos havia começado (Rm 8.23). E tal experiência do Espírito que ele considera, evidentemente, como quintessência cristã (Rm 8.9,14); é a primeira de tais experiências ou início de tais experiências (e não o batismo como tal) que Paulo refere à seus leitores quando recorda a largada de suas vidas como cristãos (p.ex. Rm 5.5; ICor 12.13; 2Cor 1.21s.; G1 3.2-5; Ef 1.13s.). Resumindo, é abundantemente evidente que a própria experiência religiosa de Paulo foi tão fundamental para a sua missão e mensagem como foi a experiência de Jesus para a sua missão e mensagem. Mas Paulo também era um entusiasta?

2. Paulo, entusiasta ou carismático? Paulo pode certamente ser des­crito como um carismático. Devemos de fato, quase que inteiramente, a ele a palavra carisma. De qualquer forma, dificilmente ocorre antes da época de Paulo. No NT, fora do corpus paulino, ela ocorre somente em lPd 4.10 (de qualquer modo uma carta que cai dentro da "esfera paulina de influência" - veja acima pp. 204s). E depois do NT seu sen­tido paulino característico está quase que inteiramente perdido17. Em outras palavras, foi Paulo que tomou essa palavra sem importância e lhe deu uma conotação especifica e distintamente cristã - carisma como a expressão, incorporação da charis (graça). Carisma é, na defi­nição de Paulo, a experiência da graça vindo a ser uma expressão particu­lar por meio de um crente individual em algum ato ou palavra geralmente para o benefício de outros (ver também acima pp. 199s). Agora a questão é que dentro dessas experiências da graça, Paulo inclui experiência tais como aquelas que caracterizavam o cristianismo primitivo, ou pelo menos na exposição de Lucas sobre isso. Está bastante claro que ele mesmo desfrutou de algumas experiências ao longo da sua ativi­dade missionária.

(a) Visões e revelações. Em 2Cor 12.1-4 Paulo está obviamente fa­lando de sua própria experiência - ainda que tudo tivesse acontecido14 anos antes. Igualmente clara era uma experiência extática, com a

’ Maiores detalhes em D unn, Jesus §38.1.

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ausência do corpo e os traços místicos nada atípicos de tais experiên­cias. 2Cor 5.13 e 12.7 também implicam que isso não foi um exemplo isolado para Paulo18. Não tão longe de ser retirado de tais revelações extáticas estavam aquelas feitas pela facção em Corinto para uma sabedoria mais elevada e de conhecimento superior (ver acima p. 289ss). Precisamos notar aqui é que Paulo reivindica ter experimentado uma sabedoria mais profunda do que a de seus oponentes (ICor 2.6-13) e partilhar de seu conhecimento (ICor 8.1,4; 2Cor 11.6).

Cb) Milagres. Paulo certamente era de opinião que ele havia ope­rado milagres no curso de sua missão (Rm 15.19; 2Cor 12.12) e ele tem isso mais ou menos como certo porque seus convertidos experimenta­ram poderes miraculosos quer seja na sua conversão ou a partir dela (G13.5) ou especialmente como carismata, dentro da comunidade (ICor 12.9s; 28-30).

(c) O discurso inspirado também era uma parte regular da experi­ência de Paulo. Ele recordava com vivacidade o impacto da pregação evangelística em Tessalônia e em Corinto e atribuía seu sucesso à direta inspiração e poder do Espírito (lTs 1.5; ICor 2.4s; cf. Ef 6.17). Ele entendia a profecia como um pronunciamento e a valorizava e em parte como um tipo de leitura sobrenatural do pensamento (ICor 12.24s.). Para aqueles que presumivelmente desejavam trazer a pro­fecia em rédeas muito curtas ele adverte: "Não extingais o Espírito; não desprezeis as profecias" (lTs 5.19s.). E valorizava a glossola- lia para sua auto-edificação, ainda que deixasse a mente infrutífera (ICor 14.4 ,18s.).

Assim claramente havia alguns traços entusiásticos a respeito da pró­pria experiência religiosa de Paulo. Mas isso não é a história completa.

3. Paulo também é muito consciente dos perigos do entusiasmo. Como a importância da experiência religiosa é mais evidente em Paulo do que em qualquer outro escritor do NT, assim é Paulo o que mais alerta contra um cristianismo que coloca muito mais ênfase sobre a experiência religiosa. Isso é mais claramente visto em sua atitude para com os entusiastas cuja presença em suas igrejas mencionadas

1 Paulo, contudo, não considera a aparição da ressurreição de Jesus a ele em sua conversão como uma visão; foi algo único e não repetível (ICor 15.8 - "em últi­mo lugar"). >

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rapidamente acima (pp. 289ss). Embora ele partilhasse diversas de suas ênfases (p.ex. a liberdade do cristão, a importância da profecia) sua pre­ocupação principal, quase em cada momento, parece a de advertir con­tra os excessos do entusiasmo, para confinar a vertente de entusiasmo estritamente dentro de seus limites.

Em particular ele acentua a necessidade de suas igrejas de tratar as reivindicações das experiências religiosas criticamente, com discernimento, e emprega diversos critérios pelos quais a genuinidade e o valor dos carismata podem ser testados.

(a) Um teste é fornecido pelas tradições kerigmáticas e tradições - Jesus que ele transmitiu aos seus convertidos quando os formava em uma nova igreja - as tradições, isso é, que serviam como um tipo de constituição para as igrejas paulinas (ver acima §§17.1-3). E a essas tra­dições que ele sempre volta em 1 Coríntios para fornecer a base para um regulamento sobre assuntos controvertidos envolvendo os entu­siastas coríntios (de modo particular ICor 9.14; 11.23; 12.3; 15.3). Assim também em 2 Tessalonicenses os excessos do entusiasmo apocalíptico (ver abaixo pp. 474s) são contestados por um apelo às tradições fun­dadoras (2Ts 2.14-3.6). Em Gálatas é a nota-chave básica da liberdade evangélica que tanto fornece um teste contra a possível licença entusi­ástica (G1 5.13-25) como o fez contra a maior ameaça de nomismo ju­daico (G12.3-5; 5.1-12). E Filipenses 3.16s, 4.9 parece ser outra chamada ao caráter fundamental das tradições kerigmáticas e de Jesus contra um tipo de perfeccionismo entusiástico aludido em F1 3.12-19 (ver abaixo p. 415). Isso não é tão diretamente um teste como poderia a principio parecer, visto que a tradição para Paulo não era uma coisa congelada e fixa, mas viva, uma palavra original que tinha de ser interpretada no­vamente quando as circunstâncias mudavam; Paulo nunca deixa que a tradição se torne simplesmente lei (ver acima §19.3). Todavia, podemos ainda dizer que para Paulo, somente essa experiência devia ser reconhecida como experiência do Espírito que concordava com as tradições fundadoras. O Espírito de Cristo precisa concordar com "a lei de Cristo" (ICor 9.21; G1 6.2).

(b) Outro teste é fornecido pelo amor. 1 Coríntios 13.1-13 é obvia­mente dirigida contra um tipo de entusiasmo, onde o zelo pelos mais espetaculares carismata, particularmente a profecia, a glossolalia e o conhecimento, haviam provocado inveja, arrogância, irritabilidade, e pecados semelhantes. O amor tenha sido perdido, e o amor fornece o

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teste (ICor 13.4-7). Por mais que os dons excepcionais fossem exercita­dos, se eles produzissem um caráter sem amor, Paulo os desconside­ra como sem nenhum valor. Pelo mesmo critério ele vira as costas ao elitismo em ICor 2-3, 8; aqueles que reivindicam ser os espirituais (ver acima p. 280ss), mas provocam somente inveja e intrigas e não se preo­cupam com os outros exibindo assim sua falta de espiritualidade (ICor 3.1-4; 8.1). Para Paulo espirituais são todos aqueles que receberam o Espírito e que andam no Espírito não dando ocasião à vaidade pessoal, à crítica indelicada ou à inveja (G1 5.25-63). O critério de espiritualidade não é o grau de inspiração, mas o amor.

(c) Um terceiro teste é aquele do benefício da comunidade, deno­tado pela palavra oikodomê em grego. Paulo usa o verbo e o subs­tantivo 7 vezes em ICor 14 (vv. 3-5, 12,17,26). Esse é o critério que mostra claramente para Paulo a superioridade da profecia sobre a glossolalia. Da mesma forma, é notável que quando ele lista vários carismata em ICor 12.8-10 não é a experiência da revelação com pro­priamente dita que ele conta como carisma, mas a "mensagem de sa­bedoria" e "palavra conhecimento" (assim ICor 16.6). Para Paulo a experiência carismática é caracterizada menos pelo êxtase e profun­didade da percepção (cf. 2Cor 14.3-5) e mais pela palavra inteligí­vel falada por meio do crente que conduz entendimento e direção aos outros (ICor 14.3-5, 16-19, 24s.). Se os "espirituais" em Corinto avaliassem suas condutas por esse teste certamente reconheceriam que sua fala procede do Senhor (ICor 14.37). Todos os carismatas se colocam sob esta rubrica - "para a utilidade de todos" - e devem ser ju l­gados por isso (ICor 12.7). Por isso é que atos de serviço, mesmo que aparentem ser não-inspirados, podem muito bem ter a reivindica­ção mais elevada para serem reconhecidos como carismata mais do que muito discurso manifestamente inspirado (Rm 12.6-8). Por esse critério Estéfanas deveria ser reconhecido como um homem a ser imitado (ICor 16.15s.) O que não beneficia os outros não deve ser bom para o bem da Igreja.

Não devemos subestimar a importância que Paulo dã ao discernimento espiritual. Onde quer que ele fale explicitamente acerca dos carismatas ele fala também da correta avaliação do que é bom e do que benéfico (ver particularmente Rm 12.2; ICor 2.14-15; 12.10; 14.29). Ele próprio se regozijava tão plenamente nas ricas experiências do Espírito (acima §46.1) e para ele o corpo de Cristo eja essencialmente uma comunidade

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carismática (acima §§29, 34.3); ele também era alguém que insistia tão enfaticamente sobre a necessidade de provas e de proteção contra os perigos do entusiasmo. Uma de suas exortações mais antigas sobre o tema permanece como um pronunciamento equilibrado quanto po­deríamos desejar isso: "Não extinguais o Espírito; não desprezeis as profecias. Discerni tudo e ficai com o que é bom. Guardai-vos de toda espécie de mal" (lTs 5.19-22)19.

4. Cristo-misticismo. A mais profunda proteção que Paulo oferece contrao entusiasmo é a pedra de toque de Cristo - o caráter de seu ministério como atestado no evangelho. O Espírito para Paulo é essencialmente o Espírito de Cristo (Rm 8.9; G1 4.6; F11.19). A experiência do Espírito que é es­sencialmente cristã para Paulo é a experiência do Espírito do Filho cla­mando " ‘Abba! Pai!" (Rm 8.15s; G14.6) - ou seja, reproduzindo aquela experiência mais íntima e a relação que caracterizou a própria vida de Jesus na terra (acima §45.2), e levando o crente a partilhá-la ("co-her- deiros com Cristo" - Rm 8.17; G14.7; ver mais abaixo §50.4). Ou, nova­mente, a experiência do Espírito é a experiência de ser moldado pelo poder doador de vida para produzir mais e mais o caráter de Cristo (ICor 15.45-49; 2Cor 3.18; 4.16-5.5). A graça, na qual os crentes regozi­jam e que se manifesta por meio deles nos dons da graça (carismata) é essencialmente aquela graça mais plenamente manifestada em Cristo: "A graça de nosso Senhor Jesus Cristo" (Rm 5.15; 2Cor 13.14; G1 2.21; Ef 1.6s). A revelação que transformou mais fundamentalmente a vida de Paulo com se tivesse o todo da história da salvação é a revelação de Cristo (Rm 16.25s; 2Cor 4.4-6; G 11.12,16; Ef 3.2-12; Cl 1.25s.). E assim por diante. E contra essa medida que todas as reivindicações para o Espírito, graça, revelação, etc. precisam, no final, ser medidos. A expe­riência religiosa para Paulo é basicamente a experiência de união com Cristo (em Cristo - ver acima p. 89).

Agora a questão é que a experiência de união com Cristo é a expe­riência da vida sendo moldada por Cristo, tomando seus traços carac­terísticos de Cristo, manifestando o mesmo caráter como foi manifes­tado no ministério de Cristo. Isso quer dizer, a união com Cristo para

19 Ver também J. D . G. D u n n , "Discerniment of Espirits - A Neglected Gift", Witness to the Spirit, ed. W. H a rr in g to n , Irish Biblical Association/Koinonia 1979, pp. 79-96.

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Paulo não é caracterizada pelos altos picos de excitação espiritual, po­rém mais tipicamente pelo amor altruísta, pela cruz - união com Cristo não é nada se não for união com o Cristo em sua morte (Rm 6.3-6; G1 2.19s; 6.14; F1 3.10; Cl 2.11s.). Em nenhum lugar, mais enfaticamente que na correspondência aos coríntios, que Paulo acentua que Jesus é o crucificado (ICor 1.23; 2.2; 2Cor 13.4); a sabedoria de Deus, ainda que não apele para a sofisticação intelectual nem para o entusiasmo espiri­tual, é Cristo crucificado, o evento da cruz, e o evangelho da cruz (ICor 1.17-25, 30; 2.6-8).

Assim, chegamos ao entendimento que para Paulo o característico da experiência religiosa do discípulo de Cristo é a experiência âe partilhar os sofrimentos de Cristo bem como o de partilhar a sua vida (Rm 8.17; 2Cor 1.5; 4.10; F13.10s.; Cl 1.24). Contra os entusiastas de 2 Coríntios Paulo insiste que a experiência do Espírito não é somente poder, nem de poder que transcende e deixa a fraqueza para trás, mas do poder na fraqueza (2Cor 4.7; 12.9s; 13.3s.). Posto de outra maneira, a experiên­cia religiosa para Paulo é caracterizada pela tensão escatológica, pela tensão entre a nova vida que partilha como estando "em Cristo" e a velha vida que está "na carne" (2Cor 10.3s.; G1 2.20; Ef 4.20-24; F1 1.21-24; Cl 3.9s.), pelo combate entre o Espírito e a carne (Rm 7.14-23; G1 5.16s.), pela frustração de ter de viver a vida do Espírito por meio do "corpo de morte" (Rm 7.24s; 8.10s, 22s.; 2Cor 4.16-5.5).20 Nenhuma experiência religiosa, mesmo que profunda, espiritual, inspirada ou gloriosa, liberta os crentes das limitações de sua presente existência. Ao contrário, é precisamente essa experiência que mais claramente manifesta o paradoxo de poder na fraqueza, de vida por meio da morte, de grandeza como serviço, que deve ser reconhecido como tipicamente cristão.

Resumindo, Paulo é um carismático que considera a experiência da graça (charis) como fundamental à vida cristã e a experiência de carisma como fundamental à comunidade cristã, mas que se posiciona contra o entusiasmo ao insistir que todos os carismata precisam ser testados e que somente aquele carisma que manifesta a graça (charis) de Cristo deve ser acolhido.

’ Ver mais em D unn, "Rm 7.14-25", pp. 257-73.

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§ 47. CAMINHOS DIVERGENTES

1. A segunda geração do cristianismo é marcada por uma diver­gência de caminhos até onde a importância da experiência religiosa e atitudes para o com o entusiasmo estão preocupadas. A maioria parece esforçar-se por sustentar algum equilíbrio do estilo paulino - ainda que seu tratamento seja, na maior parte, muito breve ou (para nós) muito alusivo para fornecer mais que algumas sugestões. Marcos, como notamos anteriormente, (acima p. 151), seguindo o caminho de Paulo, encontra o seu equilibro ao casar as tradições da operação de milagres por Jesus com a cristologia do Filho do Homem sofredor.1 Pedro, como Paulo, parece insistir que "o Espírito de glória (e de po­der)" é, certamente, mais presente (não em obras poderosas e discurso extático, mas) quando o crente está sofrendo pelo nome de Cristo, isso é: "Participais dos sofrimentos de Cristo" (lPd 4.13s.). Judas também adota uma linha similar a de Paulo em Judas 19s. - advertindo contra uma espiritualidade elitista, mas chamando à oração: "No Espírito Santo" (cf. ICor 14.15-17; Ef 6.18). Hebreus, por sua vez, retrocede aos milagres e dons do Espírito da missão primitiva como atestando a aprovação de Deus (Hb 2.3s.), mas se afasta para recordar aqueles que presumem muito ousadamente sobre sua experiência do Espírito que eles ainda estão desprovidos da "terra prometida" e por sua pre­sunção podem muito bem fracassar em alcançar (Hb 3.7-4.13; 6.4-8; 10.26-31; cf. p.ex. Rm 8.13; ICor 10.1-12). Finalmente, no Apocalipse, onde o Espírito é mais claramente experimentado em visões e êxtases (Ap 1.10; 4.2; 17.3; 21.10), encontramos a mesma insistência - que o Espírito é o Espírito de Jesus (Ap 3.1; 5.6), de modo que suas pala­vras (inspiradas) são as palavras de Jesus (Ap 2-3), e de modo que a profecia precisa concordar com: "O testemunho de Jesus" (Ap 19.10; compare com 2.20).

Mateus também se esforça por um equilíbrio, mas de um ângulo e termos diferentes. Resultando de sua confrontação com o judaísmo fa­risaico (ver acima §55.2) ele certamente estimula uma fé na expectativa de milagres (particularmente Mt 17.20), mas ele também insiste que a desejada expressão de justiça é a Lei interpretada pelo amor (compare G1 5.18, mas cf. 5.22s.) antes que o ministério carismático (cf. particu­larmente Mt 22.34-40 com 7.15-23; e cf. ICor 13). Em contraste, Lucas, em sua narrativa dos inícios, é muito menos inibido e menos circuns­

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pecto em sua admiração para com o entusiasmo do que quaisquer ou­tros acima (ver acima §44.3).

As Pastorais são redigidas em uma direção muito diferente, e en­quanto os Escritos Joaninos tentam abrir caminho, elas continuam sua trilha pelo meio campo. Se seguirmos esses dois últimos um pouco te­remos feito o suficiente para ganhar uma perspectiva suficientemente clara sobre a unidade e a diversidade do NT na matéria da experiência religiosa.

2. O traço notável acerca das Pastorais nesse ponto é que embora elas levem o nome de Paulo, elas contêm somente poucos ecos das ex­pressões poderosas e características do pensamento paulino que exa­minamos brevemente acima (§46). Dois dos ecos mais claros reverbe­ram em 2Tm 2.11 e Tt 3.4/5-7; mas esses: "Fiel é a palavra", isto é, ditos que não se originaram com o escritor, mas que foram transmitidos a ele desde o passado. 2Tm 1.7 e 8 também ecoam o pensamento do Pau­lo antigo, ainda que usem linguajar que não é característico do Paulo antigo. Ainda que esses ecos ressoem de fato. Aqui, em outras pala­vras, há pouca ou nada daquela vigorosa experiência religiosa que brilhou tão claramente por meio de muita coisa que Paulo escreveu. Em vez disso, como já vimos, tudo parece estar subordinado à tarefa principal de preservar as tradições do passado (§17.4); e, enquanto em Paulo o ministério se desenvolvia para uma extensão muito grande da vitalidade da expe­riência religiosa, e nas Pastorais o ministério já se tornou muito mais institucionalizado com o carisma subordinado ao ofício (ver acima §30.1 e abaixo §72.1).

Por que deve ser assim não é totalmente claro. Talvez a facção entusiasta se tornou a influência dominante em algumas das igrejas paulinas depois de sua morte, e outras dentro da tradição paulina che­garam à conclusão que a posição de Paulo tivesse tentado sustentar era inerentemente instável, não era uma solução em longo prazo para a ameaça do entusiasmo. Talvez as Pastorais, como 1 Clemente, tives­sem sido escritas para contrariar a ameaça da boa ordem e da tradição estabelecida de um grupo de jovens entusiastas, que como Lucas, es­tavam ansiosos após o esvaziamento dos poderes sobrenaturais dos tempos antigos. Não sabemos dizer, em todo o caso, sejam quais forem as circunstâncias precisas que ocasionaram as Pastorais, isso parece muito claro: as Pastorais são um exemplo clássico da transformação

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que aflige a muitos movimentos de despertamento religioso na segun­da geração. Quer dizer, enquanto na primeira geração a vitalidade da nova experiência abre caminho por entre as formas e fórmulas mais an­tigas para se expressar em novas maneiras; na segunda geração essas novas maneiras (ou algumas delas) são consideradas como o padrão e norma, tornam-se em outras palavras um novo dogma e o molde aos quais a experiência religiosa precisa estar subordinada e aos quais a expressão de experiência religiosa deve se conformar.21

Resumindo, o autor das Pastorais pode propriamente ser considerado como primeiro clérigo a lidar com o entusiasmo por rejeitá-lo totalmente e dis­pensá-lo completamente da vida da igreja. Mas ao fazer isso ele estabeleceu um grave perigo de descartar a experiência religiosa de sua própria geração ou, no mínimo, o de fracassar em lhe dar um papel criativo na vida da igreja. E isso significa que ele correu o risco de impedir o Espírito, ou pelo menos confinar o Espírito ao passado.

3. Em contraste com as Pastorais, os Escritos Joaninos (Evangelho e Cartas) demonstram que outros lugares nas décadas finais do séc. I havia uma atitude positiva para com a experiência religiosa. A vitali­dade da experiência religiosa da comunidade joanina está claramente refletida nas palavras "vida", "amar", "conhecer", "crer", "ver", tudo o que aparece regularmente tanto no Evangelho como nas Cartas, e por passagens como Jo 3.5-8, 4.10-14, 6.63, 7.37-39, 14.17, ljo 2.20, 27, 3.24,4.13 e 5.6-10. A avaliação teológica joanina dessa experiência reli­giosa é similar a de Paulo em dois pontos, mas também é diferente da de Paulo em dois outros pontos.

Como Paulo, o círculo joanino demarca os parâmetros da experi­ência religiosa (a) por definir o Espírito em termos de Cristo, e (b) por correlacionar a experiência de revelação com a tradição de Jesus, (a) Nos "discursos de despedida" de Jo 14-16 o Espírito é caracterizado como o "outro Paráclito" ou Consolador (Jo 14.16), com Jesus claramen­te entendido como o primeiro Paráclito (cf. l jo 2.1); e a clara implicação de Jo 14.15-26 é que a vinda do Espírito cumpre a promessa de Jesus de

21 Embora eu use "carisma" mais no sentido de Paulo do que o de Weber, a des­crição de Weber do processo pelo qual um grupo carismático desenvolve sua doutrina, culto e organização, como "a rotinização do carisma", é pertinente aqui.

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retornar e habitar em seus discípulos (cf. Jo 7.38s; 15.26; 19.30; 20.22). Em outras palavras, a comunidade joanina não tinha nenhum senso de estar historicamente distante de Jesus ou de ter de viver fora da experiência das gerações mais antigas como mediada agora somente por meio dos sacramentos ou do ofício. Ao contrário, cada geração está tão próxima de Jesus como a primeira, e a experiência religiosa retém a sua vitalidade e imediação porque o Espirito é a presença de Jesus.

(b) Como já vimos (acima §19.3) os Escritos Joaninos efetuam um equilíbrio entre a inspiração presente do Espírito e a tradição do passado (tra­dição kerigmática e tradição de Jesus) similar àquela em Paulo - a nova verdade da revelação sendo colocada em correlação com a verdade original de Jesus, "a unção (pela qual) vos ensinará tudo" estando co­locado em correlação com "o que ouvistes desde o início" (Jo 14.26; 16.14s.; l jo 2.24, 27). Claramente há uma preocupação aqui caso a tra­dição se torne petrificada, sufocando a reinterpretação da experiência religiosa vital - risco já aparente nas Pastorais; ao mesmo tempo aqui há a preocupação igual caso a nova revelação não seja pensada intei­ramente para substituir e tornar irrelevante a revelação do passado - o risco inerente no entusiasmo.

Por outro lado, (c) a avaliação joanina da experiência religiosa é diferente da de Paulo na qual João vê pouca ou nenhuma necessidade de enfatizar a dimensão coletiva da adoração: o individualismo de João (ver acima §31.1) dá pouquíssimo espaço para a interdependên­cia mútua da comunidade carismática e, então, também bem pouco espaço para o discernimento da experiência religiosa que Paulo con­siderou como parte indispensável da comunidade carismática (§46.3; mas note l jo 4.1-3). (d) Mais uma vez diferente de Paulo é a quase total ausência nos Escritos Joaninos da tensão escatológica tão fundamental a Paulo (ver acima pp. 89, 308s). Nos Escritos Joaninos não há nenhuma sugestão de que carne e morte continuam a ameaçar o crente que podem finalmente triunfar. Ele é nascido do Espírito e sob o poder do Espírito (Jo 3.6; cf. 6.63); ele é de Deus e não mais do mundo (Jo 15.18s.; l jo 4.5s.); ele passou da morte para a vida (Jo 5.24). Em ou­tras palavras a tensão está resolvida, a escatologia "realizada", a crise do juízo é uma coisa do passado para o crente (Jo 3.18s.; ver acima pp. 96ss). Conseqüentemente, um tipo de perfeccionismo emerge (mais claramente expresso em ljo 3.6-9; 5.18) que é aparentemente mais próximo ao entusiasmo dos oponentes de Paulo (particular­

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mente ICor 4.8) do que a circunspeção de Paulo (p.ex. Rm 8.13; ICor 9.27; F1 3.12-14). Ainda assim João não é um entusiasta: ele não é um protagonista da espiritualidade tangível. E ele não é nenhum elitista: sua escatologia "realizada" abraça todos os que "nasceram de Deus" (ljo 2.20 - "todos vós possuís a ciência" - provavelmente dirigido contra uma forma de gnosticismo primitivo). Dele é mais a espiritua­lidade do pietismo, cujos paralelos mais claros na história cristã seja provavelmente o movimento de santidade do séc. XIX - não-eclesiás- tico (ver acima pp. 209, 215s), enfatizando a experiência espiritual do indivíduo, e tendência ao perfeccionismo.

§ 48. CONCLUSÕES

1. Deve ter ficado claro agora que a experiência religiosa era um fator de importância fundamental nos inícios do cristianismo - que muitos dos traços distintivos do cristianismo do séc. I se desenvolveram e foram moldados pela experiência religiosa das figuras-chave - a experiência de filiação e do Espírito de Jesus, as primeiras das várias experiências entusiásticas dos cristãos, a experiência de Paulo do Jesus ressurreto, de aceitação da graça, do Espírito carismático, a experiência de João da doação de vida pelo Paráclito. Deve ficar claro também quão impor­tante era o fator da experiência religiosa dos primeiros cristãos para a unidade e a comunidade. Provavelmente, não é nenhum acidente que a palavra koinõnia (participação, companheirismo) primeiramente ocorra imediatamente depois da narrativa do Pentecostes, em Lucas (At 2.42); e certamente, em Atos, é a experiência do Espírito que conduz os dis­cípulos individuais para a real participação na nova comunidade (At 2.38s; 8.14-17; 10.44-48; 11.15-17; 19.1-6). A importância fundamental da experiência compartilhada do Espírito na condução da comunida­de cristã é até mesmo mais clara em Paulo (ver particularmente ICor 12.13; 2Cor 13.14; F1 2.1; Ef 4.3). E nos Escritos Joaninos precisamos recordar somente que um dos testes da vida dentro da irmandade era a experiência do Espírito (ljo 3.24; 4.13)22.

22 M eyer, Early Christians, pp. 174-81, enfatiza corretamente as "raízes experien- ciais da identidade (cristã)".

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2. A diversidade da experiência religiosa e das atitudes para com a experi­ência religiosa dentro do cristianismo do séc. I também se torna óbvia - do entusiasmo das comunidades palestinenses primitivas e da apresenta­ção de duas da história do cristianismo primitivo, para a mais austera e formalizada atitude das Pastorais. Em algum lugar entre a vinda de Je­sus e a maior parte dos outros escritos do NT (e escritores), em particu­lar Paulo e João, para todos os quais a experiência do Espírito é funda­mental, mas que todos lutavam para se esquivar do entusiasmo. Mas aqui também há diversidade: Paulo pode dar significado à experiência religiosa somente no contexto da comunidade cristã, o corpo de Cristo, enquanto a experiência religiosa de João é, principalmente do pietismo individualista; Paulo entende a experiência religiosa como uma tensão e combate entre o Espírito e a carne, vida e morte, enquanto João pensa que a batalha da fé já está ganha e que a experiência do crente é do Es­pírito e da vida. Como para Jesus, ele e Paulo podem ambos apropria­damente serem chamados de carismáticos até onde a experiência reli­giosa está preocupada, e a experiência de Jesus certamente conheceu algo da mesma tensão escatológica, como a de Paulo: ele anunciava a presença do reino, como evidenciado por seus exorcismos no poder do Espírito; mas também proclamava a iminente chegada do reino, desde que, presumivelmente, se o Espírito escatológico já estivesse ativo, o próprio escaton não pudesse mais ser retardado (acima §§3.1, 2). Por outro lado, não são as mesmas dimensões comunitárias na experiência de Jesus que Paulo achava tão importante - havia um isolamento e exclusividade na experiência de Jesus, que vimos, particularmente, em seu entendimento de seus exorcismos (somente em seus próprios exor­cismos que ele reconhece o poder do Espírito escatológico e a presença do reino), e que temos que investigar mais plenamente no capítulo X (§50).

3. Quando buscamos dentro dessa diversidade pelos traços distin­tivos da experiência religiosa que a demarcava como cristã a resposta resulta em variadas formas, mas todas acentuando que precisava haver algu­ma correlação entre o Cristo exaltado experimentado agora mediante o Espíri­to e o Jesus terreno das tradições kerigmáticas e da igreja. E precisamente a ameaça de entusiasmo que interrompe o Jesus que é agora experimen­tada na glória do Jesus da história, isso conduz a uma teologia da glória ou triunfalismo sem referência à realidade histórica de Jesus de Nazaré.

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Paulo e João contrariam a ameaça por rejeitar as duas partes separa­das: somente esse carisma deve ser acolhido o qual é consiste com as tradições fundadoras, somente esse Espírito deve ser seguido que é re­conhecidamente o Espírito de Cristo, o outro Paráclito é precisamente ele que proclama a mesma verdade como o Logos encarnado (cf. lPd 4.13; Ap 19.10). As Pastorais tendem a aceitar o risco por sacrificar a experiência presente relegando-a a tradição do passado - uma política de segurança antes de tudo. Por outro lado, Lucas é de um entusiasmo acrítico, mas não é elitista, e escreve dois volumes, o Evangelho e os Atos, de modo que o desequilíbrio do último pode ser corrigido de algum modo pelo Jesus do primeiro; quer dizer, mesmo com Lucas o Evangelho de Jesus fornece algo para checar a sua descrição do entu­siasmo da Igreja primitiva. Resumindo, a resposta à importante ques­tão: "O kerygma do Novo Testamento conta com o Jesus histórico entre os critérios de sua própria validade?"23 é Sim!: os principais teólogos do NT contam com o caráter da vida e ministério de Jesus (disponível a eles nas tradições a respeito de Jesus) como um dos principais cri­térios para avaliação de seu auto-entendimento, experiência religiosa e conduta como crentes em Cristo.24 Se podemos relacionar a experi­ência religiosa de Jesus mais intimamente com a experiência religiosa do cristianismo do séc. I é uma questão de que nos ocuparemos no próximo capítulo.

4. Nosso parágrafo introdutório (§43), com efeito, apresentava a questão, O cristianismo pode preservar um papel criativo para a experiência religiosa em sua vida contínua e adoração sem dar espaço ao entusiasmo? Três respostas (pelo menos) muito audíveis procedem das décadas finais do séc. I. O veredicto das Pastorais, como realmente da voz dominante da ortodoxia através da maior parte da história do cristianismo foi efe­tivamente: Não! - a espontaneidade do Espírito precisa ser firmemente subordinada à autoridade do ofício e da tradição - embora tudo com muita freqüência às custas de forçar a experiência cristã vital a encon­trar expressão fora das principais tradições cristãs, isto é forçando-as ao entusiasmo porque lhes falta checar as tradições que permitiam isso!

23 K oester, "Gnomai Diaphoroi", Trajectories, p . 117.24 Cf. KAsemann, "Blind Alleys in the 'Jesus of History' Controversy", NTQT,

pp. 47s.

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A apresentação lucana do cristianismo primitivo dá a resposta oposta: sua descrição do entusiasmo, de forma não elaborada, certamente é es­timulante, mas também deixa muitas questões abertas que precisam ser respondidas se o entusiasmo fugiria de controle. A alternativa joanina também responde na afirmativa - uma alternativa em que aqueles que procuram viver criativamente sua experiência religiosa sem abando­nar suas tradições freqüentemente são forçadas - aquela do misticismo pessoal ou do pietismo individual; ainda fornece também uma estreita base para a comunidade cristã completa. Talvez, então, tenhamos que retroceder para ir atrás da segunda geração e ouvir a voz dominante que ainda nos alcança desde a primeira geração - aquela de Paulo. Seu equilíbrio na experiência religiosa entre o j á e o ainda não, entre revela­ção presente e tradição passada, entre indivíduo e comunidade, pode ter sido muito difícil para a primeira geração sustentar, mas provavel­mente é essa resposta que requerem nossas questões, o equilíbrio que cada nova geração precisa sustentar por si mesma.

Resumindo, uma vez mais vimos algo do escopo da diversidade do séc. I e, mais uma vez o fator central unificador deve ser encontrado na sustentação comum do Cristo exaltado (experimentado mediante o Espírito) e o Jesus terreno (mediante a tradição de Jesus).

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C a p í t u l o X

CRISTO E CRISTOLOGIA

§ 49. INTRODUÇÃO

Até agora investigamos oito importantes áreas da fé e vida cris­tãs do séc. I, resultando em um retrato da diversidade dentro de cada área; e investigamos se dentro dessa diversidade há algum foco ou fio de unidade. Em cada caso o fator unificador que emergiu, embora nem sempre com a mesma clareza, foi Cristo - em particular, unidade en­tre o Cristo exaltado e Jesus de Nazaré, o crucificado, que também é o ressurreto. No coração dos diversos kerygmatas dos primeiros cristãos primitivos encontramos a proclamação da ressurreição e exaltação de Jesus, do Jesus terreno como o Cristo contemporâneo do Cristo da fé. Comum nas várias confissões de fé estava a convicção de que Jesus, que é o Jesus de Nazaré, é agora o Messias, Filho de Deus, Senhor. Até onde a tradição teve um papel no moldar a fé das congregações primitivas, as tradições básicas envolvidas eram as tradições a res­peito de Jesus, suas palavras, seus feitos e sua paixão, e as tradições kerygmáticas interpretando sua paixão e proclamando sua ressurreição. As Escrituras judaicas foram fundamentais para o auto-entendimento da igreja cristã de todo o séc. I, mas o foco da significância revelató- ria é colocado completamente no evento Cristo; em última análise, isso somente foi interpretado em relação e à luz da revelação de Cristo por­que o AT forneceu a infra-estrutura da teologia do NT. Menos claro foi o elemento fornecido pelo vínculo unificador aos diversos conceitos de ministério; mas, mesmo aí, também foi possível traçar uma convicção comum de que Jesus devia ainda ser reconhecido como a cabeça da co­munidade e que o caráter de seu próprio ministério ainda forneceria o padrão para todo o ministério. Igualmente, a adoração cristã era carac­

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terizada mediante e centrada no reconhecimento do que Jesus fez, por sua vida, morte e ressurreição um novo relacionamento com Deus se tornou uma realidade e que somente por sua vida contínua era possí­vel e efetiva a adoração da igreja. Mais clara era a unidade cristológica expressa nos sacramentos - unidade entre o Jesus que morreu, em cuja morte, de algum modo, eles compartilharam e o Senhor ressurreto dos mortos, cuja vida compartilhavam de algum modo. Também era clara a unidade cristológica expressa no entendimento cristão do Espírito e de sua experiência religiosa, visto que este era, precisamente, o caráter de Jesus como incorporado na tradição de Jesus que encontrou refleti­da em sua própria experiência (o Espírito de Jesus) e que se tornou, em maior ou menor grau, a norma para avaliação de sua experiência.

Cristo é o foco de unidade do cristianismo do séc. I - o Cristo que foi e agora é, o Cristo da tradição - Jesus e o Cristo da fé, adoração e experiência, o primeiro e o único. A conclusão dificilmente é sur­preendente, já que o que estamos estudando é o cristianismo. Mas isso não é o fim do assunto. Pois com essa conclusão não resolvemos os problemas de unidade e diversidade no cristianismo primitivo; o que fizemos é simplesmente descobrir o problema central. O problema tem duas facetas. De um lado, o cristianismo tradicional quer dizer muito mais a respeito de Cristo que meramente afirmar a unidade e continui­dade entre o Jesus terreno e o Cristo exaltado: deseja afirmar seu papel como a única revelação de Deus, seu ser como divino, a segunda pes­soa da Trindade e o homem-Deus. Uma expressão formidável disso é a simples declaração adotada pelo Conselho Mundial de Igrejas: para as igrejas participantes era a mínima confissão cristã que significa aceitar "nosso Senhor Jesus Cristo como Deus e Salvador".

Por outro lado, o avanço nos estudos do NT, durante os dois sé­culos passados, aumentaram a dificuldade de afirmar até mesmo a conclusão mais modesta encontrada acima, evitando as reivindicações mais acentuadas da divindade de Cristo. E precisamente a unidade e a continuidade entre o Jesus terreno e o Cristo exaltado que se torna tão problemática. (1) Parece haver mais descontinuiáaáe do que continuida­de entre a proclamação de Jesus e a fé das igrejas primitivas - "Jesus proclamou o reino, os primeiros cristãos proclamaram a Jesus" (acima pp. lOlss). Entre aqueles estudiosos do NT, que pensaram que tinham retrocedido ao Jesus histórico, a conclusão dominante parece ser que Jesus não contava consigo mesmo cqmo parte das boas-novas que ele

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pregava. (2) Há tal diversidade nos autores do NT ao falarem de Cris­to de modo que não fica claro de que qual continuidade está sendo afirmada. Em outras palavras, precisamos olhar mais cuidadosamente para a conclusão, "Cristo é o foco de unidade", visto que não é claro o que os primeiros cristãos afirmavam a respeito do Jesus histórico, não fica claro o que os primeiros cristãos afirmavam a respeito do Cristo da fé, e não fica claro se a cristologia tradicional tem raízes firmes no cristianismo primitivo. Destas questões nos ocuparemos agora: Como podemos relacionar a centralidade de Cristo na fé e na vida das igrejas primitivas com o que sabemos da própria mensagem de Jesus e sua autocompreensão? Como relacionar cada uma das diversas asserções feitas pelos primeiros cristãos a respeito de Cristo? E como relacionar as afirmações cristológicas sobre Cristo com as afirmações do cristia­nismo tradicional? Em Resumindo, a cristologia do cristianismo do séc. I fornece um centro unificador estável dentro das diversas expressões e formas do cristianismo do séc. I?

Antes de começar o procedimento talvez devêssemos apenas re­petir a advertência dada no início do capítulo III - que ao tentar retro­ceder aos começos da reflexão cristológica no séc. I não precisamos ler retrospectivamente as conclusões tardias dos debates cristológicos clássicos; não precisamos presumir que por toda parte encontraremos uma ortodoxia latente esperando ser trazida à luz; caso contrário não manusearemos apropriadamente o material do NT sem preconceito. Aquele que adentra o período das origens cristãs com as formulações clássicas da ortodoxia cristã vibrando em seus ouvidos dificilmente está em uma posição de captar os tons autênticos do pensamento cris­tão do séc. I (eles poderiam ser diferentes). Em vez disso, precisamos nos situar o melhor possível que pudermos na situação dos judeus do séc. I, com sua forte tradição de monoteísmo, e tentar ouvir com seus ouvidos as reivindicações de Jesus e dos primeiros cristãos.

§ 50. A CONTINUIDADE ENTRE O JESUS HISTÓRICO E O CRISTO KERYGMÁTICO

Que papel tem Jesus em sua própria mensagem? Jesus proclamou uma cristologia? Uma coisa é afirmar que o Cristo exaltado era apre­sentado como um só e o mesmo Jesus terreno. Outra coisa é afirmar

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que o próprio Jesus terreno viu o seu papel como um e o mesmo aquele atribuído ao Cristo exaltado. Podemos de fato falar da continuidade entre o Jesus histórico, o Cristo kerygmático e a reivindicação de que dos dois unidos juntos são tão fortes do lado do Jesus histórico como são no outro?

1. A realidade e seriedade do problema são sublinhadas pela defi­ciência de muitas das respostas que foram dadas nas gerações anteriores. Para a cristologia tradicional o evangelho cristão foi o de Deus que se torna homem a fim de que o homem mediante a obra do Deus-homem, ou melhor, de Deus em forma humana, pudesse ser capaz de participar de novo na vida divina. Para os dogmáticos tradicionais nosso problema não era problema algum em absoluto: como Deus, o Deus em forma humana conhecia ser Deus e conhecia o que sua obra deveria realizar. Até onde tentariam basear esse juízo exegeticamente o Evangelho de João fornecia textos-prova suficientes para tal propósito. E quando no séc. XIX o tema foi posto em termos da autocompreensão de Jesus, o Quarto Evangelho, novamente, forneceu o fundamento exegético. Isso certamente era verdade, sobre aquilo que talvez seja a reafirmação da posição tradicional das preleções em: Bampton de H. P. L iddon em 1866, The Divinity of our Lord and Saviour Jesus Christ ([A Divindade de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo] Preleção IV - "Our Lord's Divini­ty as witnessed by his consciousness - St John 10.33" [A Divindade de Nosso Senhor como testemunhada por sua consciência - S. João 10.33] com sua afirmação descomprometida, "The 'Christ of history'" [O Cristo da história] nenhum outro que o "Christ of Dogma" [Cristo do Dobma]). Mas foi também verdade da apresentação muito diferen­te de Schleiermacher da filiação divina de Jesus em seu livro Life of Jesus [Vida de Jesus],1 que, contudo, baseava-se sobre a pressuposição de que a consciência de Jesus está verdadeiramente no Quarto Evan­gelho. Todavia, com o reconhecimento crescente do caráter teológico da apresentação de Jesus do Quarto Evangelho (na segunda metade do séc. XIX), que cada vez menos deveria ser a possível para os historia­dores da vida de Jesus utilizar os discursos joaninos como a expressão da autoconsciência de Jesus: no máximo eles eram mediações joaninas sobre o significado de Jesus à luz da fé pascal usando algo da tradição

F. D. S chleiermacher, Life o f Jesus, 1864,'ÍET Fortress, 1975.

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de Jesus como ponto de partida; no mínimo eles eram total criação da fé do autor com nenhum ponto âncora na história. De qualquer jeito as passagens cruciais como Jo 8.58 e 10.30 deveriam ser creditadas à teologia de João e não ao Jesus histórico (veja acima pp. 9 5 ,156s).

Nos últimos 100 anos pesquisadores do NT foram confrontados com três alternativas.

(a) A alternativa mais popular nas décadas finais do séc. XIX foi deixar o Jesus da história e o Cristo do dogma/fé separados e aban­donar o último em prol do primeiro. Muitos eruditos liberais protes­tantes perderam a esperança de enraizar o kerygma do cristianismo primitivo no próprio ministério de Jesus e apontaram para o evange­lho de Jesus - um evangelho onde o próprio Jesus não desempenhava nenhum papel como os que lhe foram atribuído pela fé pós-pascal, um evangelho em que a auto-consciência de Jesus era muito menos exaltada que aquela representada no Quarto Evangelho. Em outras palavras, eles aceitaram um evangelho no qual Jesus era simplesmen­te o primeiro a proclamar e a viver pelos ideais que o séc. XIX tinha (finalmente) reconhecido por ser de valor duradouro. Eles aceitaram uma cristologia em que Jesus era o grande modelo [exemplo], com efei­to, o primeiro cristão2. Essa alternativa ainda é favorecida por alguns que desejam apresentar Jesus meramente como o protótipo revolu­cionário, o homem exemplar para os outros, o modelo do homem secular, e assim por diante.

(b) A segunda alternativa é tentar novamente borrar a distinção entre o evangelho de Jesus e o kerygma de Paulo. Um modo de fazer isso é reivindicar que o Cristo kerygmático é o único com quem temos de tratar, e que também não é necessário, nem possível, ir atrás do Cristo kerygmático por um Jesus histórico. Essa era em substância a tese dis­cutida por Martin Kàhler no fim do séc. XIX,3 e sua tese teve conside­rável influência sobre todo o movimento da teologia bíblica que domi­nou a primeira metade do séc. XX. Com efeito, era uma tentativa de

2 Uma famosa apresentação de H arnack do cristianismo liberal, What is Christia­nity?, 1990, ET 1901, reimpressão Benn 1958, pode resumir esse ponto nas duas famosas sentenças: "O Evangelho, como Jesus o proclamou, tem a ver com o Pai somente e não com o Filho"; "A fé verdadeira não é assunto de credo ortodoxo, mas de agir como ele agiu" (Sermão 8 e índices resumidos).

3 M. K ãhler, The So-called Historical Jesus and the Historie Biblical Christ, 1892, ET org., C. E. B raaten, Fortress 1964.

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reinstalar a cristologia tradicional sobre uma condição teológica mais segura e exegética sólida. Um outro modo que não é independente, mas antes diferente é, então, reinterpretar o kerygmaita) da(s) igreja(s) primitiva(s) cuja centralidade de Cristo é demitologizada. Quer dizer, o papel dado a Cristo se torna uma expressão histórica - e cultural - con­dicionada de alguma outra mensagem - por exemplo, a possibilidade de existência autêntica - uma mensagem que também é encontrada como sendo a (demitologizada) mensagem do Jesus histórico. Em ou­tras palavras, o kerygma do cristianismo se torna um tipo de todo o propósito da mensagem cuja proclamação de Jesus e/por Jesus é no final das contas um acidente da história. Por causa de todos os seus protestos, a cristologia de Bultmann é um constante risco de sucumbir a esse tipo de reducionismo4.

(c) A terceira alternativa é tentar descobrir ou traçar algum elo ou elos entre a mensagem de Jesus e o kerygma a respeito de Cristo. Crê-se que bastante da mensagem do Jesus histórico pode ser recuperada por nós hoje para nos dar suas notas e ênfases características dos kerygma- tas primitivos. Essa investigação foi uma preocupação dominante da pesquisa dos evangelhos durante da segunda metade do século passa­do e ainda é. Concentra-se em sua maior parte sobre dois aspectos da mensagem de Jesus - ênfase prospectiva e seu elemento escatológico realizado - ambos dos quais podem ser interpretados como contendo uma reivindicação implícita ao significado cristológico ou escatológico, uma reivindicação que fornece, no mínimo, alguma correlação entre o kerygma centrado em Cristo, do cristianismo primitivo, e a proclama­ção do próprio Jesus.

De um lado, alguns reconheceram na proclamação de Jesus do reino vindouro uma reivindicação que o reino vindouro era de algum modo dependente de sua proclamação ou constituiria uma justificação de sua missão - se porque ele se via como o Elias do final dos tempos, o precursor da intervenção divina5, ou porque ele acreditava que o

4 Cf. particularmente B raun , "New Testament Christology", JThC, 5 ,1968, pp. 89- 127; e a crítica de B ultmann por S. M. O gden , Christ without Myth, Harper 1961, pp. 76-94.

5 Cf. J. A. T. R obinson , "Elijah, John and Jesus", NTS, 4 , 1957-58, pp. 263-81, reim- presso em Twelve New Testament Studies, SCM Press 1962, pp. 28-52; cf. também J. B ecker, "Das Gottesbild Jesu und die älteste Auslegung von Ostern", fCHT, pp. 105-26.

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Filho do Homem (uma figura celestial outra do que ele próprio) de­veria julgar os homens em referência à sua missão e mensagem (parti­cularmente Lc 12.8s.; Mc 8.38)6 ou porque em termos mais gerais toda sua obra objetivava uma abertura permanente para a verificação esca­tológica de suas reivindicações presentes, uma esperança na qual ele continuou até a morte e que encontrou resposta em sua ressurreição.7 Esta última, em particular, oferece a possibilidade de uma continuida­de muito direta e substancial entre a proclamação de Jesus do reino e a proclamação pós-pascal do Cristo ressurreto, e teremos que examiná- la mais detalhadamente abaixo.

De outro lado, alguns têm argumentado que a proclamação de Jesus da presença do reino envolvia uma reivindicação cristológica implí­cita, pois ao proclamar que a mudança de eras, escatológica já estava acontecendo ele reivindicava, com efeito, que estava acontecendo pre­cisamente em e por meio de seu próprio ministério, ou que seu minis­tério, até ele mesmo, era o sinal do que já estava em andamento8. Uma variação importante dessa visão é aquela de W. Marxsen que também deseja diminuir a ruptura entre a proclamação pré-pascal de Jesus e proclamação pós-pascal a respeito de Jesus: a ruptura entre o procla- mador e o proclamado não recai na Páscoa - ela se dá no "ponto onde um crente proclama as palavras e feitos de Jesus"; a continuidade entre

6 Assim particularmente T ödt, Son of Man, F. H ahn , The Titles o f Jesus in Christology, 1963, ET Lutterworth 1969, pp. 28-34.

7 U. W ilckens, "T h e U nderstanding of R evelation W ithin the H istory o f Prim i­tive C h ristian ity", Revelation as History, org. W . P annenberg, 1961, ET M acm illan 1968, pp 57-121; W . P annenberg, Jesus God and Man, 1964, ET SC M Press 1968, pp. 53-66; cf. N. A. D ahl, "T h e Problem of the H istorical Jesu s" (1962), The Cruci­fied Messiah and other Essays, ET A ugsburg 1974: "E ither the events o f Easter and Pentecost are the prelim ary fu lfilm ent of Jesu s' eschatological prom ise, or this prom ise, at the hearth o f his m essage, rem ained u n fu lfilled " (p. 83). V eja tam ­bém C. K. B arrett, Jesus and the Gospel Tradition, SC PK 1967, cap. 3; A. Strobel, Kerygma und Apokalyptik, G öttingen 1967.

8 Inicialmente arrazoado por E. K äsemann , "Problem", ENTT, particularmente pp. 42s, e G. B ornkamm , Jesus o f Nazareth, 1956, ET Hodder & Stoughton 1960, par­ticularmente pp. 67-9. Mais recentemente P. S tuhlmacher, "Jesus als Versöhner", JCHT, pp. 95-97. Não devemos esquecer a formulação mais antiga do próprio B ultmann em "The Significance of the Historical Jesus for the Theology of Paul" (1929), Faith and Understanding, ET SCM Press 1969, pp. 237s; "Such a call to deci­sion in the light of his person (Luke 12.8s) implies a christology" (p. 237).

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a mensagem de Jesus e o kerygma dos primeiros cristãos se dá no fato de que já antes da Páscoa alguns haviam sido trazidos à fé por Jesus e proclamado as palavras e feitos de Jesus, e assim estavam proclaman­do Jesus9. Em outras palavras, o elo entre Jesus o proclamador e Jesus o proclamado, é Jesus proclamado como o proclamador. O mesmo ponto básico pode ser posto em termos mais gerais: Jesus então proclamou o Deus que seus ouvintes sabiam ser o próprio Jesus, aquele mediante quem Deus vem à expressão10.

Com efeito, finalizando a nova questão L. E. Keck tentou sintetizar essas duas abordagens (de Ebeling e Pannenberg - ns. 10 e 7): "Confiar em Jesus é apropriá-lo como o sinal de Deus; de quem Deus justifica revelar o caráter de Deus"11

Das três alternativas esboçadas acima as duas primeiras, com efei­to, abandonaram qualquer esperança de fundamentar o kerygma do cristianismo no Jesus histórico: uma opta por um Jesus histórico que no fim do dia tem significado muito menor do que aquele atribuído a ele pelo cristianismo; a outra opta por Cristo kerygmático que em sua significância central não tem nenhuma conexão com o Jesus histórico. Mas teria a cristologia do séc. I perdido o contato com a realidade his­tórica tão completamente? Se for assim, então, o cristianismo é algu­ma coisa diferente do que sempre reivindicou ser. Se for assim, então o único elemento unificador que encontramos para sustentar juntas as diversidades do cristianismo do séc. I estaria destruído em nossas mãos, deixando o cristianismo completamente sem um centro unifi-

W. M arxsen, The Beginnings of Christology, E T Fortress 1969, p articu larm en te o cap. 5; tam bém "D ie u rch ristlichen K eryg m ata und das E reignis Jesu s v o n N aza­re th " , ZTK, 73,1976, p p . 42-64; v e r ta m b é m H. S chürmann , "D ie v o rö ste rlich en A n fä n g e d er L o g ie n tra d itio n " , Der historische fesus und der kerymatische Christus: Beiträge zum Christusverständnis im Forschung und Verkündigung, org. H. R istow & K . M atthiae, B er lin 1961, p p . 362-8; J. E rnst, Anfänge der Christologie, S tu ttg a rter B ib e lstu d ie n 57,1972, p p . 125-61.

1 Cf. G. E beling , Theology and Proclamation, 1962, ET Collins 1966, p. 79; E. J üngel, Paulus und Jesus, Tübingen31967, pp. 280-83.L. E. K eck, A Future for the Historical Jesus, SCM Press 1972, pp. 183, 235. Para outra literature sobre as três posições alternativas esboçadas acima, veja S. S chulz, "Der historische Jesus: Bilanz der Fragen und Lösungen", JCHT, pp. 21ss. A "nova questão" já foi superada pela "terceira questão" (veja acima New Foreword, n. 9), que é, com efeito, uma extensão de (c) com a preocupação particular de situar Jesus, tanto quanto possível, dentro de seu contexto judaico.

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cador. Somente a terceira alternativa oferece a possibilidade de uma resposta mais positiva - de uma continuidade entre a mensagem de Jesus e os kerygmata do cristianismo primitivo a fornecer um ponto de apoio para as reivindicações das igrejas primitivas acerca de Cristo na história do homem Jesus de Nazaré, de uma unidade entre o Cristo kerygmático e o Jesus histórico, que sozinho pode sustentar as diversas formas de cristianismo juntas como uma. As reivindicações feitas sob a terceira alternativa são relativamente modestas, mas somente se tais blocos edificantes fornecem uma sólida fundação pode haver alguma esperança de se edificar mais alguma coisa sobre eles.

2. Podemos, então, falar significativamente de uma continuidade e uni­dade entre o Cristo kerygmático e o Jesus histórico? Nosso próprio estu­do dos kerygmata cristãos primitivos puseram o problemas para nós no capítulo II. Foi posto de novo no capítulo IV por reconhecermos que a "Tradição Jesus é citada por Paulo somente em assuntos éticos e com referência à ceia do Senhor, enquanto a tradição kerygmática como tal usa somente a tradição da morte e ressurreição de Jesus" (p. 161); quer dizer, o kerygma não foi (simplesmente) destinado reproduzir o ensino de Jesus, e o problema de relacionar a mensagem de Jesus com a mensagem da cruz e ressurreição permanece insolúvel. Nos­so estudo dos sacramentos no cristianismo do séc. I ilustrou o tema de outro ângulo: porquanto houvesse alguma continuidade entre a mesa de comunhão praticada por Jesus e as refeições comuns das comunidades cristãs primitivas da Palestina, quanto mais o batismo e ceia do Senhor, chegavam a ser vistos como atos rituais distintos representando a morte de Cristo, menos eles tinham em comum com o discipulado real ao qual Jesus chamou homens e mulheres durante seu ministério.

Ao mesmo tempo no capítulo III descobrimos um grau marcante de continuidade entre, de um lado, o auto-entendimento do próprio Jesus (particularmente bar ,enãsã e ‘abba) e o reconhecimento concorde a ele (saudado como Messias, autoridade ou mestre), e, de outro, a linguagem (confessional) explícita da fé que se desenvolveu depois da Páscoa (Filho do Homem, Filho de Deus, Messias, Senhor). E no capí­tulo IX notamos algumas feições da própria experiência de Jesus que se aproximavam estreitamente daquelas experiências cristãs primitivas e as quais, portanto, também sugerem por si mesmas como dignas de

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investigação ulterior. À luz das variações da terceira alternativa esbo­çada acima (§50.1), portanto, deveria parecer que algumas linhas adi­cionais de continuidade podem ser expostas para se ver, alguns blocos edificantes selecionados por oferecer uma fundamento histórico para teologizar a cristologia. Há três em particular que parecem oferecer a melhor possibilidade.

3. A expectativa de vindicação de Jesus. É muito provável que Jesus previu o sofrimento que seria seu destino e que seu ministério leva­ria a uma morte violenta. Mesmo além dos mais contestados ditos da paixão (Mc 8.31; 9.31; 10.33s; também 2.20), há claras indicações disso em Marcos 10.38s; 14.8, 22-24, 27, 35s. Como ele fez seguindo cons­cientemente a tradição profética (ver acima p. 297 e §45.3) ele, certa­mente, quase considerava o martírio em Jerusalém como parte de seu papel profético (Mc 12.1-9 pars.; Mt 23.29-36/Lc 11.47-51; Lc 13.33; Mt 23.37/Lc 13.34). E ele precisava saber que sua ação na "purificação do templo" era um desafio para a classe dirigente religiosa, e sua conde­nação, que eles dificilmente ignorariam e que no evento parece ter sido o incentivo que provocou as autoridades em usar a sanção final para silenciá-lo12.

Portanto, se Jesus antecipou uma morte violenta, no mínimo, algum tempo antes de sua última viagem a Jerusalém, certamente é concebível que ele falhasse em ligar isso em sua crença na presença do rei­no e sua consumação iminente (ver acima §§3.1,2). Uma racionalização teológica da morte de Jesus não é necessariamente uma construção post-eventum. Como A. Schweitzer indicou para a W. W rede, o fato de a resolução de Jesus em sofrer e morrer, em Marcos ser uma formulação dogmática não significa que não é histórica; ao contrário, o dogma pode ser próprio de Jesus, baseado sobre suas próprias concepções escatoló- gicas.13 Em tal caso, ele certamente não teria pensado em sua morte como uma calamidade, como um marco do fracasso e anulação de sua missão (de outra maneira não teria subido a Jerusalém); ao contrário,

12 Veja mais Jeremias, Theology, 1, pp. 277-86; H . S chürmann , "Wie hat Jesus seinen Tod bestanden und verstanden?", Orientierung an Jesus: Für Josef Schmid, org., P. H offmann , Herder 1973, pp. 325-63; V. H oward, "Did Jesus speak about his own death?", CBQ 3 9 ,1977, pp. 515-27.

13 A. Schweitzer, The Quest o f the Historicdl Jesus, ET A. & C. Black 1910, pp. 385,390.

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ele teria olhado para além de sua morte por algum tipo original de vindicação, a ratificação de Deus do que ele havia dito e feito.

Essa conclusão inerentemente plausível é sustentada por diversas considerações exegéticas. (1) Jesus, provavelmente, entendeu sua morte como cumprimento na perspectiva do Batista de que o fim dos tempos seria introduzido por um batismo de fogo (Lc 12.49s. - ver acima pp. 257,258 e abaixo pp. 465); isto é, seu sofrimento e morte seria o começo dos sofrimentos messiânicos que antecipariam e, portanto, precipitariam o estabelecimento do reino messiânico (daí o voto de abstinência em Mc 14.25 e os arrepios de horror em Mc 14.33-36). (2) Na medida em que Jesus usou uma forma de expressão bar Hnãsã, tanto em auto-refe- rência a como em alusão a Dn 7.13 (ver acima pp. l l ls ) , então, torna-se imediatamente relevante recordar a figura semelhante a um filho do homem de Daniel 7 aparecer como "representante do povo escolhi­do de Deus, destinado mediante o sofrimento a ser exaltado". (3) Ao todo não é implausível que Jesus tenha sido influenciado aqui por uma crença firme na vindicação do justo sofredor (ver especialmente Sabe­doria 2-5),14 ou até mesmo pela teologia do mártir já corrente no efeito de que a morte de um mártir possui valores vicários para a salvação de Israel e se encerra na vindicação de ressurreição (2Mc 7.14,23,37s.). De fato uma influência direta de Isaías 53 sobre Jesus não está totalmente fora de questão - a possibilidade sendo fortalecida pela citação direta de Is 53.12 e Lc 22.37, embora o verso possa muito bem ter sido adicio­nado ao que, certamente, parece ser a autêntica (e enigmática) tradição- Jesus15. O ponto em questão é que Isaías 53 inclui o pensamento tanto de sofrimento vicário, e, mais proeminentemente, o da vindicação do sofredor. (4) E até mesmo possível que Jesus expressasse sua esperança de vindicação em termos de ressurreição (cf. 2Mc 7.11, 23; 14.46) - quer

14 Ver particularmente E. S chweizer, Erniedrigung und Ehröhung bei Jesus und sein­en Nachfolgern, Zürich, 2a ed., 1962, §§2-3. Ver também G. W. E. N ickelsburg , Ressurrection Immortality, and Eternal Life in Interstamental Judaism, Harvard 1972. E note-se a importante qualificação da tese de S chweizer por L. R uppert, Jesus als der leidende Grechte? Stuttgarter Bibelstudien 59, 1972, que foi o proprio Jesus que reuniu nesse ponto correntes do AT e de pensamento interstamentário que não estavam previamente relacionados. Cf. S tuhlmacher (acima nota 8) p. 323.

15 Ver mais em J. J eremias (com W. Z immerli), Servant, pp. 99-106; C ullmann , Chris­tology, pp. 60-69 e 10.33s, em outros aspectos M. D. H ooker, Jesus and the Servant, SPCK 1959; H ahn , Titles, p p . 54-67.

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dizer, a ressurreição geral quando o reino viesse em sua plenitude, dando início ao julgamento final e à era messiânica. Tal esperança está certamente implícita em Marcos 10.37-40, 12.25, Mateus 19.28/Lucas22.28-30. Correlacionar tal expectativa com a idéia do Filho do Homem vindo em glória é um problema difícil, mas não insuperável.

Resumindo, não há bases irreais para concluir que Jesus consi­derava sua aproximação da morte como um sofrimento vicário que resultaria na vindicação divina. Isso quer dizer que sua mensagem a respeito do reino iminente incorporava uma reivindicação a respeito de si mesmo que permanecia aberta à verificação futura. O caráter preciso da verificação que ele esperava não está disponível com clareza a nós; em nossas fontes é expresso muito mais em termos do que realmente transparecia16; e não devemos excluir a possibilidade de que o próprio Jesus não era tão claro a respeito do que aconteceria (cf. Mc 13.32; Lc11.29-32/Mt 12.39-42,16.4). Mas, no mínimo, podemos dizer que nes­sa expectativa de Jesus temos uma linha real de continuidade entre a própria mensagem de Jesus e o kerygma a respeito do Cristo ressurreto- que a ressurreição de Jesus era em um sentido muito real o cumprimento da expectativa do próprio Jesus, que, contudo, diferente ou não, que fos­se de sua própria expectativa, forneceu no evento a vindicação que Jesus procurava.

4. O senso de filiação de Jesus. Vimos acima como, para Jesus, foi fundamental sua experiência de Deus como Pai para o entendimento que tinha de si mesmo e de sua missão (§45.2). Agora precisamos notar que Jesus visava conduzir seus discípulos à realidade do mesmo rela­cionamento experimentado; quer dizer, ele estimulava seus discípulos a se dirigem a Deus com a mesma ousadia e intimidade - " ‘Abba" (particularmente Lc 11.2/Mt 6.9). Além do mais, era aparentemente só a seus próprios discípulos que assim estimulava a viver esse relaciona­mento (Mc 11.25 par.; Mt 5.48/Lc 6.36; Mt 6.32/Lc 12.30; Mt 7.11/Lc11.13; Lc 12.32). Não há nenhuma evidência de que ele pregasse uma

16 Em Mc 8.31, 9.31 e 10.33s., a linguagem não sugere nada além de uma ressur­reição individual de Jesus. Mas o entendimento primitivo era evidentemente a ressurreição de Jesus como o começo da ressurreição geral (Rm 1.3s.; ICor 15.20, 23; cf. Mt 27.52s.); ver também abaixo §67.3. Para todo o tema veja H. F. B ayer, "Jesus' Predictions of Vindication and Ressurrection", WUNT 2.20, Tübingen 1986.

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mensagem mais ampla da paternidade divina e fraternidade humana- tal resumo se levanta mais dos ideais atemporais do protestantismo liberal do séc. XIX do que uma escolha escatológica da mensagem de Jesus. Em outras palavras, Jesus parece ter visto um elo entre a filiação de seus discípulos a Deus e o seu próprio discipulado dele; seu uso de ‘abba era algo dependente de seu relacionamento com ele; seu ‘Abba era alguma coisa derivada de seu ‘Abba, a sua filiação dele.

Se isso é uma justa caracterização do discipulado pré-pascal, en­tão se torna uma vez mais digna de nota que na situação pós-pascal a filiação parece novamente como um modo importante de descrever o relacionamento dos crentes com Deus (Mt 23.8s.; Rm 8.14-17, 29; G1 4.6s.; Cl 1.18; Hb 2.11-17; ljo 3.1s.; Ap 1.5) - o uso contínuo do aramai­co " ‘Abba" nas igrejas de fala grega (Rm 8.15; G14.6) mostrando quão profundamente se enraizou tanto na experiência como na expressão da comunidade primitiva. O mais importante é que tais referências indi­cam com suficiente clareza que a filiação assim experimentada era enten­dida como determinada pela própria filiação de Jesus: os crentes clamavam " ‘Abba" assim como ele fizera, e em consciente dependência do Espí­rito de Cristo (Rm 8.9, 15-17; G1 4.6s.). Com efeito, a explícita alusão à própria filiação de Jesus (pela qual se mostravam ser: "co-herdeiros com Cristo" - Rm 8.17; é precisamente: "O Espírito do Filho" que cla­ma " ‘Abba, Pai" - G1 4.6s.) implica fortemente que aqueles que desse modo oravam intencionalmente traçavam tanto a experiência como a expressão de volta ao estilo característico de oração e à experiência de Jesus enquanto estava sobre a terra.

Aqui está um ponto de grande significado: que nessa única expe­riência de oração, tão disseminada no cristianismo primitivo, vemos claramente a unidade e a continuidade entre o Jesus terreno e o Cristo exaltado, com a ligação firmemente unida nas duas extremidades. Em uma ponta a oração é inspirada pelo Espírito do Cristo exaltado, a ora­ção que era tão distinta da oração de Jesus de Nazaré. Na outra está a oração, a mesma oração, que Jesus ensinou aos seus próprios discípu­los a orar durante seu próprio ministério. A questão é que nas duas ex­tremidades, oração e o relacionamento, o que é trazido a expressão é en­tendido como somente possível na dependência de Jesus e deriva da própria filiação de Jesus. Não estamos falando a respeito da proclamação públi­ca, seja de Jesus ou das igrejas primitivas, mas mais no nível da pres­suposição da proclamação - o relacionamento do qual a proclamação

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surgiu e como foi interpretada, dentro do circulo de discipulado. Mas podemos dizer que em um nível mais profundo de autocompreensão, tanto Jesus como os primeiros cristãos, o papel de Jesus era igualmente central em ambos os lados da Páscoa. E assim temos mais uma vertente de continuidade entre o chamado pré-pascal para o discipulado e o chamado à fé pós-pascal.

5. A experiência de Jesus do reino e do Espírito de Deus, ou mais pre­cisamente seu entendimento do reino e sua experiência do Espírito, fornece-nos mais um ponto de ancoragem dentro da história de Jesus para outro elemento no auto-entendimento dos primeiros cristãos. Pois é bem claro que Jesus experimentou e entendeu o reino como uma tensão escatológica - quer dizer, uma tensão entre a realidade es­catológica já experimentada e uma consumação do reino iminente e distendida, mas ainda não realizada (cf. p.ex. Mt 11.5/Lc 7.22; Mt 13.16s./Lc 10.23s. com Mt 6.10/Lc 11.2; Mc 14.25 pars. - ver mais acima §§3.1, 2). Além do mais, essa tensão escatológica era uma fun­ção do Espírito: por que ele experimentava uma plenitude do Espírito, porque ele entendia seus exorcismos como o efeito do poder divino atuando nele e por meio dele, ele concluiu que isso era uma manifes­tação da soberania de Deus no fim dos tempos, uma manifestação do reino (Mt 12.28; ver acima pp. 300ss); e desde que o Espírito do fim dos tempos já estava ativo, o próprio fim não poderia mais demorar- a derrota de Satanás foi antecipada e já em curso é considerada ainda não completa (Lc 10.18; Mc 3.27). Isso também quer dizer que no entendimento de Jesus, sua própria experiência do Espírito e seu ministério no poder do Espírito eram alguma coisa única: sua não era apenas a inspiração de um profeta, mas a unção do Espírito do final dos tempos (Is 61.Is. - ver acima p. 301s); somente em seus exorcismos o reino era manifestado, precisamente porque seu poder de exorcis­mo era aquele do Espírito escatológico - isto é, um poder que somen­te ele experimentou (Mt 12.27s.). Mas isso, por sua vez, envolve certa interdependência e intercâmbio entre Jesus e o poder escatológico de sua missão: oposição a esse ministério era oposição ao Espírito (Mc 3.28s. pars.); ele mesmo era parte da ofensa escatológica de sua missão (Mt 11.5s./Lc 7.22s.; cf. Lc 12.8s. pars.). Aquele que se entende como dotado em grau único pelo Espírito também entende o Espírito como unicamente seu. ,

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No cristianismo do séc. I mais claramente representado em Paulo, vemos o mesmo tipo de tensão escatológica, entre o já da graça já dada e o não da herança de um reino ainda a ser realizado. Não somente isso, mas essa tensão escatológica pós-pascal também é entendida também como a função do Espírito: nas igrejas paulinas o Espírito é entendido precisamente como a primeira parcela daquela herança do reino que garante sua plena realização nà ressurreição do corpo (Rm 8.10s; 15- 23; ICor 6.9-11; 15.45-50; 2Cor 4.16-5.5; G14.6s; 5.16-24; Ef 1.13s.). Mais importante, o Espírito assim experimentado é experimentado como o Espírito de Jesus - o poder do que foi crucificado e ressurgiu que se manifesta precisamente como foi feito nele, como o poder na fraqueza, como vida por meio da morte (ver acima §46.4). Quer dizer, há certa fusão do papel do Espírito com o Cristo exaltado (ICor 15.45) de modo que a presença e obra do Espírito são determinadas e definidas por sua relação com Cristo, isto é, por manifestar ou não o mesmo caráter que foi manifestado no ministério de Jesus.17

Aqui novamente, então, temos um paralelo entre o auto-entendi- mento de Jesus e aquele dos primeiros cristãos. Mas, além disso, temos uma explicação de sua experiência pelos primeiros cristãos que está enraizada na própria explicação de Jesus de sua experiência. A relação única entre Jesus e o Espírito que era uma pressuposição de sua proclamação do evangelho é no tempo derradeiro, nada mais que uma elaboração e de­senvolvimento (à luz de sua ressurreição) da própria pressuposição de Jesus de uma inspiração única pelo Espírito escatológico. O certo é que não há nenhuma evidência clara de que Jesus procurou por uma as­persão do Espírito sobre seus discípulos pela qual ele seria responsável- embora tal tradição, muito possivelmente sustente as passagens do paráclito de Jo 14-16 que estão, no mínimo, em paralelo na disposição testamentária considerando o reino em Lc 22.29, e ele parecia abraçar o outro aspecto da predição do Batista com respeito ao ministério Da­quele que Vem (acima pp. 326s)18. Seja como for, o ponto é que uma vez mais temos um veio de continuidade que corre por meio da Páscoa- experiência que é atribuída ao Cristo exaltado, que é similar à pró­pria experiência de Jesus, como ele mesmo a interpretou, e cujos traços

17 Ver mais J. D . G. D unn , "I Corinthians 15.45 - Last Adam, Life-giving Spirit", CSNT, pp. 127-41.

18 Sobre At 1.5 ver D unn , Jesus, cap. VI, n. 60 (p. 398) e acima p. 87, nota 9.

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distintivos já estavam determinados pelo caráter da missão de Jesus, como ele mesmo a entendeu e a viveu.

Só preciso acrescentar brevemente que um ponto estreitamente relacionado emerge de uma comparação das atitudes de Jesus e de Paulo para com a Lei19. Pois desejo argumentar que a visão de Paulo sobre Jesus como "o fim da lei" (Rm 10.4) está enraizada não somen­te em seu entendimento da morte e ressurreição de Jesus, mas tam­bém em sua consciência da própria liberdade de Jesus com respeito a Lei e a interpretação supremamente autorizada da Lei (ver acima pp. 184,297); compare particularmente Marcos 7.19b e note a centralidade do mandamento do amor para ambos (Mc 12.31 par.; Rm 13.8-10; G1 5.14).20 Quer dizer, o manuseio soberano da Lei de Jesus à luz do reino vindouro e como expressão de sua (própria-)consciência escatológica fornece outro ponto de ancoragem dentro do ministério do Jesus histó­rico para o ensino de Paulo sobre a justiça de Deus à luz da Sexta-feira Santa e da Páscoa.

6. Resumindo, parece que podemos falar significativamente de uma unidade e continuidade entre o Jesus histórico e o Cristo keryg­mático - uma unidade e continuidade que não é meramente uma cria­ção teológica pós-pascal, mas que tem suficientemente pontos firmes ancorados no Jesus da história pré-pascal. Isso não quer dizer que a proclamação de Jesus e os kerygmata dos primeiros cristãos sejam um e o mesmo, ou que suas pressuposições são uma e a mesma. Não quer dizer que os discípulos após a Páscoa simplesmente reviveram e re­petiram a mensagem que o próprio Jesus havia pregado com pouca alteração de pequena importância (acima p. 325). Nada do que disse­mos acima diminui o significado central da Páscoa decisivamente na deter­minação e modelagem dos kerygmatas pós-pascais. A vindicação de que a ressurreição efetivamente realizada por Jesus não era conjuntamente a vindicação que Jesus havia antecipado (a ressurreição geral e, por con­seguinte, o juízo) - ainda que sua expectativa não fosse em absoluto,

19 Ver R. B u l t m a n n , Faith and Understanding, pp. 223-35; J ü n g e l , Paulus, pp. 268-73; R. B a n k s , Jesus and the Law in the Synoptic Tradition, Cambridge University Press, 1975, p. 245, n. 4.

20 Ver mais meu "Pharisees, Sinners and Jesus", The Social World o f Formative Chris­tianity and Judaism, H. C. K e e Festschrift, org. J. N e u s n e r , et a l , Fortress 1988, pp. 264-89: reimpresso em meu Jesus, Paul and the Law, SPCK 1990.

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precisamente formulada. E certamente, sobre os outros dois pontos de continuidade, os primeiros cristãos estavam bem esclarecidos de que o que eles experimentaram não foi simplesmente uma relação ou expe­riência como aquela de Jesus, ou até mesmo simplesmente determinada pelo ministério do Jesus terreno, mas uma relação e uma experiência ocasionada pelo Jesus ressurreto e derivada imediatamente de sua res­surreição.

Em outras palavras, a unidade e a continuidade que descobrimos entre o Jesus histórico e o Cristo kerygmático não diminuem a signifi­cância da Páscoa em modelar o kerygma e o auto-entendimento do cris­tianismo primitivo. Mas nem a importância da Páscoa diminui o papel cen­tral já preenchido por Jesus bem antes da Páscoa em sua própria proclamação e auto-entendimento. Já, antes da Páscoa, a proximidade escatológica de Deus como Pai era vista ser algo dependente dele. Já, antes da Páscoa, o Espírito escatológico e a tensão do já/ainda não eram pensados como alguma coisa ligada a ele. Já, antes da Páscoa, a liberdade frente à Lei era reconhecida ser um traço e conseqüência de seu ministério. Resu­mindo, ficam suficientemente claros os prenúncios da centralidade do Cristo kerygmático no auto-entendimento de Jesus durante seu ministério para reco­nhecermos os kerygmata das igrejas primitivas como um desenvolvimento da própria proclamação de Jesus à luz de sua ressurreição. Como o cristianis­mo, apropriadamente, reivindicaria ser uma legítima interpretação do AT à luz de Jesus, assim o Cristo kerygmático pode reivindicar ser uma legítima interpretação do AT à luz de Jesus, assim o Cristo kerygmático pode reivindicar ser uma legítima interpretação do Jesus histórico à luz da ressurreição de Jesus.

§ 51. "UM JESUS, MUITOS CRISTOS?"

Se reconhecermos a continuidade entre o Jesus histórico e o Cris­to kerygmático, precisamos também reconhecer que há muitos Cristos kerygmáticos. Quer dizer, não se trata de um único entendimento ou apresentação coerente que encontramos após a Páscoa. "O Cristo kerygmático" é uma taquigrafia conveniente para distinguir Jesus como o objeto da pesquisa histórica de Jesus como o objeto da fé, o Jesus histórico do Cristo proclamado. Mas se o kerygma do NT é uma super- simplificação, também é o Cristo kerygmático; se falamos dos kerygmata

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do NT (cap. II acima), então temos que falar de Cristos kerygmáticos- entendimentos e apresentações diversificados do "Cristo da fé" den­tro do cristianismo do séc. I. Já vimos algo disso no capítulo III, onde traçamos as principais características do desenvolvimento no séc. I da fé confessional dos cristãos em Jesus como Filho do Homem, Messias, Filho de Deus e Senhor. Agora quero ilustrar essa diversidade ainda mais salientando o que provavelmente é o principal contraste dentro da Cristologia do NT - isto é, que entre a cristologia de muitos dos pri­meiros cristãos e a cristologia que começa a se desenvolver quando o cristianismo que começava a adotar (e adaptar) mais dos conceitos da filosofia religiosa mais ampla da época. Então a propósito de sumário compararemos brevemente as diferentes avaliações das dimensões e estágios do "evento Cristo". Nesse campo todo há muitas passagens cujos lugares vivenciais e referências originais são questionáveis. Mas mesmo sem chegar a uma opinião firme sobre a maioria delas surge uma imagem clara.

1. A cristologia do cristianismo primitivo parece ser essencialmente prospectiva. Isso fica evidente do que são provavelmente os usos pós- pascais dos quatro principais títulos cristológicos (acima cap. III). A es­perança de que Jesus como o Filho do Homem logo retornaria devia ser uma expectativa dominante: os ditos da "vinda Filho do Homem" formam o grupo homogêneo mais amplo entre os logia do Filho do Ho­mem; somente no fervor escatológico dos anos iniciais eles seriam sig­nificativos para preservar (ou criar) e circular Mt 10.23; e nenhum dito da categoria Filho do Homem parece ter-se submetido a tal reflexão (em um estágio bem inicial) como Lucas 12.8s./Mateus 10.32s./Mar­cos 8.38/Lucas 9.26 (ver também abaixo p. 471). No que diz respeito a Jesus como o Messias, Atos 3.19-21, aparentemente, incorporam o que é, provavelmente, um fragmento da pregação cristã primitiva, onde a promessa explicitamente sustentada é que se os homens se arrepen­derem e se converterem, o Senhor (= Deus) enviará Jesus o Cristo dos céus uma vez mais. Sobre o Filho de Deus, umas das formulações mais antigas ligam a instalação de Jesus como o Filho de Deus (em poder) com a: "Ressurreição dos mortos" (Rm 1.3s. - ver mais abaixo p. 335ss; cf. lTs 1.10). E é claro que a designação, mais antiga, pós-pascal, de Jesus como Senhor preservada nas cartas paulinas é 1 Coríntios 16.22, uma vibrante invocação com o anelp do retorno de Cristo - "Vem,

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Nosso Senhor!" (cf. Ap 22.20; de um sentido da vinda de Cristo para ou na ceia do Senhor não há nenhuma evidência21).

Ao mesmo tempo em que não devemos ignorar a ênfase central dada à ressurreição de Cristo, como está refletida particularmente nas tradições kerygmáticas primitivas (ver acima pp. 87, também 119 e 126s). Isso certamente foi visto como uma vindicação de seu ministério e rei­vindicações (cf. acima §50.3 e abaixo p. 337), em particular como sua ins­talação ou adoção de um novo status exaltado (At 2.36; 13.33; Rm 1.3s.; Hb 5.5; cf. F1 2.9-11; ver também acima p. 119 e abaixo p. 367). Mas isso também foi visto como um evento escatológico prenunciando a consumação, o princípio do fim, o primeiro ato da ressurreição geral. Isso é indicado claramente pela (obviamente antiga) descrição da ressurreição de Jesus como as "primícias", isto é, como parte e início da ressurreição geral (ICor 15.20, 23). A mesma compreensão está preservada na referência da ressurreição de Jesus como a ressurreição (geral) dos mortos (Rm 1.4) e na antiga tradição preservada em Mt 27.52s. Visto que a ressurreição começara em Jesus, os "últimos dias" já estavam em curso. A ressur­reição anunciava tanto a sua exaltação como a iminente consumação. Se há alguma verdade em absoluto na sugestão de que a esperança da parusia se desenvolveu da crença na ascensão de Jesus22, o desen­volvimento precisa ter acontecido dentro um tempo muito curto visto que a evidência do contrário é clara de que a esperança da parusia era parte e parcela da fervorosa expectativa escatológica da comunidade primitiva (ver mais abaixo §67.3). Resumindo, a ressurreição de Jesus era significante para os primeiros cristãos tanto para o que Jesus se tornou e para o que ela prenunciava. Quer dizer, a ressurreição de Jesus era significativa como uma antecipação do futuro e como uma promessa do papel de Jesus nesse futuro, como o início do que logo se completaria23.

Assim também não nos surpreendemos de encontrar que nesse estágio primitivo nenhum pensamento real parece ter sido dado ao papel do

21 Cf. C. F. D. M o u l e , "A Reconsideration of the Context of Maranatha", Essays in the New Testament Interpretation, Cambridge University Press 1982, pp. 222-6. Contra C u l l m a n n , Christology, pp. 211s; B. S a n d v i k , Das Kommen des Herrn beim Abendmahl im Neuen Testament, Zürich 1970. Ver também acima p. 132.

22 Cf. J. A. T. R o b i n s o n , Jesus and his Coming, SCM Press 1957; P e r r in , Teaching, pp. 164-85. Ver também nota 36 abaixo.

23 Para a importância da ressurreição no estágio primitivo da teologização cristão veja P . P o k o r n y , The Genesis o f Christology, T. & T. Clark 1987.

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Jesus exaltado entre sua ressurreição-exaltação (derramamento do Espírito) e sua parusia. Mesmo em Atos a única função atribuída a Jesus entre o Pentecostes e seu papel final como juiz (At 10.42; 17.31) é sua aparição em um número de visões (At 7.55s; 9.10; 18.9; 22.17s; 23.11; 26.16,19). E embora o uso do nome do Jesus exaltado invoque seu poder em seu uso, o nome em si serve mais como um substituto para Jesus (como acontece com o nome de Yahweh no judaísmo contemporâneo) e assim sublinha a falta de sua presença pessoal (Jesus está presente somente em seu nome - cf. particularmente At 4.10,12; ver também acima p. 85). Além do mais, provavelmente é significativo que a tradição dos ditos de Jesus não tenha sido elaborada nesse ponto: nenhuma tentativa foi feita para preencher o vão entre o que Jesus esperava e sua parusia prometida; os dois elementos permanecem não relacionados dentro da tradição - Jesus. Talvez aqui também tenhamos uma reflexão parcial daquele período, quando nenhuma disparidade real entre a exaltação e a parusia fosse ainda considerado: falar da ressurreição de Jesus e falar de sua parusia era, mais ou menos, o modo alternativo de dizer a mesma coisa - que Jesus foi exaltado (para derramar o Espírito e) para retornar na consumação escatológica.

Tudo isso não quer dizer que os crentes primitivos estavam in­teressados em outros aspectos do "evento Cristo". Como vimos eles logo começaram a pelejar com o problema de um Messias crucificado (§10.2). Mas quão rápida a morte de Cristo se tornou o foco de reflexão soteriológica não fica claro, pois a evidência é capaz de diferentes in­terpretações. De um lado, a idéia da morte de Jesus como o sacrifício da (nova) aliança pode muito bem ser parte da tradição primitiva das palavras faladas na última ceia (ver acima pp. 272s); e na mesma tradi­ção primitiva de 1 Coríntios 15.3 a morte de Jesus é confessada como "por nossos pecados", apesar de na fórmula estendida de 1 Coríntios15 a principal ênfase estar nas aparições de Jesus, mesmo 1 Coríntios 15 é uma exposição das aparições da ressurreição de Jesus como o protó­tipo da ressurreição geral. De outro lado, há quase completa ausência de quaisquer preocupações referentes à paixão de Jesus nos ditos de Q; e nos sermões em Atos a morte de Jesus é mencionada somente como parte do tema do sofrimento-vindicação, como a rejeição de Cristo an­tes de sua ressurreição, e não em termos de sofrimento vicário - ainda que isso seja possivelmente uma reflexão da ênfase teológica lucana do que qualquer outra coisa (ver acima pp. 82ss). Talvez a solução mais

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simples desse conflito de evidência é que a morte de Jesus era refletida cristologicamente (como a humilhação de Jesus antes de sua vindicação) antes de seu sentido ser desenvolvido soteriologicamente, e porque ini­cialmente a parusia iminente era vista como o ato decisivo da salvação (cf. At 3.19s.; lTs 1.10; 5.8s.).24

O interesse no ensino e ministério terrenos de Jesus está implica­do tão logo quando temos uma preocupação de preservar as tradições a respeito de Jesus. Tal preocupação é mínima nos sermões de Atos (2.22; 10.36-39 - ver acima p. 82), mas claramente perfaz a compilação de Q, ainda que devamos uma vez mais recordar a forte prospectiva cristológica de Q (ver mais abaixo p. 422). Paulo certamente toma mui­to seriamente as tradições éticas que como vimos, provavelmente em grande parte, referia-se amplamente a vida e ensino de Jesus (acima §17.3) - ainda que aqui seja interessante notar que ele apela a essa tra­dição de Jesus em 2 Tessalonicenses contra algo como a efervescência escatológica que precisa ter caracterizado a comunidade palestinense primitiva (2Ts 3.6-12; cf. At 2.44s; 4.32-35). Assim, também pode ser re­levante recordar que em Corinto um interesse em Jesus como operador de milagres poderia ter sido casado com uma escatologia realizada que não deixava espaço para a esperança de ressurreição futura (ver acima pp. 230ss. e abaixo pp. 412s). Tudo isso sugere de novo que, inicialmente, o interesse no ensino e ministério terrenos de Jesus estava subordinado à esperança da parusia e que a tradição de Jesus servia em parte como um tipo de equilíbrio a (sobre) a expectativa entusiástica iminente.

Resumindo, até onde podemos afirmar, a cristologia (e soterio- logia) dos primeiros cristãos parece ter sido essencialmente prospec­tiva.

2. Os desenvolvimentos na cristologia depois desse período primitivo podem ser caracterizados como o começo de uma mudança do "momen­to cristológico" decisivo25 retrocedendo no tempo para a época do duplo evento escatológico da ressurreição-exaltação-parusia. Talvez vejamos algo

24 No cristianismo primitivo "salvação" é primariamente futura, um termo escato­lógico (W. F o e r s t e r , "s õ z õ ", TDNT, VII, pp. 992ss).

25 Por "momento cristológico" eu entendo aquele evento que é visto como defini­dor e determinante do caráter e status de Cristo. Similarmente, pela expressão "momento soteriológico" eu entendo aquele evento que é visto como decisivo para salvação.

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disso já na fórmula pré-paulina de Rm 8.34, onde o espaço (estendido) entre a exaltação e a parusia de Jesus é entendido por ser preenchido pelo papel de Jesus como intercessor. Ainda mais em Hebreus: a exal­tação de Jesus é ainda central (sua entrada sumo sacerdotal no santu­ário celeste), mas a ênfase recai consideravelmente sobre o contínuo papel apresentado de Jesus como precursor e intercessor no céu onde os crentes já podem entrar (Hb 1.3; 2.10; 4.14-16; 6.19s; 7.25; 8.1s; 9.24; 10.19-22; 12.22-24), enquanto que a esperança da parusia, conquanto ainda presente, recebe pouca atenção.

