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Coordenação editorial: Simone Valdete dos Santos, Tania Beatriz Iwascko Marques, Rafael Arenhaldt, Mauro Del Pino

Supervisão editorial: UFPEL

Design editorial, capa e diagramação: Nativu Design

Fotografias das capa cedidas por estudantes e

professores da especialização PROEJA

Revisão: Juçara Benvenuti

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Obra publicada pela Universidade Federal de Pelotas

Reitor: Prof. Dr. Antonio Cesar Gonçalves Borges Vice-Reitor: Prof. Dr. Manoel Luiz Brenner de Moraes Pró-Reitor de Extensão e Cultura: Prof. Dr. Luiz Ernani Gonçalves Ávila Pró-Reitora de Graduação: Prof. Dra.Eliana Póvoas Brito Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Prof. Dr. Manoel de Souza Maia Pró-Reitor Administrativo: Eng. Francisco Carlos Gomes Luzzardi Pró-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento: Prof. Ms. Élio Paulo Zonta Pró-Reitor de Recursos Humanos: Admin. Roberta Trierweiler Pró-Reitor de Infra-Estrutura: Mario Renato Cardoso Amaral Pró-Reitora de Assistência Estudantil: Assistente Social Carmen de Fátima de Mattos do Nascimento CONSELHO EDITORIAL Profa. Dra. Carla Rodrigues Prof. Dr. Carlos Eduardo Wayne Nogueira Profa. Dra. Cristina Maria Rosa Prof. Dr. José Estevan Gaya Profa. Dra. Flavia Fontana Fernandes Prof. Dr. Luiz Alberto Brettas Profa. Dra. Francisca Ferreira Michelon Prof. Dr. Vitor Hugo Borba Manzke Profa. Dra. Luciane Prado Kantorski Prof. Dr. Volmar Geraldo da Silva Nunes Profa. Dra. Vera Lucia Bobrowsky Prof. Dr. William Silva Barros

EDITORA E GRÁFICA UNIVERSITÁRIA R Lobo da Costa, 447 – Pelotas, RS – CEP 96010-150 Fone/fax: (53) 3227 8411 e-mail: [email protected] Diretor da Editora e Gráfica Universitária: Carlos Gilberto Costa da Silva Gerência Operacional:João Henrique Bordin

Impresso no Brasil Edição: 2010 ISBN: 978-85-7192-684-4 Tiragem: 1000 exemplares Dados Internacionais de Catalogação na Publicação: Bibliotecária Daiane Schramm – CRB-10/1881 M533 Memórias e Afetos na Formação de Professores. /

Organizado por Rafael Arenhaldt e Tania Beatriz Iwaszko Marques; revisão e formatação de Juçara Benvenuti. – Pelotas: Editora Universitária/UFPEL, 2010.

222p. ; 21 cm. (Série: Cadernos Proeja-Especialização-Rio Grande do Sul) Organização Geral: Juçara Benvenuti, Rafael Arenhaldt, Tania Beatriz Iwaszko

Marques, Simone Valdete dos Santos, Mauro Augusto Burkert Del Pino.

ISBN 978-85-7192-684-4

1. Educação. 2. Memórias. 3. Formação. I. Arenhaldt, Rafael; org. II. Marques, Tania Beatriz Iwaszko; org. III. Título.

CDD 540

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APRESENTAÇ‹O Simone Valdete dos Santos Tania Beatriz Iwaszko Marques ............................ 7 PREF˘CIO Rafael Arenhaldt Tania Beatriz Iwaszko Marques ............................................ 13 ESCRITAS DE MEMORIAIS: UM DISPOSITIVO PARA A FORMAÇ‹O DE PROFESSORES Rafael Arenhaldt e Tania Beatriz Iwaszko Marques ......................................... 15 MEMŁRIAS E SAUDADES Simone Valdete dos Santos.................................................................................... 23 PAULO FREIRE: MEMŁRIAS E AFETOS! Nilton Bueno Fischer............................................................................................. 25 TRILHA DA VIDA................................................................................................. 33 ESCREVER PARA ESCREVER-SE ..................................................................... 37 MOSAICO DE COM-VIV¯NCIAS EDUCACIONAIS ................................ 47 MEMORIAL DE JORGE FORTUNA RIAL ................................................... 61 MEMORIAL DE CARLA ODETE BALESTRO SILVA................................ 69 MEMORIAL DE LORITA APARECIDA VELOSO GALLE ....................... 83 MEMORIAL DE RICARDO PAMPIM DOS SANTOS ............................... 93 MEMORIAL DE JEANE RODRIGUES NUNES........................................ 105 ENCAIXANDO AS PEÇAS DE UM QUEBRA-CABEÇAS ..................... 113

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CADERNOS PROEJA: ESPECIALIZAÇ‹O - RIO GRANDE DO SUL

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TRAJETŁRIA DE UMA PROFESSORA: SEUS SABERES, VALORES E AMORES........................................................................................................... 123 CARTAS PARA MARIA ANTłNIA................................................................ 137 MEMORIAL DE CRISTINA LUISA CONCEIÇ‹O DE OLIVEIRA....... 163 “KỸ TÓG GE JA NỸG HAMẼ!” ........................................................ 169 A TRILHA DA MINHA FORMAÇ‹O........................................................... 177 MATRICIAMENTOS E MODELOS DA/NA DOC¯NCIA: A ESCRITA DE SI NOS MEMORIAIS FORMATIVOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA Ana Paula Dal Forno Dal Osto Baier Rafael Arenhaldt ............................... 189 MEMŁRIAS E IDENTIDADES Simone Valdete dos Santos.................................................................................. 205 OS MEMORIAIS COMO PROPOSTA DE IN(TER)VENÇ‹O PEDAGŁGICA Rafael Arenhaldt.................................................................................................... 211 TODO DIA Simone Valdete dos Santos.................................................................................. 219

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APRESENTAÇ‹O

Simone Valdete dos Santos1 Tania Beatriz Iwaszko Marques2

Os sete volumes que compõe esta coleção dão visibilidade à produção científica da Especialização PROEJA do Rio Grande do Sul, especialmente de sua segunda edição ocorrida nos anos de 2007 a 2009 em quatro cidades do Estado, sendo duas turmas de alunos em Porto Alegre, duas turmas em São Vicente do Sul, duas turmas em Santa Maria e uma turma em Bento Gonçalves.

Cada turma iniciou com 50 alunos, sendo constituída por professores e técnico-administrativos das redes públicas federal, estadual e municipal, dos quais 256 concluíram, apresentando seus trabalhos de conclusão de curso em sessão pública, na presença do professor orientador ou da professora orientadora, de outros professores e de colegas do curso.

A execução da especialização pressupõe o ideal de execução do PROEJA médio e fundamental, sendo este ideal em rede, de forma articulada, pois planejar Educação Profissional de forma integrada à Educação de Jovens e Adultos em um país como o nosso, com uma dívida social histórica de cerca de

1 Doutora em Educação pela UFRGS. Coordenadora Geral da Especialização PROEJA/RS. Professora da Faculdade de Educação da UFRGS. Professora e Orientadora do PROEJA. E-mail: [email protected] 2 Doutora em Educação pela UFRGS. Coordenadora da Especialização PROEJA Porto Alegre/RS. Professora da Faculdade de Educação da UFRGS. Professora e Orientadora do PROEJA. E-mail: [email protected]

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CADERNOS PROEJA: ESPECIALIZAÇ‹O - RIO GRANDE DO SUL

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10% de analfabetos absolutos, com a herança do trabalho escravo, é um desafio que remonta esforço do sistema público de educação como um todo. Neste sentido, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, diante do seu papel de instituição formadora, promoveu o curso, sob a coordenação geral das professoras Simone Valdete dos Santos e Tania Beatriz Iwaszko Marques, junto do então Centro Federal de Educação Profissional Tecnológica de Bento Gonçalves, hoje campus do Instituto Federal Rio Grande do Sul, na turma de Bento Gonçalves sob a coordenação local da professora Fernanda Zorzi; junto ao Centro Federal de São Vicente do Sul, atual campus do Instituto Federal Farroupilha sob a coordenação local do professor Adriano Saquet; e do Colégio Técnico Industrial de Santa Maria vinculado à Universidade Federal de Santa Maria sob a coordenação local da professora Juraci Diniz.

Esta especialização, acontecendo de forma integrada com docentes da UFRGS e destas instituições nos encargos de coordenação, docência e orientação, possibilitou um olhar reflexivo para dentro das turmas de PROEJA médio das instituições, pois nos CEFETs, agora IFs, existem turmas de PROEJA, bem como para dentro da universidade na articulação do grupo de pesquisa CAPES/PROEJA, o qual atendendo um edital da CAPES tem a UFRGS como instituição líder, junto a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e a Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) e professores pesquisadores dos atuais Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul: Instituto Federal Rio Grande do Sul, Instituto Federal Farroupilha e Instituto Federal Sul Rio-Grandense.

O trabalho articulado da especialização reverbera em convênios entre as instituições, a conclusão de mestrados e doutorados junto aos Programas de Pós-Graduação integrantes do grupo de pesquisa CAPES/PROEJA, tendo o PROEJA na centralidade da produção científica, nas inúmeras turmas do PROEJA FIC (Formação Inicial e Continuada) do Rio Grande do Sul, promovidas pelas instituições federais parceiras da especialização, especialmente Bento Gonçalves (parceira desde a primeira edição da especialização), São Vicente do Sul (parceira na segunda edição), Júlio de Castilhos e Alegrete (parceiras da terceira edição, a qual está em curso).

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VOLUME I | MEMŁRIAS E AFETOS NA FORMAÇ‹O DE PROFESSORES

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Os cursos de formação continuada do PROEJA, ocorridos em caráter de extensão, junto ao então CEFET de Bento Gonçalves, o qual teve turmas em Bento Gonçalves e na Escola Técnica Estadual Parobé em Porto Alegre; em São Vicente do Sul; duas turmas de Alegrete e uma turma da então Escola Técnica da UFRGS, atual campus Porto Alegre do Instituto Federal Rio Grande do Sul, também tiveram interface com a especialização, seja na sua concepção, seja através dos professores envolvidos.

Tal esforço em formação de professores e técnico-administrativos para atuar no PROEJA não tem sido em vão, o convênio da SETEC/MEC com o governo do Estado „Brasil Profissionalizado‰ prevê turmas do PROEJA médio na rede estadual e os convênios dos Institutos Federais junto a diversas prefeituras do Rio Grande do Sul vislumbram turmas de PROEJA fundamental, bem como o envolvimento de professoras/educadoras kaingang desde a segunda edição da especialização e de integrantes do sistema prisional na reflexão de um PROEJA para pessoas privadas de liberdade, em conflito com a lei, vislumbrando um PROEJA „à margem‰.

Os artigos da coleção aqui apresentados passaram por um processo de seleção que envolveu aspectos como a originalidade, a aplicabilidade em termos de possibilidade de inovação, a relevância temática, social e teórica. Posteriormente os artigos foram organizados em sete volumes, contribuindo para o entendimento deste novo campo epistemológico que é o PROEJA.

O primeiro volume „Memoriais Formativos de Professores‰, organizado por Rafael Arenhaldt e Tania Beatriz Iwaszko Marques, dá visibilidade à produção curricular da especialização. Estes trabalhos têm sido feitos em todas as edições do curso, proporcionando, desde o primeiro módulo da especialização, „um olhar para dentro de si, um olhar sobre si‰ dos professores e técnico-administrativos. Os textos selecionados pertencem à primeira e à segunda edição do curso, sendo possível entender um pouco sobre quem é este que constitui ou que vai constituir o PROEJA. Além dos treze memoriais de alunos, o caderno apresenta um texto inédito do professor Dr. Nilton Bueno Fischer, orientador de trabalhos de conclusão de curso e colaborador da especialização, com as reflexões sobre e desde as classes

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CADERNOS PROEJA: ESPECIALIZAÇ‹O - RIO GRANDE DO SUL

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populares, e da professora Simone Valdete dos Santos, que contextualiza o espaço da memória na formação dos professores.

Os demais volumes da coleção apresentam artigos escritos pelos alunos em colaboração com seus orientadores de Trabalhos de Conclusão. O volume II, organizado por Juçara Benvenuti, Rafael Arenhaldt, Tania Beatriz Iwaszko Marques e Simone Valdete dos Santos, traz quinze trabalhos das turmas de Porto Alegre; o Volume III, organizado por Sita Mara Lopes Sant´Anna, Pedro Chaves da Rocha, Rafael Arenhaldt, Tania Beatriz Iwaszko Marques e Simone Valdete dos Santos traz oito artigos das turmas de São Vicente do Sul; o volume IV, organizado por Carina Fior Postingher Balzan, Daniela Brun Menegotto, Fernanda Zorzi, Rafael Arenhaldt, Tania Beatriz Iwaszko Marques e Simone Valdete dos Santos traz sete artigos da turma de Bento Gonçalves e, o volume V, organizado por Adriana Zamberlan, Viviane Campanhola Bortoluzzi, Rafael Arenhaldt, Tania Beatriz Iwaszko Marques e Simone Valdete dos Santos apresenta seis trabalhos de Conclusão de Curso das turmas de Santa Maria.

