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82 lho feminino fora do lar e que em geral aceitam o divórcio e a vida con- jugal sem casamento (em matéria de tolerância, note-se que o R i o de Ja- neiro sempre ganha de São Paulo). Dizem-se saturadas de ver donas-de- casa em serviço doméstico nos co- mercíais de TV e consideram cansati- vas as cenas de propaganda, em que são impostos ambientes de luxo e a autoridade de "gente importante" . Elas mantêm, em relação à publici- dade comercial, uma atitude cr(tica que se revela em indicadores bem su- gestivos: a queixa de que a maioria das mensagens (para qualquer ordem de produto) é "igual e cansativa" e de que a propaganda de li quidações, de remédios e de xa mpus são fre- qüentemente mentirosas. Mas o mais engraçado é que, no ran king das pro- pagandas "irritan te s" , ten ham confe- rido um retumb ante prime iro lugar às "campanhas de govern o" , o que indi- ca uma grande repulsa às tro mbetas Cordeiro, Hésio. A Indústria de saúde no Brasil. Rio de Janeiro, Graal, 1980. 229p. do Brasil grand e que, até há pouco, Est e li vro t ra ta das relações en tre a ato rmentavam o púb li co te les pec- indústria farmacêutica e a prest ação e t ado r. co nsu mo de ações de sa úde . Por um Enfim, com essa pesquisa os arqui- vos da Me Cann passam a guardar in- formações importantes acerca da es- truturação familiar e da organização do consumo material e simbólico das populações urbanas dos grandes cen- tros - São Paulo e -Ri o de Janeiro- especialme nte entre as classes médias. Numa conjuntura do campo intelec- tua l em que essas últimas jazem rele- gadas da investigação sociológica, es- a ( uma nova fonte de dados a aprovei tar . o José Carlos Garcia D urand Revista de Administração de Empresas lad o , temos a qu estão do consumo de medicamentos , sua cr escente partici- pação na estrutu ra de gastos em saú- de, suas cond ições de produção e ci r- culação. De outro lad o, temos a que s- tão do co nsumo médi co , cuja impo r- tânc ia pode ser avaliada, .;egundo o autor, pelo fato de que : "Cerca de 80% das consu ltas médicas imp li cam a presc ri ção de um ou ma is medica .. mentos. " O exame de tais questões pressupõe, é claro, o conhecimento da s relações com a prática médica e das pol (ticas estatais de saúde. O que o autor p rete nde é a cons- trução de uma teoria explicativa so- . bre o consumo de medicamentos e o uso de serviços de saúde. Para tanto, o aut or parte da análise de outros es- tu do s sobre consu mo de medicamen- tos , busqmdo enq uad rá -los no âmbi- to das orientações teóricas existent es. Um primeiro estudo privilegia os mod elos sobre utilização de serviços ' de sa úde, ou seja, a conduta dos sumidores de . medicamentos, e inclui variáveis econômicas, sócio-demográ- ficas, psicossociais, cultura is e aque- las referentes ao sistema de saúde. Se- gundo o autor, esses estudos se carac- ter izam por uma orientação marcada- mente empiricista, e as análises da conduta do consumidor encobrem uma certa "lógica da cultura de clas- se", ou seja, justifica-se . uma dinâmica do consumo em termos de condutas racionais e livres dos indiv(duos, sem levar em conta a lógica econômica e pol(tíca da produção de medicamen- tos a que estão submetido$ os grupos sociais. Dadas essas limitações nos estudos sobre . a conduta do consumidor, o autor se volta para outras orientações empenhadas em dar conta dessas rela- ções entre "as necessidades" e "o consumo" em saúde. Uma destas orientações seria a questão da medicalização nas socie- dades industriai s, nas quais o consu- mo de medicam ento s não se reduz apc-.' nas à relação entre paciente e ser- 1 viços de saúde, mas depende de inú- mero s fatores p ropriament e sociais. A medicaHzação é vista então como um i 1str umen to de cont role pol ftíco e O au tor t amb ém exa mina de- t ídame'1te as li nhas de pensamento de lllich, Dup uy e Karse nt y e Navar- ro, que envolvem análises de prática s médicas, indústr ia farmacêutica, indi- vf du os {clientes) e polfticas de saúde. O a ut or estuda ai nda Boltanski e suas idéias a respeito de necessidades de saúde e consumo médico, visão que poderia ser explicada se refer i- da ao sistema de relações das classes socia is com o saber e a prática mé- dica, onde o papel da medicina é de- fini do como " um subpoder institu- cional". Ao estud ar o sistema de necess i- dades de saúde, o autor proc ura fu damentar-se nas teoria s de Marx com relaç ão à produç ão, consumo e aos processos sociais existentes no modo de prod ução capitalista, ent end endo qu e essas necessidade s e o própr io consumo são pr od utos soc iais e q ue a ampliação do mercado consumidor . de medicam entos atende às exigên- : cias da acumulação de capital, princi- palmente da indústria farmacêutica. Assim, o autor anaJjsa as caracterís- ticas dessa indústria, a produção e circulação de medicame ntos, bem co- mo as pol (ticas estatais, principal- mente a criação e expansão do órgão estatal Cerne (Central de Medicamen- tos). O autor salienta ainda a questão