Certa mudança no momento cristológico parece estar vinculada com a cristalização do relato do encontro de Jesus com João no Jordão e de sua unção com o Espírito aí. O uso explícito do Salmo 2.7b (em parte em Mar­cos/Mateus, inteiro no que é provavelmente o texto lucano original, e possivelmente Q) sugere que por alguma medida esse foi o ponto no tempo quando Jesus se tornou o Messias e Filho. Aqui o mesmo verso (SI 2.7 - "Tu és meu filho, eu hoje te gerei"), que parece expressar a visão adocionista da ressurreição de Jesus da comunidade primitiva (At 13.33; Hb 5.5; ver acima pp. 119, 334), sendo referida ao ponto de partida do ministério de Jesus. Por trás disso, supostamente, repou­sa uma preocupação para incluir todo o ministério terreno de Jesus dentro dos eventos da história da salvação agora reconhecidos como decisivos tanto para o status de Cristo como para a salvação humana. Talvez também vinculado a isso estivesse o interesse em Jesus como um operador de milagres que, como vimos, era provavelmente um ele­mento às situações endereçadas por 2 Coríntios 10-13 e por Marcos e na fragmentária fonte de milagres usada pelo quarto evangelista em João 2.1-11 e 4.46-54 (acima pp. 149s, 289 e abaixo pp. 445s). Tal avalia­ção de Cristo teria provavelmente anexado não pouca importância ao batismo de Jesus como o momento de dotação com tais poderes sobre­naturais (os coríntios, pelo menos, parecem ter outorgado ao batismo algo do tipo - ver acima §39.5). Paulo e Marcos, como vimos, respon­deram focalizando o momento soteriológico decisivo sobre a morte e ressurreição de Jesus e enfatizando mais o sofrimento do que os mi­lagres de Jesus (acima pp. 151, 370). João respondeu reprovando a fé que depende de sinais (Jo 2.23-25; 4.48) e enfatizando que os milagres de seu Evangelho são significantes porque eles prenunciam a hora da morte-glorificação de Jesus (ver mais abaixo p. 445). Mateus e Lucas de modo incidentalmente também contrariam efetivamente uma cris-

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tologia erroneamente baseada sobre o batismo e obras poderosas obras de Jesus ao interpor o relato mais completo de Q das tentações de Jesus entre o batismo de Jesus e o ponto de partida de seu ministério de tal maneira de qualificar a ambos.

Muito da mudança mais importante no momento cristológico é anunciada pela introdução da linguagem da pré-existência ao falar a respeito de Cristo. Quando esse desenvolvimento primeiramente aconteceu não fica claro; até se a idéia de entidades ou seres pré-exis- tentes é mais típica do pensamento grego do que do hebraico, o juda­ísmo pré-cristão já estava familiarizado com ele - particularmente em sua especulação a respeito da Sabedoria (Pv 3.19; 8.12-31; Sb 7.22-81; 9.1s.; Sirácida 24.1-22). De modo que não precisamos presumir que a categoria de pré-existência entrou para a teologia cristã somente quando a nova seita se encontrou com a filosofia helenística. É bem possível, com efeito, que foi primeiramente usada como um corolário para uma avaliação mais completa do significado da ressurreição- exaltação de Jesus.26 Seja como for, parece que o pensamento de pré- existência inicialmente entrou para a cristologia primitiva pela aplicação da terminologia da Sabedoria a Cristo. Por conta disso, podemos afirmar que Jesus se considerava como o mensageiro da Sabedoria - um auto- entendimento refletido particularmente em Q (Mt 11.25-27; Lc 7.31- 35; 11.49-51). Quer dizer, não há prova alguma que Jesus consideras­se a si mesmo como a Sabedoria pré-existente, e nada nas tradições de Q e Marcos implicando que a idéia de pré-existência estivesse pre­sente (seja para Jesus ou para Q e Marcos)27. A idéia de pré-existência

’ J. K n o x , The Humanity and Divinity o f Christ, Cambridge University Press 1967, p. 11; cf. G. S c h n e i d e r , "Praexistenz Christi", NTK, pp. 405, 408s; 412. Ver meu Christology, p. 63.

' Não há evidência de que o uso de bar H'nãsã implicasse uma consciência ou con­vicção de pré-existência. O pensamento da pré-existência do Filho do Homem, primeiramente, emergiu em 1 Enoque 48.6; 62.7, mas essas passagens são parte da única seção de Enoque (as Similitudes ou Parábolas - 1 Enoque 37-71) que fa­lham de assim aparecer entre os Manuscritos do Mar Morto - um fato sugestivo de que as Similitudes foram adicionadas a 1 Enoque em uma data subseqüente a Qumran (finalmente destruído em 68 d.C.) (veja mais particularmente M il i k ,

Enoch, pp. 89-98). Pré-existência não está pressuposta nem em Dn 7.13, nem no material do Filho do Homem sinótico (cf. T õ d t , Son o f Man, p. 300; ao contrário R. G. H a m e r t o n - K e l l y , Pre-existence, Wisdom and the Son of Man, Cambridge Uni­versity Press 1973, cujas firmes conclusões sobre as pp. 67,102, vão além de suas

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entrou primeiramente pelo caminho da implicação com a identificação de Cristo com a própria Sabedoria. Essa identificação certamente foi feita por Mateus (ver abaixo pp. 387s); mas já, muito antes, Paulo não havia deixado dúvidas sobre o assunto (ICor 1.24, 30); nem hesitou em atribuir a Cristo o papel da Sabedoria pré-existente (particular­mente ICor 8.6; Cl 1.15-17).

Agora precisamos recordar, aqui, que dentro do judaísmo da Sabedoria havia somente um modo de falar acerca da ação de Deus na criação, revelação e redenção, sem realmente falar acerca de Deus. A Sabedoria, como o nome de Deus, o Espírito de Deus, o Logos, etc., denota a atividade imanente de Deus, sem desmerecer a transcendên­cia de Deus. Para o judaísmo pré-cristão a Sabedoria não era um ser celestial inferior (alguém do conselho celestial), nem uma hipóstase divina (como na concepção tardia trinitária de Deus); tal desenvolvi­mento teria sido (e no evento foi) inaceitável ao monoteísmo estrito do judaísmo. A Sabedoria de fato não é mais que uma personificação da imanência de Deus, não deve ser considerada como uma pessoa distinta dentro da deidade mais do que o conceito rabínico ou modo de falar de uma Torá pré-existente. A probabilidade, então, é que Paulo ao apli­car a linguagem de Sabedoria a Cristo está, com efeito, simplesmente dizendo: que o que você tem até agora atribuído a Sabedoria, vemos mais plenamente expresso e incorporado em Cristo; que o mesmo po­der e sabedoria que você reconhece manifesto nos propósitos criativo, revelatório e redentor de Deus, nós agora vemos manifestos final e exclusivamente em Jesus Cristo nosso Senhor28. Isso também explicaria porque Paulo nunca usou somente o nome Jesus para o pré-existente:

próprias evidências - cf. p.ex., a conclusão mais antiga na p. 47). Veja mais meu Christology, p. 29.

28 O mesmo se aplica a Rm 8.3 e G1 4.4; cf. Sabedoria 9.10 (também em Rm 10.6s. se alguma alusão é objetivada aí - cf. Bar. 3.29); veja particularmente E. S c h w e iz e r ,

"Zur Herkunft der Prãexistenzvorstellung bei Paulus", Ev Th, 19,1959, pp. 65- 70; reimpresso em Neotestamentica, pp. 105-9; também "Zum religionsgeschi- chtlichen Hintergrund der "Sendungsformel" Gal 4.4f., Rom 8.3s, John 3.11fv I John 4.9", ZNW, 57,1966, pp. 199-210. A descrição daquele pré-existente como "Filho de Deus" não leva adiante a discussão em qualquer direção, visto que a Sabedoria também é saudada como criança de Deus e Filo pode chamar o Logos de "o mais velho e primeiro nascido filho de Deus" enquanto também chama o mundo (visível) de "o filho mais novo de Deus" (Filo, De Conf. Ling., 62s; Quod Deus Imm., 31s; cf. De Ebr., 30). Veja mais èm meu Christology, cap. VI.

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Jesus não era em si mesmo pré-existente; ele era o homem que a pré- existente Sabedoria se tornou29.

Todavia, como a última sentença indica com o uso do linguajar do conceito de pré-existência da encarnação se torna parte da cristolo­gia. E a porta é, por isso, aberta para aquela cristologia que vê Jesus não apenas como a encarnação da Sabedoria divina ou Logos divino, mas que também reconhece a encarnação como o momento decisivo na salvação - o assumir da humanidade na deidade e desse modo a santifica. Nesse caso, a morte, ressurreição e a parusia de Jesus se tor­nam, com efeito, não mais que uma ratificação do que já havia se re­alizado em princípio; e a cristologia se torna um assunto da tentativa de entender a humanidade de Jesus à luz do que deve ser verdade do Logos pré-existente, mais do que um assunto da tentativa de entender o Cristo exaltado à luz das tradições a respeito de Jesus de Nazaré. E claro, tudo isso ainda não aconteceu nos escritos do NT, mas já vemos o começo emergir na tendência do NT para a figura impessoal intermediária pré-existente ser pensada como um ser divino pessoal pré-existente cuja deci­são de se encarnar determina a salvação do homem e seus meios. Talvez esteja presente tão no início como o hino de F1 2.6-11; ainda que eu suspeite que o pensamento de Paulo seja dominado nesse ponto pelo paralelo Adão/Cristo30. Em que caso a carreira do Jesus terreno é expressa na lin­guagem apropriada ao homem arquetípico, Adão: como Adão ele foi feito à imagem de Deus (cf. Gn 1.26s; 2.7), mas diferente de Adão ele não se agarrou à igualdade com Deus (cf. Gn 3.5); diferente de Adão

29 A tese estranhamente literalista de A. T. H a n s o n , "Jesus Christ in the Old Testa­ment", SPCK 1965, de que Paulo e outros escritores do NT não entenderam que algumas passagens do AT também se referiam ao Jesus pré-existente ou que tinham falado do Jesus (!) pré-existente é bem pouco recomendada. O texto cha­ve, 1 Coríntios 10.4, é, como vimos, provavelmente, uma nota explanatória ou decodificadora para explicar a interpretação tipológica-alegórica de Paulo (aci­ma p. 175, nota 19), ainda que muitos eruditos tomem-na como outra instância de Cristo sendo outorgado um papel em outros lugares atribuídos à Sabedoria (cf. Filo, Leg. Alleg., II. 86; Quod. Det., 115-18).

30 Cf. p.ex.: Cullmann, Christology: "Todas as declarações de F12.6ss devem ser en­tendidas do ponto de vista da história do Adão veterotestamentário" (p. 181); C. H . Talbert, "The Problem of Pre-existence in Philippians 2.6-11", JBL, 86,1967, pp. 141-53; J. Murphy-O'Connor, "Christological Anthropology in Phil. 2.6-11", RB, 83,1976, pp. 25-50. Note também S c h w e iz e r , Erniedrigung, p. 96, n. 383; M. D. H o o k e r , "Philippians 2.6-11", JuP, pp. 160-4. Ver acima p. 229.

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ele entregou seu status privilegiado e abraçou sua antítese humana (cf. Gn 3.17-19), mas diferente de Adão ele fez isso livremente e não como uma punição, voluntariamente, submetendo-se até mesmo a morte vergonhosa da cruz, e assim ele alcançou honra mais elevada do que a honra que Deus havia, primeiramente, determinado para o homem. Se essa linha de interpretação representa adequadamente o pensamen­to de Paulo em F1 2.6-11 (ela concorda muito estreitamente com Rm 5.14b-19), então precisamos questionar se há algum pensamento real de pré-existência aí.31 Além disso, não há nenhuma questão de que para Paulo o evento decisivo tanto para a cristologia e soteriologia era a morte e ressurreição de Jesus (assim também F1 2.8s; e note como as formulações "enviando" de Rm 8.3 e G14.4 são mais uma vez elabora­das pela referência a morte de Jesus - Rm 8.3c, G14.5a).32 Antes de sua morte Jesus era inteiramente um com o homem, o primeiro Adão (Rm 8.3; F12.7s.); somente com a ressurreição Jesus se tornou representante de uma nova humanidade, o último Adão (Rm 8.29; Cl 1.18; e particu­larmente ICor 15.20-23,45).

Se estivermos procurando a aparência mais antiga do pensamento da pré-existência pessoal em relação a Jesus, uma forte candidata é a carta aos Hebreus. Como Paulo o escritor descreve Jesus na linguagem da Sabedoria pré-existente (Hb 1.2s.); mas além da idéia de pré-exis- tência pessoal pode estar pressuposta no argumento de Hb 7.3 (Jesus se qualifica como o sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque porque como Melquisedeque ele não tem: "Nem princípio de dias nem fim de vida!", ou mais precisamente, por causa de sua ressurreição demons­tra a qualidade indestrutível de sua vida - Hb 7.16), e em 10.5 (cf. 1.8; 2.14 e 13.8 - ver abaixo p. 389). Ademais não devemos deixar de notar que isso é acompanhado por uma das mais fortes linguagens adocionista encontrada nas páginas do NT (ver abaixo pp. 390s), e há pouca dúvida que para Hebreus também o momento cristológico se foca firmemente sobre a morte de Jesus e a entrada no santuário celeste (Hb 1.3s; 2.9s;

31 Cf. J. A. T. R o b i n s o n , The Human Face ofG od, SCM Press 1973, pp. 162-6 e aqueles citados lá; contrariamente H a m e r t o n - K e l l y , Pre-existence, pp. 156-68. Veja tam­bém acima pp. 135s. A antítese rico/pobre de 2 Cor 8.9 não precisa ser entendida como uma antítese pré-existência/encarnação, mas pode simplesmente ser um contraste ofensivo entre a vida sem pecado de Jesus e a humilhação da cruz (cf. 2 Cor 5.21, e D u n n , Christology, pp. 121-3).

32 Ver E. S c h w e iz e r , Jesus, 1968, ET SCM Pifess 1971, pp. 84s.

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5.5-10; 6.20; 7.15s, 26-28; etc.). Igualmente significativa é a exegese de Hebreus do Salmo 8.4-6, na qual Jesus é representado como o homem que cumpriu o programa divino para o homem, que até então perma­necia não cumprido, e assim como o pioneiro que abre o caminho e o faz possível para seus irmãos homens segui-lo por um programa para o fim pretendido (Hb 2.5-18) - uma cristologia não muito distante da cristologia Adão/Cristo de Paulo em Rm 8.3 e ICor 15.33

É realidade somente no Evangelho de João, com respeito ao fim do séc. I, que vemos de fato a mudança no momento cristológico acontecer - onde Jesus é apresentado como cônscio de pré-existência pessoal (particular­mente Jo 8.58), e a fala de ascender é posta em contraposição com a fala de uma descida anterior (Jo 3.13; 6.33,38,41s, 50s, 58, 62). Mesmo aqui (como Paulo), Jesus deve ser considerado, mais precisamente, como o aquele homem que o Logos pré-existente se tornou (Jo 1.14), ou seja, o homem capaz de expressar Deus ele forma mais clara que quaisquer dos atos prévios de Deus (Jo 1.18); e a glória divina que era discernível aos olhos da fé no Jesus terreno (Jo 1.14) é pré-eminentemente a glorifi­cação da morte-ressurreição-ascensão (Jo 7.39; 12.16, 23; 17.1, 5). Além disso, o momento soteriológico permanece firmemente centrado sobre esse clímax da salvação para o ministério de Jesus; pois a carne que o Logos se tornou (Jo 1.14) é de nenhum proveito (6.63; cf. 3.6); é somen­te o Jesus entregue a morte, levantado sobre cruz e na ressurreição mediante os quais se torna a fonte do Espírito doador da vida, da vida para o mundo (Jo 3.13-15; 6.51s; 62s; 7.38s; 19.30, 34; 20.22).

Resumindo, quando o séc. I está perto de terminar parece estarmos um passo mais longe de uma cristologia centrada na encarnação. Em João o momento soteriológico decisivo ainda é aquele da morte-ressurreição- ascensão. Mas o momento cristológico se divide entre a descida de um Logos pré-existente na encarnação e a subida para onde estava pre­viamente por ter contraposto a elevação na glorificação e exaltação da cruz. Isso ainda é um clamor distante da idéia de redenção por meio da encarnação, tal como encontramos mais tarde particularmente em

1 J . K n o x avalia a cristologia de Hebreus como "uma estreita aproximação de um puro kenoticismo" (Humanity, p. 43); mas ele não demonstrou que o pensamen­to de uma pré-existência pessoal do Filho está presente em Hebreus, e mesmo se pode ser arrazoada em Hb 7.3 e 10.5 é, dificilmente, tão forte ou tão persistente como a linguagem adocionista (ver abaixo pp. 389ss).

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Gregório de Nissa34, em que, todavia, muito da morte e ressurreição de Cristo são acentuadas, o momento cristológico e soteriológico decisivo são focados na encarnação. Mas também é significativamente diferen­te da cristologia aproximadamente 40 ou 50 anos antes com seu foco prospectivo sobre o Jesus ressurreto agora se torna o Messias, o Filho de Deus e Senhor e logo retornará.

3. Podemos simplesmente demonstrar a diversidade da cristologia do séc. I de outro ângulo de um modo mais resumido. O desenvolvi­mento que traçamos da cristologia no séc. I (cap. III e acima §§51.1, 2) está refletido nas diversas avaliações dos diferentes estágios do "evento Cristo" que encontramos no NT. Assim, quase nada é feito do ministé­rio de Jesus nos sermões de Atos e em Paulo, enquanto certos elemen­tos dentro do cristianismo helenístico parecem dar atenção para Jesus como o grande operador de milagres (a assim chamada de cristologia do homem divino), e há uma vertente de imitatio Christi perpassan­do muito do NT que o Protestantismo Liberal foi capaz de elaborar com efeito considerável, ainda que com menos justificação (p.ex. Mc 8.34; Lc 9.57s.; Jo 13.13-16; ICor 11.1; Hb 12.1s.; lPd 2.21). Quando se considera a morte de Jesus: o próprio Jesus a considerou como o princípio dos infortúnios messiânicos que conduziriam ao escaton, o reinado final de Deus; as igrejas primitivas e/ou Lucas aparentemen­te entenderam pouco disso como um fator soteriológico; enquanto que Paulo, em particular, desenvolveu uma teologia do sofrimento e morte de Cristo, provavelmente em parte, no mínimo, em resposta a um "evangelho" de Cristo o Filho de Deus operador de milagres (um tanto semelhante a Marcos e João).

Idéias populares da ressurreição de Jesus são largamente determi­nadas pela apresentação de Lucas em Lucas 24 e Atos 1. Mas a ressur­reição era de fato somente uma maneira de falar a respeito do que acon­teceu a Jesus depois de sua morte, somente um modo de interpretar a experiência pós-pascal de Jesus, que eles tiveram. O relato do sepulcro

34 Gregório de Nissa, contra Eunomium, 5.5, 12.1; oratio catechetica, 26 (ET in H .

B e t t e n s o n , "The Later Christian Fathers, Oxford University Press, 1970, pp. 137, 142-5). Cf. Leo's fifth Christimas sermon (in J . P. J o s s u a , Le salut incarnation ou mystère pascal, Paris 1968, p. 363 - Devo essas referências ao meu colega S. G. H a l l ) ; cf. também H a r n a c k ' s comment on Athanasius (History o f Dogma, 1984, ET W il l ia m s & Norgate 1897, III, pp. 292s!).

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vazio de Marcos, possivelmente, tenha sido interpretado em termos de um traslado de Jesus da terra ao céu (como aqueles de Enoque e Elias). Em outro lugar no NT, a ressurreição, exaltação e ascensão são todas formas de expressão equivalentes (Hebreus nunca fala realmente da ressurreição de Jesus como tal - o mais próximo disso é Hb 13.20); enquanto Lucas prevê um processo em dois estágios com a ressurrei­ção claramente distinta da ascensão. Similarmente as aparições da res­surreição são diferentemente interpretadas - por Paulo em termos de um corpo espiritual procedente do céu, por Lucas particularmente em termos mais físicos e terrenos (Lc 24.39).

Qual é o papel atual de Jesus agora que ele foi levantado/exaltado? No cristianismo primitivo, na tradição sinótica e em Atos, dificilmente, qualquer papel é atribuído ao Cristo exaltado. Enquanto Hebreus, pre­cisamente, foca sua atenção nesse ponto - sobre o papel contínuo de Jesus como sumo sacerdote intercedendo em nosso favor na presença imediata de Deus (cf. Rm 8.34; ljo 2.1). Em Paulo, há uma estranha ambivalência visto que ele fala do Senhor exaltado tanto como um ser exaltado no céu (p.ex. Rm 8.34; ICor 15.25; F1 2.9-11), como o Espírito que dá vida ao homem na terra (ICor 15.45), e como a comunidade de crentes (ICor 12.12). De fato, não fica claro como Paulo concebeu o Cristo exaltado e como concebia o papel atual de Cristo em relação aos crentes (em Cristo).

Quanto à parusia, a dura realidade é que a iminente esperança da parusia (de Jesus e) dos primeiros cristãos não se materializava - Jesus não retornou em glória dentro do período de sua própria geração35. E a maioria dos estudiosos do NT reconhece prontamente os problemas que a demora da parusia causava particularmente a Lucas, João e 2 Pe­dro (ver abaixo §§71.2-4). Com certeza, é possível escapar do problema cristológico de Jesus estar equivocado acerca da parusia iminente, ao

1 Cf. o julgamento picante de H. S. R e i m a r u s : "Bem, se os apóstolos naquele tem­po, já diziam que seria em torno de dezessete, dezoito, ou várias centenas de anos antes de Cristo retornar nas nuvens do céu e iniciar seu reinado, a pessoas simplesmente riam deles, e naturalmente teriam pensado que ao situar o cum­primento da sua promessa para além de suas vida de modo a alcançar muitos homens e muitas gerações, estavam somente escondendo a sua própria desgra­ça e a de seu mestre... Se Cristo não retorna para recompensar os fiéis em seu reino, então nossa crença é tão inútil como também é falsa" (Fragments, 1778, org., C. H. T a l b e r t , SCM Press 1971, pp. 215,228).

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argumentar que a esperança original não era da parusia em absoluto: era de uma vinda (parusia) também, mas de uma vinda nas nuvens dos céus do Ancião de Dias (Dn 7.13) antes que mais uma vinda a ter­ra; porque essa era a esperança de exaltação antes que de retorno (Mc 14.62)36. Mas se esse fosse o caso (pessoalmente não estou convencido) então a própria esperança de parusia é um desenvolvimento secundá­rio e temos mais um importante elemento da diversidade.

O que há finalmente de pré-existência e deidade? Não há boa evi­dência de que Jesus se considerasse um ser pré-existente37. Certamente a cristologia antiga parece ter sido distintamente de caráter adocionista (ainda que a descrição seja, de algum modo anacrônica); com efeito, eu acharia muito difícil de escapar dessa conclusão (acima pp. 85s, 114s, 126s, 335s, 342s).. Provavelmente, só quando a tradição de Jesus foi reu­nida como um tipo de vida de Jesus que a ênfase no uso apologético do SI 2.7 oscilou da ressurreição - Jesus para a sua experiência no Jordão. O pensamento de pré-existência primeiramente surgiu de uma cristo­logia da Sabedoria, na qual Jesus era entendido como a incorporação da expressão mais plena da Sabedoria. Inicialmente, a linguagem da pré-existência, provavelmente, referia-se somente a Sabedoria como tal e o homem Jesus era o que a Sabedoria se tornou. Mas no Quarto Evan­gelho o conceito de pré-existência pessoal de Jesus começa a emergir. Como isso se encaixa com a idéia de um nascimento virginal como em Mateus (e Lucas) não está claro; ainda que os conceitos de encarnação e nascimento virginal não sejam necessariamente incompatíveis38. Seja como for, não é um resumo injusto dizer que enquanto para Marcos o princípio do evento Cristo é o batismo de João (Mc 1.1), para Mateus e Lucas é a concepção de Jesus por Maria, enquanto João o situa antes da própria criação (Jo l.ls.).

36 T. F. G l a s s o n , The Second Advent, Epworth 1945, pp. 64s; R o b in s o n , Jesus and his Corning, pp. 43-58. Ver também a nota 22 acima.

37 A evidência revisada acima (§§6.2, 18.4) é decisiva contra a visão de que João estivesse tentando apresentar Jesus "como realmente ele era" em tais passagens como Jo 8.58 e 10.30.

38 Bem mais difícil é a questão de se os conceitos de encarnação e nascimento virginal são compatíveis com a completa humanidade de Jesus. Cf. p.ex., B r o w n , Virginal Conception, pp. 45-47; K n o x , Humanity, pp. 61s, 68,73, etc. Na revisão de Unidade e Diversidade no NT estou consciente de que muito pouco é dito a respeito do nasci­mento virginal. Mas veja R. E. B r o w n , The Êirth of the Messiah, Chapman 1977.

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Similarmente o pensamento da deidade de Jesus parece ser uma chegada relativamente tardia no estágio do séc. I. Paulo ainda não en­tende o Cristo ressurreto como o objeto de adoração: ele é o tema da adoração, aquele por quem é dado o louvor, aquele cuja presença res- surreta e mediante o Espírito se constitui a comunidade adoradora, aquele mediante quem a oração e quem ora a Deus (Rm 1.8; 7.25; 2Cor 1.20; Cl 3.17), mas não o objeto de adoração ou oração. Assim também sua reticência acerca de chamar Jesus de Deus. Até mesmo o título Se­nhor se torna uma maneira de distinguir Jesus de Deus antes que de identificá-lo com Deus (Rm 15.6; ICor 8.6; 15.24-28; 2Cor 1.3; 11.31; Ef 1.3,17; F1 2.11; Cl 1.3). Paulo era e permanecia um monoteísta (ver acima pp. 129s). Essa reticência em chamar Jesus de Deus realmente só aconteceria com as Pastorais já para final do séc. I (Tt 2.13) e novamen­te com o Quarto Evangelho (Jo 1.1, 18; 20.28).39

Em suma, "o Cristo kerygmático” não é nenhuma formulação única ou simples, mas uma diversidade razoavelmente grande de formulações que abraçam um espectro muito amplo de entendimentos diferentes do "evento Cristo", que nem sempre são inteiramente compatíveis umas com as outras, e que mudam e se desenvolvem conforme o séc. I avança.

§ 52. CONCLUSÕES

1. Diversidade. Depois do catálogo esboçado acima (§51.3) pode-se estar tentado a perguntar, "A cristologia real conseguirá se sustentar!" O fato é que não havia uma única cristologia no cristianismo do séc. I, mas uma diversidade de cristologias. Não há somente uma única cristologia que possamos indicar e dizer: "Esta é a visão de Cristo que as igre­jas do séc. I reconheciam como ortodoxa." É claro que há formulações que Paulo e os Escritores joaninos rejeitam totalmente (2Cor 11.4; ljo 4.2s. - ver mais abaixo §§62.3, 64.3), mas nenhuma única ortodoxia, e certamente nenhuma única ortodoxia abrangente. Com efeito, o que muitos cristãos do passado e do presente tem considerado como cris­tologia ortodoxa pode ser representado (não totalmente injusto) como um amálgama de diferentes elementos tomados de diferentes partes

39 Possivelmente tão cedo como Rm 9.5 - mas somente se isso for um exemplo isolado. Ver meu Romans, pp. 528-9.

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do cristianismo do séc. I - pré-existência pessoal de João, nascimento virginal de Mateus, o operador de milagres da por assim dizer cristo­logia do homem divino predominante entre alguns cristãos helenísticos, sua morte como expiação em Paulo, o caráter de sua ressurreição em Lucas, seu papel atual em Hebreus, e a esperança de sua parusia das décadas mais antigas. Don C upitt poderia intitular seu ensaio de "Um Jesus, muitos Cristos?"40 - apesar de que seria mais acurado falar de "um Jesus, muitas cristologias".

2. Unidade. Dentro dessa diversidade, contudo, um elemento unificador é regularmente discernível: quer dizer, a afirmação da iden­tidade do homem Jesus com o Senhor ressurreto, a convicção de que a realidade celestial conhecida no kerygma e nas Escrituras, na comuni­dade, adoração e experiência religiosa geralmente é a mesma e Jesus é o mesmo de que a tradição de Jesus fala. De modo que para Paulo, o Ressurreto é precisamente o Crucificado, o último Adão que parti­lhou a materialidade do primeiro Adão; e o Espírito é precisamente o Espírito de Jesus que capacita o crente a ecoar a oração do Jesus terreno - " ‘Abba Pai". Para Marcos o evangelho é o do Filho de Deus, mas também do Filho do Homem sofredor. Em Lucas a unidade é menos clara, mas também certamente deseja reunir em um o homem Jesus e Jesus o Senhor, pois ele mesmo chama o Jesus de suas nar­rativas de "Senhor" (p.ex. Lc 7.19; 10.1) e, evidentemente, considera seu segundo volume como complementar ao primeiro (At l.ls .) .41 A mesma consciência de que Jesus de Nazaré é a presença celestial na adoração procede de Mateus, particularmente em 11.28-30 e 18.20, que, provavelmente, são palavras do Cristo exaltado, mas atribuídas sem senso de inconsistência ao Jesus terreno (ver acima p. 156). Em Hebreus o ponto-chave de seu argumento é que Jesus é agora sumo sacerdote no santuário celeste, somente porque ele era e é humano; somente porque ele conhece as fraquezas humanas a partir do inte­rior, somente porque ele se fez perfeito mediante o sofrimento, ele é qua­lificado como sacerdote, podendo servir como sacerdote (Hb 2.6-18;

40 D. C u p i t t , Christ Faith and History: Cambridge Studies in Christology, org., S . W. S y k e s & J. P. C l a y t o n , Cambridge University Press 1972, pp. 131-44.

41 Note p.ex. os paralelos deliberados entre o Evangelho e Atos listados em G. S t ã h l i n , Die Apostlegeschichte, NTD, 5,1962, pp. 13s.

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4.14-5.10). Quando 1 Pedro fala àqueles que enfrentavam a persegui­ção é o mesmo Jesus que fornece tanto um exemplo por sua própria paciência no sofrimento (lPd 2.21-23; 4.1, 13s; 5.1) e a esperança da glória vindoura por sua ressurreição (lPd 1.7,11, 21; 4.13; 5.1, 4, 10). No Apocalipse a imagem central para Cristo é a de um cordeiro: "Em pé como que imolado" (Ap 5.6; cf. 5.9); o Cristo glorificado é preci­samente o cordeiro que foi imolado, e que ainda sustenta a marca da ferida fatal (ver também abaixo pp. 483s).

Acima de tudo está João. O gênio inspirado de João é mais clara­mente visto na maneira que ele entrelaça em uma só duas vertentes da afirmação cristológica básica - aquele que era, é - ou melhor, aquele que é, era. Assim, ele apresenta o Jesus terreno já em termos de sua glória exaltada. Assim no grande discurso do pão da vida (Jo 6), o pão da vida é precisamente o encarnado, mas o encarnado que morreu, foi exaltado e agora ministra aos seus mediante o Espírito (Jo 6.51, 62s.). Assim, o Evangelho todo procura apresentar o clímax do ministério de Jesus precisamente como uma unidade da morte e exaltação - uma dramática ascendência do pêndulo levantando Jesus na cruz em as­censão e glorificação (ver acima p. 157 e nota 25). Então, o Espírito é precisamente o outro Paráclito, o alter ego do Logos encarnado, cuja vinda é o retorno de Jesus para habitar com os seus. E, assim, a vida futura, juízo, ressurreição já são antecipados no aqui e agora de Cristo (Jo 3.18s; 5.24; 11.25s.) - passado, presente e futuro amarrados em uma gloriosa unidade.

Precisamos acrescentar, é claro, que desde muito cedo os crentes achavam necessário falar de Cristo na linguagem de pré-existência. A realidade de Cristo não seria compreendida adequadamente ao falar simplesmente da ressurreição e exaltação. O próprio Jesus deveria ser entendido não simplesmente como o proclamador escatológico do rei­nado de Deus e como aquele mediante o qual os homens vêm agora a Deus, mas como a própria expressão da revelação de Deus e do propó­sito redentor, como a incorporação da sabedoria divina que sempre foi manifesta em todas as obras de Deus. E essa convicção se desenvolveu por meio do uso da linguagem de sabedoria mais tradicional em Paulo e Hebreus para a corajosa apresentação de João de Jesus como o Lo­gos encarnado consciente de uma pré-existência pessoal. Daí por dian­te, se é possível resumir em poucas palavras, o momento cristológico começa a se centrar mais e mais sobre a encarnação, enquanto o

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momento escatológico oscilava entre a encarnação e expiação. Mas, por fim, tal reflexão provém de uma percepção que o homem que é então exaltado deve, ao mesmo tempo, ter sido mais que um homem des­de o princípio - não somente representando, personificando o homem (Adão, homem do SI 8), mas de alguma forma representando Deus, per­sonificando o poder de Deus e a expiação. Mas no fim tudo provém da afirmação primária de que Jesus o homem foi exaltado após a morte.

3. Podemos afirmar também uma unidade entre o Jesus histórico e o Cristo kerygmático. Quer dizer, a identidade entre o homem Jesus e o Cristo proclamado une não somente os diversos kerygmatas em um, mas também une a proclamação pré-pascal de Jesus com o kerygma pós-pascal dos primeiros cristãos. Duas firmes vertentes de continuidade ligam o antes e o depois da Páscoa em uma. (1) Há uma estreita similaridade entre a relação com Deus em que Jesus procurava trazer seus discípulos e aquilo que o kerygma dos crentes primitivos procurava realizar (o relacionamento com o ‘Abba, mediante o poder do Espírito escatológi­co). Não só isso, mas de ambos os lados da Páscoa se conectam com o reconhecimento de que esse relacionamento é dependente de Jesus - uma filiação a que o próprio Jesus desejou partilhar com seus discípulos (Lc11.2), e que os cristãos primitivos reconheciam como um partilhar da própria filiação de Jesus (Rm 8.15-17); o Espírito/poder que os primei­ros cristãos consideravam com o peculiarmente seu (Espírito de Jesus) já estava desse modo, na própria mente de Jesus (Mt 12.28). (2) Há um anseio futuro no próprio ministério de Jesus que alcança a Páscoa, assim como também há um anseio na proclamação dos primeiros cris­tãos que retrocede até a Páscoa, e esses juntos fornecem um grampo duplo que mantém unidos os dois firmemente. Em outras palavras, Jesus olhava adiante para uma vindicação futura que não estava muito longe da concepção da vindicação de que os primeiros cristãos acre­ditavam que ele havia recebido mediante a ressurreição; e os cristãos do séc. I olhavam para trás para o Jesus terreno e para o caráter de sua vida e ministério e contavam que, juntamente com a proclamação de sua morte e ressurreição, como os principais critérios pelos quais tes­tar as reivindicações da nova relação e de seu próprio entendimento e prática da "fé do próprio Cristo" (§48.3). Resumindo, a identidade do Jesus histórico com o Cristo kerygmático é a base única e elo de unidade que mantém a multiforme diversidade do cristianismo do séc. I; isto é, a conti­

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nuidade entre a mensagem de Jesus e a proclamação pós-pascal, e a concordância dos diferentes kerygmatas ao afirmar que Jesus de Nazaré e o Cristo exaltado são uma só e a mesma pessoa, é o núcleo unificador ao redor do qual a diversidade do cristianismo do NT possui coerên­cia. Ou posto de uma maneira que evoca as mais antigas discussões: até no próprio pensamento e ministério de Jesus ele, simplesmente, nunca se colocou como um homem diante de Deus; e na cristologia pós-pascal ele, simplesmente, nunca se colocou como Deus diante do homem. Havia um elemento de diversidade divina mesmo em seu próprio ministério, assim como o Cristo exaltado nunca cessou de ser Jesus de Nazaré para qualquer escritor do NT. Em ambos os lados da Páscoa [pré e pós] elementos do divino e do humano estão firmemente reunidos - em diferentes maneiras e com variantes "pesagens", mas sempre juntos.

4. É importante reafirmar o ponto que acentuamos no fim do ca­pítulo II (§7.1) - que esse núcleo unificador é uma abstração. Quando olha­mos para quaisquer das áreas examinadas nos capítulos precedentes, o particular auto-entendimento que se torna aparente na proclamação, confissão, apologética, adoração, etc., é sempre mais completo do que o núcleo unificador em si. Os teólogos principais do NT (Paulo e a escola joanina mais explicitamente) têm autoconsciência a respeito do núcleo unificador básico para reverter a ele quando um critério para a fé e conduta é requerido. Mas quando eles tentam colocar o cristia­nismo em palavras, em algum ponto particular, é sempre uma formu­lação mais completa que usam - inevitavelmente fazem isso se eles estiverem a falar claramente e significativamente para suas próprias situações e para seus leitores potenciais. Mas isso também significa que assim que possível nós nos movemos fora do centro unificador, da própria expressão da fé cristã, culto e vida múltipla e diversificada. De fato, a diversidade é muito mais obviamente um traço dos começos do cristianismo do que da unidade. Além do mais, muitas das dife­renças que se tornam imediatamente aparentes são de fato integran­tes dessas diferentes expressões em si. A diversidade é tão integrante ao cristianismo do séc. Icomo o é a unidade. Resumindo, não há nem um único cristianismo estritamente definido ou cristologia definida no NT; e se reco­nhecermos a vertente cristológica unificadora no cristianismo do séc. I, também, precisamos reconhecer as vertentes diversas e diferentes

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que correm em e com ela em diferentes pontos para formar os diversos padrões que formam o cristianismo do séc. I. Precisamos explorar as ramificações e repercussões dessa conclusão mais plenamente em nos­so capítulo final abaixo.

5. Das três principais questões postas no penúltimo parágrafo do §49 acima tratamos somente com as duas primeiras com mais detalhes. Podemos fazer somente algumas considerações sobre a terceira, visto que ela suscita temas que vão além do escopo do presente estudo. Mas claramente há um problema de dimensões consideráveis aqui: garan­tidas a unidade e a diversidade que descobrimos na cristologia do NT, o que diremos da cristologia tradicional? Como correlacionar as duas? Quão bem enraizadas no NT está a segunda? O problema talvez possa ser ilustrado por recordar como a confissão original do Concílio Mundial de Igrejas de "nosso Senhor Jesus Cristo como Deus e Salvador" foi ex­pandido pela Assembléia em Nova Delhi em 1961, pela adição da frase "de acordo com as Escrituras e por uma fórmula explicitamente Trini- tária. Muito propriamente as Escrituras são aqui consideradas como as que fornecescem aos cristãos a definição normativa da fé cristã (ver mais abaixo cap. XV). Mas o que dizer a respeito da diversidade da cris­tologia do NT? Se é o caso de que o título Deus somente começou a ser atribuído a Jesus nos últimos escritos do NT? Um entendimento Trini- tário plenamente inspirado de Deus era a única interpretação possível de uma linguagem muito mais ambivalente em Paulo, João, etc.? Dos escritos do NT, que tratam disso, somente as Pastorais e 2 Pedro mos­tram muito entusiasmo para o título "Salvador"?42 Seria esse o caso de aquela mudança do momento cristológico da ressurreição-exalta- ção para a encarnação, uma mudança que tornou possível o pleno flo­rescimento da cristologia do Logos e da cristologia Alexandrina nos séculos subseqüentes, somente estar começando a acontecer no último evangelho e nos últimos escritos do NT? Então, certamente a cristo­logia tradicional pode reivindicar algum tipo de apoio no NT - pelo menos, uma das diversas vertentes que se reuniram em torno de uma vertente unificadora fornece um parâmetro que conduz adiante para as formulações dos séculos posteriores. Mas o que dizer das outras ver­tentes diversas? O dizer do "adocionismo" do cristianismo primitivo?

42 Para as possíveis razões veja F o e r s t e r , “>Soter", TDNT, VII, pp. 1020s.

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O que dizer da reticência de Paulo em orar a Jesus e de sua reserva em chamar Jesus de "Deus"? O que dizer do significado central e cristo­lógico e soteriológico da morte e ressurreição de Jesus? - muito mais característico dos escritores do NT do que qualquer idéia da encarna­ção da divindade pré-existente? O que dizer das reivindicações mais limitadas envolvidas na cristologia primitiva da Sabedoria e do fato de que Jesus parece ter pensado de si mesmo como o mensageiro de Sa­bedoria? O que dizer de fato das limitações do auto-entendimento do próprio Jesus histórico? Jesus era muito mais do que ele próprio per­cebia. Resumindo, quão típico do cristianismo do séc. I é a atual con­fissão de Cristo do Concílio Mundial? Quão pode, verdadeiramente, ela reivindicar ser "de acordo com as Escrituras? Haveria espaço para uma maior diversidade de expressões ou, no mínimo, para uma maior hesitação ou incerteza do que tais firmes asserções podem permitir?43 É claro que podemos muito bem desejar argumentar que os primeiros Concílios Ecumênicos reconheceram qual vertente de cristologia do NT era a única que realmente interessava - que fora da diversas idéias em parte formadas e as formulações de fé do cristianismo do séc. I eles assimilaram e elaboraram aquela que tinha mais certamente percebido a realidade que era (e é) Cristo. Mas, então, isso não é simplesmente uma cristologia "de acordo com as Escrituras", mas de acordo com uma interpretação particular das Escrituras - uma interpretação que veio a dominar e a triunfar sobre outras interpretações que também podiam reivindicar serem interpretações justificáveis das Escrituras, mas que a ortodoxia vitoriosa rotulava como heresias. Um judeu poderia, é claro, fazer a mesma crítica da interpretação do NT das escrituras judaicas. Mas isso suscita questões cruciais acerca do lócus e norma de revelação e autoridade - algumas das quais se tornarão mais claras no curso da Parte II e ao que precisamos retornar no capítulo XV.44

43 Cf. os comentários de K n o x e K . R a h n e r citados por K n o x , Humanity, pp. 56s.44 Quando eu retornei a essas questões e submeti os dados do NT a um escrutínio

muito mais cuidadoso, eu estava interessado em encontrar por que meu respei­to para com as formulações Trinitárias subseqüentes estava consideravelmente mais fortalecido - até certo ponto, para minha surpresa (ver Christology, pp. 262- 3, 266-8, e o Novo Prefácio à segunda edição pp. 37ss). Mas visto que uma larga parte da tarefa deste presente livro é estimular o questionamento e provocar a reflexão teológica, eu decidi deixar as questões do §52.5 como originalmente colocadas e imutáveis para a segunda edição.

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Segunda Parte

DIVERSIDADE NA UNIDADE?

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C a p í t u l o XI

CRISTIANISMO JUDAICO

§ 53. INTRODUÇÃO

Após descobrirmos a unidade dentro da diversidade do cristia­nismo do séc. I podemos continuar, então, a examinar a gama de di­versidade em torno dessa unidade. Que variedade possuía exatamente a diversidade do cristianismo do séc. I? Descobrimos o centro do círculo do cristianismo do séc. I. Agora precisamos inquirir se havia também uma circunferência em torno desse círculo - e se isso era claramente demar­cado ou abertamente discernível, ou talvez somente tenha começado a emergir na segunda, terceira ou nas gerações subseqüentes do cris­tianismo.

Como poderemos rastrear essa segunda importante linha de in­vestigação? Talvez seja mais simples tomar um guia dos desenvolvi­mentos tardios. Pois sabemos que da segunda metade do séc. II em diante fronteiras claras seriam desenhadas, demarcando a Grande Igreja emergente diante de seus competidores - particularmente as várias seitas cristãs judaicas, as diferentes variedades de cristianismo gnóstico e marcionita, e o apocalipsismo entusiástico do montanismo. Podemos colocar a questão do seguinte modo: fronteiras similares ou equivalentes já haviam sido desenhadas dentro do período do NT? Ou alguns dos traços, algumas das ênfases dentro do cristianismo do séc. I recaem nas áreas em áreas que mais tarde seriam excluídas pela ortodoxia em desenvolvimento? Há elementos nos escritos do NT que em si mesmos dão mais liberdade de ação ao cristão judaico tardio, gnóstico e seitas apocalípticas que a ortodoxia no caso permitiria? Qual o alcance da diversidade do cristianismo do séc. I? Onde a diversidade aceitável entraria em choque com a diversidade inaceitável?

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Os desenvolvimentos nas décadas finais do séc. II sugerem assim quatro áreas principais em que podemos esperar encontrar respostas para essas questões. Na falta de melhores títulos eu nomearei esses ca­pítulos, simplesmente, de cristianismo judaico, cristianismo helenísti­co, cristianismo apocalíptico, e catolicismo primitivo. Nenhum desses é muito satisfatório, além de que são causadores de discussão, de modo que eu talvez acentue uma vez mais que (1) eles não denotam segmentos mutuamente exclusivos do cristianismo do séc. I - antes, eles denotam dimensões e ênfases dentro do cristianismo do séc. I que se sobrepõem e se interagem em alguma medida, mas que, todavia, podem ser tratados em uma análise separada sem recorrer a super-simplificação inaceitável;(2) eles não pressupõem qualquer relação particular ou continuidade entre essas dimensões e ênfases do cristianismo do séc. I e as seitas e "heresias" mais claramente definidas dos sécs. II e III em diante.

A dificuldade de nomenclatura é salientada pela frase "cristianis­mo judaico". "Cristão judaico" pode ser usado muito apropriadamente para descrever todos os escritos do NT, visto que todos são, em maior ou menor grau, dependentes da expressiva herança judaica (ver acima p. 87s); ou podem ser restritos a primeira geração de cristãos que permane­ceram em Jerusalém (e Palestina), particularmente aqueles que, conforme Eusébio (HE, III.5.3), fugiram de Jerusalém durante os anos 60 cruzando o Jordão para a Peréia (e seus sucessores); ou de novo podem ser confinados a quatro ou ainda mais distinta seitas cristãs judaicas distintas dos sécs. II e III que foram alvos de ataques por diversos Pais antigos, como heréticas (ver abaixo p. 362, nota 6).1 No presente estudo eu uso o título de modo coletivo cobrindo particularmente os dois últimos sentidos mais restritos, mas mais para provocar a questão de qual era a sua relação uns com os outros, e não para especificar qualquer relação particular.

Similarmente "cristianismo helenístico" abrangeu todo o cristia­nismo do séc. I visto que mais ou menos toda a Palestina e toda a vida e pensamento judaicos foram influenciados pelo helenismo em maior ou menor grau2, de modo que, por exemplo, Mateus é descrito

1 Cf. J. D a n i è l o u , The Theology of Jewish Christinity, 1958, ET Darton, Longman& Todd 1964, pp. 7ss; S. K. R ie g e l , "Jewish Christianity: Definitions and Termi­nology", NTS, 2 4 ,1977-78, pp. 410-5.

2 "A partir da metade do séc. Ill dC todo o judaísmo precisa ser realmente designa­do ‘judaismo helenístico' em sentido estrito" (M. H e n g e l , Judaism and Hellenism, ET SCM Press 1974, vol. I, p. 104.) ’

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mais precisamente como um documento cristão judaico helenístico do que, simplesmente, como um documento cristão judaico. Mas aqui teremos de usar "cristianismo helenístico" em um sentido mais restrito para denotar cristianismo quando se disseminou para além da Palestina e do judaísmo, o cristianismo da missão gentílica, o cris­tianismo como teve crescente contato com as especulações filosóficas, os cultos de mistérios e as tendências gnósticas do amplo sincretismo oriental-helenístico do Mediterrâneo Oriental (incluindo influências do judaísmo), visto que os títulos taquigráficos como "cristianismo gentílico" e "cristianismo gnóstico" são muito estreitos e até mais en­ganosos.

Os dois últimos títulos são menos polêmicos - "cristianismo apo­calíptico" denotando a influência do pensamento apocalíptico judaico dentro do cristianismo do séc. I e provocando as questões: Quão essen­cial era o apocalipsismo do cristianismo primitivo? Quão distintivo era o primitivo cristianismo apocalíptico escatológico? Seria o suficiente guardar-se contra o fanatismo que mais tarde conduziria o entusias­mo apocalíptico aos olhos da ortodoxia? O catolicismo antigo volta a questionar e pergunta se e em que medida as balizas da emergente ortodoxia católica já estão presentes no NT. Quando os baluartes da ortodoxia tardia começam a aparecer?

Esses quatro títulos, certamente, não significam ser uma descri­ção definitiva e exaustiva do fenômeno total do cristianismo do séc. I. Outros podem ser cunhados, outras ênfases salientadas. Mas nossa tarefa, aqui, está limitada a uma investigação da diversidade do cris­tianismo primitivo ao focar a atenção sobre aquelas áreas e movimen­tos, dentro do cristianismo primitivo, em que essa diversidade veio à expressão mais clara e onde temos muitas esperanças de descobrir em que a diversidade aceitável se chocava com a diversidade inacei­tável.

Começamos este capítulo comparando a forma primitiva de cristianismo com o cristianismo judaico que veio a ser considera­do como herético nos sécs. II e III, para investigar a similaridade e possível continuidade entre os dois. Então voltaremos ao perío­do interveniente para encontrar, se possível, onde a diversidade do cristianismo judaico dentro do NT difere da diversidade inaceitável dos ebionitas.

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§ 54. QUAO "ORTODOXO" ERA O CRISTIANISMO PALESTINENSE?

1. Os primeiros cristãos eram judeus. No relato da recepção das na­cionalidades Lucas diz que todos eram judeus e prosélitos (At 2.10). E mesmo que eles acreditassem que Jesus era o Messias e que havia res­suscitado dos mortos, isso não alterava sua posição ou ponto de vista, como judeus embora fosse certo que sua crença no Messias crucificado e em uma ressurreição já começada ou passada, seria considerada excên­trica pela maioria de outros judeus (cf. ICor 1.23). Eles se constituíam em um pequeno grupo messiânico secreto ou seita escatológica dentro do judaísmo, mas continuavam a pensar e agir como judeus em todos os assuntos mais característicos do judaísmo. Isso pode ser demonstra­do com suficiente probabilidade.

(a) Eles evidentemente se consideravam como o clímax do juda­ísmo, o que Paulo mais tarde chamou de "o Israel de Deus" (G1 6.16): assim os Doze, provavelmente constituíam o ponto focal da comunida­de primitiva em seu papel de representantes do Israel escatológico (Mt 19.28/Lc 22.29s.; At 1.21s.; ICor 15.5; ver acima p. 196);3 assim também a função primitiva da ceia do Senhor, provavelmente, era de uma refei­ção da nova aliança (ver acima §40.4, e mais abaixo pp. 470s).

(b) Eles continuaram, aparentemente, a observar as leis sem ques­tionar, sem interpretar as tradições das palavras e ações de Jesus de um modo hostil à Lei. Daí os fariseus pareciam ver neles pouco ou nada da ameaça que Jesus havia posto (At 5.33-39) e não poucos se torna­ram membros da seita de Jesus enquanto ainda permaneciam fariseus (At 15.5; 21.20); daí também o choque do episódio de Cornélio para os crentes de Jerusalém - não havia ocorrido a eles que a fé em Jesus o Cristo poderia tornar irrelevante a lei de pureza (At 10.14, 45; 11.2s., ver acima § 16.3).

(c) Eles evidentemente continuaram a ser ligados ao Templo, as­sistindo diariamente à horas de oração (At 2.46; 3.1), reunindo-se re­gularmente ali para apoio mútuo e a fim de ensinar e evangelizar (At 5.12, 20s, 25, 42). O relato de Lucas do período primitivo na vida da nova comunidade se encerra com eles não terem saído de Jerusalém

3 Ver também C. K. B a r r e t t , "Paul and the 'Pillar' Apostles", Studia Paulina in honorem }. de Zioaan, Haarlem 1953, pp. 1-19.

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e ainda permaneciam muito centrados no Templo (At 5.42). Além do mais, o fato de Mateus 5.23s. ter sido preservado na tradição - Jesus su­gere que isso ainda possuía relevância para os primeiros cristãos - isto é, continuavam a usar e a participar dos cultos sacrificial; note a impli­cação similar de Atos 21.24 (ver também acima p. 219).

(d) Sua crença na eminente parusia de Jesus, o Filho do Homem, Messias e Senhor (ver acima pp. 112, 116,126s, 335s e abaixo pp. 470s) parece ter se situado dentro do quadro da esperança escatológica ju­daica. Isso é, provavelmente, a principal razão porque eles permane­ceram tão firmemente radicados em Jerusalém e centrados no templo, pois o templo era o ponto focal óbvio da consumação eminente, como Malaquias 3.1 claramente indicou; e a tradição da palavra misteriosa de Jesus a respeito de destruir e reconstruir o templo (Mc 14.58; 15.29; Jo 2.19 - ver acima p. 154s), certamente, testifica que a esperança de um culto renovado no templo escatológico era acalentada entre os primei­ros cristãos (ver mais abaixo p. 470s).

(e) Isso também explicaria porque havia tal ausência de preocupa­ção para com os gentios ou para uma missão fora de Jerusalém dentro da primitiva comunidade de Jerusalém. Ainda pensavam somente em termos de Israel (At 1.6, 21s; 2.39 - "isto é para todos" = judeus da Diáspora; 3.25; 5.31; cf. Mt 10.5s, 23; 15.24).4 Até aonde os gentios en­travam em seu pensamento, provavelmente, era em termos da longa esperança anelada de que na nova era os gentios seriam arrebanhados no Monte Sião (com os judeus da Diáspora) para adorar a Deus ali como prosélitos escatológicos (p.ex., SI 22.27; Is 2.2s; 56.6-8; Sf 3.9s; Zc 14.16; Tb 13.11; Test. Benj. 9.2; SI 17.33-35; Or Sib 111.702-18, 772-76)- uma perspectiva e a esperança que o próprio Jesus teria partilhado (Mt 10.5s, 23; 15.24; juntamente com Mt 8.11s./Lc 13.28s. e Mc 11.17 = Is 56.7 - uma palavra pronunciada no pátio dos gentios)5.

Resumindo, é evidente que a comunidade primitiva em nenhum sentido se sentia ser uma nova religião, distinta do judaísmo. Não havia nenhum senso de uma linha limítrofe entre ela própria e seus conci­

4 Ver também Dt 30.1-10; a 10a das 18 Bênçãos; e o material examinado por E. P. S anders, Jesus and Judaism, S C M Press 1985, particularmente pp. 79-86,96-8.

5 Tudo isso indica que a evidência de Atos é suficientemente consistente consigo mesma em nível histórico e com a evidência em outros lugares no NT para con­cluirmos que Lucas se utiliza de boa tradição histórica (ver também acima pp. 141 e 223s).

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dadãos judeus. Os crentes viam-se simplesmente, como um preenchi­mento do judaísmo, o começo do Israel escatológico. E as autoridades judaicas, evidentemente não os viam como algo diferente de si mes­mos: eles sustentavam uma ou duas crenças excêntricas (como faziam outras seitas judaicas), mas por outro lado eram totalmente judeus. Com efeito, podemos colocar o assunto até mais fortemente: já que o judaísmo sempre se preocupou mais com a ortopraxia do que com a ortodoxia (prática correta antes que crença correta) os cristãos primiti­vos não eram simplesmente judeus, mas de fato continuavam sendo judeus bem ortodoxos.

Deve-se, então, notar que esse é o grupo com o qual o próprio cris­tianismo começou. Somente sua crença em Jesus como Messias e res­suscitado, e sua crença de que os últimos dias haviam chegado marca- va-o como diferente da maioria de seus conterrâneos judeus. Nenhuma das outras grandes características que vêm à expressão em e por meio de Paulo estão presentes. Os salmos lucanos foram, provavelmente, usados desde os primeiros dias nessa comunidade, e já vimos o quanto eles são puramente cristãos (ver acima §35.1). Adicione-se a isso uma forma de cristianismo que hoje reconhecemos com parcimônia - o cris­tianismo judaico de fato, ou talvez mais precisamente, uma forma de messianismo judaico, um movimento de renovação messiânica dentro do judaísmo pré-70.

2. Agora, se mudarmos nossa visão do início do cristianismo para 150 para frente ou ainda para séc. II e além, uma vez mais se torna evidente que a situação se alterou significativamente: o cristianismo judaico, longe de ser a única forma de cristianismo, estava começando a ser classificado como não-ortodoxo e herético. Parece haver diver­sos grupos de cristãos judaicos (pelo menos quatro)6 cujas crenças os empalidecia diante da Grande Igreja emergente. Pelo menos um pre­servou o título para os cristãos primitivos - Nazarenos (cf. At 24.5) - o nome provavelmente incorporava uma reivindicação de preservar a verdadeira tradição contra o antinomismo (aos olhos cristãos judaicos)

6 A. F. J. K l i jn & G. J. R e in in k , Patristic Evidence for Jewish-Christian Sects, Leiden 1973, p. 71. Sobre o significado e diversidade do cristianismo judaico dos sécs. II e III ver G. S t r e c k e r , "On the Problem of Jewish Christianity", em B a u e r , Ortho­doxy, pp. 241-85. 1

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das comunidades cristãs de outros lugares. A seita melhor conhecida, cujo nome se tornou um tipo de estereótipo na polêmica da Grande Igreja contra a heresia cristã judaica, era a dos ebionitas7.

Três características significantes distinguem o cristianismo judai­co herético, até onde podemos chamá-lo desse modo - ainda que, é cla­ro, não devamos presumir que os diferentes grupos cristãos judaicos fossem uniformes em todos os três aspectos (ver -p.ex. abaixo pp. 386).

(a) Adesão fiel à Lei. Justino, o mártir, sabia de judeus que criam em Cristo e que guardavam a Lei sem insistir que todos os cristãos de­vessem fazer isso. Mas ele também conhecia outros que não somente guardavam a Lei, mas que também impeliam crentes gentios a guardá- la também: todo crente gentio "deve viver em todos os aspectos con­forme a Lei dada a Moisés" do contrário os crentes judeus recusarão dar a destra de companhia a eles8. Dos nazarenos Epifânio diz:

Somente nesse aspecto eles diferem dos judeus e cristãos: com os judeus não concordam por causa de sua fé em Cristo, com os cristãos porque não são habituados à Lei, à circuncisão, o sábado e outras coisas9.

Igualmente os ebionitas, de acordo com Ireneu:

Eles praticam a circuncisão, perseveram nos costum es que es­tão de acordo com a Lei e praticam o estilo de vida judaico, até mesm o adorando Jerusalém como se ela fosse a casa de Deus10.

Na visão cristã judaica que se expressa fortemente nas pseudo- Clementinas e no material subjacente conhecido como Kerygmata Pe- trou (Pregações de Pedro, c. AD 200?), Jesus era o maior dos "verdadei­ros profetas", o último na linha de sucessão que retrocede até a Adão,

7 No que se segue usarei com freqüência "ebionita", "ebionismo" para denotar as ênfases características do cristianismo judaico herético, sem esquecer ou negar por isso que a realidade era muito mais complexa.

8 Justino, Dial., 47.9 Epifânio, Pan., 29.7.5.10 Irineu, adv. haer., 1.26.2. Ver também Tertuliano, de prae.haer., 32.5; Orígenes,

hom.inGen., 111.5; comm. in Matt., XI.12; in Matt.comm.ser., 79; cont.Cels., II. 1; Epi­fânio, Pan., 30.2.2; 30.26.1-2; Epistula Petri, 2.4-5 ( H e n n e c k e , Apocrypha, III, p. 112).

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e incluindo, é claro, o mais iminente, Moisés. O verdadeiro profeta a portar a revelação divina, a saber, a Lei. Quer dizer, Jesus não desejou suprimir ou abandonar a Lei - essa foi a mudança deixada na porta de Paulo; ao contrário, Jesus avalizou a Lei, e a reformou ao conduzi-la de volta às verdadeiras idéias de Moisés.11

(b) Exaltação de Tiago em detrimento de Paulo. A exaltação de Tiago não é um traço tão proeminente como o primeiro. É mais claro na li­teratura das pseudo-Clementinas onde Tiago aparece como o líder da Igreja de Jerusalém desde o começo, "ordenado bispo pelo Senhor" (Recog., 1.43). Como para Pedro, ele e os outros apóstolos são exibidos como subordinados a Tiago e precisam dar conta de suas obras a ele (p.ex. Recog., 1.17, 72; IV.35; Hom., 1.20; XI.35). Assim as clementinas são introduzidas por uma carta pela qual Pedro se endereça a Tiago como: "O senhor e bispo da santa Igreja". Igualmente Clemente endereça sua carta a:

Tiago, o senhor e bispo dos bispos, que governa Jerusalém, a santa igreja dos Hebreus, e as igrejas em todo lugar excelentemente fun­dadas pela providência de Deus...

Jerônimo preserva um fragmento do Evangelho dos Hebreus que tem significância aqui; ele ocorre "depois do relato da ressurreição do Senhor":

Mas o Senhor após dar sua veste de linho ao servo do sacer­dote foi a Tiago e lhe apareceu (pois Tiago havia jurado que não comeria pão desde a hora em que ele bebeu o cálice do Senhor até que o visse ressurreto de entre aqueles que dorm iam )...12

Note como a Tiago é dada especial proeminência: ele estava pre­sente na última ceia; e o Jesus ressurreto apareceu primeiramente a ele (não a Pedro ou aos Doze). Esse Evangelho obviamente brota de uma comunidade onde Tiago era a figura mais expressiva da Igre­ja primitiva: por implicação, continuidade com Jesus era mediante

11 Veja p.ex., Ciem. Recog., 1.44; V.10; X.51; Clem. Horn., 11.38; 111.49-51; VIII.7. Ver mais em H. J. S c h o e p s , Theologie and Geschichte des Judenchristentums, Tübingen 1949, cap. 3; também Jewish Christianity, 1964, ET Fortress 1969, cap. 5.

12 Jerônimo, de vir.ill., II. >

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Tiago (estava presente à última ceia), e era uma autoridade garanti- dora da ressurreição (a primeira aparição foi a Tiago). Duas outras passagens talvez sejam dignas de menção. De acordo com Epifânio os ebionitas escreveram livros que foram transmitidos: "Como se fos­sem das mãos de Tiago, Mateus e de outros discípulos" - note os dois que são nomeados. Finalmente, podemos observar que Mario Vito- rino liga a origem da seita (cristã judaica) chamada de simaquianos com Tiago.13

A exaltação de Tiago é acompanhada pelo desmerecimento de Paulo. Irineu, Origines, Eusébio e Epifânio classificam a rejeição de Paulo como uma das características do ebionismo e de outras seitas cristãs judaicas.14 Nas pseudo-Clementinas Paulo é atacado violenta­mente (sob a figura de Simão, o mago). Pedro o chama de "o homem que é meu inimigo" (Epistula Petri, 2.3), e o descaso de sua reivindica­ção de ter visto o Cristo ressurreto: a experiência de Pedro em Cesaréia de Filipe (Mt 16.16s.) ensinou-o que: "Revelação é conhecimento con­quistado sem instrução, e sem aparições e sonhos".

As declarações a um amigo são feitas face a face, abertamente e não mediante adivinhas e sonhos, com o a um inimigo. Se, então, nosso Jesus apareceu a ti em um a visão, fez-se conhecido a ti, e falou a ti, foi como alguém zangado fala com um adversário (Hom., XVII.18-19)15.

Para o cristianismo judaico em geral Paulo era o arquiinimigo, res­ponsável pela rejeição da Lei pelo restante do cristianismo e ele mesmo era um apóstata da Lei.

(c) Adocionismo. Um dos traços mais freqüentes da cristologia ebio- nita é a sua afirmação de que o nascimento de Jesus foi inteiramente

13 Epifânio, Pan., 30.23.1; Mario Vitorino, in ep.ad Gal., 4.12; cf. 1.15. Ver também Epifânio, Pan., 30.2.6, e cf. 30.13.3. E note o dito formidável no Evangelho de Tomé: "Jesus lhes respondeu: 'D o lugar em que estiverdes ireis à casa de Tiago,o Justo, para o qual foram feitos o céus e a terra"' (Logion 12); veja mais em J. D o r e s s e , The Secret Books of the Egyptian Gnostics, 1958, ET Hollis & Carter 1960, p. 237.

14 Ireneu, adv.haer., 1.26.2., Origenes, cont cels., V.65. Ensébio, HE, VI, 38; Epifânio, Pan, 28.5-3; 30.16-8-9.

15 Ver também S c h o e p s , Theologie, pp. 418-34; Jewish Christianity, pp. 51-5; H e n n e c k e , II, pp. 121-23.

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natural - ele era filho natural de José e de Maria16. Nessa conexão deve- se notar que eles usavam somente o Evangelho de Mateus17, e que de acordo com Epifânio era uma versão incompleta, mutilada, faltando inteiramente os dois primeiros capítulos; isto quer dizer, os ebionitas removeram ambos os relatos da genealogia e o nascimento virginal de Jesus18.

A expressão mais clara do adocionismo ebionita é encontrada em Epifânio:

A Cristo eles cham avam de o profeta da verdade e "Cristo, o Filho de D eus" por conta de seu progresso (em virtude) e a exalta­ção que desceu sobre ele do alto... Eles o queriam somente como um profeta e hom em , Filho de Deus e Cristo e m ero hom em , como dissemos antes, que alcançou um a vida virtuosa o direito de ser cham ado Filho de Deus19.

Quer dizer, Jesus foi nomeado tanto Cristo como Filho de Deus por causa da descida do Espírito/Cristo sobre ele no Jordão e por ele ter guardado a Lei20. Isso precisa ser o significado da narrativa do ba­tismo de Jesus em Mateus pelo Evangelho dos ebionitas:

E, tendo saído da água, abriram-se os céus, e ele viu o Espírito Santo, em forma de pom ba, que desceu e entrou nele. E um a voz disse do céu: "Tu és m eu filho am ado. Em ti me com prazo". E ain­da: "Hoje te gerei"21.

Talvez também significativo, o reconhecimento de João o Batista de Jesus (Mt 3.14) tenha sido transposto para seguir a descida do Espí­rito e a voz celestial22.

16 Ver p.ex. Irineu, adv.haer., III.21.1; V.1.3; Tertuliano, âe inrg.vel., 6.1; âe car.Chr., 14; Orígenes, hom.in Luc. XVII; Epifânio, Pan., 30.2.2; 30.3.1.

17 Ireneu, adv.haer., 1.26.2; III.11.7; Epifânio, Pan., 30.3-7.18 Epifânio, Pan., 30.13.2; 30.14.3.19 Epifânio, Pan., 30.18.5-6. Cf. Justino, Dial. 48.20 Ver também Hipólito, Ref., VII.34.1-2; Eusébio, HE, III.27.1-2; Epifânio, Pan.,

30.14.4; 30.16.3; Ciem. Recog., 1.48.21 Epifânio, Pan., 30.13.7.22 Epifânio, Pan., 30.13.8. >

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Como a relação entre Cristo e Jesus, no pensamento ebionita, deve ser mais completamente entendida, não está totalmente claro. Epifânio registra a reivindicação de que Cristo não "Foi gerado por Deus o Pai, mas criado como um dos arcanjos... e que ele é Senhor sobre os an­jos...".23 Isso poderia corresponder a crença pseudo-Clementina de que o Espírito de Cristo foi manifestado em repetidas encarnações do ver­dadeiro profeta a partir de Adão em diante (ver particularmente Ciem. Hom., 111.20). Provavelmente, Jesus foi a reencarnação final desde que sua esperança estava agora centrada na segunda vinda de Jesus como o Cristo (Recog., 1.49, 69).24

3. Se estes são de fato os três principais traços do cristianismo judaico herético, então um ponto formidável imediatamente emerge: cristianismo judaico herético parece não ser muito diferente da fé dos primei­ros cristãos judeus.

(a) Notamos ainda que os primeiros cristãos permaneceram leais à Lei (acima p. 360s). Enquanto o Evangelho cristão começava se disse­minar fora da Palestina era o desejo cristão judaico sustentar sua ob­servância da circuncisão, o sábado e a lei de pureza que era a raiz de alguns problemas mais sérios de disputas (cf. At 15.1ss., Rm 14.1-5; G1 2.4s,12s, 4.10; 5.2ss; 6.12ss.; F1 3.2; Cl 2.16s, 20-22). Note também que a pregação cristã primitiva parece incluir a reivindicação de que Jesus era profeta semelhante a Moisés, cuja vinda o próprio Moisés mesmo havia prometido (Dt 18.15s.; assim At 3.22; 7.37; cf. Lc 1.68-79 - ver acima p. 230s).

(b) Quando encontramos a primeira vez Tiago, o irmão de Jesus, na literatura cristã primitiva, ele já está entre a liderança da igreja de Jerusalém (G11.19) e, muito depressa, depois ele se coloca como líder da comunidade eclipsando até mesmo Pedro em importância (G1 2.9, 12; At 12.17; 15.13ss. - ver acima p. 198s). Como por hostilidade a Pau­lo, sabemos de seu próprio relato aos gálatas o quão impopular Paulo se tornou aos crentes judeus, um antagonismo tão saliente que Lucas

23 Epifânio, Pan., 30.16.4; ver também 30.3-4. Também Tertuliano, de car. Chr., 14.5; ainda ver K l i jn & R e in in k , pp. 21s.

24 Para mais discussão ver K l i j n & R e i n i n k , pp. 33s; D a n i è l o u , Theology, cap. 4; L o n g e n e c k e r , Christology, pp. 26ss; S c h o e p s , Theologie, pp. 78-82; Jewish Christia­nity, pp. 62ss.

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faz pouca tentativa de escondê-lo (At 15.1s; 21.20s. - ver mais abaixo §56.3).

(c) A cristologia adocionista dos ebionitas também parece ter uma firme ancoragem nas tentativas cristãs primitivas de expressar a fé em Jesus o Cristo (At 2.36; 13.33; Rm 1.3s.; Hb 5.5; cf. F1 2.9-11 - ver acima pp. 119, 223s). Note também At 2.22 - "Jesus, o Nazareu, foi por Deus aprovado diante de vós com milagres, prodígios, e sinais, que Deus operou por meio dele entre vós, como bem o sabeis" (ver acima p. 85s). Pode também ser significante que os escritos mais antigos do NT (Pau­lo e Marcos) parecem não saber nada, ou no mínimo não dizer nada a respeito de qualquer tradição de nascimento virginal. Com efeito, am­bos Marcos e o kerygma dos sermões de Atos fazem o ponto de partida do evangelho acerca de Jesus o ministério de João Batista (Mc l.lss.; At 10.36s; 13.24s.) - como o Evangelho dos ebionitas.

Somente em um ponto os ebionitas do séc. II parecem se colocar aparte dos primeiros cristãos de Jerusalém, pois os ebionitas eram mar- cadamente hostis ao culto sacrificial do templo25. Isso não parece refle­tir as visões dos primeiros cristãos (ver acima p. 360), particularmente Mateus 5.23s. e Atos 3.1 ("onde a hora da oração" = a hora do sacrifício matinal), ainda que seja possível que o culto sacrificial fosse de im­portância secundária para eles (refletido talvez na ausência de lingua­gem sacrificial na compreensão primitiva da morte de Jesus - ver acima pp. 82s, 337). Para equilibrar, contudo, é mais provável que a hostili­dade ebionita date retroativamente por fim à fuga dos cristãos de Je­rusalém nos anos 60 e a crescente influência do pensamento essênio nos assentamentos transjordanianos depois da destruição do templo26. E menos provável que haja brotado da rejeição de Estêvão do templo (ver abaixo pp. 403s). Tal aversão ao culto dificilmente seria possível para um cristianismo judaico enquanto permanecesse centrado em Jerusalém27.

Resumindo, aparte das diferentes atitudes para o culto do Tem­plo, a medida de concordância entre os crentes primitivos de Jerusa­lém e os ebionitas é muito formidável. O cristianismo judaico herético dos sécs. II e III aparentemente não têm nenhum paralelo mais próximo do que o

25 Epifânio, Pan., 19.3.6; 30.16.5, 7; Recog., I.35ss.; Horn., 111.45.26 Assim D a n i è l o u , Theology, p. 64 (citando particularmente C u l l m a n n ) .

27 Contra S c h o e p s , Theologie, pp. 440-8; Jewish Christianity, pp. 42-44.

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da comunidade cristã primitiva em Jerusalém. Com efeito, com base nessa evidência, o cristianismo judaico herético de séculos mais tarde bem poderia reivindicar apropriadamente ser o herdeiro mais verdadeiro do cristianismo primitivo do que qualquer outra expressão de cristianismo.

Todavia, isso é somente um lado da moeda; deixar tal reivin­dicação sem desafio daria uma falsa impressão. Pois há duas outras diferenças importantes entre o ebionismo e o cristianismo primitivo. A primeira podemos chamar a diferença em tonalidade. A fé e prática da comunidade primitiva de Jerusalém não era alguma coisa pensada, cla­ramente cristalizada em debate; era simplesmente o primeiro estágio no desenvolvimento, de uma forma própria de messianismo judaico e da fé judaica com algumas peculiaridades, para uma fé distintamente cristã. Conseqüentemente uma importante diferença entre as duas for­mas de cristianismo judaico faz emergir: a prática e crenças da comu­nidade primitiva de Jerusalém eram marcadas pelo desenvolvimento e pela transição, não havia nada fixo e final tudo era fluído; enquanto o ebionismo é uma fé autoconsciente, sustentada em oposição a outras expressões de fé cristã (notavelmente Paulo), pensada e claramente ar­ticulada. Uma ligação certamente pode ser traçada entre as duas, uma continuidade de tradição; mas o ebionismo endureceu e petrificou uma tradição que era inicialmente fluída e em desenvolvimento.

A segunda diferença segue-se da primeira - uma diferença de tem­po. A fé e prática primitivas de Jerusalém eram a primeira tentativa de expressar a novidade da crença em Jesus como o Messias, ressurreto e que voltaria - para expressá-la, isto é, em um meio-ambiente total­mente judaico. O ebionismo surgiu em circunstâncias bem diferentes- quando o cristianismo expandido diretamente do judaísmo havia se tornado predominantemente gentílico - e, mais importante ainda, de­pois de diversos debates cruciais e de controvérsias sobre o relaciona­mento entre a nova fé e o judaísmo que permanecia na infância. Em outras palavras, podemos justificadamente concluir que o ebionismo foi rejeitado porque em uma situação em desenvolvimento, em que o cristianismo tinha que se desenvolver e mudar, o ebionismo não fez isso!

Eis então uma definição interessante de heresia. O cristianismo judaico herético podia reivindicar uma linha direta de continuidade com a forma mais primitiva de cristianismo. Podia certamente reivin­dicar estar mais de acordo com a fé mais primitivo do que a de Paulo. Se a Igreja primitiva é a norma de ortodoxia, então o ebionismo está

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bem normatizado; se primórdios significam pureza, então o ebionismo pode reivindicar ter uma fé mais pura que quaisquer outros. Mas o ebionismo foi rejeitado - Por quê? Porque sua fé não se desenvolveu quando o cristianismo se desenvolveu. Agarrou-se a uma expressão de fé cristã que era aceitável no começo do cristianismo em um contexto de judaísmo. No meio-ambiente mais amplo dos sécs. II e III, com os documentos formativos do cristianismo já escritos, o messianismo ju­daico simples não era mais adequado. Resumindo, o cristianismo judai­co herético era uma forma perigosa, um cristianismo não desenvolvido, rígido e inadequado de ser o porta-voz do evangelho em uma nova era28.

4. Até agora estudamos o cristianismo judaico de dois períodos - o cristianismo dos anos iniciais na Palestina, e as seitas cristãs judaicas dos sécs. II e III. O que dizer a respeito do período de interregno? Como o cristianismo judaico primitivo se amoldou aos desenvolvimentos que moldaram o cristianismo em uma forma não judaica durante o restan­te do séc. I? Quais foram os eventos e controvérsias que prepararam o caminho para o ebionismo? Onde e por que o messianismo judaico simples cessou de ser adequado? Se a resposta deve ser encontrada, de alguma forma, será encontrada dentro do NT. Então procederemos em varias medidas para com os escritos e passagens do NT para apreciar os três traços característicos do cristianismo judaico dos sécs. II e III.

§ 55. O CRISTIANISMO JUDAICO DENTRO DO NOVO TESTAMENTO: (1) ADESÃO À LEI

Sabemos de Gálatas e de Atos em particular que a questão de se a Lei era obrigatória a todos os crentes se tornou uma área central de controvérsia dentro do cristianismo do séc. I - Paulo sustentava contra

28 Cf. B a u e r , Orthodoxy, p. 236; H. K õ e s t e r , "The Theological Aspects of Primitive Christian Heresy", FRP, p. 83; S c h o e p s , Jewish Christianity: "a demora da paru­sia tornou possível o desenvolvimento da Igreja Católica, mas as comunidades ebionitas que se derivavam da igreja primitiva de Jerusalém não sobrevive­ram a esse fato bruto visto que haviam, deliberadamente, permanecido em um estágio mais primitivo de cristologia, um estágio baseado na expectativa do Filho do Homem" (p. 65). 1

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muitos, provavelmente a maioria dos crentes que moravam em Jeru­salém, que aqueles que estão em Cristo foram liberados do jugo da Lei. Retornaremos a isso mais adiante (§56). Um dos fatores-chave da perda de influência de Pedro em Jerusalém foi, muito provavelmente, sua maior ambivalência ou abertura sobre o assunto (cf. acima pp. 198s e abaixo pp. 555s).

O que é mais interessante é o fato de que temos entre os próprios documentos do NT dois escritos que dão clara expressão a uma atitude cristã judaica para com a Lei (em contraste com a visão paulina) - Ma­teus e Tiago.

1. A atitude de Mateus para com a Lei se exibe mais claramente em 5.17-19. Formada provavelmente de três logia independentes que o pró­prio Mateus colocou juntas, embora possivelmente os vv. 18-19 já esti­vessem unidos na tradição (mais conservadora?) da qual foram extraí­dos. Seja qual for o sentido original, Mateus claramente os entende em termos de contínua lealdade à Lei, isto é, para ele, a Lei como interpretada por Jesus29. Seja o que o próprio Jesus tivesse entendido por qualquer fala do cumprimento da Lei, ele não teria entendido como superação ou abandono da mesma. Ao contrário, "cumprimento" é definido pela antítese com "destruir": Jesus não veio abolir (a afirmação é repetida), mas cumprir - isto é, presumivelmente, realizar ou completar a Lei e as­sim estabelecê-la, situando-a sobre base mais firme (Mt 5.17). O ponto é reforçado pela ligação do dito com o v. 18 mediante o "pois" explica­tivo: Jesus não veio para destruir, mas para cumprir: "Até que passem o céu e a terra, não será omitido nem um só i, uma só vírgula da Lei sem que tudo seja realizado". Quer dizer, a Lei permanecerá inviolá­vel, imperecível até o fim dos tempos, ou até que a vontade de Deus seja plenamente realizada. E o que isso significa é iluminado por sua vez no v. 19 como um corolário: "Aquele, portanto, que violar (relaxar) um só desses menores mandamentos e ensinar os homens a fazerem o mesmo, será chamado o menor no reino dos Céus (note, não será

' Ver mais R. B a n k s , "Matthew's Understanding of the Law: Authenticity and In­terpretation in Matthew 5.17-20", JBL, 93,1974, pp. 226-42; também Jesus and the Law, pp. 203-26; R. A. G u e l ic h , The Sermon on the Mount, Word 1982, pp. 134-74; U. Luz, Das Evangelium nach Matthaus, EKK 1 /1 , Benziger/Neukirchener 1985, pp. 241s.

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excluído do reino, mas definitivamente um cidadão de segunda cate­goria). Aquele, porém, que os praticar e os ensinar, esse será chama­do grande no reino dos Céus" Eis claramente a Lei como realizada por Jesus ao reter uma validade incondicional para aqueles que pertencem ao rei­no dos céus; e eis também uma firme repreensão aos outros membros do reino (outros cristãos - Mt 8.11) que eram mais liberais em sua atitude para com a Lei. Uma ênfase similar é evidente em Mt 23.3 - "Portan­to, fazei e observai tudo quanto vos disserem tos escribas e fariseus]. Mas não imiteis as suas ações, pois eles dizem, mas não praticam"; também Mt 23.23 - "Ai de vocês, escribas e fariseus hipócritas que pa­gais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, mas omitis as coisas mais importantes da Lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade. Impor­tava praticar estas coisas, mas sem omitir aquelas".

O elevado respeito de Mateus para com a Lei também é expres­so em duas palavras características de seu vocabulário. A impiedade contra a qual contende em seu evangelho ele caracteriza como anomia- prática ilícita, rejeição da Lei. A palavra ocorre em Mateus mais do que em qualquer outro documento do NT, e Mateus é o único evangelista a usá-la (Mt 7.23; 13.41; 23.28; 24.12) - claramente, então, sua própria for­mulação e expressão de seu próprio entendimento da mensagem de Je­sus como defendendo a fidelidade contínua à Lei. O mesmo ponto está pressuposto na segunda palavra característica mateana - dukaiosunê, justiça (7 vezes em Mateus;30 em outros lugares nos evangelhos ocor­rem somente em Lc 1.75 e Jo 16.8, 10). Seu uso em Mt 5.20 indica que Mateus entende justiça em termos de guardar os mandamentos (note de novo o "com efeito", explicativo amarrando os vv. 19 e 20): "Com efeito, eu vos asseguro que se a vossa justiça não exceder a dos escribas e dos fariseus, não entrareis no Reino dos Céus" (cf. Mt 6.1 e compare com Lc 18.9-14). Podemos, talvez, apenas mencionar a ênfase que Ma­teus coloca sobre os discípulos de praticar (poiein). O verbo ocorre cerca de 40 vezes no material especial de Mateus, e 22 vezes só no Sermão do Monte: somente quem praticar a vontade do Pai de Jesus entrará no reino dos céus (veja particularmente Mt 5.19; 7.21,24; 12.50; 19.16s; 25.40,45)31.

30 Mt 3.15; 5 .6 ,10, 20; 6.1, 33; 21.32.31 Ver A. S a n d , Das Gesetz und die Propheten: Untersuchungen zur Theologie des Evan­

geliums nach Matthäus, Regensburg 1974, cap. 7.

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Confirmação adicional da atitude cristã-judaica de Mateus fren­te a Lei pode ser achada em um ou dois pontos em sua redação de Marcos. Por exemplo, a questão a respeito do divórcio: em Mc 10.2 a questão é lida simplesmente como: "E lícito a um marido repudiar sua mulher?"; mas Mateus a reformula: "E lícito repudiar a própria mulher por qualquer motivo que seja? Daí ele transforma uma questão geral e a situa dentro do debate rabínico entre as escolas de Hillel e Shammai; a formulação mateana de fato pressupõe a corrente prática de então de divórcio e pede a Jesus por um veredicto sobre a posição dominante de Hillel (permissão de divorciar-se por qualquer razão). Com o mes­mo efeito a regra incondicional de Jesus em Mc 10.11 é amenizada por Mateus ao permitir a possibilidade de divórcio em casos de falta de castidade - a posição mais rigorosa de Shammai (Mt 19.9; assim 5.32). Jesus é apresentado assim como se ocupando de um debate rabínico corrente e como favorecendo o ponto de vista mais estrito do sham- maitas32.

Novamente, a redação de Mateus das palavras de Jesus a respeito da verdadeira purificação é significativa (Mt 15.17-20/Mc 7.18-23). Em Marcos se lê: "'Não entendeis que tudo o que vem de fora, entrando no homem, não pode torná-lo impuro, porque nada disso entra no co­ração, mas no ventre, e vai para a fossa?' (Assim, ele declarava puros todos os alimentos)". Evidentemente, Mateus estava descontente com a apresentação de Marcos nesse ponto, pois ele omite as duas últimas frases: "Porque nada disso entra no coração, mas no ventre, e vai para a fossa?". Ele não poderia fugir da força da tradição em si (Mt 15.11- "Não é o que entra pela boca que torna o homem impuro..."), mas (1) ele suaviza a versão de Marcos (7.15) - não estava preparado para afirmar que Jesus disse que os alimentos não podem ser impuros; (2) ele omite completamente a interpretação de Marcos de que o dito de Jesus implicava anulação da Lei sobre alimentos puros e impuros; e (3) por suas adições de Mt 15.12-14 e particularmente 15.20b (resumindo o ensino) ele tenta dirigir a força das palavras de Jesus para uma rejeição da elaboração rabínica da Lei (antes que da Lei em si - "mas o comer sem lavar as mãos não o torna impuro"). Disso podemos deduzir que:

32 Ver D. R. C a t c h p o l e , "The Synoptic Divorce Material as a Traditio-historical Problem", BJRL, 57,1974, pp. 93ss; J. A. F it z m y e r , "The Matthean Divorce Texts and some new Palestinian Evidence", Theological Studies, 37,1976, pp. 197-226.

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Mateus estava menos disposto a abandonar as próprias leis dietéticas e pouco contente com a sugestão de que as palavras de Jesus promoviam uma anulação da Lei.33

Além disso, um traço notável do Evangelho de Mateus é sua apre­sentação de Jesus, como o cumprimento da revelação do AT - mais claramente visto nas "citações de cumprimento" tão distintivas de Ma­teus (1.22s; 2.5s, 15, 17s, 23; 4.14-16; 8.17; 12.17-21; 13.35; 21.4s; 27.9s.- note também 5.17; 26.54,56) e sua sugestão de que os ensinos de Jesus eram o clímax e a interpretação profética da Lei ("a Lei e os profetas" - Mt 5.17; 7.12; 11.13; 22.40). Há possivelmente algum paralelo aqui com a idéia cristã judaica distintiva do séc. II e III de Jesus como o clímax da revelação profética (acima p. 364). Se for isso, esse paralelo pode ser reforçado pelo elemento da tipologia de Moisés que claramente discer- nível no Evangelho de Mateus. Eu penso, especialmente, do paralelo (deliberado) entre a matança dos inocentes em Mt 2.16ss. e Ex 1.22 e da evocação similar da viagem ao Egito e do Êxodo em Mt 2.13-15, e da similar evocação das peregrinações no deserto e dos quarenta dias e quarenta noites de Moisés sobre o Sinai em Mt 4.1-1134. Como Moisés, Jesus impetra tanto bênçãos como maldições (Mt 5.3ss; 23.13ss.). Tal­vez, mais surpreendente de tudo, Mateus parece deliberadamente ter reunido o ensino de Jesus em cinco blocos (Mt 5-7; 9.36-10.42; 13.1-52; 17.22-18.35; 23-25), cada bloco precedido por material narrativo e sua conclusão marcada pela fórmula repetida, "Aconteceu que ao terminar Jesus essas palavras"/parábolas/ensino... (um traço que dificilmente é acidental - Mt 7.28; 11.1; 13.53; 19.1; 26.1). Não é uma explicação im- plausível desse traço o que Mateus pretende para assim sugerir que o ensino de Jesus tem paralelos nos cinco livros de Moisés35. Em parti­cular dificilmente seria uma coincidência que Mateus apresenta Jesus, especificamente, pronunciando seu primeiro bloco de ensinamentos sobre uma montanha (enquanto Lucas fala de uma planície) - de nova­

33 Para outros exemplos da redação "casuística" de Marcos por Mateus veja C. E. C a r l s t o n , "The Things that Defile (Mark 7.14) and the Law in Matthew and Mark", NTS, 15,1968-69, pp. 86ss. Veja mais em meu "Jesus and Ritual Purity: a study of the tradition history of Mk 7.15", Jesus, Paul and Law, SPCK 1990, cap. 2.

34 Como notado acima (p. 175s), G e r h a r d s s o n arrazoou plausivelmente que Mt 4.1-11 é um midrásh sobre Dt 6-8. Ali a tipologia de Israel é mais forte do que a tipologia de Moisés.

35 Ver ainda B a n k s , Jesus and the Law, pp. 280ss.

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mente, uma alusão à doação da Lei no Monte Sinai está fortemente embutida36.

Tudo isso reforça a visão de que Mateus se coloca firmemente dentro da vertente principal de cristianismo judaico: se, como os ebionitas, ele via Moisés e Jesus como os dois maiores profetas não é tão claro37, mas ele certamente entendia a revelação dada por Jesus por ser contínua com e uma realização fiel da Lei, primeiramente, dada por Moisés.

2. A atitude de Mateus frente a Lei fica ainda mais clara quando levamos em conta duas correntes adicionais de evidência que parecem indicar que Mateus estava procurando defender a Lei do abuso em duas fren­tes. Por um lado há sua polêmica contra a anomia, iniqüidade - em par­ticular contra o que ele considera ser antinomismo carismático (Mt 7.15- 23; 24-lOss.). Note o contraste entre dependência da inspiração profética e os poderes espirituais de um lado, e fazer a vontade de Deus de outro; aqueles que dependiam de seus carismas são chamados de praticantes da iniqüidade. Então, muito possivelmente, havia alguns cristãos entusiastas nas comunidades endereçadas por Mateus ou ao redor delas, que acre­ditavam que sua experiência espiritual e carismas os colocavam em um plano onde estavam (totalmente) liberados da Lei. Contra eles Mateus insiste que fazer a vontade de Deus significa guardar a Lei.

Por outro lado, Mateus parece lutar também contra um entendi­mento legalista da Lei - uma atitude provavelmente vinda à luz no judaísmo rabínico de seus dias. Daí presumivelmente os fortes ataques sobre os fariseus por que Mateus considera que de fato fracassaram em guardar a Lei (Mt 3.7-10; 5.20; 15.12.-14; 16.12; 21.28-32, 33-46; e parti­cularmente 23.1-36). A questão crítica nesse ponto se refere à interpre­tação da Lei. E aí ele mostra Jesus freqüentemente confrontando o fa- risaísmo com um novo e mais profundo entendimento da Lei - de três maneiras. (1) Em uma maneira sem paralelos nos outros evangelhos, Mateus trabalha o ensino de Jesus para sublinhar sua convicção de que o mandamento do amor é o centro e essência da Lei, em contraste com

’ Para várias exposições dessa tipologia de Moisés em Mateus ver aquelas cita­das em S a n d , Gesetz, pp. lOlss, D u n n , Jesus, III, n. 19, e B a n k s , Jesus and the Law, p. 230 n.l.

' O eco de Dt 18.15 na cena da transfiguração (Mt 17.5 - "Ouvi-o") foi simples­mente tirado de Mc 9.7.