O PROEJA à Margem, constante no volume VI, organizado pela professora Carmem Craidy apresenta quatro trabalhos relacionados ao Sistema Prisional, com pessoas privadas ou não de liberdade, e experiências educativas com pessoas dependentes químicas.

E, finalmente, o volume VII, organizado pela professora Maria Aparecida Bergamaschi e pelo professor Rodrigo Allegretti Venzon, traz os trabalhos de conclusão de curso de nossas alunas/professoras/educadoras kaingang. Esse volume contribui na perspectiva de concretização do PROEJA Kaingang no Rio Grande do Sul, visando subsidiar a implementação da Educação Básica específica e diferenciada, via profissionalização em nível médio de jovens e adultos kaingang com ênfase em educação, saúde e sustentabilidade econômico/ambiental. O volume é concebido tendo uma tiragem maior, para distribuição junto às escolas kaingang nas regiões Sul e Sudeste do Brasil. O objetivo da publicação bilíngue, em kaingang e português, desse material reflexivo é contribuir com o registro escrito da construção de uma pedagogia escolar kaingang, que vem sendo formulada há quatro décadas por educadores desse povo indígena, servindo como subsídio didático para a formação dos docentes indígenas e, também, como valorização dos saberes

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VOLUME I | MEMŁRIAS E AFETOS NA FORMAÇ‹O DE PROFESSORES

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educativos ensinados por lideranças tradicionais kaingang ao seu povo por incontáveis gerações.

Nos volumes II, III, IV e V consta um pósfacio da gestora nacional do PROEJA Caetana Juracy Rezende Silva, contextualizando os sentidos atuais desta política, como ela se constituiu dentro da Secretaria Nacional de Educação Profissional e Tecnológica (SETEC/MEC).

A revisão e formatação dos originais dos volumes I, II, III, IV, V e VI foram realizadas por Juçara Benvenuti, professora do Colégio de Aplicação/UFRGS e do Curso de Especialização PROEJA. Quanto ao volume VII, para preservar as características da escrita kaingang, foi feito apenas o trabalho de formatação.

A equipe constituída por Juçara Benvenuti, Rafael Arenhaldt, Tania Beatriz Iwaszko Marques, Simone Valdete dos Santos e Mauro Augusto Burkert Del Pino é responsável pela organização geral, revisão e execução destes sete livros. O projeto gráfico conta com a Universidade Federal de Pelotas, sob a coordenação do professor Mauro Augusto Burkert Del Pino, professor da Especialização desde sua primeira edição e integrante do grupo de pesquisa CAPES/PROEJA.

Esta coleção é um esforço coletivo de profissionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Universidade Federal de Pelotas, do Colégio Técnico Industrial de Santa Maria vinculado à Universidade Federal de Santa Maria, dos Institutos Federais Rio Grande do Sul, Farroupilha e Sul Rio-Grandense que acreditam no PROEJA como política pública de inclusão, materializando o trabalho daqueles que estão e daqueles que neste momento nos iluminam em outra materialidade como os queridos Nilton Bueno Fischer, nosso professor do curso e nossa querida Mary Ignez Pires, como carinhosamente a chamávamos nossa "supersecretária acadêmica".

A coordenação deseja uma boa leitura e espera que seja esta mais uma ferramenta teórica para compreensão e permanência das pessoas das classes populares nas escolas públicas e estatais do Brasil.

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PREF˘CIO

Rafael Arenhaldt1 Tania Beatriz Iwaszko Marques2

Nesta obra que organizamos e ora apresentamos, procuramos dar visibilidade às histórias de vida de docentes em processo de formação contínua. Esta obra é, portanto, fruto e resultado de um esforço coletivo de vários educadores e estudantes-educadores que se aventuraram a narrar e a refletir sobre sua trajetória de vida, docente e profissional, em um programa de formação de professores.

Assim, oferecemos aos leitores o texto intitulado Escrita de Memoriais: Um dispositivo para a formação de professores, escrito pelos organizadores deste livro, Professores Rafael Arenhaldt e Tania Beatriz Iwaszko Marques. Apresentamos a seguir, um breve texto escrito pela Coordenadora Geral da Especialização PROEJA, Professora Simone Valdete dos Santos, recheado de lembranças e afetos, que apresenta o artigo Paulo Freire: Memórias e Afetos! Escrito pelo querido Professor Nilton Bueno Fischer. E é em sua homenagem, memória e inspiração que oferecemos o título geral desta obra: Memórias e afetos na formação de professores.

1 Doutorando em Educação no PPGEDU/UFRGS. Professor da Especialização PROEJA. E-mail: [email protected] 2 Doutora em Educação. Professora da Faculdade de Educação da UFRGS. Professora da Especialização PROEJA. E-mail: [email protected]

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CADERNOS PROEJA: ESPECIALIZAÇ‹O - RIO GRANDE DO SUL

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Na sequência, estão treze memoriais formativos, escritos por educadores que atuam na Educação de Jovens e Adultos e/ou na Educação Profissional, do Curso de Especialização PROEJA3.

Concluímos o livro com dois artigos inéditos: o primeiro intitulado Matriciamentos e Modelos da/na Docência: A Escrita de si nos Memoriais Formativos da Especialização PROEJA de autoria de Ana Paula Dal Forno Dal Osto Baier, sob orientação do Professor Rafael Arenhaldt; o segundo intitulado Memórias e Identidades da Professora Simone Valdete dos Santos. Além disso, incluimos o texto referencial utilizado para orientar a elaboração da escrita dos memoriais formativos no Curso de Especialização do PROEJA, Os Memoriais como Proposta de In(Ter)Venção Pedagógica, elaborado pelo professor Rafael Arenhaldt, o qual também pode servir de referencial para outros cursos e atividades de formação contínua de professores.

3 PROEJA: Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos.

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ESCRITAS DE MEMORIAIS: UM DISPOSITIVO PARA A FORMAÇ‹O DE

PROFESSORES

Rafael Arenhaldt1 Tania Beatriz Iwaszko Marques2

No Curso de Especialização PROEJA-RS, o Memorial Formativo se configurou como o Trabalho Integrador do Primeiro Módulo do Curso, prevendo „um aprofundamento sobre os significados do ser professor [...], sustentada e embasada na significação da experiência docente a partir da escrita de si‰ (Franzói; Arenhaldt; Santos, 2007, p. 23). Desde sua Primeira Edição, em 2006, até a atual (Terceira Edição) todos os educadores em formação escreveram seus Memoriais Formativos3 como requisito avaliativo e reflexivo das disciplinas que compunham o Primeiro Módulo do Curso. Nas quatro turmas4

1 Doutorando em Educação no PPGEDU/UFRGS. Professor da Especialização PROEJA. E-mail: [email protected] 2 Doutora em Educação. Professora da Faculdade de Educação da UFRGS. Professora da Especialização PROEJA. E-mail: [email protected] 3 Referenciamos aqui o Blog: http://memorialformativo.blogspot.com que foi desenvolvido no sentido de orientar os cursistas no processo de escrita dos memoriais, bem como da configuração de um espaço de publicização das histórias e trajetórias escritas de docentes. 4 Em Porto Alegre, tivemos na Primeira Edição do Curso de Especialização PROEJA (2006-2007) uma turma com 41 concluintes; na Segunda Edição (2008-2009), duas turmas, totalizando 86 concluintes e, na Terceira Edição (2009-2010), 50 concluintes.

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CADERNOS PROEJA: ESPECIALIZAÇ‹O - RIO GRANDE DO SUL

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da Especialização de Porto Alegre foram lidos e avaliados 177 Memoriais Formativos pelos professores do Primeiro Módulo do Curso. É importante destacar que, mesmo considerando que a experiência curricular de utilização dos Memoriais como recurso didático em todas as edições e turmas do Curso de Especialização PROEJA/RS, os treze Memoriais disponibilizados neste livro fazem parte apenas da Primeira e Segunda Edição das Turmas de Porto Alegre5.

Mas por que, afinal de contas, utilizar os memoriais como um recurso na formação contínua de professores, neste caso num Curso de Especialização para professores? Partimos do pressuposto que o docente „ao narrar, oralmente ou por escrito, suas experiências profissionais, modifica as representações de si e de sua prática pedagógica‰ (Passeggi et al, 2006, p. 257). Assim, se afirmarmos, como diz Freire, que é importante conhecer e compreender as histórias de nossos estudantes, por que não conhecer e compreender as histórias de educadores que estão na condição de estudantes? Compreendemos, como afirma Cunha (1997), que „não basta dizer que o professor tem de ensinar partindo das experiências do aluno se os programas que pensam sua formação não os colocarem, também, como sujeitos de sua própria história‰. Ao considerar este pressuposto, ressaltamos a necessidade de refletir sobre a nossa condição de educadores, de refletir sobre a nossa prática pedagógica em desenvolvimento como condição para o seu respectivo aprimoramento e qualificação. Em outras palavras, perguntamos se a formação docente, seja ela inicial ou continuada, não se realiza de forma mais efetiva através do conhecimento de si mesmo ou pela reflexão da prática pedagógica, na qual se encontra imerso do que pelo conhecimento da disciplina que leciona ou do saber pedagógico externo à sua experiência de vida. Ao considerar este pressuposto, questionamos os modelos de formação contínua que não consideram as trajetórias dos professores em processo de formação.

5 No Rio Grande do Sul a Especialização PROEJA aconteceu em parceria com os IFETs Campus de Bento Gonçalves (Primeira, Segunda e Terceira Edições), Pelotas (Primeira Edição), Alegrete (Terceira Edição), São Vicente do Sul (Segunda Edição), Júlio de Castilhos (Terceira Edição) e com o Colégio Técnico Industrial da UFSM (Segunda Edição). Contabiliza no total 14 turmas da Especialização PROEJA no RS em suas três edições.

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VOLUME I | MEMŁRIAS E AFETOS NA FORMAÇ‹O DE PROFESSORES

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Num curso de formação docente em exercício e em programas de for-mação contínua, „fica potencializada a proposta de narrar por escrito as experiên-cias e as reflexões, pois esses são contextos privilegiados de articulação teoria-prática e de produção de conhecimento pedagógico‰ (Prado; Soligo, s/d, p.7).

A escrita de memoriais em percursos formativos permite para aquele que escreve sobre si, ou para aquele que lê a história de outro, compreender os sentidos de estar na docência, de ser professor. A escrita de memoriais se constitui em um dispositivo valioso no sentido de entender como aprendemos a ser professor e a viver a escola. É plausível dizer que nos reconhecemos nas histórias dos outros, nos formamos e nos constituímos ao ler o outro.

Narrar [...] pressupõe o outro. Ser contada ou ser lida: é esse o destino de toda história. [...] as histórias que lemos e ouvimos nos remetem sempre às nossas próprias histórias e às nossas experiências pessoais; [...] que relacionamos de alguma forma as histórias que ouvimos e lemos com a nossa própria vida; que as histórias dialogam umas com as outras, se inter-relacionam. [...] que o ato de contar uma história faz com que ela seja preservada do esquecimento, criando-se a possibilidade de ser contada novamente e de outras maneiras; que o sentido das histórias só se constrói no olhar do outro, na relação com outras histórias (Prado; Soligo, s/d, p. 3-4).

Assim sendo, a escrita autobiográfica não produz somente um efeito sobre si mesmo naquele que escreve. Produz um efeito também naquele que lê, naquele que reflete sobre a trajetória do outro e, neste caso, naquele que está no lugar de „avaliar‰ um texto como um memorial. Que efeitos, que significados produzimos ao ler as histórias dos professores em formação? Com que concepção de avaliação, analisamos, lemos e „avaliamos‰ os registros escritos dos memoriais destes professores em situação de formação? Importa aqui perguntar também quais os significados da experiência dos professores que leram os memoriais dos estudantes.

A análise dessas diferentes narrativas é também a análise de nossas próprias representações sobre princípios fundadores da docência e da formação do formador. Esses registros refletem nossa intenção de valorizar a dimensão histórica da pessoa do professor-formador-

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CADERNOS PROEJA: ESPECIALIZAÇ‹O - RIO GRANDE DO SUL

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narrador, propiciar ocasiões para a ressignificação de sua (nossa) aprendizagem e, se possível, a reconfiguração de si como pessoa e profissional docente (Passeggi et al., 2006, p. 258-9).

