corpo e arte contemporanea

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    CORPO E ARTE CONTEMPORNEA:o mosaico polimorfo em Farnese de Andrade

    Andr Luiz de Arajo1

    A obra A grande alegria, datada de 1966-1978, considerada pelo artista mineiro

    Farnese de Andrade um de seus primeiros objetos, revela-nos elementos de composio

    necessariamente contemporneos. A assemblage2 composta de fragmentos de boneca, bolas

    de vidro, fragmentos de madeira e de caixa de vidro torna-se, portanto, resultado de um

    agrupamento de matrias presentes no mundo usadas pelo artista para experimentao. Nesse

    sentido, o artista contemporneo um artista experimental.

    Num estudo sobre Lygia Clark e o conceito de arte contempornea, Suely Rolnik

    descreve que um dos aspectos do que muda e se radicaliza no contemporneo que, a partir

    do momento em que a arte passa a trabalhar qualquer matria do mundo e nele interferir

    diretamente, explicita-se de modo mais contundente que a arte uma prtica de

    problematizao: decifrao de signos, produo de sentidos, criao de mundos.

    exatamente nessa interferncia na cartografia vigente que a prtica esttica faz obra, sendo o

    bem-suceder da forma indissocivel de seu efeito de problematizao do mundo. O mundo

    liberta-se de um olhar que o reduz s suas formas constitudas e sua representao para se

    oferecer como matria trabalhada pela vida, como potncia de variao e, portanto, como

    matria em processo de arranjo de novas composies e engendramento de novas formas

    (ROLNIK, 2002, p. 44-45).

    Diferente da pobreza de experincia a que Walter Benjamin relaciona a vida moderna,

    Farnese torna-se implacvel por operar a partir de sua vivncia. Ele foi um construtor:

    mergulhou nas vsceras humanas, apropriou-se de objetos encontrados no lixo, de esqueletos

    de animais, do descartvel, dos dejetos produzidos pela sociedade de consumo, onde tudo

    efmero. Escolheu as imagens, enclausurou-as em oratrios, imobilizou-as em caixas de vidro,

    por conseguinte, atomizou-as em polister (resina). Esses objet trouv3 carregam consigo um

    tempo, uma memria, uma histria capturada e transformada pelo artista em assemblages.

    1Mestrando em Histria Social pela PUC-SP. Bolsista CNPq. E-mail: [email protected] artstico produzido pelo agrupamento de materiais diversos.3Objeto encontrado na natureza, como pedaos de madeira, conchas ou pedregulhos, que adquire um

    valor esttico pelas transformaes sofridas ao longo dos anos. Torna-se obra de arte pela intervenodo artista. O conceito surgiu com o movimento surrealista.

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    Nesse sentido, conclui Suely Rolnik que, nesse momento, a arte participa da decifrao

    dos signos, das mutaes sensveis, inventando formas pelas quais tais signos ganhamvisibilidade e integram-se ao mapa vigente. A arte , no entanto, uma prtica de

    experimentao que participa da transformao do mundo (ROLNIK, 2002, p. 45-46).

    Na srie Anunciao, datada de 1972, Farnese trabalha com uma santa, fragmentos

    de ornato, borboleta, taa com ovo e madeira, ex-voto/seio, fotografias resinadas e oratrios

    com portas espelhadas. Na perspectiva esttica, o sentido desse agrupamento de objetos

    presentificar o futuro e o passado, ou seja, criar por meio do simbolismo temas relacionados

    ao tempo. O tempo terrestre, mas tambm o tempo divino. Tempo do comeo e do fim. Tempo

    cronolgico e cclico. Na dissertao de Romilda F. P. Barreto, Anunciao a anjo de milasas,a narrativa potica de Farnese fala de temas relacionados ao tempo. O tempoque regula

    a dinmica da vida e da morte. O tempo que foi e no volta mais, o tempo vivido e o quase

    esquecido4.