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o legalismo judaico (Mt 5.43-48; 7.12; 12.1-8, 9-14 - o amor determina como a Lei deve ser obedecida; Mt 18.12-35; 22.34-40). (2) Assim em uma maneira também sem paralelos nos outros evangelhos, Mateus apresenta a interpretação de Jesus da Lei em continuidade com e o clí­max do protesto profético contra a mera observância da Lei; note par­ticularmente o apelo repetido a Os 6.6 contra os fariseus (Mt 9.13; 12.7; e ver de novo a ênfase sobre "a lei e os profetas" - Mt 5.17; 7.12; 11.13;22.40). (3) Outras passagens indicam a convicção de Mateus de que Je­sus não colocava a si mesmo contra a Lei, mas contra a tradição rabíni- ca - a escrupulosidade multifacetária da tradição oral. Assim particu­larmente a grande antítese de Mt 5.21-48; Mateus claramente pretende que seus leitores entendam o ensino de Jesus com um repúdio da tradi­ção oral, não da Lei em si (Mt 5.17-19 determina a interpretação do que se segue); nesses fortes ensinos Jesus retorna ao mandamento original e expõe seu significado mais profundo. E assim também Mt 5.20: a ob­servação nesse nível mais profundo supera a obediência casuística dos fariseus à tradição oral (ver também Mt 15.1-20). Resumindo, Mateus concordava com o judaísmo rabínico em sustentar firmemente toda a Lei; mas onde eles interpretavam a Lei elaborando seus estatutos, ele mostra Jesus se posicionando dentro da tradição profética e interpre­tando a Lei mediante o amor - e desse modo "cumprindo a Lei"38.

Parece então que Mateus está tentando monitorar seus leitores en­tre os dois extremos de antinomismo e farisaísmo: a Lei toda tem valida­de perene, mas ela expressa a vontade de Deus somente quando interpretada pelo amor - somente então penetramos o seu real sentido.

Nesse ponto, portanto, Mateus posiciona-se inteiramente dentro da vertente do cristianismo judaico que floresce da comunidade primitiva de Jerusalém. Sua posição não é muito diferente daquela dos primeiros cristãos, ainda que obviamente mais autoconsciente e mais plenamen­te pensada. Certamente sua atitude para com a Lei é, de longe, mais conservadora do que a de Paulo (ou de Marcos) - ainda que não haja nenhuma prova de que ele ataque Paulo como tal39. E muito, claramente,

38 Ver, particularmente G. B a r t h em G. B o r n k a m m , G. B a r t h & H . I. H e l d , Tradi­tion and Interpretation in Matthew, 1960, ET S C M Press 1963, pp. 62-105; S a n d ,

Gesetz.39 Ver W. D . D a v ie s , The Setting of the Sermon on the Mount, Cambridge University

Press, 1964, pp. 316-41. Note também que é a Pedro que é dada a proeminência antes que a Tiago (ver acima §30.3). 1

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ele representa uma forma de cristianismo judaico que Paulo, prova­velmente, consideraria como ainda vinculado à Lei, embora válido. O único tema relacionado que parece o ter movido a frente do cris­tianismo judaico não refletido, é o da missão. Por concessão àquela visão mais limitada de missão, ele retém a tradição de que Jesus (pré- pascal) previu somente uma missão para Israel (Mt 10.5s, 23; 15.24). Mas ele equilibra isso com a comissão universal do Cristo ressurre­to em Mt 28.18-20. Similarmente sua redação de Marcos 11.17, pro­vavelmente, signifique seu abandono da visão de que "todas as na­ções" seriam arrebanhadas ao Monte Sião nos últimos dias (ver acima p. 361) em favor da visão de que o evangelho precisa primeiramente se levado a "todas as nações" (28.19; cf. as adições de Mateus 12.18- 21; 21.43; 24.14).

Portanto, Mateus nos fornece alguma amarração entre o cristia­nismo judaico da igreja primitiva em Jerusalém de um lado e o ebio­nismo tardio de outro? Há alguma continuidade de atitude para com a Lei. Em particular, Mateus partilha uma lealdade similar à Lei (cf. Mt 5.18 com Ciem. Hom. VIII. 10 - "lei eterna"). E partilha também algo da crença ebionita de que Jesus veio como cumpridor da revelação do AT, para restaurar o verdadeiro sentido da Lei. Ainda ao mesmo tempo suas "intensificações" da Lei (Mt 5.21-48) são de uma ordem diferente daquelas dos ebionitas,40 e ele mostra um consciência dos perigos de um legalismo casuístico ausente no ebionismo. Talvez, portanto, pode­ríamos até dizer que, embora Mateus seja ebionita nesse ponto, é a sua insistência sobre o amor como o fator determinante de como a Lei deve ser obedecida que o guarda inteiramente dentro da vertente principal do cristianismo em desenvolvimento.

3. A carta de Tiago é o documento mais judaico, o mais indistintamente cristão no NT. O nome Cristo aparece somente em dois lugares - em pontos onde poderiam facilmente ter sido adicionado (Tg 1.1; 2.1). Por outro lado, nenhuma referência explícita é feita a vida, morte ou a res­surreição de Jesus. Quando um exemplo de paciência no sofrimento é aventado, é encontrado nos profetas do AT e em Jó (5.10s.), não em Jesus (compare com lPd 2.21ss.). O caráter judaico e indistintamente cristão da carta é tal que alguns foram capazes de arrazoar, não impro­

1 Ver S c h o e p s , Theologie pp. 188-218; Jewish Christianity, pp. 99-109.

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vável, que Tiago era originariamente um documento judaico assumido com pouca modificação pela igreja primitiva41. Todavia, há um bom número de traços que parecem requerer um autor cristão - em parti­cular, a referência ao nascimento mediante a palavra (Tg 1.18; cf. ICor 4.15; lPd 1.23; l jo 3.9) e não poucos ecos do ensino de Jesus como pre­servados no Evangelho mais notadamente cristão judaico (helenístico), Mateus (p.ex. Tg 1.5,17 = Mt 7.7ss.; Tg 1.22s. = Mt 7.24ss.; Tg 4.12 = Mt 7.1; Tg 5.12 = Mt 5.34-37).42 De modo que Tiago é melhor entendido como pertencente à mesma vertente de cristianismo judaico que os sal­mos lucanos e Mateus. A fé que ele expressa é aquela que busca viver de acordo com o ensino de Jesus, dentro de um quadro inteiramente judaico de crença e prática - cristão em pontos significativos, mas em suma mais caracteristicamente judaico.

A passagem mais notável em Tiago é a de 2.14-26, sua polêmi­ca contra a doutrina de fé sem obras. Ela parece ser dirigida contra a expressão paulina do evangelho, ou mais precisamente, contra aque­les que haviam se apoderado do slogan de Paulo, "justificação pela fé (somente)". Foi Paulo quem primeiramente expressou o evangelho desse modo (particularmente Rm 3.28); daí a visão de que os ataques de Tiago retrocedem a Paulo. Que o argumento de Paulo está em foco também é indicado pelo fato de que Tiago na realidade refuta a exege­se paulina de Gn 15.6: "Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado como justiça". Isso afirma Tiago, foi "cumprido" na obra de Abraão, não em sua fé - isto é, não na "fé somente" (compare com Rm 4.3-22, particularmente os vv. 3-8; G13.2-7; cf. acima p. 172)43.

É óbvio então que o que está refletido aí é uma controvérsia dentro do cristianismo - entre essa vertente do cristianismo judaico, que era representada por Tiago em Jerusalém por um lado, e por outro pelas igrejas gentílicas ou pelos cristãos judaicos helenísticos, que decisiva­mente tinham influenciado os ensinamentos de Paulo. E precisamen­te essa exaltação da Lei - "a lei perfeita" (Tg 1.25), "a lei da liberda­de" (1.25; 2.12), "na lei régia" (2.8) - em reação a Paulo, que caracteriza o

41 Ver W. G. K ü m m e l , Introduction to the New Testament, 1973, ET SCM Press 1975, pp. 406s.

42 Ver mais em J. B. M a y o r , The Epistle o f St James, Macmillan 1897, pp. LXXIVss; F. M u s s n e r , Der Jakobusbrief, Herder 1967, pp. 47-51.

43 Ver mais em meu Romans, p. 197. ’

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ebionismo. Tiago, contudo, não ataca Paulo como tal, somente uma influência unilateral de Paulo, um slogan paulino fora de contexto. Assim, no máximo, ele representa somente um estagio na metade do caminho em direção ao ebionismo - mas mais definitivamente um cristianismo judaico que permanecia leal à Lei e conseqüentemente era notadamente crítico da ênfase da fé sem obras tão característica da missão gentílica.

§ 56. O CRISTIANISMO JUDAICO DENTRO DO NOVO TESTAMENTO: (2) EXALTAÇÃO

DE TIAGO E DEPRECIAÇÃO DE PAULO

Essa ênfase dupla é complementar da primeira, pois, no cris­tianismo judaico, Paulo era depreciado precisamente porque ele era considerado "um apóstata da lei"44, e Tiago, por sua vez, era exaltado precisamente por causa de sua fidelidade à Lei45. Dentro do próprio NT a segunda ênfase não é assim tão claramente articulada, embora devamos notar que At 15.20, em que significativamente é Tiago que apresenta os requerimentos mínimos da Lei que espera todos os cris­tãos observem, e devemos recordar que o documento do NT que se mostra em discordância mais explicita com Paulo é atribuído especi­ficamente ao mesmo Tiago (acima §55.3). Aparte desses há três passa­gens em particular que nos dão como isso ressoava em três pontos na vertente do cristianismo judaico por volta da metade do séc. I, e que dão alguma indicação do modo em que o antagonismo cristão judaico contra Paulo adquiriu força mesmo durante a época de Paulo - G1 2, 2Cor 10-13 e At 21.

1. Gálatas 2. Sabemos de G1 2.4, para não mencionar At 15.1 e F1 3.2ss., que havia um forte partido nas igrejas palestinenses, uma poderosa força no cristianismo de Jerusalém e da Palestina, que in­sistia na circuncisão para todos os convertidos. Paulo chama alguns

44 Ireneu, adv.haer., 1.26.2; Epifânio, Pan., 28.5.3; 30.16.9.45 Eusébio, dem.ev., III.5 - Tiago "de quem aqueles que viviam anteriormente em

Jerusalém chamavam 'o justo' por causa da excelência de sua virtude"; Mario Vitorino, in ep.ad G ai, 4.12. Ver também D a n i è l o u , Thelogy, pp. 370s.

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deles de nomes muito rudes: "Falsos irmãos" (G1 2.4), "cães" (F1 3.2) (ver também acima p. 90s). Mas fica muito claro de G1 2 e At 15 pelo menos, que eles eram cristãos judeus - quer dizer, um força dentro da comunidade de Jerusalém que poderia com justiça reivindicar falar pelos crentes judeus na Judéia. Além do mais, eles obviamente viam com sua tarefa debelar o mal, que eles pensavam que Paulo estava fazendo com seu evangelho liberado da Lei; por isso, evidentemen­te eles se situavam deliberadamente contra Paulo e o que ele repre­sentava46. Eis mais uma vez o que reconhecemos ser uma forma de cristianismo judaico que posta dentro do espectro cristão no tempo da obra missionária de Paulo, mas que manifesta um caráter muito similar àquele do ebionismo posterior.

Se a controvérsia em Jerusalém era relativamente direta (se os conversos gentios deveriam ser circuncidados) e sua resolução ami­gável, o mesmo não pode ser dito em absoluto para a disputa sub­seqüente em Antioquia (G1 2.11-14). Onde acontece um dos episódios mais atormentadores em todo o NT. Se pudermos somente recuperar o quadro completo do que aconteceu ali, o qual levou a isso e o qual foi a seqüela, teremos conquistado um discernimento valioso para o desenvolvimento do cristianismo primitivo. Do contrário teremos que nos contentar em fazer o que pudermos com as pistas e indícios que Paulo nos dá - sendo que o problema, é claro, termos somente um lado da disputa, o de Paulo, e apenas com um lado da questão não somos capazes de fazer um juízo completo47.

Quem estava em falta no incidente? A probabilidade é que a concordância mais antiga envolvida em G1 2.7-10 (cf. At 15.22-29) incluindo algum a resolução (possivelmente não explícito) a respei­to das relações mútuas de judeus e gentios dentro das comunidades cristãs mistas - provavelmente para o efeito de que cristãos judeus continuariam a considerar a Lei como obrigatória para eles mesmos

46 Cf. B a u e r , Orthodoxy: "Paulo era o único herege conhecido na era apostólica - o único que era tão considerado nesse período, pelo menos de um ponto de vista particular" (p. 236).

47 Eu escrevi muito mais sobre essa passagem desde Unidade e Diversidade no Novo Testamento (ver meu Jesus, Paul and the Law, SPCK, 1990); mas deixo o texto aqui inalterado como minha declaração mais antiga sobre um tempo que veio ocupar minha atenção nos 1980s. Ver também P. J. A c h t e m e ie r , The Quest fo r Unity in the New Testament Church, Fortress 1987. *

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sem forçá-la aos cristãos gentios. Na igreja fortemente (talvez pre­dominantemente) gentílica em Antioquia (At 11.20-24) os cristãos judeus da Diáspora, sem dúvida, sentiam que era apropriado ser me­nos rigorosos em sua prática de pureza ritual (G1 2.12a, 14b). Mas quando um partido de cristãos judeus chegou de Jerusalém "da parte de Tiago" eles provavelmente sentiram que as posições foram inver­tidas e, conseqüentemente, esperava-se dos gentios em Antioquia, por sua vez, exercitar sua liberdade e aceitar as leis dietéticas judaicas pelo período que o pessoal de Tiago estivesse presente. De outra ma­neira seria requerido dos judeus "helenizar", abandonar alguma coi­sa integrante de sua fé (alguma coisa que seus ancestrais resistiram até a morte), eles ameaçariam todo o entendimento cristão judaico do cristianismo como um judaísmo cumprido (veja acima §54.1), com efeito, ameaçariam a própria existência das comunidades judaicas dentro da Palestina. Assim, por amor do cristianismo na Palestina a concordância teria de ser observada, e esperava-se que os cristãos gentios vissem isso e respondessem de maneira livre e considerada, como os cristãos judeus fizeram em uma situação anterior. Se essa foi a linha de pensamento de Pedro ou não, certamente temos de levar em conta algumas considerações, influentes o bastante para explicar as ações de Pedro e de muitos outros cristãos judeus, incluindo Bar- nabé, que, além de tudo, tanto havia se identificado com a missão gentílica quanto Paulo.

Se os eventos resultaram na confrontação entre Paulo e Pedro é obscuro, assim também é a sua seqüela. Naturalmente tendemos a presumir que o argumento de Paulo saiu vencedor - Pedro admitin­do seu erro, e a prática prévia sendo resumida. Mas realmente Paulo não diz isso, e sua repreensão a Pedro diminuiu para uma defesa de sua própria posição aos gálatas. Ainda que Paulo tenha vencido, e Pedro reconhecido a força de seus argumentos, Paulo certamente teria notado isso, assim como reforçado sua posição anterior ao notar a aprovação dos: "Apóstolos notáveis" em G1 2.7-10. Além disso, a linha que Paulo toma em 2.11-14 é muito dura - Pedro tornou-se digno de censura, o resto dos judeus incluindo Barnabé levados pela hipocrisia, sua conduta não se coadunava com verdade do evangelho, Pedro forçan­do os gentios a se judaizar - uma atitude de fato que contrasta muito claramente com a flexibilidade de Pedro! Nas circunstâncias então, é bem provável que Paulo fosse derrotado em Antioquia, que a igreja como

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um todo em Antioquia tomasse o partido de Pedro ao invés do de Paulo48. Esse episódio marcaria assim o fim da associação específi­ca de Paulo com Antioquia e sua emergência como um missionário inteiramente independente (conforme Atos ele visitou Antioquia so­mente mais uma vez durante sua vida - At 18.22); foi também um fator decisivo para levar Paulo e Barnabé em caminhos diferentes (cf. At 15.36-40); e sem dúvida motivou Paulo a redefinir sua posição so­bre as responsabilidades mútuas dos cristãos gentios e judeus dentro de uma comunidade mista - pois isso dificilmente passa despercebi­do do conselho de Paulo a tais comunidades em ICor 8,10.23-11.1, e Rm 14.1-15.6 (para não mencionar sua prática pessoal de acordo com At 21.20-26) está mais alinhado com a política de Pedro e Barnabé em Antioquia do que de acordo com os fortes princípios de seu próprio texto em Gálatas 2.11-14!49

Sejam quais forem os fatos precisos da matéria, é evidente que havia uma discordância muito mais profunda entre Paulo e o cristianismo judaico que vinha de Jerusalém do que a princípio parece à primeira vista. E provável de fato que Paulo estava muito mais isolado na forte linha que ele sustentava em Antioquia do que sua própria versão do episó­dio admite. Não só isso, mas a ferocidade de sua resposta a Pedro em Antioquia que é elaborada em Gálatas pode muito bem ter sido um fator contribuinte de algum significado para incendiar o antagonismo do cristianismo judaico contra Paulo.

2. Se a situação é ainda mais séria, o tom se torna mais estriden­te em 2 Coríntios 10-13. Parece que alguns missionários chegados em Corinto passaram a atacar a Paulo. Quem eram esses missionários não fica inteiramente claro; mas a melhor explicação é de que eram cristãos judeus de Jerusalém (note particularmente 2Cor 11.22), apresentando- se de um modo que mais os recomendaria aos coríntios gnosticamente

48 Pode ser relevante que na tradição tardia (tão antiga quanto Orígenes) Pedro fosse considerado como o primeiro bispo de Antioquia (ver O. C ullmann , Peter: Disciple, Apostle, Martyr, ET S C M Press 1962, p. 54, n. 60); talvez seja também um indício o fato que a próxima carta que conhecemos endereçadas às igrejas na Galácia seja atribuída a Pedro!

49 C f. E. H a e n c h e n , The Acts o f the Apostles, ET Blackwell 1971, pp. 475ss; K õ e ste r , "Gnomai Diaphoroi", Trajectories, pp. 121s; e a tese geral de J. W. D r a n e , Paul, Libertine or Legalist? S P C K 1975. ’

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influenciados50. Quem quer que sejam, eles obviamente reivindicavam serem cristãos e foram aceitos como tais (2Cor 10.7). Paulo os chama de "super apóstolos" (2Cor 11.5; 12.11); mas também de "Falsos apósto­los", "servos de Satanás" (2Cor 11.13-15)! Obviamente então eles rei­vindicavam ser muito superiores a Paulo: eles eram os verdadeiros apóstolos: "Apóstolos de Cristo" (2Cor 11.13), ademais, para quem Paulo não figurava como um apóstolo no início - ele era o falso após­tolo, o servo de Satanás. Presumivelmente aos seus olhos somente os apóstolos originais (os Doze?) e aqueles propriamente credenciados pela Igreja mãe em Jerusalém (isto é, por Tiago?) poderiam reivindi­car ser "apóstolos de Cristo" - e Paulo não tinha tais credenciais, ele era muito desqualificado, inteiramente sem autoridade (2Cor 3.1s, 5s.). Paulo também os acusa de pregar outro Jesus, de ter um espíri­to diferente, de proclamar um evangelho diferente (2Cor 11.4). Sem dúvida eles fizeram precisamente a mesma acusação contra Paulo!: era ele quem pregava outro Jesus (não o Jesus cujo ensino ecoava na carta de Tiago); era Paulo quem proclamava um evangelho diferen­te, que havia pervertido a mensagem original das palavras e feitos de Jesus em um antinomismo e em um sentido incompreensível (cf. 2Cor 4.2s.).

Eis então a evidência de um aprofundamento da cisão entre Paulo e a igreja de Jerusalém - com cada parte discutindo a autoridade do outra, e cada uma atribuindo ao outro o evangelho de Satanás. Pode ser, é claro, que os "super apóstolos" tenham se excedido em suas instruções para Jerusalém; mas quase certamente reivindicavam a autoridade de Jerusalém e devem ter representado um corpo significativo da opi­nião dentro do cristianismo judaico que denunciava Paulo como um presunçoso, traidor e falso mestre. 2 Coríntios 2.17 de fato sugere que a maioria dos evangelistas ou missionários (judeus) faziam oposição a

5° y er especialmente E. K ä s e m a n n , "Die Legitimität dês Apostles", ZNW, 41,1942, pp. 33-71; reimpresso separadamente como livreto em 1956 (Darmstadt); e no­vamente em K. H. R e n g s t o r f , Das Paulusbild in der neuren deutschen Forschung, Darmstadt 1969, pp. 475-521; C. K. B a r r e t t , "Christianity at Corinth", BJRL, 46, 1964, pp. 286-97; "PSEUDAPOSTOLOI, II Cor. 11.13", MBBR, pp. 377-96; "Paul's Opponents in II Corinthians", NTS, 17, 1970-71, pp. 233-54; (todos os três ensaios reimpressos nos ensaios de B a r r e t t , Essays on Paul, SPCK 1982); II Corinthians, A & B l a c k 1973, pp. 5-10, 28-32, 277s. Ver também acima pp. 149s, 289s.

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Paulo51. Uma explicação alternativa e muito plausível é que os 'falsos apóstolos e os super-apóstolos eram dois grupos diferentes, e que por "super apóstolos" Paulo entendesse de fato os apóstolos notáveis ou os Doze de Jerusalém52. Se esse fosse o caso, então a agudeza do an­tagonismo entre Paulo e Jerusalém dificilmente seria exagerada. B a r r e t t

situa o ponto de vista de Paulo, nessa tese, nos seguintes termos: "Ele (Paulo) fora obrigado a reconhecer que o ponto de origem a partir do qual o cristianismo se disseminou no mundo se tornou uma fonte de perversão"53. Se isso verdadeiramente representa a atitude de Paulo como expressa em 2 Coríntios, então sem dúvida havia uma animosida­de igual e, muito provavelmente, até mais forte do lado dos cristãos de Jerusalém (cf. particularmente 1 Coríntios 15.8 - aborto exibe uma pala­vra de escárnio afiado dirigida contra Paulo). Mas mesmo se isso for um exagero, 2 Coríntios 10-13 permanece um forte testemunho da profunda cisão entre Paulo e Jerusalém que coopera consideravelmente para ex­plicar a aversão do cristianismo judaico tardio por Paulo, o apóstata.

3. Atos 21 narra a última viagem de Paulo a Jerusalém e sua recep­ção ali. Diversos traços são marcantes para um leitor cuidadoso. Em Tiro, uma profecia na assembléia alerta Paulo para elenão ir a Jeru­salém - um pronunciamento considerado como palavra de autorida­de do Espírito (At 21.4). Cesaréia foi a última comunidade a recebê-lo bem. Ali permaneceu juntamente com Filipe (At 21.8), um dos líderes dos helenistas no cisma inicial dentro da comunidade de Jerusalém (At 6-8; ver abaixo §60). Ali Agabo profetizou uma recepção hostil dos judeus em Jerusalém; Agabo havia acabado de chegar da Judéia e sabia como era forte o sentimento contra Paulo (At 21.10s.). Paulo expressou sua voluntariedade para morrer em Jerusalém (At 21.13). Por sua vez em Jerusalém, com quem ele ficaria? - Não com Tiago, nem com um dos líderes da comunidade de Jerusalém (já que Filipe evidentemente estava em Cesaréia) - mas com Mnasom de Chipre, um antigo discí­pulo, isto é, com toda probabilidade, um helenista (At 21.15s.). Quan­do Paulo se encontrou com Tiago e os presbíteros, imediatamente eles

51 B a r r e t t , "Pseudapostoloi", pp. 384s.52 Assim K à s e m a n n e B a r r e t t . Antes de tudo Paulo, já fizera descaso dos "apósto­

los notáveis" em Gálatas 2.6,9.53 B a r r e t t , II Corinthians, p. VIII. >

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apontaram quão zelosos pela Lei era a grande massa da comunidade cristã, eles repetiram as informações hostis a respeito de Paulo que es­tava de passagem pela igreja de Jerusalém, e uma vez mais o pressio­naram a reafirmar sua lealdade à Lei, a demonstrar que tais boatos eram infundados e que ele próprio ainda vivia em observância à Lei. Obviamente, Paulo era amplamente considerado como um renegado por abandonar a Lei, e parecia que nada ou pouco seria feito dentro ou pela igreja de Jerusalém para defendê-lo a esse respeito (At 21.20- 24; a despeito de 16.3 e 18.18). Então, quando Paulo foi aprisionado e levado a tribunal não ouvimos nada de qualquer judeu-cristão dando apoio a ele, falando em sua defesa - e isso a despeito do aparente alto conceito de Tiago entre os judeus ortodoxos (acima p. 329, nota 45). Onde estavam os cristãos de Jerusalém? Parece muito como se intencionalmente abandonassem a Paulo, deixando-o arcar com as conseqüências de seus atos. Se for assim, isso subentende uma antipa­tia fundamental da parte dos cristãos judeus pelo próprio Paulo e por aquilo que ele representa.

O mais notável de tudo, Lucas nada diz da coleta que Paulo havia feito em favor da igreja de Jerusalém; até em At 24.17 a palavra "co­leta" é evitada, e sem as cartas de Paulo dificilmente reconheceríamos essa alusão - com efeito, a alusão pode ser somente ao seu ato de pie­dade em At 21.26. Ainda que saibamos pela correspondência de Paulo quão importante era a coleta para ele (Rm 15.25-32; ICor 16.1-4; 2Cor 8-9). Lucas faz menção de sete delegados das igrejas (At 20.4s.), mas falha em mencionar porque viajavam com Paulo - a saber, entregar a coleta. Essa foi a principal preocupação de Paulo para se ocupar de ir a Jerusalém, mas Lucas também não menciona isso. Porquê? A resposta, provavelmente esteja na razão para Paulo fazer a coleta em primeiro lugar: para Paulo isso era uma expressão de unidade, unidade entre as igrejas que ele havia estabelecido e as igrejas da Judéia. A razão de Lu­cas não mencioná-la, portanto, é, provavelmente porque a igreja de Je­rusalém se recusou aceitar a coleta - algo que o próprio Paulo temia acon­tecer (Rm 15.30s.). Para os cristãos de Jerusalém, a aceitação da coleta seria visto como declarar sua anuência à missão de Paulo, aprovação da atitude que Paulo havia adotado para com a Lei. E isso destruiria sua própria posição entre seus patrícios judeus, inevitavelmente assim em um período de crescente nacionalismo judaico. De modo que, mais provavelmente, eles escolheram recusar a coleta, desse modo represen­

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tando sua desaprovação de Paulo e de seus métodos. Provavelmente, a recusa não foi assim tão abrupta, como parece em princípio: o curso da ação a que Tiago sugeriu a Paulo poderia permitir os cristãos de Jerusalém aceitar a dádiva de Paulo, uma vez que Paulo provou sua boa fé judaica. Mas o plano não deu certo e na confrontação e crise decorrentes dificilmente Paulo parece ser apoiado, deixando somen­te sua coleta ser aceita pelos cristãos locais. Lucas, evidentemente escolheu omitir todo esse lado do episódio, visto que dificilmente seria o tipo de imagem da igreja primitiva que ele desejava preservar (ver abaixo §72.2).54

Se tudo isso é uma reconstrução honesta do encontro final de Paulo com o cristianismo judaico de Jerusalém, mostra quão ampla e profunda se tornou a cisão entre o cristianismo judaico e as con­gregações gentias e quão agudo e amargo era o antagonismo dos cristãos judeus para com Paulo. Um cristianismo judaico que havia se alinhado tão firmemente com sua herança judaica e que, duramente, virou a cara contra Paulo e a missão gentia livre da Lei estava mesmo a caminho do ebionismo.

§ 57. CRISTIANISMO JUDAICO DENTRO DO NOVO TESTAMENTO:

(3) CRISTOLOGIA ADOCIONISTA

Até agora, descobrimos a evidência de um cristianismo judaico no período do NT que possui semelhanças formidáveis com o cristianis­mo judaico dos sécs. II e III ao qual a ortodoxia emergente condenou como herético. Mas agora com esse terceiro traço, nós podemos pela primeira vez esboçar honestamente uma linha distinta entre o ebio­nismo tardio e os documentos cristãos judaicos do NT em si. Tiago não ajuda nessa matéria - dificilmente, pode-se dizer que tenha uma cristologia como tal. Mas o que dizer dos outros?

54 V er tam bém H aenchen, Acts, pp. 611-14; O. C ullmann, "D issensions w ithin the Early C h u rch", New Testament Issues, org., R. B atey, SCM Press 1970, pp. 124ss; A. J. M attill, "T h e Purpose of Acts: Schneckenburger R econsid ered ", AHGFFB, pp. 115ss; A chtemeier, Quest. ’

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1. Mateus. Como já vimos há um possível elo importante entre a cristologia de Mateus e aquela do ebionismo - a saber, a evidente tipologia de Moisés na elaboração de Mateus. Por outro lado, Mateus não dá muito peso à idéia de Jesus como um profeta. Ele registra isso como a opinião das multidões (Mt 16.4; 21.11, 46; e ver acima p. 374), mas como um reconhecimento da significância de Jesus isso fica lon­ge da designação de: "O Cristo, o Filho do Deus vivo" (Mt 16.15-17). O Quarto Evangelho é talvez digno de nota, salientando essa antítese implicada consideravelmente: Jesus é chamado de profeta por aqueles que estão a caminho da fé (Jo 4.19; 9.17) e pela multidão volúvel (6.14;7.40), mas o título falha completamente em expressar a significância dele que já existia, bem antes de Abraão ou de qualquer profeta que apareceu (Jo 8.52-59).55

E importante observar que Mateus contém uma narrativa de nasci­mento: claramente na intenção de Mateus a experiência de Jesus do Es­pírito no Jordão precisa ser entendida à luz de seu nascimento virginal. Agora, como vimos acima (pp. 366s), foram precisamente as narrativas do nascimento que os ebionitas recortaram de Mateus, capacitando-os a dar um peso mais adocionista ao episódio do Jordão. Assim, o relato do nascimento virginal indica com suficiente clareza que a cristologia de Mateus já havia se desenvolvido além do ponto em que a cristologia ebionita "se encerrou e a mutilação ebionita de Mateus indica igualmente um recuo consciente ou uma rejeição da cristologia do cristianismo judaico que encontra expressão em Mateus.

Um ponto adicional de contraste deve ser notado. De acordo com Origines alguns dos ebionitas aceitaram o nascimento virginal; mas os tais, acrescenta Eusébio: "Recusaram-se a confessar que ele era Deus, o Verbo e a Sabedoria"56. O ponto em questão é que além da narrativa do nascimento virginal, Mateus também identifica Jesus com a Sabedoria. Isso pode ser visto claramente em sua redação de Q. Em Lc 7.35 se lê: "Mas a Sabedoria é justificada por todos os seus filhos", onde Jesus (e João Batista) é (são) evidentemente chamado(s) de filho(s) da Sabedo­ria. Mas Mt 11.19 alterou esse dito de Q para ser lido: "Mas a Sabedoria foi justificada por suas obras", onde as "obras" devem ser entendidas

55 Mt 13.57 e Jo 4.44 têm o caráter mais de um dito proverbial do que de uma afir­mação cristológica.

56 Origines, cont. Ce/s., V. 61; Eusébio HE, III.27.3.

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como os "feitos" e "poderosas obras" de Jesus (Mt 11.2, 20ss.). Similar­mente o dito atribuído por Lc 11.49-51 à "Sabedoria de Deus" é atribu­ído especificamente a Jesus por Mt 23.34-46. E em Mt 11.28-30, Mateus provavelmente anexou ao material de Q um pronunciamento tipica­mente da Sabedoria em que a Sabedoria convoca os homens a aceitar o seu jugo (cf. particularmente Eclo 51.23-27); mas, novamente, Mateus o apresenta como um dito de Jesus - Jesus não aconselha meramente a aceitar o jugo da Sabedoria, mas emite o próprio convite da Sabe­doria (ver acima p. 156). Em outras palavras, em cada caso Jesus é re­tratado por Mateus não meramente como o mensageiro da Sabedoria, mas como a própria Sabedoria57, Aqui, novamente Mateus parece já ter avançado em sua cristologia até mesmo além do ebionismo modi­ficado do qual Origines e Eusébio testificam; e que o ebionismo fizera um dogma da cristologia mais rudimentar e menos desenvolvida do cristianismo judaico pré-mateano.

Resumindo, a narrativa do nascimento virginal de Mateus e sua cristologia da Sabedoria nos fornecem um ponto claro em que qual­quer tendência em direção ao ebionismo no cristianismo judaico do séc. I começa a divergir do cristianismo judaico que permaneceria den­tro do espectro da diversidade aceitável do cristianismo do séc. I.

2. Hebreus possui afirmações óbvias para ser considerado entre os documentos mais judaicos do NT, e seu argumento de que a morte de Jesus e sua entrada no santuário celeste resultou o fim da atividade cultual do templo (terreno) (Hb 10.1-18) tem paralelos claros com a hostilidade ebionita para o culto sacrificial (ver acima p. 368). Mais para o assunto de que nos ocupamos, contudo, a distintiva cristologia sumo sacerdotal de Hebreus parece à primeira vista oferecer poucos contatos com o ebionismo. Mas uma leitura cuidadosa do texto logo descobre uma considerável quantidade de linguagem adocionista. Em particular po­demos notar Hb 1.4 - por sua paixão e exaltação ele se tornou superior aos anjos e herdou um nome superior ao deles; Hb 1.5,5.5 - igualmen­te por sua exaltação ele foi gerado como Filho de Deus e indicado como sumo sacerdote de Deus; Hb 1.9 - porque ele amou a justiçae odiou a iniqüidade, portanto Deus o ungiu acima de seus companheiros;

’ Ver M. J. S u g g s , Wisdom, Christology and Law in Matthew's Gospel, Harvard University Press 1970, pp. 55-61, 95-100; D u n n , Christology, pp. 197-206.

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Hb 2.6-9 - ele foi o único homem em que o programa divino para a humanidade foi cumprido - somente ele dentre todos os homens foi coroado com glória e honra porque sofreu a morte; Hb 2.10 - ele foi feito perfeito pelo sofrimento; Hb 3.2s. - como Moisés ele foi fiel àquele que o constituiu, mas foi considerado digno de maior honra do que Moisés; Hb 5.7ss. - por causa de sua humilde submissão sua oração foi ouvida- ele aprendeu a obediência mediante o que sofreu - sendo assim feito perfeito foi designado sumo sacerdote segundo a ordem de Melqui- sedec58. Eis ai não poucos pontos de contato com a cristologia ado- cionista do cristianismo judaico dos sécs. I e II. Pode-se até mesmo dizer que Hb 9.14 não está tão longe da idéia ebionita da missão de Jesus sendo efetiva mediante o Espírito que como o Espírito eterno se manifestou em antigas revelações, particularmente Melquisedec (no caso de Hebreus): como Melquisedec não tinha "nem princípio de dias nem fim de vida" (Hb 7.3), assim Jesus conseguiu o sacerdócio ao demonstrar a qualidade indestrutível de sua vida em sua ressur­reição (7.15s.).

Por outro lado, já vimos (acima p. 340) que Hebreus, como Paulo, identifica Jesus com a Sabedoria pré-existente (Hb 1.2s.). Não somente isso, mas Hebreus 1.8s se refere ao Salmo 45.6s. ao Filho exaltado, e daí se endereça a ele como Deus. Se o escritor intencionava isso ou não em sentido hiperbólico do salmista original se dirigir ao rei (cf. SI 82.6s.; Jo 10.34s.), o fato que permanece nesses versos de abertura de Hebreus tem mais ou menos explicitamente afirmado de Jesus dois dos muitos títulos que, de acordo com Eusébio, até mesmo o mais moderado ebio­nita negava a Jesus (Deus, Sabedoria - ver acima p. 387s). Com efeito, se olharmos mais cuidadosamente ao desenvolvimento inicial do argu­mento todo de Hebreus nessa luz quase se lê como uma polêmica contra a cristologia ebionita. Se o ebionismo considerava Jesus principalmente como um profeta, o escritor aos Hebreus começa por situar Jesus em uma categoria aparte: os profetas fizeram Deus conhecido "de modo variado e fragmentário", mas agora Deus falou mediante um Filho, um Filho que é: "Resplendor de sua glória e expressão do seu ser" (Hb 1.1- 3). Se o ebionismo avaliava Jesus ou o Cristo como um anjo ou arcanjo (ver acima p. 366s), o escritor de Hebreus ainda em sua sentença de abertura, continua para descartar a visão de que o Filho seja comparável

Ver J. A. R o b i n s o n , Human Face, pp. 156ss.

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aos anjos: ao contrário, ele tem um status e título superior àqueles de quaisquer anjos: "De fato, a qual dos anjos disse Deus jamais...?" (Hb 1.4-2.18). Se o ebionismo atribuía a Jesus o significado do outro Moi­sés, Hebreus conclui a abertura de sua exposição teológica (Hb 1.1- 3.6) ao comparar e contrastar Moisés com Jesus como igualmente fiel ao serviço de Deus, mas de categoria e status diferentes - Moisés um servo, Jesus o Filho (Hb 3.1-6). Somente depois de se descartar dessas visões, em certo sentido ebionitas, como inteiramente inadequadas para expressar a significância de Jesus o Filho de Deus, é que ele prossegue em seu argumento subseqüente para desenvolver sua mais distintiva cristologia sumo sacerdotal.

Como o autor de Hebreus gerenciava para sustentar a tensão en­tre esses dois lados de sua cristologia - a linguagem adocionista, jun­tamente com posição anti-ebionita (se podemos colocar assim) - não é totalmente claro. Mas o que parece estar claramente implicado é que Hebreus se posiciona dentro da vertente em desenvolvimento da cris­tologia cristã judaica, na qual alguns dos traços característicos da cris­tologia ebionita tardia se tornavam um assunto dentro do cristianismo judaico, e que o escritor de Hebreus, enquanto sustentando sua lingua­gem adocionista recusa-se a congelá-la dentro das limitações do tipo ebionita. Pode parecer, na verdade, como se Hebreus, como Mateus, marque uma separação dos caminhos das duas correntes dentro do cristianismo judaico, a que permaneciam como um elemento dentro da diversidade aceitável do cristianismo, e a outra como um desvio dentro da diversidade inaceitável do cristianismo judaico dos sécs. II e III. Se essa é uma avaliação honesta, então o ponto a se notar é que não precisamos esperar até o fim do séc. II e a emergência da ortodoxia para encon­trar uma negação da cristologia que caracterizaria o ebionismo; essa negação já se fizera dentro do séc. I e veio de dentro do próprio cristianismo judaico.

§ 58. CONCLUSÕES

1. Há uma similaridade significativa, possivelmente, até mesmo uma continuidade entre o cristianismo judaico evidente no NT e o cristianismo judaico considerado herético pela grande Igreja emergente no fim dos sécs. II e III. Os três traços mais característicos do segundo - sua fiel adesão à Lei, sua exaltação de Tiago, e suá "cristologia adocionista" - estão

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todos presentes no cristianismo centrado em Jerusalém durante as pri­meiras décadas de existência da nova seita. Com efeito, a forma primi­tiva áo cristianismo é quase mais semelhante como o ebionismo dos sécs. II e III do que qualquer outra coisa - embora precisa-se uma vez mais adi­cionar que a comunidade cristã primitiva estava somente começando a expressar a sua fé e a reformular seu estilo de vida, enquanto que o ebionismo era muito mais considerado, muito mais uma reação aos de­senvolvimentos em outros lugares no cristianismo e no judaísmo. Mas mesmo nos documentos cristãos judaicos e na correspondência pauli­na na segunda metade do séc. I vemos claras indicações do caminho no qual o cristianismo judaico estava se desenvolvendo; mesmo dentro do próprio NT vemos sinais dessa reação para com a missão gentílica livre da Lei, e certo agarramento às formulações cristológicas antigas que se tornariam tão características do ebionismo. De modo que, se há continuidade entre o cristianismo de Jerusalém e o ebionismo tardio, então talvez tenhamos que concluir que alguma coisa desse desenvol­vimento dentro do cristianismo primitivo possa ser traçado em parte pelos recursos dos documentos do NT e em parte por meio dos próprios documentos do NT.

2. Contudo também é possível esboçar uma linha sólida de distinção entre o cristianismo judaico do NT e o cristianismo judaico tido por herético pela grande Igreja séculos mais tarde. Tal linha não deve ser desenhada em termos da Lei: Tiago e Mateus estão, de alguma maneira, mais próxi­mos dos ebionitas do que de Paulo com respeito ao status e o papel que atribuem à Lei - embora a ênfase de Mateus sobre o amor (o amor exi­bido por Jesus) como os instrumentos de interpretar a Lei demarque sua atitude como mais distintamente cristã do que judaica, ou melhor, farisaica. Tal linha certamente não pode ser desenhada entre as atitu­des do cristianismo judaico de Jerusalém para Tiago e Paulo e as atitu­des do cristianismo judaico tardio para eles - cada um parece ser quase como diferencial ao anterior e certamente tão hostil ao último quanto ao outro. Em outras palavras, sobre esses dois assuntos, não estamos em posição de demarcar o cristianismo judaico herético do cristianismo judaico que era uma parte aceitável do espectro cristão; o cristianismo judaico poderia tomar uma postura muito conservadora para com a Lei e uma postura muito antagonista para com Paulo e ainda ser reconhecido como uma expressão válida de fé em Jesus o Cristo.

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Onde a linha de distinção está firmemente desenhada é na ava­liação de Jesus. O cristianismo dos sécs. II e III considerava Jesus como um profeta, como o maior profeta dos profetas, que foi adotado como Filho de Deus e Cristo pela descida do Espírito ou Cristo (= anjo?) e pela virtude de sua obediência à Lei. Mas já dentro do NT, e de fato dentro do cristianismo judaico do NT, tais visões de Jesus estavam sen­do rejeitadas como inadequadas - ele era Filho em um sentido único, a própria Sabedoria e não apenas seu porta-voz, em uma classe separada de um profeta, anjo ou Moisés e imensuravelmente superior. Quer di­zer, já dentro do séc. I cristãos judeus situavam-se contra avaliações de Jesus que tornaram características do ebionismo, já dentro do NT cristãos judeus estavam definindo os limites do cristianismo judaico válido.

O significado desse ponto deve ser sublinhado: assim como a unidade do cristianismo era definida em termos de Jesus, assim agora vemos que a diversidade de cristianismo judaico também era definida em termos de Jesus. Assim a exaltação de Jesus e a unidade entre o homem de Nazaré e o exaltado presente para os primeiros cristãos em sua ado­ração e serviço era o estrato que unia os diversos kerygmatas, confis­sões, adoração, etc., então a exaltação do homem Jesus, a afirmação de que o homem Jesus era de fato a Sabedoria de Deus, a afirmação de sua absoluta superioridade sobre qualquer profeta, anjo, Moisés e sacerdote, torna-se a linha divisória em que a diversidade aceitável do cristianismo judaico do séc. I precipita sobre a diversidade inaceitável do ebionismo tardio, onde a fé em Jesus é fé cristã insuficiente.

3. Quando falamos de cristianismo judaico estamos falando acer­ca de um espectro. O cristianismo judaico não era apenas um ponto no espectro do cristianismo do séc. I; era em si mesmo um espectro, um fe­nômeno diverso. Na ponta desse espectro o cristianismo judaico precipi­ta sobre as crenças inaceitáveis que caracteriza o ebionismo. Mas tam­bém dentro do cristianismo judaico aceitável havia diversidade; mesmo dentro dos próprios escritos cristãos judaicos do NT podemos ver que eles todos não representam um tipo uniforme de fé. Os opositores de Pau­lo que encontramos em G1 2, 2Cor 10-13 e At 21, são enfim, difícil de diferenciar dos ebionitas tardios. A carta de Tiago e os salmos lucanos são caracteristicamente judaicos, mas dificilmente, marcadamente cris­tãos. O Evangelho de Mateus é mais discriminado e mais interessante, pois parece incitar um meio termo entre um cristianismo judaico mais

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conservador (do tipo ebionita?) e um cristianismo judaico helenístico mais liberal: de um lado, ele afirma inviolabilidade da Lei, enquanto de outro enfatiza que a Lei precisa ser interpretada pelo amor e não por multiplicar as sentenças haláquicas; de novo, por um lado, ele pre­serva os ditos de Jesus que limitavam a missão a Israel, enquanto por outro ele enfatiza que a mensagem de Jesus é para todas as nações- quase como se estivesse dizendo ao conservador, "O evangelho é para todos, tanto a gentios como a judeus", e ao liberal, "Lembre-se que Jesus mesmo restringiu sua missão dentro dos limites de Israel" (ver acima §§55.1, 2).

Localizar Hebreus dentro do espectro do cristianismo judaico é ainda mais fascinante. Pois Hebreus parece pertencer principalmen­te aquele tipo de cristianismo judaico helenístico que, primeiramente, encontramos em Estêvão (ver abaixo §60 e pp. 407s).59 Isso Não assume a questão a respeito da Lei (exceto talvez em Hb 13.9), mas trata quase exclusivamente da questão do culto tradicional: sacerdócio, taberná­culo, sacrifício - continuam no judaísmo cristão em algum sentido, ou teriam sido superados? Igualmente a Lei parece não apresentar pro­blemas60. Ao mesmo tempo, Hebreus foi influenciado em uma medida considerável pelo pensamento filosófico grego, em particular a cosmo- visão platônica de dois mundos, em que o mundo dos ideais/idéias é o mundo real, e o nosso mundo é o mundo das cópias/sombras; o escritor desenvolve seu tema por uma fascinante combinação da cren­ça judaica em duas eras com essa crença Platônica em dois mundos61. Disso podemos reconstruir uma imagem da comunidade cristã judaica para a qual Hebreus foi escrita: ela não estava envolvida em discu­tir o se-ou-não da observância da Lei, e assim era provavelmente uma comunidade cristã judaica homogênea intocada pelo tipo de questões que Paulo suscitava; mas provavelmente morrendo de saudades da

59 Para possíveis elos entre Estêvão e Hebreus ver W. M a n s o n , The Epistle to the Hebrews, Hodder & Stoughton 1951, cap. II.

60 É difícil imaginar uma comunidade cristã gentílica em que o argumento de He­breus fosse diretamente relevante e que as questões da observação da Lei fos­sem pequenas. Os problemas parecem ser mais aqueles de um grupo cristão judaico específico em um pós-70 d.C. Ao contrário ver K ü m m e l , Introduction, pp 398ss.

61 Ver mais acima p. 174s. A técnica de Hebreus nesse ponto é utilmente apresenta­do por G. Vos, The Teaching o fth e Epistle to the Hebrews, Eerdmans 1956, pp. 56s.

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tangibilidade do culto do Templo, tal como a comunidade primitiva de Jerusalém havia desfrutado; e era familiar com o pensamento filosó­fico platônico - muito provavelmente então antes uma forma especial de cristianismo judaico ou um grupo particular de cristãos judeus na Diáspora, anelando as simplicidades do cristianismo primitivo. Tal­vez, portanto, Hebreus represente um tipo desenvolvido de cristianismo judaico cujo desenvolvimento tanto reflete alguma coisa das influências que fizeram o ebionismo e também incorpora as crescentes convicções que levaram o cristianismo a rejeitar o ebionismo. Assim, de um lado, o autor parece considerar o tipo de lealdade ao culto tradicional que encontramos na igreja de Jerusalém primitiva em um estágio inicial da fé que devia amadurecer. Mas de outro lado, enquanto retém o tipo de linguagem fortemente adocionista que permaneceria muito compatível com a cristologia ebionita, fica claro que sua própria fé começou a transcen­der o que de fato se tornaria as principais categorias da cristologia ebionita. Se esse é o caso, então Hebreus representa um tipo de caminho intermediário ou de fato um ponto de retorno no desenvolvimento do cristia­nismo judaico, onde ele volta suas costas tanto às formulações e leal- dades primitivas do primeiro estágio do cristianismo como obsoleto e ao contrário dos desenvolvimentos conservadores que conduziriam ao ebionismo.

Devemos, talvez, apenas notar que o Evangelho de João pode ser considerado como uma expressão mais desenvolvida, aproximada­mente, da mesma atitude. Uma maior preocupação do quarto evan­gelista é apresentar Jesus como o cumprimento do judaísmo - sua Lei (Jo 4.10,14; 6.27, 30-32, 48, 58, 63), seu Templo (2.13-22; 4.20-24), suas festas (particularmente Jo 1.29; 7.37-39; 10.22, 36; 19.33-36) e seus ri­tos (2.6; 3.25) - por último Jesus como aquele cuja revelação supera aquela de Moisés (Jo 1.17). Note particularmente que João é o único evangelista a atribuir ao próprio Jesus o dito a respeito do templo que evidentemente promoveu a rejeição do templo por Estêvão (Jo 2.19; At 6.14; ver acima pp. 184,227). E ao mesmo tempo sua avaliação de Jesus deixa para trás as formulações temporárias de Hebreus para não men­cionar categorias fossilizadas do ebionismo tardio. João, de fato, está tão distante do espectro do cristianismo judaico do ebionismo que ele é melhor considerado sob o título de cristianismo helenístico - ainda que se sirva para nos recordar que essas classificações não são ao todo mutuamente excludentes ou rígidas. >

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Se tudo isso é uma representação honesta desses escritos do NT, então podemos representar o espectro do cristianismo judaico diagra­ma ticamente, a ampla linha vertical marcando o ponto em que a diver­sidade aceitável colide com a diversidade inaceitável.

CRISTIA N ISM O JU D A ICO

João Hebreus Mateus Salmos lucanos Tiago oposiWres de,Paulo ebionitasem ( ,ãlí

Mas mesmo que tenha restado muito do que está aberto ao ques­tionamento na análise acima, há pouca dúvida que o cristianismo ju­daico no séc. I compreenda uma ampla diversidade: cristãos judeus que abandonaram a Lei e o culto e se devotavam a uma missão universal e que foram influenciados pela cultura e pensamento helenístico mais amplos em graus variados; cristãos judeus que variadamente questio­navam a visão mais estreita de missão, a validade contínua do culto, e algo, mas não tudo, a contínua validade da Lei; cristãos judeus des­contentes com a missão gentílica livre da Lei, e que viam a Lei como tendo uma validade contínua para os cristãos - alguns continuando a considerar o Templo como de significância central; e cristãos judeus que se opunham à missão gentílica, hostis a Paulo e devotados em sua observância de toda Lei - cristãos judeus antes que cristãos judaicos, muitos deles precursores diretos dos ebionitas tardios.62

4. Resumindo. Dois, possivelmente três, critérios de unidade e diver­sidade parecem emergir deste capítulo. Primeiro, a insistência de Ma­teus de que a Lei precisa ser interpretada pelo amor pode fornecer o primeiro: o cristianismo judeu era contado como inaceitável quando começou a considerar a estrita observância da Lei como mais importante que a espontaneidade do amor. Mais claro é o segundo, o cristianismo judeu era tido como inaceitável quando persistiu se ajustar a uma visão limitada de

62 Cf. R. E. B r o w n , "Nem cristianismo judaico e cristianismo gentílico, mas tipos de cristianismo judaico/gentílico", CBQ, 45 ,1983, pp. 74-9; também (com J. P. M e i e r s ) Antioch and Rome, Chapman 1983, pp. 2-8.

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Jesus e de seu papel. Isso poderia reivindicar sustentação para esse con­servadorismo de algumas das expressões primitivas da fé cristã. Mas a disseminação do cristianismo para fora da Palestina e as controvérsias das primeiras décadas levaram essas antigas, mais fluidas e provisó­rias formulações a serem deixadas para trás como inadequadas, o cris­tianismo judaico dos sécs. II e III representa no fim uma tentativa reacionária de restringir a estima cristã de Jesus dentro das limitações e confinamentos tradicionalmente concebidos pelo pensamento e prática judaica. Terceiro, o cristianismo judaico era tido como inaceitável quando fracassou em se desenvolver, quando endureceu as expressões rudimentares do início dos dias primitivos em um sistema, quando perdeu a flexibilidade e a abertura para uma nova revelação em que as questões da Lei e missão requeriam uma situação de desenvoltura, quando se tornou rígido e excludente. Umas das heresias primitivas era o conservadorismo!63 Resu­mindo, o fracasso do cristianismo judaico herético era que nem sus­tentava a unidade (a exaltação de Jesus exibindo Jesus como a única expressão de Deus) nem permitia a diversidade (do cristianismo de­senvolvido).

63 Cf. a resenha de R. M u r r a y : " É impreciso referir-se ao conservadorismo como uma 'heresia'; antes é um dos canteiros de sementes, sempre patético, algumas vezes trágico, da heresia" (Heythrop Journal 20, 1979, pp. 194s; referindo à sua própria "Tradition as Criterion of Unity" in Church Membership and Intercomun- nion, org. J. K e n t & R. M u r r a y , London, 1973, pp. 251-80, especialmente 257- 71). <

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C a p í t u l o XII

CRISTIANISMO HELENÍSTICO

§ 59. INTRODUÇÃO

Até agora exploramos algo da sobreposição entre cristianismo e judaísmo, algo da interação dentro do cristianismo judaico entre as ên­fases do judaísmo emergente (rabínico) e aqueles do cristianismo em desenvolvimento e algo da atitude do cristianismo judaico em direção às tendências que podem ter crescido em crenças distintivas para o ebionismo tardio. Mas o cristianismo de fato logo se espalharia para fora da Palestina e viria à interação com outras crenças e idéias dentro do ambiente sincrético do Mediterrâneo oriental, especulações e cultos próprios moldados em maior ou menor grau por uma ampla gama de influências religiosas e filosóficas (incluindo aquelas da própria Pales­tina). Foi da diversidade do séc. I que o gnosticismo emergiu no séc. II, o rival mais perigoso do cristianismo pelo menos por diversas décadas, ainda que agora geralmente se reconheça idéias individuais e ênfases que se tornaram características do gnosticismo do séc. II já eram atuais no séc. I (eu falarei delas como "gnósticas" ou "pré-gnósticas").1

Nossa questão é colocada simplesmente assim: quanto o cristia­nismo do séc. I foi afetado por essas várias influências e idéias? Quão abertos estavam os cristãos primitivos a elas? Quão amplamente se estendia a diversidade do cristianismo do séc. I sobre essa larga faixa? O cristianismo do séc. I abarcava, dentro de sua diversidade aceitável,

1 Sobre distinções na terminologia (gnosticismo, gnosis; proto-gnóstico; pré-gnósti- co) veja U. B i a n c h i , ed., Le Origini dello Gnosticismo, Leiden 1967, pp. XXVISS. A melhor coleção de textos sobre e do gnosticismo é W. F o e r s t e r , Gnosis, 2 vols, Oxford University Press 1972, 1974. Para os textos de Nag Hammadi ver J. M. R o b in s o n , The Nag Hammadi Library in English, third revised edition, Brill 1988.

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alguma coisa que poderia ser apropriadamente chamada de cristianis­mo gnóstico? Ou as fronteiras desenhadas nas décadas finais do séc. II separavam o cristianismo e gnosticismo que já haviam sido desenha­das no séc. I?

Começaremos com os helenistas de Atos 6. Não somente seu próprio nome indica que podemos muito corretamente falar de um cristianismo helenístico com alguma distinção do cristianismo ju­daico (os "hebreus" de At 6.1 - ver abaixo §60), mas, mais precisa­mente, indica a marca da primeira ampliação significativa do cris­tianismo primitivo: foram eles quem evidentemente começaram o movimento em larga escala do cristianismo em direção aos "gregos" (At 11.20); e foram eles quem desse modo, na verdade, começaram a abrir o cristianismo para a ampla gama de influências predomi­nantes dentro da religião e cultura gregas. Então focaremos nossa atenção sobre o crescente avanço do cristianismo quando começou a competir mais e mais efetivamente com as religiões greco-roma- nas antigas, os cultos de mistérios e as especulações filosóficas cor­rentes nos principais centros da área. Eis que precisamos perguntar: Em que medida as comunidades cristãs primitivas emergentes da missão gentílica foram afetadas por essas amplas influências? Em que extensão (se ao todo) o cristianismo do séc. I, sobre essas fron­teiras, manifesta um caráter sincrético, manifesta tendências que se tornaram distintivas do gnosticismo mais tarde? Em particular, a pesquisa da história das religiões do séc. XX nesse período nos força a inquirir se alguma coisa dos próprios documentos do NT (ou suas fontes imediatas) expressa o que apropriadamente se chamaria de traços gnósticos, ou deixa-os abertos ao uso e à interpretação gnos- ticizante. Aqui focaremos a discussão sobre a fonte sinótica Q, sobre Paulo e sobre o Quarto Evangelho.

§ 60. "O PRIMEIRO CISMA CONFESSIONAL NA HISTÓRA DA IGREJA"

Quem eram os "helenistas"? Muito provavelmente hellênistai signi­fique judeus que usavam ou podiam usar somente o grego como sua língua franca e que foram influenciados em uma medida significativa

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pela cultura grega2. A maioria desses provavelmente eram judeus da Diáspora que havia se assentado em Jerusalém (cf. At 2.9-11; 6.9), ain­da que nenhuma dúvida haja que muitos judeus locais se associassem com eles, procurando cultivar os costumes gregos mais sofisticados. Assim também, "os hebreus" denotando, provavelmente, aqueles que retinham o aramaico (ou hebraico) como sua língua cotidiana, até mes­mo na Diáspora, e que foram educados para se manterem desafiado- ramente judeus diante da pressão em relaxar sua lealdade à Torá e ao Templo (cf. 2Cor 11.22; F1 3.5). Seja quais forem os fatos precisos, a implicação clara de At 6 é que os helenistas de Jerusalém sustentavam sinagogas separadas onde sem dúvida a língua comum de ensino e de adoração era a grega (At 6.9). Obviamente, muitos helenistas haviam sido convertidos e identificavam a si mesmos com a nova seita do Na­zareno.

Uma conclusão segue quase imediatamente: que a comunidade cristã -primitiva abrangia mais ou menos dois grupos claramente distintos desde o começo - hebreus que falavam o aramaico (ou hebraico) como um emblema de sua judaicidade, e helenistas, que preferiam ou que só poderiam conversar em grego, provavelmente como a língua mais apropriada para a fé que fazia reivindicações universalistas. Além dis­so, os helenistas deveriam viver aparte do restante; do contrário como poderiam as viúvas cristãs serem tão completamente negligenciadas (At 6.1) - não apenas algumas delas, mas o grupo todo? Isso sugere fortemente que os hebreus e os helenistas estavam de algum modo isolados uns dos outros, os helenistas vivendo em uma seção particu­lar da cidade, um assentamento social característico3. As relações entre os dois grupos seriam complicadas pelo fato de que os inteiramente ortodoxos, muito provavelmente, tendiam a considerar os helenistas como religiosamente inferiores: sua recepção dos costumes gregos cer­

! Assim p.ex. N. A. D a h l , Das Volk Gottes, 1941, Darmstadt, 2a ed., 1963, p. 193; M. S im o n , St Stephen and the Hellenists in the Primitive Church, Longmans 1958, pp. llss ; F. F. B r u c e , New Testament History, Nelson 1969, pp. 217s.

’ W. L. K n o x , St Paul and the Church of Jerusalém, Cambridge University Press 1925, p. 48, n. 2. Fatores sociais seriam importantes aqui também. Visto que a heleni- zação da região, na esteira das conquistas de Alexandre o grande, abraçar a lín­gua grega e seus costumes sempre foi uma marca das classes mais altas, melhor educadas, bem situadas. Nesse caso, Barnabé (At 6.36) e João Marcos (At 12.11, 25) seriam incluídos em seu número.

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tamente alimentaria a suspeita de que eles afrouxavam sua observân­cia da Lei; prosélitos inferiores aos nascidos e de estirpe hebraica, na­turalmente, associariam-se mais com os helenistas (cf. At 6.5); e desde os tempos dos macabeus "helenista" provavelmente contivesse "uma nuance aviltante"4 - em que os saduceus haviam colaborado politica­mente com as forças estrangeiras e os helenistas haviam se comprome­tido culturalmente.

Essas tensões latentes, dentro da comunidade cristã primitiva, vêm a tona no fracasso da comunhão de bens - o partidarismo dos dois grupos resulta na omissão de assistência às viúvas dos helenistas, na distribuição diária do fundo comum (At 6.1). A narrativa de Lucas sugere que o único problema foi uma interrupção temporária na ad­ministração da comunidade que foi logo corrigida. Mas, quase certa­mente, a falha de atender as necessidades para os helenistas e as quei­xas subseqüentes dos helenistas eram somente expressões superficiais dessas tensões latentes, os sintomas de uma divisão mais profunda. O caso para ver essa confrontação como o principio do "primeiro cisma con­fessional na história da igreja" (para usar a frase muito formal de E. H aenchen)5 é cumulativo, mas aqui pode ser somente declarada com brevidade.

(a) As implicações dos nomes, "hebreus" e "helenistas", e (b) as in­dicações das circunstâncias mais completas em torno das queixas dos helenistas (At 6.1) já foram esboçadas.

(c) Os sete que foram eleitos em At 6.5 eram todos provavelmen­te helenistas, visto que todos têm nomes gregos. E claro que, nomes gregos não eram tão incomuns entre os judeus palestinenses - antes de tudo, dois entre os Doze tinham nomes gregos (André e Filipe). Mas Estêvão e Filipe, os dois primeiros dos sete nomeados, eram certa­mente helenistas, e Nicolau, o último nomeado, "um prosélito de An­tioquia", também estaria listado entre os helenistas. Provavelmente, então, uma média de quatro pessoas também era de helenistas. Mas, mesmo se nossa conclusão aqui vai além da evidência imediata, o fato espantoso permanece que entre os sete escolhidos, nenhum nome não grego aparece. O estranho é que esse grupo eleito para administrar o

4 S i m o n , Stephen, p. 12.5 E. H a e n c h e n , "The Book of Acts as Source Material for the History of Early

Christianity", SLA, p. 264. 1

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fundo comum para a comunidade inteira deveria ser composto (qua­se?) inteiramente de helenistas! É mais plausível, penso eu, que os sete eram todos helenistas e que eles foram eleitos como porta-vozes dos crentes helenistas, provavelmente para representar os helenistas em nível de cidade como os Doze representavam (com efeito somente) os hebreus. Muito provavelmente eles já eram líderes de facto dos cristãos helenistas, talvez líderes emergentes dos grupos domésticos helenís- ticos6. No caso, sua eleição seria simplesmente um reconhecimento das qualidades de liderança que eles já demonstravam - como de fato su­gere a narrativa (At 6.3, 5).

(d) De acordo com Lucas, os sete foram eleitos "para servir às me­sas", de modo a permitir aos Doze pregar livremente a palavra de Deus (At 6.2). Mas nas narrativas seguintes os que são retratados pregando a palavra de Deus são, precisamente, Estêvão e Filipe (At 6.8-8.13). Quer dizer, eles agem como iniciadores e evangelistas levando o Evangelho àqueles a quem os hebreus tendiam a negligenciar - os helenistas em Jerusalém e aos mestiços samaritanos. Está pressuposta aí uma atitude diferente -para a missão? Os cristãos residentes de Jerusalém, como vimos, pensavam pouco em levar o Evangelho para fora; se alguma coisa es­peravam da Diáspora e dos pagãos era que viessem a eles, para adorar no Templo no fim dos tempos (ver acima pp. 360ss). Provavelmente, os helenistas com seu contexto do judaísmo da Diáspora tendiam, mais ou menos desde o princípio, a ser muito mais voltados para o mundo exterior em sua compreensão do Evangelho e de evangelismo.

(e) Essa última especulação ganha apoio da evidência mais for­midável de todas - a saber, a atitude para com o tempo que é creditada a Estêvão em At 6 e 7. A discussão aqui fica complicada pela questão da confiabilidade histórica da narrativa lucana e do discurso atribuído a Estêvão. E suficiente dizer que o discurso é muito distintivo dentro de Atos e que os capítulos 6-8 contém tais traços distintivos que é muito plausível a visão de que Lucas está aí extraindo de uma fonte que pre­servou muito precisamente as visões dos helenistas ou até mesmo de Estêvão em particular com respeito ao Templo. Certamente, a narra­tiva inteira explica a perseguição subseqüente dos helenistas tão bem

’ Cf. L. G o p p e l t , Apostolic and Post-Apostolic Times, 1962, ET A & C. B l a c k 1970, pp. 54s; M. H e n g e l , "Between Jesus and Paul", Betwenn Jesus and Paul, SCM Press/ Fortress 1983, pp. 13-16.

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que não há nenhuma razão real para se duvidar de sua historicidade. O ponto, então, é que Estêvão foi acusado de falar contra o Templo e os costumes transmitidos por Moisés (At 6.13s.) E essa acusação foi derivada do discurso que se seguiu (At 7).

Longe de ser monótono, o simples relato da história de Israel sem nenhuma relação imediata com a situação prevista, como primeira­mente parece, o discurso atribuído a Estêvão é a apresentação sutil- mente tendenciosa que culmina em um ataque dirigido ao Templo. Con­centra-se sobre o período anterior ao assentamento israelita na terra prometida, antes de, isto é, de Jerusalém se tornar a capital nacional e religiosa de Israel. O tema subjacente a primeira parte é a presença de Deus com seu povo fora da Judéia (note particularmente os vv. 2, 5, 8, 9, 16, 20, 30-33). Então o clímax rapidamente se constrói composto de dois temas em antífona. O primeiro é o contraste entre o Tabernáculo e o Templo: o Tabernáculo tipificando o tempo das perambulações no deserto quando a congregação (ekklêsia) recebia os oráculos vivos e o anjo da presença estava com ela (v. 38), foi feito de acordo com o es­quema mostrado a Moisés sobre o Sinai (v. 44) e simbolizou a presença de Deus movendo-se com eles no período de conquista (v.45), não for­neceu um lugar permanente de adoração durante a idade de ouro de Israel (v.46); uma vez que a casa que Salomão forneceu para o Senhor, era colocada e enraizada em um local - 9v 48ss). O segundo é a linha direta da apostasia que o discurso extrai da rejeição de Israel por Moisés para a tangível idolatria do bezerro de ouro (vv. 39-41), por meio da idolatria da adoração dos poderes planetários que resultou no exílio na Babilônia (vv. 42-43), ao clímax da presente idolatria do Templo (vv. 48s). Esse é o traço mais espantoso do discurso - seu ataque direto so­bre o próprio Templo. A palavra-chave aí é a descrição de Estêvão do Templo como "obras de mãos humanas" (cheiropoiêtos). Esta palavra era muito usada pelos sofisticados pensadores gregos para criticarem a idolatria. Porém, mais importante, ela era regularmente usada pelos judeus helenistas em sua condenação do paganismo - a palavra em si, freqüentemente, servindo para caracterizar tanto o ídolo em si e o desprezo judaico da idolatria desde o tempo da LXX em diante (ver p.ex., Lv 26.1; Is 46.6; Oráculos Sibilinos III. 605s, 618; IV.8-12; Filo, Vit. Mos., 1.303; II. 165,168; Apocalipse de Pedro 10; cf. At 7.41; 17.24). Mas Estêvão usa esse adjetivo para o Templo de Jerusalém - ele chama o Templo de idolol - e compõe a sua blasfêmia citando Is 66.1-2, uma das

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poucas passagens do AT que parecem denunciar a raiz e a atividade do Templo (vv. 49-50; cf. Barn. 16.2).

A importância das visões expressas aí não deveria continuar não identificada. (1) A rejeição de Estêvão do Templo queria dizer na ver­dade também uma rejeição da atitude dos cristãos locais para com o Templo. Como vimos a maior parte da nova comunidade aparentemente conti­nuava a adorar no Templo e provavelmente via o Templo como o local do retorno do Filho do Homem e o foco da ação escatológica de Deus (ver acima pp. 360s). O discurso de Estêvão foi, de fato, uma crítica afiada e profunda do limitado nacionalismo cúltico de seus colegas crentes em Jesus, o Cristo. Em outras palavras, o discurso confirma a sugestão feita acima de que a interrupção da comunhão de bens era somente sintomática de uma divisão mais profunda entre hebreus e helenistas dentro da comunidade cristã primitiva. (2) A ênfase sobre a presença de Deus fora da Judéia e a evidência de que o discurso mostra a influência de visões marcadamente samaritanas7, também pode con­firmar a sugestão adicional feita acima (d), de que Estêvão e os helenis­tas eram mais voltados para fora em sua compreensão do Evangelho, e conseqüentemente críticos da atitude de ficar em Jerusalém dos hebreus.(3) Visto que a acusação contra Estêvão em At 6.14 tão nitidamente ecoa o dito atribuído a Jesus pelas falsas testemunhas em Mc 14.588 e atribuído a Jesus por Jo 2.19, a mais óbvia implicação é que a visão de Estêvão do Templo era grandemente influenciada por essa tradição particular de Jesus (ver acima pp. 154s, 184s). Em qual caso vemos aqui o primeiro exemplo de cristãos diferindo (e diferindo duramente) em sua in­terpretação do ensino de Jesus. De fato, as visões d« Jesus a respeito do templo não foram tão acríticas como as práticas dos cristãos hebreus

7 V e r, p a rticu la rm e n te A . S pirot, "S te p h e n 's S a m a rita n B a ck g ro u n d ", em J. M unck, The Acts of the Apostles, A n ch o r B ib le 31, D o u b le d a y 1967, p p. 285-300; M . H. S charlemann , Stephen: A Singular Saint, A n a lec ta B ib lica 34, R o m e 1968, p p . 36- 51; C . H. H. S cobie, "T h e O rig in s an d D e v e lo p m e n t o f S a m a rita n C h ris tia n ity " , NTS, 19,1972-73. p p . 391-400. S p iro exa g era m u ito o ca so e S charlemann , ta m ­b é m so b re ca rreg a m u ito a in flu ê n c ia sa m a rita n a so b re E stêv ã o ; n o te ta m b é m os co m e n tá rio s ca u te lo so s d e R . P ummer, "T h e S a m a rita n P en ta teu ch a n d th e N ew T e s ta m e n t" , NTS, 22,1975-76, p p . 441-3; E. R ichard, "A c ts 7: A n In v estig a tio n o f th e S a m a rita n E v id e n c e " , CBQ, 39,1977, p p . 190-208.

8 Note como Marcos também usa a mesma descrição blasfema (cheiropoiêton) para o Templo em sua versão desse obscuro dito de Jesus (Mc 14.58).

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insinuavam, nem tão hostis como as de Estêvão ("a casa de meu Pai" ver acima §34.1). Quanto à sua atitude para a missão, havia verten­tes em seu ensino que podiam ser seguidas em direções diferentes. Os crentes primitivos, evidentemente, optaram por uma interpretação essencialmente conservadora daquelas partes da tradição - Jesus que poderiam ter causado atrito desnecessário com as autoridades de Jeru­salém. Enquanto Estêvão parece ter visto a importância dessa vertente negligenciada (ver também acima §34.2). O ponto em questão é que ele não hesitou enfatizar esse lado do ensino de Jesus e a elaborá-lo até mes­mo que isso significasse ser (agudamente) critico de seus colegas cristãos (hebreus) e provocar a hostilidade dos judeus mais ortodoxos.

(4) Talvez devamos, simplesmente, notar que não há nenhuma indicação no discurso de At 7 de que Estêvão ou os helenistas estives­sem nesse estágio atacando a Lei bem como o Templo: o discurso difi­cilmente descarta a importância da Lei (particularmente vv. 17; 20; 22, 36-38) ou da Lei (particularmente vv. 38,53) - não há nenhuma antítese paulina nele entre a aliança dada a Abraão (v. 8) e os oráculos vivos [palavras vivas] dados a Moisés (v. 38). As acusações de At 6.13-14. Podem ser expressas em termos gerais por Lucas, ou a Lei e as palavras de vida podem se referir somente ao último exemplo da Lei relacionan­do-se ao Templo e ao culto. Com certeza, desde então muito da Lei fora conectada ao sistema sacrificial, uma rejeição do Templo estaria vinculada a levar mais cedo ou mais tarde a um questionamento da Lei como um todo. E foi, evidentemente, o zelo pela Lei e pelas tradi­ções que fizeram de Paulo um perseguidor dos helenistas (G11.13s.; F1 3.5s.). Mas quando foi que a autoridade contínua da Lei, com tal, este­ve em questão não fica claro. O próprio Estêvão provavelmente, ainda não considerava sua posição como constitutiva de uma ruptura entre o judaísmo e a Lei; ele podia, com efeito, haver crido que a vinda e exal­tação de Jesus como um profeta como Moisés (At 7.37) se constituía em um chamado para retornar a autentica religião de Moisés, destituindo- os de todos os seus abusos idolátricos e corrupções tardias (sacrifícios, ritual e templo).9 Se é isso, então a questão é que a primeira tentativa de ampliar o cristianismo começou com uma divisão dentro do judaísmo.

(/) A visão de Estêvão parece ter levado diretamente a uma divi­são aberta dentro da comunidade primitiva dos cristãos; as diferenças que

' Simon, Stephen, pp. 45ss.

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primeiramente se tornaram visíveis em At 6.1 agora se aprofundam em uma divisão clara e óbvia. A profundidade dessa divisão é indica­da pelo relato do julgamento e morte de Estêvão. Os cristãos hebreus parecem não mostrar nenhuma solidariedade com ou em apoio a Es­têvão em seu julgamento (a despeito da intrepidez de Pedro e João diante do mesmo Sinédrio - At 4.13). Teria Estêvão ido longe demais, para eles, ao atacar o Templo tão asperamente? O silêncio de Lucas é sinistro. Similarmente o relato do funeral de Estêvão é provavelmente significante - "alguns homens piedosos (eulabei) sepultaram Estêvão" (At 8.2). Quem são os eulabeis? A palavra é usada em outros lugares do NT somente para judeus piedosos, isto é, piedosos em sua assistência ao Templo (Lc 2.25), em suas peregrinações a Jerusalém (At 2.5), em sua observância da Lei (At 22.12). A palavra, então, aponta para ho­mens que concordavam com a execução de Estêvão, judeus ortodoxos notáveis por sua prática de atos piedosos (agindo em obediência a Dt 21.22s.)? Se for isso, por que eles? Por que não os "crentes" ou os "jo­vens" como em At 5.6,10? Por que Lucas diz que (somente) eles fize­ram "grandes lamentações" por Estêvão e não "a igreja"? Por que não "os apóstolos" se de fato eles foram os únicos que foram poupados na perseguição que seguiu após a morte de Estêvão (At 8.1)? Lucas talvez esteja tentando encobrir o fato de que os cristãos hebreus virtualmente haviam abandonado Estêvão, então foram contrariados por sua visão do Templo? Talvez eles cressem que Estêvão trouxera as conseqüências sobre si mesmo, ainda que sua morte fosse apenas a recompensa à ra- dicalidade de sua visão. De qualquer maneira, parece que a visão de Es­têvão tinha, no mínimo, perdido a simpatia dos hebreus cristãos locais, que sentiram que Estêvão foi longe demais, e que havia comprometido em muito a existência de toda a nova seita; ao tacitamente repudiar a visão de Estêvão, eles tornaram possível sua presença contínua dentro de Jerusalém10. Se for o caso, então as ramificações desse primeiro cisma confessional se tornou mais aparente - os cristãos hebreus buscavam preservar sua posição dentro do judaísmo e por meio disso sair na dire­ção oposta de seus colegas crentes que estavam saindo mais e estavam prontos para seguir as implicações do ensino de Jesus até mesmo quan­

10 Note a ansiedade dos cristãos de Jerusalém em refutar a mesma acusação (de alterar ou abandonar "os costumes" transmitidos desde Moises) contra Paulo (At 21.21; cf. 6.14); ver também acima §56.3.

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do isso significasse uma reavaliação radical da compreensão da nova seita frente e em relação ao judaísmo como um todo.

(g) Finalmente podemos notar que a perseguição deflagrada pela morte de Estêvão parece ter afetado somente ou principalmente a par­cela helenística de cristãos. O evangelismo inicial e a discussão de Es­têvão foram, evidentemente, realizados nas sinagogas helenistas (At 6.9s.). Sua visão do templo, naturalmente, causaria muita ofensa àque­les que abandonaram seus domicílios na Diáspora, precisamente, a fim de viver em Jerusalém a cidade do templo; a atitude de Estêvão para com o templo pode efetivamente, em parte, ser explicada como a reação de um jovem zangado com a supervalorização do culto do templo pelos seus anciãos. Em todos os eventos foram os helenistas que cogitaram a acusação contra Estêvão e sua prisão (At 6.1 ls.), e, significativamente, a parte principal na perseguição subseqüente foi conduzida por Paulo, um judeu da Diáspora (G11.13,23; F13.6; At 8.3; 9.1ss.). Em outras pa­lavras, a perseguição tinha as marcas de um conflito intra-helenístico. Isso sugere fortemente que o principal, talvez os únicos alvos da persegui­ção fosse os helenistas (cristãos) renegados, e que os crentes hebreus fos­sem capturados por ela incidentalmente ou somente por breve tempo. Lucas sustenta que a igreja inteira foi dispersa, com exceção dos apóstolos (At 8.1); mas uma perseguição que se concentrasse sobre os numerosos seguidores e ignorasse os lideres de qualquer movimento proscrito é muito difícil de aceitar e contraria a estratégia óbvia do massacre (cf. At 12.1-3). Ademais, em Jerusalém os helenistas se sobressaiam e se­riam facilmente reconhecidos, e os cristãos helenistas que partilhavam a visão de Estêvão teriam poucos amigos para protegê-los; enquanto que, os cristãos hebreus, locais ainda leais ao Templo e à Lei, estariam relativamente seguros.11 Qualquer que seja o real escopo da persegui­ção, o fato parece ser que os helenistas quase que totalmente deixaram Jerusalém (At 8.4ss; 11.19ss.), e daí em diante a igreja de Jerusalém con­sistiria quase que inteiramente de hebreus, o baluarte do cristianismo judaico mais conservador nas disputas subseqüentes sobre a missão gentílica (ver acima §56; cf. Ciem. Hom., XI.35 - Tiago, o líder da igre­ja dos hebreus em Jerusalém). Nesse caso a perseguição conseqüente da morte de Estêvão simplesmente separou ainda mais os dois lados cismá­ticos que a visão de Estêvão já havia provocado.

11 K n o x , Jerusalem, p . 57 , n. 42.

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Eis então um elemento considerável de diversidade dentro do cristianismo quase que muito cedo em sua existência, de fato, um cisma dentro da primeira co­munidade cristã. Com efeito, descobrimos em parte no mínimo a primeira divisão entre dois tipos de cristãos - conservadores e liberais (para usar categorias amplas e reconhecíveis) - uma se agarrando a tradição, a ou­tra se desvinculando dela à luz das circunstâncias variáveis. Os crentes hebreus locais pensavam que era mais importante se manter dentro do padrão de judaísmo já existente - como o próprio Jesus fez, é claro. Mas os crentes helenistas evidentemente começaram a dar mais importância àqueles elementos na tradição - Jesus que não achariam uma expressão contínua dentro do padrão do judaísmo então predominante: o tecido novo começava a rasgar a antiga vestimenta, o vinho novo a arrebentar os odres velhos - como Jesus também havia previsto (Mc 2.21s.).

§ 61. TENDÊNCIAS GNÓSTICAS DENTRO DO CRISTIANISMO DO SÉCULO I

Se o cristianismo se disseminou para fora tão rapidamente como o resultado da visão dos helenistas e da conseqüente perseguição (At 8.4ss; 11.19ss.), então, qual seria a sua extensão antes de perder o con­tato com suas raízes no judaísmo e com o seu centro em Cristo? Quão diverso o cristianismo se tornou nas igrejas missionárias que surgiram do trabalho dos helenistas12 e dos labores apostólicos de Paulo? Quão sincréticas ou gnosticamente inclinadas eram as igrejas tratadas dentro do NT? Nesta seção começamos nossa tentativa de responder essas questões ao examinar aquelas comunidades cristãs ou partes de igreja cristã que parecem ter mais abertura e serem mais influenciadas por categorias e conceitos característicos trazidos dos sistemas gnósticos do séc. II em diante13.

12 P o r in flu ê n cia d ire ta d a v isã o d e E stê v ã o v e r acima p . 284, n. 59. O u tra s su g estõ es in c lu em G . F riedrich , "D ie G e g n e r d es P a u lu s im II K o rin th e rb r ie f" , Abraham unser Vater, O . M ichel F e s tsch rift, o rg ., O . B etz, M . H engel & P . S chmidt, L e id e n 1963, p p. 181-215, q u e a rg u m en ta a fa v o r d e p o r u m elo en tre E stêv ã o e os o p o ­n e n te s d e P au lo e m 2 C o rín tio s , e C ullmann , Johannine Circle, q u e su g ere u m elo en tre os h e le n ista s e o c írcu lo d o q u a l o Q u a rto E v a n g e lh o em erg iu .

13 Omitiremos Hebreus, ainda que de alguma maneira seja o documento mais hele­nístico do NT em sua utilização da cosmovisão platônica (ver acima pp. 393ss).

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1. A igreja em Corinto. 1 Coríntios fornece a evidência mais clara no NT de uma divisão dentro de uma comunidade cristã.

Eu vos exorto, irmãos, em nom e de nosso Senhor Jesus Cris­to guardai a concórdia uns com os outros, de sorte que não haja divisões entre vós; sede estreitam ente unidos no mesm o espírito e no m esm o modo de pensar. Com efeito, meus irmãos, pessoas da casa de Cloé me informaram que existe rixas entre vós. Explico-me:Cada um de vós diz: "Eu sou de Paulo" ou: "Eu sou de A poio!", ou:"Eu sou de Cefas!" ou: "Eu sou de Cristo!" Cristo estaria dividido? Paulo teria sido crucificado em vosso favor? Ou fostes batizados em nom e de Paulo? (IC or 1.10-13)

Essa passagem, freqüentemente, tem sido entendida como se refe­rindo a quatro partidos em Corinto - um partido de Paulo, um partido de Apoio, um partido de Pedro e um partido de Cristo - os primeiros três expressando lealdade a uma figura significativa da missão primi­tiva do cristianismo, e o partido de Cristo provavelmente rejeitando tal partidarismo, mas de modo arrogante, talvez de uma maneira exclusi­va, reivindicando lealdade a Cristo somente, porém da mesma manei­ra que os outros, constituindo um quarto partido14. J. M unck, por outro lado, argumenta que não havia de fato nenhum "partido" ou facções em Corinto, mas apenas guerra de palavras provocada por uma ava­liação errônea da sabedoria15. A melhor explicação talvez seja a N. A. Dahl:16 Não havia quatro facções diferentes, mas somente duas - um partido pró-Paulo e uma facção hostil a Paulo. Isso é mais claramente indicado por três pontos. (1) Não há quaisquer traços de três pontos de vistas opostos no restante da carta: todos os problemas parecem ter surgido de uma única forma de ensino que colidia em vários pontos com Paulo. Havia certamente cristãos judeus em Corinto (como di­mensões do problema atacado em ICor 8-10 deixa claro), mas eles não parecem ter sido hostis a Paulo, e provavelmente, não formavam um partido coerente como tal, ainda que fosse muito possível que um ou

14 Ver J. C. H urd , The Origin o f I Corinthians, SPCK 1965 , cap. 4, para teorias dife­rentes do assunto em questão.

15 M unck, Paul, cap . 5.16 N . A. D ahl, "Paul and the Church at Corinth in ICor 1 .1 0 -4 .2 1 " , Christian

History and Interpretation: Studies Presented to John Knox, org. W. R. F armer, C. F. D. M oule & R. R. N iebuhr, Cambridge University Press 1967 , pp. 313-35 .

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dois deles oferecessem o slogan: "Eu sou de Cefas" como um tipo de protesto contra as duas facções mais distintas. (2) Na seção de aber­tura lidando com o partidarismo, Paulo, de fato, não lida com vários grupos: a seção inteira, ICor 1.10-4.21, é uma apologia de Paulo para ele mesmo, sua conduta, seu ministério, uma tentativa de re-estabele- cer sua autoridade contra os ataques sofridos por ele. (3) Em resposta imediata aos diferentes slogans Paulo representa sua questão em ter­mos de dois partidos somente - aqueles que reivindicavam adesão a ele mesmo e aqueles que reivindicavam adesão a Cristo. Havia um partido de Apoio e um de Cefas distintos do partido de Cristo, as questões de Paulo, provavelmente, também os envolviam: "Apoio foi crucificado por vós?", ou "Fostes batizados em o nome de Cefas?" Similarmente, em 2 Coríntios 10.7 ele confronta somente aqueles que reivindicavam ser de Cristo de maneira exclusiva - nenhum outro partido é visado.

Por que, então, quatro slogans diferentes em 1.12? Dahl responde essa questão adequadamente:

Aqueles que diziam : "eu sou de Pau lo" orgulhavam -se dele e sustentavam que sua excelência superava a de Apoio ou de Cefas. Os outros slogans devem ser entendidos com o declaração de independência de Paulo. A poio é m encionado com o o m ais destacado m estre cristão que visitara Corinto depois de Paulo. Cefas é o notável m ais fam oso, a prim eira testem unha da ressu r­reição, um apóstolo antes de Paulo. O slogan: "eu sou de C risto" não é o lem a de um "P artido de C risto" específico, m as quer dizer, sim plesm ente "eu sou som ente de C risto - e independente de P au lo "17.

Então, quem são os oponentes de Paulo em Corinto? A melhor explicação é a de que eles eram cristãos fortemente influenciados pelo tipo de pensamento que caracterizaria mais tarde o gnosticismo, e de expressão entusiástica (ver acima p. 280s). Com efeito, muitos erudi­tos estariam dispostos a chamá-los de gnósticos,18 ainda que não haja

17 D a h l , "Paul and Church at Corinth", p. 322.18 Ver p.ex. K ü m m e l , Introduction, pp. 274s. E aqueles citados por Paulo aí. O mais

forte proponente da tese de que os oponentes de Paulo eram gnósticos é W. S c h m it h a l s , Gnosticism in Corinth, 2a ed., 1965, ET Abingdom 1971.

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nenhuma evidência nas cartas aos coríntios de um sistema gnóstico completo, particularmente na área da cristologia19.

(a) Fica claro, particularmente de ICor 2.6-3.4, que Paulo confron­tava em Corinto àqueles que se chamavam de pneumáticos, espirituais (;pneumatikoi) - uma palavra-chave gnóstica; com efeito, em todos os três exemplos em que Paulo usa a palavra em 1 Coríntios ele parece as­sumir a linguagem de seus oponentes (ICor 2.13,15; 3.1; 12.1; 14.1, 37; 15.44, 46). Com isso, a auto-estima estava ligada a uma alta avaliação do que eles chamavam de "sabedoria" (Sophia). Como pneumáticos e sábios eles faziam descaso de Paulo por seu ensino ingênuo, tanto em sua maneira e em conteúdo (ICor 1.17-2.5); eles haviam deixado para trás o leite de seu ensino em troca de alimento sólido da sabedoria mais profunda (ICor 3.1s.). Eles já haviam atingido a plenitude, já estavam ricos, reinando, e, conseqüentemente, podiam olhar de cima para os seus colegas crentes com orgulho inflado, com arrogância e acima de Paulo como o mestre de ensino rotulado de cristianismo inferior (ICor 4.6, 8, 10, 18). Claramente, então, eles viam o cristianismo como uma forma de sabedoria e a si mesmos como possuidores de uma sabedoria mais profunda, uma espiritualidade mais elevada; em contraste com os outros crentes eles eram maduros, os espirituais. Os paralelos aqui com o pensamento gnóstico de mais tarde são surpreendentes. Os sis­temas gnósticos diferiam em muitos pontos, mas tipicamente gnóstica era a divisão da humanidade em duas (ou três) classes, com os pneu­máticos inerentemente superiores ao restante20. A Sabedoria (Sophia) desempenhava um papel importante em seu entendimento da salva­ção21. E a cruz era um constrangimento para alguns no mínimo.22

19 Ver aqueles citados por E. Y a m a u c h i , Pre-Christian Gnosticism, Tyndale Press 1973, pp. 39-43. Ver mais abaixo nota 59. Se de fato 2 Coríntios 10-13 "falsos apóstolos" apresentavam a Jesus como um supremo operador de milagres (ver acima pp. 149s, 289s), então precisamos inferir que o deleito coríntio no miracu­loso foi tomado, mais explicitamente, de uma reviravolta cristológica no tempo em que Paulo escreveu 2Cor 10-13 (ver mais abaixo p. 433s).

20 Ver particularmente Irineu, adv.haer., 1 .5.4-6.2,4; 7.5; 8.3; Clemente, Exc. Theod., 2.s; 53-58; Hypostasis o f the Archons, 87.18.

21 Particularmente no sistema valentiniano mais elaborado: ver p.ex. Irineu, adv. haer., 1.7.1; 21.5; Clemente, Exc.Theod., 44s, 53. Note certa identificação no pen­samento Valentiniano entre a Sabedoria e o Espírito (Irineu, adv.haer., 1.24.4; Clemente, Exc. Theod., 61.6).