Ao ler os memoriais formativos, importa perguntar: quem são os outros que habitam, que se manifestam na narrativa docente? Quais são os matriciamentos6, os modelos que faz a docência que se narra? Evidenciamos na escrita dos memoriais a forte presença da família, de pais educadores, dos professores modelos ou anti-modelos, e de tantas vidas referenciais que dão forma a um modo de ser pessoa, de ser docente. Importa reconhecer os matriciamentos de professores que invadem, atravessam e afetam os modos que constituímos nossa docência. De refletir sobre quem são estes outros que me fazem ser o professor que sou. E do porque me fiz professor deste modo, deste jeito.

Nos memoriais formativos evidenciamos a presença e as marcas dos docentes com os quais os narradores se identificam e se apoiam para dar aula, trazendo sempre exemplos de professores com os quais se identificavam quando alunos. A presença e a lembrança de experiências boas ou ruins tornam-se significativas no que tange à forma, ao jeito de ser docente na escola, ou seja, os modelos e os "matriciamentos", enquanto eram alunos, são fundamentais para construir uma imagem de ser professor. São os exemplos dos seus professores que desencadeiam um cenário de significações do que é ser um docente.

[...] as imagens dos(as) professores(as) serviram de referência para balizar a sua prática pedagógica na atualidade: fosse com relação ao modelo, muitas vezes idealizado, de professor(a), fosse por um 'antimodelo', não menos modelo do que o primeiro, de um(a) professor(a) cuja prática não serviria de exemplo (Pinto, 2000, p. 229).

6 Os "matriciamentos" são aqui compreendidos, conforme Peres (2002), na perspectiva de se refletir sobre a apropriação das imagens como 'matrizes' detonadoras de um inventário sobre o que é, neste caso, a docência, bem como dos atravessamentos e dos saberes que matriciou e constituiu a docência na pessoa. Ainda para ilustrar tal perspectiva, destaca-se "a importância de resgatar as imagens [da docência], re-apresentadas hoje em forma de narrativa, como períodos e conteúdos matriciadores e potencializadores da [...] profissão docente." (Peres, 2002, p. 157).

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Em outras palavras, postulamos que o jeito como os professores refletem sobre a prática pedagógica é, em parte, caracterizado por experiências anteriores, isto é, os estudos sobre trajetórias docentes demonstram que os processos de identificação docente se configuram fundamentalmente a partir das experiências prévias de vida relacionadas ao ensino, e não somente nos programas de formação (Arenhaldt, 2005).

Nesta mesma perspectiva, Nóvoa ressalta:

No processo de sua entrada na profissão, os docentes [...] utilizam frequentemente referências adquiridas no momento em que eram alunos: num certo sentido, pode-se dizer que o crucial da profissionalização do professor não ocorre no treinamento formal, mas em serviço (1991, p. 91).

De certa forma, percebemos que o „afirmar-se docente‰ se materializa na escrita dos memoriais, na assunção da palavra, na autoria de um texto que é a trajetória de vida e nela a afirmação de uma profissão: a docência na pessoa. Um saber que se gesta e ganha forma no compartilhar com o outro a sua narrativa escrita: o memorial formativo.

O exercício da escrita favorece a compreensão das relações com o outro e com a própria profissão. Aprender a transformar a vida em palavras é aprender a conjugar o real e o imaginário, o passado e projetos futuros e, sobretudo, Âabrir uma janelaÊ para clarificar a permanência na profissão (Passeggi et al, 2006, p. 265).

Simbolizar a vida em letras, em palavras, em frases, através de uma narrativa de si, não é tarefa simples. Dar forma escrita à trajetória em um memorial é um exercício recheado de „perigos‰ e „potencialidades‰. Se, por um lado, pode revelar algumas contradições entre o viver e o dizer, também pode silenciá-las. Assim como pode expor conflitos existenciais, pode também ocultar tantos outros. O narrador se vê forçado e cerceado a resolver a intriga de sua vida, estabelecendo uma coerência entre a narrativa escrita e a experiência de vida propriamente dita. O narrador se vê tensionado a justificar antigas decisões pessoais, a encontrar sentido e razões para as escolhas de vida. Potencialmente, por outro lado, simbolizar a vida na forma de texto é um

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exercício de criação, de invenção e reinvenção, que oferece as bases para a sustentação da vida no modo pelo qual decidimos existir. Um exercício de auto-conhecimento, de auto-produção da vida, do descobrir-se na condição de pessoa-docente, sendo este um processo que está na gênese da própria transformação da docência para um outro modo de se ver professor, afirmar-se docente e reinventador da escola e de suas relações pedagógicas.

Em outras palavras, ressaltamos a potência deste gênero de escrita autobiográfica, que se encontra na fronteira do literário, do inventivo, do artístico, do autoformativo e do reflexivo7. Um gênero, como afirma Passeggi, em que se entretecem, num mesmo movimento, os processos de autoria e (re)construção da identidade, ou seja, num gênero em que o „narrador coincide, enquanto escreve, com o autor empírico do texto‰ (2000).

Ser autor é dizer a sua própria palavra, compreender o seu mundo, fazer e escrever sua própria história. Trata-se de um movimento que produz um conhecimento alicerçado na vida, na experiência, que é em si singular, mas produzido na relação com o outro, com o mundo, neste caso com a educação, a escola e a constituição da docência na pessoa. Escrever um memorial é mostrar-se, publicizar-se, é assumir-se autor de si. Escrever um memorial é permitir-se reconhecer e transformar o modo como nos fizemos ser o professor que somos. Escrever um memorial é ressentir os afetos, sentidos e significados de ser e estar docente. Escrever um memorial é, como bem diz Guedes-Pinto, possibilitar „divisarmos outros finais para a história que está em pleno transcurso... (s/d, p. 3)‰. Escrever um memorial é um movimento de incitar a recriar e reinventar a si mesmo permanentemente.

Referências:

ARENHALDT, Rafael. Das docências narradas e cruzadas, das sur-presas e trajetórias reveladas. Os fluxos de vida, os processos de identificação e as éticas na escola de

7 Sobre esta perspectiva, de compreender as histórias dos professores como potencializadores de processos de formação e autoformação, ver os estudos de Oliveira (1998; 2002). Trata-se da "instalação de uma outra cultura na formação de professores. A cultura do professor reflexivo" (1998, p.10).

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educação profissional. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: UFRGS / PPGEDU, 2005. Orientadora: Dra. Malvina do Amaral Dorneles.

CUNHA, M. I.. Conta-me agora!: As narrativas como alternativas pedagógicas na pesquisa e no ensino. Rev. Fac. Educ. [online]. Jan./Dez. 1997, vol.23, no.1-2. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid= S0102-25551997000100010&lng=pt&nrm=iso> Acesso em 15/02/10.

FRANZŁI, N. L.; ARENHALDT, R.; SANTOS, S. V.. Acontecendo o currículo da Especialização/PROEJA/RS: Diálogos de formação de nós para nós mesmos. In.: SANTOS, S. V. et al. Reflexões sobre a prática e a teoria em PROEJA: Produções da Especialização PROEJA/RS. Porto Alegre: Evangraf Ltda., 2007.

GUEDES-PINTO, Ana Lúcia. Memorial de Formação – Registro de um Percurso. Campinas, s/d. Disponível em: <http://www.fe.unicamp.br/ensino/graduacao/ downloads/proesf-AnaGuedes.pdf>. Acesso em: 15/02/10.

NŁVOA, A.. Para o estudo sócio-histórico da gênese e desenvolvimento da profissão docente. In: Teoria e educação. Porto Alegre N. 4 (1991), p. 109-139.

OLIVEIRA, V. F.. Histórias de professores e processos de formação/subjetivação. In: Educação em Debate. Fortaleza, Ano 20, N…36, p.7-13, 1998.

______. Imagens orais, escritas e fotográficas: registros reconstruídos por professores. In: História da Educação. ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas (12): 105-118, Setembro, 2002.

PASSEGGI, M. C.. Memoriais de formação: processos de autoria e de (re)construção identitária. III Conferência de Pesquisa Sócio-Cultural. Campinas, SP, 2000. Disponível em: <http://www.fae.unicamp.br/br2000/ trabs/1970.doc>. Acesso em 15/02/10.

PASSEGGI, M. C.; BARBOSA, T. M.; CARRILHO, M. F.; MELO, M. J. M.; COSTA, P. L.. Formação e pesquisa autobiográfica. In.: SOUZA, E. C. (Org.). Autobiografias, histórias de vida e formação: pesquisa e ensino. Porto Alegre : EDIPUCRS, 2006.

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PINTO, M. G. C. S. M. G.; MIORNADO, T. M.. Docência e Gênero: Histórias que ficam. In: OLIVEIRA, V. F. (Org.). Imagens de professor: significações do trabalho docente. Ijuí : Ed. UNIJU¸, 2000. - 328 p. - (Coleção Educação).

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MEMŁRIAS E SAUDADES

Simone Valdete dos Santos1

Esta apresentação ocorre afetada pela ausência do autor do texto que segue. A ausência do pesquisador dedicado ao Galpão de Reciclagem Rubem Berta da zona norte de Porto Alegre, a ausência do professor do curso Pós-Graduação em Educação da UFRGS, a ausência do nosso orientador de Trabalhos de Conclusão de Curso da Especialização PROEJA.

No entanto, sua presença é viva nas nossas ideias, na nossa crença absoluta sobre as possibilidades de superação, de luta dos sujeitos das classes populares, de seus saberes, de sua esperança!

Nilton Bueno Fischer trabalhou este texto com seus orientandos nos anos de 1997 e 1998, logo após a ausência de Paulo Freire.

Consideramos que ele está relacionado a esta obra que dá visibilidade às memórias dos professores de diversas escolas públicas do Estado do Rio Grande do Sul, atuantes em classes de EJA, em classes de Educação Profissional.

Em 08 de maio de 2009, o professor Nilton Bueno Fischer, em sua palestra para nossas quatro turmas do PROEJA, considerou o estético, a luminosidade, a música, a corporeidade como referenciais para a pesquisa em Educação, na perspectiva freireana da assunção da identidade cultural. Contava

1 Mestre e Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS, tendo a honra e o privilégio de ter sido orientada pelo professor Dr. Nilton Bueno Fischer, autor do texto que segue. E mail: [email protected]

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para uma platéia de cerca de duzentas professoras e professores que, como o mais velho de uma família de 12 filhos, ele experimentava a mamadeira dos mais jovens, com aquele pingo de leite sobre a mão. Sendo sua mãe professora primária, nos falou de suas ousadias, como catequista filiada à Teologia da Libertação em tempos de ditadura militar, afirmando que precisamos ousar em Educação, e que fazer ciência é fazer relação.

Na impossibilidade de ouvirmos novamente suas belas palavras, deixamos aqui este texto que completa esta obra, feita por muitos professores e professoras das escolas públicas do Rio Grande do Sul.

Abreijos, em conexões... (Como Nilton encerrava muitas mensagens de seu correio eletrônico)

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PAULO FREIRE: MEMŁRIAS E AFETOS!

Nilton Bueno Fischer1

Escrevo, hoje, numa tarde de inverno gaúcho, este artigo em homenagem ao amigo Paulo Freire. Uma lembrança imediatamente vem à minha mente: o diálogo que trocamos durante uma viagem de volta ao aeroporto Salgado Filho, num mesmo inverno cinza como hoje, há mais de oito anos atrás. Dizia Paulo, para mim e para o colega Balduíno, motorista naquele momento: „Olhem como as árvores das ruas aqui de Porto Alegre estão tristes! Parece que choram!‰. O mestre expressava ali também os seus sentimentos, pois havia recentemente perdido sua esposa, Elza, grande companheira. Lembro também que falamos a respeito das relações que a academia interdita entre os seus profissionais em momentos como aquele. Perguntei, então, a respeito de sua origem cristã e sobre o significado do perdão. Momentos privilegiados que pude viver com o nosso querido educador que em maio deste ano trocou de materialidade. Sinto que estamos como órfãos de um legado radicalmente humano que ele nos deixou, cientes do compromisso que temos de continuar ampliando e ressignificando os seus pensamentos, propostas, práticas e esperanças.

Estou convencido de que um dos mais fortes ensinamentos que aprendi com o Paulo justamente é aquilo que representa a centralidade de sua proposta

1 In Memorian: Doutor em Educação. Professor da UFRGS.

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pedagógica: o diálogo. A tradução que faço desse aprendizado se manifesta por alguns caminhos que desejo compartilhar com outros educadores.