    Assim, na definio de Beatriz Sarlo, a arte futuro, mesmo quando trabalha com o

    passado. O rtro, orevival podem ser programas estticos cuja validade s pode ser julgada

    pelo repertrio de respostas aos problemas semntico-formais que propem, pelas questes

    que deixam em aberto e pela forma como relacionam-se com outras perguntas anteriores,

    dando-as por encerradas ou dialogando com elas. Beatriz Sarlo escreve a propsito das

    vanguardas artsticas europeias: [...] transformaram esse aspecto da modernidade num ponto

    central de seu programa: o presente como tempo absoluto, forma atual do futuro, de onde se

    pode reler o passado: Lautramont contemporneo dos surrealistas; ou ento, Kafka e seus

    precursores, o presente como doador de sentido ao passado. (SARLO, 2005, p. 56).

    Outro aspecto interessante sobre o artista moderno que, no sculo XIX, j existia a

    negao do pensamento da arte como representao. Lembremos que Czanne dizia que o

    que ele pintava era a sensao. Mas o que vem a ser a sensao? Na definio de Deleuze, a

    sensao tem um lado voltado para o sujeito (o sistema nervoso o movimento vital, o instinto o

    temperamento, todo o vocabulrio comum ao Naturalismo e a Czanne) e um lado voltado

    para o objeto (o fato, o lugar, o acontecimento), ou seja, o mesmo corpo que d e recebe

    a sensao, que tanto objeto quanto sujeito. Assim, continua Deleuze, [...] a lio de

    Czanne vai alm dos impressionistas: no no jogo livre ou desencarnado da luz e da cor

    (impresses) que est a Sensao, mas no corpo, mesmo que no corpo de uma maa. A cor

    est no corpo, a sensao est no corpo, e no no ar. A sensao o que pintado. O que

    4BARRETO, R. F. P. Tempo em suspenso: objeto reconvocado em Farnese de Andrade. Dissertao(Mestrado em Artes) Universidade Federal do Esprito Santo, UFES, Esprito Santo, 2008. p. 141.

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    est pintado no quadro o corpo, no enquanto representado como objeto, mas enquanto

    vivido como experimentando determinada sensao (o que Lawrence, falando de Czanne,chamava de o ser manesco da ma). (DELEUZE, 2002, p. 42-43).

    Portanto, faz parte do processo de transio do moderno para o contemporneo a

    subjetividade do artista e seu contato com as coisas do mundo. Suely Rolnik inteiraria: a arte

    contempornea leva essa virada da arte moderna mais longe. Se o artista moderno no

    representa o mundo com base em uma forma que lhe transcendente, mas, no lugar disso,

    decifra e atualiza os devires do mundo, baseado em suas sensaes, e o faz na prpria

    imanncia da matria, j o artista contemporneo vai alm no s dos materiais

    tradicionalmente elaborados pela arte, mas tambm de seus procedimentos (escultura, pintura,desenho, gravura etc.). Ele toma a liberdade de explorar os materiais mais variados que

    compem o mundo, e de inventar o mtodo apropriado para cada tipo de explorao (ROLNIK,

    2002, p. 45-46).

    Contudo, a arte farnesiana composta por uma vasta produo na rea do desenho, da

    gravura, da pintura e do objeto. Sendo este ltimo o analisado para responder a nossa

    indagao: como escrever uma histria do corpo na arte contempornea?

    Para Denise SantAnna, escrever uma histria do corpo no uma tarefa fcil de

    concretizar, porque tudo o que se relaciona com o assunto , de um modo geral, remetido para

    as zonas mais obscuras da conduta humana. O corpo o lugar do que se esconde ao olhar, do

    que se furta promiscuidade, o espao da intimidade e da dissimulao dos subentendidos,

    do que no se diz ou v de imediato. Realizar uma histria do corpo um trabalho to vasto e

    arriscado quanto o de escrever uma histria da vida. Mesmo se restringindo ao estudo do corpo

    humano, so incontveis os caminhos e numerosas as formas de abordagem: da medicina

    arte, passando pela antropologia e pela moda, h sempre novas maneiras de conhecer o corpo,

    assim como possibilidades inditas de estranh-lo (SANTANNA, 2002, p. 3).

    Farnese de Andrade um dos poucos artistas, assim como Lygia Clark e Hlio Oiticica,

    que pertenceram e contriburam com sua genial produo a um momento de transio nas artes

    plsticas brasileiras. Do Moderno ao Contemporneo, do Concretismo ao Neoconcretismo,

    cada um em sua singularidade teve, no cerne de sua produo, o corpo como inspirao ou

    preocupao.