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Page 1: Cordeiro, Hésio. A Indústria de saúde no Brasil. Rio de ... · bela é fundamental para se garantir um efetivo aumento salarial e o tem po livre para o cultivo no sítio de subsistência

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lho feminino fora do lar e que em geral aceitam o divórcio e a vida con­jugal sem casamento (em matéria de tolerância, note-se que o R i o de Ja-neiro sempre ganha de São Paulo). Dizem-se saturadas de ver donas-de-casa em serviço doméstico nos co-mercíais de TV e consideram cansati-vas as cenas de propaganda, em que são impostos ambientes de luxo e a autoridade de "gente importante". Elas mantêm, em relação à publici-dade comercial, uma atitude cr(tica

que se revela em indicadores bem su-gestivos: a queixa de que a maioria das mensagens (para qualquer ordem de produto) é "igual e cansativa" e de que a propaganda de liq uidações, de remédios e de xampus são fre-qüentemente mentirosas. Mas o mais engraçado é que, no ran king das pro-pagandas "i rritantes", tenham co nfe-rido um retumbante primeiro lugar às "campanhas de governo", o que indi-ca uma grande repulsa às trombetas

Cordeiro, Hésio. A Indústria de saúde no Brasil. Rio de Janeiro, Graal, 1980. 229p.

do Brasil grande q ue, até há pouco, Este livro t rata das relações entre a ato rmentavam o públi co telespec- ind ústria farmacêuti ca e a prestação e tador. co nsumo de ações de saúde. Por um

Enfim, com essa pesquisa os arqui­vos da Me Cann passam a guardar in­formações importantes acerca da es­truturação familiar e da organização do consumo material e s imbólico das popu lações urbanas dos grandes cen­tros - São Paulo e -Rio de Janeiro­especialmente entre as classes médias. Numa conjuntura do campo intelec­tua l em que essas últimas jazem rele­gadas da investigação sociológica, es­tá a ( uma nova fonte de dad os a aproveitar. o

José Carlos Garcia D urand

Revista de Administração de Empresas

lado , temos a questão do consumo de medicamentos, sua crescente partici ­pação na estrutura de gastos em saú­de, suas cond ições de produção e ci r­culação. De outro lado, temos a ques­tão do consumo médico, cuja impor­tância pode ser avaliada, .;egundo o autor, pelo fato de que : " Cerca de 80% das consultas médi cas imp licam a prescrição de um ou mais medica .. mentos. " O exame de t ais questões pressupõe, é claro, o co nheci mento das relações com a prática médica e das pol (ticas estatai s de saúde.