22 Assim Cerinto, Basílides e os Valentinianos (Irineu, adv.haer., 1.26.1; 1.24-4; 1.7.2; Clemente, Exc. Theod., 61.6). ’

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(b) As questões de imoralidade e matrimônio tratados em 1 Co­ríntios 5-7 também podem refletir um pensamento gnóstico antigo ou pré-gnóstico. Como bem se sabe, o dualismo gnóstico do espírito e cor­po podia levar ou a promiscuidade ou ao ascetismo. Se somente o espí­rito é bom e o corpo mal, barro desprezado, uma prisão encarcerando a centelha divina na matéria, então logicamente não é tem importância como o corpo é tratado: podendo ser entregue até mesmo à sensualida­de mais grotesca (o espírito não sendo afetado)23 ou privações24. Assim a imortalidade de 1 Coríntios 5-6 muito bem pode ser o corolário de idéias gnósticas acerca do corpo, combinado com as pressões sociais de uma Corinto notória por sua licenciosidade social (daí o argumento de 6.15-20). Assim também, se 1 Coríntios 7.36-38 reflete um matrimônio ascético ou espiritual, isso, possivelmente, também poderia ser uma conseqüência das mesmas idéias básicas, possivelmente combinadas com uma reação contra a lassidão imoral de Corinto e com a expecta­ção de uma consumação iminente25.

(c) A tensão na comunidade coríntia, entre os consumidores de carne e os "vegetarianos", exibe-se muito mais como uma divisão entre os gnósticos e os outros (ICor 8-10). Os "homens de conhe­cimento", obviamente, tornavam seu conhecimento maior (gnõsis), sua percepção e entendimentos superiores (ICor 8.1, 7, 10, 11), em uma maneira similar ao gnosticismo de mais tarde26. "Temos o co­nhecimento", era obviamente sua reivindicação orgulhosa (ICor 8.1, 10) - provavelmente também, "Conhecemos a Deus e somos conhecidos dele" (8.3 - cf. Evangelho da Verdade, 19.33). Conseqüen­temente eles não achavam nada dos ídolos e se sentiam inteiramente livres para se unir e desfrutar das festas que aconteciam nos templos

23 Irineu, adv.haer., 1.6.2; 25.3s.; Clemente, Strom., III.10.1; Hipólito, Ref., VI.19.5; Epifânio, Pan., 40.2.4.

24 Irineu, adv.haer., 1.24.2; Hipólito, Ref., V.9.11; Epifânio, Pan., 45.2.1-3.25 Cf. particularmente Ireneu, adv.haer., 1.6.3.26 Basílides - "O Evangelho é, de acordo com eles, o conhecimento das coisas su-

pramundanas" (Hipólito, Ref., VII.27.7). Valentinianos - "O fim virá quando tudo que é espiritual for moldado e aperfeiçoado mediante o conhecimento...", "Eles reivindicam que têm mais do conhecimento do que todos os outros, e que eles sozinhos têm atingido a grandeza do conhecimento do poder inefável"; "O homem interior, espiritual é redimido pelo conhecimento" (Irineu, adv.haer., 1.6; 13.6; 21.4). Veja também Hipólito, Ref. V.6.4, 6; Epifânio, Pan., 26.10.7-9; 31.7.8s.; Poimandres, 26s, 32. etc.

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- novamente assim como aqueles que fariam a mesma reivindicação no séc. II27.

(d) O conceito espiritual dos pneumáticos (eles diriam o conhe­cimento do estado real das coisas), provavelmente, está refletido com as várias outras discussões que atormentavam a igreja coríntia - ainda que nem todas. Fica claro em sua conduta às refeições comuns e a ceia do Senhor (ICor 11.17-22,33): uma seção da comunidade se aprovei­tava da ocasião para uma boa refeição e ignorava os membros mais pobres que tinham pouca comida ou que chegavam mais tarde. Quase certamente, o primeiro grupo fosse do mesmo grupo cujos conheci­mentos superiores os capacitavam a desfrutar das boas coisas da vida- tratavam a refeição comunitária e da ceia do Senhor como os banque­tes idólatras que também freqüentavam (cf. ICor 10.19-21).28 O mesmo conceito espiritual é evidente, novamente, no assunto dos dons espi­rituais (pneumatika), particularmente suas experiências de inspiração extática quando falavam em línguas (ICor 14.12,23,33), considerando tais experiências como uma manifestação de sua espiritualidade su­perior, e desconsiderando aqueles com dons menos extraordinários como dignos de pouca estima (ICor 12.21). Pode até mesmo aconte­cer que em 12.3 tenhamos uma das formulações mais antigas de uma cristologia gnóstica característica - o Jesus terreno não era valorizado, somente o Cristo exaltado que importava29.

(ie) Mais tarde um traço formidável do gnosticismo seria a sua con­vicção de que o conhecimento real do estado das coisas e de si próprios lhes fora dado e, por isso, eles já seriam "perfeitos"30. Analogamen­te vemos na facção coríntia oposta a Paulo uma super ênfase sobre o "já" e o negligenciar do "ainda não" da salvação escatológica. Daí a linguagem inflada de ICor 4.8: "Vós já estais saciados! Já estais ricos! Sem nós, vós vos tornastes reis! Oxalá, de fato, vós tivésseis tornado reis, para que nós também pudéssemos reinar convosco". Assim tam­bém o tópico inteiro de ICor 10.1-12 era obviamente advertir aqueles

27 Irineu, adv.haer., 1.6.3; 24.5.28 Sobre a atitude dos coríntios para com o batismo e a ceia do Senhor ver mais

acima §39.5 e pp. 271, 274s.29 Ver a breve discussão em D u n n , Jesus, pp. 234s. e ns. 176,177 e 180.30 Com em Irineu, adv.haer., 1.6.4; 13.6; Clemente, Strom., III. 1 (Basílides, Fragmen­

tos, 8.3); Hipólito, Ref., V .8,9,29; Atos de Tomé, 18.34; 36.20; 42.28; 43.20; Evangelho de Filipe, 31,100; Tomé o Lutador, 140.10s; *145.17.

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que pensavam terem alcançado (presumivelmente pela virtude de sua participação nos sacramentos);31 do contrário eles ainda estariam a ca­minho, e bem poderiam vir a lamentar como resultado de sua inflada auto-confiança - a exemplo do que aconteceu aos Israelitas entre o Mar Vermelho e o Jordão fornecendo um doloroso precedente. Provavel­mente o exemplo mais claro da mentalidade do "já" dos pneumáticos coríntios seja a sua atitude para com a ressurreição (15). Eles devem ser obviamente identificados como o grupo na igreja coríntia que afirmava "que não há ressurreição dos mortos" (ICor 15.12). O que provavel­mente queriam dizer era que não havia nenhuma ressurreição futura, nenhuma ressurreição por vir: já haviam sido ressuscitados, experi­mentando por meio de sua participação na doação de vida do Espírito na ressurreição dele que pela ressurreição se tornou Espírito doador de vida (ICor 15.45). Ao negar a ressurreição dos mortos, negavam qualquer ressurreição do corpo (da morte): a salvação não dependia do que aconteceria ao corpo após a morte - de fato a ressurreição do corpo (matéria) seria incompreensível a um gnóstico, uma contradição de seu dualismo fundamental entre o espírito e matéria; ao contrário, a salvação já estava assegurada, a ressurreição já era deles na ressur­reição do Espírito.32 Aqui, mais uma vez, temos o que o gnosticismo afirmaria mais tarde.33

Para resumir, a raiz do problema enfrentado por Paulo em Corin­to era, quase certamente, a influência mais forte das idéias gnósticas (ou pré-gnósticas) de uma grande parcela da comunidade cristã. Indu­bitavelmente, a situação era mais complicada do que somos capazes de mostrar, mas é suficiente para demonstrar que o que pode ser apro­priadamente chamado de tendências gnósticas presentes dentro da igre­ja de Corinto. O que precisamos notar é a diversidade dentro dessa congre­

32

31 Ver acima §39.5. Cf. Atos de Tomé, 26 - "O apóstolo lhes disse: "Estou alegre e suplico-vos a receber este selo participem comigo nesta eucaristia e louvem o Senhor e sejais aperfeiçoados por isso'".Ver J. H. W il s o n , "The Corinthians who say there is no resurrection of the dead", ZNW, 5 9 ,1968, pp. 90-107, e aqueles citados por ele nas pp. 95ss; também B a r r e t t , I Corinthians, pp. 347s; R o b in s o n , Trajectories, pp. 33ss; J. H. Schütz, Paul and the Anatomy o f Apostolic Autority, Cambridge University Press 1975, pp. 85s.

33 2Tm 2.18; Justino, Diálogo 80; Irineu, adv.haer., 1.23.5; II. 31.2; Tertuliano, de praes. haer., 33.7; de res.car., 19; Atos o f Paulo e Tecla, 14; Carta a Regino, 49.15ss.; Evange­lho de Filipe, 21, 63 ,90 ,95 . Mas ver mais abaixo pp. 428s.

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gação: havia uma divisão na comunidade, mas as facções ainda eram reconhecidas como pertencentes à comunidade; no fim do espectro do cristianismo coríntio que era familiar e entusiasmado com conceitos extraídos do amplo sincretismo da filosofia religiosa e da cultura he­lenística, mas que não os excluía da comunidade. Em outras palavras, havia gnósticos dentro da igreja em Corinto, e Paulo não os denuncia como não-cristãos, simulacros de crentes. Ele os repreendeu por seu orgulho e falta de amor, mas nunca deixou de reconhecê-los como membros do corpo de Cristo. Resumindo, estamos somente na metade do séc. I, mas já podemos ver uma forma primitiva de cristianismo gnóstico ou pré- gnóstico ganhando terreno - não como uma ameaça ou ataque de fora da igreja, mas como parte do espectro do próprio cristianismo34.

2. Quando olhamos em outros lugares no NT não é muito difícil encontra evidência da pressão das tendências gnósticas dentro da cres­cente orla helenística do cristianismo primitivo.

(a) A situação envolvendo a igreja em Filipos é um tanto complexa, pelo menos aos nossos olhos. Pela "leitura em espelho" a evidência que podemos deduzir é que, como a facção coríntia, muitos na congregação filipense criam que já haviam alcançado o final, já estavam perfeitos e completos (F13.12-15; cf. 1.6,11) de modo que o discurso de uma salva­ção ainda a ser operada deixava-os impassíveis (F12.12) e o discurso de uma ressurreição ainda por vir era irrelevante (F13.10s, 20s.). Como os coríntios suas crenças faziam deles vaidosos, desconsiderando os ou­tros e preocupados somente consigo mesmos em seus assuntos eleva­dos (F12.3s.). Provavelmente, os corolários antinomistas de tais crenças já eram extraídos por eles - pelo menos é o que parece estar envolvido na ênfase em F1 2.21, 14, 3.16, e 4.8s. Conseqüentemente, os filipenses já eram presas prontas para aqueles contra quem Paulo adverte em F1 3.17-19. Quem fazia parte deste grupo posterior? Claramente, eram libertinos que se gabavam de sua sensualidade (grosseira) ("seu deus é

34 Estudos adicionais esclareceram outros fatores sociais particulares (G. T h e i s s e n ,

The Social Setting o f Pauline Christianity, 1979, ET Fortress T & T Clark 1982; P. M a r s h a l l , "Enmity in Corinth: Social Conventions in Paul's Relations with the Corinthians", WUNT 2.23. Tübingen 1987); mas isso, simplesmente, sublinha a complexidade do "amálgama" em Corinto, incluindo elementos religiosos sin- créticos (esp. "o conhecimento") que aponta em direção aos sistemas gnósticos posteriores. ’

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o ventre, sua glória está no que é vergonhoso"). Provavelmente, como os coríntios gnósticos eles achavam que a mensagem da cruz era uma tolice ("Inimigos da cruz de Cristo, o fim deles é a perdição" — cf. ICor1.18). Provavelmente, também se gabassem de seu conhecimento dos assuntos celestiais ("seus pensamentos em coisas da terra" sendo uma paródia ridícula). Assim, mais possivelmente eles eram libertinos com tendências marcadamente gnósticas35.

O que é mais interessante para nós é o seu relacionamento com a igreja em Filipos. Evidentemente, Paulo não os considerava como membros da igreja, como está pressuposto na distinção entre os "mui­tos" e os "irmãos" em F1 3.17s. e entre "eles" e o "nós" de 3.19s. Mas, provavelmente, eles pensassem de si mesmos como cristãos (tinham uma teologia da cruz, seu ensino era muito atraente aos filipenses, e note os paralelos verbais em vv. 16-18). Eles poderiam até terem sido membros da igreja em Filipos no início (por que de outra maneira Pau­lo falaria deles "com lágrimas"?). De modo que suas atitudes liberti­nas rapidamente emergiriam (ou trazidas com eles) e, provavelmente, Paulo viu o perigo que eles apresentariam, desvencilhando-se deles ou descartando-os (cf. ICor 5.12-13). Em todos os eventos estavam em ou próximos da congregação filipense por um longo tempo (F1 3.18), e os atrativos de seu estilo de vida para os filipenses, havia crescido nesse ínterim. Temos aqui um bom exemplo áo efeito e âa interação áe tendências gnósticas ou sincréticas com e dentro de uma das igrejas que Paulo conside­rava muito.

(b) Colossenses. Evidentemente havia aqueles na igreja colossense (não necessariamente uma facção coerente) que poderiam iludir o res­tante "Com argumentos capciosos" (Cl 2.4) - proponentes do que Pau­lo chama de: "Vãs filosofias e enganosas, especulações da 'filosofia', segundo a tradição dos homens, segundo elementos do mundo" (Cl 2.8), que provavelmente consideravam Jesus como uma figura celestial intermediária entre muitas (cf. Cl 2.9, e ver abaixo p. 434). Aparente­mente, eles eram estritamente ascéticos: eles exigiam a observância de

’ Ver particularmente R. J e w e t t , "Conflicting Movements in the Early Church as Reflected in Phillipians", Nov Test, 12,1970, pp. 362-90; M a r t i n , Philippians, pp. 22-36. Eu provavelmente desejaria qualificar esta conclusão agora; veja meu Romans, p. 903; cf. G. F. H a w t h o r n e , Philippians, Word 1983, Biblical Commen­tary 43, pp. XLIV-XIVII.

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festas, lua nova e o sábado (Cl 2.16); estabelecem regulamentos acer­ca dos alimentos (2.16, 21); sua própria abstinência visava mortificar a carne (Cl 2.20-23). Muito provavelmente, chamavam de "culto dos anjos" (e de outros seres espirituais - 2.8?), e tornavam as visões que experimentavam como um sinal de terem atingido um mais alto grau de espiritualidade (Cl 2.18 - ainda que o sentido do verso seja obs­curo).36 Como esse tipo de ensino deva ser designado não fica claro. Tendo em mente que o Mediterrâneo oriental era, naquela época, um amálgama de uma grande variedade de conceitos e práticas religiosos; parece muito, como se tivéssemos aqui um ensino sincrético que extrai elementos do judaísmo, de cultos de mistério, do cristianismo e, prova­velmente, de idéias mais caracteristicamente gnósticas - combinadas em um único sistema, seus proponentes não duvidariam em reivindi­car, o melhor de cada contribuição. Se esse é o caso, temos então uma boa ilustração da natureza do movimento crescente do cristianismo na Ásia Menor, de como foi apagada a fronteira do cristianismo helenístico e quão sutil era a atração para os primeiros cristãos de moldar sua nova fé e culto em formas sincréticas ou gnósticas mais impressionantes.

(c) As Pastorais. Quando passamos para uma geração adiante, en­contramos uma situação não muito mudada, ainda que as advertências contra o falso ensino sejam mais enfáticas e mais freqüentemente reite­radas do que antes. O falso ensino em questão era claramente um tipo de gnose judaica não diferente da encontrada acima em Colossenses. O escritor refere-se a tais como do: "Partido da circuncisão" (Tt 1.10), que tinham em alta consideração a Lei e arrazoavam por sua validade (lTm 1.7; Tt 1.4s; 3.9). Mas conhecimento era também, obviamente, uma palavra-chave (lTm 6.20), e ao propagá-la eles se ocupavam de "fábu­las e genealogias sem fim" (lTm 1.4; 4.7; Tt 3.9). Eram marcadamente ascéticos na prática (lTm 4.3; Tt 1.14s.). E, talvez, o mais surpreendente de tudo, eles acreditavam que a ressurreição já havia acontecido (2Tm2.18). Muito provavelmente, era um ensino que via a redenção em termos de conhecimento do homem espiritual do verdadeiro estado das

36 Ver p.ex. W. L. Knox, St Paul and the Church of the Gentiles, Cambridge University Press 1939, p. 170, e a discussão em E. Lohse, Die Briefe an die Kolosser und an Phi­lemon, KEK 1968, pp. 173-8. Mas ver também F. O. Francis in F. O Francis & W. A. Meeks, Conflict at Colossae, Scholars 1975; P. T. O'Brien, Colossians, Philemon, Word Biblical Commentary 44, Word 1982, pp. 141-6.

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coisas no que se referia ao cosmos e a si mesmo, e que encontra ex­pressão em um desdém enorme para as coisas materiais. Mas o ponto central é que esse ensino não veio de fora. Era um ensino que fora pro­pagado de dentro da comunidade (lTm 1.3s; 2Tm 2.16ss; 3.5; Tt 1.13s; 3.9s.), e que já havia cativado alguns que haviam sido "excomunga­dos" ou expulsos (lTm 1.19s.; Tt 3.10s.; cf. lTm 1.6s; 6.20s.; 2Tm 2.18; 4.14). Quer dizer, mesmo em uma segunda (ou terceira) geração a si­tuação em que a fé estava mais claramente delineada e definida (ver acima §17.4), as fronteiras reais das próprias comunidades não eram assim tão claramente definidas. O ensino gnóstico foi condenado, mas ele ainda era comentado dentro das igrejas, e muitas o achavam atrativo. Aqui, de novo, vemos o mesmo tipo de diversidade de antes, presente dentro de comunidades quase na virada do séc. I.

(d) As igrejas tratadas em Apocalipse 2-3 eram claramente hetero­gêneas. Visivelmente, a igreja de Tiatira tolerava Jezabel: "Esta mulher que se afirma profetisa: ela ensina e seduz meus servos a se prostituí­rem, comendo das carnes sacrificadas aos ídolos." (Ap 2.20; assim Pér- gamo - 2.14s.; compare com Efésios - 2.6). Além disso, seus seguidores se gloriavam em experiências espirituais mais profundas: "Quanto a vós, porém, os outros de Tiatira que não seguem essa doutrina, os que não conhecem as 'profundezas de Satanás' - como dizem eles." (Ap 2.24— ainda que isso fosse adição ou mudança feita pelo vidente para 'Satanás'). Provavelmente, portanto, temos que tratar com um tipo de conhecimento libertino - embora o próprio vidente seja tão estritamen­te oral (Ap 14.4) devemos descontar algo de sua descrição como uma reação superconservadora ao que era uma forma mais liberal de cris­tianismo. Quaisquer que forem os fatos precisos o ponto é que o ensi­no rejeitado pelo vidente e pela igreja em Efeso estava sendo recebido (tolerado é a palavra do vidente) pelas igrejas em Pérgamo e em Tiatira. Nelas os claros limites demarcatórios entre ortodoxo e herético, cristão e não cristão, ainda deveriam ser traçados.

(e) A Epístola de Judas também se opõe ao que é claramente uma forma de espiritualidade pré-gnóstica libertina: v. 19 - "São estes os que causam divisões, estes seres 'psíquicos' não têm o Espírito." Obviamente eles eram pneumáticos que consideravam sua própria inspiração (sonhos ou visões) superiores a qualquer outra autoridade (v. 8). Eram orgulhosos de suas idéias e se gabavam a respeito de sua superioridade espiritual (v. 16). Esse orgulho no conhecimento espiri­

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tual fora combinado com desinibida indulgência do corpo: converte­ram a graça de Deus em libertinagem (v.4); como os gnósticos coríntios eram completamente suficientes em seu comportamento nas refeições comunitárias (v. 12); eles eram indulgentes para com a imoralidade se­xual e vícios contra a natureza (vv. 7s); agiam como brutos sem razão, seguindo suas paixões ímpias (vv. 10, 18). Aqui certamente estamos lidando com uma forma de ensino gnóstico, muito mais como aque­le referido acima (pp. 411, nota 23, 412, nota 27), no qual se pensava que o corpo tinha pouca relação com o Espírito dentro dele de modo que seria livremente tratado sem lesar o espírito. O verso importante para nós é o v. 12 - "São eles que constituem escolhas nos vossos ága­pes". Quer dizer, os gnósticos não eram estranhos tentando subverter e cativar os crentes verdadeiros, eles eram de dentro da comunidade, tomavam parte nas refeições fraternas37. Além do mais, Judas, como as Pastorais, não faz qualquer tentativa real de responder o desafio desse ensino; e embora os ameace com o juízo de Deus (vv. 5-7, 13, 15), ele não pede para que sejam expulsos da comunidade. Em outras palavras,o cristianismo, do qual Judas tratava, não era uma fé pura e sem adulteração, mas um cristianismo que continha dentro de si mesmo alguns elementos do tipo gnóstico (ou pré-gnóstico). Uma conclusão similar seria extraída de 2 Pedro visto que o capítulo-chave (2Pd 2) também profundamente de­pendente de Judas.

3. Por conseguinte, aqui estão comunidades em diferentes épocas no séc. I e, provavelmente, em direção ao séc. II também, que conti­nham um grau considerável de diversidade; um espectro de diversi­dade que se estende sobre a fé e a conduta que a Igreja, mais tarde, acharia inteiramente inaceitável - uma trajetória (se a metáfora não for errônea) cujo avanço externo continuamente se fundiria em tipos de crenças e práticas gnósticas que mais tarde a ortodoxia condenaria como heréticas. Há várias tentativas, feitas pelos escritores de cartas, de efetuar uma idéia clara do que é a diversidade aceitável e quais

37 F. W isse, "The Epistle of Jude in the History of Heresiology", Essays on the Nag Hammadi Texts in Honour of A. Bôhlig, org., M. K rause, Leiden 1972, pp. 133-43, nega que Judas tenha uma situação histórica particular em mente, embora fa­lhe em explicar como Judas poderia ainda imaginar tais pessoas como partíci­pes aceitos nas refeições fraternas cristãs. Mas ver R. J. B auckham , Jude, II Peter, Word Biblical Commentary 50, Word 19&3, pp. 11-13.

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crenças e condutas deveriam ser inaceitáveis. Mas nas próprias comunida­des um espectro considerável de diversidade era, evidentemente, contado como aceitável - uma diversidade que abarcava dentro de si elementos que mais tarde se caracterizaram na explosão máxima do gnosticismo, os gnósticos participando na vida interna da igreja como membros ple­namente aceitos. Em outras palavras, não veremos nesse estágio uma igreja, bem de longe a Igreja com um sistema completamente cristão de fé e ordem, no qual os únicos falsos mestres vêm de fora e são clara­mente reconhecíveis como tais. Ao contrário, o fato de que somente um sistema modesto de disciplina e exclusão tinha sido alcançado até mes­mo nas Pastorais implica que não havia ainda visões definidas ou unânimes considerando a ortodoxia e a heresia, e que esses só estavam começando a se tornar conceitos apropriados quando o séc. I está próximo do fim38.

§ 62. A "PREDISPOSIÇÃO GNOSTICIZANTE" DE Q?

J. M. Robinson, elaborando algumas pistas a partir de Bultmann, aponta que os paralelos mais próximos à forma literária de Q são, de um lado, as coleções de ditos de Sabedoria tais como encontramos em Provérbios e de outro lado a coleção de ditos de Jesus apresentado a nós nos Papiros Oxyrinchus e o Evangelho de Tomé. Ele designa Gattung, Logoi Sophõn - "Ditos dos Sábios", ou "Palavras do Sábio"- sugere, conseqüentemente, que Q se dispõe em uma trajetória desde a sabedoria judaica para o gnosticismo helenístico no qual uma ten­dência gnosticizante está em operação. H. Kõester, seguindo a tese de Robinson, qualificou-a argumentando que o Evangelho de Tomé é de­rivado de tradições pré-Q (alguns dos logia de Tomé parecem mais primitivos do que a versão Q) - tradições pré-Q "em que a expectativa

38 Cf. A. D. Nock, "Gnosticism", Essays on Religion and the Ancient World, org. Z. Stewart, Oxford University Press 1972: "O que chamamos de gnosticismo me parece ser o agregado de uma série de respostas individualistas à situação reli­giosa - as respostas, contudo, de homens que, em muitos casos, não teriam pensado de si mesmos como de algum modo cismáticos. A cristalização do que veio a ser ortodoxia foi um processo gradual, uma progressiva eliminação das idéias que se provaram inaceitáveis" (p. 954 - grifos nossos).

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apocalíptica do Filho do Homem estava ausente" - e Q introduziu esse elemento apocalíptico: "Para checar as tendências gnosticizantes dos ditos desse Evangelho"39. Podemos, então, falar da predisposição gnosti­cizante de Q? Teremos que situar Q em uma trajetória gnosticizante?

1. Várias considerações levariam a indicar uma resposta positiva a essa questão.

(a) Cerca de um quarto dos 114 ditos de Tomé são paralelos in­teiramente ou em parte com a tradição Q40. Se incluirmos na compa­ração do material de Q aqueles reproduzidos somente por Mateus ou somente por Lucas ou possivelmente o material (pré-) Q prove­niente somente de Tomé, a proporção chega a quase um terço. Por conseguinte, claramente há uma continuidade entre a tradição da qual Q foi preservada e o Evangelho de Tomé, e Tomé é finalmente dependente daquela tradição em grau muito marcante. Um exemplo com uma leve modificação é o logion 86 - interessante por ser o único dito do Filho do Homem preservado em Tomé: "Jesus disse: (As raposas tem suas tocas) e as aves têm (seus) ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça (e) para descansar" (cf. Mt 8.20/Lc 9.58)- somente as duas últimas palavras foram adicionadas (cf. logia 50, 51, 60, 90).

(b) Um dos traços de Q mais dignos de nota é a ausência de qualquer interesse no sofrimento ou morte de Jesus - isto é, não meramente a falta de qualquer narrativa da paixão, mas também a ausência de quaisquer predições da paixão que recebem tanta ênfase na segunda parte de Marcos (Mc 8.31; 9.31; 10.33s, 45). Como observado acima (p. 112, nota 19), a idéia do sofrimento e rejeição não está inteiramente ausente de Q, mas, dificilmente, é óbvia, e os ditos em questão seriam interpre­tados de outra maneira. Os únicos usados por Tomé são o Logion 55 (Mt 10.38/Lc 14.27) e o logion 86 (citado acima); mas esses devem ser entendidos, provavelmente, em um sentido gnóstico da existência da

39 J. M. R obinson , "Logoi Sophon: on the Gattung of Q", Trajectories, cap. 3; também em FRP, cap. 5; H . K öester, "Gnomai Diaphoroi", Trajectories, cap. 4 (ver espe­cialmente as pp. 126-43); também "One Jesus", Trajectories, cap. 5 (pp. 166-87 - citação de 186s). Para o relacionamento dos fragmentos de Oxyrhinchus com Tomé ver H ennecke, Apocrypha, I, pp. 97-113.

40 6b, 1 6 ,21b, 2 6 ,3 3 a , 33b, 3 4 ,3 6 ,3 9 a , 4 4 ,4 5 ,4 6 ,47a, 5 4 ,5 5 ,6 4 ,6 8 , 69b, 7 3 ,76b, 78, 86, 89, 91 (?), 92a, 9 4 ,95(?), 96 ,101 ,103 , lÖ6b(?), 107.

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Sabedoria e do homem espiritual sem morada neste mundo, sem des­canso ou aceitação dentro da criação material.

(c) Finalmente podemos observar quão forte é a influência da sabe­doria dentro de Q. Parece que Jesus ainda não é identificado com a Sa­bedoria41. Mas Jesus certamente é apresentado por Q como um mestre de Sabedoria42. Considerado juntamente com o último ponto, portanto, parece que a tradição Q apresenta o ensino de Jesus como um guia para viver nos últimos dias ao invés do kerygma, com Jesus entendido como aquele cujas palavras têm significado escatológico muito aparte de qualquer questão de sua morte e ressurreição. Quando nos volta­mos para o Evangelho de Tomé encontramos um paralelo significati­vo, até onde muitos dos mesmos ditos reunidos com todo o restante são apresentados como as palavras do Jesus vivente que assim dá vida mediante seu ensino (cf. logion 52): "Fé é entendida com a crença nas palavras de Jesus", que desvenda a: "Sabedoria eterna a respeito do eu verdadeiro do homem".43

Eis, então, algumas bases possíveis para ver Q como localizada primitivamente na mesma trajetória gnosticizante da Sabedoria à qual pertence Tomé.

2. Por outro lado, não podemos ignorar pelo menos dois fatores.(a) Não há nada distintivamente gnóstico em Q, enquanto que o Evan­

gelho de Tomé tem traços tipicamente gnósticos. Veja especialmente

Logion 29 - Jesus disse: Se a carne veio a existir por causa do espírito, é um a m aravilha; m as se o espírito (veio a existir) por cau­sa do corpo, é um a m aravilha das maravilhas. Mas eu me m aravi­lho de com o essa grande riqueza se acom odou nessa pobreza.

Logion 50 - Jesus disse: Se disserem a vós, De onde viestes? Digam-lhes, Viemos da luz, (do) lugar onde a luz veio a existir m e­diante si somente...

Logion 77 - Jesus disse: Eu sou a luz que está sobre tudo. Eu sou o Tudo; o Tudo veio de m im e Tudo me alcançará. Rache a m a­deira; Eu estou lá. Levante a pedra, e me encontrarás lá44.

41 Ver acima pp. 106ss; também G. N. S tanton, "On the Christology of Q", CSNT pp. 36ss.

42 Ver particularmente R. A. E dwards, A Theology o f Q, Fortress 1976, cap. 5.43 K õester, "Gnomai Diaphoroi", Trajectories, pp. 138s; "One Jesus", Trajectories, p. 186.44 Outros bons exemplos de logia manifestamente de caráter gnóstico incluem 39,

60 e 87.

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Além disso, Tome foi capaz de usar material antigo do tipo Q precisamente por lê-lo como conhecimento ou elaborando-o em uma direção gnóstica. Assim, como vimos acima, somente dois dos poucos ditos de Q poderiam ser prontamente interpretados como alusões ao sofrimento e rejeição de Jesus, retidos em Tomé, em um caso com pe­quena, mas significante adição para dar-lhe um toque gnóstico (logion 86). Outros dois exemplos são:

Logion 2 - Jesus disse: Aquele que procura precisa não parar de procurar até encontrar (cf. logion 92; Mt 7 .7 /Lc 11.9); e quando encontrar, ele ficará desconcertado; e se ficar desconcertado, ele se m aravilhará, e será rei sobre tudo.

Logion 3 - ... Mas o reino está dentro de vós e fora de vós (cf.Lc 17.21). Quando conhecerdes a vós m esm os, então sereis conhe­cidos; e conhecereis que vós sois os filhos do Pai vivente. Mas se não conhecerdes a vós m esm os, então estais na pobreza, e vós sois a pobreza.

(b) A diferença mais surpreendente entre Q e Tomé está na área da escatologia. Pois Q é inteiramente escatológico e caracterizado em um grau significativo pela expectativa do retorno do Filho do Homem em breve45; enquanto em Tomé o interesse escatológico é quase totalmente ausente, e o material do tipo sinótico que preserva foi inteiramente desescatologizado. Assim, por exemplo:

Logion 10 - Jesus disse: Eu lancei fogo sobre o m undo (note o tempo passado - cf. Lc 12.49), e contem plo, eu vigio enquanto está em chamas.

Logion 18 - Os discípulos disseram a Jesus: Fale-nos de que m aneira nosso fim acontecerá. Jesus disse: Tende vós de fato desco­berto o início de modo que possais buscar o fim? Pois no lugar onde está o início, ali estará o fim. Bendito é aquele que estiver no início, e ele conhecerá o fim e não experim entará a morte.

Logion 4 6 - ... Mas tenho dito que qualquer um dentre vós que se tornar um a criança conhecerá o reino e será m aior do que João (cf.Mt 18.3; Mt 11 .11 /L c 7.28).

45 Ver E dwards, Q , pp. 37-43 e aqueles citados por ele ali; K õester, Introduction, vol.2, p. 148. ’

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Ver também a ênfase realizada em 1.3, 11, 19, 35, 37, 51, 59, 111, 113, e note como as parábolas de crise se tornam advertência à pru­dência antes vigilância para o escaton (21, 103), e como as parábolas do reino se tornaram ditos de sabedoria (8, 76,109). Kõester argumen­ta que Tomé reflete um estágio da tradição Q quando a ênfase esta­va inteiramente realizada; mas eu não acho que a escatologia futura no ensino de Jesus pode ser descartada tão rapidamente (ver abaixo §67.2) - assim o material de Q é quase certamente antigo e muito mais próximo à ênfase de Jesus do que qualquer versão não escatológica da tradição de Jesus. Mais pertinente aqui, o material de Tomé nesses logia mencionados exibe muito mais tradição de-sescatologizada do que a tradição pré-escatologizada - com a escatologia do logion 57 vista mais como um resíduo não removido em vez de com um precursor de uma escatologização mais acabada.

3. Resumindo, não precisamos super-enfatizar o caráter de sabe­doria de Q. Se o elemento escatológico era tão forte quanto aparen­ta, então Q não estava certamente satisfeito em retratar Jesus apenas como o mestre da sabedoria que de e por causa de suas palavras; ao contrário, o retorno em breve de Jesus como o Filho do Homem era parte de sua cristologia e da sua mensagem. Ainda, ao mesmo tempo, permanece o fato de que Q não foi conservado pelas igrejas cristãs que permaneceram (como conservaram a outra fonte de Mateus e Lucas- Marcos); elas retiveram-no somente como acréscimo, inserido dentro do quadro de Marcos - isto é, somente quando, firmemente, unido à narrativa da paixão, somente quando situada em conjunção com e no contexto do ministério total de Jesus, vida, morte e ressurreição. As igrejas primitivas não escolheram preservar e usar o ensino de Jesus isolado de sua morte; Q, aparentemente, não era tratado como um evangelho pela maio­ria dos cristãos primitivos. Muito possivelmente eles reconheciam o pe­rigo de apresentar Jesus simplesmente como um revelador e mestre de sabedoria. E não é impossível que até mesmo alguns vissem o perigo de Q sendo varrido em direção da trajetória da Sabedoria gnosticizante- embora nesse caso, pelo menos, a metáfora da trajetória em si sugira uma conexão mais firme e continuidade com os desenvolvimentos mais tardios do que a evidência realmente permite. Resumindo, não há nada abertamente gnóstico no próprio Q, nem mesmo uma "predisposição gnosticizante" reconhecível; mas talvez também tenhamos que dizer

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que por seu fracasso em incluir quaisquer predições de Jesus de seu sofrimento e morte (exceto 5 ou 6 referências mais alusivas) os com­piladores de Q deixaram suas tradições um pouco expostas ao tipo de interpretação que talvez fosse inevitável uma vez que a esperança da parusia desvanecera e que subseqüentemente veio a completa expres­são no Evangelho de Tomé - o tipo de interpretação que era impossí­vel já que a tradição de Q estava firmemente ligada com a história da paixão, de Marcos.

Mas isso quer dizer que mais uma vez é a unidade e a continuidade do Jesus homem com o Cristo exaltado que era crucial para o cristianismo mes­mo em seu uso primitivo da tradição de Jesus. Não somente o Jesus terreno ou o seu ensino por si mesmo que os primeiros cristãos valorizavam, mas o ensino de que ele era o Filho do Homem que viria em breve (as­sim Q). E mesmo a combinação de Q e o equilíbrio da tradição eram, na reflexão, achados inadequados para servir como uma expressão do Evangelho cristão, visto que faltava precisamente a ênfase de que Jesus é o crucificado e ressurreto, bem como o mestre da sabedoria e Filho do Homem que viria em glória.

Outro ponto que talvez seja digno de nota. O gnosticismo cris­tão geralmente atribuía seu ensino secreto de Jesus aos discursos pronunciados por ele, assim eles se sustentavam, em ministério prolixo após sua ressurreição (como em Tomé o Lutador e Pistis So­fia). O Evangelho de Tomé é incomum, portanto em tentar usar a tradição de Jesus como o veículo para seu ensino. Com efeito, antes se parece com a tentativa de tratar o ensino de Jesus como "ditos do sábio" encontrados nos círculos gnósticos, a despeito da liberdade que eles exerciam na redação e adição à tradição - Jesus, e que foi abandonada em favor da completa liberdade pela forma literária dos "diálogos da ressurreição"46. Talvez o gnosticismo tenha aban­donado o formato do Evangelho de Tomé porque era, em alguma medida, sujeito teste e refutação da tradição - Jesus preservada em outros lugares: quanto mais perfeita a sua redação da tradição - Je­sus, menos verossímil se tornava; enquanto não havia tais testes

46 R obinson Trajectories, pp. 82-5, 102s. cf. J. D . T urner, "A New Link in the Syrian Judas Thomas Tradition", Essays on the Nag Hammadi Texts in Honour of A. Böhlig, org, M. K rause, Leiden 1972, pp. 115s. Ver também J. S. K loppenborg , The Formation o f Q, Fortress, 1987.

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com os diálogos da ressurreição. Em tudo, o gnosticismo foi capaz de apresentar sua mensagem de uma maneira sustentada como ensino de Jesus somente por separar o Cristo ressurreto do Jesus terreno e por aban­donar a tentativa de mostrar uma continuidade entre o Jesus da tradição de Jesus e o Cristo celestial de sua fé.

Resumindo, o critério da unidade entre o homem Jesus e o Cristo exaltado sugerido, em parte, como a tradição Q torna vulnerável para a redação gnóstica, e Q sugere, em parte, o porquê o critério começou a tomar a forma que tomou em Marcos como unidade não apenas entre Jesus o mestre e Filho do Homem que viria, mas como a unidade do Filho do Homem que precisa sofrer e morrer antes de ser ressuscitado e exaltado.

§ 63. PAULO - "O MAIOR DE TODOS OS GNÓSTICOS"?

1. A descrição de R. Reitzenstein de Paulo (que intitula esta se­ção)47 choca um pouco aqueles que são familiares somente com o Pau­lo da tradição eclesiástica, honrado pela grande Igreja como um fiel defensor da ortodoxia, mais ou menos desde Ireneu. Mas de fato, em não poucos pontos Paulo afirmava visões que o recomendava mais como os gnósticos heréticos do que os Pais ortodoxos. Deixe-me ilustrar isso com alguns pontos-chave.

(a) Os valentinianos sustentavam firmemente que sua teologia estava baseada em Paulo e que ele

fazia uso dos conceitos básicos de seu sistema em suas cartas de m odo suficientemente claro para qualquer um que lesse... O ensino de Valentino só era inconcebível sem as cartas de Paulo bem como sem o prólogo do Quarto Evangelho, e não é nenhum acidente que Paulo é preferido por todos os valentinianos com o o pregador que fala mais claramente da sabedoria oculta48.

47 The Hellenistic Mystery-Religions, 3a ed., 1927, ET Pickwick 1978, p. 84.48 T. Z ahn, citado por B auer, Orthodoxy, pp. 224s. Ver também E. H. P agels, The

Gnostic Paul, Fortress 1975, pp. lss. Valentinianos era o mais importante do sis­temas gnósticos do sécs. II e III.

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Assim eles podiam apelar a G11.12,15s., em que Paulo afirma que seu evangelho foi revelado diretamente a ele pela revelação imediata de Deus e não foi recebido de homens. Essa sólida asserção de Paulo de que seu evangelho não era, por fim, dependente dos apóstolos de Jerusalém e sua tradição é usada para justificar o apelo dos gnósticos do séc. II para sua revelação contra a tradição eclesiástica dos Pais orto­doxos (cf. Ef 3.3). Similarmente, os exegetas valentinianos podiam bus­car o apoio de Paulo (ICor 2.13s) para sua distinção entre pneumatikoi e psychikoi. Além do mais, eles eram capazes de citar a reivindicação de Paulo que, contrário às zombarias de seus oponentes coríntios falava da sabedoria entre os maduros (ICor 2.6; cf. 2Cor 12.4), como justificação da sabedoria secreta eles que ensinavam aos seus iniciados49. Portanto, ao mesmo tempo não é injustificável quando W. Schmithals diz de G1 1.12: "Esse argumento é genuinamente gnóstico. O apóstolo gnóstico não identificado por meio de uma corrente da tradição, pela sucessão apostólica, mas pela direta vocação pneumática"50; e da passagem de1 Coríntios - "O que se encontra em 2.6-3.1 poderia ser exposição pre­cisa de um gnóstico"51. Similarmente os valentinianos valorizavam Efésios como o desdobramento do: "Mistério da redenção pneumá­tica"52, e parece atribuir sua especulação acerca dos éones a Efésios e Colossenses53.

(b) O maior paulinista nos séculos iniciais seria Marcião - alguns diriam o maior paulinista de todos os tempos, pelo menos no sentido de alguém que reconheceu a grandeza devida a Paulo. Por qualquer razão ele foi: "O primeiro colecionador sistemático da herança pau­lina"54. Um elemento-chave na teologia de Marcião, provavelmente a

49 P agels, Paul, pp. 57s, lOlss, 121. Ver também B. A. P earson , The Pneumatikos- Psychikos Terminology em I Corinthians, SBL Dissertation Series 12, 1973, pp. 59, 66s, 71,80s; "De longe Paulo era a autoridade mais importante para os gnósticos cristãos" (p. 84).

50 W. S chmithals, Paul and the Gnostics, ET Abingdon 1972, p . 29.51 S chmithals, Gnosticism, p . 151.52 P agels, Paul, p. 115.53 Bauer, Orthodoxy, p. 234. Podemos também nos lembrar que as pseudo-Cle-

mentinas cristãs judaicas atacavam Paulo sob a figura de Simão o Mago (acima p. 365) - da mesma maneira que o faziam Justino, Hegesipo e Irineu consideran- do-o como o gnóstico primitivo.

54 B auer, Orthodoxy, p. 221. ’

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chave para todo o seu sistema, era sua antítese entre Lei e Evangelho55. Essa antítese ele derivou diretamente de Paulo. E não há dúvida de que Paulo expressou a antítese entre a Lei e o Evangelho, entre a fé e as obras muito claramente em diversos lugares - particularmente 2Cor 3.6: "A letra mata, mas o Espírito comunica a vida" (ver também p.ex. Rm 5.20; 7.6; G13.2s.). E esse contraste entre a antiga aliança como dis­pensação da condenação e morte e a nova aliança da graça e vida que serviu como trampolim para a hostilidade radical de Marcião ao AT, sua lei, sua religião, seu Deus (cf. 2Cor 4.4 "O deus deste mundo").56 Então, não está tão longe da marca a reivindicação de J. W. Drane que: "As afirmações de Paulo sobre a Lei em Gálatas pode com muita justi­ficação serem chamadas explicitamente gnósticas"57.

(c) Já identificamos a facção anti-Paulo em Corinto como um gru­po gnosticamente inclinado dentro da igreja cristã daquela cidade (aci­ma §61.1). O fato extraordinário que precisa agora ser notado é que em diversos pontos Paulo é simplesmente simpático com as visões dos gnósticos coríntios. Em particular, ele concorda com aqueles que têm conhecimento que os ídolos nada são e que os cristãos são livres para comer qualquer coisa (10.26; cf. Rm 14.14,20), ainda que quisesse restringir sua liberda­de por amor dos fracos (ICor 8.13; 10.28s.; cf. Rm 14.13-21). Ele dá mui­to valor aos dons espirituais (pneumatíka) embora preferisse a palavra carismata, e ache que os coríntios super estimavam muito o benefício da glossolalia (ICor 12-14). E ele mesmo se chama de pneumatikos, para afirmar que fala sabedoria entre os maduros, negando tal título a ou­tros membros da comunidade, embora em bases bem diferentes dos gnósticos (ICor 2.6-3.4). Talvez também seja relevante notar que o pró­prio Paulo era pronunciadamente ascético em sua atitude para com o matrimônio e para com o corpo (ICor 7; 9.27), um ascetismo que talvez fosse partilhado por alguns dos coríntios gnósticos. Ademais recor­demos que enquanto Paulo, obviamente, não partilha a visão coríntia

55 Tertuliano, adv.Marc., — "A principal e especial obra de Marcião é a separação da Lei e do Evangelho" (1.19).

56 Ver também E. C. B lackman , Marcion and his influence, SPCK 1948, p. 107.57 D rane, Paul, 112; ver também pp. 100, 112s, 114, 119. D rane não faz esse comen­

tário com Marcião em mente; e é discutível se Marcião seria apropriadamente chamado de gnóstico; mas Marcião sustenta diversas idéias que também estão presentes na gnose. Cf. também H. D. B etz, "Spirit, Freedom and Law: Paul's Message to the Galatian Churches", Svensk Exegetisk Arsbok, 39,1974, pp. 159-61.

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predominante do batismo (ver acima §39.5) ele não argumenta contra ela ou a condena (ver acima p. 91ss) - e que ele muito preparado para falar da ceia do Senhor como participação no corpo e sangue de Cristo (ICor 10.16). De fato, a evidência de 1 Coríntios é tal que J. C. H urd foi capaz de argumentar que os coríntios, contra quem Paulo escreve, haviam simplesmente permanecido fiéis às ênfases mais entusiásticas da pregação original de Paulo, quando Paulo apresentou o Evangelho em termos de conhecimento e sabedoria e ele próprio havia se valido e muito da glossolalia.58 Ainda que essa conclusão vá além da evidência, pelo menos temos de aceitar que os erros coríntios eram em larga me­dida simplesmente desenvolvimentos desequilibrados das visões que o próprio Paulo havia sustentado59.

(d) Em particular, quando visto de uma perspectiva do séc. II, o ensino de Paulo sobre a ressurreição do corpo em 1 Coríntios 15 e 2 Corín­tios 5 parece ser mais gnóstico do que ortodoxo. É provável que sua distin­ção entre o corpo natural (psíquico) e o corpo espiritual (pneumático) (ICor 15.44ss), e sua forte afirmação de que: "Carne e sangue não podem herdar o reino" (15.50), fossem algum avanço do entendimento pri­mitivo, mais físico do corpo, da ressurreição de Jesus e um concessão deliberada à aversão helenística para a carne material - uma tentati­va de deixar o entendimento cristão da ressurreição mais significati­vamente aceitável ao pensamento grego; sem abandonar a afirmação mais hebraica da salvação total: assim, a ressurreição corporal (não a imortalidade da alma), mas a ressurreição integral do homem como um corpo espiritual (não a ressurreição do corpo físico, a carne)60. O que é mais extraordinário, contudo, é que nas décadas e discussões subseqüentes a respeito da ressurreição do corpo foram os gnósticos

58 H urd , I Cor., cap. 8; cf. a sugestão de D rane de que os oponentes de Paulo "ha­viam citado sua afirmações em Gálatas para provar seu próprio ponto de vista" (p. 61). Essa tese também, embora contendo discernimentos valiosos, vai além da evidência.

59 E improvável que Paulo estivesse em dívida a um gnosticismo mais desenvol­vido na forma de um mito da sabedoria em 1 Coríntios 2 (ver acima nota 19); e que 1 Coríntios 15.44ss. mostre qualquer consciência da especulação do Ho­mem Primordial (mas ver minha Christology, pp. 123-5), Paulo procura corrigi- la antes que simplesmente apoiar-se nela. Ver as discussões completas de L. S chottroff, Der Glaubenãe unâ ãie feinãliche Welt, Neukirchen 1970, cap. 4-5; cf. P earson , Pneumatikos-Psychikos, caps. 3-4.

60 Ver D unn , Jesus, §21 , particularmente pji. 120s.

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que, freqüentemente, permaneceram mais fiéis a visão áe Paulo do que os Pais ortodoxos: pois quando os cristãos gnósticos vieram a expressar o seu entendimento do modo de existência pneumático, depois do livramento da carne, eles, muito freqüentemente, usariam a lingua­gem denotando algum tipo de corpo espiritual61; enquanto que os Pais antigos retratariam a posição de Paulo e reafirmariam que era precisamente o corpo físico, precisamente a carne que ressurgiria (ver mais abaixo p. 430).62

(e) Finalmente, podemos notar que a cristologia de Paulo era vulne­rável em um ponto-chave para a interpretação gnóstica. Refiro-me a visão de Paulo do Jesus terreno, de Jesus como um homem. Para começar, ele parece tão despreocupado com a vida do Jesus terreno e intei­ramente preocupado com o Cristo exaltado; além disso, ao afirmar que (isto é, visto que a revelação de fesus Cristo a ele na estrada de Damasco), não conhece a Cristo: "Segundo a carne" (2Cor 5.16) era, com efeito, um convite aberto a uma avaliação gnóstica do Cristo: "Segundo o Espírito"63. E a outros, Paulo fala duas vezes de Jesus vindo: "numa carne semelhante" (homoiõma) dos homens (Rm 8.3; F1 2.7), a qual os gnósticos seriam capazes de citar prontamente como a evidência de que o Salvador tomou sobre si somente a aparência de um corpo humano64.

E pouco surpreende, então, que Tertuliano chamasse Paulo de: "O apóstolo dos heréticos"65.

2. A receptividade de Paulo para uma interpretação gnosticizante pode também ser ilustrada por outro lado - a saber, a partir do trata-

61 Ver os textos em M. L. P eel, "Gnostic Eschatology and the New Testament", Nov Test, 12,1970, pp. 159-62; também The Epistle to Rheginos, SCM Press 1969, pp. 146-9.

62 Ver p.ex. Lc 24.39; Inácio, Smyrn., 2 Clemente 9; Apocalipse de Pedro 4.17; Tertu­liano, de res.car.; e a crença do Antigo Credo Romano na "ressurreição da carne". Mas note também a visão de Origines e o impacto que teve (ver J. N. D. K elly, Early Christian Doctrines, A. & C. B lack, 2a ed., 1960, pp. 470-2; 274-9).

63 Cf. Exc.Theod., 23.2-3, citado por P agels, Paul, p. 14.64 Assim, aparentemente, Alexandre, o valentiniano, atacado por Tertuliano, de

car.Chr., 16. Ver também Tertuliano, adv.Marc., 5.14.1-3, e outras passagens citadas por M. F. W iles, The Divine Apostle, Cambridge University Press 1967, pp. 81s.

65 Tertuliano, adv.Mar., 3.5.

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mento de Paulo pela Patrística em resposta a tais interpretações gnósticas. Diante da real ameaça de um marcionismo e valentianismo admitido de Paulo, eles tinham que demonstrar a ortodoxia de Paulo a respeito dos pontos em discussão, mas só podiam usar Paulo em defesa da or­todoxia nesses pontos (na maioria deles) abusando dele.

(a) Como vimos, os gnósticos eram capazes de usar Gálatas para afirmar sua própria independência da tradição eclesiástica da ortodoxia emergente - incluindo Gálatas 2.5: "Aos quais não cedemos sequer um instante, por deferência, para que a verdade do Evangelho fosse preserva­da para vós". Na tentativa de refutar a exegese dessa passagem pelos he­réticos de modo que Ireneu e Tertuliano rejeitaram a leitura usual do texto e seguiram uma leitura variante menos usual que omite a negativa: "Aos quais cedemos um instante...". Em outras palavras, com essa exegese eles seriam capazes de escorar sua reivindicação de que Paulo antes de tudo, submeteu-se à autoridade dos apóstolos de Jerusalém66 -- uma reivindi­cação que, como vimos, precisa ser considerada como uma interpretação errônea tanto da história como das próprias cartas de Paulo.

(b) Os Pais da igreja ficavam geralmente embaraçados pela força do contraste de Paulo entre a Lei e o Evangelho, obras e fé, e estavam pre­parados para acolher qualquer recurso exegético, ainda que forçado, que salvaria Paulo de ser entendido em um sentido marcionita. Cirilo de Je­rusalém, por exemplo, declarava que Paulo fora um perseguidor da igre­ja visto que ele acreditou que o cristianismo revogava a Lei ao invés de cumpri-la, e Pelágio argumentou que Paulo escrevera 10 cartas (incluindo Hebreus, mas excluindo Filêmon e as Pastorais) a fim de significar seu acordo básico com a Lei de Moisés67. Mais comumente, contudo, eles ten­tavam triunfar ao enfatizar (ou melhor dizendo, super enfatizar) a idéia paulina da Lei como um tipo de tutor até que Cristo viesse (G13.24), e ao introduzir a distinção entre a lei moral e a cerimonial no pensamento de Paulo (uma distinção não retirada do próprio Paulo)68. Assim também a maioria dos Pais da igreja seria capaz de suavizar a severidade da antítese de Paulo entre graça e fé de sua riqueza e poder.69

66 P agels, Paul, 104.67 Citado por W iles, Apostles, pp. 49s.68 W iles, Apostle, p. 133.69 W iles , Apostle, p. 136; ver também T. F. T o rra n c e , The Doctrine o f Grace in the

Apostolic Fathers, Oliver & Boyd 1948. 1

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(c) O dualismo gnóstico entre Deus e o mundo e sua conseqüente separação entre criação e redenção era capaz de extrair muito de sua força da visão paulina da ressurreição do corpo. Reconhecendo isso os Pais da Igreja visavam interpretar Paulo em conformidade com sua própria crença na ressurreição da carne - mas novamente, inevitavel­mente, isso envolvia algumas contorções exegéticas. Ireneu e Tertulia­no, por exemplo, estavam claramente preocupados com a vantagem que seus oponentes podiam vislumbrar de 1 Coríntios 15.50, porém suas tentativas de arrancar um sentido favorável da mesma passagem não são tão convincentes70. E Epifânio nos fala dos valentinianos, de certo modo jocoso, nos seguintes termos:

Eles negam a ressurreição dos m ortos, dizendo algum a coisa misteriosa e ridícula, que não há este corpo que ressuscita, m as al­gum outro que ressurge dele, que eles cham am espiritual71 (mas cf.IC or 15.35-50).

Resumindo, em todos esses pontos críticos, no debate entre gnos­ticismo e ortodoxia emergente, os Pais da Igreja só foram capazes de man­ter Paulo dentro da grande Igreja mediante a sua má interpretação.

3. Portanto, seria a descrição de Reitzenstein, sobre Paulo, jus­tificada? Paulo era uma parte tão grande da trajetória gnosticizante que os heréticos teriam um melhor aproveitamento de Paulo do que os ortodoxos teriam dele? Marcião estava, simplesmente, acolhendo o raciocínio de Paulo para sua conclusão lógica de modo que a grande igreja teria mostrado um juízo histórico melhor se o tivesse rejeitado juntamente com Marcião em vez de conservá-lo em seus próprios ter­mos? Há, felizmente, o outro lado da história.

(a) Do mesmo modo que os Pais da igreja sujeitaram Paulo à vio­lência exegética, fizeram os gnósticos. A técnica dos valentinianos, por exemplo, era simples: pela leitura de diferentes passagens, simbolica­mente, como referências ao demiurgo ou o pleroma, aos psíquicos ou aos pneumáticos (ou hylicos), eles eram hábeis para alcançar o signi­ficado apropriado em cada caso. O resultado era uma exegese mais

70 Irineu, adv.haer., V.9-4; Tertuliano, de res.car., 49-50. Ver também W iles, Apostle, pp. 4ss.

71 Epifânio, Pan., 31.7.6.

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plausível de tais passagens como Romanos 7.14-25 e Gálatas 4.21-2672, mas em passagens como 1 Coríntios l.lss, 1.22,15.20-23 e Efésios 5.22- 32 a distinção entre psíquico e pneumático se tornou muito forçada e artificial73. E, antes que significativamente, ao interpretar 1 Coríntios 4.8 eles ignoravam a ironia óbvia e liam-na como uma afirmação posi­tiva dos critérios pelos quais os pneumáticos reconheciam sua eleição74. A técnica de Marcião era mais simples. Embora ele apelasse somente a Paulo e permitisse em seu cânon somente aqueles escritos que se con­formavam com Paulo, havia passagens mesmo em Paulo que ele não podia aceitar. Essas ele, simplesmente, considerava como falsificações judaizantes; conseqüentemente ele via como sua tarefa remover essas interpolações, e assim restaurar o paulinismo genuíno que considera­va como o verdadeiro Evangelho. De qualquer maneira, não é nenhu­ma surpresa, que os versos que foram recortados como não paulinos eram as muitas passagens em que exibia que a antítese paulina entre Lei e Evangelho não deveriam ser lidas como antítese entre o AT e o NT, entre a criação e a redenção (p.ex. ele desclassificou Rm 1.19-2.1, 3.31-4.25, 8.19-22,9.1-33,10.5-11.32; e as frases: "Aquilo que eu mesmo recebi" e "segundo as escrituras"; em ICor 15.3s.; e Cl 1.15-17 foi omi­tida a leitura "Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda criatura").75

(b) Mais importante aos nossos propósitos são as linhas de demar­cação que o próprio Paulo traça entre sua mensagem e a prática de seus oponentes gnosticizantes. Em 1 Coríntios a principal crítica de Paulo é o fracasso em amar da facção coríntia, sua falta de consideração para com seus companheiros crentes e para com a edificação de toda a co­munidade. Ele repreenderia quaisquer reivindicações à sabedoria ou ao conhecimento ou dons que levassem os crentes a pensar de si mes­mos como superiores e dos outros como inferiores: "Mas a ciência exa­ta incha; é o amor que edifica" (ICor 8.1; cf. p.ex. 3.3s; 10.23; 12.21ss; 13) A força do relacionamento de Paulo com suas comunidades era pre­cisamente a extensão de seu amor. Se a compulsão do amor de Cristo

72 P agels, Paul, p p . 32s, 110.73 P agels, Paul, p p . 5 3 ,55s, 8 2 ,126s.74 P agels, Paul, p. 63. Ver mais R. McL. W ilson , Gnosis and the New Testament,

Blackwell 1968, cap. III.75 Ver A. H arnack, Marcion, Leipzig, 2a ed., 1924, pp. 45-51; B lackman , Marcion,

pp. 44s. ’

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o conduzia a se tornar como que sem Lei a fim de ganhar aqueles que viviam sem Lei, ela também o levava a se tornar como alguém sob a lei para ganhar aqueles sob a lei (ICor 9.20s.). O bem-estar de toda a comunidade era a sua preocupação - do fraco e também do forte, mas também do forte e do fraco (Rm 14.1-15.6; ICor 8-10; G1 5.13-6.5). Ele não se posicionaria com os judeus cristãos a fim de estreitar a liberdade cristã em legalismo (G1 5.1 ss.; F1 3.2ss.); mas nem se posicionaria com os gentios cristãos pervertendo a liberdade cristã em licenciosidade e elitismo (Rm 16.17s.; ICor 5-6; 8-10; cf. 2Ts 3 .6 ,14s.)76.

(c) Outra linha de demarcação mais notável que Paulo desenha­ria seria a cristológica. Na qual os coríntios poderiam com prudência, evidentemente, tornar sua experiência de relacionamento com o Cris­to pneumático e da ressurreição já realizada (cf. ICor 1.12; 2.16; 4.8; 15.12, 45), Paulo enfatizou que seu kerygma era a loucura do Cristo crucificado, proclamado na mesma fraqueza (ICor 1.18-25; 2.1-5, 8b), e ele fortemente asseveraria que a marca do Espírito era a confissão do Jesus homem como Senhor (ICor 12.3). Contra os falsos apóstolos de 2 Coríntios que, como já sugerimos (acima pp. 149s, 289s e p. 383 nota 50), provavelmente, adaptou sua mensagem e estilo missionário para reforçar seu apelo aos gnósticos cristãos, Paulo argumentou que a marca da maturidade pneumática não era simplesmente um ministrar da vida de Cristo, mas também partilhar de sua morte (2Cor 4.10s.), a maturidade não seria avaliada simplesmente em termos de poder, o poder do Cristo ressurreto, mas também em termos de fraqueza, a fra­queza do Cristo crucificado (2Cor 12.1-10; 13.3s.). Igualmente, contra as tendências perfeccionistas em Filipos (acima pp. 415ss) ele enfati­zaria que o conhecer a Cristo não era, simplesmente, uma matéria de conhecer o poder de sua ressurreição, mas também de partilhar os seus sofrimentos, tornando-se como ele em sua morte (F13.10) (ver também acima §46.4).

A confiança dos colossenses é significantemente diferente - o que sugere uma autoria diferente, ou, mais provavelmente porque a mistura sincrética confrontando Paulo em Colossos incluía elementos gnósticos diferentes. Eu penso aqui, por um lado, sobre a ênfase mui­to forte efetuada em Cl 1.13, 2.12, 2.20-3.3 (ver abaixo p. 479ss), que

76 Essa fronteira m oral/ética desenhada por Paulo poderia ter mais proeminência, veja p. 449.

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poderia ser acolhida pelos oponentes gnosticizantes em Corinto e em Filipos. E de outro, sobre a ênfase na primazia do Cristo exaltado, que como tal é a marca do hino colossense: note o uso repetido de "tudo": "O Primogênito de toda criatura, porque nele foram criadas todas as coisas... tudo foi criado por ele e para ele. Ele é antes de tudo e tudo nele subsiste... (tendo em tudo a primazia), pois nele aprouve a Deus fazer habitar toda a Plenitude e reconciliar por ele e para ele todos os seres" (Cl 1.15-20). Aqui evidentemente o que está sob ataque (pelo menos por envolvimento) é que outro aspecto do ensino pré-gnós- tico que tendia a ver Jesus como um mediador dentre daquilo que se tornaria, no gnosticismo desenvolvido, uma hierarquia completa de seres divinos distanciando o pleroma da humanidade77. Então, a ênfase de Paulo é nítida: a relação do crente com Deus mediante Cris­to é direta e completa e mediante o próprio Cristo; ou, como Paulo afirma enfaticamente em suas próprias palavras, "(Cristo) no qual se acham escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimen­to!... Pois nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade e nele foram levados à plenitude. Ele é a Cabeça de todo Principado e de toda Autoridade" (Cl 2.3, 9s.). Mas em acréscimo ele retém a ênfase cristológica das cartas mais antigas e exclui da corte qualquer dualismo gnóstico potencial entre um Cristo celestial impassível e um Jesus humano que morre: ele adiciona (provavelmente) ao hino a frase: "Pelo sangue da sua cruz" (Cl 1.20) - "Ele é a imagem do Deus invisível" também é o crucificado; ele sublinha o fato de que o Filho realizou sua obra reconciliadora: "No corpo de carne, entregando-o para a morte" (Cl 1.22); e 1.24 ecoa a 2 Coríntios e o tema filipense do ministério (apostólico) como participantes nos sofrimentos de Cristo (ver também Cl 2.11s, 20).

Resumindo, é essa forte afirmação âe que Jesus, o Senhor, é Cristo o cru­cificado, tão consistente em Paulo78, que lacera o nervo do gnosticismo cristão. E isso que impede Paulo, por toda a sua abertura ao pensamento hele­nístico, de ser absorvido no gnosticismo cristão. E isso que em particu­lar impossibilita a interpretação gnóstica de Rm 8.3 e F12.7 de ser con­tada como uma representação correta do pensamento de Paulo: aquele que veio: "Numa carne semelhante à do pecado [isto é, provavelmente

Ver referências, no índice, "Pleroma", de F oerster, Gnosis, II, p. 337. 1 Cf. D unn, Jesus, §55 e acima p . 307ss. ’

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com uma oferta pelo pecado] e em vista do pecado, condenou [a morte e pela morte] o pecado na carne" (Rm 8.3); "Tomando a semelhança humana... humilhou-se e foi obediente até a morte, e morte de cruz!" (F1 2.7s.).79 Assim, uma vez mais é a unidade entre o Jesus humano e o Senhor exaltado que marca a fronteira da diversidade aceitável. Uma vez mais, a recusa de permitir a adoração mediante e a união com o Cristo glorificado separado da realidade histórica do homem de Nazaré marca o ponto em que um cristianismo gnosticizante diverge do cristianismo proclamado e ensinado por Paulo.

4. Provavelmente seria inevitável que Paulo se tornasse associado com um anti-judaísmo gnóstico. Pois Paulo desempenhou o papel principal durante as primeiras décadas do cristianismo ao desligar do judaís­mo a fé em Cristo. Mas após sua morte, e após 70 d.C., o judaísmo começou a retrair-se em si mesmo, e o risco de que o cristianismo pudesse permanecer como uma seita dependente do judaísmo ou ser confundido com o nacionalismo judaico começava a recuar. Agora o principal risco a ser percebido vinha do lado oposto - o risco de que o cristianismo se tornasse separado de sua herança judaica, o de se tornar muito helenizado. O Processo de desligamento do judaísmo e da Lei do AT seria e fora revertido; agora a igreja, predominan­temente, gentílica começava conscientemente a se apropriar de sua herança judaica de uma maneira mais compreensível, sua estrutura organizacional (ver acima pp. 205ss), sua liturgia80 e a prática de jejum (ver Didaquê 8.1) e, especialmente, o AT (ver 1 Clemente, Barnabé, o Diálogo com Trifão de Justino).81 Nesse processo inverso, Paulo cedo ou tarde apareceria injustamente, e uma ênfase e equilíbrio genuina­mente paulina facilmente se tornaram identificados com as forças do gnosticismo. Assim foi que no séc. II a influência de Paulo era mais detectável em Valentino e em Marcião do que nos teólogos da grande Igreja, e seria somente com Irineu que a ortodoxia faria um determi­

79 Marcião seguiu Paulo ao colocar um alto valor sobre a morte de Cristo (H arnack, Marcion, pp. 131ss), mas isso foi ligado a um entendimento explicitamente do- cético da encarnação (pp. 124s); de modo que sua cristologia tinha somente um contato aparente com o kerygma do Cristo crucificado de Paulo.

80 W. E. O esterley, The Jewish Background o f the Christian Liturgy, Oxford University Press, 1925.

81 Cf. B auer, Orthodoxy, p p . 238s.

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nado esforço para arrancar às duras penas a teologia de Paulo dos braços dos heréticos82. Mas seria o Paulo das Pastorais, o Paulo dos Atos que emergiria83 - um Paulo que se opunha a heresia com o peso da tradição eclesiástica, um Paulo que prontamente reconhecia a au­toridade dos Doze e não conhecia nenhuma ruptura com Jerusalém, um Paulo cuja antítese entre Lei e Evangelho foi abafada, cujo ensino central sobre a justificação pela graça mediante a fé somente, quase nunca era visto. Resumindo, como Bauer se expressou: "O preço que o apóstolo para os gentios tinha que pagar para lhe ser permitido permanecer na igreja era a rendição completa de sua personalidade e peculiaridade histórica"84.

O fato é que Paulo não pertencia incondicionalmente a qualquer um dos campos principais dos sécs. II e III contestando o título de cristão: ele fora totalmente rejeitado pelos cristão-judeus, e foi mal interpretado ao ponto do abuso tanto dos gnósticos como dos ortodoxos. O autor das epístolas paulinas era muito grande para os rótulos apertados do séc. II, sua teologia era muito dinâmica, muito aberta para ser com­primida dentro das categorias construtivas da ortodoxia posterior. Paulo pertencia, mas somente ao Senhor, Jesus Cristo - que para ele era o foco da unidade. Aparte de Cristo ele não reconhecia nenhuma outra lealdade - essa era a sua grandeza. Mas era também sua ruína, pois nas controvérsias de séculos posteriores, quando os partidos não conquistavam seu voto em seus termos, eles o tomavam à força ao seu próprio modo.

82 Cf. H. S chneemelcher, "Paulus in der griechischen Kriche des zweiten Jahrhun­derts", ZKG, 75, 1964, pp. 1-20; E. D assmann , Der Stachel in Fleisch. Paulus in der frühchristlichen Literatur bei Irenaus, Aschendorff 1979. A. L indemann , Pau­lus im ältesten Christentum, Tübingen 1979, não leva sua análise tão longe como Irineu.

83 Veja Irineu, adv.haer., praef.; III. 13.3; 14.1-4 (referido por P agels, Paul, p. 161).84 B auer, Orthodoxy, p. 227; como ilustração adicional do ponto a que ele se refere

aos Atos de Paulo, e Epistula Apostolorum. Cf. B ousset que fala do: "Paulinismo eclesiasticamente temperado, o paulinismo que foi despojado de todos os riscos e tendências gnósticos" (.Kyrios Christos, p. 21). Note também o juízo ligeiramen­te mais equilibrado de C. K. B arrett, "Pauline Controversies in the Post-Pauline Period", NTS, 20,1973-74, pp. 229-45. '

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§ 64. FOI JOÃO "CULPADO" DE "DOCETISMO INGÊNUO"?

1. Assim como Paulo era o apóstolo gnóstico, também João era o evangelho gnóstico. Como vimos, Paulo foi, quase totalmente, assi­milado pelos gnósticos do séc. II; o Quarto Evangelho quase sofreu o mesmo destino. Onde os ebionitas usavam somente uma abreviação de Mateus, e Marcião somente um Lucas mutilado, os gnósticos, parti­cularmente os valentinianos, focaram sua atenção e fizeram, largamen­te, uso dele85. O primeiro comentário que conhecemos que foi escrito sobre o Evangelho foi o de Heracleon, um valentiniano86. De fato o Quarto Evangelho era muito possível ser identificado com um ponto de vista gnóstico que Alógio (segunda metade do séc. II) e o Presbíte­ro romano Caio (começo do séc. III) atribuiriam ao gnóstico Cerinto. Mas novamente, como aconteceu com Paulo, foi Irineu quem conteria a maré e resgataria João para a ortodoxia, de modo que do séc. III em diante João se tornaria, progressivamente, o livro-fonte e pedra angu­lar da cristologia ortodoxa87.

Contudo, a questão da relação de João com o gnosticismo estava longe de ser encerrada, e nos dois séculos passados, mais uma vez, tor­nou-se um tema importante. Na metade do séc. XIX A. H ilgenfeld, um seguidor da escola de Tübingen, sustentava a opinião de que João era um produto do gnosticismo, repleto de ensino gnóstico a respeito dos filhos de Deus e filhos do diabo (ver particularmente Jo 8.44) e cheio de concepções gnósticas do mundo88. G. Volkmar, outro seguidor de Tübingen, argumentava com mais extravagância que o Evangelho par­tia da: "Gnose dualista antijudaica de Marcião"!89 Tudo isso envolvia a tese da escola de Tübingen de que o Evangelho, primeiramente, apa­receu por volta da metade do séc. II (o próprio H ilgenfeld defendia uma data entre 120 e 140) - uma datação que rapidamente se mostraria

85 Irineu, adv.haer., III. 11.7. Ver J. N. S anders, The Fourth Gospel in the Early Church, Cambridge University Press 1943, pp. 55-66.

86 Ver E. H . P agels, The Johannine Gospel in Gnostic Exegesis: Heracleon's Commentary on John, SBL Monograph 17, Abingdon 1973.

87 Sanders, Fourth Gospel, p p . 65-84 .88 A. H ilgenfeld , Das Urchristenthum, Jena 1855, citado por H . H arris, The Tübingen

School, Oxford University Press 1975, p. 225.89 Citado por H. A. M eyer, The Gospel o f John, ET 1874, p. 40.

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pouco convincente, em vista do conhecimento dos escritores do séc. II de João (muito provavelmente, tão cedo quanto Inácio), e, finalmen­te, mostrando-se virtualmente impossível pela descoberta do papiro Rylands 457 (P52) no Egito, um fragmento do começo do séc. II conten­do alguns versos de João 18 (publicado pela primeira vez em 1935).

Mas por sua vez isso não resolveria o tema da relação de João com o gnosticismo. Pois os pesquisadores da História das Religiões já come­çavam a demonstrar que o gnosticismo não era meramente uma heresia cristã do séc. II, mas um fenômeno misturado muito mais antigo, prova­velmente tão antigo (ou mais antigo) em suas formas primitivas do que o próprio cristianismo. Conseqüentemente, a possibilidade que emergi­ria com força renovada de que João seria dependente, ou, no mínimo, influenciado por uma forma de pré-gnose-cristã. Particularmente, foi R. Bultmann o primeiro que tentou, mediante o uso de escritos mandeus, construir o mito gnóstico que ele acreditou ter sido usado pelo quarto evangelista90; mas especificamente em seu comentário sobre João (1941) ele argumentou que a influência gnóstica sobre o Quarto Evangelho vi­nha mediante uma fonte de discursos de revelação, que João havia usado como a base para os discursos de Jesus. Essa tentativa, em particular, obte­ve pouca influência. Pouquíssimos aceitaram a hipótese de uma fonte de discursos - os discursos no Quarto Evangelho são todos tão caracteristica­mente joaninos que a demonstração de tal fonte não é possível. E a teoria de um mito do redentor gnóstico pré-cristão é prejudicada pelo fato de que depende inteiramente de documentos datados após o séc. I d.C. (com freqüência muito mais tarde); a própria evidência principal de Bultmann ao reconstruir o mito parece ter sido os próprios discursos joaninos!91 A conclusão mais plausível é a de que sejam quais forem os elementos do mito, já circularia antes do cristianismo, a síntese é, em si, estrita­mente falando, um desenvolvimento pós-cristão no qual a crença cristã, mais definidamente em Cristo como redentor, desempenha um papel decisivo92.

90 R. B ultmann , "Die Bedeutung der neuerschlossenen mandaischen und manichäischen Quellen für der Verständnis des Johannesevangeliums", ZNW, 24, 1925, pp. 100-146, reimpresso em Exegetica, Tübingen 1967, pp. 55-104; ver também seu Primitive Christianity in its Contemporary Setting, ET Thames & Hudson 1956, pp. 163s.

91 R. H. F uller, The New Testament in Current Study, SCM Press 1963, p. 136.92 Ver aqueles citados por Y amauchi, Pre-ChHstian Gnosticism, pp. 164-9.

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A descoberta dos Manuscritos de Qumran e dos escritos de Nag Hammadi dariam uma nova guinada no debate. Por um lado, os pri­meiros demonstrariam que diversos traços do Quarto Evangelho que previamente haviam sido considerados como típicos do gnosticismo oriental, particularmente seu dualismo, estavam, antes de tudo, enrai­zados completamente na Palestina de Jesus - não obstante em uma for­ma de judaísmo sectário (ver abaixo nota 97). Por outro lado, os escritos de Nag Hammadi haviam começado a expor um número de paralelos significantes com o pensamento joanino, como no caso dos "Eu sou", a vinda do Filho da parte do Pai ao mundo e seu retorno a Ele93. Mais im­portante ainda, ambos locais dos descobrimentos fortaleceram o caso por observarem o contexto de João não, simplesmente, como um "dos dois", judaísmo palestinense ou helenismo gnosticizante, mas como um ambiente extremamente sincrético que absorvera influências, par­ticularmente, da especulação da sabedoria do judaísmo helenístico e da soteriologia mitológica típica do proto-gnosticismo antigo. Há de fato um consenso crescente entre os estudiosos do NT de que o Quarto Evangelho deva ser explicado e entendido por recebido influências de algum tipo de judaísmo muito sincrético (ou gnosticizante) (ainda que a natureza precisa dessas influências seja muito discutida).94

Tudo isso apresenta algumas questões mais óbvias. Se um mo­vimento ou tendência em direção ao gnosticismo é discernível den­tro e mediante a mistura sincrética o período, João seria parte desse movimento? O Quarto Evangelho pertenceria a uma ampla trajetó­ria gnosticizante, juntamente com a sabedoria judaica helenística, os Manuscritos do Mar Morto, a literatura hermética e mandéia e agora também a dos documentos coptas de Nag Hammadi (ainda

93 G. W. M acR ae, "The Ego-Proclamation in Gnostic Sources". The Trial o f Jesus, org E. B ammel, S C M Press 1970, pp. 122-34; R. S chnackenburg, Das Johannes evangelium, Part II, Herder 1971, pp. 162-6.

94 Ver p.ex., aqueles citados por W ilson , Gnosis, pp. 45s; R. K ysar, The Fourth Evan- gelist and his Gospel, Augsburg 1975, pp. 102-46. Após estudo ulterior eu situariao Evangelho de João ainda mais firmemente dentro de um amplo (e variado) ambiente judaico, em que preocupações apocalípticas e místicas eram, parti­cularmente proeminentes, que inter alia (entre outras coisas) forneça uma ex­plicação mais plena do tema importante descida/subida em João. Ver mais em meu "Let John be John", Das Evangelium und die Evangelien, org. P. S tuhlmacher, Mohr: Tübingen, 1983, pp. 309-39. Mas o primeiro parágrafo de §64.2 pode per­manecer inalterado.

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que provavelmente não, totalmente, em linha direta)? E se a resposta for afirmativa seria totalmente apropriado que o Quarto Evangelho tenha aumentado a tendência gnosticizante dessa trajetória, ou resis­tido a essa tendência, ou simplesmente ficado à mercê dos conceitos e formas que havia escolhido usar por outras razões? Em outras pa­lavras, a reivindicação de E. Kàsemann de que o quarto evangelista apresenta sua compreensão de Cristo: "Na forma de um docetismo ingênuo" serve somente para salientar ainda mais um assunto que nos força de alguma maneira buscar entender o Quarto Evangelho contra seu pano de fundo histórico.

2. Então, João seria "culpado" de um "docetismo ingênuo"? Ele come­çou a afrouxar a distinção da proclamação cristã ao imergi-la em uma linguagem e forma de pensamento do judaísmo sincrético, ao render- se aos fraseados e conceituações que no fim das contas não tinha quase nenhum controle? Ele havia dado um passo decisivo adiante no pro­cesso de mitologizar a tradição de Jesus?

A maioria dos antigos índices não nos ajuda muito aqui. Os para­lelos com a sabedoria judaica helenística e os Manuscritos de Qumran, por um lado e os paralelos com a literatura mandéia, hermética e os textos de Nag Hammadi de outro lado, somente indicam que João pertence a algum outro lugar dentro do mesmo contexto cultural am­plo, mas não nos dizem onde: se um paralelo o recomenda como mais caracteristicamente "gnóstico" para alguns, outro o recomenda como mais apropriadamente "judaico" para outros. Assim o fato de o ver­bo ginõkein (conhecer) ocorre, mais freqüentemente, nos Escritos Joa­ninos (56 vezes no Evangelho de João, 26 nas Epístolas Joaninas) não ajuda muito, especialmente visto que a total ausência do substantivo gnõsis (conhecimento) parece também deliberada. Os discursos de re­velação de João podem, de fato, ser colocados em paralelo em muitos pontos nos Odes de Salomão e na literatura mandéia, como Bultmann demonstrou (acima nota 90), mas no conteúdo geral a literatura de Sa­bedoria oferece melhores paralelos95 e a forma dos discursos é muito mais próxima de um midrásh judaico (como é muito óbvio em Jo 6 - ver acima p. 171ss). Mais uma vez o dualismo joanino entre luz e trevas, de cima e de baixo, espírito e carne, etc. (Jo 1.5; 3.6,19,31; 6.63; 8.12,23;

1 Ver B rown , John, pp. CXXIISS.

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12.35,46) facilmente pode ser comparado com o gnosticismo96, embo­ra nem tudo seja um dualismo cosmológico (note particularmente Jo 1.3; 3.16) como um dualismo de decisão e os paralelos com Qumran são próximos97, Estreitamente relacionado com o dualismo de João está certo elemento de predestinacionismo e determinismo (com em Jo 8.42ss; 10.26-28; 12.39-41; 17.22s. - ver também acima pp. 96s), em que, novamente, os paralelos dos dois lados não são diferentes em força98, O logos do prólogo joanino possui paralelos nas figuras in­termediárias variadas nomeadas do gnosticismo desenvolvido99, em­bora o uso de João seja mais firme e imediatamente enraizados na especulação judaica helenística a respeito da Sabedoria (cf. Sabedoria1.4-7; 9.9-12; 18.14-16; Ecl 24; 1QH 1.7s.)100, Similarmente, os paralelos mais próximos da fala de João sobre a descida e subida do Filho do Homem (Jo 3.13; 6.62; 20.17) por um lado devem ser encontrados na Sabedoria (particularmente lEn 42.1s.) e por outro no mito do reden­tor gnóstico tardio.101

96 Ver p.ex.., os índices em F oerster, Gnosis.97 Ver particularmente, J. H. C harlesworth, "A Critical Comparison of the Dualism

of the IQS 3.13-4.26 and the 'Dualism' Contained in the Gospel of John", NTS, 15,1968, pp. 389-418; reimpresso em John and Qumran, org., J. H. C harlesworth, Chapman 1972, pp. 76-106. A discussão primitiva é resenhada por H. B raun, Qumran und das Neuen Testaments, Tübingen 1966, II, pp. 119-23.

98 Para Qumran ver p.ex., 1QS 3.13-4.26; CD 2.11-13; 1QM 13.9-13. 1QH 7.6-12; 14.13-16; 15.13-22. Para o gnosticismo ver p.ex., a discussão em P agels, Heracleon's Commentary, cap. 6.

99 B ultmann, John, pp. 24-31; S. S chulz, Das Evangelium nach Johannes, NTD 1972, pp. 26-9. Os paralelos também estão disponíveis em S chnackenburg , John, I, pp. 489ss.

io° y er p j,x ̂ D odd, Interpretation o f the Fourth Gospel, pp. 274s; B ro w n , John, pp. 521ss; D u n n , Christology, pp. 239-45; e cf. G. W. M a cR a e , "The Jewish Background of the Gnostic Sophia Myth", NovTest, 12, 1970, particularmente pp. 88-94.

101 Irineu, adv.haer., 1.15.3; 30.12,14; Hipólito, Ref., V. 12.6. "O fator decisivo nisso é que o conceito da descida e subida do redentor, que é de importância fun­damental para João, não pode ser demonstrado no judaísmo, mas é caracter­ístico do gnosticismo" (K ümmel, Introduction, p. 227); cf. S chnackenburg, John, I, pp. 550-53. Mas ver C. H. T albert, "The Myth of a Descending-Ascending Redeemer in Mediterranean Antiquity", NTS, 22, 1975-76, pp. 418-40; J. A. BUhner, Der Gesandte und sein Weg im 4. Evangelium, Tübingen 1977; e ver tam­bém acima nota 94.

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Contudo, a tarefa de reconhecer um docetismo ingênuo em João não recai sobre quaisquer traços específicos do Quarto Evangelho assim como muito do impacto geral da cristologia de João. Nem sua força de­pende tanto de paralelos acumulados particulares com a literatura gnós­tica como da contundência do contraste entre a apresentação de João de Jesus e aquela dos sinóticos. Para qualquer familiaridade com o Quarto Evange­lho precisamos somente recordar alguns dos pontos que mencionamos acima (pp. 95 ,156s, 342s) - o auto-conhecimento elevado dos "Eu sou", a afirmação da completa e inquebrantável identidade com o Pai, a límpida consciência da pré-existência divina, a paródia de oração em Jo 11.42 e 12.27-30 (cf. 6.6). Poderia um ser humano que fala desse modo, ou an­tes, teríamos encontrado o Filho de Deus, plenamente consciente de sua origem e glória divina, debatendo com outros com a vantagem de ter o ponto de vista celeste, inteiramente senhor dos acontecimentos e dos homens? Kàsemann justificadamente assim se expressa:

N ão é m eram ente a partir do prólogo e da boca de Tomé, mas do Evangelho inteiro que (o leitor) percebe a confissão: "M eu Senhor e m eu Deus". Com o tudo combina com a com preensão de uma en­carnação real? A declaração "O Verbo se fez carne" realmente quer dizer mais do que ele desceu ao m undo e aí entrou em contato com a existência terrena, de m odo que um encontro com ele se tom ou possível? N ão é essa declaração totalmente super obscurecida pela confissão: "Vim os a sua glória", de m odo que recebe seu sentido dela... O Filho do H om em não é um hom em entre outros, nem a representação do povo de Deus ou do ideal da hum anidade, mas Deus, descendo à esfera hum ana e aí manifestando sua glória102.

Tudo isso sugere fortemente que João detalhou a tradição - Jesus por­que o Jesus histórico foi grandemente ocultado atrás da corajosa apresentação do Filho de Deus divino. Se for assim, então João está se movendo na direção do docetismo, de apresentar um Jesus que por todos os seus traços hu­manos (tais quais fome e aflição) é no final mais deus do que homem- certamente divino; humano somente do ponto de vista externo.

102 K äsemann , Testament, pp. 9s, 13; cf. a apresentação equivalente de B ousset, Kyrios Christos, pp. 217ss; S. A ngus, The Religious Quests o f the Graeco-Roman World, Murray 1929, pp. 389ss; e as teses mais radicais de S chulz, Johannes, especialmente as pp. 211s, e de S chottroff, Glaubende, pp. 268-96.

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Todavia, isso não é a história toda. O argumento de Kàsemann é muito desigual em vários pontos. Aqui poderei somente elaborar as duas principais deficiências103.

(a) 1.14a - "o Verbo se fez carne". Isto é uma asserção da historici­dade e realidade da encarnação. Não é possível diminuir sua força para aquela de uma aparência divina entre os homens (como Kàsemann). O mundo antigo era muito familiar com essa idéia, e a expressaria de várias maneiras. João não escolhe nenhuma delas. Em vez disso, ele afirma simples e diretamente "O Verbo (o mesmo Verbo como em Jo 1.1-3) se fez carne" - não apareceu tal qual ou desceu para, mas se fez - uma confissão que; "somente pode ser entendida como um protesto contra todas as outras religiosidades de redenção no helenismo e no gnosticismo".104 Nem é possível diminuir a força de Jo 1.14a referindo-se à glória divina visível no Verbo encarnado e mediante ele, porque o substantivo é deliberadamente escolhido- aquele que é a Palavra se fez "carne"; e para João "carne" significa natureza humana em absoluto contraste e antítese a Deus (1.13; 3.6; 6.63; 8.15). João sublinha a chocante natureza de sua asserção em6.51-6.3: crer em Jesus é processar ou mastigar sua carne e beber seu sangue. Isso era uma reivindicação escandalosa como João bem sabia (6.60): muito da idéia de alcançar a vida eterna por se alimen­tar da carne seria horripilante para os leitores helenísticos de João e para a maioria de todos os docéticos. Mas a escolha das palavras por João é claramente deliberada (ele substitui "carne" por "pão" e "mastigar" por "comer" em Jo 6.51, 54); tal linguagem desneces­sariamente ofensiva só pode ser entendida como deliberadamente e provocativamente dirigida contra qualquer espiritualização do- cética da humanidade de Jesus, uma tentativa de excluir o docetismo ao enfatizar a realidade da encarnação em toda a sua agressividade - Jo6.51-58 desse modo, simplesmente conduzindo para um foco mais contundente do que já estava implícito em Jo 1.14 (cf. de novo 3.6; e ver acima pp. 277ss).

Ver também, particularmente, M. M. T hompson , The Humanity o f Jesus in the Fourth Gospel, Fortress 1988.S chnackenburg, John, I, p. 268; cf. C. C olpe, "New Testament and Gnostic Christology", Religions in Antiquity: Essays in Memory E. R. Goodenough, org., J. N eusner, Leiden 1968, pp. 233s, 236s. Ver também D unn , Christology, particu­larmente p. 347, n. 104.

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(b) A importância central da morte de Jesus na teologia de João: o Logos encarnado morre - algo que os docéticos visavam a todo custo negar (ver acima p. 410, nota 22). Kàsemann tenta diminuir a força desse pon­to argumentando que: "Aparte de poucas considerações que apontam para adiante, a paixão só aparece, na opinião de João, em último lugar" (p. 7). Isso é equívoco sério do Quarto Evangelho Longe de ocupar o último lugar, bem ao contrário, João continuamente segue em direção ao clímax da morte, ressurreição e ascensão de Jesus. Notamos an­teriormente o efeito dramático que desempenha a freqüente fala da "hora" ou tempo de Jesus, tal qual uma batida de tambor anunciando a hora de sua paixão (ver acima p. 156). Aqui, simplesmente, listamos os vários ditos que aparecem no primeiro capítulo e em diante e que em todo momento direciona os pensamentos do leitor para o mesmo clí­max - Jo 1.29, (51); 2.19ss; 3.13s, 6.51, 53ss, 62; 7. 39; 8.28,10.11,15,17s;11.16,50; 12.7,16,23s, (28), 32, etc. Note, particularmente, que o motivo da glória de Jesus desempenha um papel significativo nesse dramático desenvolvimento. Era precisamente por meio da morte e ressurreição- ascensão de Jesus (não somente por sua ressurreição-ascensão) que Jesus seria glorificado: a hora de sua maior glória era a hora de sua paixão! (mais claramente Jo 12.23s, 17.1). "Vimos a sua glória" (1.14), portanto, não se pode considerar que a carne de Jesus era somente um tipo de cobertura sem nenhuma substância recobrindo ousadamente sua glória celestial (sua vida inteira uma perpétua transfiguração). Na apresentação por João da glória de Jesus ela foi revelada não tanto em sua vida, mas mais em sua morte-ressurreição-ascensão; e foi manifestada em seus sinais e palavras somente na medida em que apontavam adiante para esse clímax (Jo 2.11; 7.37-39; 11.4).