    Para Linda Hutcheon, no campo da arte, a manifestao do corpo perfaz uma

    (re)configurao de mudanas constantes, cujas circunstncias socioculturais inscrevem a

    reflexo crtica, cada vez mais dinmica de condies adaptativas a estratgias discursivas,

    evidenciado no seu uso como suporte, linguagem, tema, contedo etc. Explorado por

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    temporalidade, contingncia e instabilidade, historicamente o corpo sempre foi alvo temtico

    dos artistas para alm da performance. Contudo, sua maleabilidade de subtrair a representaocontempornea ajuda a (re)descobrir novos/outros caminhos inimaginveis. Linda acrescenta

    que, nesse percurso de possibilidades, a noo de corpo privilegia-se do estado da arte e

    adentra ao universo da subjetividade, em que surgem variantes poticas do prprio processo de

    criao da obra. Nesse caso, a potica aqui deve ser lida e vista como uma estrutura aberta em

    constante transformao (HUTCHEON, 1991).

    O trabalho de Farnese prope uma explorao radical e potica da problemtica do

    corpo: o questionamento da matria, da aura, da morte fsica, da relao entre corpo e

    memria, do erotismo, da dialtica do real e da imagem, da natureza e da cpia fabricada.Investiu no conflito e no na harmonia proposta pela sociedade capitalista em homogeneizar as

    aparncias. Farnese caminha entre as diversas polticas do corpo que se afirmaram nos ltimos

    40 anos.

    A historiadora Denise SantAnna descreve em seus estudos sobre as polticas do corpo,

    que no ano de 1960 na arte, h metamorfoses do corpo que modificam como forma de protesto

    e suas influncias esto em domnio diversos da cultura: da antimoda body art, passando

    pelas metamorfoses corporais dos modernos primitivos, existe uma considervel contestao

    homogeneizao das aparncias, ao imperativo seja sempre jovem e intensa explorao

    comercial. Nesse campo inserem-se os artistas que utilizam seus corpos para denunciar

    coaes sociais, sexuais e identitrias. Em certos casos, passa-se do corpo da pintura do

    quadro para o prprio corpo do artista (SANTANNA, 2002, p. 20)

    No Brasil, o pioneirismo de Lygia Clark foi em buscar na psicanlise a experincia de

    trabalhar junto com a arte, as polticas do corpo, e o de Hlio Oiticica, em incluir o corpo do

    espectador em sua obra, promovendo a interao corpo e obra. Ambos faziam parte do

    movimento neoconcreto, que se preocupava com a interao e a sensao do espectador com

    a obra. Lygia com os seus bichos e objetos relacionais e Hlio Oiticica com seus pangarols

    e performances pblicas.

    Farnese no pertenceu a nenhum movimento artstico, pois optou por prosseguir sua

    pesquisa individual, porm jamais fora das preocupaes relacionadas s transformaes das

    sensibilidades na arte do seu tempo. A fora motriz de Farnese, chamada desassossego,

    evoca a cena do grande arteso de corpos, em que o poder de criao que emana das mos

    do artista se concretiza na apropriao da matria. A partir dessa apropriao, a metamorfose

    corporal s possvel quando depositados os sentimentos humanos mais profundos.

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    Segundo Francis Bacon, a sensao o que passa de uma ordem a outra, de um

    nvel a outro, de um domnio a outro. por isso que a sensao a mestra de deformaes,agente de deformaes do corpo5. A sensao em Farnese est na dramaticidade contida na

    composio dos objetos que realizam muito melhor a sua potncia enquanto arte. O terror, a

    violncia, o anjo, a santa, a me, a famlia podem denunciar sensaes ambivalentes, ao

    contrrio de parecer desumanizar o corpo nas assemblages, as obras de Farnese transcendem

    o limite da vida e da morte, da alegria e da tristeza, do ldico e do monstruoso, do prazer e da

    dor, da bondade e da crueldade, do sagrado e do profano. Nesse sentido, podemos pensar no

    conceito do corpo paradoxal na obra do artista mineiro.