O q ue o autor pretende é a cons­trução de uma teoria explicativa so-

. bre o consumo de medicamentos e o uso de serviços de saúde. Para t ant o , o autor parte da análise de outros es­tudos sobre consumo de medicamen­tos , busqmdo enq uad rá-los no âmbi ­to das orientações teó ricas existentes.

Um primeiro est udo privilegia os modelos sobre utilização de serviços

' de saúde, ou seja, a conduta dos ~on­sumidores de .medicamentos, e inclui variáveis econômicas, sócio-demográ­ficas, psicossociais, culturais e aque­las referentes ao sistema de saúde. Se­gundo o autor, esses estudos se carac­terizam por uma orientação marcada-

mente empiricista, e as análises da conduta do consumidor encobrem uma certa "lógica da cultura de clas­se", ou seja, justifica-se .uma dinâmica do consumo em termos de condutas racionais e livres dos indiv(duos, sem levar em conta a lógica econômica e pol(tíca da produção de medicamen­tos a que estão submetido$ os grupos

sociais. Dadas essas limitações nos estudos

sobre . a conduta do consumidor, o autor se volta para outras orientações empenhadas em dar conta dessas rela­ções entre "as necessidades" e "o consumo" em saúde.

Uma destas orientações seria a questão da medicalização nas socie­dades industriai s, nas q uais o consu­mo de medicamentos não se reduz apc-.' nas à relação entre paciente e ser-

1 viços d e saúde, mas depende de inú­meros fatores p ropriamente sociais. A medicaHzação é vista então como um i 1strumento de cont role pol ftíco e soe i.::~!. O autor t ambém examina de­t ídame'1te as li nhas de pensame nto de lll ich, Dupuy e Karsenty e Navar­ro , que envo lvem análises de práticas médi cas, indústria farmacêutica, indi­vfduos {clientes) e polfticas de saúde .

O autor estuda ai nda Boltanski e suas idéias a respeito de necessidades de saúde e consumo médico, visão que só poderia ser explicada se referi­da ao sistema de relações das c lasses sociais com o saber e a prática mé­dica, onde o papel da medicina é de­finido como " um subpoder institu­ciona l".

Ao estudar o sistema de necess i­dades de saúde, o autor procura fun· damentar-se nas teorias de Marx com relação à produção, consumo e aos processos sociais existentes no modo de p rodução cap italista, entendendo que essas necessidades e o próprio consumo são prod utos sociais e que a ampliação do mercado consumidor

. de medicamentos atende às exigên­: cias da acumulação de capital , princi­palmente da indústria farmacêutica. Assim, o aut or anaJjsa as caracterís­ticas dessa indústria, a produção e circulação de medicamentos, bem co­mo as pol (ticas estatais, principal­mente a criação e expansão do órgão estatal Cerne (Central de Medicamen­tos). O autor salienta ainda a questão

Page 2: Cordeiro, Hésio. A Indústria de saúde no Brasil. Rio de ... · bela é fundamental para se garantir um efetivo aumento salarial e o tem po livre para o cultivo no sítio de subsistência

da própria forma de organização de um sistema de saúdé, e sua relação com a prática médica. Deste modo, o autor desenvolve um esquema de aná­lise envolvendo as relações entre a produção e a .circulação de medica­mentos, a prática méd ica, as pol ftic~s estatais do setor,.e a organização da atenção à saúde, para justificar que as necessidades e consumo méd icos são criados a partir das relações das clas­ses e frações de classe com o comple­xo industrial-médico.

Na área da saúde, é incontestável a importância que assume a questão dos medicamentos, havendo muitos t rabalhos e alguns livros que trataram dessa realidade. Hésio Cordeiro, neste livro, consegue conferir uma abran­gência sociológica ao tema, não se li­mit ando a anál ises de algu ns pont os de maior interesse, mas o mérito de sua abo rd agem está em relacionar es­ses pontos, inserindo-os num contex­to social, ou melhor, amarrando as questões " médicas" à realidade mais · ampla. ~ dessa orientação fecunda que derivam as principais · contribui­ções do livro.