Acima de tudo há Jo 19.34s., no qual João vai além ao enfatizar a veracidade histórica da narrativa do sangue e água jorrando do lado do Jesus crucificado após ser trespassado. O paralelo suficientemente pró­ximo com ljo 5.6 fala-nos da razão. João deseja dar prova convincente de que o Logos encarnado realmente morreu, e que seu corpo não era simplesmente um fantasma, sua morte não foi um truque - veja, san­gue real!105 Em outras palavras, parece-me ser excessivamente difícil

los a água do lado de Jesus representa um cumprimento de Jo 7.38s. (ver D unn , Baptism, pp. 187s; e acima p. 277ss); o Espírito para João é precisamente o Es­pírito do crucificado (cf. Jo 19.30). ’

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evitar a conclusão de que há uma polêmica anti-docética deliberada aqui. Visto que Kàsemann consideraria Jo 6.51-58 e 19.34-35 como a obra de um redator eclesiástico, eu simplesmente adiciono que acho isso uma hipótese desnecessária e injustificada. Não há prima facie literária ou evidência textual para essa tese; e o Evangelho funciona muito bem como um todo teológico - em particular, Jo 6.63 cria mais problemas se6.51-58 for atribuído a um redator eclesiástico do que se tomado com6.51-58 como uma expressão da intenção do mesmo autor (mesmo que em uma revisão final). E visto que o bloco todo se mostra dando senti­do consistente ao servir à preocupação de um único autor a respeito do docetismo e dos sacramentos (acima §41 e pp. 410ss). Esses versos (ou seja, Jo 6.51-58; 19.34-35) podem ser excluídos somente sob o risco de interpretar mal o bloco todo (como mostra a tese de Kàsemann).

Resumindo, não é necessário demonstrar que a polêmica anti-do- cética é a principal tábua na construção do Quarto Evangelho. E não foi. Mas a conclusão permanece baseada firmemente no texto de que em dois pontos particulares João desejava se resguardar contra uma interpretação docé- tica de seu evangelho - os mesmos pontos que o docetismo procura negar- a realidade do Verbo eterno se tornar carne, e a realidade de sua morte.

3. Então como reconciliamos esses dois traços gêmeos no Quarto Evangelho - a apresentação poderosa do Filho de Deus divino sobre a terra (tão receptiva à interpretação gnóstica), e a recusa firme de re­ceber o corolário docético? Uma resposta que parece sugerir em si que João estava tentando deliberadamente retratar Jesus de uma maneira tão atra­tiva quanto possível ao dever-ser gnóstico (cristão), enquanto ao mesmo tempo demarcava os limites que ele próprio impunha sobre tal apresentação. Essa sugestão, plausível em si à luz da evidência resenhada acima, pode apelar para um suporte adicional ao relacionamento de João de um lado com sua atributiva fonte dos sinais e de outro com 1 João.

(a) Das várias fontes escritas sugeridas para João somente uma possui plausibilidade real - a Fonte dos Sinais106, Sua dimensão está

106 Ver particularmente R. T. F ortna, The Gospels o f Signs. A Reconstruction o f the Narrative Source Underlying the Fourth Gospel, Cambridge University Press 1970; também The Fourth Gospel and its Predecessor. From Narrative Source to Present Gospel, T. & T. Clark 1989; W. N icol, "The Semeia in the Fourth Gospel", SNT, XXXII, 1972; H. M. T eeple, The Literary Origin o f the Gospel of John, Evanston 1974.

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longe de ser clara (as reconstruções de Fortna e de Teeple são muito ousadas); mas, certamente, há indicações suficientes de uma fonte pelo menos por trás de Jo 2.1-11, 4.46-54 e, provavelmente, 6.1-21; quase certamente, isso não inclui uma narrativa da paixão. O destaque para nós é que João parece ter usado essa fonte e tê-la considerado ou tê-la corrigido. A indicação mais clara disso é 4.48, uma inserção inoportuna com a intenção de contestar o que era, provavelmente, o alvo da fonte- a saber, recontar os milagres de Jesus como um encorajamento à fé (compare Jo 2.11, 4.53 particularmente com 2.23-35, 4.48 e 6.25-36)107. Isso sugere, por sua vez, que a fonte viu Jesus, principalmente, como um operador de milagres e incentivou a fé nele com base nisso - uma atitude que tanto Paulo (2 Coríntios) como Marcos, provavelmente, encontraram e procuravam rejeitar com suas respectivas teologias da cruz (ver acima pp. 153s, 289s). Se for o caso, então parece que João considerou a atitude representada na Fonte dos Sinais e procurava apresentar Jesus de um modo a apelar àqueles que viam Jesus prima­riamente como o Filho de Deus operando milagrosamente. Ao mesmo tempo ele queria contrariar sua cristologia e evangelho como inade­quados ao afirmar que a função primeira dos sinais era indicar para o efeito doador da vida resultante de sua morte-ressurreição-ascensão. Os sinais aparecem assim em sua total significância fornecem uma base para a fé (cf. Jo 2.11; 6.26; 9.35-39; 12.37; 20.30s.); mas fé nos próprios sinais/milagres seria uma fé deficiente, a afirmação superficial de uma multidão volúvel, fé em Jesus como um mero operador de milagres (Jo 2.23-3.2; 4.48; 6.2,14, 30; 7.31; 9.16; cf. 20.29). Em outras palavras, se um docetismo ingênuo ou tendência gnosticizante é detectável dentro do material do Quarto Evangelho, isso é um traço da fonte de milagres de João antes do que do próprio Evangelho; João utilizou essa fonte (e em certa medida foi influenciado por ela), mas, evidentemente, ele estava muito consciente de sua vulnerabilidade para a interpretação docética e procurava tanto corrigir sua fonte como também salvaguardar seu próprio trabalho precisamente nesse ponto108.

107

108

Ver mais, p.ex. N icol, Semeia, pp. 99-106.Cf. G. B ornkamm , "Zur Interpretaion des Johannes-Evangeliums", Geschichte und Glaube, I, München 1968, pp. 115ss; J. B ecker, "Wunder und Christologie", NTS, 16, 1969-70, pp. 136-48; F ortna, Signs, p. 224; S chottroff, Glaubende, pp. 245-68; K öester e R obinson , Trajectories, pp. 188s, 238-60.

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(b) Dois traços de 1 João são de significado especial para nós. Pri­meiro, ela apresenta um refutamento direto de uma cristologia docéti- ca (ljo 4.1-3; 5.5-8). Segundo, indica que havia uma divisão na comu­nidade - uma parte de seus membros anteriores havia se retirado (ljo 2.19). Destaque-se que esses dois traços estão evidentemente ligados- aqueles que "saíram" são identificados com os "anticristos" que ne­gam que Jesus é o Cristo, que Jesus Cristo veio em carne (ljo 2.18, 22; 4.3; 2Jo 7). Em outras palavras, isso parece como se ainda houvesse um "confronto" sobre a cristologia; o tema do docetismo havia resultado em aberta confrontação irreconciliável109. Devemos também notar que, na opinião do autor, aqueles que se retiraram também eram, provavel­mente, culpados de fracassar em amar, as palavras "amor" (substanti­vo e verbo) aparecem com mais freqüência em ljo do que em qualquer outro lugar no NT (46 vezes). Provavelmente o autor considerasse sua reivindicação de uma mais alta unção e mais pleno conhecimento (ata­cado em 2.20) como um fracasso de amar e respeitar seus irmãos - e como alguém poderia reivindicar amor a Deus enquanto desprezava seu irmão?

Tudo isso sugere que o quarto evangelista estava lidando com uma comunidade que, pelo menos, em parte tornara-se fascinada por um entendi­mento gnosticizante de Cristo. Ele, portanto, escreveu em grande parte o seu evangelho, ainda que não totalmente com essa visão - isto é, apresentar Jesus de tal modo a atrair e sustentar os crentes dentro da comunidade (Jo 20.30s). Assim enquanto ele usava a linguagem e as idéias que eram potencialmente gnósticas, pintava um retrato do Je­sus terreno em cores que fossem apreciadas e recebessem uma respos­ta, ele extraía o quanto fosse possível de seu entendimento de Jesus, mas sem percorrer o caminho todo com eles. Se ele foi totalmente bem sucedido não sabemos. Mas se 1 João foi escrita subseqüentemente ao Evangelho de João e à mesma comunidade (como parece muito prová­vel), então sua apologética havia falhado, ou fora em parte alcançada. Aparentemente a situação se deteriorou de uma diversidade aceitável para um cisma. Enquanto muitos dos endereçados haviam se prepa­rado para se manter na linha tracejada pelo quarto evangelista, outros decidiram ir além, abertamente na direção docética, retirando-se da

109 Ver mais R. E. B rown , The Community o f the Beloved Disciple, Chapman 1979, pp. 109-23.

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comunidade. Com tal resultado o autor de 1 João foi capaz de desenhar, mais uma vez, a cristologia do Evangelho que já fora exposta e estabelecer os limites da diversidade aceitável explícita e enfaticamente.

4. Se há alguma coisa nessa última sugestão (§64.3) então é que o Quarto Evangelho deve ser visto como um exemplo clássico do desafio e risco de traduzir as boas novas de Jesus Cristo em uma linguagem e padrões de pensamento de outras culturas - o desafio de traduzir com pouca perda ou ganho para o original, o risco de que as boas novas se­jam absorvidas inteiramente por esses padrões de pensamento e a per­da tanto de sua alteridade distintiva e como seu poder de mudá-los. Esses, aparentemente, foram: o desafio e o risco que confrontou o quar­to evangelista. A fim de falar efetivamente à sua sociedade sincrética, a fim de enfrentar o desafio de uma comunidade cristã influenciada por tendências gnosticizantes, ele apresentou Jesus como o Logos encarna­do, o divino Filho de Deus em plena consciência de sua deidade e em perfeita união com o Pai. Ele pagou caro por isso; ao navegar tão pró­ximo quanto possível da corrente de vento do gnosticismo primitivo quase foi levado por ele! Ele contornou a última fronteira com o gnos­ticismo emergente e quase foi arrastado pelos gnósticos! Conquistar os gnósticos potenciais quase fez dele um gnóstico e quase foi rotulado pela ortodoxia emergente como um herético!

Mas - e isso é o fato significativo - ele mesmo viu esses perigos. Ele não faria o caminho todo com (alguns) aqueles para os quais escrevera. Ele não iria tão longe como muito bem poderia ter ido. Ao contrário, ele se opôs ao (proto-) gnosticismo em desenvolvimento de sua época no ponto decisivo. Se daí ele interagisse com uma ampla tendência gnosticizante de seu tempo, no ponto crucial ele se distanciou dele. E esse ponto crucial é Jesus; e mais uma vez ele se recusa abandonar a unidade entre o homem Jesus histórico e o Cristo glorificado, a recusa de dissolver a história de Jesus em categorias ácidas de um mito transcultural. Jesus é de fato apresentado em trajes piedosos no Quarto Evangelho, mas é o Logos que se fez carne que é, portanto apresentado, aquele em cuja carne e sangue a fé da humanidade depende, aquele que realmente mor­reu na cruz e que somente assim enviaria o Espírito da Vida. Uma vez mais, portanto, é a identidade do Jesus terreno com o Cristo exaltado que não somente demarca a unidade, mas também demarca os limites da diversidade aceitável da fé cristã do séc.J.

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§ 65. CONCLUSÕES

1. Se o cristianismo judaico era caracterizado por sua lealdade às tradições da fé matriz do cristianismo, o cristianismo helenístico era caracterizado por sua presteza em se desvencilhar dos laços, por sua voluntariedade em deixar para trás as formulações primitivas da nova fé, por seu desejo de permitir que sua experiência do Cristo exaltado moldasse sua fé em qualquer linguagem e estilo de vida era mais apro­priado para as diversas situações e sociedades. Isso era verdade para Estêvão, que viu como essencial que se desenvolvesse e se propagasse uma interpretação do ensino de Jesus nitidamente em divergência da pratica da maioria de seus companheiros crentes. Isso foi verdade em medida excessiva das várias igrejas brevemente resenhadas acima no §61, cujos muitos membros, evidentemente, pensavam que o evange­lho cristão era algo libertário diante de qualquer coisa; no movimento crescente do cristianismo não havia nenhuma margem clara entre o cristianismo o sincretismo do entorno e eram poucos cuja fé não era tão diferente daquela de homens como Himeneu e Fileto (2Tm 2.17s.), mas que eram membros ativos da igreja local. Fora verdade de Paulo, como se notou em sua insistência no significado de sua experiência reveladora de Cristo, por seu papel ao liberar o cristianismo da tutela do judaísmo farisaico, e por sua disposição em denunciar e condenar abertamente idéias com as quais discordava (somente a sensualidade grosseira, consistentemente, merecia condenação - Rm 16.17s.; ICor 5-6; 2Cor 12.21; F1 3.18s.). E fora verdade de João em sua presteza em apresentar o Jesus terreno à plena luz de sua glória exaltada como o divino Filho de Deus, ainda que sob o risco de mitologizar a tradição de Jesus. Talvez seja digno de nota adicionar que Paulo, em especial, em nenhum outro lugar é tão violentamente polêmico contra as ten­dências gnosticizantes quanto fora contra os judaizantes - a insistência sobre uma conformidade estrita a uma única autoridade e tradição (Jerusalém) ele evidentemente considerava como mais perigosa do que a abertura radical da não-conformidade diversa. Com certeza não se questiona que Paulo e João (e sem nenhuma dúvida também Estêvão) ficaram dentro de todo o círculo do cristianismo e sustentaram firmemente Jesus Cristo ao centro. Contudo, o ponto é que eles estavam abertos a novos e dife­rentes modos de olhar para o centro e de conduzir o centro em intera­ção com os vários outros círculos de fé ao redor. Tal política sempre foi

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uma coisa perigosa, sujeita ao equívoco, exposta ao ataque daqueles que valorizavam mais a tradição do que a liberdade, por insultar aque­les que valorizavam mais a liberdade do que o amor; mas que no fim é, provavelmente, a posição mais cristã de todas.

2. Enquanto tendências e conceitos gnósticos já são evidentes nas igrejas do séc. I, nenhum documento do NT pode ser apropriadamente des­crito como âe caráter gnóstico. Pois todas as suas aberturas aos novos desenvolvimentos, os escritores do NT ainda que muito abrangentes estivessem conscientes que havia uma linha a ser desenhada em algum ponto - que poderia e haveria uma grande diversidade em torno do centro, mas que uma circunferência havia sido esboçada em certos pontos e algumas expressões do cristianismo estavam sentenciadas ao tê-la ultrapassada. Assim vemos que algumas formulações tentadas da mensagem cristã foram bem cedo julgadas serem menos adequadas em si mesmas, e muito vulneráveis ao abuso. Isso, com efeito, foi o jul­gamento de Mateus e Lucas sobre Q, e de fato de todas as igrejas que retiveram Q somente quando absorvidas em Mateus e Lucas e não em seus próprios moldes. Outras foram consideradas incoerentes: contudo atraentes em sua apresentação do Evangelho em alguns aspectos, ig­norando ênfases integrantes indispensáveis. Isso, com efeito, foi o jul­gamento de Paulo (particularmente 2 Coríntios e Filipenses), Marcos e João (em relação as suas fontes de milagres). Nos dois casos o critério era o mesmo: essa nova formulação mantém juntos o Cristo crucificado e o Senhor exaltado e Filho de Deus? Em outras palavras, já dentro do perío­do do séc. I uma posição estava sendo tomada pelos cristãos helenísti- cos contra o que se tornaria integrante da cristologia característica do gnosticismo (do séc. II). Como os documentos mais caracteristicamente cristãos judaicos no NT traçam uma linha demarcatória entre a diversi­dade aceitável do cristianismo judaico e (o que mais tarde se tornaria) o ebionismo inaceitável - e que a linha é Cristo, que o Jesus histórico é verdadeiramente o Senhor exaltado, a incorporação da Sabedoria, exal­tada em status incomparável diante de Deus; assim os documentos de maior matiz cristão helenístico traçaram uma linha demarcatória entre a diversidade aceitável e (o que mais tarde se tornaria) o gnosticismo inaceitável - e essa linha também é Cristo, o Senhor glorificado, o úni­co mediador entre Deus e o homem é Jesus, que ascendeu à gloria ao ser levantado sobre uma cruz.

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Talvez, novamente, seja digno de nota que até onde sabemos Pau­lo foi o primeiro a formular esse critério fundamental absolutamente cristo­lógico. Pois foi precisamente essa ênfase paulina que Marcos transpôs para o formato de um "Evangelho": confrontado (provavelmente) por um ensino similar àquele que Paulo enfrentou em Corinto (apresen­tando Jesus principalmente como um controlador e despenseiro de poder) Marcos, assim, construiu seu evangelho com atenção focada mais plenamente em Jesus o Filho do Homem, sofredor (ver acima pp. 110, 151, 290s). Foi essa definição de Marcos do "formato evangelho" que se tornaria o padrão para Mateus e Lucas. E foi a inserção do ma­terial de Q no quadro de Marcos que contrariaria mais efetivamente qualquer vulnerabilidade à inerente interpretação gnóstica em seu for­mato. Similarmente o quarto evangelista, aparentemente confrontado com um desafio similar, como enfrentado por Marcos (uma Fonte de Sinais apresentando os milagres de Jesus como uma base para a fé), en­controu um caminho, por fim, tal qual o de Marcos - isto é, por situar a operação de milagres de Jesus à luz da paixão. Finalmente, podemos notar que a ênfase equivalente em Hebreus e 1 Pedro era devida, muito provavelmente, à influência de Paulo no final. A dívida impagável do cristianismo a Paulo, nesse ponto, é considerável110.

Resumindo, mais uma vez se torna evidente que para os escritores do NT não somente a unidade, mas também a diversidade do cristianismo era determinada pela referência a Cristo - a centralidade e primazia do Senhor exaltado, e a identidade do Jesus crucificado com o Filho de Deus exaltado - é a marca decisiva da fé cristã.

3. Como com o cristianismo judaico, também no caso do cristia­nismo helenístico, estamos lidando com um fenômeno diverso, ou em termos mais simples, um espectro. No fim do espectro, o cristianismo helenístico recai sobre a diversidade inaceitável do gnosticismo. Mas também dentro do cristianismo helenístico aceitável havia uma diversidade considerável - dos libertinos tolerados pelas igrejas endereçadas pelo

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O mesmo é verdade dos princípios éticos e orientações elaboradas por Paulo (pp. 427, 471s), visto que a ênfase primária recai sobre um andar de acordo com o Espírito de Cristo (Rm 8.4-6,12-14; G15.16-25) e com as tradições do en­sino ético de Cristo (acima p. 147s), particularmente o amor ao próximo como cumprimento da Lei (Rm 13.8-10; G15.14).

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vidente do Apocalipse e Judas em uma ponta, e para Paulo (e Mar­cos) na outra. Não havia uma única forma de cristianismo helenístico aceitável no séc. I. Se a supersimplificação pode ser tolerada (isto é, reduzindo a diversidade em uma única linha reta), talvez pudéssemos mais facilmente representar essa diversidade assim - a linha vertical novamente demarcando onde a diversidade aceitável recairia sobre a diversidade inaceitável.

CRISTIANISMO HELENÍSTICO

Paulo João Q Oponentes atacados Proponente/ Aqueles Gnosticismoem I Coríntios, Fili- d/i CtisfqJójíia citados propriamentepenses, Colossenses, Jo homerrí em João ditoPastorais, Apocalipse, / milagroso 2.19

4. Resumindo, dois critérios para distinguir o inaceitável do aceitá­vel em termos de diversidade mais uma emergem. Primeiro, cristãos helenísticos se tornavam inaceitáveis quando cessavam de amar outros cristãos, quando reivindicavam uma superioridade espiritual e fracas­savam em respeitar o conhecimento e experiência espiritual de outros crentes. Quando nenhum tema cristológico estava em questão (como aparentemente em 1 Coríntios) os relacionamentos corretos eram con­siderados por Paulo como mais importante do que a crença correta. Segundo, o cristianismo helenístico se tornava inaceitável quando seu liberalismo se tornava desligado do centro, quando sua diversidade começava a reduzir o significado do Cristo exaltado ou a separar a unidade do Jesus terreno e o Senhor exaltado. A liberdade cristã não é ilimitada; sempre deve ser considerada mediante o amor pelos outros em sua conduta e crença em Cristo como homem e Senhor em sua fé, do contrário cessa-se de ser cristão.

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C a p í t u l o XIII

CRISTIANISMO APOCALÍPTICO

§ 66. O QUE É "APOCALÍPTICA"?

1. Cristianismo apocalíptico é tanto historicamente como teologi­camente uma das mais importantes expressões da fé cristã. Apesar de o corpo principal de tradição cristã ter ignorado muitíssimo o fenô­meno do cristianismo apocalíptico: a grande Igreja se viu embaraçada por causa da sua alta dose de entusiasmo; devido a sua tendência ao fanatismo as principais igrejas freqüentemente, o suprimiram. Mas o fato é que o cristianismo a princípio emergiu em um contexto de pen­samento apocalíptico, como é amplamente reconhecido. Além disso, no início, o cristianismo em si era em grande medida um movimento escatológico e entusiástico com traços apocalípticos marcantes, como veremos. E desde o séc. I até o início da Idade Média produziu-se uma literatura apocalíptica ampla. Com efeito, nenhuma "trajetória" é tão claramente visível no cristianismo histórico do que aquela que provém das expectativas apocalípticas dos profetas judeus tardios, mediante a literatura judaica antiga, Qumran, João Batista, Jesus, a comunida­de palestinense primitiva, o Paulo primitivo, o livro do Apocalipse, o montanismo primitivo e os vários apocalipses cristãos e judaicos dos primeiros dois ou três séculos da era cristã, e mediante as seitas mile- naristas medievais, ao deixar sua marca mais clara em 1534 no reino messiânico de João de Leyden em Münster. Desde que a influência do pensamento apocalíptico pode ser traçada em diferentes direções- nos movimentos religiosos tais quais o das Testemunhas de Jeová e do Pentecostalismo de um lado, e nos movimentos totalitários do Comunismo e do Nacional Socialismo de outro. O reconhecimento de sua importância histórica foi um dos principais fatores para conduzir

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uma perspectiva apocalíptica de volta ao centro dos estudos bíblicos e teológicos nos anos recentes1.

Mas o que é "apocalíptica"? A maior parte da discussão do séc. XX se confundiu, com a força e o escopo da obscura palavra-chave "apo­calíptica". Esta poderia ser usada como um substantivo, ou somente como um adjetivo? Ela se refere somente à literatura, uma classificação de gênero? Ou também pode descrever crenças e idéias característi­cas de tal literatura, embora presentes em outros lugares? Ou é prin­cipalmente uma categoria sociológica - um movimento apocalíptico (= milenarista)? A maior parte da erudição recente de fato abando­nou o uso de "apocalíptica" como um substantivo e distingue entre apocalipse como um gênero literário, apocalipsismo como uma ideologia social, e escatologia apocalíptica como um grupo de idéias presentes em outros gêneros e lugares sociais2. Mais importante ainda, "apocalíp­tica" seria usada principalmente ou exclusivamente para o modo da revelação (apokalypsis = desvelamento dos mistérios celestiais) ou para o conteúdo de dita revelação? C. Rowland, em particular, indica que o que freqüentemente é descrito como "apocalíptica" (= revelação dos eventos finais) é melhor classificada sob o título de "escatologia", e que enquanto os apocalipses geralmente exibem um forte interesse nos "eventos finais", isso não quer dizer que seja o foco exclusivo de seu interesse; apocalíptica e escatologia não são palavras sinônimas.3

A análise seguinte reflete algumas das dificuldades e confusões mais antigas. Visto que não há nenhum tipo padrão de apocalipse, os

1 Ver p.ex. R. W. Funk, org., "Apocalypticism", JThC, 6 ,1969; K. Koch, The Redis­covery o f Apocalyptic, 1970, ET SCM Press 1972; J. B a r r , "Jewish Apocalyptic in Recent Scholarly Study", BJRL, 58, 1975-76, pp. 9-35. Ver também notas 2 e 3 abaixo. C. Rowland, Radical Christianity. A Reading o f Recovery, Polity 1988, acen­tua a continua influência do pensamento apocalíptico nos séculos tardios. Para a investigação do apocalipsismo antes de 1947 ver. J. M. Schmidt, Die jiidische Apokalyptik, Neukirchen 1969.

2 Veja particularmente P. D. H anson, The Dawn o f Apocalyptic, Fortress 1975,2a ed., 1979, pp. 10-12, 429ss; J. J. C ollins, org., Apocalypse. The Morphology of a Genre, Semeia 14, 1979, pp. 1-19; J. J. C ollins, The Apocalypse Imagination, Crossroad, 1984, cap. 1 especialmente, p. 2. Esse esclarecimento esperançosamente encontra a mais importante das objeções ao uso contínuo da palavra por T. F. G lasson , "W hat is Apocalyptic?", NTS, 2 7 ,1980-81, pp. 98-105.

3 C. R owland, The Open Heaven. A Study o f Apocalyptic in Judaism and Early Chris­tianity, SPCK 1982; também Christian Origins, SPCK 1985, pp. 56-64.

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traços destacados na próxima seção não constituem uma descrição do gênero, mas simplesmente salienta os traços mais extraordinários que, com freqüência, aparecem nos "apocalipses". A lista das característi­cas teológicas, igualmente, focaliza-se mais sobre a escatologia do que sobre a "apocalíptica" como uma categoria mais ampla4. No conjunto fornecem um quadro suficientemente claro do que já chamamos, por desejar um título melhor, "cristianismo apocalíptico". Nossa questão é simples. Em que medida Jesus e os primeiros cristãos eram apocalíp­ticos em perspectiva e mensagem? Em que medida uma escatologia apocalíptica é integrante ao cristianismo primitivo de modo que sem isso o cristianismo se torna algo qualitativamente diferente do movi­mento que começou na Palestina quase há dois mil anos atrás?

2. Características literárias dos apocalipses. Apocalipses são "escritos revelatórios que desvelam os segredos do além e especialmente do fim dos tempos"5. As principais características de tais escritos são as que se seguem.

(a) Pseudonimia. E típico do apocalíptico não usar o próprio nome, mas apresentar seu escrito sob o nome da alguns indivíduos famosos do passado (p.ex. Pedro ou Paulo, Moisés ou Esdras, Enoque ou Adão). Provavelmente, ele usava esse artifício como um modo de acentuar sua reivindicação de se posicionar em continuidade com ele e ser o in­térprete autorizado daquele que por consenso comum fora altamente favorecido com a revelação divina6.

(b) Visões e simbolismo. O apocalíptico geralmente recebia sua re­velação em visões, algumas vezes mediante sonhos, freqüentemente, cheia de simbolismo bizarro e portentos celestiais - por exemplo, o sonho visionário de Daniel das quatro bestas que sobem do mar (Dn 7), ou o sonho de IV Esdras: "Eis que subiu do mar uma águia que

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4 Por conveniência, eu trabalho particularmente sobre a análise de P. V ielhauer em H ennecke, Apocrypha, II, pp. 582-94. Ver também particularmente W. B ousset e H . G ressmann, Die Religion des Judentums im späthellenistischen Zeitalter, Tübingen, 4a ed., 1966, cap. XIII; C. K . B arrett, The New Testament Background: Selected Documents, SPCK 1956, pp. 227-55; R ussell, Apocalyptic; K och, Apocalyptic, pp. 23-33. Ver também o Prefácio, p. 37.

5 V ielhauer em H ennecke, Apocrypha, II, p. 582. Deve ser notado que essa definição é muito aceitável para R owland (acima nota 3).

6 Ver D. G . M eade, "Pseudonymity and Canon", WUNT 39, Tübingen 1986.

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tinha doze(?) asas emplumadas, e três cabeças" (4Esd 11). Em outros momentos as visões vinham enquanto o apocalíptico estava acordado- uma experiência de êxtase visionário; isso, por exemplo, era como o vidente do NT recebia suas visões - "Depois disso, tive uma visão: havia uma porta aberta no céu... Fui imediatamente movido pelo Espí­rito: eis que havia um trono no céu..." (Ap 4.1s.). Anjos regularmente atuam como o intermediário que explica e interpreta a visão. Em que medida a forma visionária derivava-se finalmente de uma experiência religiosa genuína ou era simplesmente um artifício literário permane­ce, na maioria dos casos, uma questão aberta.

(c) Panorama da história de uma perspectiva do passado. Um traço da pseudonímia é que o apocalíptico era capaz de se representar como posicionando em um ponto anterior na história. Ele então apresentava o curso da história de seu ponto de vista pseudônimo até o seu real ponto de vista na forma de profecia, geralmente profecia alegórica: por exemplo, a imagem dos diferentes metais ou as quatro bestas em Daniel 2 e 7, ou o sonho elaborado da história mundial em 1 Enoque 85-90. A profecia alegórica então continuava até o futuro real do autor, descrevendo os eventos do fim, a intervenção divina decisiva no curso da história que ele acreditava que aconteceria. Como C. K. Barrett in­dica: "Esse método com freqüência permite a datação dos apocalipses; o ponto em que a história perde a precisão e a acuidade é o momento do escrito"7.

(d) Caráter esotérico - um corolário para o simbolismo bizarro e forma alegórica de profecia. Nem sempre fica claro o que os sonhos e visões representam, ou que data foi pretendida pela divisão da his­tória em dias e semanas. A história era expressa em forma de código, sua informação a respeito do futuro era algo para ser preservada do conhecimento geral, algo para ser manuseado em segredo. Assim, por exemplo, Daniel é instruído para selar a visão: "Mas, tu, guarda silêncio sobre a visão, pois ela se refere a dias longínquos" (Dn 8.26), e no fim é informado: "Vai Daniel, pois estas palavras estão fechadas e reserva­das até o tempo do Fim" (Dn 12.9). Similarmente Enoque é informado, logo no início, de que ele não escreve para esta geração, mas para uma geração muito distante no futuro (1 Enoque 1.2).

7 B arrett, Background, p. 231. Ex. cf. Assunção de Moisés 7.1ss com 2-6; Oráculos Sibilinos IV antes e depois da linha 134. 1

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(e) "Literatura clandestina"8. A literatura apocalíptica era, muito freqüentemente, uma resposta da fé a uma situação de crise9 - um olhar ao Deus que intervém em uma situação em que os recursos humanos fracassam e os homens da fé estivessem em risco de serem destruídos pelos inimigos da fé. Assim, por exemplo, Daniel parece ter sido escrito para suscitar resistência à tentativa de Antíoco Epifâ­nio de impor práticas helenísticas e de culto aos judeus (ca. 167 a.C.); o Rolo da Guerra da seita de Qumran dá ordens de batalha para o iminente conflito final entre os filhos da luz e os filhos das trevas (1QM); 4 Esdras reflete algo da crise em que o judaísmo se subme­teu após a queda de Jerusalém em 70 d.C; e o Apocalipse parece ter sido proferido em parte pela ameaça de perseguição sob o Imperador Domiciano em torno de 95 d.C.

(f) Exortações éticas. Os apocalipses exortam como de costume seus leitores a se arrepender e a se converter a vista do Fim iminente e do juízo vindouro, e também inclui exortações mais tradicionais - ais e advertências contra a injustiça, bem como instam à um viver justo. Um traço regular da trajetória do apocalipsismo é a severidade moral.

3. Características teológicas da escatologia apocalíptica.(a) As duas eras. "O Altíssimo fez não uma, mas duas eras" (4Esd

7.50). A escatologia apocalíptica partilha a visão hebraica da histó­ria - uma visão quase que única na antiguidade - isto é, da história como uma progressão linear ao invés de uma progressão circular, movendo-se para frente antes que se repetindo, e movendo-se para frente para um fim e meta definidos. Onde a apocalíptica é caracte­rística dentro do pensamento hebraico por sua vez está na ruptura acentuada que prevê nessa linha da história, a ruptura entre esta era e a era vindoura. Esta era e a era vindoura não são, simplesmente, segmentos consecutivos da mesma linha de história: no fim desta era a linha se encerra; a nova era começa como uma linha nova, algo muito diferente. Com freqüência esta era se dividia em um número de períodos (4, 7 ,10 ,12 , 70), mas a era vindoura é algo inteiramente diferente.

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8 D. N. F reedman , "The Flowering of Apocalyptic", em F unk, Apocalypticism, p. 173.

9 C ollins, Imagination, p. 31.

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O dualismo da doutrina das duas eras não reconhece nenhu­ma continuidade entre o tempo deste mundo e aquele que há de vir: "Pois eis que virão dias em que tudo o que veio a ser será entre­gue a destruição, e será com o se nunca tivesse havido" (2Br 31.5). Entre as Duas Eras há um a diferença qualitativa, e isso se expressa claramente em Daniel 7 pelo contraste das bestas que surgem do m ar e o "hom em " vindo dos céus (cf. também 4Esd 7.52-61).10

(b) Pessimismo e esperança. A descontinuidade entre as duas eras também é claramente expressa na atitude muito diferente dos apoca­lípticos para com as duas eras. Para com a era presente sua atitude é de pessimismo não abrandado: degenerada; envelhecida; se põe sob o domínio de Satanás e poderes hostis; está maculada pelos males, uma era de enfermidades, cheia de aflição e tristeza; não há esperança algu­ma para ela. Mas o quadro escuro do presente é mais que compensado pela glória por vir - uma nova criação, um novo céu e terra, uma Jeru­salém celestial, o paraíso restaurado. Uma das mais grandiosas expres­sões dessa esperança, ainda que grotesca, está em 2 Baruc 29.5:

A terra também colherá seu fruto dez mil vezes e sobre cada vinha haverá mil ram os, e cada ram o produzirá mil cachos, e cada cacho mil uvas, e cada uva produzirá um coro (coro = 450 litros!).

(c) O clímax escatológico - Os infortúnios messiânicos, juízo (sobre os inimigos de Deus), salvação (para Israel), e ressurreição. Um traço freqüente do pensamento apocalíptico é que o encerramento da velha era e introdução da nova será marcada por um período de vários so­frimentos tais como o mundo nunca conhecera - algumas vezes ima­ginado como um aumento de infortúnios ou sob a figura de um parto, algumas vezes em termos de um conflito militar e guerra, algumas ve­zes em termos de prodígios cósmicos sobrenaturais e catástrofes, fre­qüentemente uma combinação de metáforas e imagens diferentes. Um pressentimento primitivo nessa linha se encontra em Jubileus 23.13 -

...Pois calam idade se seguirá de calam idade, e ferida de ferida, e tribulação sobre tribulação, e m ás notícias sobre más notícias, e enfermidade sobre enfermidade, e todas as m ás notícias tais como

1 V ielhauer in H ennecke, Apocrypha, II, p .'588.

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essas, um a após a outra, enfermidade e ruína, e neve e geada e gra­nizo, e febre, e calafrio, e torpor, e fome, e m orte, e espada, e cati­veiro, e todo o tipo de calam idades e dores...11

Os sofrimentos messiânicos culminam na intervenção divina que conduz à nova era - a era de felicidade para Israel, ou pelo menos para o remanescente justo. Quanto aos gentios, as opiniões divergem. Em alguns escritos, particularmente os mais antigos, é antecipado que os gentios serão levados a partilhar as bênçãos de Israel - por exemplo, os Oráculos Sibilinos:

Então todas as ilhas e as cidades dirão: "C om o o Eterno ama essa gente! ... Deixai-nos fazer um a procissão ao seu templo, pois ele é o Todo Poderoso..." E de toda terra eles trarão incenso e dádi­vas para a casa do Grande Deus... (III. 710s, 718, 772s).

Mas o tom mais comum, particularmente dos escritos tardios, é que todas as nações que mostraram hostilidade a Israel serão destru­ídas, seja pela espada, seja pelo agir direto de Deus. Há alguma espe­rança para as nações inocentes ou penitentes; mas, ainda que poupa­das, seu papel na nova era seria a de subserviência a Israel12.

Parte dessa esperança escatológica é expressa em termos de ressurreição; o conceito da ressurreição dos mortos procede da es­catologia apocalíptica. Os justos que estão mortos seriam restaura­dos à vida a fim de partilhar as bênçãos da nova era; com menos freqüência é expressa a crença de que os ímpios também seriam ressuscitados, a fim de serem julgados. Uma formulação primitiva dessa expectativa é Daniel 12.2s.: "Muitos dos que dormem no pó da terra acordarão, uns para a vida eterna, outros para o opróbrio, para o horror eterno".13

(id) Iminência do fim. A escatologia apocalíptica nasce da crise que é caracterizada por desejar o fim, o fim do presente mundo mal, seus

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11 Outras referências em B ousset-G ressmann, Religion, pp. 250s; S track-B illerbeck, IV.977-86; R ussell, Apocalyptic, pp. 272-6; W. S chmithals, The Apocalyptic M ove­ment: Introduction and Interpretation, 1973, ET Abingdon 1975 pp. 25s; e acima p. 256.

12 Ver R ussell, Apocalyptic, pp. 297-303.13 Ver mais em D unn , Jesus, pp. 117s.

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sofrimentos e aflições, e por anelar o novo. Essa ansiedade se expressa em um questionamento impaciente: "Até quando? Até quando?"; (Dn 8.13; 12.5ss.; 4Esd 4.33s; 6.59; 2Br 26; 81.3; etc.). Pelo menos alguns dos apocalípticos estavam conscientes de que o fim não poderia ser apres­sado - o propósito de Deus precisa ser cumprido plenamente (assim particularmente 4Esd 4.33-37)14. Porém, mais típico é o senso de ficar à espera, a convicção de que o próprio fim não demoraria. O próprio fato de que essas revelações secretas que os homens do passado selaram para o fim dos tempos, e que agora eram conhecidas, eram por si mes­mas um sinal certo de que o Fim estava próximo. O exame da história passada em forma profética surgia da convicção de que os atos finais da história estavam para acontecer: a pedra desprendida da montanha sem intervenção de mãos logo estilhaçaria o ferro e os pés de argila do ídolo (Dn 2). A era presente seria dividida em períodos porque seu clímax estava próximo - escritor e leitor, judeu e gentio juntos se situ­avam no último período antes do fim. O propósito de Deus tinha de ser, primeiramente, cumprido, é claro, mas esse cumprimento estava quase completo, a consumação estava para acontecer (4Esd 4.33-50; 8.61; 11.44).

Pois a mocidade do mundo passou, e a força da criação já chega­ra ao fim, e o avanço das eras está quase aí e até mesmo passou. Pois a caneca está próxima à fonte, o navio próximo do porto, a caravana próxima da cidade, e a vida próxima à sua conclusão (II Bar 85.10).

(e) Dimensões sobrenaturais e cósmicas. Característica do apocalípti­co é o fato de que sua visão não está confinada meramente a Israel, ela abarca o mundo todo, e não apenas a terra, mas os céus e também o inferno. Mesmo apocalipses com fortes tendências judaico nacionalista dos eventos do Fim como afetando o todo da humanidade; ressurrei­ção, juízo mundial e dissolução do mundo em particular estão em uma escala cósmica. E se o cosmos é o palco, os atores não são somente os homens, mas também os seres divinos - anjos e espíritos. Por trás do

14 Ver mais em W. H arnisch, Verhängnis und Verheissung der Geschichte. Untersu­chungen zum Zeitnund Geschichtsverständnis em 4. Buch Ezra und in der Baruch- Apokalypse, Göttingen 1969, especialmente pp. 268-321; C. L. H olman , Escha- tological Delay in Jewish and Early Christian Apocalyptic Literature. Ph.D thesis, Nottingham 1982. 1

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mal da terra estão anjos caídos e demônios, representados acima de tudo por Satanás ou o anti-Cristo (ver particularmente lEn 6-11; 16; 21; 54-6; etc.; Or Sibilinos 3.63ss.). Isso explica o porquê dos santos do Altíssimo serem indefesos diante do mal - por que eles têm que espe­rar e depender da intervenção de Deus. Nas obras proféticas o agente do propósito divino é classicamente pensado como o Messias - uma figura humana. Mas a expressão clássica na literatura apocalíptica é em termos do Filho do Homem - transcendente, quase um ser divino (Dn 7.13s; lEn 48; 69.26; 71.14-17; Mc 13.24-27; Ap 14.14ss.; provavel­mente 4Esd 13).

(/) Soberania e controle divinos. Contemplando tudo está a fé de que Deus está no controle, Deus está no controle da história - a qual segue em direção a sua meta. Essa fé é mais evidente na imagem da história futura, como já escrita em um manuscrito (Dn 8.26; 12.4, 9; Ap 5-8).15 A mensagem é direta; tudo o que está para acontecer no quadro da his­tória futura é sabido de antemão, foi determinado previamente. Igual­mente, o apocalíptico olha para Deus somente para trazer a nova era. Não é algo a ser realizado pela atividade humana. Somente Deus pode finalizar a era antiga; a nova era virá somente mediante a intervenção sobrenatural divina. E por isso que a esperança é suscitada do pessi­mismo. O apocalíptico não vive das aparências, ou da realidade do presente; ele contempla além para Deus e vê como tarefa sua apresen­tar aos seus leitores sua compreensão da mais plena, realidade cósmica e sua visão da intervenção iminente de Deus.

4. Podemos resumir nossos achados e talvez esclarecer mais o ca­ráter distintivo da escatologia apocalíptica em poucas palavras pela comparação e contraste da mesma com a profecia, da qual, prova­velmente, desenvolveu-se. Há, claramente, um número considerável de sobreposições entre as duas. Isaías, por exemplo, vislumbrou um futuro quando os homens viveriam em paz; quando a natureza seria transformada, o lobo habitaria com o cordeiro, o leopardo deitar-se ia com o cabrito, uma criança os guiaria, e a terra inteira seria cheia do co­nhecimento de Yahweh (Is 2; 11). Ezequiel experimentou visões e usou o tipo de imaginário fantástico que nós mais naturalmente associamos

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15 Cf. Jubileus 32.21; também Dn 2.21; Assunção de Moisés 12.4s.; 1 Enoque 39.11; 92.2; IQS 3.15s.

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com apocalipses - "as quatro criaturas viventes", quatro rodas cujos aros eram "cheios de olhos ao redor", etc. Particularmente, no perí­odo pós-exílico há discernimento de um desenvolvimento dentro da profecia em direção ao apocalipsismo - com o quadro do julgamento divino sobre as nações e da libertação e vindicação pelo remanescente justo, conduzindo a uma nova era de ouro de justiça, paz e deleites sem fim. Mas na escatologia apocalíptica o quadro é pintado em tela grande, com fortes pinceladas. Em cada um dos pontos característi­cos do apocalipsismo há uma potencialização que deixa para trás a profecia. A descontinuidade entre a antiga era e a era vindoura é mui­to mais saliente do que qualquer coisa que encontramos na profecia. O pessimismo expresso a respeito do presente é muito mais radical. O sofrimento no fim dos tempos é mais aterrador, os juízos e a salva­ção são finais, o fim está muito próximo, a dependência da intervenção divina por um agente divino é mais absoluta. Igualmente, o caráter esotérico de muitos apocalipses, a elaboração da idéia de uma história pré-determinada, as dimensões cósmicas... isso também pode ser vis­to como extensões da profecia, mas também marcam a fronteira entre profecia e apocalipse. H. H. R owley resume a diferença do seguinte modo: "Falando em termos gerais, os profetas prediziam o futuro que resultaria do presente, enquanto que os apocalípticos prediziam o futu­ro que irromperia no presente".16

Já que nos esforçamos o suficiente para esclarecer o caráter dis­tintivo da "apocalíptica", podemos agora continuar a examinar os iní­cios do cristianismo e seus escritos para descobrir se podemos falar do cristianismo do séc. I como cristianismo "apocalíptico" e em qual medida.

§ 67. "APOCALÍPTICA - A MAE DE TODA A TEOLOGIA CRISTÃ"?

A literatura apocalíptica judaica se estende desde o fim do séc. III a.C. até o séc. II d.C. Os escritos apocalípticos que possuímos se distribuem em duas partes, aproximadamente, iguais tendo Jesus

16 H . H . R owley, The Relevance o f Apocalyptic, Lutterworth, 1944, 3 1963, p. 38 (ênfase minha). Ver também H anson , Dawn o f Apocalyptic.

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ao centro. Isso quer dizer que Jesus se situa na metade de um perí­odo em que o apocalipsismo foi uma das mais importantes forças no pensamento religioso judaico. A total importância disso foi, pri­meiramente, observada pela erudição do NT nas obras de J. W eiss e de A. Schweitzer na virada do séc. XX, que argumentaram que Jesus foi fortemente influenciado pela escatologia apocalíptica e que sua proclamação do reino e a compreensão de sua missão foram consti- tutivamente marcadas pelas características do apocalipsismo e não podem ser entendidas aparte do mundo do pensamento apocalíp­tico. Em um sentido muito importante e real quase toda a pesquisa do Jesus histórico, desde então, foi uma tentativa de escapar ou, no mínimo, de suavizar essa avaliação de Jesus, mas em muitos aspectos devido aos corolários cristológicos que se seguem. Houve poucas inibições em apelidar a comunidade cristã primitiva de "apocalíptica", a despeito da falta de evidência sustentada por Atos. De qualquer forma, a reivindicação de E. Kàsemann de que: "A apocalíptica foi a mãe de toda a teologia cristã"17 se torna uma caracterização que, dificilmen­te, pode ser ignorada, e cuja importância ao nosso entendimento para o cristianismo do séc. I ainda tem de ser apreciada plenamente. Se o cristianismo emergiu primeiramente de uma cosmovisão apo­calíptica, como uma seita apocalíptica, o que isso nos conta acerca do cristianismo?

1. Sabemos muito pouco acerca de João Batista para reconstruir um relato elaborado de sua obra e pregação. Mas o que temos mostra de forma suficientemente clara que sua pregação era grandemente in­fluenciada pela escatologia apocalíptica. Sua mensagem era predominan­temente de juízo (Mt 3.7-12/Lc 3.7-9,15-18), mas, mais precisamente, de juízo final - o veredicto final sobre a vinha (toda árvore infrutífe­ra será cortada e lançada ao fogo), a colheita final (o trigo ajuntado no celeiro, a palha queimada no "fogo inextinguível"). Não somente isso, mas o juízo era iminente: aqueles que vinham ouvi-lo estavam fugindo da ira (escatológica) que estava para começar; "o machado já está posto à raiz das árvores"; o rasteio já estava na mão para come­çar a revolver a eira.

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17 "The Beginnings of Christian Theology", em Funk, Apocalypticism, p. 40; tam­bém NTQT, p. 102.

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As imagens de juízo de João são típicas da escatologia apocalíp­tica. A metáfora da ceifa é comum tanto para a profecia como para a apocalíptica (cf. J1 3.13; 4Esd 4.30). Mas a idéia de juízo pelo fogo, o traço dominante (aquilo que temos) da mensagem do Batista (Mt 3.10,11, 12) é mais caracteristicamente apocalíptica (ver p.ex., lEn 10.6, 13; 90.24ss; 100.9; 102.1; Test. Judá 25.3; Or. Sib. 3.542ss; 4.176ss.; 2Br 48.39, 43; 59.2; 4Esd 7.36ss.; 1QH 6.18s.). Ainda mais formidável é o uso do batismo por João, o rito que era sua marca, como uma metáfora para esse juízo divino: "Ele vos batizará com o Espírito e com fogo" (Mt 3.11/Lc 3.16). João, provavelmente pinçou isso do símbolo apocalíp­tico de juízo como um rio de fogo (Is 30.27s.; Dn 7.10; lEn 14.19; 17.5; 67.7, 13; 71.2; 2En 10.2; Or. Sib. 3.54; 4Esd 13.10s; 1QH 3.29ss.). E visto que ele, evidentemente, buscava tanto os impenitentes como os peni­tentes como sendo batizados nesse rio de fogo do pneuma (hálito/espí­rito), ele deve ter entendido ambos como destrutivos para o primeiro grupo (cf. Mt 3 .10 ,12/Lc 3.9, 17), e como purificativo para o segundo grupo (ver acima p. 327, nota 6). Em outras palavras, sua metáfora é melhor entendida como uma variante sobre o tema apocalíptico que conhecemos como os infortúnios messiânicos - porque no fim dos tem­pos tribulação e catástrofe destruiriam e purificariam a antiga era para dar passagem a nova era (ver acima pp. 325ss).

Devemos notar também a combinação de pessimismo e esperança na mensagem de João. Até onde podemos dizer, ele não dava nenhum peso a visão de que a fiel observância da Lei conquistaria o favor de Deus, e, explicitamente, atacava a visão estreitamente relacionada de que a descendência de Abraão (incluindo a circuncisão) satisfaria a Deus. Somente aqueles que se arrependiam genuinamente e de co­ração poderiam esperar sobreviver ao batismo no Espírito e fogo, e mesmo somente a custa de toda a mancha e marca da presente era sendo consumida nesse rio de fogo do pneuma. Mas aqueles que se ar­rependessem e sobrevivessem ao revolver dos infortúnios messiânicos seriam então as boas sementes no seleiro da nova era.

Não fica claro em quem João pensava como o agente do juízo divino: tudo o que sabemos é: "Aquele que vem após mim é maior do que eu" (Mc 1.7 par.). Possivelmente, ele pensasse em termos de uma figura humana dotada com autoridade divina. Mas é mais provável que imaginasse um ser celestial, talvez em forma humana; e de fato é apenas concebível que João estivesse aqui influenciado pela imagem

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apocalíptica da figura do Filho do Homem18; note-se particularmente como o (Filho do) Homem e o rio de fogo pertencem juntamente à mesma visão de Daniel 7.9-14 e ainda mais estreitamente na visão de 4Esd 13.10s. (cf. também Ap 14.14 com as metáforas da colheita de Batista).

A despeito da falta de material, entretanto, temos o suficiente para comprovar o caso de que João Batista certamente fazia parte da ampla trajetória do pensamento apocalíptico do séc. I.

2. O que dizer então de Jesus? Já resumimos a proclamação de Jesus (acima §3); aqui só precisamos focar sobre os pontos salientes da comparação. Será mais simples se seguirmos o esboço aproximado das características teológicas elencadas acima em §66.3.

(a) E bem provável que Jesus usasse a linguagem das duas eras (Mc 3.29/Mt 12.32; Mc 10.30/Lc 18.30; Mc 11.14/Mt 21.19; cf. Mc 4.19/ Mt 13.22; Mt 13.39s, 49; Lc 16.8; 20.34s.). Mais característico, contudo, é sua fala do "reino de Deus". Essa não é uma expressão apocalíptica regular, mas pode ser, certamente, considerada corretamente como uma variação do motivo das duas eras - isto é, como a maneira de Jesus de falar a respeito da era vindoura. E quase certamente Jesus fez esse uso (Mt 6.10/Lc 11.2; Mt 8.11/Lc 13.28s.; Mt 10.7/Lc 10.9, 11; Mc 9.1 pars.). Aqui o discernimento de W eiss ainda se sustenta: o reino de Deus não pode ser concebido como algo que se desenvolva neste mundo e fora dele, mas somente como: "Uma entidade, radical­mente, sobrenatural que se situa diametralmente em oposição a este mundo".19 Embora Jesus entendesse o poder do final dos tempos por estar presente no seu ministério e por meio dele (ver acima §§3.2,50.5 e abaixo p. 469), foi precisamente como o poder da era vindoura que ele o percebia - tão distintamente sobrenatural e, escatologicamente, in­teiramente outro que não permitia comparação e resistência para ar­riscasse o lugar de alguém na era vindoura (Mt 12.27s/Lc 11.19s; Mc 3.28s par). A descontinuidade entre a era presente e o reino vindouro é posteriormente indicada por um tipo de sustentação e relaciona-

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18 Mas ver D unn , Christology, p. 304, n. 139.19 J. W eiss, Jesus’ Proclamation o f the Kingdom o f God, 1892, ET SCM Press 1971,

p. 114. Cf. particularmente Oráculos Sibilinos III. 46s, 767; Assunção de Moisés lO.lss.; IQM 6.6; 12.7.

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mento ao reino vindouro (Mt 6.11/Lc 11.3 - o pão escatológico; Mc 12.25 par - "como anjos no céu"), pela completa reversão dos valores deste mundo (Lc 6.20/Mt 5.3; Mc 10.29s, 31 par.; Lc 12.16-21), por um tipo diferente de templo (escatológico - cf. Mc 14.58; Jo 2.19; ver acima p. 115s), e particularmente pelo fato de que o juízo final marcaria o início da era do reino (Mt 19.28/Lc 22.29s.).

(b) O dualismo típico, pessimismo-esperança, dos apocalipses não é tão marcante em Jesus - principalmente porque Jesus já via a esperança escatológica sendo cumprida em seu ministério (ver abaixo p. 469s). Mas o cumprimento era precisamente o poder do reino futuro já irrompendo na era presente, não emergiu da era presente. Ao contrá­rio, como João Batista, Jesus via pouco para encorajá-lo a partir da era presente: a qual estava sob a influência de espíritos maus e demônios, um reino em oposição ao de Deus (Mc 1.23-27, 34; 3.22-26; etc.; cf. Mt 4.8-10/Lc 4.5-8; Mt 6.10b); sem arrependimento não haveria esperança para os indivíduos ou para as cidades, judeus ou não (Mt 11.21-24/Lc 10.13-15; Mt 12.41/Lc 11.31s.; Lc 13.1-5); Israel como um todo era como uma das árvores infrutíferas das quais falara o Batista (Mc 11.12-14 pars.; Lc 13.6-9); até mesmo Jerusalém: "A cidade do grande rei", colo- cara-se sob o juízo divino (Mt 23.37-39/Lc 13.34s.).

(c) Na concepção de Jesus, os eventos da influência apocalíptica do fim são mais uma vez, evidentes. Ele antecipava um tempo de so­frimento e tribulação, o tempo da provação escatológica antes do fim (Mt 5.11s./Lc 6.22s.; Mt 6.13/Lc 11.4; Mc 10.39; Mt 10.23, 24s.; Mc 13.7s; 14-20); provavelmente seria marcada por uma inimizade não natural (Mt 10.34-36/Lc 12.51-53; Mc 13.12/Mt 10.21 - com em lEn 100.2; 4Esd 5.9), e, provavelmente, também por catástrofes cósmicas (Mc 13.24s.; como em As.Moisés 10.5); e como com João Batista a imagem do fogo na tradição do ensino de Jesus denota não somente o juízo final (Mc 9.43, 48 par.; Mt 5.22; 7.19; 13.40, 42, 50, 25.41), mas também a purifi­cação pelo fogo pela qual os penitentes necessitam passar se quiserem entrar no reino (tal é a implicação dos vários ditos da "logia-fogo" - Mc 9.49; Lc 12.49; Evangelho de Tm 10, 16, 82; cf. Lc 9.54). Com efeito, (como vimos acima pp. 258,326) é provável que Jesus usasse a imagem do fogo de João Batista como um modo de entendimento antecipado de sua própria morte - isto é, como sofrendo os infortúnios messiâni­cos (Lc 12.49s./Mc 10.38s.; assim também a imagem do cálice da ira de Deus - Mc 10.38s; 14.36; cf. 14.27); isto quer dizer que ele, muito prova­

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velmente, viu sua morte como o antecedente necessário para a vinda do reino (cf. Mc 14.25 pars.).

Ademais Jesus parece ter visto a salvação escatológica principal­mente como centrada em Israel (Mt 10.5s, 23; 15.24), embora ele esperas­se que os gentios fossem conduzidos ao reino no fim, isso não queria dizer necessariamente em termos inferiores (Mt 8.11s./Lc 13.28s.; Mc11.17 pars. = Is 56.7). Assim também a esperança dos eventos finais típicos dos apocalipses não é, novamente, tão marcante no ensino de Jesus. Contudo, em vista da influência evidente do pensamento apoca­líptico nas expectativas de Jesus para o futuro, não há nenhuma razão real porque ele não teria expressado sua esperança de sua própria vin­dicação em um tempo curto depois de sua morte também em termos de ressurreição (Mc 8.31; 9.31; 10.34; ver mais acima p. 327s) - isto é, como parte do início da ressurreição dos mortos no final dos tempos, anunciada na nova era (ver também abaixo pp. 470s).

(d) Também exibe muito do que Jesus pensava a respeito do fim como iminente (Mc 1.15; Mt 10.7/Lc 10.9,11), dentro do espaço de tem­po de sua própria geração (Mc 9.1 par.; 13.30 par. - em que "esta gera­ção" somente pode se referir aos contemporâneos de Jesus), antes de os discípulos terem percorrido todas as cidades de Israel (Mt 10.23).20 Daí o senso de urgência e crise em tantos ensinos e parábolas de Jesus (Mc 13.28s. par.; 13.34-36 par.; Mt 5.25s./Lc 12.58s.; Mt 8.22/Lc 9.60; Mt 24.43s.; Mt 24.45-51/Lc 12.42-46; Mt 25.1-12; Lc 9.61s; 10.4; 12.36; 13.1- 5; 18.7s.; ver acima p. 154s), e o voto para jejuar em Marcos 14.25 (ver acima p. 267s). Não é possível extirpar tal estrato, tão bem enraizado, sem seriamente distorcer a tradição - Jesus. A ênfase contrária de Mar­cos 13.10 a respeito é um claro exemplo de uma adição interpretativa à luz de uma perspectiva mudada como podemos esperar encontrar na tradição sinótica (ver acima p. 156s).

(e) As dimensões sobrenaturais e cósmicas dos eventos finais de novo não são claramente marcadas no ensino de Jesus como na apocalíptica. Todavia, é significativo que na única alusão realmente clara a Jesus como um visionário, Jesus via: "Satanás cair do céu como um relâm­pago" (Lc 10.18). As outras possibilidades são visões de Jesus em sua experiência no Jordão, o relato que usa a imagem apocalíptica dos céus

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20 Ver particularmente W. G. K ümmel, "Eschatological Expectation in the Procla­mation of Jesus" (1964), FRP, pp. 29-48.

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se abrindo que proporciona uma revelação celestial (Mc l.lOs. pars.), e a narrativa da tentação em que Jesus novamente vê, encontra e derrota Satanás (Mt 4.1-11/Lc 4.1-12; ver também acima p. 296). Contudo, Jesus evidentemente entende os eventos sobre a terra como refletindo um conflito sobrenatural, no mínimo na medida em que ele considerava seus exorcismos de demônios como o início da derrocada escatológica de Satanás (Mc 3.27 pars.). E provavelmente via o clímax dos eventos finais como a vinda do Filho do Homem (sua vinda) dos céus, delibe­radamente ecoando a linguagem apocalíptica de Dn 7 (Mc 8.38 pars.; etc.). Note também a linguagem de Mc 13.24-27 que, possivelmente, pertence a camada mais antiga do discurso de Mc 13, aquele intitulado pequeno apocalipse.

(f) Finalmente precisamos, simplesmente, notar que o próprio ter­mo técnico de Jesus o reino de Deus sublinha sua crença não somente em seu caráter transcendente, mas também na soberania divina que con­trola os eventos conduzindo-os ao seu pleno cumprimento (cf. também p.ex. Mt 6.9-13/Lc 11.2-4; Mc 14.36 pars.).

Resumindo, é difícil evitar a conclusão de que a expectativa do rei­no futuro de Jesus fosse de caráter apocalíptico. Contudo, há dois traços da pregação de Jesus, nesse ponto, que diferem o apocalipsismo de Jesus dos apocalipses contemporâneos típicos. Primeiro, havia o que podemos chamar de uma nota de cautela em seu ensino sobre o futu­ro. Quer dizer, como alguns apocalípticos, ele teria contemplado um intervalo de tempo antes do fim, durante o qual, diversos desenvolvi­mentos decisivos ainda aconteceriam - no mínimo sua própria morte e vindicação, o apelo final de seus discípulos a Israel, sua perseguição e a tribulação do fim dos tempos21. Mas, em adição, Jesus não seguia a típica prática apocalíptica em formular um calendário (dos dias ou das semanas) do fim. Ao contrário, ele, especificamente, negava a pos­sibilidade de calcular tal medida de tempo: "Daquele dia e da hora, ninguém sabe, nem os anjos no céu, nem o Filho, somente o Pai" (Mc 13.32). Em outras palavras, para Jesus havia um elemento de incognos- cibilidade e, portanto, de incerteza acerca do fim; sua vinda não era assim tão rigorosamente predeterminada como a maioria dos apoca­lípticos parecia ter acreditado. Como Deus poderia encurtar o período

21 Ver particularmente W. G. K ümmel, Promise and Fulfilment, 3a ed., 1956, ET SCM Press, 2a ed„ 1961, pp. 64-83. '

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da angústia escatológica (Mc 13.20 par; Lc 18.17s.) assim era concebível que ele pudesse prolongar o tempo da trégua, o período final da graça, a última chance para o arrependimento (Lc 13.6-9)22. Isso não altera a conclusão de que Jesus esperava o fim como iminente, mas o qualifica em alguma extensão.

Segundo, o que marca o ensino de Jesus mais caracteristicamen­te de outras escatologias apocalípticas é sua clara nota de escatologia realizada - de que o reino escatológico já estava de alguma maneira presente e ativo no seu ministério e mediante ele. Isso forma uma ruptura decisiva com o apocalipsismo do tempo de Jesus. Kàsemann, com efeito, cria que isso é o traço mais marcante do ensino de Jesus ao ponto de situar Jesus" inteiramente fora da estrutura do pensamento apocalíptico: "Sua própria mensagem não era constitutivamente es­tampada pela apocalíptica, mas proclamava a proximidade imediata de Deus". As passagens na tradição sinótica que falam de um fim iminente não pertencem a mensagem de Jesus, mas a pregação da comunidade Cristã primitiva, ao entusiasmo pós-pascal pela paru­sia, em que a comunidade primitiva recorria novamente em termos apocalípticos e em certo sentido suplantava a pregação de Jesus da: "Proximidade de Deus"23.

Kàsemann, contudo, indubitavelmente superestimou o caso. Tal descontinuidade completa entre um João Batista apocalíptico, um Jesus não-apocalíptico, e uma comunidade primitiva apocalíptica certamente não é verossímil24. Além disso, a linguagem e a imagem apocalípti­cas na tradição - Jesus é muito penetrante, como vimos acima, isso dificilmente pode ser removido, assim como dificilmente poderia ser adicionado, sem alterar drasticamente e completamente o caráter da mensagem de Jesus (não meramente "em um certo sentido"). O fato é que Kàsemann falhou em assimilar a natureza da tensão presente-fu- turo na pregação de Jesus. A proximidade imediata de Deus não é outra coisa que a presença do reino na bênção escatológica, e a presença do reino era, precisamente, o poder do fim dos tempos já adentrando na

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22 J eremias, Theology, I, pp. 139s; cf. A. L. M oore, The Parousia in the New Testament, SNT, XIII, 1966, pp. 205s.

23 K äsemann em F unk, Apocalypticism, p. 40, e NTQT, p. 102; Cf. E. L innemann , "Zeitansage und Zeitvorstellung in der Verkündigung Jesu", JCHT, pp. 237-63.

24 K och , Apocalyptic, p. 78; W. S chmithals, "Jesus und die Apokalyptik", ]CHT, pp. 64-9.

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era presente e pressagiando a iminente vinda do reino com finalidade escatológica (ver também acima pp. 78s, e 330s).

Para resumir então, precisamos resistir à tentação de interrompê- lo a correr do desafio que W eiss e Schweitzer ainda colocam para a teo­logia do séc. XX, da tentação de recorrer a um neo-liberalismo que en­fatiza somente aquele estrato no ensino de Jesus que é mais facilmente traduzível em termos modernos. A apologética dogmática e contem­porânea teologizante não deve ditar à pesquisa histórica qual deveria ser seus achados, mas precisa fazer o seu melhor com o que a pesquisa histórica achar. Nesse ponto a conclusão não deve ser enfraquecida nem se deve evitar que Jesus não somente proclamou o poder escalotógico de Deus como também agiu, mas também proclamou a consumação final do propósito de Deus para o mundo como iminente, e assim o fez na linguagem da escatologia apocalíptica. Nessa medida a mensagem de Jesus é parte da trajetória ligando apocalipsismo judaico e cristão.

3. A comunidade cristã primitiva. Os dias iniciais do cristianismo foram propriamente marcados por um alto grau de efervescência esca­tológica, como concordam a maioria dos pesquisadores históricos. Isso é menos fácil de documentar do que o caráter escatológico da mensa­gem de Jesus (§67.2) ou da pregação primitiva de Paulo (§68.1). Por suas próprias razões, Lucas escolheu ignorar ou suprimir esse aspec­to importante do cristianismo primitivo (ver abaixo pp. 501s) - assim, por exemplo, havia muitos visionários e visões (possivelmente de an­jos) nos primeiros anos, mas no relato de Lucas somente um punhado poderia garantir a descrição de apocalípticos (At 1.9-11; 7.25s; cf. 2.2s; 10.10-16; 26.13-19). Contudo, há outras suficientes indicações do entu­siasmo apocalíptico dos primeiros cristãos25.

(a) Não é insignificante que achavam necessário usar a categoria apo­calíptica de ressurreição para expressar sua nova fé (ver acima pp. 335s). Evidentemente eles criam que a ressurreição de Jesus era o início da ressurreição dos mortos, as primícias da colheita escatológica que já es­tavam sendo colhidas (Rm 1.3s.; ICor 15.20, 23; cf. Mt 27.52s.) - uma

25 Ver mais completamente em D unn , Jesus, pp. 158-62. A sentença precedente trai a mais antiga definição de "apocalíptica" na qual o capítulo foi originalmente estruturado; todas as visões do céu ou de seres celestiais podem apropriada­mente ser descritas como apocalípticos (R o\Vland).

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crença e metáfora (primeiros frutos) que, dificilmente, Paulo teria cunhado para os primeiros 20 anos depois do evento e que precisa ter sido parte do entusiasmo inicial: Jesus ressurgiu dos mortos - a ressurreição dos mortos havia começado26. Assim também, acredita­vam que passavam pelos últimos dias, em direção ao dia final, como predito por Joel (At 2.17s.; J12.28-32). Haviam alcançado o ponto má­ximo do propósito de Deus para Israel: eram o Israel escatológico, o povo da nova aliança inaugurada pela morte e ressurreição de Jesus (Mc 14.22-25 pars.; ICor 11.23ss.); seus representantes, os Doze (re­constituídos com a eleição de Matias no lugar de Judas - At 1.15-26), logo tomariam os seus papéis como juizes de Israel no juízo final (Mt 19.28/Lc 22.29s.).

(b) Evidentemente, viviam a expectativa diária da parusia de Jesus. Isso é insinuado: pela invocação primitiva preservada por Paulo em seu original aramaico em ICor 16.22 - "O Senhor vem!" (cf. Tg 5.7s.; Ap 22.20); pela formulação kerygmática primitiva embutida no relato de Lucas do segundo sermão de Pedro - se seus ouvintes se arrependes­sem, Deus enviaria o Cristo dos céus (At 3.19-21); e pela esperança do breve retorno de Jesus como o Filho do Homem preservado em Q (Lc 12.8s./Mt 10.32s.); Lucas 11.30/(Mt 12.40); Mateus 24.27/Lucas 17.24; Mateus 24.37/Lucas 17.26; Lc 17.30/(Mt 24.39); Mt 24.44/Lc 12.40). O grau de atualização a que essa tradição do Filho do Homem foi sub­metida (cf. acima pp. 107, 335) indica que era um tópico de interesse e preocupação vitais nas igrejas primitivas; não é sem sentido que de acordo com a tradição tanto Estêvão como Tiago (o irmão de Jesus) resumiram sua fé ao ponto de crise pela referência ao Filho do Ho­mem (vindouro) (At 7.56; Eusébio, HE, 2.23.13). Similarmente, o mais provável é que Marcos 13 seja o produto de um longo desenvolvimen­to, a visão dominante em recentes estudos redacionais27, o mais difí­cil é escapar da conclusão de que havia uma especulação escatológica de vigor considerável e influência dentro do cristianismo primitivo. É quase certo que dentro do contexto de tal entusiasmo escatológico

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26 Cf. W . P annenberg, Revelation as History, 1961, ET Macmillan 1968, pp. 141ss.27 Ver particularmente L. H artmann , Prophecy Interpreted, Uppsala 1966; J.

L ambrecht, Die Redaktion der Markus-Apokalypse, Analecta Biblica 28, Rome 1967; R. P esch, Naherwartungen: Tradition und Redaktion in Markus 13, Düsseldorf 1968; L. G aston , "No Stone on Another", SNT, XXIII, 1970, cap. II; ver ainda D. W enham , The Rediscovery o f Jesus' Eschatological Discourse, JSOT Press 1984.

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tenhamos que entender a expressão: "Tinham tudo em comum" (At 2.44s; 4.32-37) - isto é, não como um empreendimento imprudente (eles dispunham de seus bens capitais, não meramente de seus dividendos) por parte daqueles que antecipavam em muitos anos de evangelismo adiante deles, mas como uma política que desdenhava as necessidades do tempo presente a vista do fim iminente da presente era.

(c) Finalmente podemos recordar em que medida a vida comum da igreja primitiva parece ter gerado em torno do Templo (acima pp. 360s). Evidentemente a esperança dos primeiros cristãos pela re­novação escatológica centrada sobre o Monte Sião e sobre um templo renovado ou reconstruído escatologicamente (como em Tb 14.4s.; lEn 90.28s; 91.13; Test. Benj. 9.2; Or. Sib. 3.718, 772ss.; As. de Ms 1.17s.; 2Br 4.2-7; 6.7s.; 4Esd 7.26; 8.52; 10.25-57; e em Qumran28). Isso sem dúvida é o significado que anexavam a purificação do templo feita por Jesus (Mc 11.17 = Is 56.7; Ml 3.1) e porque a palavra enigmática de Jesus acerca da destruição e reconstrução do Templo (Mc 14.58; 15.29; Jo 2.19) foi preservada entre os primeiros cristãos - uma parte im­portante de seu auto-entendimento como os representantes do Israel escatológico. Isso, sem duvida, é por que eles também evidentemente não se distanciaram de Jerusalém nos primeiros meses e porque a alternativa de interpretação de Estêvão daquele dito encontrou tanta hostilidade (ver acima pp. 401s). A mesma centralidade de Israel de sua preocupação escatológica também está refletida na questão pre­servada em At 1.6 - "Senhor é agora o tempo em que irás restaurar a realeza em Israel?" - uma questão que tem um soar tão estranho no contexto da história de-escatologizada de Lucas, mas que soa verda­deira nas circunstâncias que esboçamos acima; e note novamente Mt 10.23.

Resumindo, a perspectiva da(s) igreja(s) primitiva(s) parece ter sido muito mais estreita de fato: já seriam os últimos dias correndo em direção ao dia final, já estava em curso o período climático da história, à beira do fim, já começara a soar a última trombeta. Em que medi­da eles olhavam para trás para a ressurreição como já iniciada com a ressurreição de Jesus, e a Jesus como o Messias e Filho do Homem já durante seu ministério terreno, em que medida a nota de escatologia

28 Ver J. T. Milik, Ten Years o f Discovery in the Wilderness o f Judaea, 1957, ET SCM Press 1959, pp. 41s. ’

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realizada, tão característica de Jesus, estava certamente presente29; de outro lado, até onde temos certeza, a nota de cautela, também presente no ensino de Jesus, parece ter sido quase inteiramente inundada pelo fervor escatológico do Fim iminente. É bom recordarmos que estamos falando da Igreja mãe de todo o cristianismo - que o cristianismo come­çou como uma seita escatológica dentro do judaísmo, uma seita que em seu apocalipsismo estava em continuidade substancial com as mensagens tanto de João Batista como de Jesus. E desde que isso é onde o cristianismo come­çou, até certo ponto Kàsemann estava correto: "a apocalíptica era a mãe de toda a teologia cristã".

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§ 68. LITERATURA APOCALÍPTICA NO NOVO TESTAMENTO

A trajetória do cristianismo apocalíptico é mais facilmente traçada através do séc. I por se referir à literatura que compõe o NT. Há um ma­terial que contempla três blocos em particular - 1 e 2 Tessalonicenses, o assim chamado apocalipse Marcano (Mc 13) e o apocalipse de João.

í . 1 e 2 Tessalonicenses. Não haverá surpresa, à vista do §67 acima, que (provavelmente) os documentos mais antigos do NT, ainda que não apocalipses como tais, têm traços apocalípticos característicos (ver particularmente lTs 1.9s; 4.13-5.11,23; 2Ts 1.4-10; 2.1-12). Não se discu­te que em Tessalônica pelo menos na pregação de Paulo, foi marcada por es­catologia apocalíptica - como Paulo mesmo recorda aos seus convertidos tessalonicenses em 2 Tessalonicenses 2.5 (ver mais abaixo). Em particu­lar, a expectativa de uma parusia iminente era um traço proeminente: é bem conhecido que a conversão dos tessalonicenses a Deus fora uma conversão para esperar a parusia, a vinda de Jesus que os libertaria da ira escatológica e do juízo de Deus (lTs 1.9s.). Evidentemente, a

29 Ver também W. Thüsing, Erhöhungsvorstellung und Parusieerwartung in der ältesten nachösterlichen Christologie, Stuttgarter Bibelstudien 42, 1969. Mas I. H. M arshall, "Is Apocalyptic the Mother of Christian Theology", Tradition and Interpretation in the New Testament, E. E. Ellis Festschrift, org. G. F. H a w th o rn e , Eerdmans 1987, pp. 33-42, subtrai excessivamente a evidência em sua tentativa de discutir a intensidade da expectativa iminente dos cristãos primitivos.

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proclamação de Paulo havia conduzido seus convertidos a crerem que o clímax escatológico era de fato muito iminente. Isso por causa da morte de alguns dos cristãos de Tessalônica já que a visita de Paulo estava causando algum desconforto. Isso não era para Paulo nenhum problema real, e sua própria expectativa de um fim iminente pouco se abalou: muitos deles, acreditava Paulo, ainda estariam vivos para o retorno de Cristo (lTs 4.15,17; 5.23).

A própria parusia que ele descreve em linguagem marcadamente apocalíptica - como uma descida dos céus, com anjos e nuvens, brados e trombetas soando30, e a ressurreição dos mortos (lTs 4.1s.); viria sem aviso, trazendo destruição, repentina e terrível, para os desprepara­dos, as dores de parto da nova era: "E não poderão escapar" (lTs 5.2s.). Podemos notar também como muito dessa antecipação apocalíptica parece ter sido alimentada pela profecia (lTs 5.19s), e que: "A palavra do Senhor" em 4.15 era, provavelmente, um pronunciamento profético em uma assembléia paulina, um oráculo que iluminava a esperança apocalíptica em relação aqueles convertidos que já haviam morrido. Resumindo, não somente o texto mais antigo no NT em si mesmo apre­senta traços caracteristicamente apocalípticos, mas também revela cla­ramente quão marcadamente apocalíptico era o ensino e a esperança das igrejas paulinas primitivas. Se 1 Tessalonicenses não é totalmente típica nesse ponto, não pode ser totalmente atípica; a escatologia apoca­líptica era um traço integrante da expansão cristã apocalíptica para além dos confins da Palestina.

2 Tessalonicenses é até mais interessante. Paulo (e eu não vejo nenhuma razão significativa para negar a autoria da carta a Paulo)31 reafirma sua expectativa de uma parusia iminente e novamente pin­ta-a em cores apocalípticas (2Ts 1.4-10). Note particularmente, ele pa­rece pensar que o sofrimento que os seus convertidos tessalonicenses já estavam experimentando era parte ou início dos infortúnios messiâ­nicos (assim também lTs 3.3s.) - a tribulação que os crentes deviam suportar antes que o reino chegue, a nova era - a ocasião em que o

30 Sobre o significado escatológico da trombeta, ver G. F riedrich, TDNT, VII, p. 84.

31 Ver particularmente K ümmel, Introduction, pp. 264-9; R. J ewett, The Thessalonian Correspondence, Fortress 1986. Igualmente veja G. S. H olland, The Tradition that You Received from Us: 2 Thessalonians in thè Pauline Tradition, Tübingen 1988.

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Senhor seria manifestado dos céus com seus poderosos anjos em fogo abrasador, trazendo alívio aos crentes e infligindo a vingança sobre todos os que os haviam perseguido e recusado reconhecer a Deus ou obedecer seu evangelho.

2Ts 2.1-12 é de especial interesse para nós, visto que demonstra tanto a extensão em que Paulo estava preparado para pensar e ensi­nar em linguagem tipicamente apocalíptica, e também quão consciente Paulo estava do perigo do entusiasmo escatológico ficar fora de con­trole. Evidentemente as profecias feitas nas reuniões dos tessalonicen­ses, nos registros ou cartas recebidas faziam o efeito de que o Dia do Senhor já estava presente (2Ts 2.2). O que os tessalonicenses entende­ram disso não fica claro, e a resposta inicial de Paulo é uma senten­ça desconcertantemente inacabada (2Ts 2.3). Mas o resultado parece ter sido um frenesi fervoroso e alarmante (2.2), com muitos dos novos convertidos abandonando seu trabalho e funções (em prontidão? - 2Ts 3.6-12). A resposta de Paulo tem três pontos. Primeiro, ele os adverte que a profecia pode iludir e a correspondência ser forjada - não se deve aceitar acriticamente tudo que ouvem ou lêem, embora soando inspi­rado ou autorizado! Segundo, ele os recorda do que já lhes falou - que seria necessário um intervalo antes do fim: a oposição a Deus que eles já estavam experimentando (2Ts 1.5ss.) precisa primeiramente suscitar o clímax pela aparição do: "Homem ímpio, o filho da perdição" (2Ts 2.3s). Era verdade que o: "Mistério da impiedade" já estava presente (2.7); a última revolta contra Deus já estava em curso - o fim era imi­nente. Mas a rebelião contra Deus ainda havia de vir em sua plena ex­pressão - havia "aquele que o retém" (to katechon) que impedia a com­pleta intensidade do dilúvio de impiedade e a tribulação do final dos tempos (2Ts 2.6s.)32. Somente quando isso fosse removido o homem da iniqüidade apareceria em todo o seu poder e engano (2Ts 2.9s) e seria destruído pela parusia (2.8). Terceiro, Paulo insiste que os assuntos normais do cotidiano deveriam ser atendidos enquanto se espera pela parusia: aqueles que se recusam a trabalhar - isto é, presumivelmente,

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32 Não é claro o que to katechon, ho katechõn significam; sugestões incluem o Estado Romano, um poder celestial, o Lei, e até mesmo (muito improvável) o próprio Paulo. Veja particularmente C. H. G iblin , The Threat to Faith: an exegetical and theological re-examination o f II Thessalonians 2, Analecta Biblica 31, Rome 1967, pp. 167-242; B est, Thessalonians, pp. 295-302.

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que insistem em se concentrar somente na prontidão para o fim - não devem esperar sustento de qualquer fundo comum (2Ts 3.10).

Particularmente, notável nessa passagem é a forte influência do imaginário clássico judaico, (a) "O homem da iniqüidade", "o filho da perdição" reflete uma cosmovisão apocalíptica judaica, em que a opo­sição escatológica a Deus era, frequentemente, representada por uma única figura - Satanás, ou um dragão, ou em forma humana como um tirano ou profeta hostil a Deus (o paralelo mais próximo é Oráculos Sibilinos 3.63-70). Em 2 Tessalonicenses: "O homem da iniqüidade" é o equivalente cristão. Deveríamos notar que ele não está falando pro­priamente de uma figura de um anticristo, o oponente e o pólo oposto a Cristo; em 2 Tessalonicenses 2 ele se opõe a Deus. Aqui, o pensamen­to cristão foi extraído do conceito judaico, mas ainda não se desenvol­veu em uma idéia do anticristo que é mais caracteristicamente cristã; essa idéia somente aparecerá nas cartas joaninas e no Apocalipse (ljo 2.18,22; 4.3; 2Jo 7; cf. Ap 13; 17).

(b) A suprema blasfêmia do "homem da iniqüidade" é o fato de ele tomar assento no Templo de Deus e proclamando a si mesmo ser Deus (2Ts 2.4). No pensamento judaico o tipo clássico de oposição a Deus era a profanação do Templo por Antíoco Epífanes (Dn 9.27; 11.31; 12.11; lMc 1.54). Evidentemente é isso o que Paulo tinha em mente, confirmado por uma provável alusão a Dn 11.36. Aqui então é o cris­tianismo, já espalhado pela Europa, mas ainda retratando a rebelião final em termos dos receios da apocalíptica judaica em consideração ao Templo de Jerusalém.

(c) Também muito forte é o caráter esotérico - um traço tipicamen­te apocalíptico como vimos acima (p. 456). "O homem da iniqüidade" é suficientemente obscuro, mas "aquilo que o retém" (to katechon) e o "aquele que o retém" (ho katechon) são obviamente uma referência de­liberada e veladamente que os leitores, provavelmente, decodificaram sem muita dificuldade, mas que nós, certamente, não podemos.

(d) Finalmente devemos notar as exortações éticas à vista do de­senlace iminente (lTs 5.1-11; 2Ts 2.15; 3.6-13) - outro traço característi­co dos apocalipses judaicos (p. 456). A esperança escatológica não deve significar um relaxamento do esforço moral; ao contrário deve signi­ficar ainda maior vigilância. E essa combinação da expectativa iminente e seriedade moral que demarcavam o entusiasmo do cristianismo apocalíptico tão claramente do entusiasmo do cristianismo helenístico.

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Resumindo, temos aqui um documento cristão, cerca de 20 anos depois da primeira chama de entusiasmo apocalíptico que tomou con­ta da nova seita em Jerusalém, e com a missão gentílica já há muito em curso, e a esperança de um fim iminente ainda queimando vivamente e ainda expressa em linguagem e imaginário típico da apocalíptica ju­daica.

Ao mesmo tempo traços caracteristicamente cristãos claramente emergiram. (1) Note, particularmente, que o agente divino que trará o Fim é identificado com Jesus. Isso é o que distingue a escatologia cristã da apocalíptica judaica. No segundo a mesma obscuridade encobre a visão do apocalíptico do agente de Deus bem como encobre sua vi­são dos oponentes de Deus. Mas na expectativa apocalíptica de 1 e 2 Tessalonicenses a visão se torna nítida e nenhuma dúvida permanece- aquele que intervirá para instituir o juízo, destruir o homem da ini­qüidade e salvar o povo perseguido é a figura celestial cuja identidade já é conhecida como aquele que caminhou nesta terra, o Senhor Jesus. (2) O elemento de escatologia realizada não é proeminente; provavel­mente, a expectativa de uma parusia iminente abafe sua observação- ainda que nos escritos mais tardios de Paulo venha a ganhar crescen­te proeminência (ver abaixo §71.1). Mas a nota de cautela da pregação de Jesus ainda se acha certamente presente: to katechon ainda está ativo; o dilúvio de maldade e tribulação do final dos tempos de certa forma está próximo do ponto máximo; Paulo se recusa a especular a respeito de datas e tempos dos eventos finais (lTs 5.1). Essa nota de sobriedade permanece como parte integrante do pensamento apocalíptico dentro do NT. Ao mesmo tempo devemos notar a significado do fato de que Paulo não encontra abuso da escatologia pelos tessalonicenses em fa­vor de um abandono da mesma, mas simplesmente um detalhamento melhor a esperança apocalíptica. Nesse estágio, em todo caso, (quase 20 anos depois de sua conversão) a escatologia apocalíptica permanecia integrante à sua mensagem e à sua esperança33.

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33 Sobre IC o r 15.20-28 ver os estudos de E. Schweizer, "I Korinther 15.20-28 als Z eugnis paulinischer Eschatologie und ihrer V erw andschaft MIT der V erkündigung Je su ", JuP, pp. 301-14; J. Baumgarten, Paulus und die Apocalyptik, N eukirchen 1975, pp. 99-106; L. J. K reitzer, Jesus and God in Paul's Eschatology, JSO T Press 1987.

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2. Marcos 13 não um apocalipse, mas um misto de ditos individu­ais de Jesus adições interpretativas e editoriais, impregnado com uma escatologia apocalíptica (ver acima p. 471, nota 27). O quanto retrocede a Jesus é matéria de muita discussão (cf. §67.2 acima); mas aqui esta­mos preocupados com a passagem em seu todo. Marcos apresenta o discurso todo como uma elaboração de um pronunciamento profético de Jesus concernente a destruição do templo: "Não ficará pedra sobre pedra que não seja demolida" (Mc 13.2). Então os discípulos pergun­tam, "Quando será isso, qual o sinal de que todas essas coisas estarão para acontecer?" (Mc 13.4). A resposta é o discurso de Jesus.

(a) Note os elementos apocalípticos típicos: v. 4 - "Quando será isso (sunteleisthai)?", em que a frase nominal equivalente, sunteleia (tou aiõnos), como em Mateus 24.3, é um termo apocalíptico técnico, par­ticularmente em Daniel e no Testamento dos Doze Patriarcas, para denotar o fim34; vv. 7s. - tumultos mundiais, guerras e desastres natu­rais: "O início das dores de parto" (da nova era), isso é, os infortúnios messiânicos35; vv. 9-13 - aflição severa e perseguição dos discípulos, incluindo presságios de características apocalípticas de rivalidade fa­miliar destrutiva (referências acima pp. 465s); v. 14 - o sinal esotérico: "A abominação da desolação", de novo uma alusão à profanação de Antíoco Epífanes ao erigir um altar a Zeus no Templo em 168 a.C. (re­ferências acima pp. 475s) - note o sinal enigmático decodificado por Marcos ("que o leitor entenda"); vv. 14-20 - a urgência e a angústia sem precedentes da tribulação final; vv. 24-27 - as dimensões cósmicas dos infortúnios messiânicos, a criação inteira no labor de levar a nova era ao nascimento, incluindo a vinda do Filho do Homem: "Nas nu­vens com grande poder e glória" (cf. Dn 7.13s.); vv. 28-30 - a iminência desses eventos do fim: "Está às portas", dentro dessa mesma geração; vv. 33-37 - exortações à prontidão.

(b) E muito claro desse capítulo que Marcos viu a destruição de Je­rusalém e do Templo como parte dos infortúnios messiânicos; as dores de parto da nova era (provavelmente refletindo e elaborando sobre as próprias expectativas de Jesus acerca do fim - acima §67.2). A datação

34 Ver G. D alman, The Words of Jesus, ET T. & T. Clark 1902, pp. 155s; G. D elling, TDNT, VIII, pp. 65s. Sobre os ecos de Daniel em Marcos 13 ver H artmann , Prophecy, cap. V.35.

35 Cf. S track-B illerbeck, I, p p . 950. >

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do Evangelho é incerta, mas a mais forte probabilidade que permanece é que Marcos estaria escrevendo antes da queda de Jerusalém, ainda quando o tempo dessa catástrofe esta começando a surgir no horizonte- isto é, por volta da metade da década de 60. Nesse caso, ele evidente­mente antecipou que a profanação do Templo marcaria o começo do fim. Note, por exemplo, as advertências contra falsos profetas e falsos messias que teriam um lugar proeminente no discurso (vv. 5s, 21s); o fato de Marcos colocar essas advertências primeiro e então as repetir implica que isso era uma ameaça real e premente; e sabemos de Josefo que não poucas de tais reivindicações perturbavam e incitavam a Palestina nos anos 50 e 60.36 Igualmente os vv. 9ss no pensamento de Marcos se re­ferem, provavelmente, ao grande antagonismo que crescia entre os di­ferentes partidos dentro do judaísmo quando a crise nacional se agra­vou. Não sabemos que papel, se teve algum, as comunidades cristãs na Palestina tiveram em tudo isso, mas é possível que elas foram pegas no fogo cruzado de algum modo. Alguns, sem dúvida, foram favorá­veis aos militantes, mas outros seriam mais discretos em sua esperança apocalíptica do retorno de Jesus, e conseqüentemente foram alvos da acusação de antipatriotas, etc. Note particularmente o v. 13b - na apre­sentação de Marcos o sofrimento aludido podia perseverar até o fim; com efeito, a passagem quer dizer: "O Fim está próximo!". Os vv. 14ss obviamente se referem ao ataque inevitável sobre Jerusalém. E, acima de tudo, o v. 24 liga tudo isso firmemente com as catástrofes cósmicas do próprio fim - "Naqueles dias (que não deve ser outra coisa que os eventos descritos na primeira parte do capítulo - note particularmente os vv. 1 7 ,19s) haverá uma tribulação tal, como não houve desde o princí­pio do mundo... depois daquela tribulação, o sol se escurecerá, a lua não dará sua claridade... E verão o Filho do Homem vindo entre as nuvens com grande poder e glória". Resumindo, Marcos, nos moldes apocalípticos típicos, escreve em um contexto de uma crise que ele vê se desenvol­vendo para a crise derradeira do fim, e seu propósito é, no mínimo, advertir e encorajar seus leitores a reconhecer a verdadeira natureza da crise e suportá-la até o Fim.

(c) Ao mesmo tempo podemos ver os mesmos elementos carac­teristicamente, cristãos como notamos em 2 Tessalonicenses. Primei­ro, a expectativa apocalíptica é relacionada a Cristo. E sua predição;

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' Josefo, Bell., 11.258-63; VI.285-315.

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advertências contra falsos cristos recebem uma posição proeminente e repetida; o Filho do Homem, no pensamento de Marcos, é óbvio que é o Cristo; e a abominação da desolação (um conceito neutro que ele anexa a um particípio masculino) ele provavelmente associava com o anti- Cristo: "O verso, evidentemente, trata de um adversário suscitado em proporções titânicas, em contraste com os falsos messias (vv. 21 s) são, por assim dizer, precursores"37.