Inicio pela atitude da escuta do outro. Um diálogo por inteiro pressupõe uma disponibilidade para a escuta radical. Na condição concreta de professor, na sala de aula, espera-se que esse profissional construa tal prática de forma permanente em seu cotidiano. O desenvolvimento dessa capacidade pressupõe um conhecimento de si próprio, de seus sonhos, utopias, possibilidades e limites. Apreciar a própria vulnerabilidade, por sermos humanos, permite uma atenta prontidão para ouvir o outro. Esse outro, sabemos todos nós, está se tornando explícito cada vez mais. A complexidade de situações vivenciadas por nossos alunos, evidenciada em cada novo dia de trabalho, está a demonstrar e exigir uma atenta disponibilidade para a escuta. Ressalvo o significado desse tipo de procedimento: ele está distante das chamadas idealizações a respeito desse outro, especialmente quando ele é um aluno de classes populares, em nossas periferias urbanas. Ele demanda um exercício de construção permanente de novos conhecimentos para podermos, como educadores, compreendermos com qualificação profissional cada novo desafio interposto por parte de nossos alunos.

Talvez devêssemos procurar alternativas que vão além dos limites de nosso campo de saber. Lembro que a hoje legitimada contribuição dos métodos advindos da antropologia, especialmente a observação, tem provocado uma ampliação dos nossos sentidos enquanto realizamos o trabalho de campo. Não são raros os depoimentos de antropólogos que palmilharam as periferias de nossas cidades, trazendo dados fundamentais para suas análises: os tatos/toques das pessoas, os cheiros das comidas e das fossas, os olhares das cores/dores dos sofrimentos. Considero que todos esses indicadores podem ser incluídos no registro da escuta.

Sei que a partir de nossos colegas professores, que atuam nos „entornos‰, poderíamos obter inumeráveis registros de experiências dialógicas que lembrariam muitos „freires‰ em ato! Nestes tempos de revisões de paradigmas, de olhares complementares entre intuição e pensamento científico, podemos construir, em novas bases, análises que trazem a condição humana

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denunciada em seus limites de dignidade e, ao mesmo tempo, sinalizar para sua superação.

Um dos pontos de partida para a análise de situações de exclusão, presente no dia a dia de nossas escolas, poderia ser a busca de resposta à seguinte questão: como a proposta pedagógica freireana, fundada na esperança, pode se constituir? Nos anos sessenta e até parte dos anos setenta o „denuncismo‰ via a escola como sendo uma instituição que somente reproduzia as relações sociais de produção, inculcando a tal ideologia dominante. Hoje se constata que esse processo não foi assim tão unilateral e que algumas escolas, por esse nosso país inteiro, estão conseguindo combinar saberes críticos e fortes denúncias com alegria e competência. Uma das pistas para entendermos esse processo está vinculada com a contribuição concreta do diálogo freireano. Por quê?

A resposta que encontro está no princípio primeiro, que aludi no início deste artigo. E se o diálogo é a condição fundante para o ato pedagógico, sua relação com o tempo é um corolário natural. Remeto, como pista, à comparação de três momentos da obra de Freire, ao longo de seu tempo de fértil pensador/provocador: a primeira etapa, em torno do clássico livro Pedagogia do Oprimido, passando pelo seu tempo de volta ao país, na re-escrita dessa obra, agora agregando uma nova palavra: Pedagogia da Esperança e finalmente o seu último livro, como que anunciando a despedida, nos deixando a responsabilidade de segui-lo sem copiá-lo, através do fantástico livrinho que é Pedagogia da Autonomia. Certamente existem outras obras e experiências (como as palmilhadas pelo mundo inteiro ou mesmo pela experiência como secretário municipal de educação em São Paulo) que poderiam nos servir como material de análise. Tomei os três livros, a trilogia. Pedagogia do Oprimido, da Esperança e da Autonomia, como uma forma lúdica de compreendermos um pensamento sempre irrequieto de um educador e sua forma de entender o seu tempo vivido! De um ponto de partida construído sob forma dicotomizada de argumentar (opressor/oprimido), para uma forma de argumentação que remete às possibilidades de um „depois‰ a ser atingido, chegando ao mundão das complexidades que compõem este final de século, no qual somos chamados para construções possíveis de uma sociedade democrática, inclusiva de diversidades. Entretanto, minha argumentação é que nós não precisaríamos

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percorrer os três estágios realizados por Freire: quem sabe poderíamos absorver seus ensinamentos de forma mais compactada e assim dispor de mais tempo para nossos projetos de inserção social. Tempo necessário para a pedagogia da autonomia! Aos poucos também o conceito e a prática da educação popular saem do espaço alternativo para poder ser parte também do espaço institucional da escola regular. O tempo, segundo ditado popular, é o que constrói a sabedoria.

Os tempos não são lineares. As três obras de Freire foram se entrelaçando uma à outra e criaram, paradoxalmente, uma ruptura com isso: encontramos a figura do oprimido (quase como sinônimo de classe operária/classes populares/pobres) dentro de todo o espectro da condição do ser humano (oprimidos dentro de cada um, nas relações de homem/mulher, de idoso/jovem, negro/branco etc.). O oprimido, do início da obra freireana, tenderia a se manifestar no singular e vinculado a um significado coletivo e homogêneo; nas obras mais recentes, já encontramos tais conceitos diluídos em vários singulares.

Contraditoriamente, num olhar rápido, a pedagogia da autonomia (que poderia representar somente o lado da independização dos „seguidores‰ de Freire) remete para uma nova conexão com o seu pensamento e com a variável tempo: a expressão „mestre‰ é reassumida ou pelo menos retomada nos últimos escritos como forma inequívoca da relevância do conhecimento científico e da experiência, na figura daquele profissional que assume a sua condição de educador. Gostaria que ficasse entendido o que desejo expressar como contribuição de Freire a respeito desse papel social do educador: em primeiro lugar se percebe que o próprio educador Paulo Freire, ao longo de suas caminhadas pelo mundo afora, foi incorporando contribuições e críticas ao seu pensamento. Portanto, aquilo que num primeiro momento poderia representar uma espécie de „diluição‰ da responsabilidade do educador (nas vulgarizações do que seria ensinar/aprender: „ninguém educa ninguém: a gente se educa uns aos outros, mediatizados pelo mundo‰, e que ficava traduzido: „cada um faz o que bem entender‰ [...] „tudo é manifestação de conhecimento, não se exige do aluno e nem do professor, pois o que importa é a relação...‰), fica transformado explicitamente, não permitindo mais aquelas antigas interpretações.

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Encontramos, então, a figura do Freire se disciplinando, socializando melhor suas fontes e pressupostos ao lado do mesmo Freire que fala suavemente, deliciosamente, da bela experiência que é viver. Para mim, este é o ensinamento que fica: a figura do mestre, do profissional, especialmente do adulto que assume estar na condição de educador como contador de histórias, num ritual, de repassador de conhecimentos transgeracionais. Faz lembrar fortemente a figura da autoridade que tínhamos jogado fora quando de nossas fases de crítica pela crítica, em que na confusão entre autoridade & autoritarismo não se discernia a função social de ser mestre. Considero, neste momento, a passagem de Freire por nossas vidas a partir de uma síntese dinâmica, dialogando com o mundo e com as pessoas.

Tal síntese não é para lembrar modelagem, muito menos apressamento de etapas. Pretendo aproximar um tempo vivido, quase 76 anos de uma pessoa como Paulo Freire, com o nosso tempo (o qual deve continuar sendo enriquecido de reflexões e práticas). Tal processo facilitaria a nossa explicitação de conceitos, convicções e práticas que estão, tenho certeza, represados em nossos corações e mentes? As virtudes de ser professor, como confessa Freire, deveriam ser: a humildade, a tolerância, a amorosidade e a competência. Pergunto: por que esperarmos mais tempo para a explicitação de nossas virtudes e vulnerabilidades? Em seus diferentes estágios e formas de expressão, nós deveremos fazer um esforço bonito e generoso para dizermos as nossas coisas para nós mesmos e para os outros. Trata-se de voltar para a escuta a partir de nos escutarmos.

Retomando as lembranças. Recordo de outro episódio envolvendo Freire, desta vez dentro do espaço institucional da UFRGS. Paulo fora convidado para o lançamento do primeiro volume da obra de Ernani Maria Fiori, a se realizar no Salão Nobre da Faculdade de Direito, em cuja solenidade verti lágrimas quando se falou dos tempos do exílio, no Chile, onde Freire e Fiori se encontraram. Antes desse evento, numa sala de aula do mesmo prédio, monitores de alfabetização dos assentamentos dos colonos sem terra estavam apresentando relatos acerca de suas diferentes experiências, e todos de posse de livros autografados pelo Freire. Ao final, todos queriam ouvir a fala do Mestre. Faltavam cinco minutos para o outro evento. Freire simplesmente passou a sua mão sobre branca e longa barba, recostou-se um pouco mais na cadeira e

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perguntou: „Qual é a distância que existe entre cada um dos assentamentos?‰ E todos se entreolharam, um tanto perplexos, respondendo que alguns assentamentos ficavam mais próximos do que outros, os quais, às vezes, eram tão distantes quase como cruzar o estado todo. Retrucaram, então: „Mas por que essa pergunta, essa informação?‰ E Freire, com aquela quase sumida voz, aveludada em sua entonação, disse: „É que eu gostaria de sugerir que, aos sábados, talvez pela tarde, os monitores de cada assentamento se visitassem entre si para trocar experiências!‰ Eu estava lá, ouvi e não entendi bem. Anos mais tarde, em confidências com ele, pedi para confirmar o episódio e se minha interpretação estaria na direção certa, qual seja, naquele momento a sua pergunta, simples e direta, estava sinalizando a radicalidade do diálogo entre as pessoas e, ao mesmo tempo, fazendo um alerta aos agentes de mediação os quais, de fora, prescrevem a fala dos outros. Freire acenou que sim, era esse seu objetivo. Estaria aí um evidente chamamento aos pesquisadores, aos agentes de pastoral e aos militantes dos partidos políticos: antes da fala articulada, científica, organizada, procurem escutar àqueles a quem dizem representar ou assessorar. E talvez estivesse aí também a seguinte questão: Os educadores de tantas experiências por esse mundo afora estariam gerando momentos de escuta? Freire, por este ato, estava sendo novamente coerente às suas crenças e práticas, anunciando a continência verbal como ferramenta indispensável ao educador. Aquele que sabe escutar.

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PROFESSORES A(U)TORES:

SUAS VOZES E SUAS PALAVRAS, SUAS

HISTŁRIAS E SUAS VIDAS

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TRILHA DA VIDA1

Regras do jogo

Número de jogadores: depende de como você se relaciona com as pessoas.

Idade recomendada: desde o dia em que você nasceu.

Dinâmica do jogo: jogue o dado, conte as casas, leia e siga as instruções nelas contidas.

Preparação: a sua vida inteira.

Tempo do jogo: depende dos cuidados que você tiver com a sua saúde.

Complexidade das regras: você irá fazer as regras, conforme julgar serem corretas.

Estratégia: conquistar o maior número de amigos e realizações possíveis.

Objetivo: atingir todas as metas que estabeleceu para a sua vida sem trapacear ninguém.

1 Memorial de Felipe Ribascik.

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ESCREVER PARA ESCREVER-SE1

A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da

continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente (Freire, 2001, p. 11).

Falar de minhas memórias me leva a abrir parênteses e oferecer este exercício de reflexão ao meu professor e amigo Paulo Coimbra Guedes, o qual dedicou (e ainda dedica, mesmo que aposentado) sua carreira de professor de Língua Portuguesa à preocupação com o ato de escrever como forma de ler sua história. Seu assunto nas aulas que ministrava na Faculdade de Letras da UFRGS ou mesmo na mesa de um bar qualquer era a importância do ato de „escrever-se‰, como ele dizia. Um dia ele me disse para escrever-me e eu respondi que não era o momento, que não via um motivo para tal e hoje, me vejo com uma obrigação gostosa de re-visitar minha trajetória, de refletir sobre a mesma e de quem sabe, fazer a minha história.

Para escrever-me, busco inspiração em Paulo Freire, no que se refere à leitura do mundo. Acredito que minha trajetória pessoal e profissional começa com a leitura do um pequeno mundo que vai se ampliando e segue-se nas leituras de „outros mundos‰ que sequer imaginava existirem e que hoje me apaixonam e me envolvem cada vez mais.

1 Memorial de Evelise Neumann Passos.

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Meu primeiro pequeno mundo era bem escondido atrás da cômoda da minha mãe, onde rabiscava com giz, aos dois anos de idade, falando para uma platéia atenta de bonecas. Meu pai garante que eu estava imitando a professora do meu irmão que, nesta época já estava na Escola, onde eu e minha mãe passamos longas tardes durante sua adaptação.