O estudo de Hésio Cordeiro foi antes apresentado como dissertação de Mestrado, no Instituto de Medici ­na Social da UERJ: um trabalho objetivo e valioso na área dos estudos de saúde, e decerto merecedor da atenção daqueles que de alguma for· ma estão envolvidos ou interessados em questões de saúde e de sociedade.

o lvone Rodrigues Morallís

Sigaud, Lygia. Greve nos enge­nhos. Rio de Janeiro, Paz e Ter­ra, 1980.

A publicação recente da ed itora Paz e ·rerra int itulada Greve nos engenhos compõe-se de um te xto analftico so-· bre o movimento de outubro de 1979 nos engenhos açucareiros de Pernambuco, escri to por Lygia Sígaud, autora de outros importantes estudos sobre os trabalhadores rurais da Zona da Mata pernambucana.1

Além dele, completa o volume uma série de documentos, fotografias e in­clusive poemas de traba lhadores, re­ferentes à greve de 1979.

A leitu ra do text o é duplamente interessante: de um lado porque, co­mo f!IOStra a própria Lygia Sigaud, esta fo i a primeira manifest ação gre­vista no per (odo pós-64 de t rabalh a­dores rurais daquela reg ião conside­rada de gran de tensão social, mobil i­zando di retamente 20 mil pessoas e indiretamente mais 100 mil ; de outro lado, porque as reivindicações dos t rabalhadores dos engenhos açucarei­ros de Pernambuco têm pont os em cómum co m aquelas dos operários urbanos : não sô aumento salaria l, aliás obtido como resultado vitorioso da greve, ~a.s incl usive estabilidade do delegado sindical, ou melhor, do delegado de engenho.

Este segundo ponto merece co­mentário. Pode levar o analista mais apressado a pensar em situação de

homogeneidade das lutas dos traba­lhadores do campo e da cidade .e, portanto, de 'ampliação das dimen­sões do proletariado ·nacional que com isso passaria a englobar tanto operários urbanos quanto operários rurais.

Ora, as reivindicações dos traba­lhadores assalariados dos engenhos têm caractedsticas singulares em rela­ção àquelas dos assa lariados urbanos, como a Autora mesma afirma: a luta pelo direito de acesso à terra para cultivo de lavouras de subsistência e criação de· animais e a luta pela apro­vação de uma tabela "estabelecendo equivalências entre os diferentes ser­viços de produção da cana e as for­mas de rem uneração" {p. 42 ). Estas duas re ivindicações são complemen­tares entre si e se articu lam de forma especffica com a reiv ind icação por maiores sa lários. A existência da ta­bela é fu ndamental para se garantir um efetivo aumento salarial e o tem­po livre para o cultivo no sítio de subsistência. Por outro lado , "a possi­bilidade de produzi r parte de sua subsistência to rna o trabalhador mais livre perante o proprietário e, portan­to, menos subordinado ao trabalho assalariado" (p. 45).

Além disso, deve-se considerar que a relação de trabalho assalariado e as demandas t raba lhistas constituem tão-somente uma di mensão entre ou­tras da co mplexa realidade agrária brasileira. As l ~tas de pequenos pro­dutores por melhores condições para produzir, as lutas de posseiros em vá­rios pontos do território nacional pa­ra garanti r ter ra onde trabalhar e so­breviver constituem o utra dimensão, aliás significativamente mais impor­tante tanto pelo número de pessoas envolvidas como pelo grau de violên­cia atingido. O

Maria Rita Garcia Loureiro

1 Sigaud, Lyg ia. Os Clandestinos e os díreitos (estudo sobre trabalhadores cia ca­na-de-açúcar de Pernambuco). São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1979; e A Nação dos homens. Dissertação de mestrado apre­sent ada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional. Rio de Janeiro, 1971. mimeogr.

Resenha bibliográfica

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