Segundo, o entusiasmo apocalíptico é mantido dentro de firmes limites; há uma nota de cautela distinta no discurso inteiro que é projeta­do para prevenir o leitor de edificar demais suas esperanças. O verso 7: "...Mas ainda não é o fim"; v. 8: "Isso é o princípio das dores de parto"- os eventos finais estão começando, mas somente começando; v. 10: "E necessário que primeiro o Evangelho seja proclamado a todas as nações" (uma tarefa já em andamento mas ainda não completa); v. 24: "Depois daquela tribulação"; v. 32: "Daquele dia e da hora, ninguém sabe, nem os anjos no céu, nem o Filho, somente o Pai". Dentro desta geração, sim (v. 30), mas não quer dizer imediatamente. O reconhe­cimento dessa nota de cautela nos ajuda a entender a função de toda a variedade de sinais do Fim em Marcos 13; que não foram dados para capacitar o leitor a calcular a data e a hora da vinda do Filho do Ho­mem; foram listados antes para encorajar o leitor que já estava no meio dessas tribulações, para assegurá-lo de que seus sofrimentos eram par­tes dos infortúnios messiânicos, que o fim não estaria muito distante- "Mantenha-se firme! Resista até o fim!"

A importância do elemento de cautela é claramente adicionada pelo fato de que Jerusalém caiu e o Templo foi destruído (70 d.C.) e ainda o Fim não veio. Obviamente isso causaria problemas para os evangelistas posteriores em sua utilização de Marcos 13. Em particular veremos como Lucas reinterpretou Marcos 13 pelo desembaraçando o que para Marcos (e possivelmente Jesus) era um único complexo de eventos (destruição do templo e parusia) e por separá-los em dois eventos (pp. 500s). Em outras palavras, para Lucas havia tanto um ele­mento de cumprimento da esperança apocalíptica primitiva: Jerusalém caíra, o templo fora destruído - "A abominação da desolação" havia sido decodificado pelo evento como o grão de Jerusalém pelos exérci­tos (romanos) (Lc 21.20). Ao mesmo tempo a esperança apocalíptica é

’ W. M arxsen , M ark the Evangelist, 1956, ET Abingdon 1969, pp. 185s.

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reafirmada de novo: o elemento cautelar já presente em Marcos é expan­dido para romper a ligação entre a destruição de Jerusalém e a parusia precisamente para que a esperança da parusia possa ser reafirmada de novo (Mc 21.27s, 31s; note também 17.22-18.8)38. O ponto que precisa­mos notar agora é que, a despeito da falta de cumprimento da espe­rança apocalíptica de Marcos (e de Jesus), Lucas não abandona o discurso apocalíptico; antes o reinterpreta à luz da expectativa não cumprida sem abandonar a esperança que expressa.

3. Revelação, (a) O Apocalipse de João obviamente se posiciona firmemente dentro da tradição da literatura apocalíptica. É essencial­mente uma transcrição das visões de João, e é edificada em torno de três séries de visões - sete selos (Ap 5.1-8.1), sete trombetas (8.2-9.21, 11.15-19) e sete taças (15-16). Note também a frase repetida: "No Espí­rito" (Ap 1.10; 4.2; 17.3; 21.10). E cheia de imagens fantásticas típicas dos apocalipses: por exemplo, Ap 1.16: "Alguém semelhante a um filho de Ho­mem" (Dn 7.13) sustentando sete estrelas em sua mão, e com uma espa­da afiada de dois gumes saindo de sua boca; Ap 4.6 - um cordeiro com sete chifres e sete olhos; Ap 9.7ss - muitos gafanhotos temíveis; 9.17ss.- cavaleiros apocalípticos; etc. Proeminentes são também as visões das desordens mundiais e das catástrofes cósmicas - particularmente as visões das trombetas (8) e as taças (16). Números obviamente desem­penham um papel importante, particularmente o número sete - sete selos, sete trombetas, sete taças, etc.; mas também o três, o quatro e o doze; 666, o número da besta (Ap 13.18); e 1260 dias = 42 meses = 3 Vi anos (Ap 11.2s; 12.6,14; 13.5) - um número apocalíptico estereotipado que retrocede até Daniel 12.7.

A revelação também está firmemente na tradição da literatura apocalíptica naquilo que claramente tem confirmado sobre a crise. João acreditava que a tribulação final já havia chegado: e tinha feito muitas vítimas (Ap 2.13; 6.9), e logo alcançaria proporções mun­diais (Ap 3.10; cf. 2.10; 6.10; 16.6; 18.24; 19.2; 20.4). Ele não estava se referindo provavelmente a confrontação aguda e crescente entre o cristianismo e o culto imperial que marcaram os anos derradeiros

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38 Cf. E. F ranklin , Christ the Lord: a Study in the Purpose and Theology o f Luke-Acts, SPCK 1975, pp. 12-21. Outras referências em C. H. T albert, "Shifting Sands: the Recent Study of the Gospel of Luke", Interpretation, 30,1976, p. 386, n. 38.

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do reinado do imperador Domiciano (93-96 d.C.). A adoração ao imperador era praticada na Ásia Menor desde o tempo de Augusto, mas foi somente sob Domiciano, que levou sua "divindade" mais seriamente que a maioria de seus predecessores, que os cristãos (e outros) começaram, sistematicamente, a ser perseguidos por deixar de reverenciá-lo com honras divinas que ele requeria de seus súdi­tos39. A maioria dos comentaristas reconhece isso como o contexto mais provável para o Apocalipse de João, com Roma e o imperador pintados em termos de bestas temíveis que demandavam a ado­ração dos homens (Ap 13.4, 12-15; 14.9, 11; 16.2; 19.20). Se de fato podemos identificar Domiciano como o oitavo rei de Ap 17.11 a questão é muito mais discutível, mas isso não afeta o nosso ponto aqui. O ponto é que João escreve contra os antecedentes de uma perseguição determinada, que ele acreditou que estivesse o cons­truindo o clímax final do mal e da tribulação.

Uma coisa distingue o apocalipse de João dos apocalipses mais antigos - a saber, o fato de que o autor escreve em seu próprio nome- não se utiliza de um pseudônimo (Ap 1.1, 4, 9; 22.8). Isso pode ser porque, diferente de seus predecessores, não tenta dar uma panorâ­mica da história passada de um ponto de vista anterior - embora Ap 17.10 possa ser lido como uma tentativa de apresentar seu escrito como contemporâneo de um imperador mais antigo, provavelmen­te Vespasiano (69-79 d.C.), e a maior parte do livro parece consistir de três ou quatro exposições do período do Fim, desde o primeiro advento de Jesus até o seu triunfo final (Ap 6.1-8.1; 8-11; 12-14; 15- 16). Mas João, evidentemente, viu a si próprio perto do fim e não es­tava disposto a esconder esse fato. Daí também não haver nenhum mandamento para selar a revelação: "Até o tempo do Fim", como em Daniel 8.26,12.9 - a crise era muito premente, no limite para se usar de tal artifício, o fim já estava às portas (Ap 22.10). E, similar­mente, ele não se preocupa em esconder seu significado pelo uso de elaborações simbólicas que somente o iniciado poderia decifrar; certamente temos pouca certeza a respeito da precisa referência da besta cujo número é 666 (Ap 13.18), mas a mulher sobre a besta é claramente Roma e João não se importa que isso seja conhecido (Ap17.9,18).

39 Dio Cassio 67.14.1-3; Eusébio, HE, IV.26’.9.

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Todavia, outras características da literatura apocalíptica são tão marcantes que seria covardia negar o lugar do Apocalipse dentro do gênero apocalítpico.40

(b) As principais características teológicas da apocalíptica também estão presentes no apocalipse de João. Isso já é, suficientemente, óbvio a partir dos detalhes listados acima. Aqui somente precisamos escla­recer alguns outros. (1) Note, particularmente, o dualismo apocalíptico. A luta real não é tanto entre as igrejas e os poderes pagãos, quanto entre Cristo e Satanás. Além disso, João não tem nenhuma esperança para este mundo; tudo o que ele prevê é destruição. Sua própria es­perança está focada no céu, e sobre o novo céu e a nova terra, sobre a nova Jerusalém que descerá do céu (Ap 21-22). O tema não é des­conhecido da escatologia apocalíptica (ver acima pp. 471s), mas mais claramente que qualquer outro apocalíptico, João transfigurou a es­perança de um escaton focado sobre o Monte Sião para a visão de uma Jerusalém celeste representante do renascimento de toda a criação. (2) Os infortúnios messiânicos, a tribulação dos santos, são traços do que já aludimos (acima p. 482). A perseguição presente sofrida ou a ser sofri­da por João e por seus leitores é: "A grande tribulação" (Ap 7.14; ver também p.ex. 11.7s; 13.7), a grande tribulação do fim dos tempos. Mas sem temer, João conforta, o selo de Deus está sobre vós (Ap 7.1-8; 9.4). (3) A expectativa do fim como iminente tem uma ênfase particular por sua proeminência tanto no começo como no fim: Ap 1.1: "As coisas que devem acontecer muito em breve"; 1.3: "O Tempo está próximo"; Ap 1.7: "Eis que ele vem com as nuvens"; 3.11: "Venho logo!"; 22.10: "O Tem­po está próximo"; Ap 22.20: "Aquele que atesta estas coisas diz: 'Sim, venho muito em breve!' Amém! Vem, Senhor Jesus!" (4) Talvez, ainda mais formidável de tudo é a maneira que João expressa sua confiança na soberania do controle divino. "O plano de Deus para a história é inaltera- velmente lançado no 'livro com sete selos' e, depois da abertura deste, é revelado sem obstrução."41

A mensagem de João é, portanto, muito simples. Para àqueles que já suportam a perseguição, ou sob ameaça de perseguição, ele diz: "Não se admirem do que está acontecendo sobre a terra. O Fim está próximo. Deus está no controle. Suas tribulações antecipam a

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40 Cf. H anson, Dawn pp. 428-9; A. Y. C ollins em C ollins, org., Apocalypse pp. 70-72.41 V ielhauer em H ennecke, Apocrypha, II, p. 624.

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intervenção de Deus. Seus inimigos, em pouco tempo, serão derro­tados e destruídos, e em breve desfrutarão a vida celeste na nova criação".

(c) Os traços distintivamente cristãos são mais proeminentes aqui do que em Marcos 13 e em 1 e 2 Tessalonicenses. Primeiro, seu foco é Cristo. Ap 5.5 - nenhum outro é digno de abrir o livro do fim, somente o Leão de Judá, a Raiz de Davi, aquele que conquistou o direito de abrir o livro e quebrar os sete selos; quer dizer, somente ele pode realizar os propósitos de Deus, iniciar os eventos do fim. Note, particularmente, quão estritamente o pensamento dessa autoridade se liga a morte res­surreição de Jesus: é precisamente o cordeiro que foi morto que toma o livro e abre os selos (Ap 5.6,9,12). Assim também é: "O primogênito dos mortos", aquele que morreu, mas agora vive para sempre (Ap 1.5, 18), que garante a João a revelação do que é e do que está por vir. Todo o apocalipse, de fato, move-se entre a vitória do Jesus ressurreto e sua nova vinda: como sua vitória qualifica Jesus para abrir o livro, iniciar os atos finais, assim sua parusia é o clímax do todo: "'Venho muito em breve'. Amém! Vem Senhor Jesus!" (Ap 22.20). Resumindo, o vidente do apocalipse sustenta juntos o Jesus histórico, o Cristo exaltado e o Senhor vindouro tão firme e claramente como qualquer outro escritor do NT (ver também acima pp. 348s).

Segundo, o elemento de cautela da escatologia cristã apocalípti­ca é preservado. A nota de iminência nunca se torna uma predição definida. Os 42 meses = 3 Vi anos é um número padronizado que dificilmente pretendia fornecer uma medida de tempo sobre a qual os eventos do Fim poderiam ser calculados. As cartas do Ap 2-3 têm exortações que implicam que o fim ainda não se deu - por exemplo, os 10 dias de tribulação por vir (Ap 2.10) e o chamado freqüente para suportar e vencer. João, certamente, vê o começo da perseguição sob Domiciano como o começo do período derradeiro de tribulação. Mas o quanto ele espera dessas tribulações que acabem é algo que não tenta especificar. Não há nenhum chamado para ser tomado por um frenesi de expectativa apocalíptica. É suficiente para João saber que os sofrimentos do presente são aqueles que precederão o retorno em breve do Senhor.

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§ 69. CONCLUSÕES

1. Nossa metodologia neste capítulo foi diferente daquela dos dois últimos capítulos. Isso é devido, principalmente, ao fato de o cristianismo apocalíptico ter sido, geralmente, considerado em uma luz diferente e reduzida. Ninguém duvida que as tentativas do cris­tianismo de entender a si mesmo dentro do contexto de sua herança judaica e frente aos múltiplos desafios do sincretismo da época fossem aspectos centrais e fundamentais para o cristianismo do séc. I - assim nossa tarefa foi a de explorar as dimensões dessa questão de auto-en­tendimento, para demonstrar até onde a diversidade do cristianismo do séc. I se sobrepõe as crenças circundantes, para investigar em que extensão os cristãos do séc. I estavam da margem, bem como do cen­tro. Mas o cristianismo apocalíptico é, geralmente, considerado como algo que por definição pertence à margem desde o início, e assim foi tratado na história e na teologia moderna42. De modo que nossa tarefa aqui foi antes mostrar o quão central para o cristianismo primitivo era a esperança e expressão apocalípticas, para mostrar que a escatologia apocalíptica é tão fundamental para a diversidade do cristianismo do séc. I como o cristianismo de Mateus e de Tiago ou o cristianismo de Corinto e de João.

Demonstramos isso. Não restam dúvidas de que a escatologia apo­calíptica era parte integrante do cristianismo do séc. I43. Podemos ignorá-la ou remove-la somente por distorcer a realidade histórica dos inícios do cristianismo (e distorcer daí em diante a totalidade da teologia cristã)44. O cristianismo emergiu de um meio-ambiente fortemente orientado para uma perspectiva apocalíptica; a pregação de seu arauto Batista era de conteúdo apocalíptico. A própria expectativa de Jesus para o futuro dificilmente pode ser evitada de ser descrita como apocalípti­ca; e a comunidade cristã primitiva na Palestina era inteiramente de

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42 Cf. O protesto de K och , Apocalyptic.43 A despeito de várias hesitações (em pontos justificados) de p.ex. G. E beling , "The

Ground of Christian Theology" (1961), ET em F unk, Apocalyptcism, pp. 47-68; E. L ohse, "Apokalyptic und Christologie", ZNW, 62,1971, pp. 48-67; W. G. R ollins, "The New Testament and Apocalyptic", NTS, 17,1970-71, pp. 454-76; L. M orris, Apocalyptic, Tyndale Press 1973.

44 Cf. As considerações concludentes de K äsemann (Funk, Apocalypticism, p. 46, e NTQT, p. 107).

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caráter e auto-entendimento apocalípticos. Similarmente, o kerygma da missão gentílica primitiva foi fortemente marcado por traços apocalíp­ticos. Um dos mais antigos ditos de Jesus, talvez o mais antigo, de um discurso maior, (o que se tornou) o discurso escatológico de Marcos 13, indica as expectativas apocalípticas de Jesus para ser uma das áreas de maior vigor teológico no que concerne as décadas iniciais do cristianis­mo. O Apocalipse de João mostra como a influência das expectativas apocalípticas estava desaparecendo nas últimas décadas do séc. I, e quão rapidamente eles explodiram novamente quando os cristãos fo­ram confrontados com as crises de alternativas de submissão ao culto imperial ou perseguição sangrenta.

2. Assim, admitiu-se de que o cristianismo primitivo e algumas das literaturas do NT estão, firmemente, dentro de uma trajetória apo­calíptica que se estende dos apocalipses do judaísmo primitivo até o montanismo do séc. II e além, quais seriam, então, os traços distintivos ou característicos do cristianismo apocalíptico primitivo? O presente capítulo trouxe à luz três traços que marcaram a escatologia apocalíp­tica cristã primitiva da que veio antes.

(a) Ela era cristocêntrica. Onde a esperança da escatologia judaica era indefinida ou deixada a cargo da linguagem puramente simbólica, a esperança apocalíptica cristã se cristalizava em torno de um homem particular a quem muitos dos primeiros cristãos já haviam encontrado na história. Essa esperança vem à expressão clássica na expectativa da parusia desse Jesus agora exaltado. Demitologizava o que podemos expressar novamente desse modo: o poder transcendente que molda a história e que conduzirá a história a um fim que tem o "molde" e o caráter de Jesus de Nazaré. Ou, em termos mais tradicionais, o Jesus exaltado intervirá na história futura como fez na história passada, mas na próxima vez sua intervenção será de significado imediato e final para o mundo em sua totalidade.

(b) A tensão já/ainda não. A esperança futura estava ligada com os eventos no passado; o clímax divino era visto em termos de Jesus, a res­surreição futura em termos da ressurreição de Jesus. A esperança parao futuro surgiu do que aconteceu no passado. O apocalíptico cristão vislumbrava ambos os modos. Essa característica também era expressa na crença de que os cristãos vivem na sobreposição das eras; que o evento Jesus (sua vida, morte e ressurreição) era decisivo para o futuro;

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que os últimos dias já estavam aí, o Espírito sendo a primeira parcela da salvação escatológica. Em outras palavras, a intervenção de Deus no passado já havia determinado o fim; contudo uma longa demora poderia acontecer, o poder já em operação nos crentes era o mesmo poder que traria o fim, já estava operando na direção desse Fim.

(c) Uma nota de cautelar. Os escritos cristãos apocalípticos do séc.I nunca deixavam o entusiasmo ficar fora de controle; eles delibera­damente se posicionavam contra a especulação a respeito de datas e tempos; sempre a observação do ainda não estava presente para pre­caver a esperança de se tornar muito detalhada, muito certa acerca dos detalhes do futuro de Deus. Isso também era verdade da expectativa apocalíptica de Jesus, até onde temos certeza, ainda que a esperança da comunidade primitiva de Jerusalém pareça ser menos inibida, e alguns cristãos tessalonicenses aparentemente se entregassem sem reservas à sua esperança. Mas por outro lado a ênfase sobre o já, o olhar para o passado bem como para o futuro, preveniam o olhar ao futuro de se tornar tão frenético, desse modo, inevitavelmente desapontador. Cullmann expressou bem esse ponto:

A esperança de Paulo não sofreu nenhum prejuízo seja em intensidade ou em sua firme ancoragem , porque desde que exibe seu ponto de partida foi esse o centro, o ponto fix o de orientação, não recaindo no futuro, mas no passado, e de acordo com um fa to assegu­rado que não pode ser tocado pela demora na Parusia45.

Desses traços característicos do apocalipsismo cristão somente o terceiro está em paralelo no apocalipsismo judaico (ver acima p. 459). Isso quer dizer que é cristocentricidade, a ênfase já centrada no homem de Nazaré, sua vida, morte e ressurreição, que por si só distingue clara­mente a escatologia apocalíptica da judaica. Esse é o caráter empreen­dido por Jesus estampado sobre a escatologia judaica e a centralidade do próprio Jesus na escatologia apocalíptica cristã que determina sua natureza. Quer dizer, a escatologia apocalíptica cristã é formada, não somente, pela aplicação da esperança apocalíptica judaica a Jesus, mas

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45 O. C ullmann , Christ and Time, 1946, ET SCM Press, 2a ed., 1962, p. 88; cf. a tese de B aumgarten de que Paulo "des-apocaliptiza" o conteúdo escatológico da Lei (Paulus, pp. 232ss). Ver também E. S. F iorenza, The Book o f Revelation, Fortress 1985, p. 3.

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até mais caracteristicamente pela re-interpretação da esperança apoca­líptica judaica à luz do evento Cristo - tanto sua própria proclamação como sua ressurreição46. Em outras palavras, mais uma vez a distinção do cristianismo, nesse ponto, reduz-se à expressão mais simples à unidade entre o homem de Nazaré e o Cristo que vem em breve, a continuidade entre a própria proclamação de Jesus (tanto sua ênfase realizada e futura) e a fé na ressurreição e parusia dos primeiros cristãos.

3. Também é digna de atenção a distinção do cristianismo apocalíp­tico dentro do cristianismo primitivo. O cristianismo apocalíptico era es­sencialmente uma forma de entusiasmo judaico cristão, a combinação do apocalipsismo e uma ampliada perspectiva cristã ampliada. Assim foi possível reter seu fervor mesmo quando o cristianismo se afastou da Palestina e sua judaicidade se tornou mais diluída com elementos de um espectro mais amplo. Por exemplo, Lucas reteve a expectativa apo­calíptica de Jesus e de Marcos, mas a separou da queda de Jerusalém. E o Apocalipse de João reteve a idéia de uma consumação centrada em Jerusalém, mas, escrevendo na Ásia Menor, expressou-a em termos de uma Jerusalém celeste, uma nova Jerusalém vindoura do céu da parte de Deus - o apocalipsismo nacionalista judaico havia sido internacio­nalizado e reimpresso em termos cósmicos.

Ao mesmo tempo o apocalipsismo cristão retém sua judaicidade contra a outra principal forma de entusiasmo dentro do cristianismo primitivo, o tipo mais gnóstico de entusiasmo que veio à expressão na igreja dos coríntios, em dois pontos. Primeiro, o entusiasmo apocalíp­tico é essencialmente orientado para o futuro, enquanto o cristianismo influenciado mais pelo gnosticismo tem uma ênfase essencialmente re­alizada (ver acima pp. 412s). Onde o entusiasmo gnóstico ressaltava o já o entusiasmo apocalíptico ressaltava o ainda não (e a iminência de sua realização). Nessa altura Paulo, em particular, posiciona-se mais sob o estandarte do apocalipsismo cristão judaico do que do entusiasmo gnóstico47. Segundo, o entusiasmo apocalíptico era distinto do entu-

46 Cf. E beling, em F unk, Apocalypticism, pp. 53-9.47 Cf. E. K äsemann , "On the Topic of Primitive Christian Apocalyptic" (1962), ET

em F unk, Apocalypticism, pp. 126ss, e NTQT, pp. 131ss. Ver mais em B eker (nota48 abaixo); L. E. K eck, "Paul and Apocalyptic Theology", Interpretation 38,1984, pp. 229-41.

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siasmo gnóstico por sua seriedade moral. O cristão gnóstico enfatiza a liberdade já alcançada conduzindo tudo muito fácil e rapidamente para a lassidão ética e licenciosidade em muitos assuntos. A escatologia apocalíptica, olhando para o fim, pronunciava-se firmemente a respei­to de que maneira a vida do cristão deveria ser conduzida à vista dessa esperança. Assim, por exemplo, Mateus reteve a esperança apocalípti­ca de Marcos 13, mas acrescentou a alguns ataques muito fortes sobre um entusiasmo antinomiano (note particularmente Mt 7.23; 24.11s; ver acima pp. 375s). E o vidente do Apocalipse toma uma posição muito firme contra a lassidão de algumas das igrejas as quais escreveu. Essa combinação de estreiteza ética e entusiasmo apocalíptico seria um tra­ço de muitos movimentos apocalípticos nos séculos posteriores, desdeo Montanismo até o Pentecostalismo clássico48.

4. Não há em nenhum sentido uma ortodoxia apocalíptica; nunca houve e nunca poderia haver. Suas visões e sua esperança são muito relativas, muito ligadas ao período da história em que existiram, para permitir qualquer interpretação padronizada ou expressão de esperan­ça apocalíptica. Isso quer dizer inevitavelmente que a escatologia apoca­líptica nunca se encaixara muito confortavelmente na ortodoxia da grande Igreja. A trajetória total do cristianismo apocalíptico ficou a margem da ortodoxia, dando muita abertura para o entusiasmo desenfreado para eclesiásticos como Dionísio de Alexandria e Martinho Lutero, ambos dos quais estavam pouco a vontade para aceitar a canonicidade do Apocalipse de João. Porém o surpreendente acerca do cristianismo apocalíptico é sua vitalidade extraordinária. Desapontamentos repetidos não minimizaram o fervor apocalíptico das novas gerações.

Mateus e Lucas não abandonaram inteiramente a expectativa apo­calíptica de Jesus e de Marcos, a despeito de sua falta de cumprimento; eles a reinterpretaram e a renovaram. E, a apesar do fracasso do novo céu e da nova terra em aparecer em breve, o Apocalipse achou um lu­gar no cânon do Novo Testamento.

Isso significa que a escatologia apocalíptica tem um lugar válido e importante dentro do cristianismo - apesar de seus riscos e fracassos.

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: Note aqui a tese de R. M. G rant de que "O Gnosticismo originou-se do fracas­so da esperança apocalíptica" (Gnosticism and Early Christianity, 1959, Harper, 2a ed., 1966, p. 38).

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Tentativas de excluí-la da grande igreja mais sofisticada, simplesmen­te, resultaram em fazê-la fluir de novo fora da grande Igreja e roubar da grande Igreja a vitalidade e entusiasmo que ela traz. Desde o séc. XIX a aversão do protestantismo liberal ao apocalipsismo permanece influente, é digno de mérito recordarmos o significado e a relevância contínua do cristianismo apocalíptico.

(a) Ele vê a realidade em uma tenda ampla - história passada, presente e futura, envolvendo não somente homens e nações, mas Deus. Ele afirma que Deus não está distante do mundo ou despreo­cupado, mas tem uma parte nas forças espirituais operantes "atrás das cenas" - a parte decisiva49. Isso quer dizer, inevitavelmente, que a humanidade é responsável de algum modo diante de Deus - uma crença, classicamente, expressa na visão apocalíptica do juízo final. "Manter vivo este senso de que a vida é carregada de responsabili­dade, e que somos responsáveis para com Deus, é prestar um último serviço aos homens"50.

(b) Ele vê a história como tendo um propósito, uma meta. Não é so­mente orientado para Deus, é orientado para o futuro. Dentro da escato­logia apocalíptica cristã a esperança é fundamental- não uma esperança baseada sobre um otimismo ingênuo no progresso humano, mas uma esperança baseada sobre a crença de que as forças da história estão definitivamente sob o controle de Deus e são conduzidas em direção à sua meta. Essa esperança expressa no NT em termos da segunda vinda de Jesus, é integrante do evangelho do cristianismo do séc. I: "Rejeitar essa esperança é mutilar a mensagem da salvação do NT"51.

(c) Essas duas crenças têm dois resultados. Primeiro de tudo, ca­pacitar os crentes a ter uma avaliação apropriada do presente. Eles não valorizaram quaisquer ilusões acerca do presente e de suas possibili­dades. Em particular, são aptos para adotar uma atitude positiva para com o sofrimento. O sofrimento do presente é de algum modo uma fase inevitável no movimento da história em direção à meta de Deus, em algum sentido uma preparação necessária para e antecede o futuro maior e mais rico de Deus. Como F. C. Burkitt notou, "O Evangelho

49 Daí o título de J. C. B eker do estudo da teologia paulina - Paul the Apostle. The Triumph of God in Life and Thought, Fortress/T. & T. Clark 1980.

50 R owley, Relevance, p. 189.51 C ullmann , citado por R owley, Relevanèe, p. 164.

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ó o grande protesto contra a visão moderna de que a coisa realmentei mportante é o conforto"52.

(d) Em segundo lugar, a esperança apocalíptica deveria conduzir os crentes a um novo senso de responsabilidade para com o mundo. Cessam de ser dependentes do mundo em termos de valor e esperança, mas se tornam mais responsáveis por ele - viver e trabalhar no mundo para apressar o fim proposto por Deus. Note que a esperança apocalíptica como tal não ignora ou volta às costas ao mundo - embora tenha sido, freqüentemente interpretada dessa maneira durante os séculos. Certa­mente cessa de achar seu valor e significado no mundo, e é pessimista para com o futuro do próprio mundo. Mas não participa deste mundo: nascido do sofrimento no mundo, e se porta como responsável tanto em declarar ao mundo o verdadeiro estado das coisas, o verdadeiro curso da história, e de atuar no mundo até onde for possível para apressar a vinda do reino de Deus. Além disso, é apto a perseverar nessa missão, a despeito da perseguição e do desapontamento, precisamente porque não é dependente deste mundo por reconhecimento e valor. Isto é por­que a escatologia apocalíptica contém sementes de revolução, e de fato tem sido a inspiração básica para muitos movimentos revolucionários na história da Europa.

O papel do cristianismo apocalíptico é, portanto resistir a toda e qualquer tentação de abandonar a esperança pelas realidades do presen­te, ou abandonar o presente pela visão do futuro, mas, em vez disso, relacionar os dois, um ao outro, para entender o presente à luz do futuro e o futuro em relação ao presente. E uma tarefa contínua, a responsabili­dade de cada geração de fazer isso de novo. A nova geração não deve confundir a esperança para o futuro com a expressão particular das gerações mais antigas; não precisa abandonar a esperança porque uma expressão particular disso também estava muito ligada aos eventos e personalidades que agora estão no passado. Antes, é preciso reconhe­cer a relatividade de qualquer expressão da esperança apocalíptica, é preciso reinterpretar o presente à luz tanto do passado (o já) e o futuro (o ainda não), e é preciso reafirmar o futuro pertencente a Deus e espe­rança renovada.

Resumindo, o problema do cristianismo apocalíptico é tanto reter como restringir: reter sua esperança da intervenção iminente de

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52 Citado por R owley, Relevance, p. 181.

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Deus e o entusiasmo conseqüente, e restringi-lo de se tornar detalhis­ta, muito certo de sua expressão particular, muito dependente de um cumprimento particular dessa esperança. O cristianismo apocalíptico é confrontado pelo perigo constante de: "Acelerar expectativas",53 o problema de ter a esperança sem deixá-la escapar das mãos. Tais cor­rentes conflitantes têm uma parte integrante e importante na principal corrente de cristianismo desde os tempos antigos até hoje.

53 Freedman em Funk, Apocalypticism, p. 173.

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C a p í t u l o XIV

CATOLICISMO PRIMITIVO

§ 70. O QUE É "CATOLICISMO PRIMITIVO"?

Qual é o grau dos traços característicos do cristianismo católico do (fim) do séc. II presentes no NT? Quando se tornou inevitável que o cristianismo (ocidental) se tornaria a ortodoxia católica de Cipriano de Leão? Como alguns protestantes argumentam o catolicismo seria um desenvolvimento pós-apostólico, distanciando-se da pureza primitiva e da simplicidade do séc. I? Ou foi, simplesmente, o florescimento na­tural do que pertencia à essência do cristianismo desde o princípio?- como muitos católicos sustentam. Ou a resposta recai em algum lu­gar entre essas duas possibilidades? Talvez em um desenvolvimento decisivo (ou vários) durante o séc. I; talvez no domínio de uma visão sobre as outras já para o fim do séc. I; talvez na chegada lenta concomi- tantemente de diferentes elementos a uma totalidade coerente que de­tinha o poder final mais do que as visões e estruturas alternativas; tal­vez como reação aos outros desenvolvimentos do séc. I. E se quaisquer das últimas alternativas representam melhor os fatos que as restantes, então podemos falar de um "catolicismo primitivo" dentro do NT? Há escritos do NT que, principalmente, centravam-se sobre a trajetória da ortodoxia católica emergente?

A própria expressão "catolicismo primitivo" (Frühkatholizismus) parece ser cunhada próxima a virada do séc. XX. Mas os temas envol­vidos nela, no mínimo, retrocedem até a metade do séc. XIX e à escola de Tübingen de F. C. Baur1, Pois Baur e, particularmente, o seu pupilo

Cf. K. H. N eufeld, '"Frühkatholizismus' - Idee und Begriff", ZKT, 94,1972, pp. 1-28. Cf. também S. S chulz, Die Mitte der Schrift, Stuttgart 1976, pp. 29-84, ainda que S chulz ache o reconhecimento do catolicismo primitivo no N T prenunciado por

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A. Schwegler argumentava, com efeito, que catolicismo, primeiramente, emergira no séc. II como um acordo mútuo entre as duas partes rivais que haviam dominado o cristianismo dos sécs. I e II - o cristianismo judai­co (Petrino) e o cristianismo gentílico (paulino). Esse acordo, primeira­mente apareceria em documentos conciliatórios como Atos, Filipenses,1 Clemente (Roma) e Hebreus (Ásia Menor), que tentavam mediar entre dois partidos e descartar as discordâncias entre seus heróis representati­vos; e sendo consolidado, mais tarde, já nas obras do séc. II, as Pastorais e as cartas de Inácio (Roma) e o Evangelho de João (Ásia Menor).2

O início do fim da escola de Tübingen foi marcado pela publica­ção da segunda edição de Die Entstehung der altkatholischen Kirche de A. Ritschl3. Nessa obra, ele demonstrou que a história do cristianismo primitivo não era simplesmente um caso de dois blocos monolíticos brigando um com o outro: Pedro (e os apóstolos originais) devia ser distinto dos cristãos judeus (judaizantes), e havia um cristianismo gen­tílico distinto de Paulo e pouco influenciado por ele. O mais importan­te para nós é que ele insistia que o catolicismo não era a conseqüência de uma reconciliação entre o cristianismo judaico e o gentílico, mas era de fato "somente um estágio do cristianismo gentílico", o desenvolvi­mento de um cristianismo gentílico popular independente de Paulo.

Essa tese foi tomada por seu protegido, A. H arnack, com seu en­tendimento da essência do catolicismo como a “helenização" do cristia­nismo. Como o próprio Harnack a definiu:

[Catolicismo] é a pregação cristã influenciada pelo Antigo Testamento, extraída de meio-ambiente original e m ergulhada em moldes helénicos de pensam ento, isto é, no sincretismo da época e na filosofia idealista.4

Em um sentido importante, então, sobre essa visão do movimento em direção ao catolicismo era inerente no cristianismo gentílico,

Lutero nos apontamentos de Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse aparte do resto do cânon (pp. 14-28).

2 A. S chwegler, Das nachapostolische Zeitalter in den Hauptomomenten seiner Entwick­lung, Tübingen 1846 - resumida utilmente em H arris, Tübingen Scholl, pp. 202-7.

3 A. R itschl, Die Entstehung der altkatholischen Kirche, Bonn, 2a ed., 1857.4 A. H arnack, The Constitution and Law ofthe Church in the First Two Centuries, 1910,

ET W illiams & Norgate 1910, p. 254.

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...para o espírito grego, o elemento que era mais operante no gnosticismo, já estava escondido no próprio cristianismo gentílico primitivo... O grande Apóstolo aos gentios, em sua epístola aos Romanos e àquelas aos Coríntios, transplantou o Evangelho nas formas gregas de pensar...5

Mas o influxo de helenismo, do espírito grego somente aconteceu em um modo significante no séc. II (H arnack até datou especifica­mente por volta de 130 d.C.), e o catolicismo propriamente, a igreja da doutrina estabelecida e de forma fixa, somente emergiu na luta com o gnosticismo, no conflito entre helenização e "helenização ra­dical"6.

Essa visão da matéria foi questionada de dois lados. Na escola da História das Religiões a helenização, que é o fundamento do catoli­cismo, foi identificada, mais precisamente, como o sacramentalismo que se intrometeu do meio-ambiente religioso da missão gentílica para o entendimento cristão primitivo do batismo e a ceia do Senhor. O catoli­cismo aí é definido em termos de dependência sobre o ato ritual exter­no e visível e a ordenança, uma atitude já presente nas cartas de Paulo (assim catolicismo primitivo), ainda que estivesse em conflito com o próprio entendimento de Paulo da fé7.

Sobre uma nova política totalmente diferente R. Sohm tomou a distinção de Lutero entre a igreja visível e invisível como o ponto de partida em vez do pensamento, as sociedades ou religiões helenísticos. Ele definiu a essência do catolicismo como

...a recusa de fazer qualquer distinção entre a igreja no sentido religioso [a Igreja de Cristo] e a igreja no sentido legal [a igreja como um a entidade legalmente constituída], O ensino da visibilidade da igreja de Cristo... é o dogm a básico sobre o qual a totalidade da his­tória do Catolicismo se fundam enta desde o princípio8.

s H arnack, History o f Dogma, vol. I, p. 218. Ver também as pp. 56s.6 H arnack, What is Christianity?, 1900, E T W illiams & Norgate 1901, Lecture XI.

H arnack definiu gnosticismo como: "A radical (ou aguda) helenização do cris­tianismo" (Dogma, I, p. 227).

7 H eitmüller, Taufe, pp. 18-26, E. T roeltsch , The Social Teaching o f the Christian Churches, 1911, E T Allen & Unwin 1931,1, pp. 95s.

8 R. S ohm , Wesen und Usprung des Katholizismus, 2a ed., 1912, Darmstadt 1967, pp. 13,15.

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O catolicismo, então, primeiramente, emergiu quando a organi­zação carismática que caracterizava a igreja primitiva deu lugar a ins­titucionalização, em que a instituição era identificada como igreja com tudo o que isso significava em termos de autoridade de ofício e de lei eclesiástica. O passo decisivo aí foi tomado em 1 Clemente que assim marca o surgimento do catolicismo. No debate subseqüente sobre a relação entre carisma e ofício aqueles que aceitavam que houve uma transição de um para o outro podiam vê-la como já tendo acontecido dentro do NT, com as Pastorais fornecendo a evidência primária e a posição de Atos como discutida.

O elemento novo mais importante a ser introduzido no debate desde então é a demora da parusia. Se o cristianismo primitivo era de caráter entusiástico apocalíptico, então o catolicismo primitivo poderia ser precisamente definido em termos do reconhecimento da igreja de que o fim ainda não chegara, que precisava, portanto se acomodar so­bre um período prolongado de espera com tudo o que isso envolve em padrões mais estáveis de organização preparados para preservar a identidade da igreja com o passado e sua continuidade no futuro. M. W erner, de fato, argumentou que a conseqüente mudança na pressu­posição sobre a demora da parusia era o ponto de retorno que direciona o cristianismo para o catolicismo primitivo.

O surgimento da doutrina cristã, ou seja, a transform ação da fé cristã primitiva na doutrina do catolicismo primitivo, foi realiza­da como um processo da descatologização do cristianismo primiti­vo no curso de sua helenização9.

E. Kàsemann contribuiria muito a esse debate nas décadas do pós- guerra; ele define o catolicismo primitivo assim:

O catolicismo primitivo significa aquela transição do cristia­nismo primitivo para assim cham ada igreja antiga, que é com pleta­da com o desaparecim ento da expectativa iminente... há um m ovi­mento característico em direção a essa grande Igreja que se entende com o a Una Sancta A postolica10.

9 M. W erner, The Formation o f Christian Dogma, 1941, ET A. & C. B lack 1957, pp. 25,297.

10 E. K äsemann , "Paul and Early Catholicism" (1963), NTQT, p. 237.

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Assim também, com efeito, ele redefine a tese primitiva de H e it m ü l l e r : o catolicismo não emergiu da piedade sacramental do entusiásmo-místico do cristianismo helenístico, mas deve ser enten­dido precisamente como reação contra toáo "entusiasmo", tanto o en­tusiasmo helenístico como (em meus próprios termos) entusiasmo apocalíptico.

A luz de tudo isso se torna honestamente claro que o estamos pro­curando. O catolicismo primitivo pode ser distinguido por três traços principais11:

(a) A diminuição da esperança da parusia: "o desaparecimento da iminente expectativa (Naherwartung)" o afrouxamento da tensão esca­tológica entre o "já", do ministério terreno de Cristo e o "ainda não" de sua iminente re-aparição, para trazer o fim.

(b) Crescente institucionalização: isso incluiria alguns ou todos os traços seguintes - a emergência do conceito de ofício, de uma distinção

11 Cf. agora G. S trecker, Die Johannesbriefe, KEK Göttingen, 1989, pp. 348-54. Cf.F. H ahn, "Frühkatholizismus als ökumenisches Problem", Exegestische Beiträge zum ökumenischen Gespräch, Göttingen 1986, pp. 66-75. S chulz trabalha com uma lista maximizada das características católicas primitivas (incluindo "o equívoco da mensagem paulina da justificação como a teologia da cruz" e "o entendimen­to não-paulino da Lei" - Schrift, p. 80) de modo que "catolicismo primitivo", na discussão de S chulz, torna-se um conceito muito amplo abarcando seja o que for que não esteja de acordo com o paulinismo das cartas paulinas principais (ele encontra tendências e características católicas primitivas em não menos que20 dos 27 escritos do NT). Pouca consideração é dada às outras forças e con­siderações que moldaram muito do material não paulino (particularmente os documentos mais especificamente cristãos judaicos); veja p.ex. seu tratamento de Mateus e a Lei (pp. 183-9) e sua descrição de Lucas-Atos como "anti-en- tusiástico" (pp. 153-5). Para uma esquematização alternativa do catolicismo primitivo veja U. Luz, "Erwägungen zur Entstehung des 'Frühkatholizismus", Eine Skizze", ZNW 65, 1974, pp. 88-111. H ahn , apropriadamente, indica que: "A designação Frühkatholizismus é útil somente como um conceito parcial parao fenômeno individual, não como uma descrição completa de um período da história contínua da igreja primitiva com o cristianismo primitivo" (Das Pro­blem des Frühkatholizismus", Beiträge p. 49). Ver também as renúncias do §53 acima. O debate, incluindo a contribuição de S chulz, em particular, foi resenhada por J. R ohde, "Die Diskussion um den Frühkathozismus im Neuen Testament, dargestellt am Beispiel des Amtes in den spätneutestamentlichen Schriften", em J. R ogge & G. S chille, Frühkatholizismus im ökumenischen Gespräch, Berlin 1983, pp. 27-51.

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entre clero e laicato, de uma hierarquia sacerdotal, de uma "sucessão apostólica", de um sacramentalismo, de uma identificação entre igreja e instituição assim ordenada.

(c) Cristalização da fé em formas estabelecidas, a emergência de uma regra de fé, com o objetivo específico de fornecer um baluarte contra o entusiasmo e o falso ensino - o senso de que a era da fundação da reve­lação já estava no passado, com os correlativos que a responsabilidade do presente se torna a preservação da fé dos pais fundadores para o futuro, e que reivindica a nova relação do Espírito profético se torna mais a marca do entusiasmo e do herético do que da igreja12.

Certamente esses foram os traços que distinguiram a ortodoxia ca­tólica emergente no séc. II quando visava se proteger dos desafios do gnosticismo e do montanismo (ver também acima §26). A questão que nos confronta aqui é: em que grau esses traços já são visíveis nos pró­prios escritos do NT? Em qual medida podemos falar apropriadamente de um elemento católico primitivo dentro do NT? Quando a trajetória do catolicismo (primitivo) primeiramente apareceu? Nossas investiga­ções anteriores já tocaram nesses assuntos em diversos pontos, de modo que neste capítulo seremos capazes de reunir alguns fins soltos.

§ 71. O DESVANECIMENTO DA ESPERANÇA DA PARUSIA, "A EXPECTATIVA IMINENTE"

Vimos no cap. XIII que a expectativa de uma parusia iminente era integrante do cristianismo primitivo e era um forte traço do auto-enten- dimento cristão durante a primeira geração de cristianismo. Até certo ponto o catolicismo primitivo é o desenvolvimento inevitável de uma segunda geração e que não pode retroceder aos inícios do cristianismo; pois o catolicismo primitivo não é, simplesmente, matéria de organiza­ção, mas a respeito da organização resultante; o catolicismo primitivo é propriamente definido como, pelo menos em parte, uma conseqüente reação diante da falha da esperança da parusia. Então, onde no NT encontra­remos a evidência do desvanecimento da esperança da parusia?13

12 Ver M. H ornschuh em H ennecke, Apocrypha, II, pp. 74-9.13 Cf. o que se segue em P. J. A chtemeier, "An Apocalyptic Shift in Early Christian

Tradition: Reflections on Some Canonical Evidence", CBQ, 45,1983, pp. 231-48.

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1. O Paulo tardio e as Pastorais. No §68.1. notamos como as cate­gorias apocalípticas fortemente moldaram a pregação (primitiva) de Paulo e ensino na missão gentílica. Até onde concerne a expectativa de um fim iminente ainda podemos adicionar ICor 7.26-31 e 15.51s., ou a poderosa convicção de Paulo do significado escatológico de seu apostolado - que sua missão aos gentios era o ato final na história da salvação antes do fim (Rm 11.13ss; 15.15ss.; ICor 4.9).14 Contudo, há evidências de que essa expectativa iminente começou a desvanecer em algum momento antes do final de sua vida.

A indicação mais antiga de tal mudança de perspectiva pode estar na própria ICor 15.51s, em que, embora a parusia ainda fosse esperada dentro de sua própria geração, morrer antes da parusia já se torna­va a norma. Mesmo que menos especifica seja Rm 13.11s., em toda a intensidade de sua esperança - próxima? Sim; mas quão próxima?15 E na época das últimas cartas de Paulo o contraste é claro com o entu­siasmo escatológico de 1 e 2 Tessalonicenses. Em Filipenses a esperança da parusia ainda é forte (F11.6,10; 2.16; 3.20; 4.5), mas Paulo não está mais confiante de que ele próprio estará vivo quando "O dia de Cris­to" chegar (F11.20ss.),.como evidentemente estava em lTs 4.15-17 (ver também p. 96).

Em Colossenses há somente uma referência explícita à vinda de Cristo (Cl 3.4), mas não nenhum sentimento de iminência ou de urgên­cia (cf. Cl 1.5, 12, 23, 27; 3.6, 24). Além disso, como já vimos (p. 431s), há uma ênfase mais forte na escatologia realizada em Cl 1.13 e 2.12, 2.20-3.3: onde nas epístolas paulinas mais antigas a herança e entrada no reino de Deus é ainda algo a se efetivar (ICor 6.9s; 15.50; G15.21; lTs 2.12; 2Ts 1.5), em Cl 1.13 Paulo fala dos crentes como já sendo trans­feridos para o reino do Filho (na conversão), e onde em Rm 6.5 e 8.11 Paulo falava de ressurreição com Cristo como algo no futuro, parte da consumação do ainda não, em Cl 2.12 e 3.1 a ressurreição com Cristo já se realizou, parte do já. Não seria inteiramente clara a implicação de que em Colossenses vemos Paulo se afastar da esperança urgente

14 Cf. D unn, Jesus, §20.2.15 Cf. particularmente G. K lein , "Apokalyptische Naherwartung bei Paulus",

Neues Testament und christliche Existenz: Festschrift für Herbert Braun, org, H. D. B etz e L. S chottroff, Tübingen 1973, pp. 244-58. Ver também acima pp. 92,487, nota 45.

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de uma parusia iminente que anteriormente o conduzia para uma es­perança mais amena e mais firme que agora reconhecia um intervalo mais longo antes da parusia, com relacionamentos humanos mais du­radouros (Cl 3.18-4.1), e de modo a focar a atenção mais sobre o que Cristo havia realizado?

Em Efésios o mesmo sentido de esperança se expressa ainda com mais força. Ainda há um olhar para frente, para uma consumação futu­ra (Ef 1.14,18, 21; 4.4, 30; 5.5) e também um urgência na exortação que relembra o Paulo mais antigo (Ef 5.16). Mas por outro lado, a expec­tativa de um fim iminente está inteiramente ausente e a parusia nem mesmo é mencionada (cf. Ef 5.27). Ao contrário, Paulo parece prever um período muito mais longo sobre a terra durando diversas gerações antes que o Fim derradeiro chegue (Ef 2.7; 3.21; 6.3); o já da nova vida e a salvação são fortemente enfatizados (2.1, 5s, 8; 5.8); e a esperança da consumação e completude em Cristo em Ef 2.19-22 e 4.13-16 foram des­tituídos de toda feição apocalíptica (ainda que um resíduo apocalíptico seja evidente em Ef 1.10,20-23). Mesmo que essa mudança na perspec­tiva seja posterior a Paulo ou não, é de tal mudança na perspectiva que o catolicismo emergiu.

Nas Pastorais a posição não é tão diferente. A crença no dia do Senhor ainda continua forte (2Tm 1.12,18; 4.8) e o mesmo se dá com a aparição de nosso Senhor Jesus Cristo (lTm 6.14; 2Tm 4.1, 8; Tt 2.13). Pode até ser que o autor creia que ele e seus leitores (ainda) estejam nos últimos dias (lTm 4.1; 2Tm 3.1), embora 2Tm 4.3 possa indicar que para o autor os últimos dias ainda não tenham começado. Ou por isso ou porque os últimos áias tenham se tornado uma expressão formal sem seu fervor escatológico original, pois claramente em 2Tm 2.2 a perspec­tiva se alongara perceptivelmente, e outras declarações visando o fu­turo são muito mais a linguagem da piedade tardia que sustenta uma doutrina das "últimas coisas", mas sem a urgência de uma expectativa iminente do fim (lTm 4.8; 5.24; 6.7; 2Tm 2.10ss; 4.18). Assim, de novo, aqui vemos evidenciada essa mudança de perspectiva, esse desapa­recimento da tensão escatológica que é parte e parcela do catolicismo primitivo.

2. Lucas-Atos. O desapontamento da "expectativa iminente" dos cristãos primitivos talvez em nenhuma outra parte do NT seja tão mar­cante como em Lucas-Atos. A prqva mais notável disso é a redação

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de Lucas do apocalipse marcano e a sua apresentação da comunidade primitiva de Jerusalém em Atos.

(a) É muito aparente que Lucas esteja escrevendo em um período depois da queda de Jerusalém (70 d.C.), enfatizando o problema de o que fazer com Marcos 13, em que, como vimos (§68.2), a destruição de Jeru­salém foi vista como parte dos infortúnios messiânicos, o começo do fim. Pois quando comparamos Mc 13 com Lc 21 se toma mais evidente que Lucas cuidadosamente separou esses dois elementos (queda de Jerusalém e parusia), e que estendeu a nota de cautelar de Marcos para abarcar um período maior (e longo) de tempo. Lucas 21.8 - em Marcos os falsos pro­fetas somente dizem: "Sou eu" (Mc 13.6); Lucas adiciona outro oráculo, "O tempo (do fim) está próximo!"; a proclamação de iminência do fim tomou-se uma falsa profecia! Marcos falara da grande desordem mundial como o: "Início das dores do parto" (Mc 13.8); Lucas igualmente omite a expressão (Lc 21.11). Marcos dissera, "Aquele, porém, que perseverar até o fim, será salvo" (Mc 13.13); Lucas omite a referência ao fim (Lc 21.19: "E pela perseverança que mantereis vossas vidas") - o sofrimento conecta­do com a queda de Jerusalém não deve ser ligado com a tribulação dos últimos dias. Marcos pensara do sofrimento causado pelo sítio e queda de Jerusalém como a tribulação escatológica - tão severa que Deus a teria abreviado por amor dos eleitos (Mc 13.20); Lucas separa completamente a queda de Jerusalém do fim - "Jerusalém será pisada por nações até que se cumpram os tempos das nações" (Lc 21.24). Marcos havia ligado firme­mente a destruição de Jerusalém com o caos cósmico do fim: "Naqueles dias..." (Mc 13.24); Lucas apenas cortou a ligação disso ao não posicionar as expressões juntas (Lc 21.25). Como também notamos (p. 481), parte do objeto de Lucas ao separar desse jeito a expectativa iminente da parusia da queda de Jerusalém em Marcos era que se poderia reafirmar a esperança da parusia a despeito do fracasso da expectativa de Marcos. Mas o que pre­cisamos notar aqui é que ele foi capaz de reafirmar a parusia somente por negar efetivamente sua imediata iminência por Jesus e ao "adiar" a mesma (para ou­tra geração?), distanciando o fim de um estágio além ou época da história ("os tempos das nações" = o tempo da igreja).16 Aqui, então, a esperança é adiada, "a expectativa iminente" desvanece.

1 Ele consegue o mesmo efeito ao introduzir a parábola das minas - Lc 19.11; e sua redação de Mc 12.1 (Lc 20.9: "Por muito tempo"); cf. Lc 17.20s; 22.69 (par. Mc 14.62).

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(b) Como demonstramos no (§67.3) a comunidade cristã primitiva em Jerusalém era marcadamente apocalíptica em seu pensamento e auto-entendimento. Pouco entenderíamos de um conceito-chave como a ressurreição de Jesus e o dom do Espírito como "as primícias" da cei­fa do fim dos tempos que emergiu ou como uma expressão como "ma- ranata" ("Nosso Senhor, vem!") se torna estabelecida na linguagem de adoração (ICor 16.22), ou como uma prática imprevidente como a comunhão de bens (sem estocagem) posta sob os pés da liderança da nova seita, a menos que todos estivessem imbuídos mais ou menos das expressões espontâneas de uma convicção dominante de que o tempo do fim havia chegado, a parusia logo tomaria lugar, o Fim era iminente. E ainda esse sentido de expectativa furtiva seja completamente ausente do relato de Atos. Nada da invocação "Maranata" encontra expressão em Atos. Ainda se fala de parusia (At 1.11), mas a atenção se focaliza antes sobre a responsabilidade da missão mundial (1.6-8), e o senso de iminência é ousadamente preservado no uso de Lucas do material primitivo em At 3.20s. Fala-se também do dia do juízo (At 10.42; 17.31; 24.25), mas somente como uma ameaça ainda distante (as últimas coi­sas) e não mais como algo urgentemente próximo. A linguagem apo­calíptica de Joel 2.28-32 é citada, incluindo os sinais cósmicos (At 2.17- 21), mas como uma profecia já cumprida em Pentecostes. Por outro lado, não resta nenhum vestígio do fervor apocalíptico do cristianismo primitivo - e o mesmo é verdade da expectativa de iminência do Pau­lo primitivo, ainda que Lucas dê alguns detalhes da obra missionária de Paulo em Tessalônica (At 17). Deve haver alguma explicação, pois Lucas, dificilmente, não teria noção de que o cristianismo primitivo possuía um alto grau de temperatura escatológica: Lucas deve ter deci­dido ignorar ou suprimir esse traço (ainda que o custo de fazer a comu­nhão de bens parecesse mais um ato de completa irresponsabilidade do que um ato de fé fervorosa). Para o presente, tal quadro da primeira geração do cristianismo, embora efervescente desde o princípio até o fim, tão marcadamente não-apocalíptica, certamente constituiria uma qualificação para o título católico primitivo.

Precisamos simplesmente adicionar que, como foi amplamente reconhecido na segunda metade do séc. XX, o próprio ato de escrever uma história do cristianismo primitivo (em vez de um apocalipse) foi uma admissão de que a esperança primitiva da parusia estava equivo­cada e que a esperança da parusia £m si havia desvanecido. Quando

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Lucas escreveu não somente uma "vida de Jesus", mas também uma história da igreja, ele, com efeito, estava interpondo toda uma nova época entre a ressurreição/ascensão de Jesus e a parusia. A morte de Jesus e a ressurreição não mais seriam consideradas como o início do fim, o clímax (final) escatológico, como Jesus e os primeiros cristãos o haviam entendido, mas antes como o ponto intermediário da história, com uma época estendida em direção ao futuro de um lado, bem como esticando para trás de outro lado. E desnecessariamente confuso, de fato é errado, dizer que Lucas substituiu a idéia da história da salva­ção pela escatologia primitiva, como um meio de resolver o problema posto pela demora da parusia17. A escatologia iminente e a história da salvação não são de nenhum modo contraditórias ou entendimentos mutuamente exclusivos: a perspectiva da história da salvação é fran­camente básica para todos os principais escritores do NT e a tensão do já/ainda não está quase que totalmente presente na perspectiva esca­tológica do NT18. Mas em Lucas-Atos a tensão escatológica certamente foi afrouxada em uma medida significativa; e para Atos em particular a espe­ra pela parusia é somente como uma realidade ainda tão distante do clímax mais para o fim do tempo da igreja. Portanto, ao apresentar o cristianismo como diante da própria necessidade de se organizar para um termo futuro mais longo Lucas certamente abriu a porta ao catoli­cismo primitivo.

3. Não podemos ignorar o fato de que a expressão mais forte de esca­tologia realizada no NT se encontra no Evangelho de João. Seus traços mais proeminentes são a convicção de que o juízo é algo que já tomou lugar na vinda de Jesus como a luz do mundo e na reação humana a ele (Jo 3.19), que aqueles que ouviram e creram na verdade de Jesus não vêm a julgamento, mas já passaram da morte para vida (Jo 5.24), que o próprio Jesus é tanto a ressurreição como a vida - conhecê-lo é conhecer a vida eterna, a ressurreição da vida aqui e agora (Jo 11.25s). Quando João diz: "Nós vimos a sua glória" (1.14), em um sentido real ele demons­

17 Assim P. V ielhauer, "On the 'Paulinism' of Acts" (1950, ET 1963), SLA, pp. 45-8; H. C onzelmann , The Theology o f ST Luke, 1953,2a ed., 1957, ET Faber & Faber 1961, pp. 131s; E. K äsemann , "New Testament Questions of Today" (1957), NTQT, pp. 21s; S chulz, Schrift, p. 134.

18 O. C ullmann , Salvation in History, 1965, ET S C M Press 1967; e acima pp. 345s.

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trou o passado e a glória futura do Filho de Deus no período de seu ministério terreno com seu clímax da cruz e ressurreição; e a fé resul­tante que o Evangelho busca engendrar é uma crença naquele que não pode mais ser visto, sobre o testemunho daqueles que viram sua gló­ria, e sem qualquer contemplação antecipada para a sua manifestação futura (Jo 20.29-31). Ou de novo, quando o Jesus joanino fala de sua iminente partida e nova manifestação (Jo 14.18; 16.16-22) o que tem objetivamente em mente é a vinda do Paráclito (Jo 14.15-26; 16.7); em um sentido real a parusia do Paráclito, o Espírito doador da vida, tem preenchido o lugar de Jesus porque não há motivo para se pensar de uma parusia futura tranqüila.

Não seria verdade, contudo, dizer que não há nenhuma escato­logia futura em João; passagens como 5.28s, 6.39s, 12.48 (cf. l jo 2.18, 28; 3.2; 4.17) não podem, simplesmente, ser consignadas a um redator e convenientemente descartadas. Antes, a esperança que elas expres­sam é muito menos imediata que a esperança dos primeiros cristãos. Jo 14.1-3 é provavelmente a única passagem no Quarto Evangelho que em si fala da segunda vinda de Cristo como tal, mas é mais um tipo de passagem que (certamente) conforta os corações aflitos do que expres­sa qualquer sentido de iminência urgente do Fim. E no epflogo em Jo 21, o pequeno episódio final que chega ao clímax no v. 23 parece ser incluído a fim de solucionar o problema causado pela morte de João antes da parusia. Resumindo, é quase como que o movimento para frente da história da salvação, em João, fosse suspenso em um "agora" escatológico atemporal, em que tudo o que preocupa é a resposta do indivíduo às palavras de Jesus, palavras que são Espírito e vida (Jo 4.23; 5.25; 6.63). Se isso é uma teologia que propriamente pode ser chamada de católica primitiva é outra questão a que retornaremos mais adiante.

Hebreus não está tão distante da escatologia de João. Certamente, o escritor da carta sustenta uma expectativa mais vívida da iminente parusia (Hb 10.25, 37; cf. 1.2; 6.18-20; 9.27s.). Mas sua escatologia foi modificada significativamente pela incorporação da doutrina judaica (apocalíptica) das duas eras com a distinção platônica entre o mundo celestial real e o mundo de sombras terreno (veja pp. 393s e nota 61). Ao fazer isso ele anexou um bocado de esperança à plena participação na realidade celestial da crença em uma consumação ainda futura (Hb 4.14-16; 7.19; 10.19-22; 12.22-24). Desse modo ele é capaz de encorajar seus leitores em sua luta e sofrimento e: "A imprimir sobre os crentes

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a proximidade do mundo invisível sem insistir sobre a proximidade da parusia"19.

4. Precisamos também mencionar 2 Pedro, provavelmente o último dos escritos do NT. O traço marcante é sua escatologia que é uma orto­doxia tanto quanto oca. E ortodoxo o suficiente em sua fala de entrar no "reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo" (2Pd 1.11), do dia do juízo (2.9,17; 3.7), dos escarnecedores dos últimos dias (2Pd 3.3), do dia do Senhor que vem como um ladrão à noite (2Pd 3.10), de uma dis­solução cósmica em vívidas cores apocalípticas (3.10,12), e da chegada de novos céus e uma nova terra (2Pd 3.13). Mas a demora da parusia, claramente, tornou-se um grande obstáculo: "Em que ficou a promessa da sua vinda?..." (3.4). A resposta do autor é na sua maior parte de cará­ter tradicional - o argumento do propósito de Deus na história da salva­ção (2Pd 3.5-7); o argumento de que a demora é a misericórdia de Deus dando tempo para o arrependimento (3.9), e assim por diante. E algo sem sentido que vem no argumento de 2Pd 3.8 - a consideração embo­ra insatisfatória de que conceitos de tempo são inadequados quando se pensa acerca de um ato de Deus: "Para o Senhor um dia é como mil anos e mil anos como um dia". Isto é, ele nega que o cristão possa relacionar esperança a quaisquer eventos do presente; o tempo humano e a pro­messa de Deus não são prontamente correlativos. Isso inevitavelmente confere um grau de arbitrariedade para a ação de Deus (pelo menos do ponto de vista humano) e extirpa o nervo da escatologia apocalíptica20. Aquele que argumenta assim perdeu toda a esperança de uma parusia iminente e não se surpreenderia se séculos (até mesmo dois milênios) se passariam antes da esperança tradicional da parusia ser efetuada. Resu­mindo, em 2 Pedro a linguagem original do fervor apocalíptico torna-se uma linguagem dogmaticamente mais calculada das últimas coisas. Se o: "Catolicismo primitivo" é uma reação ao desapontamento repetido da esperança apocalíptica, então 2 Pedro é um excelente exemplo de catolicismo primitivo.21

19 C. K . B arrett, "The Eschatology of the Epistle to the Hebrews", BNTE, p. 391; cf. H. C onzelmann , An Outline o f the Theology o f the New Testament, 2a ed., 1968, ET SCM Press 1969, pp. 312s.

20 Cf. E. K äsemann , "An Apologia for Primitive Christian Eschatology" (1952), ENTT, p. 194.

21 Ver também R. J. B auckham , Jude, II Peter, Word Biblical Commentary 50, Word 1983, pp. 151-4.

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As cartas paulinas tardias e as Pastorais, Lucas-Atos, João e 2 Pe­dro - estes são os escritos do NT que, mais claramente, refletem as mudanças de ênfase e auto-entendimento que a demora da parusia impos aos cristãos primitivos na segunda metade do séc. I e além. Esses exemplos são suficientes para demonstrar a questão de que se o catolicismo primitivo é definido, pelo menos em parte, pelo desvanecimento da esperança iminente da parusia, então o catolicismo primitivo já está bem estabelecido dentro do NT.

§ 72. A INSTITUCIONALIZAÇÃO GRADUAL

A institucionalização gradual é a marca mais clara do catolicismo primitivo22 quando a igreja se torna, gradualmente, identificada com a instituição, quando a autoridade se torna, gradualmente, coextensiva com o ofício, quando a distinção básica entre clero e laico se torna, gradualmente, auto-evidente, quando a graça se torna gradualmente estreitada aos atos rituais definidos. Vimos anteriormente que tais tra­ços estavam ausentes do cristianismo da primeira geração (caps. VI e VIII), embora na segunda geração o quadro já estivesse começando a mudar.

1. Efésios e as Pastorais. A evidência mais forte que uma perspec­tiva católica primitiva se manifesta já em Efésios é o uso de ekklésia e Efésios 2.20. Enquanto que no Paulo primitivo ekklésia (igreja) quase sempre denota todos os cristãos vivos ou reunidos em um lugar, em Efésios ekklésia é usado exclusivamente para a Igreja Universal (Ef 1.22; 3.10, 21; 5.23-25, 27, 29, 32; comparar com Cl 4.15s.). Em Efésios 2.20 facilmente pode ser lido como uma expressão da veneração pela se­gunda geração dos líderes da primeira geração. Ainda, de outro lado, há fortes paralelos entre a imagem da ordem da igreja em Efésios 4 e a metáfora do corpo em Romanos 12 e 1 Coríntios 12. De modo que não po­demos ter certeza somente da evidência interna se Efésios é obra de Paulo ampliando sua visão da igreja local como uma comunidade carismática para as dimensões cósmicas (Ef 1.22s; 2.19-22; 3.10; 5.23-32; cf. Cl 1.18,24),

1 Ver p.ex. H. C onzelmann , RGG3, III.139; F. M ussner, LTK, VI.89s. veja mais no capítulo VI (nota 27). ’

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ou obra de um discípulo de Paulo da segunda geração começando a pensar no ministério em termos de ofícios válidos para toda a Igreja universal23. Mesmo no último caso, a ausência de qualquer menção de bispos ou anciãos torna muito discutível que o autor esteja resistindo às pressões da catolicização primitiva tanto quanto possível24.

Com as Pastorais a posição é mais clara. Necessito somente me referir ao que foi apresentado anteriormente (§30.1). Note particular­mente como o conceito de ofício já claramente tinha emergido: anciãos, supervisores (bispos) e diáconos são títulos para ofícios bem estabele­cidos (lTm 3.1 - "ao episcopado"). Mais notável ainda são as posições respectivas de Timóteo e Tito. Não são, obviamente, simples emissá­rios de Paulo visitando uma de suas igrejas como seus porta-vozes, com nos tempos passados (ICor 4.17; F1 2.19; lTs 3.2, 6; 2Cor 7.13s;12.18). Ao invés, eles começam a assumir um tanto do papel dos bispos monárquicos, com a autoridade sobre a comunidade e seus membros concentrada em si mesmos: deles é a responsabilidade de preservar a fé pura (lTm 1.3s; 4.6ss, 11-16; etc.),de ordenar a vida e relacionamen­tos da comunidade (lTm 5.1-16 - Timóteo tem a autoridade de arrolar uma viúva ou recusar o arrolamento, aparentemente sem se referir aos outros; lTm 6.2,17; Tt 2.1-10,15 - "com toda autoridade"), de exercitar a disciplina e a não aceitar denúncia pelo menos no caso de anciãos (lTm 5.19ss. - Timóteo é o tribunal de apelo, acima do presbitério), a impor as mãos (lTm 5.22 - uma função já reservada a Timóteo?), e a constituir anciãos (Tt 1.5). Há também um conceito de sucessão apos­tólica começando a emergir - de Paulo para Timóteo para "homens fiéis" para "outros", embora a sucessão ainda não seja concebida em termos formais, de ofício para ofício, não fica claro (2Tm 2.2). Também não está claro se um tipo de sacramentalismo já desponta o: "Fiel é a palavra" de Tt 3.5-7 não é, significativamente, diferente do entendi­mento paulino (primitivo) do batismo (ver acima p. 257ss), embora seja possível que a metáfora de lavados fosse agora igualada com a água do batismo pelo autor. Antes é mais provável que o dito em si sugira des­de outros lugares nas Pastorais que de uma teologia clara da ordena­ção que emergiu com o carisma não mais como uma livre manifestação do Espírito realizada por qualquer membro da igreja, mas o poder do

23 Ver mais em Dunn, Jesus, p. 346s.24 Cf. K. M. F ischer, Tendenz und Absicht des Epheserbriefes, Göttingen 1973, pp. 21-39.

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ofício outorgado pela imposição de mãos (lTm 4.14; 2Tm 1.6.25 Com tal evidência seria difícil negar que as Pastorais já estão à caminho do catolicismo primitivo.

2. Lucas-Atos. A evidência sugerindo tendências católicas primi­tivas em Lucas-Atos, neste ponto, não é difícil de reunir (cf. acima pp. 196s), ainda que haja outro lado da história. Em primeiro lugar está firmemente claro que Lucas tenta retratar o cristianismo primitivo como muito mais unificado do espírito e uniforme na organização do que era de fato.

(a) Considere primeiramente o modo que ele revestiu as mais sérias e profundas divisões entre cristão-judeus centrados em Jerusalém e a crescente missão gentílica. Ele apresenta o cisma inicial entre Hebreus e helenistas como meramente obstáculo administrativo (At 6), enquanto que a rea­lidade era evidentemente mais séria (veja acima §60). A discordância a respeito da circuncisão entre Paulo e Barnabé e alguns homens da Judéia era séria, mas amigável e unanimemente solucionada no concílio de Jerusalém (At 15). Não ficamos sabendo nada em Atos do confronto subseqüente entre Paulo e Pedro em Antioquia (envolvendo: "Alguns homens da parte de Tiago"), que Paulo obviamente considerava com muita seriedade (G12), nem da profunda animosidade entre Paulo e os apóstolos da Palestina em 2Cor 10-13, para não mencionar as violentas explosões de G1 1.6-9, 5.12 e F1 3.2ss. ou de suas causas. Similarmente seu relato da última visita de Paulo (para entregar a coleta) e de modo a desenhar um véu sobre o que foi, provavelmente, a ruptura mais tris­te de todas entre Paulo e a liderança de Jerusalém (ver acima §56). Tudo isso dá peso adicional às observações conhecidas a respeito de Atos desde que foi primeiramente documentado por M. Schneckenburger, Über den Zweck der Apostelgeschichte:26 a saber, o paralelismo entre a ati­vidade de Pedro e de Paulo At 9 cf., particularmente 3.1-10 com 14.8- 10; 5.15 com 19.12; 8.14-24 com 13.6-12; 9.36-41 com 20.9-12); o retrato de Paulo como aquele que cumpriu os requisitos da Lei (note parti­

25 Ver mais em D unn, Jesus, pp. 348s.26 M . S chneckenburger, Über den Zweck der Apostelgeschichte, Bern 1841; resumido

no estudo útil de W. W. G asque, A History of the Criticism of the Acts of the Apos­tles, Tübingen 1975, pp. 34ss. Ver também M attill, "Purpose of Acts" (B ruce Festschrift), pp. 108-22. 1

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cularmente At 16.1-3; 18.18; 20.16; 21.20-26; e cf. 23.6; 24.17; 25.8; 26.5; 28.17), e que mostrou o devido respeito pelos apóstolos de Jerusalém (At 9.27; 15; 16.4; 21.26); e o caráter dos sermões atribuídos a Paulo em Atos que são mais como sermões na primeira metade de Atos e contém pouco daquilo que é caracteristicamente paulino (cf. particularmente At 2.22-40 com 13.26-41). Em tudo isso Lucas, apenas, deu um quadro imparcial e totalmente completo do ocorrido nos episódios e áreas que ele escolheu cobrir. Não é necessário concluir que Lucas inventou tudo ou mesmo muitos desses detalhes; nem necessitamos presumir que o tratamento do próprio Paulo dos assuntos entre ele e a igreja de Jeru­salém sejam inteiramente objetivos e francos. Mas se o tratamento de Paulo é unilateral, assim também o é o de Lucas. No mínimo, Lucas encobriu os ângulos salientes da personalidade e polêmica de Paulo o tanto quanto era necessário para encaixá-lo confortavelmente em re­trato unificado do cristianismo primitivo. Não seria isso um tipo de abafamento católico primitivo sobre as rupturas do séc. I?

(b) Devemos notar como, claramente, Lucas focaliza essa unidade da igreja primitiva em Jerusalém como fonte de inspiração. Seu evangelho começa no Templo e as narrativas da infância Lucanas terminam no Templo (Lc 1-2), assim como o clímax da versão lucana das tentações de Jesus se situam sobre o Templo (Lc 4.9ss.). Mais de um terço desse evangelho é apresentado na estrutura de uma viagem da Galiléia para Jerusalém (Lc 9.51-19.46). E o evangelho termina onde começou com os discípulos que: "Estavam continuamente no Templo louvando a Deus" (Lc 24.53). Mais notável de tudo é o modo que Lucas concentrou todas as aparições da ressurreição em Jerusalém. Por uma simples redação ele omite toda a referência das aparições da ressurreição na Galiléia. Onde em Marcos se lê: "Mas ide dizer aos seus discípulos e a Pedro que ele vos precede na Galiléia. Lá o vereis, como vos tinha dito" (Mc 16.7 com referência a 14.28), em Lucas se lê o contrário "Lembrai-vos de como vos falou, quando ainda estava na Galiléia, é preciso que o Filho do Homem seja entregue nas mãos de pecadores..." (Lc 24.6s., com Mc 14.28, simplesmente, omitido). Evidentemente então, Lucas desejava apresentar Jerusalém como fonte inspiradora do Evangelho, o lugar incontestável do nascimento e Igreja mãe do cristianismo. Assim, não é nenhum acidente que o programa de sua história tenha o Evange­lho saindo de Jerusalém em círculos mais amplos até alcançar Roma (At 1.8; 28.30s.). Nos estágios primitivos ele é capaz de mostrar as

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figuras de ponta em Jerusalém supervisionando os estágios decisivos da missão em desenvolvimento (At 8.14ss; ll .ls s , 22ss.). E, na última parte, onde o foco está exclusivamente sobre Paulo ele alcança seu ob­jetivo ao apresentar Paulo como um visitante regular de Jerusalém e sua missão como uma série de viagens missionárias fora e de volta a Jerusalém (At 9.28; 12.25; 15.2; 18.22 - a igreja de Jerusalém é "a igreja"; 20.16; 21.17).27 Tudo isso é historicamente fundamentado, pelo menos, em parte, porque Paulo reconhecia uma certa primazia de Jerusalém (Rm 15.27). Mas Lucas claramente apresenta sua opinião ao retratar o cristianismo primitivo como um todo unificado com o progresso do Evangelho, desde Jerusalém até Roma, apoiado pelos recursos de uma igreja unida ao redor de Jerusalém e ameaçada de forma séria e du­radoura e por nada - muito mais desse tipo de apresentação se pode esperar de um historiador católico primitivo.

(c) Lucas também concentra seus esforços para focalizar a unidade da Igreja da primeira geração nos Doze apóstolos em Jerusalém e a pintar as igrejas primitivas como uniforme em organização. Como vimos anterior­mente, os Doze e os apóstolos não eram inicialmente o mesmo grupo (pp. 196s), e enquanto a igreja de Jerusalém, evidentemente, reunia-se em torno dos Doze nos primeiros estágios de sua vida (pp. 197s), sua extensão inicial ultrapassa os limites da Palestina e dos gentios, prova­velmente focalizado em torno dos apóstolos, com o "apostolado" reco­nhecido em termos de missão (pp. 196s). Mas Lucas, com efeito, funde esses dois grupos (sobrepostos) e os faz sinônimos - o foco de unidade para toda a Igreja mundial (note particularmente Lc 6.13; At 1.21-26; 2.42s; 4.33; 6.2, 6; 8.14; 9.27; 11.1; 15.22s; 16.4). Isso apresenta dois coro­lários curiosos. Em primeiro lugar, em At 8.1 ele retrata toda a igreja de Jerusalém como se espalhando por toda a Judeia e Samaria (cf. At1.8) - isto é, toda exceto os apóstolos. Ao preservar a continuidade apos­tólica em e com Jerusalém Lucas abandona inteiramente o sentido pri­mitivo de apóstolo = missionário, e retrata os apóstolos em Jerusalém como representantes, ou deveríamos dizer centro institucional de toda a igreja em desenvolvimento. Mais importante, em segundo lugar, ao se utilizar de At 1.21 s. como sua definição de um apóstolo - aquele que acompanhou Jesus desde o início de seu ministério e testemunhou sua

27 Ver mais em G. W. H. L ampe, St Luke and the Church o f Jerusalem, Athlone Press 1969. 1

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ressurreição e ascensão - ele efetivamente exclui Paulo de seu grupo cen­tral de apóstolos, os Doze.28 Provavelmente é pela mesma razão que ele trata a aparição de Jesus a Paulo na estrada de Damasco como, simples­mente, uma visão (especificamente em At 26.19) e, portanto, não como uma (muito tangível) aparição da ressurreição, como àquelas que os apóstolos desfrutaram e que qualificavam o apostolado (cf. particular­mente Lc 24.39). Aqui, novamente, vemos Lucas o defensor de Paulo pouco ansioso em retratar a igreja da primeira geração do cristianismo como unificada e em concordância, porque está ansioso em admitir um dos pontos que o Paulo histórico defendia mais veementemente contra (pelo menos alguns) cristãos judeus (G11.1,15-17; ICor 9.1-6; 15.7-9). Lucas realiza a reconciliação com Jerusalém que evitava Paulo no fim, mas somente por apagar suas diferenças com Jerusalém e por apresentá-lo como alguém com os apóstolos de Jerusalém e subordinado a eles.

O mesmo efeito é realizado na área do governo da igreja - pois ele retrata Paulo como estabelecendo anciãos em todas as igrejas (At 14.23)- um ato e um ofício do qual agora encontramos menção nas cartas paulinas e que contrariam a sua visão de igreja como comunidade ca­rismática (ver acima pp. 197s e §29) - mas um ato e um ofício que fazem das igrejas paulinas concordantes com o padrão de governo de Jerusa­lém desde o início (ver acima pp. 199ss). Note também o uso de super­visores (At 20.28) = anciãos (20.17) - um uso e equação prenunciando a fusão pós-paulina do desenvolvimento de ordem das igrejas paulinas e a forma de Jerusalém de governo de igreja, e de novo implicando um altíssimo grau de uniformidade que era evidentemente o caso (acima §30). De novo, não é necessário concluir que o relato de Lucas é inteira­mente fabricado, visto que a maioria das funções que vieram a se con­centrar nos supervisores e anciãos na situação pós-paulina tem muito, provavelmente, sido cumpridas desde o início por diversos membros (carismaticamente) nas igrejas paulinas. Mas temos que dizer que o relato de Lucas é, no mínimo, anacrônico e envolve o que apropriada­mente pode ser chamado de um catolicismo se ordenando a partir dos

28 Lucas não chama Paulo e Barnabé de "apóstolos" em Atos 14.4, mas somente na "viagem missionária" que foi imediatamente sustentada e diretamente ligada à igreja de Antioquia (At 13.1-3), de modo que "apóstolo", nessas duas passagens, é usado no sentido primitivo de "missionário" = apóstolo de Antioquia, e não carrega o mesmo peso de "apóstolo" quando usado para os Doze em Jerusalém (cf. 2Cor 8.23; F1 2.25).

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sinais antes que formas diversas para um padrão mais uniforme das décadas posteriores (cf. 1 Clemente 42.4).

Uma conclusão bastante relevante emerge de tudo isso - isto é, que o entendimento de F. C. Baur de Atos não estava tão distante da verdade depois de tudo, a despeito de seu relato dogmático hiperbó­lico. O quadro de Lucas do cristianismo primitivo e do papel de Paulo nisso é, antes de tudo, um pouco de um compromisso entre o cristianismo judaico e gentílico, um abrandamento das diferenças e um disfarce das lágri­mas que desfiguravam a roupagem do cristianismo da primeira ge­ração constituindo em uma conveniência que ambos poderiam achar razoavelmente aceitáveis29. O compromisso, contudo, não é tanto entre Paulo e Pedro, como Baur argumenta, como entre Tiago e Paulo, com Pedro, de fato, a figura intermediária a quem ambos estão adaptados (Tiago - ver At 15.13ss.; Paulo - ver acima p. 508)30. Isso não justifica ser designado católico primitivo? Mas ainda há mais a ser dito.

(d) Precisamos nos recordar neste ponto que já temos descrito Lu­cas como um entusiasta (§44.3), e que o catolicismo primitivo tem de ser entendido em parte, pelo menos, como uma reação ao entusiasmo, uma tentativa de: "Construir uma barragem contra o dilúvio de en­tusiasmo"31. O que fazer desse paradoxo surpreendente? O fato é que muito embora de Lucas deseje apresentar o cristianismo primitivo como um todo unificado, ele também deseja apresentar a liberdade soberana do Espírito sobre a igreja. Daí, até mesmo mais que a conclusão dos Doze apóstolos, a missão da Igreja precisa esperar a vinda do Espírito (At 1-2). Até, mesmo mais que os ensinamentos oficiais dos apóstolos, a inspiração profética é enfatizada (pp. 292s). Daí, até mesmo mais que a supervi­

29 "O estudo histórico dos último 100 anos mostraram que os conflitos, tensões, e resoluções descritas por F. C. B aur são imaginários; mostraram que eles per­tencem à datas mais antigas do que aquelas às quais B aur tinha atribuído" (B arrett, "Pauline Controversies", p. 243).

30 Pedro tinha um papel significativo a desempenhar na preservação da unidade do cristianismo primitivo (ver mais abaixo pp. 555ss). Mas se a apresentação aci­ma está absolutamente em bases corretas, torna-se impossível traçar de volta ao catolicismo primitivo, ou em particular, o conceito católico (Romano) da prima­zia de Pedro, apostolado e sucessão apostólica, seja ao começo do cristianismo ou à intenção de Jesus (ver também acima cap. VI; contra tal tese como aquela de P. B atffol, Primitive Catholicism, 5a ed., 1911, ET Longmans 1911, e O. K arrer, Peter anã the Church, ET Herder 1963).

31 K ãsemann , NTQT, p. 22. 1

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são de Jerusalém na missão da igreja, a direção do Espírito e a visão extática recebe mais proeminência (At 1.8; 8.29,39; 10.19; 13.2-4; 16.6s; 19.21; 20.22; e ver acima pp. 192ss). Acima de tudo, é o dom do Espírito que é decisivo para o ingresso no cristianismo, não a aprovação ou ratificação de Jerusalém e dos apóstolos; esses não são opostos para Lucas, é claro (At 8.14-17), mas onde a ênfase principal recai está sufi­cientemente claro no episódio do eunuco Etíope (At 8.38s. - nenhuma ratificação aí), na conversão de Paulo (9.10-19 - Ananias é descrito como um judeu devoto, At 22.12, mas nenhuma tentativa é feita para ligá-lo com Jerusalém ou para representá-lo como um agente de Je­rusalém), em Cornélio e seus amigos (At 10.44-48,11.15-18; 15.7-9) e Apoio (18.25s. - Priscila e Aqüila são tão independentes de Jerusalém como Ananias, e não adicionam nada de fundamental ao cristianismo de Apoio).

Esses episódios também sublinham o ponto porque não há ne­nhum sacramentalismo desenvolvido em Atos. Não há nenhuma depen­dência do Espírito sobre o batismo em Atos 8,10 ou 19; ao contrário a clara mensagem é que o dom do Espírito é a única coisa que vale acima de tudo isso (At 8.12-17; 19.2), e que onde o Espírito já foi dado o ba­tismo serve principalmente como o reconhecimento do ato anterior de Deus e o rito de ingresso na igreja (At 10.44-48)32. O certo é que Lucas fala do Espírito como: "Dado mediante a imposição de mãos dos após­tolos" (At 8.18; cf. 5.12; 14.3; 19.11), mas a conseqüência, uma vez mais, elimina uma interpretação sacramentalista (At 8.19ss.), e em outros lu­gares em Atos a imposição de mãos é um ato inteiramente carismático, o ato espontâneo de identificação e oração pelo dom apropriado da graça (ver particularmente At 3.6s; 6.6; 9.17; 13.3; 19.6; 28.8). A tentati­va de Kàsemann de apoiar essa evidência em conformidade com esse entendimento de Lucas como católico primitivo força completamente a evidência de Atos além da resistência33. Similarmente com sua ten­tativa de argumentar que em Atos a palavra é subordinada à Igreja34. De modo algum! - um tema central de Atos é o livre e vitorioso pro­gresso da palavra de Deus. Não é tanto o caso de a Igreja levar a palavra

32 Ver mais em D unn, Baptism, cap. IX e acima pp. 261ss.33 K àsemann , "The Disciples of John the Baptist in Ephesus" (1952), ET ENTT,

p p. 136-48.34 K àsemann , NTQT, p. 22.

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de Jerusalém até Roma como a palavra levar a igreja até Roma (ver particularmente At 6.7; 12.24; 13.49; 19.20).35

Portanto, eu não vejo razão para aceitar que Lucas é tanto católico primitivo e como de postura entusiástica - contudo o paradoxo é estra­nho. Talvez ele seja capaz de sustentar duas correntes contrastantes juntas porque escreve na situação de uma segunda geração quando o entusiasmo diminuía grandemente e as atitudes católicas primitivas se tornavam mais dominantes. Mas visto que Lucas se recusou a subordi­nar o Espírito ao sacramento, ou a palavra a Igreja, e assim se recusou a retratar o ministério cristão primitivo como um tipo de sacerdócio, por tudo isso ele não pode ser designado como católico primitivo. A descri­ção de Lucas de católico primitivo tem de ser qualificada pela descri­ção de Lucas o entusiástico - e vice-versa. Pode-se argumentar, é claro, que sua apresentação implica em uma restrição do entusiasmo para o passado primitivo idealizado. Mas o fato que ele, ao mesmo tempo em que afasta a esperança da parusia dos primeiros cristãos, sugere prefe­rivelmente que ele desejava retratar o cristianismo primitivo em sua vida e missão como um modelo para a sua própria época. E visto que ele poderia da mesma forma ter facilmente descartado ou ignorado os outros traços entusiásticos do período primitivo, o fato de ele não ter feito assim (pelo contrário - ver acima §44.3) nos leva a concluir que o próprio Lucas era um entusiasta. Resumindo, se concluirmos que as tendências católicas primitivas estavam operantes no escrito de Atos de Lucas, temos também que concluir que seu próprio entusiasmo for­neceu freio eficaz sobre essas tendências.

3. As Pastorais e Lucas-Atos são as únicas candidatas sérias do NT ao título de "católico primitivo" com respeito a crescente institu­cionalização, embora 2 Pedro 1.19-21 possa ser entendida como exe­gese restritiva das Escrituras para um ministério oficial de ensino.36 Mateus e João podem, também, somente ser considerados, somente se devido a ambos falarem em uma passagem da Igreja como universal, a Una Sancta (Mt 16.18; Jo 17.20-23). Mas como vimos, sua eclesiologia

35 V e r ta m b é m C. K . B arrett, Luke the Historian in Recent Study, E p w o rth 1961, e Fortress Facet B o o k 1970, p p . 68, 70-76; H aenchen , Acts, p. 49; H . C onzelmann , " L u k e 's Place in th e Development o f E a rly C h ris tia n ity " , SLA, p . 304.

36 K àsemann , "A p o lo g ia " , ENTT, p p . 187-91.

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ó realmente muito menos institucionalizada, muito mais individualis­ta, do que a das Pastorais (ver acima §§30.3, 31.1), e sua ênfase sobre a Igreja universal é de fato mais próxima de Efésios do que o catolicismo primitivo das Pastorais. Um juízo similar deve ser feito, mutatis mutan- dis, com respeito a 1 Pedro, Hebreus e Apocalipse (ver acima §§30.2, 31.2, 3), e nenhuma impressão pode ser retirada de Judas neste ponto (embora Judas 20ss tenha fortes ecos paulinos). Nem há qualquer sa­cramentalismo evidente nesses escritos. Mateus 28.19, provavelmente, prevê uma cerimônia batismal mais formal, mas não dá nenhuma pista de uma visão sacramentalista de batismo. 1 Pedro 3.21 define o batis­mo como a expressão da fé (não como um canal de graça), e nenhuma outra referência em 1 Pedro (ou Tiago) envolve uma referência ao ba­tismo. Hebreus 10.22 descreve o batismo somente como um lavar do corpo com água pura e assim situa o batismo sobre o mesmo nível das abluções judaicas (também Hb 6.2). E uma passagem como Apocalipse 7.14, dificilmente, refere-se ao batismo (lavados em sangue).37

Em particular, o individualismo de João é mais plausível de ser entendido precisamente como um protesto contra o tipo de correntes institucionalizadoras tão evidentes nas Pastorais (acima pp. 211ss, cf., novamente, Hebreus e Apocalipse - §§31.2,3). Igualmente os Escritos Joaninos parecem, de alguma forma, opor-se ao tipo de sacramentalis­mo que já está, claramente, estabelecido no catolicismo primitivo de Inácio ("A medicina da imortalidade" - Ef 20.2) (ver acima §41). Mais intrigante ainda é o ataque do ancião a Diótrefes em 3 João 9s. Diótrefes claramente estava no controle dessa igreja: não somente era capaz de rejeitar receber os cristãos visitantes, mas também: "Expulsava da igre­ja" àqueles que o enfrentavam. Diótrefes, em outras palavras, estava agindo com a autoridade de um bispo monárquico (cf. Inácio, Ef 6.1; Trai, 7.2; Esm. 8.1s.), e era contra esse luxo para a proeminência e po­der eclesiástico (philoprõteuõn) que "o ancião" escreveu. Em outras pa­lavras, assumindo que 3 João procede do mesmo círculo de 1 e 2 João, é melhor vê-la como a resposta de um tipo de convenção ou assembléia do cristianismo, um pietismo anti-institucional individualista, protes­tando contra a crescente influência do catolicismo primitivo.38

17 Ver D unn, Baptism, caps. XVII-XVIII.M C f. p.ex. vo n Cam penhausen, Autority, pp. 122s; Kummel, Introduction, p. 448; J.

Lieu, The Second and Third Epistles o f John, T. & T. Clark 1986, pp. 162-3; e a tese

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Resumindo, se a crescente institucionalização áo catolicismo primitivo começa a emergir dentro do próprio NT, em parte em Lucas - Atos e mais formidavelmente nas Pastorais, então também um protesto contra o ca­tolicismo primitivo, em parte em Hebreus e Apocalipse, e em parte até mesmo em Atos, mais fortemente no Evangelho de João e as epístolas joaninas, e muito fortemente ainda em 3 João.