Bem maior foi o mundo da minha experiência como aluna do Jardim A, antes mesmo de completar quatro anos de idade: aquele monte de materiais escolares, nos quais minha mãe, carinhosamente colava etiquetas com meu nome, mostrando-me as letras para que eu soubesse quais eram os meus lápis de cor, giz de cera, almofada xadrez, toalhinha... O preguinho com meu nome, cheio de folhas penduradas com garatujas que eu jurava serem formas definidas e que adorava expô-las a adivinhações. A professora Olga me chamava de „minha gorda‰ com tanto carinho, que eu nem me importava. Adorava ser a ajudante do dia, pois assim passeava por aquele imenso colégio para buscar um grampeador ou para dar algum recado. Mas do que eu mais gostava mesmo, era da Hora do Conto, quando a professora nos contava histórias com um entusiasmo que parecia que eu estava vivendo o que ela narrava. Eu era muito curiosa, então, estava sempre fazendo perguntas e tentando descobrir coisas novas, nem que fosse uma maneira diferente de montar os Legos gigantes.

A Escola era de freiras, muito rígidas quanto à relação idade/série e, como eu só faria aniversário em 26 de março, não tinha a „idade certa‰ para frequentar o Jardim B nos primeiros dias de março, quando começavam as aulas. Apesar de ser considerada bem esperta para a minha idade e ter acompanhado o Jardim A tranquilamente, tive que „repetir o ano‰.

Lembro-me que o início daquele ano foi entediante: a nova professora, chamada Vera, mostrava aos alunos novos (o que não era o meu caso) as dependências da Escola, a diretora, os funcionários... Mas isso tudo eu já conhecia, e o trabalhinho de colar feijão no nome eu já tinha feito, e a música da casinha com uma lagartixa eu já havia cantado durante um ano inteiro. O tédio fez com que eu procurasse, por conta própria, coisas novas para fazer: brigar com os colegas, fugir da sala, cortar o cabelo loiro, lindo e longo da coleguinha Patrícia. As conversas com a professora e com a irmã Lourdinha, freira/professora responsável pelo SOE de nada adiantavam: é claro que eu,

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naquela época não sabia dizer o motivo dos meus atos, respondendo, apenas, que a Escola era chata. Minha mãe tentou formas mais rígidas comigo, como castigo e até mesmo palmadas, que também foram em vão. Em uma das minhas fugas da sala de aula vi a porta da Biblioteca aberta e entrei. Lá ficava a professora Bernadete e muitos livros dos mais diferentes tamanhos. Perguntei se podia entrar e ela, com um sorriso que recordo até hoje, permitiu, com a orientação de que eu não mexesse em nada. Fiquei vidrada nas estantes olhando para cima e para baixo, até que a „Dete‰ (como passei a chamá-la no decorrer de nossa convivência) me entregou uma cesta plástica com muitos livrinhos de história e me apontou para um canto cheio de almofadas, dizendo que ali eu poderia ficar. Estava fascinada no meio dos livros quando a responsável pela disciplina apareceu na porta com um grito de „te achei!‰. A Dete disse que eu não estava incomodando e que não se importava se eu fosse visitá-la diariamente. Então, toda vez que eu estava perturbando a aula, era mandada para a Biblioteca. Com o passar do tempo, Bernadete me contava algumas histórias e depois pedia para eu lhe contar outra, que ela não conhecesse. Passávamos tardes inteiras contando fábulas, lendas e contos de fada uma para a outra. Desta forma, meu desafio era conhecer muitas histórias para lhe contar. Para isso minha mãe me ajudava em casa, comprando livrinhos e lendo-os várias vezes para que eu as decorasse. E eu folhava por horas e horas aqueles livros, como se quisesse entrar neles.

No mês de agosto, em uma das minhas visitas à Biblioteca, peguei um livro de Histórias Bíblicas e comecei a ler deitada nas almofadas. Bernadete ficou encantada com a maneira como eu havia decorado a história, ao que respondi que nunca tinha visto aquele livro. Sinceramente, não sei como se deu, mas eu estava dominando o código escrito: estava lendo histórias inteiras. Como prêmio, ganhei de meus pais uma caixa cheia de livros e gibis, muitos beijos, abraços e demonstrações de orgulho.

Fui parar novamente no SOE, mas agora para ser testada quanto à leitura e à escrita. Ao final do teste, foi sugerido à minha mãe que eu fosse imediatamente para a primeira série, mas ela não aceitou, pois já estávamos na metade do ano e ela achava que não tinha maturidade suficiente para esta „aprovação‰. Terminei aquele ano mais na Biblioteca do que na sala de aula e, no ano seguinte, ao invés de ir para o Jardim B, fui direto para a primeira série.

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Na primeira série tive a sorte de conviver com a professora Rose, que entendendo que eu já lia e escrevia, procurava me dar trabalhos diferentes dos que os meus colegas não alfabetizados faziam, procurando sempre ampliar meus conhecimentos. Em alguns momentos, ela me pedia para ajudar os colegas, o que fazia com grande satisfação.

Nos anos seguintes do primeiro grau (hoje Ensino Fundamental) posso dizer que minha vida escolar equiparou-se a dos colegas, pois eu já fazia as mesmas coisas que todo mundo, tinha muitas dúvidas e aprendia com meus colegas. Até a oitava série, alguns fatos foram recorrentes: minha curiosidade ia além dos conteúdos trabalhados em aula, sempre fui sócia assídua da Biblioteca, nunca tive problemas de comportamento além dos esperados para cada faixa etária, nunca fiquei em recuperação e muito menos rodei. Como sempre tive facilidade quanto aos conteúdos, frequentemente ajudava alguns colegas com aulas particulares na hora do recreio. Também conquistei a simpatia da maioria dos professores e percebi o quanto é bom aprender com quem a gente gosta e com quem olha para a gente com carinho. Muitas vezes, fui escolhida líder da turma, mas só hoje entendo o porquê.

No final do ano de 1988 chegou a hora de pensar no segundo grau. Embora possa parecer piegas, atribuo a minha escolha pelo Magistério a uma boa dose de destino (sabe quando parece que nascemos para aquilo?) aliada à expectativa da minha mãe, como forma de realizar um sonho seu que não aconteceu. Ela queria ter sido professora, mas seu destino assim não o quis.

Foi no Instituto de Educação General Flores da Cunha que dei, o que considero hoje, meu primeiro passo em direção a um mundo bem maior do que aquele que ficava atrás da cômoda do quarto dos meus pais e do que o mundo da Biblioteca da professora Bernadete. Conheci um mundo que me vejo lendo até hoje, muitas vezes não lhe entendendo, mas sempre procurando fazer parte dele: o mundo da crítica, da reflexão, da participação, da valorização do público e da luta pelo cumprimento de direitos e deveres. Esse foi um grande passo na minha trajetória pessoal e que não consigo dissociar de minha prática pedagógica.

Já no primeiro ano do curso comecei a frequentar o Grêmio Estudantil da Escola: no início porque era uma sala onde podíamos fumar escondidos,

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depois por simpatizar com as pessoas e enfim, por concordar com suas idéias e lutas. Participei da destituição de Presidente deste Grêmio e também do movimento Fora Collor. Abracei o Instituto em seu aniversário e tranquei a Avenida Osvaldo Aranha reivindicando professores que estavam faltando na Escola. E nessa participação muito intensa em manifestações e movimentos, conheci muito de política e também de politicagem. Pude estabelecer contato com ideologias com as quais concordava e concordo e com idéias que eu não concordava, mas que aprendi a respeitar e, desta forma, mais do que assistindo aulas de Didática, comecei a montar minha bagagem profissional. Claro que as práticas de ensino e o estágio obrigatório contribuíram bastante na minha formação, bem como os cinco anos nos quais trabalhei em uma creche como recreacionista (enquanto ainda estudava e logo depois de formada). Tive a honra de assistir Paulo Freire e sua filha Madalena Freire em uma palestra no Ginásio da Brigada Militar, mas só tempos depois pude perceber a proporção daquilo que ouvi e daquele momento que vivi; participei de muitos encontros e seminários do GEEMPA, os quais naquele momento me pareciam bastante próximos à prática, e dos quais por algum tempo tentei „copiar algumas receitas‰.

Depois de dois anos formada, realizei o sonho (que depois virou pesadelo) de trabalhar em uma escola particular, ganhando um salário bastante razoável para alguém com dezenove anos de idade. Trabalhei em três escolas no período de seis anos (uma média de dois anos em cada uma). Em todas elas aconteceu a mesma coisa: em sala de aula eu era adorada pelos alunos e também pelos pais, a direção reconhecia meu domínio de conteúdos e minha didática, mas depois de algumas reuniões administrativas e/ou pedagógicas eu passava a ser mal vista por meus posicionamentos, pois ali não se enquadravam as palavras de António Nóvoa que ouvi em um Seminário: „Na docência é impossível separar as dimensões pessoais e profissionais. Ensinamos aquilo que somos e naquilo que somos encontra-se muito daquilo que ensinamos‰. Como não podia ser eu mesma e não conseguia ser diferente, acabei sendo sempre demitida.

No ano de 1999 ingressei na UFRGS, para cursar Licenciatura Plena em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e Espanhola e suas respectivas Literaturas. Tal escolha deveu-se à minha adoração pela leitura aliada ao meu

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gosto pelo Português e também ao fato de já ter escolhido o magistério como profissão. Foram cinco anos de muita aprendizagem no campo teórico; tive contato com obras, autores, teóricos, idéias que nunca tinha ouvido falar. Confesso que o contato com o modelo do professor universitário me encantou muito. Vê-los dando aulas fortalecia ainda mais minha opção profissional. Apesar de perceber o curso como muito teórico e pouco prático, tive a sorte de já ter experiência profissional e consegui estabelecer relações que contribuíram muito na minha formação. Quanto aos meus colegas, que nunca haviam dado aulas, tenho as minhas dúvidas...

Em 2002, fui nomeada professora de currículo por atividade no Estado do Rio Grande do Sul. Fui trabalhar na E.E.E.F. Professor Afonso Guerreiro Lima, localizada no „coração‰ da Vila Cruzeiro do Sul. Assumi uma turma de 2À série no mês de maio, sendo que os alunos, todos multirrepetentes, estavam desde meados de março sem professora. Confesso que foi um grande contraste com as escolas particulares nas quais eu havia trabalhado: a escola não tinha uma aparência das mais bonitas e bem cuidadas, as crianças na sua maioria eram sujas, cheiravam mal e não tinham, sequer, lápis e caderno. Mas o melhor de tudo foi saber, através da diretora, que não havia orientadora e nem supervisora, e que ela, como professora de Matemática não tinha muita experiência com „os pequenos‰, então, eu podia trabalhar como achasse melhor dentro da minha sala de aula. O fato de poder fazer como eu achasse melhor me levou a ter contato com um mundo agora muito maior do que todos os que eu já havia lido. Era um mundo bem diferente do meu, onde as pessoas passavam frio e fome, onde as crianças não tinham o mesmo prazer que eu tive quando era aluna... E aquelas crianças que eu encontrei faziam com que eu me lembrasse da minha experiência no segundo ano de Jardim B. A escola para eles era chata, no caso dos multirrepetentes, já haviam visto várias vezes as mesmas coisas. Nos livros e nos quadros lotados com a letra linda da professora era mostrada uma realidade que não era a deles. Foi então, o meu grande desafio e a minha grande aprendizagem: desconstruí alguns conceitos, construí outros, procurei conhecer a comunidade onde meus alunos viviam, integrei-me à escola fazendo parte do CPM, do Conselho Escolar, Comissão Organizadora de Festas e outras tantas Comissões, até mesmo porque a maioria dos meus colegas não participava de nada. Acredito que passei a conviver não só com a consciência

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prática, que faz com que nos acomodemos a passemos a repetir mecanicamente as coisas, mas também com uma consciência crítica que estava adormecida no meu lado profissional, mas sempre viva pessoalmente. Passei a refletir e a estudar muito, procurando maneiras para lidar com as surpresas e com o inesperado. A bagagem que adquiri na Escola, através da experiência e da reflexão sobre a mesma é imensurável.

A minha relação tanto com os alunos quanto com a comunidade e com o grupo de professores fez com que, ao final do meu segundo ano na escola fosse convidada a concorrer como vice-diretora. Algumas questões burocráticas não permitiram, mas fiquei bastante orgulhosa com o convite.