    Portanto, neste momento, contudo, um dos aspectos que nos interessa na obrafarnesiana um dos seus elementos de composio, as bonecas6, so elas que significam

    esse paradoxo. O uso do corpo artificial como alegoria reveste uma dimenso antropolgica

    fundamental. Esttica, Histria e Psicanlise no seriam excessivas para compreender o

    fenmeno. Considerando a obsesso do artista pela vida e pela morte, o contexto histrico em

    que ele est inserido (o perodo de Guerra Fria no mundo e das ditaduras na Amrica Latina),

    sua obra faz-nos mergulhar no universo dos sentimentos humanos, capaz de transformar o

    corpo simblico numa possibilidade de sensao. difcil a obra do artista no sensibilizar seus

    espectadores.

    Num estudo sobre as modificaes corporais na cultura contempornea, Francisco

    Ortega escreve que [...] a dor um elemento fundamental nessas modificaes, uma via de

    acesso ao corpo vivido numa cultura como a nossa, na qual a dor um anacronismo que deve

    ser suprimido, um escndalo intolervel numa sociedade que no reconhece mais nem o

    sofrimento nem a morte como constitutivos da condio humana (Le Breton, 1998), sociedade

    auxiliada por uma medicina que no trata a dor como fato existencial, que possui uma dimenso

    social, cultural e histrica (Morris, 1993), mas como um dado fisiolgico, ou antes, patolgico,

    passvel de ser medicalizado. A autenticidade da dor, como investimento subjetivo na matria

    corporal presente nas modificaes corporais, constitui uma resposta a uma cultura de

    anestesia sensorial e de patologizao da dor e do sofrimento. (ORTEGA, 2008, p. 64).

    5BACON, F. Pintura e Sensao. In: DELEUZE, G. Lgica da Sensao. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. p.43.6 As bonecas eram usadas pelos surrealistas Andr Masson, Salvador Dali, Hans Bellmer e Man Raypara denunciar a desumanizao e para propor novas formas anatmicas do corpo. Em suas obras, ocorpo era apresentado fragmentado, dilacerado e considerado artificial. Adaptado de: MORAES, ElianeR. O corpo impossvel.So Paulo: Iluminuras, 2002. p. 66-67.

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    Vale lembrar que o caminho de Farnese o de mo dupla. O corpo na arte

    contempornea fragmetado, mas tambm totalitrio. No texto o corpo no fio da existncia,Denise SantAnna descreve sobre o corpo na contemporaneidade, [...] que mais do que salv-

    lo, trata-se de transmut-lo completamente. Nosso nico bem ou nosso nico mal, o corpo

    tende enfim a ser o ltimo espao disponvel a diversos experimentos, to criativos quanto

    destrutivos.7Nesse sentido, inevitavelmente, o corpo j uma nova fronteira.

    7SANTANNA, D. O corpo no Fio da Existncia. In: ______ et al. Corpo. So Paulo: Ita Cultural, 2005. p.106.

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    Referncias bibliogrficas

    BARRETO, R. F. P. Tempo em suspenso: objeto reconvocado em Fanese de Andrade.Dissertao (Mestrado em Artes) Universidade Federal do Esprito Santo, UFES, EspritoSanto, 2008.

    BENJAMIN, W. Magia e tcnica, arte e poltica. So Paulo: Brasiliense, 1994.

    COSAC, C. Farnese Objetos. So Paulo: CosacNaify, 2005.

    DELEUZE, G. Francis Bacon A lgica da sensao. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

    HUTCHEON, L. Potica do ps-modernismo. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago,

    1991.ORTEGA, F. O corpo incerto: corporeidade, tecnologias mdicas e cultura contempornea. Riode Janeiro: Garamond, 2008.

    ROLNIK, S.A subjetividade em obra: Lygia Clarck, artista contempornea.RevistaProjeto Histria, So Paulo, n. 25, 2002.

    SARLO, B. Paisagens Imaginrias: Intelectuais, Arte e Meios de Comunicao. So Paulo:EDUSP, 2005

    SANTANNA. D. possvel realizar uma histria do corpo? In: SOARES, C. Corpo eHistria. Campinas: Autores Associados, 2002.

    ______. O corpo no Fio da Existncia. In: ______ et al. Corpo, Ita Cultural, 2005.