§ 73. CRISTALIZAÇAO DA FE EM FORMAS ESTABELECIDAS

Não precisamos nos deter muito nesta área, visto que o cap. IV já cobriu a maior parte, os resultados ali nos conduzem diretamente à questão de que nos ocupamos aqui. E muito claro que havia uma tendência de formular a fé cristã em declarações particulares mais ou menos desde o início {p.ex. Rm 1.3s; 10.9; ICor 15.3ss.; 2Tm 2.8). Mas somos forçados a concluir de nosso estudo do papel da tradição no cristianismo do séc. I que em Paulo e em João o mínimo de tradição não era algo que, posto em palavras, apresentava-se em formas infle­xíveis que eram simplesmente transmitidas do apóstolo para a nova igreja, e do mestre para aprendiz. Para ambos, Paulo e João, a fé era fé viva, a tradição era tradição pneumática, e o ensino era tanto (ou mais) carisma como ofício. Assim, por exemplo, o Evangelho que Pau­lo proclamou aos Gálatas não era simplesmente uma série de formu­lações transmitidas a ele pelos apóstolos de Jerusalém, mas o kerygma interpretado por ele de um modo que causava ofensa a muitos cristãos judeus (embora os apóstolos pilares aceitassem tal interpretação). E em ICor 15 o argumento que ele usa não é, simplesmente, uma repeti­ção simples da tradição acerca da morte e aparições da ressurreição de Jesus, mas uma interpretação daquela tradição que batia de frente contra à interpretação (da m esm a tradição) sustentada pelos coríntios gnósticos (ICor 15.12). Igualmente o Evangelho de João é, dificilmente,

extremada de K àsemann (acima nota 5). Alguns discernem traços "católicos primitivos" nas epístolas joaninas, particularmente, na ênfase sobre a tradição e a verdade; mas ver C. C. B lack, "The Johannine Epistles and the Question of Early Catholicism", Nov Test, 28, 1986, pp. 131-58; S trecker, Johannesbriefe, pp. 351-4. ’

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o depósito literário simples de tradições de Jesus que permaneceram estabelecidas desde o início, mas sua própria re-proclamação inspi­rada, isto é reinterpretação do material tradicional primitivo. Assim como a fórmula com que os docetistas são denunciados em 1 João não é uma tradição original, mas a fé primitiva interpretada e refor­mulada frente aos novos desafios (ver mais acima §§17.1, 18.4, 19.3; também 47.3, 64.3). Assim fica claro, neste ponto pelo menos, que o catolicismo primitivo não possui nenhum ponto de sustentação em Paulo e João, pois a marca do catolicismo primitivo não é simples­mente a estrutura ou a transmissão de tradição, mas a cristalização de tradição em formas estabelecidas, sem a liberdade de reinterpretar e remodelar essas formas também de negá-las ou limitá-las estrita­mente a umas poucas seletas. Onde, então, há evidências no NT de tal atitude para com a tradição?

(a) Vimos acima que uma atitude mais conservadora para com as tradições do judaísmo era uma marca da comunidade primitiva de Jerusalém e, com efeito, do cristianismo judaico em geral (§§16.3, 54.2, 55). Portanto, uma questão óbvia é se qualquer dos escritos mais, ca­racteristicamente, judaicos no NT apresenta traços católicos primiti­vos com respeito à tradição cristã. Nem Tiago, nem Hebreus mostram qualquer sinal real de catolicismo primitivo nesse ponto: a exortação de Hebreus aos seus leitores é para sustentar firmemente sua confissão é o mais próximo disso (Hb 3.1; 4.14; 10.23), e isso é o mais próximo. Mas há, talvez, alguma evidência mais positiva em Mateus. Estou pen­sando, particularmente, aqui de Mt 16.19,18.18,24.35 e 28.20.39 Mateus 24.35 fala da validade atemporal das palavras de Jesus, e, embora o dito seja extraído sem alteração de Marcos 13.31, pode ter sido desti­nado por Mateus a denotar uma fixidez da tradição de Jesus similar àquela da Lei em Mt 5.18. Mateus 28.20 formula a comissão final aos discípulos em termos de: "Fazer discípulos... e ensiná-los a observar tudo o que eu vos ordenei" - com algum contraste ao paralelo mais próximo em Lucas (Lc 24.47). O mais marcante de tudo é o uso da lin­guagem de ligar e desligar em Mt 16.19 e 18.18 - material peculiar a Ma­teus; pois muito, provavelmente, Mateus tem em mente aqui termos técnicos aramaicos para o veredicto de um doutor da Lei que pronuncia

1 Sobre a atitude de Mateus para o entusiasmo carismático, incluindo a inspiração imediata, ver acima pp. 289,31 ls, 375s.

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algum juízo proibido (ligar) ou permitido (desligar), o juízo sendo feito à luz da lei oral40 - sendo a conseqüência que o ensino de Jesus toma o lugar da lei oral.

Por outro lado, já notamos que a própria apresentação de Ma­teus do ensino de Jesus é, em si, um desenvolvimento e interpretação da tradição de Jesus (cf. §§18.1-3), embora, é claro, sempre é possí­vel que ele esperasse que sua representação da tradição - Jesus fos­se determinante e definitiva (daí, talvez, sua apresentação do ensino de Jesus em cinco blocos ecoando o Pentateuco - ver acima p. 374). Vimos também que o próprio Mateus parece ter virado a sua cara contra a tradição oral dos rabis e insistido que os cristãos deviam interpretar a Lei pelo amor. Para Mateus o ensino de Jesus não tinha se tornado parte da Lei, para dividir sua natureza fixa e inviolável, mas forneceu uma ilustração ampliada de como os cristãos deveriam interpretar a Lei pelo amor. E finalmente devemos recordar que para Mateus a autoridade de ligar e desligar não se restringia a Pedro ou a alguma hierarquia eclesiástica, mas era precisamente a prerrogativa de cada membro na comunidade (§30.3). Precisamos concluir, por­tanto, que enquanto há atitudes expressas em Mateus que poderiam se desenvolver em uma visão católica primitiva da fé, o próprio Ma­teus dificilmente se qualifica como um candidato ao título de católico primitivo.

(b) Outra atitude ainda mais conservadora para com a tradição era aquela das Pastorais. E aqui, com efeito, temos a mais forte evidência no NT de uma atitude católica primitiva para com a tradição cristã. Como notamos acima (§17.4), nas Pastorais um corpo coerente de tradição já havia cristalizado em formas estabelecidas e servia como um critério bem definido da ortodoxia: a fé, sã doutrina, aquilo que foi confiado, etc. A possibilidade dessa tradição sendo (radicalmente) remodelada ou moldada em novas formulações em nenhum lugar é prevista, e, com efeito, é quase certamente excluída. O papel da hierarquia da igreja é preservar, segurar e proteger a tradição (lTm 6.14, 20; 2Tm 1.14; Tt1.9), não reinterpretar ou remodelá-la. A profecia, que Paulo sempre ti­nha valorizado muito mais do que o ensino (Rm 12.6; ICor 12.28; 14.1; Ef 4.11), é evidentemente vista pelo autor como pertencendo mais ao passado do que ao presente ou, concebivelmente, tinha sido reduzida

40 D a lm a n , Words, p p . 214s.

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a um elemento formalizado dentro do ritual de ordenação (1 Tm 1.18; 4.1, 14).41 Por qualquer razão, ela não mais se coloca em uma intera­ção dinâmica com a tradição mais antiga, como em Paulo e em João, e a possibilidade de novas revelações que colocariam em questão as formulações estabelecidas do ensino, dificilmente, é imaginada, ou ain­da mais, tais questionamentos já estão condenados como especulações ociosas, assim chamados de conhecimento, controvérsias estúpidas e coisas semelhantes (lTm 1.4; 6.20; Tt 3.9). Até mesmo Paulo é retratado mais como um guardião da tradição do que seu criador, e o Espírito é o preservador da tradição passada antes que como aquele que conduz a uma nova verdade (lTm 1.11; 2Tm 1.12-14; Tt 1.3). Se nas cartas de Paulo o entusiasmo era contido, nas Pastorais é totalmente excluído (iacima §47.2). Catolicismo primitivo de fato!

(c) Em outros lugares no NT a única evidência real do desenvolvi­mento de uma regra de fé católica primitiva procede de Judas, onde o falso ensino não é discutido, mas simplesmente confrontado com as formu­lações da fé estabelecida: "A fé que uma vez por todas foi entregue aos santos" (Jd 3; cf. v. 17)42 - e 2 Pedro, onde novamente vemos o conceito já desenvolvido de um corpo doutrinal autoritativo e claramente definido transmitido a partir dos profetas e apóstolos de uma geração mais antiga (2Pd 1.12; 3.2; cf. 2.2,21; também 3.15s. - Paulo, agora, um pouco inopor­tuno parte de uma tradição sagrada inspirada).

Contudo, não há nenhum sinal real em Atos de uma cristalização similar da fé em formas estabelecidas, a despeito das alegações, mais uma vez, de Kàsemann43. Certamente Lucas apresenta um retrato do ensino (autoritativo) dos apóstolos em Atos 2.42 (cf. 1.21s; 6.2,4), e fala prontamente da fé em 6.7 e 13.8 (cf. 14.22; 16.5); mas dizer que: "Esse princípio de tradição e sucessão legítima percorre como um cordão vermelho através da estrutura de toda a primeira seção de Atos"44 é uma conclusão que força muito a evidência. Há certa fixidez de tra­dição na tríplice repetição de episódios-chave da conversão de Paulo (At 9; 22; 26) e a conversão de Cornélio (10; 11; 15.7-11), assim como as

41 D unn , Jesus, cap. XI, n. 14.42 Discutida por B auckham , Juãe pp. 8-11, que também nota a medida em que

Judas é dependente dos escritos apocalípticos, 1 Enoque e Ass. Moisés.43 K àsemann , "Ministry", ENTT, pp. 89ss; "Ephesians and Acts", SLA, p. 290.44 K àsemann , "Ministry", ENTT, p. 89.

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ênfases repetidas em muitos dos sermões em Atos, provavelmente, indicam o que Lucas considera que deveria ser o caráter e conteú­do central da pregação evangelística em sua própria época45. E em 20.29s aparece a visão típica da ortodoxia de mais tarde (cf. acima pp. 63ss), por que a heresia é um desenvolvimento (por definição) um desenvolvimento pós-apostólico. Ainda, ao mesmo tempo, os sermões não são de nenhum modo estereótipos repetidos: não há nenhum paralelo com o outro em nenhum lugar, cada um tem seus próprios elementos característicos (p.ex. 2.14-21; 10.34-39; 13.16-25), e os discursos de Atos 7 e 17 são muito diferentes de todo o restan­te.46 Similarmente, os três relatos da conversão de Paulo diferem sig­nificativamente nos detalhes. Em nenhum caso podemos realmente falar de Lucas fixando a tradição em formas estabelecidas. Nem há qualquer tentativa de Lucas em retratar uma "sucessão apostólica", ou instrução na fé como uma transmissão de tradição apostólica na maneira sugerida pelas Pastorais, Judas e 2 Pedro - nem mesmo em Atos 20.18-35;47 Lucas l.lss ., certamente não precisa ser interpreta­do assim, e Atos 16.4, o caso mais plausível em questão, é melhor entendido como parte da tentativa de Lucas de mostrar a unidade do cristianismo primitivo e não representa uma catolicização primi­tiva da tradição (ver mais acima pp. 508ss). Uma vez mais, portanto, Atos não preenche o critério que requereria de nós para designá-lo como "católico primitivo". Somente as Pastorais, Judas e 2 Pedro obtém passagem nesse ponto.

45 Cf. S chweizer, "Concerning the Speeches in Acts" (1957), ET SLA, pp. 208-16; e acima §4. Mas também ver S chweizer, Jesus, pp. 147-51.

46 Cf. mais em W. W. G asque, "The Speeches of Acts: D ibelius Reconsidered", New Dimensions in New Testament Study, org., R. N. L ongenecker & M. C. T enney, Zondervan 1974, pp. 247-9.

47 Ver H.-J. M ichel, Die Abschiedsrede des Paulus and die Kirche Apg. 20.17-38, München 1973, pp. 91-7; outra visão H.-F. W eiss, "'Frühkatholizismus' im Neuen Testament?", em J. R ogge & G . S chille, Frühkatholizismus im ökumenischen Gespräch, Berlin 1983, pp. 18-20. O debate mais antigo é habilmente resenhado por E. G rässer, "Acta Forschung seit 1960", ThR, 41,1976, pp. 275-86 (aqui par­ticularmente pp. 281-3). !

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§ 74. CONCLUSÕES

1. Dificilmente se discute que o catolicismo primitivo já poáe ser encontrado no NT, que há tendências evidentes e claras em alguns es­critos do NT que se desenvolveram diretamente no catolicismo de sé­culos posteriores, de que a trajetória do catolicismo primitivo começa dentro do séc. I e alguns documentos do NT recaem firmemente so­bre ele. Os exemplos mais claros são as Pastorais: nelas a esperança da parusia é uma luz fraca de sua expressão mais antiga, nelas a ins­titucionalização já está bem avançada, nelas a fé cristã já se estabelece em formas fixas. A questão se Efésios também deveria ser classifica­da como católica primitiva depende da interpretação de uma ou duas passagens-chave, quer dizer, depende de Efésios ser considerada de origem paulina ou pós-paulina: se paulina, então as passagens são melhores interpretadas como um desenvolvimento do entendimento da igreja não partem significativamente de sua visão da igreja como comunidade carismática; se pós-paulina, então elas podem ser inter­pretadas como um movimento (um movimento relutante? - ver acima p. 507, nota 24) em direção do catolicismo primitivo das Pastorais. O outro exemplo mais claro de catolicismo primitivo dentro do NT é 2 Pedro, em virtude, particularmente, de seu tratamento da parusia e de seu apelo à sagrada tradição da era de fundação do cristianismo que agora ficou no passado. Judas também, provavelmente, qualifica-se somente porque para ele muito da fé já tinha se tornado fixo e esta­belecido - embora haja também evidência em Judas de uma vívida e menos formalizada experiência do Espírito do que seria típico do catolicismo primitivo (Judas 19s.).

O Evangelho de João e 1 a 3 João não deveriam ser consideradas como católicas primitivas. A despeito da evidência de alguma reação contra uma iminente esperança da parusia, esses Escritos Joaninos são melhores compreendidos como uma reação contra o próprio catolicismo primitivo. As Pastorais e o círculo joanino são de fato modos muito contrastantes de abordar o mesmo problema da demora da parusia. Finalmente Lucas-Atos, os documentos mais intrigantes do NT sobre a questão do catolicismo primitivo, são melhor entendidos como uma tentativa de tipo de fusão entre uma perspectiva católica primitiva e o entusiasmo dos primeiros cristãos. Baur estava no caminho certo quan­do viu Atos como uma acomodação entre o cristianismo judaico e o

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gentílico, e tal acomodação é a base da visão católica primitiva da Una Sanct Apostolica. Mas Lucas, evidentemente, estava consciente do ris­co de comprimir o Espírito, de subordiná-lo a uma igreja hierárquica, de confiná-lo dentro de formas definidas e de ritos, e assim escreveu como alguém que desejava ver a igreja de sua época tanto unificada como também aberta ao Espírito - aberta ao Espírito da maneira que os primeiros cristãos haviam sido, unificada da maneira que não haviam sido.

2. Em termos de origem histórica dentro do séc. I, o catolicismo primitivo foi uma arrancada tardia. O cristianismo como vimos acima (§67.3), começou como uma seita apocalíptica entusiástica, sendo que o catolicismo primitivo possui todas as marcas de uma reação subse­qüente diante dos desapontamentos e dos excessos de tal entusiasmo. O catolicismo primitivo é a típica segunda geração solidificando e pa­dronização de formas e esquemas que foram muito mais espontane­amente diversas na primeira geração, de modo que, por exemplo, a institucionalização das Pastorais é a reação pós-paulina ao fracasso da visão paulina de comunidade carismática de fornecer uma estrutura sustentadora de relacionamentos internos e intra-eclesiásticos.

Esse juízo tem de ser qualificado em um aspecto, visto que é claro que a organização da igreja de Jerusalém que se desenvolveu sob Tia­go (ainda na primeira geração), era em muitas maneiras mais propícia ao catolicismo primitivo do que o modelo paulino - particularmente, tão distante do esquema sinagogal de governo e o respeito cristão ju­daico para com a tradição fornecida para uma transição mais fácil para o catolicismo primitivo. E precisamente a fusão do padrão de Jerusa­lém e a forma pós-paulina que constitui algumas das evidências claras do catolicismo primitivo em Atos e nas Pastorais (At 14.23; 20.17, 29- ver acima p. 511; lTm 3.1-7; 5.17,19; Tt 1.5, 7ss.). Sendo assim, então a visão disso por Harnack e H eitmüller mencionados acima (pp. 484ss), é digna de nota por que se alguma coisa mais de catolicismo primitivo esta enraizada mais no conservantismo do cristianismo judaico do que no sincre­tismo do cristianismo helenístico48.

48 Cf. W . W iefel, "Frühkatholizismus und synagogales Erbe", em J. R ogge &G. S chille, org., Frühkatholizismus im ökumenischen Gespräch, Berlin 1983, pp. 52-61.

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3. O catolicismo primitivo não foi a única trajetória ou forma de cristia­nismo a emergir do séc. I. É algo que se tornou dominante nas últimas décadas, mas na virada do século já não era tão dominante. E se o ju­ízo fosse somente nos termos do NT não haveria nada a sugerir por­que poderia se tornar a expressão normativa do cristianismo. Infeliz­mente, contudo, as alternativas principais, no fim do séc. I, não foram tão bem constituídas para fornecer um padrão de vida eclesiástica que se sustentaria. O cristianismo apocalíptico, quase por definição, é incapaz de sobreviver mais que uma geração; a falha da esperan­ça da parusia, se não destruiu a fé que a comportava, resultaria, em muitos casos, em uma reação de algum tipo de catolicismo primitivo; o fim iminente é, dificilmente, uma tradição que se transmitiria de uma geração à outra, mas pode ser somente renascer como algo in­teiramente novo nas gerações sucessivas49. Tanto para o cristianismo judaico como para cristianismo helenístico, o catolicismo primitivo pode ser entendido, precisamente, como aquela acomodação entre os dois que absorveu os elementos mais sustentadores de ambos e que deixou aos cristãos dos sécs. II e III uma escolha entre a largueza do solo médio agora ocupado pelo catolicismo primitivo ou as al­ternativas radicais do ebionismo e gnosticismo cristão. A alternativa joanina ao catolicismo primitivo prosperou de fato após uma moda, mas (no Ocidente) somente como confinada a uma tradição mística dentro do cristianismo, ou comprimida às margens do cristianismo para emergir esporadicamente como a assembléia ou acampamento de protesto contra o autoritarismo da grande Igreja. E a tentativa de Atos de fornecer um último equilíbrio entre a visão católica primitiva da Una Sancta e o entusiasmo dos inícios do cristianismo também fracassou, visto que os intérpretes subseqüentes, procurando por um modelo eclesiástico, comumente, falharam em reconhecer o equilí­brio Lucano e foram cativados de um lado pelo seu catolicismo pri­mitivo (a tradição católica de interpretação) ou de outro lado pelo seu entusiasmo (a tradição pentecostal de interpretação). Portanto, foi por isso que o catolicismo primitivo se tornou gradativamente, a trajetória dominante quando o cristianismo ao se mover pelos sécs.II e III, torna-se de fato o rota de fuga da ortodoxia, de modo que o

49 Como foi demonstrado no séc. XX pelas sucessivas ondas de pentecostalismo primitivo, "Última Chuva", neo-pentecostalismo, e o movimento carismático.

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preço que Paulo teve de pagar a fim de ser incluído dentro do cânon foi sua adaptação a essa norma (veja acima §63.4).

4. Uma questão intrigante surge de tudo isso: se, a partir da pers­pectiva das origens cristãs, o catolicismo primitivo poderia ser consi­derado capaz de expressão herética? O cristianismo judaico, o cristianis­mo helenístico, o cristianismo apocalíptico foram todos amplamente reconhecidos por terem tendências dentro deles que quando não ve­rificadas conduziam à heresia (ebionismo, gnosticismo, montanismo). Quer dizer, foi amplamente reconhecido que havia elementos em cada um que poderiam ser super-enfatizados e serem a causa do todo se tornar inaceitavelmente desequilibrado. Não teria sido melhor se as tendências equivalentes tivessem sido (mais amplamente) reconheci­das como presentes dentro do catolicismo primitivo? Não seria por­que entre aqueles que, eventualmente, deixaram a reivindicação mais efetiva para o título de ortodoxo existisse bem pouco reconhecimento que o catolicismo pudesse se tornar similarmente torto? Em particu­lar, um reconhecimento bem pequeno de quão essencial uma esperan­ça escatológica viva é para um cristianismo vivo50, da importância de sustentar a tensão escatológica, e bem pouco reconhecimento de que a vida eclesiástica e a organização da igreja poderiam ser gravemen­te super-estruturadas, o Espírito contido no ofício e no ritual; muito pouco reconhecimento de que a fé poderia ser reduzida a fórmulas e reprimida dentro de formas definidas, não apenas cristalizadas, mas petrificadas. Lucas e João, ambos, emitiram advertências contra tais desenvolvimentos, mas foram amplamente ignorados. Subseqüente­mente, os únicos protestos realmente efetivos, pelo menos no cristia­nismo ocidental, foram encontrados no monasticismo, no surgimen­to das ordens e na Reforma. Talvez, então, a tragédia do catolicismo primitivo fosse o seu fracasso em perceber que a maior heresia de to­das é a insistência que há somente uma única obediência eclesiástica, somente uma única ortodoxia.

"Profecia e expectativa iminente se pertencem mutuamente" (U . B. M üller, Prophetie und Prediat im Neuen Testameht, Güttersloh 1975, p. 238).

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A AUTORIDADE DO NOVO TESTAMENTO

§ 75. SUMÁRIO

1. A tarefa a qual nos propomos desde o começo deste livro era investigar a unidade e a diversidade do cristianismo do séc. I e de seu deposito literário, o Novo Testamento. Penso que se pode dizer com justiça que descobrimos que há um elemento unificador e, razoavelmente, claro que desde o início marcou o cristianismo como algo característico e diferente e forneceram o centro integrador para as diversas expres­sões de cristianismo. Esse elemento unificador era a unidade entre o Jesus histórico e o Cristo exaltado, quer dizer, a convicção de que o pregador carismático itinerante de Nazaré havia ministrado, morrido e ressuscitado dos mortos para reconciliar, finalmente, Deus com os seres humanos, o reconhecimento de que o poder divino por meio do qual eles agora adoravam e foram encontrados e aceitos por Deus era aquela e a mesma pessoa, Jesus, o homem, o Cristo, o Filho de Deus,o Senhor, o Espírito doador da vida. Se olharmos para a proclamação das primeiras igrejas, ao seu formulário confessional, ao papel da tra­dição ou o seu uso do AT, aos seus conceitos de ministério, sua prá­tica de adoração, seu desenvolvimento sacramental, sua experiência espiritual - a resposta aparece consistentemente, mais ou menos, nos mesmos termos: o ponto focal de coesão era Jesus, o homem, aquele que foi exaltado. Mesmo quando examinamos mais profundamente a área mais difícil de todas - a relação entre a mensagem de Jesus e as mensagens dos primeiros cristãos - a mesma resposta começou a emergir: a continuidade entre Jesus o homem e Jesus o exaltado não era, simplesmente, presumida ou relida como uma idéia teológica post

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eventum, mas estava enraizada no próprio entendimento de Jesus de sua relação com Deus, com seus discípulos e com o reino de Deus. De modo que há um elemento unificador fundamental perpassando o cristianismo primitivo e o NT sem dúvida, e que esse estrato unifica­dor é o próprio Jesus.

O que dizer a respeito de outros elementos unificadores? Nos vários estágios de nossa pesquisa notamos diversos desses traços que seriam (ou deveriam ser) comuns a todas ou à maioria das comunida­des cristãs do séc. I. Em particular, os diversos kerygmata requeriam a mesma fé e faziam as mesmas promessas (perdão, salvação, Espírito) (iacima pp. 97ss); o cristianismo do séc. I era uniformemente monote- ísta (acima pp. 129s); tradições kerygmáticas e de Jesus seriam solici­tadas como uma propriedade comum (acima pp. 158ss); as escrituras judaicas forneciam uma base comum para todos os crentes do séc. I (acima pp. 163s); o sentido de que o cristianismo é a continuação e o cumprimento escatológico de Israel, o povo de Deus, está espalhado dentro do NT (acima p. 215, nota 26); todos os cristãos praticavam o batismo em o nome de Jesus e se uniam nas refeições comuns que se transformou na ceia do Senhor (acima p. 280); a experiência do Es­pírito era uma marca sine qua non de pertencer a Cristo (pp. 313s); o amor ao próximo é, regularmente, o critério de conduta que agrada a Deus desde Jesus até 1 João (pp. 395, 452); e todos os cristãos do séc. I aguardavam a parusia de Cristo embora com graus variados de fervor (pp. 484s). Seria muito possível se valer de algum destes (ou mais) e fazer disso o foco unificador central do cristianismo do séc.I e dos escritos do NT - por exemplo, a história da salvação1 sobre a fé ou auto-entendimento da fé (ver acima p. 67), ou sobre o amor ao próximo2. Mas, de fato, repetidamente o elemento unificador nesses outros traços do cristianismo primitivo se estreita de volta ao Cristo; aquilo que realmente distingue o cristianismo de seus rivais do séc. I é Jesus o homem e exaltado, o Cristo crucificado e ressurreto demar­cando o centro e a circunferência. A fé requerida pelos kerygmatas é a fé em Cristo, a promessa sustentada, com efeito, é a promessa da graça

1 Ex., A. M. H unter, The Unity o f the New Testament, SCM Press 1943.2 Cf. H. B raun, "The Problem of a New Testament Theology" (1961), ET em The

Bultmann School o f Biblical Interpretation: New Directions, J. M. R obinson , et a i , JThC, 1, 1965, pp. 169-83.

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mediante Cristo. O que distingue o monoteísmo cristão do monoteísmo judaico é a convicção cristã de que o único Deus deve ser reconhe­cido como o Pai de nosso Senhor Jesus cristo. As tradições kerygmáticas e de Jesus são unificadoras precisamente porque o foco está em Jesus, sobre a significância de sua morte, ressurreição e sobre as palavras do Jesus terreno que continua a expressar a mente do Senhor exaltado. Além disso, nenhum Kerygma fornecia base comum sobre o qual o conteúdo completo era válido, nenhuma confissão servia como um estandarte que todos agitavam com igual fervor, e mesmo a tradição de Jesus não era interpretada uniformemente por de todo o espectro do cristianismo do séc. I. O AT cristão é algo mais que a Bíblia judai­ca, pelo simples fato de que o AT cristão é a Bíblia judaica interpretada à luz da revelação do evento Cristo; e aqui há muito da aplicação do mesmo princípio hermenêutico mostrado no evento para diversas in­terpretações de passagens particulares. O conceito cristão de história da salvação é distinto do conceito judaico em sua convicção de que o propósito de Deus par Israel tem seu clímax em Jesus e que a totalida­de presente e futura desse propósito gira em torno de Jesus - Cristo o ponto médio do tempo, a parusia de Cristo o fim do tempo. Assim também, os gentios podem ser incluídos dentro do povo de Deus so­mente ao se considerarem herdeiros das promessas de Deus em Cristo e por ele. Além disso, a própria fortificação exterior dessa convicção resultou em muitos conceitos e práticas diferentes e práticas missio­nárias, ministério e adoração. Como para os sacramentos, eles são uma força para a unidade, precisamente, porque focalizam a unidade e continuidade do Senhor que agora encontramos em Jesus de Nazaré, o cru­cificado e ressuscitado. Além disso, a maneira em que eles fazem isso e capacitam o encontro é uma matéria de contínuo debate. Em parti­cular, embora comer o pão e beber o vinho seja comum a todos a for­ma que esse comer e beber tomava estava se desenvolvendo durante o período (assim, também as palavras que os acompanhavam), então, novamente, o fator unificador realmente, não era tanto uma forma ou fórmula, mas o reconhecimento de que nessas palavras e ações a fé comum em Jesus, o homem e o exaltado, vinham à expressão e eram fortalecidas. A experiência do Espírito era somente uma força para a unidade quando o espírito em questão poderia ser reconhecido precisamente como o Espírito de Jesus; além dessas atitudes para com a experiência religiosa e entusiasmo rapidamente diversificavam.

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E a motivação e prática cristãs do amor ao próximo são distintivas em sua convicção de que esse amor em nenhum lugar era tão claramente enunciado ou incorporado como em Jesus, que esse amor é capacita­do no presente, precisamente pelo Espírito do mesmo Jesus. A unidade dos escritos do NT então não é simplesmente a fé, mas a fé em Cristo, não o simples auto-entendimento da fé, mas esse auto-entendimento que se mede pela cruz e pela ressurreição do Cristo e que recebe e entende a experiência da graça precisamente como mediada por esse Cristo, a graça de nosso Senhor Jesus Cristo.

Resumindo, nosso estudo mostrou a extensão surpreendente em que os diferentes fatores unificadores do cristianismo no séc. I continuamente focalizam em Cristo, na unidade entre Jesus o homem e Jesus o exaltado. E ademais, quando perguntamos o que ambos unificam e demarcam a caracterização do cristianismo do séc. I, o elemento unificador estrei- ta-se continuamente em Cristo somente. Tão logo nos movamos para, além disso, tão logo comecemos a tentar a preenchê-lo pela palavra ou prática, a diversidade rapidamente se torna tão proeminente quanto a unidade. Quanto mais tentamos adicionar a isso, em mais discor­dância e controvérsia nos encontramos. Então, em uma análise final, a unidade do cristianismo do séc. I focaliza (com freqüência, exclusiva­mente) sobre Jesus, o homem agora exaltado, o Cristo crucificado, mas ressurreto.

2. Nosso estudo também nos forçou a reconhecer um grau de acentuada diversidade dentro do cristianismo do séc. I. Não podemos mais duvidar que haja muitas expressões diferentes de cristianismo dentro do NT. Nenhuma forma de cristianismo no séc. I consistia simplesmente e somente do elemento unificador esboçado acima. Em situações e meio-ambientes diferentes esse elemento era entre­laçado em padrões mais complexos, e quando comparamos esses padrões achamos que de modo algum eles complementavam um ao outro; ao contrário, raramente não coincidiam, algumas vezes acir- radamente. Posto de outro modo, a mesma fé em Jesus, o homem e o exaltado, vinha à expressão em palavras em uma variedade de indivíduos e circunstâncias diferentes. Inevitavelmente, as formas de linguagem, mesmo quando moldadas principalmente por essa fé, eram moldadas também, em parte, por cada experiência indivi­dual distinta e pelas circunstâncias em relação às quais as palavras

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foram estruturadas ou repetidas. E assim, as formas de linguagem oram diferentes, frequentemente, tão diferente que as palavras de um crente poderiam não servir como veículo para a fé de outro, ou mesmo para ele ou ela em diferentes circunstâncias. E não rara­mente as diferenças eram tão salientes que provocavam desacordos, disputas e até mesmo algum conflito. Esse era o quadro do qual emergiu muitas e muitas vezes, de nosso estudo; quer olhemos para a linguagem da fé na proclamação, confissão, tradição, adoração ou quer nós prefiramos nos voltar para as atitudes e ações de fé expres­sas no ministério, na adoração ou no sacramento. Assim, se estamos convencidos da unidade do cristianismo do séc. I, não estamos me­nos convencidos de sua diversidade.

Deveríamos também nos recordar de quão diversa a unidade pro­vou ser. Quando comparamos o elemento unificador com as alega­ções de outras religiões e seitas contemporâneas as diferenças entre elas são claras e indiscutíveis. Mas quando comparamos o padrão elaborado, o cristianismo como realmente era dentro de seus dife­rentes contextos históricos do séc. I com o seu contexto cultural, então temos que confessar que as margens se tornam apagadas, não há esboço que concorde claramente, a ser discernido. O cristianismo judaico primitivo não era tão diferente do judaísmo do qual ele pro­cedia; o cristianismo judaico do qual ouvimos nas cartas de Paulo estava, evidentemente, ansioso por permanecer tão proximamente ligado ao judaísmo o quanto fosse possível; e a maioria dos escri­tos cristão-judaicos do NT mostra a mesma preocupação em manter a continuidade com a religião da lei e evitar aquela ruptura que apresentaria o cristianismo como algo inteiramente distinto. Assim também quando olhamos da diversidade para os avanços do cris­tianismo helenístico o mesmo quadro emergiu - as igrejas da mis­são gentílica, com freqüência, muito variadas, sujeitas às pressões gnosticizantes dentro e com nenhuma margem clara (batismo não obstante) delimitando suas crenças e práticas religiosas daquelas dos cultos sincréticos do entorno. Não somente isso, mas figuras- chave como Paulo e João estavam abertos aos modos de apresentar sua fé em Jesus o homem agora exaltado, que pareciam aos outros arriscarem a distinção dessa fé. Quer dizer, mesmo quando olhamos para os escritos do NT, para a margem (melhor: às margens) entreo cristianismo aceitável e seus competidores ela(s) não é fácil de ser

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traçada, nem é(são) clara(s) ou constante(s). O elemento unificador permanece característico, mas o mais que fosse elaborado o menos característico parecia ter sido. Não somente isso, mas ao comparar­mos o cristianismo judaico com o cristianismo helenístico vemos que a diversidade também significava desacordo, que o mais pró­ximo que traçamos da margem apagada de cada um em seu meio- ambiente mais longe cada um está do outro, e mais saliente o desa­cordo se torna. Como para o cristianismo entusiástico e cristianismo apocalíptico, eles quase por definição são impossíveis de se manter dentro das fronteiras fixadas, visto que grandes ondas de devoção e excitação, quase inevitavelmente, os conduziam a um excesso ou outro, mesmo enquanto sustentando firmemente o centro unifica­dor. Por outro lado, o catolicismo primitivo certamente começava a delinear fronteiras mais e firmes e mais claras, para definir a fé mais precisamente e salvaguardar sua ministração, e que já antes do séc.I se encerrar estavam delineadas. Mas até onde o próprio cristianis­mo do séc. I está preocupado e até onde o NT está preocupado, o catolicismo primitivo era somente uma parte da diversidade do que era o cristianismo do séc. I, que é o NT.

Portanto, precisamos concluir que não havia nenhuma forma nor­mativa de cristianismo no séc. I. Quando perguntamos a respeito do cristianismo do NT não estamos perguntando a respeito de uma única entidade; antes encontramos diferentes tipos de cristianismo, cada um do quais via outros como muito extremos em um aspecto ou outro - muito conservadoramente judaico ou muito influenciado pelo pensamento e prática antinomistas ou gnósticas, muito entu­siásticas ou tendendo para muito mais institucionalização. Não só isso, mas cada tipo de cristianismo não era em si monocromático e homogêneo, ante mais como um espectro. Mesmo quando olhamos para as igrejas individuais o quadro era o mesmo - de diversidade em expressão de fé e estilo de vida, de tensão entre conservadores e liberais, antigo e novo, passado e presente, indivíduo e comuni­dade.

Resumindo, se o elemento unificador distintivo que percorre o NT e o cristianismo do séc. I é estreito, a diversidade dos arredores é ampla e suas margens externas nem sempre facilmente discerníveis. Uma unidade que é identificável; mas não ortodoxa, seja em conceito ou realidade. .

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§ 76 O CÂNON POSSUI UMA FUNÇÃO CONTÍNUA?

Um assunto crucial emerge de tudo isso - o assunto do cânon do MT. Em vista desse quadro, claramente contrastante (unidade mínima c uma ampla gama de diversidade), qual é o valor do cânon? Visto que o MT não é uma coleção homogênea de escritos perfeitamente comple­mentares, podemos de algum modo falar de os ensinos do NT sobre isto ou aquilo? Esta frase: "o NT diz" significa mais do que se falar do fator unificador central? Não devemos antes falar em termos de o ensino de "Jesus", "Paulo diz"3, e assim por diante? Visto que os escritos do NT não falam com uma voz unívoca, onde isso deixa a autoridade do NT? A ortodoxia dos séculos posteriores tentou ler em retrospecto a tradição católica, a ordem e a liturgia nos inícios do cristianismo; a res­posta sectária foi a de perseguir a visão de pureza imaculada da Igreja primitiva antes da queda pós-apostólica. O NT não justifica nenhuma conveniência, mas dá testemunho de uma diversidade e discordância dentro do cristianismo mais ou menos desde o começo. Desse modo, como o NT funciona como um "cânon", como um critério para ortodo­xia, como uma norma para os cristãos das futuras gerações?4 Essas são questões que requerem uma discussão muito mais completa do que é apropriada aqui. Tudo o que posso traçar é um número de pontos que realçam a relevância do presente estudo para uma discussão mais completa. Na virada do século eu refletia mais sobre esses pontos e incluí essas reflexões posteriores no que se segue5.

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3 Minha recente monografia, A Teologia do Apóstolo Paulo, ÍPaulus 2003], foi criti­cada por tentar apresentar uma voz composta de Paulo a partir de suas cartas, ainda que eu prefira falar da teologia de Paulo no tempo em que ele escreveu sua carta à Roma, com os elementos de sua mais completa teologia não tratada em Romanos preenchida de outras cartas suas.

4 Cf. H. K õester, "GNOMAI DIAPHOROI: The Origin and Nature of Diversifica­tion in the History of Early Christianity", em J. M. R obinson & H. K õester, Trajec­tories through Early Christianity, Fortress 1971, pp. 114-57; "O termo canônico per­de sua relevância normativa quando os próprios livros do NT emergem como uma coleção deliberada de escritos representando várias convicções divergentes que não são facilmente reconciliadas umas com as outras" (p. 115).

5 Em "Has the Canon a Continuing Function?", em I. M . M cD onald & J. A. S anders, orgs., The Canon Debate, Hendrickson 2002, pp. 558-79, sugeri que "as reflexões posteriores" deveriam ser consideradas como "um tipo de revisão de um livro

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1. Um cânon dentro do cânon. Precisamos observar primeiramente o fato histórico de que nenhuma igreja ou grupo cristão tratam os escri­tos do NT como uniformemente canônicos. Seja qual for a teoria e a te­ologia de canonicidade, a realidade é que todos os cristãos trabalham com um cânon dentro do cânon. Quem usa seu NT reconhecerá que algumas páginas são mais escuras pelas marcas dos seus dedos do que outras (como em muitos sermões com muitas pessoas no banco ao ouvir Hb 7 em contraste com Mt 5-7 ou At 2 e ICor 13?). Sem dúvida, todos os cris­tãos operam sobre o princípio de interpretar passagens obscuras por meio de passagens mais claras; mas, com certeza, uma passagem que dá um sentido claro a outra é precisamente a passagem mais obscura, e vice versa. Deveríamos nos lembrar que isso inclui os próprios cristãos do séc. I que se utilizavam das passagens das Escrituras (AT) que fala­vam mais claramente à sua fé e experiência com Deus mediante Jesus Cristo para interpretar outras que forneciam a base para o judaísmo emergente (veja acima §24).

E quase uma simplificação dizer que (até recentemente) o cânon efetivo do NT para a eclesiologia católica romana era a passagem de Mateus 16.17-19 e as das Epístolas Pastorais6. O cânon para a teolo­gia protestante têm sido claramente as cartas (mais antigas) de Paulo (para muitos luteranos, com efeito, "a justificação pela fé" é o cânon real dentro do cânon7). A ortodoxia oriental e a tradição mística, dentro do cristianismo ocidental, poderiam extrair sua principal inspiração no NT dos escritos joaninos. Enquanto o pentecostalismo procura sua autenticação em Atos dos apóstolos. Ou de novo, o cânon para o pro-

escrita, primeiramente, quase um quarto de século atrás! Trata-se de um truque retórico, se você gosta, certamente, para provocar o interesse do leitor e possi­velmente até persuadi-lo, seja da visão antiga, ou preferivelmente, de seu refina­mento crítico" (p. 558).

6 Cf. H. K üng , The Church, 1967, ET Burns & Oastes 1968, p. 179.7 Ver p.ex., I. L ônning, "Kanon im Kanon", Oslo 1972, p. 272; S. S chulz, Die Mitte

áer Schrift, Stuttgart 1976, pp. 429ss; E. K àsemann , Das Neue Testament ais Kanon, Gõttingen 1970, p. 405. Mas K àsemann continua: "Toda cristologia que não está orientada para a justificação da impiedade, desvia-se do Nazareno e de sua cruz. Toda proclamação da justificação que não permanece ancorada cristologicamen- te e continuamente retrocede ao Senhorio de Jesus Cristo e acaba em uma antro­pologia ou eclesiologia, ou possivelmente em doutrina religiosa que pode ser legitimadas de outras maneiras" (p. 405). Ver também A. S tock, Einheit des Neuen Testaments, Zürich, 1969, pp. 20ss. 1

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lestantismo liberal do séc. XIX era (o assim chamado) Jesus histórico, enquanto que após a Primeira Guerra Mundial o foco de autoridade para muitos teólogos cristãos se tornou "o Kerygma", enquanto mais recentemente, outros procuraram orientar-se em relação ao "testemu­nho apostólico"8. Talvez mais impressionante de tudo, precisamos nos recordar que desde que o catolicismo primitivo era somente uma das correntes dentro do NT, consequentemente a própria ortodoxia está ba­seada sobre um cânon dentro do cânon, em que a ausência da clareza de um Paulo ou de um João (cf. 2Pd 3.15s.) tem sido interpretada em con­formidade com essa única corrente (cf. acima, particularmente §63.4).

Goste-se ou não, todos os cristãos operaram e continuam a ope­rar com um cânon dentro do cânon do NT. Visto que o NT, de fato, exibe tal diversidade do cristianismo do séc. I isso não poderia ser di­ferente. É inevitável que alguém ache Paulo mais agradável, enquan­to outro se esquiva de Paulo e se descontraia com João, ainda que um outro fique perplexo com ambos pela clareza do sermão do monte, a simplicidade de Atos, pela ordem das Pastorais ou fique fascinado com o Apocalipse de João que cativou a muitos durante a história do cristianismo. O reconhecimento da realidade de que de fato se ope­ra com um cânon dentro do cânon não deveria causar embaraço ou vergonha; é, simplesmente, o meio de aceitar que os cristãos não são de nenhum modo diferentes em sua diversidade desde seus compa­nheiros crentes do séc. I.

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8 W. M arxsen , The New Testament as the Church's Book, 1966, ET Fortress 1972. " O foco do cânon... somente pode ser as tradições primitivas das testemunhas cris­tãs acessíveis a nós pela análise histórico-crítica desses escritos. Especificamente o cânon da igreja...precisa agora ser estabelecido na forma em que os críticos, geralmente falam, como estrato primitivo da tradição sinótica, ou o que M arxsen em particular se refere como 'o Kerygma-Jesus'" (S. M. O gden, "The Authority of Scripture for Theology", Interpretation, 30,1976, p. 258; isso se torna a base her­menêutica da obra de O gden, The Point o f Christology, SCM Press 1982). A mesma lógica fornece um tipo de escora para o empreendimento neo-liberal do Jesus Seminar, como ilustrado por R. W. F unk, Honest to Jesus, HarperSanFrancisco 1996, e de G. L üdemann , The Great Deception and What Jesus Really Said and Did, SCM Press 1998, ainda que em cada caso falar do "cânon" estaria distante de seu pensamento. Tenho sugerido que os primeiros cristãos, com efeito, usavam de um certo "cânon" deles ao determinar o que apropriadamente pertencia à tradi­ção de Jesus, isto é, ao julgar se um pronunciamento profético era uma palavra de Jesus (exaltado) ou não (ver acima, p. 107, nota 8).

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Então, garantido que cada cristão opera com um cânon diferente dentro do cânon, não há nenhum único cânon dentro do cânon que deveria servir com a norma para todos (como o Jesus histórico para os protestantes liberais e "a justificação pela fé" para muitos Luteranos)? Garantida a diversidade do NT, a unidade dentro do NT não se oferece como o cânon dentro do cânon? Nosso estudo indicaria uma respos­ta afirmativa, Jesus Cristo. A fé em comum no Jesus-o-homem-agora- exaltado era o foco consistente da unidade por toda a Parte I, e na ParteII percebemos que essa fé nuclear servia não somente como o centro da unidade, mas também para marcar a circunferência da diversidade aceitável.

Certamente, se o NT serve a alguma utilidade para os cristãos atu­ais, nada menos que esse cânon dentro do cânon faria. O cristianismo come­ça e finalmente depende da convicção de que em Jesus ainda teremos um paradigma para nossa relação com Deus e para com os outro, que na vida, morte e vida que vem da morte de Jesus veremos a encorpora- ção mais clara e mais completa da graça divina, da sabedoria criativa e do poder, que sempre realiza a atualidade histórica, de que os cristãos são aceitos por Deus e capacitados a amar a Deus e ao seu próximo por essa mesma graça, que agora reconhecemos ter o caráter daquele mes­mo Jesus. Essa convicção (nessas palavras ou em outras alternativas)9 pareceria aceitável ser o mínimo irredutível sem o que o cristianismo perde qualquer definição distintiva e se torna um pote vazio no qual as pessoas enchem com qualquer significado que escolher. Mas ao re­querer alguma elaboração particular disso como a norma, ao insistir que alguma asserção posterior ou uma forma particular de palavras também seja fundamental, seria mover-se além do cânon unificador

' Cf. p.ex., Lutero: "O próprio critério pelo qual achamos o que pode estar errado com todos os livros é que eles tratam de Cristo. Seja quem for, se não tocar em Cristo não é apostólico, seja o que Pedro ou o que Paulo ensine. Por outro lado, quem quer que seja que pregar a Cristo, essa é apostólico, mesmo que isso seja feito por alguém como Judas, Anás, Pilatos ou Herodes" (Prefácio a Tiago [1522], citado por W. G. K ümmel, Introdução to the New Testament, 1973, ET SCM Press1975, p. 505); J. D enney, Jesus and the Gospel, Hodder & Stoughton, 1908, 4a ed., 1911,sugere que a confissão: "Eu creio em Deus por meio de Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor e Salvador" pode "salvaguardar tudo o que é vital para o Novo Testamento Cristão... incluindo tudo o que deve ter um lugar em uma confissão fundamental de fé, e ... [proporciona] a única base de união sufi­cientemente plena e sólida para todo cristão se encontrar nela.

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tl entro do cânon, erigir um cânon somente sobre um ou dois elementos dentro do NT e não mais sobre o amplo consenso dos escritos do NT como um todo. Seria cismático antes que unificador. Traçar a circun­ferência da diversidade aceitável longe mais estreitamente do que os escritos canônicos se justificam10.

Em suma, o cânon do NT ainda tem uma função contínua no que o NT em toda a sua diversidade ainda dá testemunho consistente ao centro unificador. Sua unidade canoniza Jeus-o-homem-agora-exaltado como o cânon dentro do cânon. Sua diversidade nos previne de insistir em um cânon mais amplo ou diferente dentro do cânon (ver mais abaixo, §76.5).

Reflexão adicional. O crítico perspicaz notará uma leve mas signifi­cativa mudança na formulação proposta do "cânon dentro do cânon"- de "Jesus-o-homem-agora-exaltado" para a formulação mais elabo­rada do penúltimo parágrafo. A mudança foi de um foco cristológico somente em termos da vida, morte e ressurreição de Jesus, para uma que também inclui a encarnação - de uma cristologia focada na sexta- feira da paixão e Páscoa, para uma que também inclui o natal dentro do foco. O mais antigo, o foco mais estreito refletia minha própria per­cepção mais antiga de onde o ímpeto inicial e ponto fulcral devem ser achados na teologia cristã primitiva. Mas estou feliz de ter até mesmo reconhecido a necessidade de ampliar a formulação intracânon, pois então vista a importância da encarnação como um elemento funda­mental dentro da teologia cristã, e já dentro do NT, se tornou firme­mente mais clara para mim11.

A questão é que enquanto a sexta-feira da paixão e a Páscoa são os momentos definitivos para a soteriologia cristã o Natal é o momento definitivo para a teologia cristã (teologia no sentido mais estrito de en­tendimento de Deus). A doutrina cristã da encarnação principia do dis­cernimento de que Jesus nos mostra com o que Deus é semelhante; ou em termos mais fortes, que Deus se revelou em Jesus por meio dele de um modo final tanto quanto é possível em carne humana. "Definitivo"

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11 Foi a formulação mais completa que forneceu o ponto de partida para minha Christology in the Making, SCM Press 1980, 2a ed., 1989, sucessora imediata do Unidade e Diversidade no Novo Testamento (Christology, p. 6).

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quer dizer "normativo" quer dizer "canônico". Há alguma tensão entre os dois momentos cristológicos (natal; sexta-feira da paixão e Páscoa).12 Mas essa tensão é a coisa básica do teologizar cristão. Guar­dar o equilíbrio apropriado entre eles é difícil (os ortodoxos possuem a tendência de por mais peso no primeiro; os protestantes sobre o segundo). Mas o melhor é experimentar a dificuldade de sustentar o equilíbrio do que perder completamente o equilíbrio. E a totalidade do evento Cristo que é o cânon dentro do cânon, o ponto de referên­cia fundamental para ambos os traços característicos e distintivos do cristianismo.

A importância da inclusão do momento da encarnação é que abrange a implicação de continuidade - continuidade com a própria he­rança cultural e religiosa de Jesus (Jesus o judeu, não apenas Jesus o Messias), e a continuidade com a criação (Jesus, a Sabedoria de Deus). Uma ênfase demasiada sobre o momento da sexta-feira da paixão e Páscoa sobrecarrega o elemento de descontinuidade entre Jesus e os primeiros cristãos por um lado e sua herança judaica por outro. Isso começa um longo percurso que passa por Marcião e conduz eventu­almente a Auschwitz. Nos últimos 50 anos se tornou cada vez mais importante para eu reconhecer que o cristianismo não pode entender a si mesmo apropriadamente sem compreender a de si mesmo em termos de herança judaica, em algum sentido como parte de Israel (a partir do modelo da oliveira de Rm 11.12-24)13. Similarmente, demasiada ênfase sobre o momento da sexta-feira da Paixão e Páscoa insere uma des­continuidade muito grande entre salvação e criação, quase como se a nova criação apagasse a velha criação (o interesse pela antiga criação) completamente. Esse caminho levou ao gnosticismo, aos extremos da apocalíptica, ao fanatismo milenarista, e a atual indisposição da irres­ponsabilidade ecológica. Acima de tudo, é a continuidade entre Jesus e Deus que está em pauta. Sem essa continuidade (expressa particular­mente em termos da Palavra de Deus e do Filho de Deus) o cristianis­mo perde, ou perde sua característica mais fundamental.

12 Uso o termo "momento" para significar tanto um evento no tempo (mais que um "momento" no sentido temporal, é claro) e sua importância ("do grande momento", "crucial").

13 Ver meu "Two Covenant or One? The Interdependence of Jewish and Chrisitian Identity", em H . C ancik et ah, orgs., Geschichte - Tradition - Reflexion, III Frühes Christentum, M. H engel FS, Mohr-Siebeck’1996, pp. 97-122.

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Resumindo, o evento Cristo em sua totalidade é o cânon dentro do cânon do cristianismo, simplesmente, porque sem ele o cristianis­mo perde seu direito à existência, perde sua definição central, perde seu único fator de identidade sine qua non.

2. Unidade na diversidade. O cânon do NT também tem uma função contínua em que ele reconhece a validade da diversidade; canoniza expres­sões muito diferentes de cristianismo. Como E rnst Kàsemann indicou em uma preleção já citada (ver acima p. 215s), que deu ao pensamento ecumênico uma enorme sacudida em plena metade do século do ecu­menismo:

O cânon do N ovo Testamento não constitui, com o tal, a fun­dação da unidade da igreja. Ao contrário, com o tal (isto é, em sua acessibilidade ao historiador) fornece a base para multiplicidade das confissões14.

Em outras palavras o cânon é importante não apenas porque ca­noniza a unidade do cristianismo, mas também porque canoniza a di­versidade do cristianismo - não somente o liberalismo de Jesus, mas também o conservadorismo dos primeiros cristãos de Jerusalém, não somente a sofisticação teológica de Paulo, mas também o entusiasmo acrítico de Lucas, não somente a institucionalização das Pastorais, mas também o individualismo de João15. Posto de outra maneira: a despeito do ebionismo, a carta de Tiago conquistou um lugar no cânon; a des­peito de Marcião, as cartas de Paulo foram aceitas como canônicas; a despeito do Montanismo, o livro do Apocalipse recebeu status canô­nico.

Se tomarmos o cânon do NT seriamente, portanto, precisamos tomar seriamente a diversidade do cristianismo. Não precisamos nos esforçar por uma unidade artificial - uma unidade baseada em nosso próprio cânon particular dentro do cânon, ou em uma malha intrica­da de tradições, esperando de algum modo encantar os outros a se

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14 E. K äsemann , "The New Testament Canon and the Unity of the Church", 1951, Essays on New Testament Themes, SCM Press 1964, p. 103. Em Kanon ele aponta mais claramente ainda: O cânon: "Legitimiza como tal mais ou menos todas as seitas e falsos ensinos" (p. 402).

15 São todos resumos das nossas pesquisas em Unidade e Diversidade no NT.

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alinhar, seja ao reivindicar um monopólio do Espírito ou pelos expe­dientes de chantagem eclesiástica. Nunca haverá tal unidade que ver­dadeiramente reivindique estar radicada no NT. A unidade da grande Igreja nos primeiros séculos se era devida mais a fatores sociais do que discernimentos teológicos e podia ser justificada teologicamente só por ignorar ou suprimir expressões alternativas, mas igualmente válidas de cristianismo (válidas em termos das diversas formas de cris­tianismo preservadas no NT). Tal ortodoxia é geralmente a pior heresia de todas, visto que sua rigidez estreita e exclusividade intolerante são mais uma negação do amor de Deus em Cristo.

Reconhecer o cânon do NT é afirmar a diversidade do cristianismo. Não podemos reivindicar aceitar a autoridade do NT a menos que este­jamos desejando aceitar como válida toda forma de cristianismo que pode, justificadamente, reivindicar estar radicada em um dos elemen­tos que fazem o NT. Posto de outro modo considerar com seriedade renovada o famoso preceito de Peter M eiderlin, citado tão freqüente­mente nos círculos ecumênicos:

No essencial, unidade;No não-essencial, liberdade;Em todas as coisas, caridade16.

Se as conclusões deste estudo são seguras, o único caminho que podemos levar o preceito de Meiderlen seriamente é por reconhecer quão poucos são os essenciais e quão ampla precisa ser a esfera de liber­dade aceitável. Precisamos reconhecer que o paradigma de Romanos 14 do fraco e forte, conservador e liberal, a que aludimos acima (p. 161), é de aplicação bem maior do que meramente a assuntos de conduta e tradição. Isso quer dizer que precisamos reconhecer que outras rei­vindicações teológicas e formas eclesiásticas que encorporam a fé uni­ficadora em Jesus o homem agora exaltado, ou que verdadeiramente brotam da diversidade do NT, são expressões autênticas e válidas do cristianismo, mesmo quando elas cruzam e conflitam com algumas das reivindicações e formas valorizadas que também derivamos do NT. Conservadores que querem traçar linhas firmes de doutrina e prática

16 R . R o u s e & S. C. N e i l l , A History of the Ecumenical Movement 1517-1948, SPCK 1954,2a ed., 1967, p. 82. >

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fora do centro de acordo com sua interpretação particular da tradição do NT, e liberais que querem acomodar tudo ao núcleo central, ambos precisam aprender a se aceitarem mutuamente "em Cristo", precisam aprender a respeitar a vida e a fé do outro como expressões válidas de cristianismo, precisam aprender a acolher a atitude e estilo do ou­tro como sustentação da diversidade viva da fé. O conservador não precisa condenar o liberal, simplesmente porque este não se conforma com o seu cânon particular dentro do cânon. E os liberais não precisam desprezar os conservadores simplesmente porque estes tendem a con­siderar algumas coisas não-essenciais entre aquilo que é essencial para eles próprios (cf. Rm 14.3). Se o "cânon" deve permanecer significativo precisa ser o cânon todo do NT; cada um precisa evitar confundir sua própria interpretação pessoal do NT com o próprio NT, de confundir seu próprio cânon dentro do cânon com o próprio cânon17. Há corolá­rios óbvios que se segue de tudo isso para o nosso entendimento da unidade visível da Igreja; mas explorá-los aqui seria ir além do próprio escopo deste estudo.

Resumindo, aqueles que aceitam a autoridade do NT não podem pedir menos que o próprio cânon unificador do NT dentro do cânon como a base para a unidade; mas nem podemos pedir mais sem fracas­sar em respeitar a diversidade canônica do cristianismo.18

Rejlexão adicional. Frente ao todo estou feliz com que escrevi nesta seção. Foi significativo sacudir os leitores de qualquer complacência a respeito do assunto - e evidentemente alcançar o êxito em muitos ca­sos. Essa reputação eu desfrutei anteriormente por causa da segurança evangélica ser amplamente criticada aqui. Então poderia acrescentar que o declínio naquelas opiniões foi mais que compensado por aqueles que acharam o tema aqui (ou o livro como um todo) libertador em um sentido espiritual maduro.

O amplo tratamento não foi intencionado para exigir uma recon­sideração das controvérsias cristológicas da Igreja antiga; mais sobre

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17 "Não se pode fazer o cânon no cânon para o cânon" (L õnning, Kanon, p. 271).18 Cf. K àsemann , " I s the Gospel Objective?", Essays on New Testament Themes:

"Aqueles que buscam sustentar a identificação do Evangelho com o cânon estão aceitando a Cristandade em detrimento do sincretismo, ou, de outra ala, em detrimento do conflito inútil entre as confissões" (p. 57).

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isso em §76.3 mais abaixo. Foi muito mais direcionado para as discus­sões ecumênicas do séc. XX. Um dos deleites dos últimos 20 anos foi a medida que Unidade e Diversidade no Novo Testamento, foi reconhecido como uma contribuição positiva para o debate ecumênico19. E no mes­mo espírito eu desejaria reforçar a importância dos pontos apresenta­dos no §76.2 para o mais amplo ecumenismo que é sempre necessário- não simplesmente entre as denominações e expressões tradicionais do cristianismo, mas também para as expressões de cristianismo que surgiram e florescem fora das denominações tradicionais: organiza­ções para-eclesiásticas, igrejas domésticas, igrejas independentes afri­canas, e assim por diante. Se Atos dos Apóstolos ensina algo é que a igreja precisa seguir o Espírito, não esperar o Espírito seguir a Igreja.

No período após a publicação de Unidade e Diversidade no Novo Testamento (Ia edição) achei que essa concepção de Paulo do corpo de Cristo e de Romanos 14 (Rm 14.1-15.6) são textos poderosamente ecu­mênicos. O corpo de Cristo (como exposto em ICor 12) é o modelo es- criturístico de unidade na diversidade, para relações entre igrejas bem como dentro das igrejas. E o conselho de Paulo aos fracos e fortes/con­servadores e liberais em Romanos 14 possui um valor incessante que muito poucos têm percebido em suas relações e discordâncias intra- e inter-igreja20.

3. Os limites da diversidade aceitável. O NT também funciona como cânon porquanto demarca os limites da diversidade aceitável. Como já foi notado nos capítulos sobre o "cristianismo judaico" e "cristianismo he­lenístico" (cap. XI e XII respectivamente), mesmo dentro do séc. I havia aqueles que reconheciam que nem todas as expressões de cristianismo deviam ser aceitas como igualmente válidas. Já dentro dos próprios es­critos do NT os limites de cristianismo judaico e cristianismo helenísti­co estavam sendo traçados: Jesus era mais que um profeta; a realidade

19 Dando surgimento, por exemplo, ao meu "'Instruments of Koinonia' in the Early Church", One in Christ, 25,1989, pp. 204-16.

20 Volto-me, repetidamente, a essas passagens em subseqüentes preleções; ver p.ex. "Unity and Diversity in the Church: A New Testament Perspective", Gregorianum, 71, 1990, pp. 629-56 (reimpresso abaixo pp. 561-590); "Liberty and Community", Christian Liberty: A New Testament Perspective, Paternoster Press/ Eerdmans 1993, cap. 4; "Living with fundamental disagreements", Theology of Paul, pp. 680-9. '

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de sua morte era central, não apenas o seu ensino (§§58.2, 65.2). Assim também, o caráter e limites do apocalipsismo cristão eram definidos (§69.2); ainda que, deve-se notar, e lamentar, que o catolicismo primiti­vo também não fora visto como capaz de representar uma expressão herética (exagerada) (§74.4). O critério que vimos nesses capítulos foi basicamente duplo: a diversidade que abandona a unidade da fé em Jesus o homem agora exaltado é inaceitável; a diversidade que aban­dona a unidade do amor fraternal é inaceitável. Em outras palavras, onde a convicção tem deixado que a adoração a Deus deixe de ser de­terminada por Jesus de Nazaré e por sua ressurreição, agora mediante Jesus, então essa diversidade foi longe demais. Ou quando na adora­ção descarta que o Jesus exaltado não é o mesmo em continuidade com Jesus o homem, aí a diversidade foi longe demais. Ou, mais uma vez, onde a diversidade significa uma ruptura no amor para com aqueles que também invocam o nome desse Jesus, aí também a diversidade foi longe demais. O centro também determina a circunferência.

Assim, o NT não somente mostra quão diverso era o cristianismo do séc. I, mas também onde essa diversidade perde sua sustentação em relação ao centro. Pode-se dizer nesse caso que o NT funciona como cânon ao definir tanto a largura como as fronteiras do termo cristão. Com certeza, aceitar o NT como cânon não é, simplesmente, um assun­to de restrição do adjetivo cristão somente para o próprio cristianismo testemunhado pelo NT (ver também mais adiante §76.4). Mas isso quer dizer que quaisquer requerentes ao título cristão que não demonstrem sua dependência substancial sobre e em continuidade com o NT (em sua unidade bem como em sua diversidade) desse modo perde seu direito a tal reivindicação.

Que tais juízos (acerca da diversidade aceitável e inaceitável) não fossem ligeiramente ou facilmente encontrados podem, talvez ser indi­cados, por exemplo, pela dificuldade pela qual tanto Tiago e Hebreus, bem como em um modo diferente Paulo e João, experimentaram para alcançar a canonicidade. Isso quer dizer que, a grande Igreja, cons­cientemente, desenhando as linhas da ortodoxia mais estritamente não estava inteiramente confortável precisamente com aqueles escritos que exploravam as fronteiras do cristianismo e traçavam-se em limites em um tempo quando as margens estavam muito mais para uma terra de ninguém. Com efeito, continuamos a explorar esse duplo critério de aceitação da diversidade aceitável e a dificuldade de sua aplicação nos

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três parágrafos seguintes - a interação entre a unidade e a diversidade da fé em Jesus nos §76.4 e 76.5, e a interação entre a diversidade e a unidade do amor em §76.6.

Reflexão adicional. Um tema insuficientemente tratado em Unidade e Diversidade no Novo Testamento foi aquele do próprio cânon do NT. Isto é, por que apenas estes escritos? Visto que o estudo tinha tomado os parâmetros do NT como este é agora, como foram medidos para sua discussão, não foi uma questão que precisasse ou tivesse ocasião de apresentar. A lógica foi direta: se este é o NT, e se o NT conta como cânon, o que vem em seguida com respeito a função canônica do NT? As questões levantadas, mesmo dessa questão limitada me pareciam suficientemente desafiadoras em si próprias sem entrar em questões posteriores do que e do porquê do cânon.

Foi uma pena, visto que a questão da legitimidade e limites do cânon havia sido colocada claramente à erudição do séc. XX pela pers­pectiva da história das religiões por W illiam W rede, àqueles a quem me referi no começo do livro21. E desde então, particularmente a obra de H elmut Kõester não permite a erudição do séc. XX fugir dessa ques­tão22. O tema se torna mais premente agora que já foi. Pois, na antiga discussão sempre se poderia reivindicar que a marca da canonicidade era a precocidade: o NT consiste mais ou menos de todos os documen­tos cristãos existentes desde o séc. I. Mas agora a reivindicação propos­ta com veemência por Kõester e outros, de que há outros evangelhos e formas de tradição muito antiga fora do cânon, que teriam igual peso para os evangelhos canônicos - notadamente, o Evangelho de Tomé23. Isso é um desafio que não se deve evitar.

Eu levanto o assunto agora, simplesmente, porque me parece queo conceito de cânon e sua função como desenvolvido neste livro for­nece alguma resposta a tal desafio. Minha questão é dupla. Primei­ra, se os resultados deste livro estão no caminho certo, então se segue que o evangelho a respeito de Jesus, o enviado de Deus, que morreu e

21 W . W rede, "The Task na Methods of 'New Testament Theology'", 1897, ET em R. M organ , The Nature of New Testament Theology, S C M Press 1973, pp. 68-116.

22 Ver, particularmente, H. K õester, Ancient Christian Gospels, SCM Press/TPI 1990.

23 Assim p.ex.. R. W . F unk, et al., The Five Gbspels, Macmillan/Polebridge 1993.

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ressuscitou para a nossa salvação, era mais ou menos canônico desde o começo. Isso definiu e identificou a nova seita dos Nazarenos; deu forma canônica para as expressões escritas da nova fé, incluindo, no mínimo, os evangelhos. Mas isso também determinou, mais ou menos desde o princípio, o que era menos adequado como expressões desse evangelho. Be houve um documento Q, contendo somente ditos, então ele foi va­lorizado como uma coleção de ensinos de Jesus entre as igrejas cristãs, ninda que não fosse uma alternativa ao Evangelho. O argumento con­cebido desse modo, de que havia uma comunidade de Q, que conhecia somente essa forma de ensino de Jesus e nada do evangelho da sex­ta-feira da paixão e Páscoa, ou até mesmo fosse hostil a isso, é uma hipótese erudita que confunde a especulação com o fato e diferença com antítese. Tudo que sabemos com alguma segurança é (a) que o único modo que Q foi conservado foi dentro do quadro do Evangelho direcionado para a paixão conforme o Evangelho de Marcos; e (b) que0 material do tipo Q foi subseqüentemente, utilizado por aqueles que viram sua forma de cristianismo como uma alternativa à canonicidade que apresentava Jesus (o Evangelho de Tomé). Nada há além da imagi­nação erudita e do artifício para demonstrar que a diversidade do séc.1 se estendia muito mais do que é indicada pelos próprios escritos do NT. E se houve grupos mais radicais do que os discípulos de Atos 19.1-7, ou os espirituais de ICor 1-4, dizem, então o que isso significa é que já nos anos iniciais do Evangelho considerando a vida, morte e ressur­reição de Jesus já estava operando para demonstrar a inadequação de tais apresentações, os limites da diversidade aceitável. O que seria se Q fosse escavada das areias do Egito? Não teria de ser incluída dentro do cânon do NT? Não! Absolutamente não! A decisão já fora tomada dentro do séc. I em que Q não seria conservado como tal, mas somente como incorporado dentro da forma do Evangelho como encontramos em Mateus e Lucas. Nada disso foi descoberto desde então, isto é, nada além de algo infundado e reconstruções especulativas, que requerem de nós considerar essa decisão.

Segunda, não devemos nos esquecer da dinâmica do processo do cânon24. Algumas vezes, ainda é presumido ou implicado que os es­

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24 Eu refleti mais a esse respeito, particularmente em "Levels fo Canonical Author­ity", Horizons in Biblical theology, 4a ed., 1982, pp. 13-60; reimpresso em meu The Living Word, SCM Press/Fortress 1987, pp. 141-74,186-92.

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critos do NT não funcionam como cânon até que a Igreja os declarasse canônicos. Isso, simplesmente, é um modo inadequado de conceber o cânon, ou como eu diria, uma manifestação da forma herética de catolicismo primitivo cujos riscos não foram adequadamente percebi­dos. Antes temos que reconhecer que havia vários escritos que tanto impressionaram seus primeiros leitores/ouvintes como criadores de igrejas e sustentadores de igrejas, de modo que eles foram fundado­res pelos receptores, re-lidos, ponderados e disseminados mais am­plamente. Algo disso já é insinuado nas cartas de Paulo. Em outras palavras, eles exerciam uma influência moldada e definida (uma au­toridade canônica) desde o começo. Nem tudo que foi escrito por um líder cristão no séc. I se tornou canônico; algumas das cartas de Paulo, por exemplo, não foram conservadas; Q não foi conservado como Q. O fato de que os escritos do NT foram preservados é em si mesmo um testemunho de autoridade canônica de facto que eles exerciam mais ou menos desde o início. Resumindo, o cânon do NT não foi tão decretado como reconhecido. Os escritos do NT foram chamados de canônicos em reconhecimento da autoridade que já haviam exercido desde o come­ço e em amplos círculos desde então. Não é a igreja que determina o Evangelho, mas o Evangelho que determina a igreja.

4. Em desenvolvimento. O cânon do NT também canoniza o desen­volvimento da fé e prática cristãs, tanto a necessidade da fé em Jesus o homem agora exaltado para trazer formas novas a situações novas, como o modo em que o NT testemunha que Cristo tem continuamente de ser chamado a interação com o mundo mutável no qual a fé precisa viver. O NT mostra o cristianismo sempre tendo uma diversidade viva e em desenvolvimento e fornece algum tipo de norma para o processo contínuo de interpretação reinterpretação.

A necessidade de desenvolvimento é clara. Por exemplo, o falar da fé em Jesus como o Cristo tinha de ser suplementada em outras cir­cunstâncias, de fato superada, pela confissão de Jesus como o Filho de Deus; enquanto que ainda, em outras circunstâncias, era a (nova) confissão que Jesus Cristo veio em carne que se tornaria a expressão vital da fé viva (veja acima p. 136). Novamente, aqueles que moldaram os hinos utilizados em Filipenses e Colossenses, etc., evidentemente, acharam isso importante e necessário para desenvolver uma expressão de adoração que falasse significativamente nas formas de linguagem

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e pensamento da especulação contemporânea (cap. VII). Mais tarde pareceria que o cristianismo judaico, que fracassou em ser canonizado pelo NT, foi precisamente essa forma de cristianismo que fracassou em se desenvolver25. Ou posto em outros termos, foram somente as cristologias mais desenvolvidas de Mateus e Hebreus que contrariavam a cristologia mais primitiva conservada pelos ebionitas; assim como foi a confissão mais desenvolvida de 1 João de que Jesus Cristo veio em car­ne que contestou as interpretações que eram extraídas das confissões mais ambíguas de Filho de Deus. O fato é que nenhum documento do NT como tal preserva ou incorpora o cristianismo como realmente foi desde o início; antes, cada um mostra o cristianismo como um lugar di­ferente e em um tempo diferente, e conseqüentemente, em uma forma diferente e desenvolvida.

Quanto ao "como” de tal desenvolvimento, dois pontos de escla­recimento são necessários. Ao falar aqui de desenvolvimento, eu não penso a respeito dos desenvolvimentos dentro do NT como uma linha reta, de um desenvolvimento brotando de outro, da idéia de N ewman de desenvolvimento evolucionário, pelo qual os de desenvolvimentos doutrinais podem ser justificados como um crescimento orgânico dos brotos do NT26. Não argumento, por exemplo, que a cristologia joanina da pré-existência do Filho é simplesmente uma maior apreensão do que havia sido sempre verdade, a feitura explícita do que sempre es­teve implícito nas formulações mais antigas (ou que o Trinitarianismo ortodoxo dos Concílios foi o desvelar progressivo inevitável do que sempre havia sido integral ao todo da teologia do NT)27. Isso seria fa­zer de João, ou uma doutrina particular da revelação, ou formulação doutrinal particular o cânon efetivo dentro do cânon, antes que deri­vando da exegese histórica-crítica (como acima §76.1). Pois se o cânon é o NT como tal, então porque as expressões mais antigas, menos de­senvolvidas, da fé igualmente não seriam normativas, normativas em sua incerteza ou involuntariedade ou recusa em ir na direção que João seguiu tão ousadamente? Argumentar que somente um desenvolvi-

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25 Referência ao cap. XI, incluindo uma das mais provocativas conclusões a emergir do estudo: "Uma das heresias mais antigas era o conservadorismo" (p. 390ss).

2<' J. H. N ewman, Essay on the Development o f Christian Doctrine, 1845, Penguin 1974.

17 Ver a reflexão adicional abaixo.

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mento dentro do NT é canônico é fracassar em reconhecer a diversida­de do desenvolvimento dentro do NT. Com efeito, argumentar que so­mente um desenvolvimento dentro do NT é canônico é de fato negar a canonicidade ao NT (onde a eliminação de elementos inaceitáveis para a ortodoxia posterior está longe de ser completa) e realmente troca a autoridade canônica para a interpretação da grande Igreja dos Escri­tos do NT do séc. II em diante - não mais um cânon dentro do cânon, mas um cânon fora do cânon. No quadro do NT cada desenvolvimento é menos igual ao outro como outra etapa do desenvolvimento, e mais como outro raio de uma esfera (ou esferóide), formado pela imediata interação entre o centro unificador e a circunferência móvel. Alterna­tivamente, os diversos desenvolvimentos do NT são algo como uma série de ramos (com certeza entrelaçados) crescendo do tronco do cen­tro unificador, com nada no próprio NT para justificar a reivindicação de que somente o ramo do catolicismo primitivo se tornaria a principal (de longe menos normativo) linha de crescimento.

O segundo esclarecimento é que o NT funciona como cânon na­quele ponto em que nos exibe o como do desenvolvimento, mas não a razão dele. Se o cânon do NT não sustenta a única legitimação de somente um dos desenvolvimentos subseqüentes (ortodoxia católica), também não se restringe a legitimação somente aos desenvolvimentos que estão realmente consagrados dentro de suas páginas. Não deve­mos absolutizar as formas particulares que o cristianismo assimilou nos documentos do NT; não devemos fazer do NT uma "lei dos Medos e Persas". O NT como cânon demonstra quanto do centro unificador da fé cristã veio à expressão variada nas diversas circunstâncias do séc. I; não dita qual expressão da fé cristã deveria ser em toda e cada circunstância.

O quanto de desenvolvimento pode ser caracterizado como a inte­ração entre a minha ou a fé da igreja no Jesus do NT e minha percepção ou uma percepção da igreja dos diversos desafios e necessidades que confrontam essa fé quando procura a expressão contemporânea; ou mais sintético ainda, como um diálogo entre o evento Cristo histórico e o Espírito presente. O cristianismo não pode ser cristianismo a não ser que sobreviva e expresse em sua vida diária a tensão criativa entre legado passado histórico de sua era fundadora e a vitalidade do Espí­rito presente. O mais que creiamos que o Espírito de Deus inspirou os escritos do NT, para dizer a palavra de Deus às pessoas dos anos 60,

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70, 80 ou 90 do séc. I d.C., reinterpretando a fé e o estilo de vida diver­samente para as circunstâncias diversas, o quanto mais a da aceitação do cânon do NT requer de nós a abertura ao Espírito para reinterpretar em modos similares ou equivalentes no séc. XXI.

Conseqüentemente, aceitar o NT como cânon significa pelejar com questões como estas: se Mateus é canônico, aquele que foi tão lon­ge quanto ele ao apresentar a atitude de Jesus para com a Lei de modo conservador, o que a canonicidade de Mateus tem a dizer com referên­cia àqueles que permanecem num diálogo próximo com suas próprias tradições particulares? Se João é canônico, aquele que foi tão longe quanto ele em diálogo aberto com o (proto-) gnosticismo emergente, o que a canonicidade João tem a dizer concernente àqueles que buscam dialogar com ideologias equivalentes e filosofias (quase) religiosas do séc. XXI? Se o Apocalipse de João é canônico e a escatologia apocalíp­tica conservada como parte do cristianismo do NT, mesmo quando a parusia já se tornou muito demorada, o que têm a dizer acerca do caráter e forma da esperança cristã no séc. XXI? Se as Pastorais são canônicas, e nos evidencia o catolicismo primitivo já dentro do séc. I, o que isso quer dizer acerca da necessidade para a forma e estrutura na comunidade, acerca do desejável e inevitável de uma institucionali­zação e conservadorismo crescentes na estrutura da igreja e liderança comunitária? Talvez eu deva sublinhar o ponto de que por diálogo eu queira dizer diálogo - nenhum dos lados ditando ao outro, passado ao presente, ou presente ao passado, mas uma interação crítica entre o NT com todos os seus expoentes do séc. I, e eu, e as igrejas com todos os nossos expoentes do séc. XXI - utilizando todas as ferramentas da exegese histórica-crítica para nos capacitar a ouvir as palavras dos es­critos do NT como foram ouvidas pelos seus primeiros leitores, para captar o sentido completo intencionado pelos escritores, mas sempre com os ouvidos atentos para a inesperada Palavra de Deus mediante o testemunho do NT desafiando nossas pressuposições e percepções do séc. XXI28.

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1 Ver mais em meu Living Word. Cf. K àsemann , "Canon", Essays: "O cânon não é a palavra de Deus tout simple. Pode somente se tornar e ser a Palavra de Deus assim quando não procuramos aprisionar Deus dentro dela; pois seria fazê-la um substituto para Deus que se dirige a nós e faz reivindicações sobre nós... O Espírito não contradiz o: "Está escrito...", mas se manifesta na Escritura. Mas a própria Escritura pode em algum momento se tornar "a letra" e de fato é as-

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Reflexão adicional. Na revisão de 1990 eu já lamentei como havia me expressado no terceiro parágrafo de §76.4. Pois como indiquei na nova nota 44 do cap. X (pp. 353s), minha apreciação da sutileza e so­fisticação das fórmulas trinitárias clássicas haviam aumentado como minha absorção do que estava em jogo na teologia da encarnação. E quando confrontado com o dever de casa de um modelo evolucionário do desenvolvimento cristológico, como oferecido por meu antigo co­lega de Nottingham, Maurice Casey, eu me encontrei retornando mais para o modelo de crescimento orgânico de N ewman29. Creio que, o que continua válido nas preocupações, então expressas antes, inadequada­mente, possa ser reafirmado de dois modos.

Primeiro, precisamos reconhecer a particularidade e limitações históricas das formulações dos credos que buscam restringir o signi­ficado do evento Cristo. Com certeza, tanto o próprio evento Cristo como as descrições canônicas partilham o mesmo caráter (particula­ridade e limitação históricas). Retornaremos a isso mais abaixo (§76.5). Aqui a questão é que há uma tendência para absolutizar as fórmulas dos crçdos, como se não fosse suficiente fazer sua reivindicação teoló­gica, mas também tão definitiva de modo que nenhuma saída ou va­riação a partir delas pudesse ser permitida. Se o biblicismo resulta em uma forma de bibliolatria, então o confessionalismo resulta em uma forma de idolátria ao credo. Em cada caso é importante reconhecer a inadequação da linguagem humana para expressar a realidade do divino. Se as palavras do NT ou dos credos são melhores vistas como ícones, isto é, como janelas para o divino, então é importante não fa­zer do ícone um ídolo. Se nenhuma palavra é adequada para a tarefa, isso inclui palavras particulares utilizadas nas fórmulas de fé do NT e

sim tão logo cesse de se submeter à autorização do Espírito e se coloque acima como Autoridade imediata, buscando substituir o Espírito. A tensão entre Espí­rito e Escritura é constitutiva..." (pp. 105-6). Veja também NTQT, pp. 8s; Kanon, pp. 407ss.

29 Veja qual é o efeito de minha retratação das implicações do terceiro parágrafo de §76.4 em "The Making of Christology: Evolution or Unfolding?", em J. B. G reen & M. T urner, eds., Jesus o f Nazareth, Lord and Christ: Essays on the His- torical Jesus and New Testament Christology, I. H. M arshall FS, Eerdmans 1994, pp. 437-52, reimpresso em meu The Christ and the Spirit: Vol. I, Christology, Eerdmans 1998, pp. 338-404, que se refere, por sua vez, a apresentação à Segun­da Edição de Christology in the Making, reimpresso em The Christ and the Spirit, vol. I, aí pp. 291-3.

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nlém. Em cada caso há uma realidade que está expressando inadequa­damente, a Palavra dentro das palavras e por meio delas. Isso não quer dizer (e aqui está a correção que eu quero fazer em minhas formulações iniciais) que qualquer uma, ou muitas formulações alternativas pode­riam provar ser adequadas ou tão duradouras quanto o NT clássico ou as fórmulas confessionais. Ao contrário, como com o cânon, esses modos de falar de Deus e do Cristo têm se provado ser os mais adequa­dos e duradouros para o cristianismo, e que constitui uma larga parte de sua autoridade. Mas eles são duráveis e fidedignas como a melhor aproximação da realidade divina que somos capazes de expressar com palavras. Eles não são a coisa em si! Somente quando aprendemos a reconhecer a particularidade e provisoriedade históricas de tais decla­rações seremos capazes a avaliá-las apropriadamente.

Eu tentei expressar uma boa parte disso na conclusão do cap. II sobre Kerygma ou Kerygmata? E preferivelmente desejei fazer mais dessas conclusões na Conclusão geral (cap. XV). Em forma de re­sumo, as questões que resultaram foram (1) que o Kerygma central nunca é encontrado como tal no NT, mas (2) somente nas formas ex­pandidas quando as diferentes situações de particularidades tratadas se faziam necessárias, isto é, (3) nas diferentes formas em que as di­ferentes situações se faziam necessárias, e (4) que as diferenças eram integrantes para as proclamações nas situações diferentes e paralelas. Disso, eu conclui que qualquer tentativa de encontrar um único, e definitivo Kerygma unificador (e pode adicionar, o credo) está fadada ao fracasso. Pois situações concretas sempre pedem expressões mais completas, e é na completude das expressões que a diversidade recai, incluindo as diferenças e concordâncias. Isso, por sua vez significa que uma abordagem verdadeiramente ecumênica para o tema sem­pre necessitará reconhecer uma certa "exterioridade", uma incontro- labilidade por qualquer grupo ou tradição particular do núcleo do Evangelho, do cânon dentro do cânon, da Palavra dentro da palavra; e também uma aceitação da inevitabilidade da pregação, redação e formas eclesiais diferentes do Evangelho. O fator unificador final aqui só pode ser a submissão diante da alteridade intangível do Espí­rito e do Evangelho e uma calorosa aceitação de todos que partilham essa submissão.

Segundo, outro modo de situar a questão é reconhecer o grau de abertura que encontramos no NT, a abertura do Kerygma para novas

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expressões, a abertura do cânon dentro do cânon para novas formula­ções do que é definitivo a fim de enfocar a particularidade de novos desafios. Porque estava reagindo contra a antiga formulação, eu agora expressaria novamente como o perigo de ler as formulações confessio­nais desenvolvidas muito rapidamente, o perigo de fechamento prematu­ro; isto é, o perigo de fechamento muito rápido nas formulações que podem emergir do NT como se aquelas que emergiram das contro­vérsias dos sécs. IV e V não deixassem espaço para outras. Essa linha de reflexão tem sido em parte, estimulada pelo debate hermenêutico corrente e o grau em que o sentido é desenvolvido (não diria criado) no encontro entre ouvinte/leitor e o texto. Enfatizo que não recuo uma polegada de minha insistência sobre a força canônica do evento Cristo como o determinante de sentido e a limitação sobre a gama de sentido que o sensus fidelium reconheça. Mas quero sublinhar o fato de que o cânon sempre encoraja e requer nova reformulação do Kerygma e do credo e se coloca pronto para autenticá-la (ou des-autenticar).

5. A importância do NT. Na segunda parte de §76.4 falei de: "Um diálogo entre o eventoCristo histórico e o Espírito presente... entre a dádiva do*passado histórico de sua era de fundação e a vitalidade do Espírito presente". Nesse diálogo o cânon do NT tem uma função in­dispensável, naquilo que somente mediante o NT temos acesso ao passado, ao outro pólo do diálogo - a Jesus como era encontrado nas colinas e ruas da Palestina, aos que encontraram no início com o Jesus ressurreto que desde o começo fora reconhecido como definitivo para a fé em Jesus como o exaltado. Ou, em outras palavras, somente por meio do cânon do NT temos acesso à realidade histórica de Jesus o mesmo que cons­titui o centro unificador do cristianismo, para o primeiro e definitivo testemunho da totalidade do evento Cristo.

Aqui precisamos reverter nossa fala antiga do cânon dentro do cânon (§76.1) e definir o conceito mais cuidadosamente, pois de fato Jesus-o-homem-agora-exaltado é o Jesus do NT: ele não é separável do NT; as diversas testemunhas dele não podem ser descartadas como pa­lha deixando um cerne-Jesus facilmente isolado. Em outras palavras, em Jesus, como o centro, não temos somente um cânon dentro do câ­non, mas também um cânon mediante o cânon, um cânon incorporado nele e somente acessível mediante o NT. Não é possível manter Jesus ao centro sem também sustentar o testerHunho do NT ao centro. Pois estamos

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distantes do Jesus do séc. I como Zaqueu que estava separado de Jesus pela multidão, atrás da multidão dos discípulos do séc. I, dependentes do que as pessoas mais próximas nos registram desse Jesus a quem também queremos ver. Não é possível ouvir o Jesus de Nazaré exceto nas palavras de seus seguidores. Não é possível encontrar o Jesus da história exceto nas palavras do NT.

Tudo isso, certamente, não significa que os próprios escritos do NT se tornam o evento Cristo. Como já notamos, eles são em si mesmo produtos de um diálogo que já começara entre o evento Cristo e o Es­pírito presente. Mas sem o NT não é possível reconhecê-lo como Jesus, não é possível reconhecer o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo como tal. O evento Cristo sempre nos encontra no NT vestido em for­mas particulares e linguagem cultural e historicamente condicionada (aí está o motivo da exegese histórica-crítica ser necessária, aí está o motivo pelo qual precisa haver um diálogo antes que uma subserviên­cia fundamentalista). Mas sem o NT não temos nenhuma possibilidade de amarrar nossa fé no evento Cristo, nenhum modo possível de levar adiante o diálogo de fé por nós mesmos.

Eu não estou dizendo que a Palavra de Deus não podem e nem che­gam a expressão aparte desses escritos; senão, a fé cristã no Espírito seria sem sentido. A revelação toma lugar toda vez em que nos encontramos com Deus. Mas se Jesus é determinante para a fé cristã, então, digo mais uma vez, o NT é indispensável, porque somente por meio dos escritos do NT temos acesso aos eventos históricos envolvendo Jesus e a primei­ra fé nele como ressuscitado. Se não reconhecemos Jesus e o caráter da fé ali, então não temos nenhum padrão ou definição, nenhum critério pelo qual reconhecer Jesus e o caráter do cristianismo de outra maneira.

Isto é, com certeza, porque as tradições do NT têm uma autoridade normativa que não pode ser concordante com as tradições posteriores da igreja (contrário ao dogma Católico Romano). Pois o NT é a fonte primária para as tradições originais cuja interpretação e reinterpretação é o propósito do diálogo. O NT é a declaração inicial (complexa em si mesma) do tema sobre o qual tudo o que se segue são variações. Tradi­ções tardias podem e devem realizar uma parte no diálogo, certamente, pois demonstram como o diálogo foi levado adiante em outras épocas e situações; elas fornecem uma lição objetiva dos "como" e "como não" desse diálogo. Mas o diálogo principal precisa se haver com as tradições originais, pois somente elas podem servir como uma norma para auten­

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ticidade do que todos nós que nos chamamos cristãos, somente elas po­dem encher a palavra Jesus com sentido autoritativo. Vou me expressar isso deste modo: somente com o NT e sem todo o restante da história e documentação cristãs, teríamos mais do que suficiente para servir como mapa e compasso de como o cristianismo segue para o futuro desconhe­cido. Mas com todas as confissões, dogmas, tradições, liturgias ou histó­ria da igreja e sem o NT, estaríamos perdidos, sem nenhuma idéia clara do que o cristianismo deveria ser ou para onde deveria ir.

Reflexão adicional. De novo, minha consideração evangélica pela Escritura e minha grande desconfiança da tradição protestante apa­receu fortemente. Não desejo me retratar da primeira, como espero que esteja bem claro a partir forte ênfase que tenho colocado sobre o testemunho do NT para Jesus Cristo, o cânon para toda a fé cristã, o NT fornecendo a definição do que é o cristianismo. Mas é desejável re­trocederam poudo da segunda. Pois nesse ínterim vim a apreciar dois fatores mais adequadamente.

Já mencionei um. Refiro-me à minha crescente apreciação da sofis­ticação e sutileza de muitos teólogos, pais e mestres dentro da história do cristianismo. E muito fácil pegar algum resumo e (portanto necessa­riamente) uma descrição simplificada do que alguém disse, e criticá-la sem fazer o esforço necessário para entrar mais profundamente em seu pensamento - em outras palavras, uma crítica mesquinha. E mesmo uma familiaridade superficial com a teologia Católica e Ortodoxa não pode ser impressa pela seriedade com que eles consideraram a tradi­ção da igreja/igrejas, e a vivenciaram, liturgicamente e teologicamen­te. Além do mais, Hans-Georg Gadamer ensinou muitos teólogos que o intérprete não se coloca acima da tradição, mas em um grau ou outro é cativado e ainda determinado pela tradição na tarefa hermenêutica30.

30 Eu me refiro ao conceito de G adamer de Wirkungsgeschichte, a "história de efei­to" de um texto que não deve ser reduzido, simplesmente, ao reconhecimento de que o intérprete se coloque dentro de uma história influenciado pelo texto.O termo-chave é realmente a frase mais elaborada, ■wirkungsgeschichtlich.es Bewessisein, "historicamente efetivada inconscientemente". Isso quer dizer, a in­consciência do intérprete tem, em alguma medida, sido trazida a existência pelo texto; que é em si, em algum grau, um produto do texto; é uma inconsciência do texto a ser interpretada. Ver mais H. G . G adamer, Truth and Method, Crossroad, 2a ed., 1989, particularmente as pp. 3Ô0-7.