Acontece que, infelizmente somos movidos pelo capitalismo e pela sede de ganhar mais para ter mais, e desse mal ainda não consegui me livrar. Então, troquei de escola no intuito de ganhar mais. Fui trabalhar no bairro da Ponta Grossa, na Escola Estadual de Ensino Fundamental Dr. José Loureiro da Silva, distante a 50 minutos de carro da minha casa. Lá a diretora tinha hábitos e posturas que me faziam lembrar as escolas particulares, e isto me desagradava. No dia em que essa diretora me disse que havia observado que eu era mais de escutar do que de falar, vi que ali não era o meu lugar, eu não estava sendo eu. Ao final do ano, não consegui trocar de escola e tive que ficar lá. Para minha surpresa, em junho a diretora renunciou e sua vice assumiu, me convidando para ser sua vice-diretora. Pensei em não aceitar, mas depois vi o convite como um desafio: era hora de tentar pôr em prática o meu compromisso social e a vontade de mudança. Não adiantava estar insatisfeita e não fazer nada para mudar a situação. Aceitei o convite desde que pudesse continuar em sala de aula, onde me realizo a cada dia. Nossa proposta enquanto equipe diretiva era construir uma nova maneira de estar na escola, fazendo com que os professores que demonstravam vontade de evoluir pudessem se juntar com os colegas para refletir sobre o seu trabalho. Proporcionamos momentos de diálogo para análise das práticas e para procura coletiva de melhores formas de agir. Foi um trabalho bastante enriquecedor para o grupo, que passou a agir de maneira mais autônoma e consequentemente com maior qualidade. Profissionalmente, tive contato com as questões burocráticas que fazem parte da instituição escolar; aprendi muito e passei a acreditar que todo o professor deveria passar pela direção de uma escola.

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A longa distância percorrida diariamente para chegar à Ponta Grossa estava me desgastando e eu decidi que ao final do ano trocaria de escola embora estivesse feliz com o meu trabalho. E novamente a questão financeira falou mais alto: eu queria uma escola perto da minha casa e com 100% de difícil acesso. No mês de julho fiquei sabendo da existência de uma vaga na Escola Tom Jobim, localizada no Complexo Vila Cruzeiro da FASE. Conversei com a diretora do Loureiro, que me apoiou em minha decisão, e me liberou uma vez que era uma oportunidade financeira boa e um desafio maior ainda.

Em agosto assumi como professora de Língua Portuguesa na Escola Estadual de Ensino Fundamental Tom Jobim. Era realmente uma experiência diferente e desafiadora, pois até então, só havia trabalhado com séries iniciais e a partir daí eu trabalharia com alunos de 5À a 8À na modalidade EJA, internos da FASE. Era um mundo que para mim só existia nos jornais, com menores infratores, privados de liberdade por terem cometido todo o tipo de delito, inclusive os mais inimagináveis. Desta vez, o mundo que se apresentava para a minha leitura ia além da minha imaginação e me dava certo medo; medo dos alunos e também da situação, completamente distinta de tudo o que eu já havia vivido. Recorri novamente ao estudo para aumentar meu repertório pedagógico para dar conta do que viria.

A Escola Tom Jobim é repleta de particularidades além daquelas que toda a escola tem: está inserida dentro da FASE, e, portanto, submetida às regras da Instituição principalmente voltadas à segurança; os alunos, na maioria das vezes estão há muito tempo fora da escola e, durante sua internação, são obrigados a estudarem; estão „emburrecidos‰ pelas drogas, como eles mesmos dizem; por questões de segurança, os internos não ficam com seus cadernos e nenhum tipo de material após as aulas, não tendo assim como estudar em horário extra-escolar; a rotatividade de alunos é intensa devido a novos ingressos, fugas, desligamentos, liberdade assistida... A composição das turmas muda quase que diariamente. Lidamos com portas de ferro, cadeados, monitoria, „pedalaços‰ (forma de manifestação onde os internos deitam-se no chão e batem fortemente com os pés nas portas de ferro de seus dormitórios). Mas, acima de tudo, é uma Escola onde há conteúdos, objetivos, avaliações, conselhos de classe, aprovações, reprovações e, é claro, a preocupação com um fazer pedagógico que seja significativo para nossos alunos.

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Posso dizer que me adaptei facilmente ao novo contexto. Depois de dois meses trabalhando na Escola, fui convidada a assumir a vice-direção do turno da manhã, permanecendo com turmas à tarde e à noite. Aceitei o convite e mais esse desafio. Acredito que estar em sala de aula e na vice-direção são experiências que se complementam e enriquecem-se mutuamente.

Na Tom Jobim cada dia deve ser visto como uma conquista e uma reconquista, devido à resistência dos alunos durante as aulas. A cada dia nossas certezas a respeito da educação devem ser reforçadas para que possamos passá-las aos alunos. É como uma plantação: devemos plantar, regar as plantas diariamente na medida certa e admirar seu crescimento mesmo que aos pouquinhos.

O cotidiano me mostrou que minha prática deveria pautar-se no respeito, na confiança e na significação. Como os alunos verbalizavam odiar o Português, procurei e procuro a cada dia compreender a matriz histórica, científica e social dos conteúdos que trabalho transformando a matéria em instrumento de cidadania e de autonomia, fazendo com que eles percebam uma utilidade prática para as nossas aulas, que são baseadas praticamente na escrita e na leitura. No começo não foi fácil, diziam que nunca iriam usar nada daquilo etc., mas hoje, vejo como recompensa o sorriso dos alunos quando me enxergam, três adolescentes do 3… ano do Ensino Médio os quais convenci a fazer o ENEN, percebendo uma possibilidade de conhecer outros mundos ao saírem da FASE e a turma do 2… ano do Ensino Médio do CASE feminino na qual estamos produzindo textos para a publicação de um livro no final do ano.

Em dezembro de 2007, ingressei no Curso de Especialização em PROEJA, vislumbrando uma grande oportunidade de qualificar minha prática e, consequentemente tornar meu trabalho mais significativo para meus alunos. Algumas dúvidas foram sanadas e muitas outras se criaram, assim como algumas teorias já viraram práticas e algumas práticas estão tornando-se teorias que pretendo aprofundar no decorrer do curso.

Desta forma, hoje paro durante algumas horas para dedicar-me a esta escrita de mim mesma e percebo o quanto andei, muitas vezes sem notar e do quanto mudei sem ter percebido. Apesar de em certos momentos ter vontade de correr para trás da cômoda da minha mãe, vou em frente, desafiando os

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mundos que encontro (ou que me encontram) cada vez mais com a certeza de que ensinar é aprender e de que, nossa história está aí para ser escrita e reescrita.

Referências

FREIRE, Paulo. A Importância do Ato de Ler em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 2001.

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MOSAICO DE COM-VIV¯NCIAS EDUCACIONAIS1

Este Memorial aborda a desafiante tarefa da escrita de um texto marcado pela subjetividade e, portanto, sujeito a diferentes interpretações. Constitui-se de uma escrita complexa, na qual o discurso é expresso pelo viés dos sentimentos, das emoções, das reflexões, das memórias de vivências e de meu fluir pela vida como sujeito a um só tempo físico, biológico, psíquico, histórico, social e cultural (Morin, 2002).

Esse „garimpar‰ na minha trajetória educacional e profissional, o compartilhar experiências, o repensar (com idéias e imagens) de fatos significativos é marcado pela curiosidade, paixão e sensibilidade no ato de educar. De uma maneira geral, mas suficientemente próxima, este memorial me conduz ao desafio de um novo conviver com meu processo formativo/educativo, tocada por uma curiosidade epistemológica (Freire, 1996, p. 27), na ressignificação de minha docência em tempos de exigências de uma nova postura frente à realidade educacional.

A escolha do subtítulo Mosaico representa a reunião de elementos significativos, constituintes do meu fazer pedagógico. Mosaico também nomeia um disco instrumental, de ˜ngelo Primon, um querido músico gaúcho, a quem homenageio e agradeço, por alegrar minha alma no exercício desta escrita,

1 Memorial de Ceres Labrea Ferreira.

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sensibilizando-me, inspirando-me, por meio do seu trabalho, a buscar a delicadeza dos acontecimentos que me constituem como educadora.

Mosaico de „Con-Vivências‰ Educacionais

De acordo com o dicionário, Mosaico é uma palavra originária do latim (lat.tard.Mosaicus) que tanto pode significar „Reunião de pequenas pedras, quase sempre cúbicas, multicoloridas, justapostas de maneira a formar um desenho e incrustada em cimento‰, quanto „qualquer trabalho manual ou intelectual composto de partes visivelmente, distintas, miscelânea‰. Ainda na busca de definições, descobri que a palavra Mosaico tem origem na palavra grega mousien, a mesma que deu origem à palavra música, que significa próprio das musas.

Assim, penso minha constituição enquanto educadora: um mosaico que é misto de reuniões de pequenos acontecimentos, de „con-vivências‰ sociais, educacionais que formam um desenho, um trabalho intelectual composto por uma miscelânea de idéias e de uma parte poética que me inspira ir ao encontro de outros saberes em minha história de vida, tecida por tramas e texturas de uma significância vivencial, emocional e afetiva.

Quanto ao termo „garimpar‰, usado como metáfora nesse processo de reflexão, várias são as imagens que me vêem. Lembrei da frase de Heráclito: „Nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio, pois na segunda vez não somos os mesmos, e também o rio mudou‰ (Apud Martins, 1993, p. 93). Neste garimpar, tenho a clareza de que já não sou a mesma desde que iniciei este memorial.

Con-vivências Primeiras

Ah, um banho de rio... mergulhar e deixar vir à tona os acontecimentos pela reflexão presente...

Em São Luiz Gonzaga, pequena cidade no interior do Rio Grande do Sul, região missioneira, foram tecidas minha infância e adolescência através de

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um mosaico de aprendizagens e saberes sensíveis. Uma estadia de convivências, de explorações e descobertas junto à natureza; experiências cotidianas repletas de significações, desafios, frustrações, curiosidade e possibilidades.

Essa estadia, repleta de múltiplos encontros e movimentos, povoou meu imaginário e ajudou-me a compreender singularidades nesses espaços. Assim, fui dando sentido aos acontecimentos, construindo e compreendendo valores/ significados, que penso serem necessários e referenciais na arte de educar. Falo de valores, construção de sentidos e compreensões mútuas entre os sujeitos, pois vejo o processo educacional perpassado por ações que deflagram construções de identidades constituídas de sentidos num contexto histórico-social.

Naquele espaço geográfico tive a oportunidade de contatar com a natureza quase que diariamente, o que me oportunizou vivenciar brincadeiras recheadas de desafios, ousadias e poesia, juntamente com minha nômade família (ora vivíamos no campo, ora na cidade). Quando voltada para interesses agrários, reforçava este contato, bem como intensificava o estabelecimento de relações num círculo de amizades alicerçadas na simplicidade, na colaboração mútua, na autenticidade e na solidariedade. Ao vivenciar o espaço urbano, lembro com muito carinho das peças teatrais, realizadas no pátio de casa, de meu acesso a um bem cultural, o cinema, que, semanalmente, era frequentado por nós. Muitas de minhas aprendizagens nasceram desse vínculo social, o qual tinha uma participação ativa de amigos do meu pai.

Freire considera que „aprender a ler, a escrever, alfabetizar-se é, antes de mais nada, aprender a ler o mundo, compreender o seu contexto‰ (2001, p. 20). Para mim, ter tido um convívio no meio social urbano, ter tido contato com a arte, ter aprendido a respeitar a natureza, a regozijar-me com os prazeres e desafios por ela ofertados através dos banhos de rio e de chuva, da brincadeira em gangorras de taquara; ouvir causos ao redor do fogo de chão, ter convivido com diferentes pessoas e animais, sem dúvida constituíram um reservatório para meu processo de aprendizagem, um acervo de fenômenos, tal qual uma biblioteca com seu acervo de livros. Eu fui aos poucos, à medida que me relacionava, lia e decifrava o mundo à minha volta, montando uma biblioteca:

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biblioteca de pensamentos, de imagens, de sentimentos, de afetividades, de conflitos internos, de superações, frustrações e de possibilidades.

Essa formulação me remete a Jean Marie Goulemot que, ao entender a leitura como um evento do tipo aqui e agora, pensa sobre os elementos externos a ela, ou seja, as condições que o leitor tem nesse determinado momento. São condições que concorrem para a percepção dos efeitos de sentido, e são elencadas através de três variáveis: fisiologia, tempo e biblioteca. A variável biblioteca chama atenção por pressupor culturas adquiridas pelo sujeito, já que „cada indivíduo carrega consigo uma biblioteca armazenada de experiências, o que, definitivamente, demarca um melhor nível de leitura‰ (Goulemot, 1996, p. 113). Penso que essas vivências, ao serem acessadas pela iconografia da sensibilidade e pela consciência do inacabamento do ser humano (Freire, 1996) me tecem enquanto sujeito hoje.

Ao refletir sobre as vivências significativas de minha infância e adolescência também trago o pensamento de Berger & Luckmann que, numa análise sociológica, nos diz que

o sentido se constitui na consciência humana: na consciência do indivíduo, que se individualizou num corpo e se tornou pessoa através de processos sociais. Consciência, individualidade, corporalidade específica, sociabilidade e formação histórico-social da identidade pessoal são características essenciais de nossa espécie (2004, p. 14).

Percebo, então, que minha forma de me mover, de sentir, de agir e de intervir no mundo advém dessas relações, juntamente com outras experiências, que me ensinaram e me ensinam a atribuir significado aos acontecimentos e a ter um olhar construtivo frente à vida e na minha relação com os educandos.

Con-vivências Profissionalizantes

Ao realizar as leituras propostas nas disciplinas do Curso de Especialização em Educação Profissional e Técnica de Nível Médio Integrada à Educação Básica na Modalidade Educação de Jovens e Adultos dei-me conta da importância desse resgate histórico como condição sine qua non para que eu

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me enxergasse nesse processo e entendesse minha construção como sujeito docente.

Nasci em 1964 e ao ingressar na escola nos anos 70, recebi uma educação influenciada pelo tecnicismo, mas creio que respingada pelas influências de uma educação tradicional. Nesse período, com o desenvolvimento do processo de industrialização e a ênfase no desenvolvimento econômico, senti a aplicação da Lei 5.692/71 no contexto da educação – essa lei oficializava a formação integral do jovem, com preparação do homem para o mercado de trabalho.

Minha construção profissional iniciou quando ingressei no curso de Magistério em uma Instituição Educacional Confessional Salesiana, em 1979, na cidade de São Luiz Gonzaga. Hoje, através dos diversos estudos que empreendi, percebo o modelo inscrito na minha formação, que dava ênfase ao domínio de habilidades referentes ao planejamento de ensino, ao conhecimento e a utilização de novas tecnologias do ensino e recursos audiovisuais, a definição de objetivos, a avaliação voltada para o alcance dos objetivos propostos e a fragmentação no processo ensino-aprendizagem. O curso com três anos de duração e realização de um semestre de estágio, possibilitou-me a conquista do diploma de Educadora.

Minha primeira experiência como educadora foi numa escola particular Salesiana que primava pelo ensino de elite; naquela época trabalhávamos com grupos de crianças pretensamente homogeneizadas por um processo de seleção (Esteves, 1995, p. 96). Digo pretensamente porque a segmentação social era facilmente identificável e se refletia na divisão dos alunos em turmas diferenciadas econômica e cognitivamente.

Posteriormente, já com a formação de professora, atuei em uma escola Municipal da periferia, ainda em São Luiz Gonzaga, numa turma de 2À série do Ensino Fundamental. Esta turma, pelo baixo desempenho alcançado no ano anterior, carregava o estigma de fracassada.

A diferenciação econômica, social e cognitiva (entre a turma da escola particular e a da periferia) foram o principal e primeiro desafio, que me

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instigou a usar uma espécie de rede de atividades, as quais eu entendia como alternativas, de forma a despertar o interesse dos alunos.

Buscando romper estigmas, valorizando o ser em sua complexidade, respeitando o tempo de aprendizagem de cada um no grupo, tendo uma consciência de unidade na coletividade e vice-versa, entendi como necessário, ensinar o conteúdo de forma mais lúdica do que a orientação tradicional indicava. Pretendia, assim, superar as limitações cognitivas apresentadas pelos alunos em relação à proposta formal de desenvolvimento do conteúdo. Naquela ocasião, eu trabalhava intuitivamente, empiricamente. Busquei resgatar a auto-estima do grupo através do acolhimento dos saberes. Lado a lado com as interações face a face, essas condutas foram protagonistas na troca de sabedorias dando-me oportunidade de experimentar também, as interações mediadas.

Nestas interações, o gravador, o jornal, a revista, os cartazes de filmes infantis, foram coadjuvantes indispensáveis nas diversas linguagens e atividades criativas e inovadoras para a época.

Essa experiência, garimpada em meio a tantas outras desse meu mosaico pessoal/profissional, vista até então como positiva, assegurou-me uma auto-credibilidade e uma credibilidade comunitária, de forma que os novos desafios profissionais me motivaram nesta busca de um maior entendimento dos processos de construção de conhecimento.

Mais que os resultados profissionais positivos alcançados, esta foi uma experiência que entendo como a primeira manifestação da ação educativa, fundamentada na idéia da Biologia do amor de Maturana e Rezepka (2001).

Paralelamente, anseios pessoais me moviam em direção à ampliação de horizontes – sair da cidade onde eu havia nascido, sair da casa de meus pais, mudar-me para a capital. Foram passos que senti como necessários para buscar minha independência. Porém, as condições objetivas de sobrevivência ou a leitura que fiz delas, me levaram a optar pelo curso de Educação Física na Universidade do Rio dos Sinos, no ano de 1986, pois vislumbrei a possibilidade de aliar o interesse pela educação ao trabalho corporal que o curso pressupunha. Minha percepção corporal foi ampliada, mas a insatisfação diante dos paradigmas presentes no desenvolvimento do curso e a necessidade de

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aprofundar e expandir meus conhecimentos sobre o corpo/consciência de si/ alargamento da visão educacional e compreensão histórico-social, me levaram a frequentar vários cursos extra-curriculares, seminários e palestras sobre corporeidade cujos conteúdos abordavam entre outros, dança como terapia, alongamento, sensibilização e expressão através do movimento e da voz, cantos e danças sagradas. O intuito era encontrar maiores informações a respeito dos fenômenos resultantes da ação corporal, bem como ampliar meus horizontes sobre o significado da percepção, do auto-conhecimento e consciência corporal, pois, sobretudo, acredito que nossa educação começa pelo corpo e tudo aquilo que é captado de maneira sensível pelo corpo poderá resultar numa interação saudável e mais responsável com o ambiente que nos cerca. Nesse sentido, João Francisco Duarte Junior, nos diz que „tudo aquilo que é imediatamente acessível a nós pelos órgãos dos sentidos, já carrega em si uma organização, um significado, um sentido‰ (2001, p. 12).

Por questões contratuais nunca atuei como professora de Educação Física nas escolas públicas. No entanto, por entender a necessidade de incluir a atividade corporal nos programas de currículo, sempre me vali desse conhecimento e o utilizei em todas as turmas em que exerci a docência.

Entre tantas experiências vividas com alunos de currículo, enfatizo uma atividade que chamo de resultado de vivências. Estas vivências foram desenvolvidas com uma turma com a qual trabalhei por dois anos consecutivos. Na época, eu tinha um sítio em Morungava/RS. Então, com aprovação da escola, fiz o convite aos pais dos alunos. Com a participação da orientadora da escola, vivemos dois dias e uma noite de fartas experiências potencializadoras da aprendizagem: as crianças realizaram atividades de cozinhar, arrumar a casa, nadar, explorar o local, dançar, brincar e cantar em torno da fogueira. Manipularam o barro e o guache, vivenciando a magia de reiventar o inventado. Foram experiências que através de ações motivadas por afetos provocavam e reforçavam atitudes de autonomia, solidariedade e sociabilidade. E, distante de suas casas e atividades habituais, encerramos esta „con-vivência‰ numa aventura que, com a visita dos pais, culminou numa grande celebração de carinho.

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Essa experiência reforçou meu entendimento de que o trabalho de educação não se faz somente através da relação linear aluno/professor/sala de aula, mas sim, também, num ambiente prazeroso de interação social onde as relações de troca possam ultrapassar as fronteiras do espaço escolar. Comum-gando com a idéia de Freire de que a educação é uma tarefa possível e, sobretudo humana, penso que essa prática pedagógica teve o sentido de cola-borar na formação de sujeitos sensíveis, criativos e responsáveis por seus atos.

Na EJA: Um outro encontro

As experiências narradas até aqui me possibilitaram acreditar na superação de limitações no processo de construção de novos saberes.

Um novo desafio e um novo contato se estabeleceram na minha trajetória profissional: trabalhar com jovens e adultos no Ensino Supletivo em Escola Pública Estadual. No contato inicial com minha primeira turma de adultos percebi o formalismo circulando nas relações, tanto de sala de aula, quanto por todo o espaço escolar. O currículo proposto para essa realidade reforçava a função dessa modalidade de somente concluir a escolaridade básica dos alunos, conforme a lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB n… 5692/71,

que continuou a vigorar, em seus traços gerais, na nova LDB n… 9394/96. Uma das principais características da Suplência foi a incorporação das práticas de ensino regular mantendo a idéia da aceleração escolar (Cadernos Pedagógicos EJA 1, Política Pública de Educação de Jovens e Adultos, Secretaria da Educação, 2001).

Os três princípios norteadores eram: flexibilidade, identidade própria e metodologia. A flexibilidade deveria atender à diversidade de contextos educacionais, a identidade própria, no sentido de respeito às características e às necessidades desse público e a metodologia basicamente referia-se à questão de idade.

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Ao iniciar o trabalho no então Supletivo, assumi uma turma composta por alunos com idade entre 15 e 60 anos, a maioria de trabalhadores. Tudo era novo para mim, então começaram minhas perguntas:

Quem são e de onde vêm os meus alunos? Como se sentem nesse espaço? Por que estão sempre tão calados? Temos um currículo que dá conta dessa diversidade que encontro na sala de aula? O que eles esperam dessas aulas? Vi-me num modelo de escola tradicional, com todas as características subjacentes, e os alunos e eu, embora com alguns avanços, também frutos dessa ideologia. Minha prática educativa centrada em princípios de valoração do ser humano e acolhimento dos saberes que cada pessoa traz em si, me levou a buscar, com minha sensibilidade e humildade, a possibilidade de juntos tecermos uma educação, a meu ver, significativa para esse público. Eles pareciam amarrados aos conceitos de uma educação tradicional, de tal forma que se posicionavam à margem do saber. Apresentavam-se, através de suas marcas, como uma espécie de pássaros presos, com medo de alçar vôo. Em seus olhares e gestos havia como que um pedido oculto: queremos voar, mas temos medos, amarras.

Apostei no trabalho em grupos, percebendo simultaneamente a dificuldade apresentada pelo grupo em estabelecer relações e desenvolver seu potencial de interação. Entendi que era preciso fazer um contato („con-tato‰) para que o vínculo se estabelecesse, vitalizando e apostando nos seus imaginários, nas singularidades e legitimidades. Meu desejo ia além de entender e analisar essa interação, eu queria fazer parte dela. Para alcançar esses objetivos recorri novamente (creio que com uma consciência ingênua) a diferentes linguagens, onde a mitologia, a arte, a dança circular, o canto, a poesia, o acolhimento dos saberes e o amor pelos meus alunos constituíam meu plano de trabalho.

O „encantamento‰, a liga, aconteceu e, juntos, trabalhamos no sentido de percebermos nossas inibições, estigmas, preconceitos e ignorâncias, não no sentido pejorativo mas, pelo entender de Sara Pain: „ignorância não é a falta de saber, mas a representação do que não se sabe‰ (Revista do GEEMPA, 1997). Os conflitos se fizeram presente, mas, respeitando o processo de cada um na desconstrução e reconstrução de sentidos e significados, no decorrer do

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trabalho, as diferenças de idade foram dissipadas e o respeito e a compreensão dos diferentes momentos de vida de cada um, acolhidos. Penso que o „reconhecimento do assumir-se como ser social e histórico, como um ser pensante, comunicante, transformador, criador e realizador de sonhos...‰ (Freire, 1996, p. 46) foram sendo construídos.

A gratificação foi intensa e ampliada quando recebi de presente de aniversário um cartão com o seguinte texto: „Você entrou de pijama cor-de-rosa... dentro do nosso coração!‰ Para mim, ali estava a confirmação de que o contato havia acontecido.

Educação Infantil x inclusão

No transcorrer de minhas atividades profissionais, no ano de 1999, passei a trabalhar com a Educação Infantil na Escola Estadual de Ensino Fundamental Rio de Janeiro em Porto Alegre. Mais uma vez um novo desafio se fez presente com a entrada de um aluno portador de síndrome de Down na sala de aula: Como vivenciar o processo de inclusão de aluno portador de deficiência numa classe regular de Ensino Fundamental na Educação Infantil, sem ter nenhum apoio institucional e base teórica a respeito dessa realidade?

Esta nova situação educacional provocou-me rupturas com paradigmas de educação ainda tão amalgamados em minha prática pedagógica. Neste mesmo período (1999/2000) estava realizando o curso de Especialização em Teoria e Prática Pós – Construtivista das Aprendizagens Escolares – GEEMPA – Grupo de Estudo Sobre Educação, Metodologia de Pesquisa e Ação com o embasamento teórico, na teoria construtivista pós-piagetiana. Ali comecei a estudar teorias do conhecimento que trazem a ideia do deslocamento do enfoque do sujeito epistêmico para o centro do debate do sujeito desejante e social (Revista do GEEMPA, 1996). Resumidamente, o curso provocava-nos com uma didática própria, para a idéia de que todos podem aprender, que se aprende uns com os outros, perguntando, discutindo, trocando saberes numa interação social, respeitando as autorias na construção dos saberes.