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Quando se ignora a tradição aumenta-se a probabilidade de má inter­pretação. Embora eu tenha enfatizado que o NT estivesse no evento auto-autenticador como cânon, dificilmente poderei ignorar o fato de que foi o desenvolvimento da grande Igreja que deu o reconhecimento definitivo do status canônico dos escritos do Novo Testamento, e que é por meio dessa tradição (no ensino e na liturgia) que o NT chegou a nós.

O outro fator é que o NT é em si mesmo tradição e o produto da tradição viva que brotou particularmente de Jesus e o evento Cristo como fons et origo primárias. Em um sentido, com efeito, os escritos do NT são séries de cristalizações particulares do fluxo dessa tradição viva. Esse reconhecimento nos adverte uma vez mais, a não absolutizar essas formas particulares, por exemplo, como se o que Paulo escreveu a Corinto era de aplicação válida para todas as épocas e lugares depois disso, independente de suas circunstâncias diferentes. Por outro lado, isso não diminui a autoridade do NT, enquanto as particularidades históricas de cada escrito são respeitadas. Lembre-se, é a diversidade que está sendo canonizada aqui tanto quanto a unidade do cânon den­tro do cânon. A questão, então, é que o lugar da Escritura e da tradição como contrárias é simplesmente falsa para os fatos históricos e irrealis­tas com respeito à tarefa interpretativa.

De tudo o que foi dito, contudo, eu ainda quero sublinhar dois pontos. Um é a importância do papel do NT como cânon dentro do complexo de escritura-tradição. Se tradição também é, de um modo ou outro, normativa, então ainda é mais importante que o NT seja visto funcionar como "a norma que normatiza a norma", norma normans31. Novamente, temos de dar o devido crédito à crítica histórica que foi um importante traço do cristianismo ocidental desde a Renascença. E isso que nos previne de domesticar o NT, de ouvi-lo somente através da tradição. E isso que nos capacita a ouvir o NT criticamente, isto é, ouvi-lo ao mesmo tempo criticando a nós mesmos e nossas tradições, onde a crítica é chamada para tanto. O grande exemplo disso nos úl­timos 50 anos é o reconhecimento de que o NT entendido de forma não crítica se presta a toda e qualquer forma de anti-semitismo cristão

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11 Embora isso seja uma "Questão Protestante" é reconhecida pelo lado Católico; é indicada por J. R atzinger em H. V orgrimler, org., Commentary on the Documents o f Vatican II, vol. Ill, Burns & Oates/H erder & Herder 1968, pp. 192-3.

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indefensável32. Sem tal distanciamento pessoal da tradição, que uma leitura histórica do NT torna possível, a Reforma não teria acontecido (incluindo a "Contra-Reforma"). É o papel do NT como cânon dentro da tradição fazer a autocrítica, visto que serve como a norma contra a qual precisamos sempre medir nossa profissão.

O outro ponto é a importância contínua do estudo histórico com respeito a Jesus e o período do NT. A particularidade do testemunho do NT para Jesus Cristo é uma particularidade histórica. A teologia da encarnação dá à particularidade histórica de Jesus uma importância central, como a pessoa e tempo e lugar no qual e por meio de quem Deus manifestou a si mesmo e ao seu propósito salvífico mais clara e definitivamente, uma centralidade que na perspectiva cristã nenhuma outra pessoa, tempo e lugar pode partilhar. Em conseqüência, o teólo­go e intérprete cristão dessas tradições fundadoras não têm nenhuma outra escolha do que examinar que particularidade histórica o mais detalhadamente possível. A "questão do Jesus histórico", para Jesus o judeu, não é um luxo que a fé pode dispensar, mas uma necessidade para informar a fé e para o auto-entendimento da fé33. Isso não pode ser efetivamente desempenhado sem o recurso das ferramentas da crítica histórica como foram aperfeiçoadas durante os últimos quatro séculos.

De que modo argumentar isso não é fazer a(s) igreja(s) muito de­pendente dos eruditos do NT ou dar aos teólogos importância indevi­da34. Trata-se de uma responsabilidade eclesiástica e não meramente individual o que temos em vista. Dentro dessa responsabilidade co­munal, eruditos e teólogos têm um papel a desempenhar, uma con­tribuição (carisma) com o qual eles foram dotados para o trabalho na igreja e por meio dela. E quando a(s) igreja(s) aprecia(m) a importân­cia de ouvir e compreender o Evangelho em (ou melhor, através) seus termos de séc. I que o papel do ensino do NT terá seu próprio lugar dentro de seus quadros ministeriais. Um segundo ponto, mas não

32 Ortodoxia, que vive dentro da tradição e escuta o NT somente por meio dos Pais ainda têm que demonstrar que pode realizar a autocrítica necessária para condenar a tradição cristã de Anti-semitismo.

33 Não para provar a fé , co m o Bultmann , e m p a rticu la r , co rre ta m en te in sis tia .34 Como, classicamente, M artim K àhler temia em sua famosa monografia de 1896,

The So-called Historical Jesus and the Historie Biblical Christ, ET & ed. C. E. B raaten, Fortress 1964.

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menos importante é que por meio dos seus mestres treinados e erudi­tos a(s) igreja(s) são capazes de participar do espaço acadêmico mais amplo, das discussões teóricas e práticas que auxiliam a moldar nossa vida nacional. A igreja não deveria esperar que seus eruditos sirvam, simplesmente, como catequistas. Ao contrário, sua tarefa, vista aqui em termos de estudo histórico, ajuda a sustentá-la em certa distância crítica, que por sua vez auxilia a guardar ambos, os eruditos e a Igreja honesta e merecedora de respeito na larga busca por conhecimento, verdade e sabedoria.

6. O NT como ponte. Uma razão final porque os escritos do NT po­dem continuar como cânon é sugerida pela apreciação mais completa que começamos a atingir o papel desempenhado pelos próprios escri­tos do NT dentro da diversidade do cristianismo do séc. I. Eu tinha em mente particularmente a observação (acima pp. 122s) de que pelo menos alguns documentos do NT serviram como construtores de pontes ou elos conectadores entre diferentes elementos dentro do cristianismo do séc. I. Isso quer dizer, sua canonicidade é um reconhecimento não porque eles serviam como um mapa fundador em favor de um tipo de cristianismo em detrimento de outro, mas preferivelmente um reconhe­cimento de seu espírito conciliatório, que para toda a sua diversidade serviam também para promover a unidade das igrejas do séc. I. Assim Mateus e He­breus serviam não tanto como declarações de um partido cristão-judeu, mas antes como pontes entre um cristianismo mais estritamente judeu e um cristianismo-judaico muito mais influenciado pelo pensamento helenístico (acima pp. 122s, 393s). Marcos e Paulo parecem ter cumpri­do uma função similar, sustentando tanto o cristianismo-gentílico e o cristianismo judaico da Diáspora. Certamente, Gálatas ou 2 Coríntios 10-13 em particular dificilmente podem ser chamados de conciliatório. Mas a canonicidade de Paulo nesse ponto não é tanto a função de al­guma carta (ainda que Romanos preencha melhor o quesito) como do todo do corpus paulino (particularmente quando as Pastorais são in­cluídas). Pois, dentro dessas 13 cartas abarcamos a varredura completa do cristianismo, do entusiasmo apocalíptico ao catolicismo primitivo, do profundo auto-entendimento judeu e simpatias ao compromisso de todo o coração dos gentios, da insistência fervorosa sobre a imediatez da revelação à subserviência completa à tradição herdada, etc. Nova­mente, Atos e João, em diferentes maneiras servem como pontes entre

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as origens do cristianismo e as situações enfrentadas pelo cristianismo em direção ao final do séc. I: Atos servindo como a tentativa de Lucas de sustentar o entusiasmo inicial do cristianismo como a crescente in­fluência do catolicismo primitivo; e os Escritos Joaninos servindo como uma ponte entre a mensagem dada desde o início e o desafio enfrentado pelos cristão-judeus dentro do sincretismo helenístico-oriental mais amplo da época. Até mesmo o Apocalipse pode ser visto como uma ponte no modo que visava internacionalizar o apocalipsismo judaico, que poderia servir como um veículo para as esperanças de todos os cristãos. Talvez mais formidável de tudo, particularmente em vista das tensões do cristianismo do séc. II, seja a função cumprida por 1 Pedro, na medida em que sua teologia e autoria tradicional serve para unir Paulo e Pedro.

Explorar essa tese com detalhes adequados poderia ir mais longe do seria apropriado aqui. Mas talvez eu apenas devesse indicar que essa função de edificar pontes dos escritos do NT, de modo algum, po­deria ser tomada com o uma negação da diversidade do cristianismo do séc. I explorada acima na Parte II, nem o inventário completo da di­versidade incorporada nos próprios escritos do NT. Aqueles que explo­ram as áreas fronteiriças vagas entre o cristianismo e as reivindicações religiosas competidoras e as linguagens do entorno, e que procuram deixar a fé central em Jesus determinar onde, em qualquer instância a linha fronteiriça deveria ser desenhada, assim, também mostram sua preocupação em sustentar os elos com seus companheiros cristãos que desejam permanecer muito mais afastados das áreas limítrofes. E pre­cisamente por isso que os documentos do NT representam como um todo uma variação grande da diversidade e constrói pontes ligando e sobrepondo uma com a outra e porque todo o cânon do NT pode servir como cânon para a igreja toda.

Um pensamento adicional muito tentador é digno de se notar, ainda que brevemente. Se a edificação de pontes é uma razão central para a canonicidade de muitos dos escritos do NT, então talvez isso explique mais inteiramente porque foi Pedro que se tornou o ponto focal da unidade na grande Igreja. Pois Pedro foi provavelmente de fato o homem-ponte (pontifex maximusl) que fez mais do que qualquer outro para sustentar a diversidade do cristianismo do séc. I. Tiago (irmão de Jesus) e Paulo, as duas outras figuras de ponta mais proeminentes no cristia­nismo do séc. I, foram também rrçuito identificados com suas marcas

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respectivas de cristianismo, pelo menos aos olhos dos cristãos, no fim oposto desse espectro particular. Mas Pedro, como mostrado particu­larmente pelo episódio de Antioquia em Gálatas 2, teve o cuidado de manter firme a sua herança judaica que faltava a Paulo, e uma aber­tura às demandas do cristianismo em desenvolvimento que faltava a Tiago. João poderia servir como essa figura de centro sustentando os extremos, mas se os escritos ligados ao seu nome são desse jeito, indicativos de sua própria postura, ele era muito individualista para fornecer tal ponto unificador. Outros poderiam ligar a nova religião em desenvolvimento tão ou mais firmemente aos seus eventos fun­dadores e a ao próprio Jesus. Mas nenhum deles, mesmo outro dos Doze, parece ter desempenhado algum papel de significado contínuo para o todo do cristianismo (embora Tiago, irmão de João, poderia ter provado ser uma exceção)35. Assim é Pedro que se torna o ponto focal de unidade para toda a Igreja - Pedro que foi provavelmente o mais proeminente entre os discípulos de Jesus, Pedro que de acor­do com as tradições primitivas foi a primeira testemunha do Jesus ressurreto, Pedro que foi a figura líder nos primórdios da nova seita em Jerusalém, mas Pedro que também estava preocupado com a mis­são, e que quando o cristianismo se ampliou, também ampliou o seu auxílio e seu caráter para com ela, ao custo de perder seu papel de liderança em Jerusalém, mas com o resultado de que ele se tornaria o símbolo mais cheio de esperança da unidade para que o cristianis­mo em crescimento viesse mais e mais a pensar de si mesmo como a Igreja Católica.

Uma reflexão adicional seria desnecessária aqui. Eu a pretendia como uma reflexão conciliatória e estou contente por deixá-la como está; sem qualificação ou elaboração adicional (além da nota 35). A conclusão final também pode ficar sem uma reflexão adicional.

7. Resumindo. Em suma, quão significativo é o conceito de um cânon do NT, e teria o cânon uma função contínua? Não tentei ex­plicar ou defender o cânon nos termos tradicionais de apostolicidade,

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35 O Evangelho de Tomé traz de volta Tomé à proeminência, e a igreja Mar Thoma do Sul da índia é um lembrete do risco de assumir isso, pois sabemos tão pouco do restante dos "Doze" se eles foram de alguma significância. Mas nenhuma observação muda o ponto principal no texto.

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pois penso que isso não possa ser feito36. Não podemos ignorar as conclusões esmagadoras da erudição do NT que pelo menos alguns dos escritos do NT não foram compostos pelos apóstolos e são a se­gunda (ou mesmo terceira) geração em sua origem. E se apostolicidade é ampliada a um conceito como fé apostólica, isso não ajuda muito visto que tende a encobrir o fato de que nem todos os apóstolos pre­garam precisamente a mesma mensagem e discordavam fortemente em diversos pontos (isto é, em sua elaboração do que, todavia, eles pensavam como Evangelho comum). Nem tenho dito, nem desejaria dizer, que os escritos do NT são canônicos porque eles foram mais inspirados que outros escritos cristãos tardios. Quase todo cristão que escreveu de um modo autoritativo durante os primeiros dois séculos do cristianismo reivindicaram o mesmo tipo de inspiração para os seus escritos como Paulo fez para os seus37. E desejaria insistir que, em não poucas composições, Martinho Lutero e Charles Wesley, por exemplo, foram como, se não mais inspirados, que o autor de 2 Pedro. Nem certamente tentaria definir a canonicidade do NT em termos de algum tipo de ortodoxia, pois nossos resultados são claramente por­que nenhum conceito real de ortodoxia como ainda existia no séc. I e que nos termos da ortodoxia posterior, os próprios escritos do NT poderiam ser*chamados de inteiramente "ortodoxo". Nem entraria aqui na questão dos limites do cânon que tudo isso suscita - se, por exemplo, 2 Pedro deveria ser excluída do cânon do NT e a Didaquê ou 1 Clemente incluídas - pois isso nos levaria além dos limites já distendidos do presente estudo38.

Todavia, se as conclusões esboçadas nas poucas páginas são boas, então o NT tem uma função contínua como cânon.

(1) Ele canoniza a unidade do cristianismo. Incorpora, em­bora em diversas expressões, o centro unificador do cristianismo.Ele m ostra quão pequeno e quão básico aquele cânon dentro do cânon realmente é. É um fato notável que toda a diversidade do NT

36 Isto é, a não ser em termos de Lutero (ver a nota 9 acima).37 Ver A. C. S undberg, "The Bible Canon and the Christian Doctrine of Inspira-

tion", Interpretation, 2 9 ,1975, pp. 364-71. Com certeza, inspiração não foi somen­te reivindicada, mas também reconhecida pelas igrejas (veja também a "Apresen­tação à 2a edição", p. 37s acima).

38 Mas ver agora a reflexão adicional em §756.3 acima.

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pode reivindicar ser interpretações justificáveis do evento Cristo- Tiago bem com o Paulo, Apocalipse bem com o as Pastorais.

(2) Ele canoniza a diversidade do cristianismo. M ostra quão diversa, algum as vezes perigosam ente diversa, as expressões dessa fé unificadora podiam ser. E um a postura corretiva à de cada indi­víduo, à de cada igreja, mais limitada, uma percepção de cristianis­m o mais estritamente circunscrita. Para todos que falarem somente de um tipo de cristianismo do NT, "Somente isto é cristianism o," o NT replica: "E isto, e aquilo tam bém é cristianismo."

(3) Ele canoniza a gam a de diversidade aceitável, mas tam ­bém os lim ites de diversidade aceitável. Ele reconhece o Evangelho de M ateus, m as não o Evangelho dos ebionitas, o Evangelho de João, m as não o Evangelho de Tomé, os Atos dos Apóstolos, mas não os Atos de Paulo, o Apocalipse de João, m as não o Apocalipse de Pedro. Se a convicção de que Deus nos encontra agora mediante aquele que foi Jesus de N azaré m arca o início e centro do cristianis­mo também m arca os limites e as fronteiras do cristianismo.

(4) Ele canoniza o desenvolvim ento do cristianismo e fornece a norm a para o "com o" do desenvolvimento, pois o modo em que o centro unificador deveria produzir a interação com a circunferência dinâmica, particularm ente nos pontos de pressão ou de possível ex­pansão. Ele nos m ostra quão genuíno e profundamente penetrante precisa ser o diálogo entre o passado e presente, não permitindo um apego às formas ou formulações que não são significativas para a situação contem porânea nem permitindo a situação contem porâ­nea ditar a m ensagem e perspectivas de sua fé.

(5) Ele serve com o cânon naquilo que som ente por ele temos acesso aos eventos que determ inaram o caráter do cristianismo.As descrições de Jesus e as declarações acerca de Jesus que encon­tram os no NT são norm ativas, não em si m esm as, mas no sentido que somente nelas e m ediante essas descrições podem os ver o ho­m em por trás delas, somente nelas e mediante essas declarações podem os encontrar a realidade original do evento Cristo.

(6) Ele serve como um cânon por causa do caráter concilia­tório de muitos dos próprios escritos do NT, cada um sustentando a dupla tensão entre o passado (comum) e o presente particular, mas também entre a forma resultante de cristianismo e diversas formas de outros. O N T é canônico não porque contenha mistura confusa de escritos documentando ou defendendo os desenvolvimentos di­versos do séc. I, não porque contenha um a seção cruzada dos parti­dos manifestos do séc. I, m as porque contém o caráter entrelaçador de muitas de suas partes componentes que sustenta o todo unido na unidade de um a diversidade que reconhece um a lealdade comum.

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O NT não funciona, certamente, da mesma maneira em cada uma desses papéis diferentes. Por exemplo, em (1) e (5) Tiago e Judas não adicionam nada aos evangelhos; mas em (2) Tiago e Apocalipse se­ria mais importante do que Lucas; enquanto (3) Hebreus seria mais importante que Mateus. Ou novamente em (4) Gálatas e João seriam, provavelmente, em muitas circunstâncias mais importantes do que as Pastorais; enquanto em (6) Mateus forneceria mais direção do que Gálatas. A questão é, com certeza, que somente quando reconhecemos a plena diversidade de função do cânon bem como a plena diversidade do material do NT, somente então pode o cânon do NT, como uma totalidade, permanecer viável. Ou, mais concisamente, somente quando reconhecemos a unidade na diversidade do NT e a diversidade na uni­dade do NT e os modos em que eles interagem, somente então pode o NT continuar a funcionar como cânon.

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APENDICE

UNIDADE E DIVERSIDADE: UMA PERSPECTIVA NEOTESTAMENTÁRIA

1. Introdução

Chegamos além da excitação inicial no Movimento Ecumênico sobre o quanto concordamos, além de um contentamento com as fór­mulas que nos unem todos por sua ambigüidade conveniente. Agora, por algum tempo, a questão é preferivelmente quais são os traços fun­damentais de nossa fé e vida comum, os elementos comuns que subja­zem à superfície, unindo-nos a despeito das diferenças de nossas tra­dições e as diferentes interpretações que ainda achamos necessárias para conduzirem às nossas fórmulas comuns, os fundamentos comuns sobre quais todas as nossas tradições edificam suas diversas formas.

É aí que os especialistas do Novo Testamento podem fazer sua contribuição especial. Mas eles só podem fazer isso se tiverem em mente o caráter duplo dos escritos do NT - como fonte histórica para as origens do cristianismo, e como escritura cristã. Permita-me elabo­rar um pouco disso na esperança de fornecer alguma justificação para o meu tema.

(a) Precisamos usar o NT como fonte histórica para o ministério do próprio Jesus e para o testemunho daqueles mais próximos a ele. Não por acreditarmos que o original é melhor, ou valorizar o que foi honestamente chamado de o mito das origens cristãs. Mas pela lógica de nossa teologia da encarnação. Asseveramos que a Palavra de Deus veio à sua mais plena e mais clara expressão na vida de Jesus, a expres­são mais definitiva da revelação divina que é possível ou até mesmo tem sido possível dentro da história humana. Por essa asserção inevi­tavelmente nos prendemos à tarefa da pesquisa histórica, e à pesquisa

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histórica no próprio NT. Pois o NT é, simplesmente, a única fonte real dentro da história que temos para esse período climático da revelação divina, o único acesso histórico àquilo que é o ponto intermediário cru­cial da história da salvação. E, como com toda a investigação histórica, que requer de nós reconhecer as diferenças entre as línguas e expres­sões idiomáticas, formas de pensamento e pressuposições, convenções e estruturas sociais daquilo que está distante no tempo e de nós. Isso requererá de nós acima de tudo recordar a contingência histórica des­sa revelação - o fato de que as palavras preservadas para nós no NT foram endereçadas às situações particulares e que elas não podem ser de fato plenamente entendidas sem levar em conta esse contexto histó­rico. Assim como a doutrina da encarnação nunca poderá dispensar o escândalo da particularidade a exegese não pode ignorar a condicionali- dade e contingências históricas de qualquer passagem do NT.

(b) Ao mesmo tempo o NT também é escritura cristã. Descrever esses documentos como contingentes e de caráter episódico é somen­te parte do quadro. Porque, embora local e específico, em propósito e função, eles são originais em intenção, é um fato histórico que eles foram reconhecidos como muito mais que ocasionais por aqueles a quem foram enviados inicialmente. Esses documentos foram, eviden­temente, valorizados desde o princípio - provavelmente porque foram reconhecidos por trazer o selo de autoridade e relevância que transcen­dem a imediação da situação local. Eles foram ouvidos por falar, não simplesmente, como a voz de um Paulo ou um João, mas como Palavra de Deus. Outras cartas e tratados escritos pelos primeiros cristãos não sobreviveram. Mas esses foram conservados, precisamente, por causa de sua autoridade perene valorizada. A canonização foi somente uma concessão da autoridade, que não havia sido possuída previamente. Além disso, foi um processo de reconhecimento de autoridade já expe­rimentada e reconhecida por um amplo círculo de igrejas.

A* questão para nós é que esses dois aspectos do NT precisam ser mantidos juntos. Não podemos confinar o sentido do NT como um todo ou de qualquer texto do NT em particular ao sentido primeiro e original. A Palavra de Deus que foi ouvida mediante o NT em formas diversas e desenvolvida através dos séculos não foi, simplesmente, a repetição daquela primeira palavra. O cânon não foi usado para vali­dar muito mais do parece no próprio NT. Mas não ousaremos deixar o sentido lido do NT se tornar separado do sentido original. O sentido

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pretendido pelo autor original e ouvido pelos primeiros leitores foi o impulso decisivo em direção ao reconhecimento de sua autoridade canônica. O mais importante é que esse sentido original é parte das primeiras testemunhas, o testemunho apostólico para a revelação deci­siva o evento Cristo que é o coração e fundamento na história para o cristianismo como um todo. Esse primeiro testemunho, em toda a sua condicionalidade e relatividade histórica, é assegurado por servir como uma espécie de teste, controle ou cânon sobre os sentidos, sub­sequentemente, ouvidos por aqueles que reconhecem essa autoridade canônica1.

É aí, então, que o erudito cristão do NT pode esperar desempe­nhar sua parte em discernir a voz do Espírito hoje em assuntos para os quais o NT também fala. Não que o neotestamentólogo possa pensar em se posicionar acima ou contra a autoridade de ensino da igreja em suas diversas formas. Mas como especialista nos documentos funda­dores ou artigos constitucionais do cristianismo, o neotestamentólogo cristão é parte do ministério de ensino da igreja, cuja tarefa ou carisma especial é recordar às igrejas os traços fundamentais da tradição cristã como atestado no NT. Ao avaliar as reivindicações da palavra de Deus hoje, as escrituras do NT precisam ter uma reivindicação principal em nossa atenção, visto que todas as outras reivindicações da autoridade da Palavra de Deus no escrito derivam, mais ou menos imediatamente, delas. E aquele cujo chamado tem sido entrar o mais completamente possível na mente e propósito originais dessas escrituras está encarre­gado especialmente de recordar aos outros, envolvidos nesse processo, aquilo que os escritores do NT disseram em seus próprios termos e em sua própria época.

Com isso em mente, então o que faz o NT contribuir para o tema da Unidade e Diversidade na Igreja? E, em particular, o que faz o NT contribuir à nossa compreensão das estruturas fundamentais da uni­dade cristã e suas diversas expressões?

Estou cônscio aqui da crítica da "Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina" reconhecida por J. R atzinger em Commentary on the Documents o f Vatican II, org. H. V orgrimler, vol. Ill, London: Burns & O ates/N ew York: Herder & Herder 1968, pp. 192-3.

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2. Unidade Fundamental

Em meu estudo da Uniáaáe e Diversidade no Novo Testamento2, eu cheguei a uma conclusão, algo que me surpreendeu e que inferiu em nossa discussão. Pode ser expressa nos seguintes termos. Não há ne­nhuma unidade fundamental no NT se por isso se quer dizer uma forma concorde de palavras consistentemente sustentada por meio de todo o espectro dos documentos do NT. Mas há um centro determina­do ou núcleo de fé comum que vêm à expressão em diferentes termos em diferentes contextos, e ao redor da quais outros elementos de fé e prática aderem, com ênfases diversas e às vezes divergentes depen­dendo do contexto. No início do capítulo final eu resumi a posição do seguinte modo3. O centro integrador e o elemento unificador no cristianis­mo primitivo eram:

a unidade entre o Jesus histórico e o Cristo exaltado, isto quer di­zer, a convicção de que o pregador carismático itinerante de N azaré havia ministrado, m orrido e ressuscitado da m orte para reconciliar Deus e o hom em de um a vez por todas, o reconhecimento de queo poder divino, mediante o qual agora adoravam e foram encon­trados e aceitos por Deus, era um a só e a m esm a pessoa, Jesus, o hom em, o Cristo, o Filho de Deus, o Senhor, o Espírito doador da vida.

Isso permanece, creio eu, uma declaração justificável da: "Unidade fundamental" no NT4. Mas permita-me tentar uma breve reformulação da análise da qual falarei mais diretamente à nossa discussão atual.

O que queremos dizer por unidade fundamental no NT? O que pro­curamos? Quais são os critérios para reconhecê-la? Eu sugiro dois cri­térios possíveis, um que nasce mais do NT como fonte histórica para as origens do cristianismo, e o outro do NT como escritura. O primeiro põe alguma ênfase na palavra fundamental: uma unidade fundamental

2 London: SCM Press/Philadelphia: Westminster 1977; London: SCM Press/- Philadelphia: TPI21990; London: SCM Press, 3a ed., 2005.

3 Unidade e Diversidade no Novo Testamento, pp. 525s.4 Em Unidade e Diversidade no Novo Testamento, pp. 540s eu também noto que esse

centro determinava também a circunferência, os limites da diversidade aceitável, mas não posso ir além desse aspecto da matéria neste estudo.

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é aquela sobre o qual a totalidade do cristianismo estava unida des­de o começo, pertencendo ao fundamento histórico do cristianismo. O segundo dá um pouco mais de ênfase à palavra unidade: um con­senso fundamental é um elemento eomum para todos os escritos do NT, uma crença ou prática básica afirmada ou presumida por todos os documentos do NT. Quando perguntamos quais os elementos do cris­tianismo encontram ambos os critérios somos conduzidos em direção ao tipo de resposta que eu dei acima. Que pode ser resumida em duas palavras - Páscoa e Pentecostes.

(a) Páscoa. Há pouca dúvida de que a ressurreição de Jesus seja no coração do cristianismo - fundamental em termos dos dois critérios acima.

As fontes são claras. Até onde podemos ir, é a ressurreição de Je­sus que é o elemento mais comum da fé e da proclamação. É a afirma­ção central já na declaração confessional bem desenvolvida que Paulo cita em 1 Coríntios 15: "Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Es­crituras. Apareceu a Cefas e, depois, aos Doze" (3-5). Isso é uma ex­pressão do Evangelho que, Paulo diz que ele mesmo recebera, isto é, provavelmente em sua conversão. Visto que Paulo fora convertido no período de três anos depois da morte de Jesus, e, bem possivelmente, algum tempo ainda mais cedo, essa declaração nos faz retornar por volta de dois ou três anos dentro do evento em si. Essa fé na ressurrei­ção de Jesus pertence às formulações mais antigas que podem apro­priadamente reivindicar o título cristã; é confirmada pela evidência si­milar em outros lugares pelo escritor cristão mais primitivo, Paulo. Por exemplo, vários elementos confessionais foram detectados na carta de Paulo às igrejas de Roma, fragmentos confessionais citados por Paulo, pelo menos como uma confiança renovada para os seus leitores em Roma que sustentavam a mesma fé como os outros apóstolos. A maior parte delas faz a afirmação central da ressurreição de Jesus -

...nascido da estirpe de Davi segundo a carne, estabelecido filho de Deus com poder por sua ressurreição dos m ortos (Rm 1.3s.);

...o qual foi entregue pelas nossas faltas e ressuscitado para nossa justificação (Rm 4.25);

Cristo Jesus, aquele que m orreu, ou melhor, que ressuscitou aquele que está à direita de Deus... (Rm 8.34);

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Porque, se confessares com a tua boca que Jesus é o Senhor, e creres em teu coração que Deus o ressuscitou dentre os m ortos, serás salvo (Rm 10.9).

Não precisamos ilustrar mais a questão. Esses e outros fragmen­tos já tradicionais embutidos dentro dos escritos mais antigos do NT são a prova positiva de que a crença na ressurreição de Jesus pertence ao alicerce do cristianismo. A confissão cristã primitiva, apropriadamente assim denominada, é a reivindicação de que "Deus levantou Jesus de entre os mortos” 5.

A mesma conclusão aparece fortemente quando fazemos a pes­quisa histórica das primeiras narrativas pascais. Embora discutidas por alguns eruditos do NT, é difícil evitar a conclusão de que as histó­rias do túmulo de Jesus ser encontrado vazio são baseadas em relatos históricos reais. E poucos, mesmo alguns, questionam a reivindicação central dos relatos de aparição da ressurreição, que Jesus foi visto vivo depois da morte por muitos de seus primeiros discípulos - e visto de tal modo que eles forçados à surpreendente conclusão de que ele ha­via ressuscitado dos mortos6. Até as mais céticas avaliações da evidência, dificilmente, podem evitar a conclusão de que o cristianismo começou como: o crescer da fé pascal. Assim em termos de fundamento histórico há pouca dúvida de que a ressurreição de Jesus é parte da unidade fundamental no NT.

Similarmente, o mesmo se dá quando olhamos para a ampla gama de escritos do NT. Cada um dos quatro evangelhos atinge o ponto máximo na promessa ou relato da aparição de Jesus após sua morte, ressurreto dos mortos. O livro de Atos começa sua narrativa do crescimento inicial e expansão do cristianismo no mesmo ponto, e os sermões em Atos dão mais lugar à afirmação da ressurreição de Cristo do que qualquer outro lugar. De modo que muito da rei­vindicação de que Jesus ressurgiu dos mortos está no centro da pro­clamação cristã, que, por exemplo, a pregação mais antiga de Pedro pode ser resumida como: "Proclamar em Jesus a ressurreição dos mortos’'' (At 4.2), e a pregação de Paulo em Atenas pode ser confun-

5 Ver mais p.ex. W. Kramer, Christ, Lord, Son of Goâ, London: SCM Press 1966, pp. 19-26.

6 Ver mais em meu The Evidencefor Jesus,'cap. 3.

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d ida com a proclamação de duas novas divindades, Jesus e Anás- tnsis (At 17.18). Já vimos quão fundamental era a ressurreição para Paulo. Mas citaremos dois exemplos. Em Romanos 10.9, menciona­do acima, fica claro que para Paulo a crença na ressurreição de Jesus c a confissão de Jesus como Senhor são dois lados da mesma moeda, c, como se sabe "Senhor" é o título favorito de Paulo para Jesus. E em 1 Coríntios 15, ao argumentar contra aqueles que diziam: "Não haver ressurreição dos mortos" (ICor 15.12), logo fica claro que, até mesmo aí, a base comum é a crença de que Jesus ressuscitou: "Se Jesus não ressuscitou, então nossa pregação é vã, e a vossa fé é vã" (ICor 15.14).

Sem aprofundar a questão, podemos simplesmente notar que 1 Timóteo e 1 Pedro contêm fórmulas confessionais similares que falam de Jesus como: "Justificado, ou vivificado no Espírito" (lTm 3.16; lPd 3.18); que Hebreus, a despeito de utilizar completamente uma imagem diferente, termina com uma bênção de invocação: "O Deus da paz que ressuscitou dos mortos nosso Senhor Jesus" (Hb 13.20), e que Tiago, a despeito da ausência do caráter distintamente cristão, ainda fala de Jesus como: "Nosso Senhor Jesus Cristo, o Senhor da Glória" (Tg 2.1); e que central para a mensagem de 1 João é o testemunho, que Deus nos deu a vida eterna, e esta vida está em seu Filho (ljo 5.11); e que no Apocalipse de João o vidente desvela da visão do: "Cordeiro estava de pé, ainda que houvesse sido imolado" (Ap 5.6).

Resumindo, se alguma coisa pode reivindicar percorrer todos os escritos do NT como um fio dourado ela é a convicção de que Deus ressuscitou Jesus de entre os mortos. Podemos notar de passagem que nada do material há pouco revisado dá qualquer escopo real para a visão mais reducionista de que a reivindicação da ressurreição era, simplesmente, um modo de afirmar que a memória de Jesus ou o seu ensino nunca poderiam morrer. No centro desse elemento da unidade fundamental está a rei­vindicação de que algo aconteceu a Jesus não simplesmente aos seus discípulos, a crença de que Deus vindicou Jesus, não simplesmente os seguidores dele, e que Deus agora lida com eles por meio de Jesus e não apenas por seu amor. Isso nos conduz ao segundo elemento da unidade fundamental.

(b) Pentecostes. Se um dos impulsos fundamentais do cristianismo é cristológico, o outro é pneumatológico - a convicção de que Deus tenha dado seu Espírito de uma nova maneira e mais completa do que

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jamais havia feito antes para ser a marca de seu povo, o povo escatoló­gico de Deus, o povo de Deus no fim dos tempos e na nova era.

Como com a Páscoa, também com o Pentecostes. Aqui também a análise histórica dificilmente pode evitar a conclusão de que o mo­vimento que tomou o nome de cristianismo foi caracterizado desde o início por sua reivindicação de uma doação distintiva do Espírito de Deus. Foi precisamente isso que diferenciou os seguidores de Jesus daqueles de João Batista - que João batizava com água, Jesus por sua vez batizou com o Espírito Santo. O contraste é apresentado desde o começo do evangelho de cada um dos evangelistas (Mc 1.8, etc.); Lucas continuou a fazer uso disso ao descrever o evento do próprio Pentecos­tes e do primeiro derramamento sobre os gentios (At 1.5; 11.16).

Assim como para a própria narrativa do Pentecostes (At 2), seria amplamente aceito pela erudição crítica que, no mínimo, ela comporta uma memória do primeiro êxtase em massa ou experiência carismática experimentada pelos primeiros discípulos. E se considerarmos seria­mente o relato de Lucas, a interpretação primitiva dessa experiência era a de que o Espírito havia sido derramado em plenitude escatoló­gica - plenitude tanto em quantia como em extensão: "Nos últimos dias... Eu derramarei do meu Espírito sobre toda carne, e vossos filhos e vossas filhas profetizarão..." (At 2.17). A despeito de alguma especu­lação erudita sobre o assunto, nenhum outro aniversário ou local de nascimento foi, desde então, reivindicado para a Igreja Cristã7. Com a experiência pentecostal em Jerusalém a nova era do Espírito de Deus e a nova aliança retificada pela morte de Cristo havia começado.

O acesso histórico da importância da experiência inicial e fami­liar do Espírito divino para as origens do cristianismo é compatível com o reconhecimento da importância fundamental da experiência do Espírito para o auto-entendimento cristão dos principais escritores do NT. A coisa mais próxima que temos de uma definição de um cristão no NT é dada por Paulo, precisamente, em termos de possuir o Espirito e ser dirigido pelo Espírito: "Se alguém não tem o Espírito, esse tal não é dele; pois todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus" (Rm 8.9, 14). Igualmente é Paulo quem descreve o Espírito como o penhor ou garantia por que Deus completará sua obra de salva­ção - em outras palavras, o dom do Espírito como o início do processo

7 Ver mais em meu fesus and the Spirit, cap. 6, especialmente pp. 136-46.

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de salvação (2Cor 1.22; 5.5; G13.3; F11.6). E Paulo também é quem usa a metáfora equivalente, "primeiros frutos" tanto para a ressurreição de Jesus como para o dom do Espírito (Rm 8.23; ICor 15.20,23) - como igualmente o início da colheita da ressurreição e garantia de sua com- pletude.

Em Atos poderíamos, simplesmente, notar mais uma vez que o dom e o derramamento do Espírito que é o fator decisivo, particular­mente situando qualquer questão acerca da aceitabilidade dos que vi­riam a se converter dentro do novo movimento. E precisamente o fato de Deus ter dado aos gentios o mesmo dom que eles receberam em Pentecostes que não deixa a Pedro nenhuma escolha: como recusaría­mos aqueles a quem Deus aceitou (At 10.47; 11.17)? Em João o novo ca­ráter distintivo e fundamental da obra do Espírito, de uma perspectiva cristã, é fortemente asseverado. Ele até mesmo pode falar do Espírito como ainda não anterior ao seu recebimento por aqueles que creram, seguindo a glorificação de Jesus (Jo 7.39). E no assim chamado Pente­costes joanino ele usa o verbo que mostra o que ele pensa da recepção do Espírito como um ato da nova criação (Jo 20.22), o sopro de Jesus sobre os discípulos como o equivalente escatológico do sopro divino da criação em Gênesis 2.7.s

Não precisamos trabalhar novamente a questão, e ainda que a ênfase sobre o Espírito não seja tão consistente por todo o NT como a ênfase sobre a ressurreição, ainda não seria muito difícil elaborar a reivindicação de que o dom do Espírito também é parte do consenso fundamental no NT (cf. p.ex. Lc 11.13; Tt 3.5-7; Hb 6.4; lPd 4.14; ljo 2.20, 27; 3.24; Jd 19; Ap 1.4; etc.). A experiência do Espírito de Deus, a crença que aquilo que eles estavam experimentando era o novo derramamento escatológico do Espírito de Deus é parte do elemento mais básico da fé cristã, como atestada pelos escritores do NT.

Se, então, procuramos pela unidade fundamental no NT, no du­plo sentido dos elementos que foram parte do cristianismo desde o prin­cípio e cujo traço consistentemente como central ao cristianismo por toda a gama de documentos que formam o NT, precisamos começar com a Páscoa e o Pentecostes, Cristo e o Espírito. Além disso, não devemos ignorar o fato de que era a correlação manifesta desses dois elementos

1 Para os dois últimos parágrafos ver mais em meu Baptism in the Holy Spirit, London: SCM Press/Philadelphia: Westminster 1970.

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fundamentais que recaem no centro da distinção e sucesso iniciais do cristianismo. Foi a proclamação da ressurreição de Cristo que eviden­temente resultou no dom do Espírito. E o dom do Espírito foi tomado como prova de que Deus aceitou o ato de comprometimento com Je­sus o ressurreto. O dom do Espírito demonstrou que Deus tinha tanto vindicado Cristo como aceitado os crentes. A experiência do Espírito recebeu definição pela referência a Cristo - como: "Espírito de Cristo, o Espírito do Filho que clama ‘Abba! Pai." (particularmente Rm 8.9,15; G1 4.6). O doálogo ecumênico não pode nunca esquecer que é a correlação e interdependência mútua da doutrina e experiência que está no centro da uni­dade fundamental do NT.

Com certeza há outros elementos que se ligam na integração des­ses dois elementos fundamentais. Por exemplo, está implícito, no que já foi dito, que comprometimento com o Cristo ressurreto era o que unia os dois elementos na experiência da fé desde o começo. É o Jesus re­cordado nas tradições evangélicas que é o Senhor exaltado. Outros elementos são coerentes com esses dois traços mais básicos tão logo os primeiros cristãos começaram a se desfazer deles, ou, falando histo­ricamente, tão logo os primeiros cristãos começaram a entender o que eles significavam no contexto de missão aos judeus e aos gentios. Con­tinuaremos a ver o mais importante sobre isso na próxima seção. Mas quaisquer outros parecem ser tão fundamentais na expressão original ou a ser sustentados com a mesma consistência de ênfase por todos os documentos do NT. Esses dois: Páscoa e Pentecostes, o Cristo ressur­reto e o Espírito derramado, formam o núcleo mínimo, a pressuposição de todo o restante, o critério pelo qual todos os outros podem ser vistos por conter um caráter cristão.

Há, contudo, uma exceção - um traço adicional da antiguidade e do cristianismo do NT que só recentemente ganhou relevância na dis­cussão ecumênica e que merece, consideravelmente, mais atenção do que até então recebera - o que talvez possa ser melhor descrito como a tensão fundamental entre o cristianismo e suas origens judaicas.9 O que nos conduz ao próximo tópico.

9 Estou pensando aqui no Relatório Romano, 1983, "The Apostolic Faith in the Scriptures and in the Early Church", em Apostolic Faith Today, org. H.-G. L ink, World Council of Churches 1985, partidularmente pp. 259-60,265.

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3. Tensão Fundamental

Pertence à essência do cristianismo o fato de ele ter emergido do judaísmo do séc. I. Jesus era um judeu. Os primeiríssimos cristãos foram todos ju­deus. O cristianismo começou como um movimento dentro do judaísmo, uma seita messiânica do judaísmo. Não se entendia como uma nova religião, mas antes como a expressão escatológica do judaísmo. Esse ponto é suficientemente bem conhecido e não necessita de elaboração adicional. O que não foi tão apreciado, contudo, é que essa relação fun­damental entre cristianismo e sua matriz judaica apresenta dentro do cristianismo uma tensão, uma tensão que é constituinte do cristianismo em virtude de suas origens. E a tensão de continuidade e descontinuidade. A tensão emerge do fato de essa continuidade e descontinuidade, do fato de que a continuidade e descontinuidade têm de ser mantidas jun­tas e nunca pode ser resolvida de uma vez por todas deste lado do escaton.

O ponto que necessita ser dito aqui é que essa tensão fundamental é tão fundamental para o cristianismo como os elementos, da unidade fundamental, já estudados. No coração da unidade fundamental há tam­bém uma tensão fundamental, inescapável e irresoluta assim como judeu e cristão seguem seus caminhos separados. Permita-me tentar docu­mentar esse ponto e demonstrar sua importância pela referência aos elementos de unidade fundamental já traçados e os outros elementos de consenso que rapidamente se tornaram definitivos para o ristianis- mo primitivo.

A ressurreição e o derramamento do Espírito são partes da espe­rança de Israel para era vindoura (p.ex. Dn 12.2; Jo 1 2.28-32). A ten­são emerge, mesmo aqui, porque o cristianismo baseia a reivindicação para essa esperança com já tendo sido cumprida, mas essa esperança interpretada à luz do cumprimento que realmente aconteceu. A ressur­reição de Jesus como única, não como parte do início da ressurreição final antes do juízo, como os primeiros cristãos parecem ter pensado (Rm 1.4 - a ressurreição de Jesus = "a ressurreição dos mortos"). O Espírito derramado sobre uma extensão limitada de "toda carne", não é parte dos eventos finais máximos marcados também pelas convul­sões cósmicas de que Joel falou. E esse elemento de reinterpretação da esperança judaica, que se originou imediatamente da experiência do Cristo ressurreto e da dádiva do Espírito, que também constrói a

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tensão não somente entre cristianismo e sua fé paterna, mas dentro do próprio cristianismo como judaísmo realizado. A tensão é entre o já e o ainda não10, a tensão de um cumprimento somente parcial, de uma continuidade que tem descontinuidade suficiente para o observador judeu ter bases razoáveis para questionar se é de fato cumprimento em absoluto.

Em outras palavras, a fim entender sua unidade fundamental, o cristianismo tem de entender essas duas crenças cristãs mais básicas como o cumprimento escatológico da esperança judaica. Mas ao fazer essa mesma reivindicação tem de se interpretar essa esperança à luz do que realmente aconteceu na Páscoa e Pentecostes. O problema da demora da parusia, a diferença sempre alongada entre a primeira e a segunda vindas de Jesus, é, simplesmente, uma expressão desse traço fundamental do cristianismo. Igualmente o problema das formulações satisfatórias das doutrinas da santificação, perfeição cristã, plenitude do Espírito, e assim por diante, quando os cristãos começaram a afir­mar que eles já estavam na nova era, já eram parte da nova criação, já desfrutando o Espírito derramado em plenitude escatológica. A ten­são escatológica é constituinte do cristianismo que encontramos no NT. O que suas conseqüências são para a expressão de unidade fundamental requer uma reflexão muito grande.

O que é ainda mais notável é que tão logo ampliamos a área de unidade fundamental para além da Páscoa e Pentecostes encontramos que essa mesma tensão entre continuidade e descontinuidade com a matriz judaica do cristianismo é essencial e inevitável. Permita-me ilustrar.

(a) Cristianismo e o povo de Deus. A crença de que o cristianismo é a continuação e cumprimento escatológico de Israel, o povo de Deus, está espalhado dentro do NT, a convicção de que aqueles que creram em Cristo, gentios e judeus, constituíram um renovado ou até mesmo um novo Israel. E particularmente importante para Mateus, Paulo e Hebreus, e é proeminente também, de modos diferentes, nos

1 Utilizo os termos que se tornaram familiares ao se falar da tensão escatológica classicamente descrita por O. C ullmann em seu Christ and Time, London: SCM Press, edição revisada 1962. A importância dessa tensão entre Leste e Oeste é salientada por J. M. R. T illard, "We are Different", Fundamental Differences, Fun­damental Consensus, Midstream 25,1986, ppí 279,281.

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escritos de Lucas, o Quarto Evangelho, 1 Pedro e Apocalipse. Mas a descontinuidade, e em termos de discordância histórica, emerge com a reivindicação de que os gentios são partes desse Israel, e são, tão simplesmente, pela virtude de sua fé no Cristo ressurreto. A tensão nesse ponto entra no fundo do coração de nossa concepção do povo de Deus11. Quem é o povo de Deus? Aqueles a quem as promessas aos patriarcas foram dadas? - uma promessa e chamado que Paulo nos diz irrevogável (Rm 11.29). Ou somente aqueles judeus que crêem em Jesus como o Messias? E se os gentios são membros puramente pela fé, então o que será dos judeus que (ainda) não crêem em Jesus como o Messias? Essa tensão permanece insolúvel no NT, mesmo a despeito dos esfor­ços de Paulo (Rm 9-11), e se mostra proveitosa ao anti-semitismo que tem sido uma espécie de mancha terrível na história cristã. E insolúvel porque está no coração do cristianismo. O maior cisma na história da salvação não é entre Católicos e Protestantes ou entre Oriente e Ocidente, mas entre judaísmo e cristianismo. Mesmo se todos os nossos esforços ecumê­nicos atuais forem bem sucedidos essa tensão permanecerá insolúvel. Mesmo no nível de unidade fundamental a questão de como judeus e cristãos se relacionam um com o outro dentro dos propósitos de Deus permanece aberta e não respondida.

(b) O mesmo é verdade com respeito às Escrituras. Um paradoxo fundamental no coração do cristianismo é a sua reivindicação de que o Antigo Testamento também é parte dos seus escritos sagrados. Não há necessidade de documentar o grau de continuidade em que o NT reivindica o AT. Mesmo se, excepcionalmente, as Epístolas Joaninas nunca citem o AT, ainda permanece verdade que o AT é a subestrutura da teologia do NT12. Mas aqui muito do fato da descontinuidade entre judaísmo e cristianismo é inevitável, e, com efeito, mais pronuncia­da. Pois o cristianismo toma as escrituras Judaicas somente de modo seletivo. Pela referência à Páscoa e ao Pentecostes, grandes extensões do AT vêm a ser desconsideradas pelo crescente domínio das igrejas gentílicas. As leis de sacrifícios tão importantes ao Pentateuco, são co­locadas de lado. Assim também as leis dietéticas, e mesmo um dos dez

11 Ver particularmente M. B arth , The People o f God, Sheffield: JSOT 1983: a versão primitiva em Paulus - Apostat order Apostel?, Regensburg: Pustet 1977.

12 Usa-se a imagem oferecida por C. H. D odd, According to the Scriptures, London: Nisbet 1952.

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mandamentos, a lei do Sábado. E talvez mais surpreendente de tudo, a lei da circuncisão, ainda que fora dada a Abraão como um sinal da aliança de Deus com ele: "Uma aliança eterna" (Gn 17.11-13). Esse apelo ao AT como escritura, que ao mesmo tempo descarta muito dessa escritura, constrói uma tensão dentro do cristianismo que nun­ca foi resolvido, e, de fato, nunca será resolvido ainda que judeus e cristãos venham juntos em comum adoração ao Deus único. Não somente isso, mas tomar tantos capítulos como escritura por ignorar seus sentido mais óbvios e importe é para legitimar uma hermenêu­tica cheia de problemas para nossa interpretação, não somente do AT, mas do NT também. Aqui, mais uma vez, no centro do cristianis­mo estão questões que não permitem nenhuma resposta simples ou final.

(c) Um ponto similar pode ser feito com respeito à adoração e ordem. Característica dos escritores do NT, aqui também, é a noção de novida­de escatológica, da era vindoura - de uma realidade de adoração que transcende as formas e estruturas da antiga era e que pertence à era da proximidade espiritual. Adoração não é mais uma matéria de lugar sa­grado, Gerizim ou Jerusalém, mas uma adoração em Espírito e verda­de (Jo 4.20-24). Adoração como ato congregacional coletivo, um corpo em integração carismática e interdependência (ICor 12; Rm 12; Ef 4). Adoração não mais como da era antiga, onde sacerdotes deviam ofe­recer os mesmos sacrifícios ano após ano, mas agora da nova era onde cada adorador pode entrar na presença imediata de Deus somente com Cristo como sacerdote e mediador (Hebreus). A linguagem sacerdotal ainda é usada, mas em seu cumprimento escatológico - congregações cristãs tão completas como: "Um sacerdócio santo e real" (lPd 2.5, 9; Ap 1.6). A linguagem de sacrifício e de ministério sacerdotal ainda é usada, mas é o sacrifício de cada cristão nos relacionamentos sociais cotidianos (Rm 12.1)13, o ministério de serviço comprometido, seja o que for esse serviço, como Paulo mostra ao descrever seu próprio mi­nistério e aquele de Epafrodito (Rm 15.16; F1 2.17, 25).

Nesse caso a tensão se expressa no fato de que a despeito dessa ênfase consistente do NT sobre a descontinuidade com as formas e

13 A questão recebeu ênfase justificável por E. K àsemann, "Worship in Everyday Life: A Note on Romans 12", New Testament Questions o f Today, London: SCM Press 1969, pp. 188-95; ver também meu Romans, WBC 38 pp. 709-12.

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ordem do culto Judaico, o cristianismo começou logo após reafirmar um grau bem mais forte de continuidade, ao re-adotar as categorias de sacerdócio e sacrifício que os escritores do NT haviam deixado para trás. Aqui o especialista do NT tem a responsabilidade desconfor­tável de perguntar: a aceitação de uma ordem de sacerdócio, essen­cialmente diferente do sacerdócio de todos os crentes14, sinaliza uma perda crucial daquela perspectiva escatológica tão fundamental para o cristianismo do NT? Ou de modo mais simples: Os escritores do NT não considerariam a reaparecimento de tal ordem de sacerdócio, mais como aquele de Aarão do que como aquele de Melquisedeque, como um retorno ao que Hebreus, certamente, considera como a era da imperfeição e sombras? Ali pareceria muito mais que a tensão não deve ser achada dentro do próprio NT, onde a descontinuidade é muito mais marcada do que a da continuidade. Ou posto de outro modo, a tensão agora parece recair entre o NT de um lado e a tradi­ção cristã como desenvolvida subseqüentemente de outro. E muita ousadia para um neotestamentólogo do NT protestante proferindo uma conferência em Roma sugerir que qualquer tentativa do cristia­nismo certamente é aceita com o caráter escatológico de suas origens não pode evitar se endereçar, mesmo nesse assunto, e não podendo evitar ainda dar uma reflexão adicional à questão de como o conceito e prática de sacerdócio ministerial se relaciona àquele do ministério da totalidade do povo de Deus?15

(d) Pontos similares podem ser feitos com respeito a outros traços fundamentais do cristianismo primitivo. Por exemplo, "justificação pela fé". Como Krister Stendahl indicou há um quarto de século atrás, jus­tificação pela fé veio a expressão como uma maneira de dizer que os gentios assim como os judeus são completa e igualmente aceitos por

14 Estou, de fato, ecoando o Vaticano II, Lumen Gentium § 10: "Há uma diferença essencial entre o sacerdócio do fiel em comum e o sacerdócio do ministro ou a hierarquia e não apenas uma diferença de grau." O ARCIC Report, "Ministry and Ordination", 1973, ecoa essa visão (§§13-14). Mas eu noto a qualificação importante discutida por E. S chillebeeckx, Ministry, London: SCM Press 1981, que: "Na igreja antiga a totalidade da comunidade crente celebrava, embora sob a liderança de alguém que presidia a comunidade" (p. 49).

15 Meu ponto, com certeza, é que Lumen Gentium só pode ser o princípio de uma reapropriação do ministério do corpo inteiro de Cristo para uma igreja que leva o semper reformanda com a devida seriedade.

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Deus mediante Cristo como membros de seu povo16. Como a procla­mação da justiça salvífica de Deus, justificação pela fé é realmente parte da herança do AT ao NT (particularmente os Salmos e Dêutero-Isaías). Mas em sua distinção como uma doutrina cristã, a justificação pela fé emergiu precisamente sobre a interface da continuidade/descontinui­dade cristã/judaica. De modo que somente mais tarde a tensão entre luteranos e católicos sobre a temática da fé e obras está enraizada na tensão causada pela reinterpretação cristã primitiva da aliança com Is­rael - uma tensão, ainda ai, dentro do NT, entre Paulo e Tiago, uma tensão inevitável dentro do cristianismo, por causa de suas raízes na revelação dada a Israel.

Poderíamos apenas notar que uma tensão conseqüente focaliza sobre a centralidade do mandamento do amor na ética cristã. O tema entre judaísmo e cristianismo não era acerca de; "Amar o teu próximo como a ti mesmo" era um resumo legítimo da lei com respeito às relações humanas. Havia muitíssimos dentro do judaísmo que concordariam com Jesus e Paulo de que Lv 19.18 condensava tais obrigações sociais e que o próximo incluiria um gentio. A disputa real era se o amar ao próximo só poderia, apropriadamente, ser exercido ao levar o próximo para dentro da lei.17 Ou seria oferecida ao próximo sem qualquer con­dição. A tensão do séc. XX dentro do cristianismo entre o Evangelho "evangélico" do velho estilo e o assim chamado "evangelho social" tem suas raízes aí.

Podemos ainda incluir a doutrina de Deus neste ponto. A ten­são entre o entendimento cristão de Deus emerge precisamente por causa da necessidade constrangedora para os cristãos de dar signi­ficância adequada ao evento da revelação de Cristo dentro da dou­trina judaica de Deus como único18. A doutrina cristã da Trindade

16 "The Apostle Paul and the Introspective Conscience of the West", HTR, 56, 1963, pp. 199-215; reimpresso em seu Paul among Jews and Gentiles, London: SCM Press/Philadelphia: Fortress 1977.

17 Cf. dois dos ditos atribuídos a Hillel: "Aquilo que você odeia, não faça ao seu companheiro; isso é toda a lei; o resto é comentário; vá e aprenda isso" (bShab. 3 1 a ); "Ser dos discípulos de Aarão, amando a paz e perseguindo a paz, amando a humanidade e trazendo-a próxima da lei" (m.Abot 1.12).

18 Tentei refletir em maior medida sobre este tema em uma série de publicações: Christology in the Making, 1980, particularmente os caps. 5-7; também um de­bate com Maurice Wiles em Theology, 85,1982, pp. 96-8,326-30,360-61; também

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não é tanto uma solução dessa tensão, mas um modo de viver com ela, uma definição heurística de Deus, um reconhecimento de que o mistério de Deus nunca pode ser contido dentro das formulações inadequadas das formulações humanas. A doutrina cristã da encar­nação emerge, inicialmente, como uma maneira de sustentar que a auto-revelação de Deus veio a ser definitiva e a expressão final não na Torá escrita, mas na pessoa humana de Jesus de Nazaré, uma revelação menos capaz de ser reduzida a qualquer forma particular de palavras.

(e) Finalmente citaremos como exemplos os dois sacramentos (in­discutíveis). Aqui estamos tão próximos dos elementos de unidade fundamental como em qualquer lugar no NT. Pois o batismo no nome de Cristo era evidentemente um traço distintivo do cristianismo desde o princípio e é concedido pelos escritores do NT. E as palavras faladas por Jesus na noite em que foi traído eram evidentemente apreciadas, passadas adiante e recordadas pela repetição regular desde o início. Mas aqui também não é possível escapar da tensão fundamental das origens do cristianismo judaico. Seria o batismo como a circuncisão, uma marca de família, de pertencer a uma tribo ou nação? Ou a nova aliança equivalente seria melhor vista como: "a circuncisão do cora­ção", o dom pentecostal do Espírito, dádiva a fé no Cristo ressurreto?19 A tensão que ainda aflige o entendimento cristão do batismo, particu­larmente em relação à fé, surge da continuidade/descontinuidade da nova aliança com a antiga e é inevitável como tal. E o quanto a ceia do Senhor se relaciona à refeição pascal e à companhia de mesa que era um pilar do ministério de Jesus, pelo menos seu ministério entre "os coletores de impostos e pecadores"?20 Em que medida as tensões que ainda afligem nosso entendimento da eucaristia são o resultado direto de abstraí-la de seu contexto original dentro de uma refeição e alinhá- la mais a um ato ritual de sacerdócio e sacrifício? Aqui, novamente, as questões suscitadas parecem inevitáveis devido à tensão fundamental que resulta das origens do cristianismo no judaísmo.

"W as Christianity a Monotheistic Faith from the Beginning?", Scottish Journal of Theology, 35, 1982, pp. 303-36; também "Let John be John - A Gospel for its Time", em Das Evangelium un die Evangelien, org. P. S tuhlmacher, Tübingen: Mohr 1983, pp. 309-39; ver minha Christology, 2ná edition 1989, pp. XXVI-XXXI.

19 Um tema central do meu Baptism.2° Ver p.ex. J. R eumann, The Supper o fth e Lord, Philadelphia: Fortress 1985, pp. 4-5.

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Para resumir, no coração da unidade fundamental que encontramos no NT também encontramos uma tensão fundamental. O cristianismo se entende em continuidade com a fé do AT, e não pode ser entendido de modo diferente. Ao mesmo tempo, tem de afirmar um grau de descontinuidade com o AT a fim de fazer sentido de suas próprias reivindicações distintivas, um cumprimento que transformá algumas categorias judaicas básicas e anulam outras. Essa continuidade e essa descontinuidade são forças que atraem o cristianismo em diferentes direções e criam uma tensão que é parte do cristianismo. As tensões que nas gerações subseqüentes apresentavam o risco de dividir o cristianismo em duas ou mais peças, existiam desde o início, devido ao cristianismo ser constituído como produto do judaísmo como era antes de Cristo.

Resumindo, quando levantamos nosso olhar para além dos ele­mentos nucleares da unidade fundamental nos encontramos ainda em um nível fundamental de auto-entendimento cristão. Mas também encontramos que esse auto-entendimento contém uma tensão que o perpassa completamente, porque isso envolve um diálogo incompleto com o judaísmo do qual o cristianismo brotou; uma ambigüidade não resolvida do relacionamento contínuo do cristianismo com as escritu­ras judaicas e a fé e povo que testemunha. E a implicação clara parece ser que, contanto que esse diálogo permaneça incompleto, essa ambi­güidade permanece sem solução o próprio cristianismo nunca poderá esperar alcançar a expressão final de sua fé e culto como o povo de Deus.

Isso nos leva à nossa seção final.

4. Diversidade Fundamental

O fenômeno da diversidade fundamental no NT é uma conseqü­ência direta de dois traços aos quais já temos prestado atenção. Uma é a diversidade de situações e contextos humanos em que o Evange­lho veio à expressão desde o início, e o fato de que toda expressão do Evangelho era condicionada por sua situação e contexto particulares em um grau ou outro. A diversidade de expressão era uma conseqü­ência inevitável. O outro traço é a tensão fundamental apenas descrita e ilustrada - não que isso, igualmente, seja um fator em todos os casos. E ambos, é claro, são conseqüências do fato que qualquer tentativa de

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falar de Deus, provavelmente, será provisória, qualquer tentativa de restringir a realidade divina dentro do discurso e ato humanos, pro­vavelmente será inadequada em maior ou menor grau, contudo "ade­quado" podemos encontrar para os propósitos de confissão comuns e de culto.

Isso é verdade mesmo das nossas declarações normativas, no NT ou em qualquer outro lugar. Como eu indiquei em Unidade e Diversidade no Novo Testamento, não há nenhuma formulação única do Evangelho que se mantenha imutável por todo o NT. Em contextos e escritores diferentes encontramos o Evangelho tomando formas diferentes, con­tendo elementos diferentes. Páscoa e Pentecostes permanecem mais ou menos constantes - o chamado à fé no Ressurreto acompanhada pela promessa do Espírito. Mas, até mesmo, eles vêm em diversidade de expressão. Para realizar uma formulação mais universal teríamos de abstrai-la da diversidade de formas, para resumi-la em palavras que nunca poderíamos realmente foram utilizadas por qualquer escritor do NT - frases resumidas como Páscoa e Pentecostes. Estamos suficien­temente confiantes de que podemos falar do mesmo Evangelho vindo à expressão em todas essas proclamações específicas, mas ao mesmo tempo temos de aceitar o fato desconfortável de que não há nenhuma expressão final ou finalmente definitiva desse Evangelho21.

A diversidade dentro do NT pode ser suficientemente ilustrada. Por exemplo, o fato dos quatro evangelhos. Não só uma exposição co­nectada da vida e ministério, morte e ressurreição de Jesus foi consi­derada suficiente. E essa diversidade é ampla e flexível o suficiente para conter, por exemplo, duas descrições significativas da atitude de Jesus para com a Lei em Mateus e Marcos. Marcos pode rapidamente assumir que Jesus por suas palavras e ações destruiu e dispensou de uma vez toda a extensão da lei (as leis a respeito de alimentos puros e impuros - Mc 7.15, 18s.). Mas Mateus em contraste sente que ela é necessária para retratar Jesus como negando tal intenção (Mt 5.17-20)22. Aí a tensão fundamental empurra fortemente em diferentes direções

21 Unidade e Diversidade no Novo Testamento, §7, pp. 29-31 (= pp. 30s. acima).22 Mais detalhes ver Unidade e Diversidade no Novo Testamento pp. 371-374 acima),

e o tratamento completo da tradição de Marcos 7 em meu "Jesus and Ritual Purity": A Study of the Tradition History of Mark 7.15", A cause de Vevangile, J. D upont Festschrift, (Lectio Divina 123, Cerf 1985, pp. 251-76; reimpresso em Jesu s , Paul and the Law, London: SPCIK/Louisville: Westminster 1990, cap. 2.

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- provavelmente devido aos evangelhos terem sido escritos para gru­pos muito diferentes de cristãos, que também diferiam em seu entendi­mento e prática da Lei, mas que ambos buscavam o ministério de Jesus para direção nessa questão.

Outro exemplo são os conceitos diferentes de apostolado dentro do NT. Há concordância de que apostolado nasce de uma comissão do Cristo ressurreto durante o período limitado de suas aparições da ressurreição (At 1.21s.; ICor 15.8). Mas, para além disso, a diversidade torna-se mais proeminente. Paulo considera o estabelecimento bem su­cedido de novas igrejas como essência de apostolado (ICor 9.1s.), e em conseqüência ele pode falar de cada igreja tendo seus (próprios) após­tolos, aqueles que as trouxeram à existência (ICor 12.27s.). Além disso, ele considera a autoridade dos apóstolos como limitada por sua comis­são divina, limitada à esfera de suas atuações (2Cor 10.13-16; G12.7-9), de modo que ele nunca pensa exercitar sua autoridade apostólica em Jerusalém, enquanto violentamente resiste à qualquer usurpação de seu próprio território (G11.6-9; 2Cor 11.1-15). Lucas, contudo, parece pensar dos apóstolos como mais ou menos sinônimos dos "Doze" {p.ex. At 1.21-26; 6.2), e tenta em alguma medida mostrar o apostolado de Jerusalém como permanentemente residente em Jerusalém, como so­mente um ou dois ocupados em missão e de outro lado exercendo um papel supervisor durante a expansão (inicial) (p.ex. At 8 .1 ,1.4s; 11.22)23. Aqui de novo temos uma expressão da diversidade que emerge direta­mente da tensão fundamental dentro cristianismo, com Lucas usando o conceito de apostolado para enfatizar continuidade do cristianismo com seus antecedentes judaicos, enquanto Paulo enfatiza o elemento de descontinuidade com sua forte insistência sobre seu apostolado gentio. Poderíamos, simplesmente, nos recordar como esses concei­tos diferentes de missão deram surgimento para uma das linguagens mais violentas no NT, com Paulo desejando que aqueles que ordenam a circuncisão deveriam se castrar (G15.12)!, e denunciando outros mis­sionários como falsos apóstolos e servos de Satanás (2Cor 11.13-15). Não é o que desejaríamos chamar de linguagem do diálogo ecumênico amigável!24

23 Ver mais em Jesus anã the Spirit, pp. 110-14, 272-80; também Unity, pp. 184s acima).

24 Veja também Evidencefor Jesus, cap. 4.

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A questão poderia ser ilustrada mais pela referência aos assun­tos tratados sob o título de "Tensão Fundamental" 25. Mas talvez não necessitemos mais do que recordar a diversidade dos próprios docu­mentos do NT, a diversidade dentro do cânon. Podemos considerá-la parte da sabedoria dos pais primitivos da Igreja que eles reconheciam que o cristianismo só pode existir em uma diversidade de formas e reconhe­ciam a importância da percepção ao consagrá-la em um cânon diverso. A abertura para a nova revelação e ênfase carismática de Paulo. O cará­ter fortemente judaico de Tiago. A valorização da Igreja oficial, do caris­ma cotidiano nas Pastorais. O entusiasmo de Lucas, as profundidades místicas de João, e as visões apocalípticas de seu homônimo. O cânon contém todos esses tipos de cristianismo, provavelmente em reconheci­mento porque o cristianismo só pode existir em formas diversas, e sem­pre o faz. O cânon canoniza a diversidade bem como a unidade!26

A questão, então, é que a diversidade não é uma espécie traço secundário do cristianismo, não apenas uma seqüência de aspectos temporários que podem ser descartados para deixar um núcleo vir­gem, puro, imutável. Diversidade é fundamental ao cristianismo. Tão fun­damental como a unidade e a tensão. O cristianismo só pode existir nas expressões concretas e essas expressões concretas são inevitavelmente diferentes uma das outras27. Para ser cristianismo tem que ser diverso.

25 Eu talvez não precisasse tratar mais completamente como exemplo da cristo­logia em si visto que eu expressei tais pontos em Unidade e Diversidade no Novo Testamento, §§ 8-14,51-2, e em Christology, pp. 265-7, foi bem expresso em Odes­sa Report 1981. "The Ecumenical Importance of the Nicene-Constantinopolitan Creed Apostolic", Apostolic Faith Today, pp. 251, 253.

2,1 A famosa (ou infame) assertiva de E. K àsemann - "O cânon do NT como tal não constitui o fundamento da unidade da Igreja. Ao contrário, como tal (isto é, em sua acessibilidade ao historiador) ele fornece a base para a multiplicidade de con­fissões", "The New Testament Canon and the Unity of the Church", Essays on New Testament Themes, London: SCM Press 1964, p. 103 - talvez tenha sido decla­rada muito provocativamente, ainda que contenha um reconhecimento da diver­sidade do NT cujo desafio não se deixa ser ignorado. Mas certamente não deve ser tomada para justificar: "Uma pluralidade de totalidade separada ou igrejas oponentes", como C ongar (abaixo nota 28) corretamente observa (Diversity, p . 6).

27 Cf. as palavras de B onhoeffer: "A Igreja Confessante não confessa in abstrac­ta... Ela confessa in concretissima contra a igreja 'Cristã Alemã'..." - citado por U. D uchrow , "The Confessing Church and the Ecumenical Movement", Ecume­nical Review, 33, 1981, p. 214.

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Esse é um ponto que tem sido considerado nas discussões ecumênicas, particularmente nos últimos 10 anos ou mais - que a diversidade co­existe com uma unidade, concorda com ela, porque a unidade existe na diversidade28. Mas o que talvez necessite ser dada maior atenção ao fato de que o NT contém o modelo arquetípico da unidade na diversidade- a saber, o corpo de Cristo.

A metáfora da igreja como um corpo é u sado em três cartas paulinas diferentes, e de três maneiras diferentes. Em Romanos, Paulo fala de: "Um corpo em Cristo" (Rm 12.5); em 1 Coríntios de Cristo como "um corpo" (ICor 12.12) e em Efésios Cristo é a ca­beça do corpo (Ef 4.15). Mas em cada ocasião Paulo enfatiza que a unidade do corpo é uma unidade na diversidade. Pois, a questão a ser colocada, freqüentemente, a audiências diferentes é a indicação suficiente de sua importância. A questão é que o corpo somente existe com uma unidade pela virtude de sua diversidade. No famoso capítulo 12 de 1 Coríntios Paulo ridiculariza a idéia de um corpo que ti­nha somente um órgão: "Se todo o corpo fosse olho, onde estaria o ouvido? Se todo fosse ouvido, onde, o olfato? Mas Deus dispôs os membros, colocando cada um deles no corpo, como lhe aprouve. Se todos, porém, fossem um só membro, onde estaria o corpo? O certo é que há muitos membros, mas um só corpo" (ICor 12.17-20). A questão é clara: sem a diversidade o corpo não poderia existir como um corpo. A diversidade não é uma racionalização lamentável de um estado de coisas insatisfatório, nem o declínio de um ideal mais alto para o que é necessário arrependimento. Ao contrário, a diver­sidade é integrante do padrão de comunidade que Deus estabelece­ra. Sem a diversidade não pode haver unidade, a unidade que Deus planejou.

Paulo também fornece alguma indicação de como via esse ideal da unidade na diversidade operando na prática. Penso aqui em

28 Ver p.ex. o "Leuenberg Agreem ent" em A postolic Faith Today, §45; Baptism, Eucharist and M inistry, W orld Council of Churches 1982, §23; o tema da diversidade reconciliada, introduzido por H. M eyer , com as reflexões de Y. C on g ar sobre o assunto em D iversity and Communion, London: SCM Press 1984, pp. 145-58, e seu apelo ao reconhecimento de que: "D iversidade sem­pre foi aceita na unidade da fé", D iversity cap. 3; P. Avis, Ecum enical Theo­logy and the Elusiveness o f D octrine, London: SPCK 1986, particularm ente o cap. 7.

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Romanos 14.1-15.629. Aí ele trata com o problema do desacordo dentro da Igreja e dá orientação de como enfrentá-lo. O desacordo era sobre a comida - o que é permitido aos crentes comer (Rm 14.2); também a respeito de dias santos - se alguns dias teriam especial significância (14.5); não se devia pensar que essas eram questões menores - mera­mente sobre vegetarianos ou alguns dias festivos particulares. Ao con­trário, o que temos aí é quase certamente uma expressão adicional da tensão fundamental. Para aqueles que não comiam carne e que deseja­vam observar alguns dias como especiais certamente teriam, no míni­mo, incluído cristão-judeus. E para os judeus devotos a observância de leis dietéticas e a lei sabática estavam no centro da obrigação deles por serem membros do povo da aliança de Deus. Eles não poderiam ceder a esses assuntos sem invocar para exame sua história e tradições, sem desonrar o sangue dos mártires (Macabeus) que morreram por essas crenças (lM c 1.62s. "Muitos em Israel ficaram firmes e se mostraram irredutíveis em não comerem nada de impuro. Aceitaram antes morrer que se contaminar com alimento e profanar a santa Aliança; como de fato morreram"). O que estava em jogo era seu entendimento da Alian­ça e das obrigações próprias do povo de Deus - assuntos profundos e fundamentais30.

A orientação dada por Paulo é clara e direta. É a de que essas duas visões opostas seriam aceitáveis para Deus. Haveria desacordos a respeito de assuntos que eram fundamentais aos partidos diferentes e ainda ambos seriam sustentados por Deus. Não era necessário que um estivesse errado a fim de outro estar certo. A conseqüência era que cada um deveria aceitar o outro, a despeito da diversidade das visões. Cada um deveria respeitar o outro crente, que é respeitar o seu direito

29 Com certeza a imagem do corpo possui uma referência particular ao ministé­rio, mas Rm 14, também se preocupa com as relações mútuas dentro da con­gregação cristã, e por situar a imagem do corpo no início da seção completa sobre relacionamentos (cap. 12-15), Paulo, provavelmente, destinou a imagem da comunidade cristã como corpo para ser delimitativa também para a última passagem; cf. particularmente Rm 12.3 com 14 .4 ,22s.

30 A importância das leis dietéticas para a auto-identidade judaica também é indi­cada pelos três escritos mais populares "intertestamentários", Daniel, Judite e Tobias, todos dão especial proeminência a fidelidade dos heróis e heroínas nes­sa matéria (Dn 1.8-16; Tb 1.10-13; Jd 12.1-4). Como para a significância central do sábado podemos notar especialmente Ex 31.13,16; Is 56.6; Jubileus 2.17-33.

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a continuar sustentando uma opinião deveras distinta, e não usar sua própria consciência como uma vara para ferir o outro, e não vê-la como seu dever de convencer o outro do erro (Rm 14.3-13). Aqui diríamos há um modelo de diversidade reconciliada31 - a disposição para defender o direito do outro de sustentar uma opinião diferente da minha própria a respeito de assuntos que eu considero como fundamentais para um entendimento apropriado da fé, e a aceitação de que o outro como um comigo na diversidade de um corpo de Cristo.

Romanos 14 refere-se, é claro, à igreja local, ou mais precisamen­te, às várias congregações domésticas em Roma. Mas Efésios mostra que a imagem do corpo transporta-se para a igreja como universal. Na escala universal os desacordos seriam da mesma ordem - congrega­ções cristãs-judaicas que entendiam o Evangelho e suas realizações em termos de forte continuidade com o judaísmo primitivo; congregações largamente gentílicas que enfatizavam a descontinuidade ao desconsi­derar a Lei e os padrões mais tradicionais do culto e ordem Judaicos; e congregações mistas, como aquelas em Roma, que conviviam com as tensões internas o melhor que podiam. A questão é que a orientação de Paulo em Romanos 14 parece ser igualmente aplicável: devia ser claro em sua própria mente acerca do certo para a sua congregação; mas não insistir que qualquer outra congregação concordasse com você em tudo, mesmo sobre pontos que você sustenta ser de vital importân­cia; aceitar que o outro que invoca a Jesus como Senhor é igualmente cristão, igualmente, aceito por seu Senhor em comum, e continuar a adorar juntos. Somente se houver a diversidade haverá um corpo; mas somente se a diversidade for diversidade harmoniosa é que será um só corpo.

Outro pensamento pode se seguir da concepção de Paulo da Igreja como o corpo de Cristo. Paulo certamente usa o termo corpo de outros modos antes que em referência à igreja local ou sob outros aspectos. Seu uso mais comum é em referência ao corpo do indivíduo. O corpo do crente é o corpo mortal, o corpo da carne; como pertence a esta era, é parte do ainda não escatológico e como tal se consumirá, um corpo perecível, do pó ao pó, para ser despojado na morte e transformado ou redimido na ressurreição (p.ex. Rm 8.11; ICor 15.42-50; F13.21). Se o cor­po físico é a incorporação do crente individual nesta era, de modo que

Ver nota 28 acima.

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podemos dizer que a estrutura da igreja é a incorporação do corpo coletivo dos crentes. Em cujo caso as formas tomadas pela igreja como corpo nesta era precisam partilhar o caráter do corpo físico, perecí­vel, corruptível, do pó ao pó. A questão é que isso deveria ser verdade para Paulo mesmo para a igreja como o corpo de Cristo. Pois a igreja como corpo de Cristo não é o corpo ressurreto de Cristo32; porque a transformação, como no caso do indivíduo, espera pela ressurreição. A igreja nesta era é o corpo crucificado de Cristo, seu corpo partido, ainda não seu corpo de glória. Conseqüentemente, podemos dizer que a diversidade dos membros do corpo universal de Cristo também é uma expressão da natureza transitória de todos os corpos nesta era, a incompletude do ainda não escatológico.

Se esta linha de pensamento é seguida ou não, a questão principal desta última seção é que a diversidade é inevitável quando olhamos para o cristianismo que vemos atestado no NT. Em termos históricos não pode­mos ignorar a diversidade do cristianismo do séc. I, particularmente do cristianismo cristão-judaico e cristão-gentílico, com todas as dife­renças envolvidas de ênfase e atitude, de forma confessional ou litúr- gica. Cristãos discordavam uns com os outros, freqüentemente acerca de assuntos que eram importantes para um e outro, e com freqüência fervorosamente. A análise sofisticada das diferenças fundamentais, que são traços do ecumenismo contemporâneo33, poderia ser aplicada às diferenças fundamentais dentro do cristianismo apostólico: as divisões entre oriente e ocidente, na análise final, não são mais profundas que aquelas entre Paulo e Tiago; o desafio para Lutero, "Somente você está certo e mil anos errados?" Foi de fato, primeiramente, atribuído a Pau­lo pelos Cristão-judeus.

Em termos teológicos não podemos ignorar a significância da ima­gem do corpo. A unidade do corpo chega à expressão por meio da diversidade de seus membros. Somente por seu funcionamento na di­versidade harmoniosa o corpo funciona como uno. Resumindo, a diver­sidade é tão fundamental ao cristianismo do NT como é a unidade da Páscoa e

32 Contra J. A. T. R obinson , The Body, London: SCM Press 1952, cap. 3 que faz uma síntese altamente questionável de diferentes elementos do pensamento de Paulo.

33 Ver, particularmente H. M eyer, "Fundamental Difference - Fundamental Con­sensus", Midstream, 25,1986, pp. 247-59.

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de Pentecostes e a tensão causada pelas origens judaicas do cristianismo. É o caminho da tensão que é vivido na realidade do ainda não escatológico. Sem isso a Igreja não pode existir como corpo de Cristo.

5. Conclusões

(a) Há uma unidade fundamental que nos é dada no NT que é a base do cristianismo e, portanto, a fonte da unidade cristã - a unidade enraizada na Páscoa e no Pentecostes. Não é capaz de uma expres­são única ou finalmente satisfatória na linguagem humana, mas pode ser confessada em palavra e culto com um poder unificador do que nenhuma controvérsia de palavras pode evitar. Esta unidade sozinha não é tudo o que pertence à essência do cristianismo, pois há também o que herda de sua fé antepassada, mas isso é onde a distinção do auto- entendimento do cristianismo começa.

Também é fundamental o fato da emergência do cristianismo do judaísmo do séc. I. Nisso o AT e a herança da história da salvação con­tém muito do que é integrante à unidade fundamental da Páscoa e Pentecostes - incluindo, digamos: "Uma só esperança, uma só fé, um só batismo e um só Deus" de Efésios 4.4-6. Mas a reivindicação do cris­tianismo para essa herança também apresenta uma tensão fundamental que é parte inevitável da fé cristã e que veio à mais trágica expressão no cisma entre o Israel de antigamente e o Israel dos tempos finais dos judeus e dos gentios. Isso quer dizer que a unidade pode ser expres­sa em termos mais completos do que a continuidade entre o Antigo Testamento e o Novo torna possível. Mas quanto mais a unidade é elaborada em termos de distinção quanto mais é apanhada na tensão da continuidade/descontinuidade que nunca poderá ser solucionada nesta era presente. A tensão é fundamental devido a revelação divina ter esticado a lógica e as categorias além de sua capacidade. O vinho novo de Cristo arrebenta os odres do antigo judaísmo.

A diversidade de expressão da verdade e vida, individuo e cole­tividade, portanto é inevitável quando gerações e culturas diferentes se esforçam para expressar tanto a unidade como a tensão em seus diferentes lugares vivências. O Evangelho de Cristo nunca pode vir a se adequar a expressão no abstrato, somente no concreto. Assim, com o corpo de Cristo; pode haver concordância no Evangelho mesmo sem concordância nas palavras que ò expressam. Pode haver a unicidade

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do corpo de Cristo sem concordância sobre as formas tomadas pelo corpo em sua existência concreta. A diversidade fundamental é uma ex­pressão inevitável da unidade fundamental dentro das imperfeições desta era.

Assim então: a idéia de um consenso fundamental tem bases bíblicas? Se há algo em tudo o que temos tentado dizer, a resposta deve ser sim. Apenas enquanto (1) não tentamos somar muito ao consenso; pois então rapidamente chegamos aos temas onde a ênfase é restringida para diferir e questões que precisam ser deixadas mais abertas do que na maioria de nossas confissões. Enquanto (2) não insistimos que o consenso pode ser expresso em um, e somente um, grupo de palavras; pois isso é fazer um ídolo de nossas formulações. E (3) enquanto não tentamos sustentar somente o consenso e ignorar a tensão ou suprimir a diversidade; um consenso sem a tensão e sem a diversidade é de uma só dimensão e de pouco valor permanente.

(b) É digno de refletir um pouco mais sobre o papel fundamental da experiência na unidade fundamental - particularmente com referência ao Espírito. O Espírito no NT é, caracteristicamente, um poder que ins­pira e ocupa as emoções em um nível profundo. Por exemplo, João fala do Espírito como: "Uma fonte de água jorrando para a vida eterna" (Jo 4; Lucas consistentemente descreve o Espírito como um poder que cai sobre o indivíduo, alcança quem está a frente em uma ação criativa e em um discurso extático (At 2.4; 8.18; 10.45s; 19.6); e Paulo pensa do dom do Espírito como o meio pelo qual: "O amor de Deus é derrama­do em nossos corações" (Rm 5.5) e como testemunha confirma com nosso espírito ao inspirar o nosso clamor " ‘Abba! Pai!" (Rm 8.15s.). Para Paulo em particular é essa experiência do Espírito que é o funda­mento e a influência formativa em suas vidas comuns como cristãos. A frase: "A comunhão do Espírito", konõnia tou pneumatos (2Cor 13.13 e 14), não denota uma entidade objetiva, uma congregação ou comu­nidade confessional criada pelo Espírito34. Antes deveria ser traduzida por participação no Espírito, como se referindo à experiência partilhada do Espírito. E essa experiência partilhada do Espírito que é a fonte do que agora mais usualmente pensamos de comunhão. Isso é porque a palavra koinõnia ocorre primeiramente na descrição da congregação cristã após

14 Esse é um equívoco exegético que meu muito estimado mestre Doctorfather, C. F. D. M oule, freqüentemente, nos advertia.

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o Pentecostes - uma nova experiência de comunidade foi a conseqüên­cia dessa experiência fundadora do Espírito que eles partilhavam (At 2.42). Assim também Paulo ao advertir os Filipenses contra a auto-su- ficiência e a presunção apela em termos emotivos precisamente à sua experiência partilhada do Espírito como provendo a fonte e motivação para um pensamento comum (F1 2.1 ss.).

A questão é que no centro da unidade fundamental do NT não está apenas uma doutrina da ressurreição de Cristo, mas a experiência da aceitação de Deus mediante o seu Espírito. A unidade fundamental das igrejas cristãs primitivas era uma unidade do espírito que se desen­volvia da experiência partilhada do Espírito de Deus. Era por ser batizado em um Espírito, por ter o Espírito sido derramado sobre eles, que eles se tornaram membros de um só corpo: a unicidade do corpo era uma conseqüência de seu partilhar um só Espírito (ICor 12.13). A unidade do Espírito não era algo que eles criaram ou fabricaram. Ao contrário, é algo que eles experimentaram como a operação do dom do Espírito de Deus. O mesmo ponto pode ser feito com referência aos elementos eucarísticos em 1 Coríntios 10. O cálice e o pão são descritos como um partilhar (koinõnia) no sangue e corpo de Cristo; "Nós, embora muitos, somos um só corpo, visto que, todos participamos desse único pão" (ICor 10.16s). A unicidade do corpo é a conseqüência não somente da unicidade do pão, mas da participação comum em um só pão. Aqui também a realidade da unicidade é algo que é dependente, algo que se suscita da experiência partilhada da comunhão.

Tudo isso me parece ser uma matéria de importância fundamen­tal para nossas discussões. Inevitavelmente dirigimos nossa atenção para declarações concordantes e liturgias comuns. Mas ao fazer assim é tudo muito fácil para esquecer que a unidade do Espírito é algo ex­perimentado como um dom gracioso de Deus. De acordo com o após­tolo Paulo, a unidade do corpo surge da experiência partilhada de um só Espírito e de um só pão. Não é algo estrutural como tal, nem algo que podemos criar ou impor mediante nossos labores ecumênicos. A comunhão do Espírito é algo descoberto, algo dado, e a menos que a unidade estrutural se desenvolva da experiência partilhada do Espíri­to, certamente não haverá esperança de sucesso.

(c) O caráter escatológico das origens do cristianismo dá surgi­mento para uma linha de reflexão adicional potencialmente importan­te. O cristianismo começou como um movimento de renovação dentro do

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judaísmo do séc. I. Começou como uma experiência de libertação, como um rompimento das fronteiras e um remodelar de tradições, como um movimento do Espírito vestindo-se de novas formas e se expres­sando em novas estruturas. Além do mais, esse auto-entendimento do cristianismo, como um movimento de libertação e renovação, fre­qüentemente de caráter entusiástico, foi consagrado dentro de nossos documentos fundadores, o NT. E integrante da descrição canônica do cristianismo.

Isso permanece verdadeiro ainda que haja claras indicações de en­tusiasmo desvanecendo e o modelo crescente de fé e ordem também dentro do NT, especialmente nas Pastorais; e mesmo que o cristianis­mo tenha, com freqüência, ocupando o mesmo tipo de solidez estru­tural e exclusividade como o judaísmo, contra o que Jesus e os primei­ros cristãos reagiram. A questão é que o cristianismo retém em suas escrituras sagradas não somente a tensão entre o Antigo Testamento e o Novo, mas também a inspiração e recursos para renovação; dentro das estruturas fornecidas pela igreja elas são flexíveis o suficiente, mas, deveríamos ser avisados, fora com elas se eles não forem.

De tudo o mais importante é, portanto, que a unidade estrutural que se desenvolve da experiência partilhada do Espírito seja suficien­temente não acabada para permitir que a diversidade dessa experi­ência venha a completude de expressão. De tudo o mais importante é que a unidade deveria ser ampla o suficiente para abarcar todos aqueles que regozijam na Páscoa e no Pentecostes e os confessam, aberta o su­ficiente para deixar tensões não resolvidas e sempre sujeitar as novas percepções e revelações, e flexível o suficiente para permitir a diversi­dade do corpo de Cristo se expressar em sua gama completa. A unidade só pode ser expressiva dentro da diversidade sem deixar as tensões separá-la.

(d) Resumindo, se podemos arriscar alguns sumários epigramáti­cos finais sobre aquilo que o NT parece oferecer às nossas deliberações. A unidade fundamental do Cristo ressurreto e o Espírito partilhado são as fontes da unidade cristã. A tensão fundamental significa que há assuntos básicos no cristianismo que não permitem uma resolução dentro do próprio cristianismo ou só dentro do cristianismo. A diver­sidade fundamental significa que uniformidade não é somente irrea­lizável, mas teologicamente erradas, visto que somente resultaria na diversidade fundamental se expressar em formas novas e cismáticas.

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Uma obrigação contínua dentro do movimento ecumênico é manter um equilíbrio bíblico e realista entre esses três fundamentos.

Com certeza, muito mais necessita ser dito sobre todas as ques­tões feitas acima. Cada tema necessita de análise muito mais cuida­dosa do que é possível dentro dos limites de um único ensaio. Além do mais, há aspectos importantes do tópico que eu fui incapaz de levar adiante - por exemplo, os limites da diversidade aceitável35, e as tensões que o cristianismo primitivo encontrou em outra fren­te quando entrou mais completamente no amplo mundo greco- romano (algo disso está sob a grande oração por unidade em Jo 17). E estou plenamente consciente de que o NT não é, de modo algum, o único fator na discussão completa, e essas me parecem ser considera­ções fundamentais que nos pressionam.

35 Ver nota 4 acima.

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BIBLIOGRAFIA SELECIONADA

Bibliografia geral e bibliografia selecionada dos capítulos indivi­duais. Outras referências estão contidas nas notas de rodapé. Presu­me-se que os leitores que desejarem uma bibliografia mais comple­ta, deverão consultar outras obras tais como: ABD (The Anchor Bible Dictionary), ANRW (Aufitieg und Niedergang der Römischen Welt), IZBG (Internationale Zeitschrift für Biblewissenschaft und Grenzgebiete), TDNT, and TRE (Theologische Realenzyklopädie).

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