Embasada nesses novos conhecimentos teóricos, minha dinâmica na ação educativa, para dar conta da inclusão alicerçou-se a partir três enfoques:

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uma nova estética na conformação da sala de aula, tendo o trabalho em grupo como potencializador das relações interpessoais, sem perdas da individualidade e identidades (Grossi, 1995) confiança na minha autoria - prática reflexiva - ação tecida com afeto e respeito às diferenças - possibilitando a aprendizagem dos alunos para o processo de inclusão; e a escuta, a ruptura com os preconceitos, os enfrentamentos, as alianças e a delicadeza com a comunidade escolar.

Esta vivência singular gerou reflexões e clareza de que a vida é construída em cima de acordos com o ser, o fazer e o transcender.

Educação na FASE: Possibilidade de Outros Saberes

Interrogo signos dúbios e suas variações

caleidoscópicas a cada segundo de observação (Drummond).

Estar sendo docente hoje, na escola Tom Jobim, inserida na Instituição FASE (Fundação de Atendimento Sócio Educativo) é estar interrogando e alargando meu olhar nesse processo de educação, delineado por múltiplas resistências e possibilidades na prática educativa. Resistências diferentes das que eu havia encontrado em trajetórias anteriores: alunos em situação de privação de liberdade, salas escuras, alunos que se ausentam mesmo estando na instituição, portões com grades, material controlado, aulas canceladas, local insalubre, burocracias da instituição, entre outras. Esses fatores colaboram, muitas vezes, para um sentimento de impotência e de um vazio frente às minhas ações empreendidas nessa prática. Esse contexto me remete aos elementos de pressão que as mudanças sociais exercem sobre a função docente. (Esteve, 1995).

Nesse estar sendo, meu olhar, volta-se para o viés da sensibilidade, da receptividade, da disponibilidade, da suspensão de juízo e do automatismo da ação. Nesse sentido, conforme Rubem Alves, „toda experiência de aprendizagem se inicia com uma experiência afetiva, que o pensamento nasce

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do afeto‰ (2002), afeto - em latim „affetare‰, significa „ir atrás‰. Apostando nessa idéia, vou em busca de elementos que colaborem no sentido de compreender as complexidades e sutilezas apresentadas nesse espaço escolar marcado pela exclusão social. Encontro-me num momento em que tenho mais a interrogar do que a contar sobre essa recente experiência. Minhas dúvidas são minha fome e paixão por novos conhecimentos que auxiliem a uma aproximação de uma prática que possibilite a esses alunos um novo horizonte e um desvelamento sobre as representações que constroem sobre si próprios, sobre a realidade física, social e pessoal de que fazem parte.

São tantos os signos, as carências, as repressões, os desafetos, os preconceitos, o estreitamento de olhar, a resignação para com esses alunos, que silencio no intuito de alargar minha curiosidade epistemológica. Cultivo minha atenção, minha escuta, meu pensar, meu sentir para assim, num sentido espiral, ir traçando o desenho, a configuração que darei ao meu mosaico educacional na intenção de contribuir com uma prática pedagógica que não só constate, mas que seja capaz de intervir na realidade

Comida2

Bebida é água. comida é pasto. você tem sede de que? você tem fome de que? a gente não quer só comida a gente quer comida, diversão e arte. a gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte. a gente não quer só comida, a gente quer bebida, diversão, balé. a gente não quer só comida, a gente quer a vida como a vida quer. bebida é água. comida é pasto.

2 Composição: Arnaldo Antunes/ Marcelo Fromer/ Sergio Brito

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você tem sede de que? você tem fome de que? a gente não quer só comer, a gente quer comer e quer fazer amor. a gente não quer só comer, a gente quer prazer pra aliviar a dor. a gente não quer só dinheiro, a gente quer dinheiro e felicidade. a gente não quer só dinheiro, a gente quer inteiro e não pela metade. bebida é água. comida é pasto. você tem sede de que? você tem fome de que? diversão e arte para qualquer parte diversão, balé como a vida quer desejo, necessidade, vontade necessidade, desejo, eh ! necessidade, vontade, eh! necessidade...

Referências

ALVES, Rubem. A arte de produzir fome. Folha de São Paulo, São Paulo. 29 out. 2002.

BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. Os fundamentos da significância da vida humana. In: Modernidade, Pluralismo e crise de sentido: A orientação do homem moderno. Petrópolis. RJ: Vozes. 2004. Cap.1, p. 14-24.

DUARTE JR. João Francisco. O Sentido dos Sentidos, a educação (do) sensível. Curitiba: Criar Edições, 2001.

ESTEVE, José M. Mudanças Sociais e Função Docente. In: NOVOA, Antônio(Org). Profissão professor. Porto, Portugal: Porto Editora, 1995. p. 96.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

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GOULEMOT, Jean Marie; CHARTIER, R(org.). Da leitura como produção de sentidos. Tradução de Cristiane Nascimento. Estação Liberdade. São Paulo. 1996.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, Brasília, DF: UNESCO, 2002.

PAIN, Sara. Poética dos saberes no conhecimento. Revista GEEMPA: A Ruptura com o Construtivismo Piagetiano. Porto Alegre, n. 5, março, 1997. p. 56-61.

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MEMORIAL DE JORGE FORTUNA RIAL

Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela E oculta mão colora alguém em mim.

Pus a alma no nexo de perdê-la E o meu princípio floresceu em Fim.

(Passos da Cruz, XI: Fernando Pessoa)

Primeiro Tempo

Eu.

Dizer que vim ao mundo pelas mãos do pai não é uma metáfora para a crença em Deus. Literalmente o doutor Heitor realizou o parto do meu nascimento. Em 1960, enquanto se inventava a pílula e iniciava-se a técnica da cesariana no Brasil, ele, adepto de práticas alternativas, como parto de cócoras e na água, realizou - com problemas em Annita, a mãe e sua mulher, e em mim, o filho - a operação do parto natural.

Nasci enrolado no cordão do umbigo, virado para o lado errado e sem ar.

Na infância brincava de medir a resistência embaixo da água na piscina.

Essa sensação de ansiedade por ar provavelmente seja o que me define como pessoa. Sou ansioso por natureza, então. Por querer ver o mundo onde não estou e por tentar saber muitas coisas, atropelando o prazer, na carência de viver mais do que a vida.

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Minhas travessuras de criança mais nova, quinto bebê da família, manias da puberdade, rebeldias da adolescência, erros de adulto, foram relevados pela justificativa do parto complicado. Com o passar do tempo, outros partos - os emocionais - seguiram-se, transformando os erros em experiências de vida.

Aos 16 anos, deixei o Colégio Militar de Porto Alegre para trabalhar, e, aos 19, saí de casa para viver com a namorada. Aos 24, separado da namorada e cursando a faculdade de arquitetura, me assumi homossexual. Perdi amigos para a AIDS, e não fiz jamais a perversa lista com seus nomes, me nego. São muitos: médicos, atores, arquitetos, publicitários, a maioria com menos de trinta anos de idade. Quando participo de eventos, abomino a estatística mórbida que mostra colchas de nomes e sapatos sem pés para calçá-los. Em 1986 larguei a faculdade faltando três meses para a formatura. Viajei pelo Brasil. Saí do país em 1988. Voltei em 1989. Conversei muito, experimentei drogas, busquei alternativas de vida em comunidades, até ingressar na UFRGS, em Artes Visuais, em 1995. Encontrei abrigo na teoria da arte para sublimar meus recalques. E percebo que, até para o vazio existencial, existe sentido.

A arte é uma consagração e um abrigo, por onde o real, de um modo sempre novo, dispensa ao homem o seu brilho até então escondido, para que, numa tal claridade, ele possa ver de modo mais puro e ouvir, mais distintamente, o que fala à sua essência. (Heidegger).

Assim, o tempo vivido na faculdade de Artes foi uma oportunidade para organizar minhas confusões.

Em julho de 2000 recebi meu canudo de formatura das mãos da direto-ra do Instituto de Artes. Dentro dele uma mensagem da reitora e o vazio à espe-ra de um diploma. Também o vazio profissional me definiria naquela época. Hoje, depois de oito anos de trabalho, retomando as memórias da trajetória de professor, percebo que é o olhar do outro que preenche o significado do que sou. No decorrer do tempo, crises, surpresas, vitórias, desencontros e tudo o que a vida oferece, têm sido o estofo da minha formação continuada. O país onde habito e a alma que me habita seguem em desalinho, descompassados

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com a ordem mundial, alijados como Aleijadinho, tortos e talvez confusos, angustiados certamente a procurar os mares que os aportem em si.

Formado, perdi meu namorado, saí atrás de emprego que logo arrumei. Trabalho ainda hoje no meu primeiro emprego de recém-formado e outros.

O trabalho de professor, ao contrário do que muitos pensam, é desgastante. O total de alunos atendidos na semana é de 770 (não é contabilizado pela lista de chamada, e sim o real efetivo).

Sou um fenômeno denominado „docente taxi‰, ou seja, „um professor que se vê obrigado a trabalhar em várias instituições e cruzar a cidade para trabalhar‰.

Quando penso na minha definição profissional, me lembro da persistência de professores e colegas que demonstravam profundo respeito pelo saber e que percebem na arte uma fonte de entendimento do mundo para dar sentido à existência humana no que lhe é mais profundo, a sensibilidade. Quero ser como eles.

A educação é uma ferramenta que torna o sujeito protagonista de sua própria história. O psicanalista Contardo Calligaris, em entrevista concedida recentemente na televisão, comparando a existência humana com a literatura, afirmou que em qualquer pessoa está presente a qualidade poética que possibilita fazer da própria vida um romance. Paulo Freire proclama que o aluno seja o dono de sua própria educação. Não é possível aceitar que, em pleno século XXI, alunos, professores e cidadãos reproduzam modelos de educação como se fôssemos todos potes vazios a se encher. Temos que ser participantes em nossa aprendizagem.

O ser humano é incompleto em sabedoria porque para que o seu saber possa existir, ele necessita do outro ser humano que o complete. Por isso a importância do diálogo na educação, que não transmite simplesmente o saber, mas que o materializa em mais saber.

A educação pela arte é ferramenta de transformação. Na escola havemos de transformar nossas relações. Fazer de colegas nossos, amigos nossos; dos nossos cadernos vazios, obras-primas de nosso esforço; dos alunos fazê-los

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nossos mestres, e fortalecer laços de tolerância, aceitação, respeito, afeto e amizade.

A especialização, o mestrado e doutorado, é o caminho por onde todo profissional da educação deveria trilhar e ambicionar intelectualmente alcançar.

É verdade que sou mais professor do que antes, mas também é verdade que ser professor talvez seja a passagem para ser alguma outra coisa.

O que será? Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. ¤ parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. (Tabacaria: ˘lvaro de Campos – Fernando Pessoa)

Segundo Tempo

Tento reconstruir na minha imaginação Quem eu era e como era quando por aqui passava Há vinte anos... Não me lembro, não me posso lembrar. O outro que aqui passava então, Se existisse hoje, talvez se lembrasse... Há tanta personagem de romance que conheço Melhor por dentro De que esse eu-mesmo que há vinte anos Passava aqui! (Realidade: ˘lvaro de Campos – Fernando Pessoa)

Eu, eu mesmo e os outros eus.

Lá estávamos nós, uns em frente aos outros. Aparentemente éramos iguais. Todos nós, professores. Todos nós formados em licenciatura, turma de julho de 2000, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), para as artes plásticas. Nós todos iniciados na educação de jovens e adultos, em 2001; professores com idêntica trajetória. Todos alunos, da pós-graduação da

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Faculdade de Educação (FACED/ UFRGS), no Curso de Especialização em Educação Profissional Técnica Integrada ao Ensino Básico na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos - PROEJA.

Cada um de nós, no entanto, com uma visão peculiar sobre a experiência de ser professor. Atentos aos mínimos detalhes de nós mesmos; em cada gesto, em cada reação procurávamos por pistas que nos desvendassem. Em nossas mentes lembranças percorriam o tempo passado e nos faziam reféns de uma história particular, ao mesmo tempo comum a todos.

Um de nós trazia em si a memória do aluno que aprendeu a reconhecer nos professores a extensão do que foram seus pais: seres que decidem as próprias vidas e por essa atitude são exemplo para os outros. ¸ntegros e honestos, crentes da importância do estudo para a formação do indivíduo, são professores que, com disciplina e conteúdo, planejam, ministram aulas e avaliam com rigor, exigentes para consigo mesmos e seus alunos. Sua aula é asséptica e, quando avaliada quantitativamente, apesar da monotonia da ausência de contradição, todos a situam como medianamente aproveitável.

Outro se lembrando de si, um operário do saber. Trabalhador da educação, o professor é um ser do coletivo e suas ações respondem às demandas do grupo a que pertence. Cumpre horário de entrada e de saída na escola; assina o caderno ponto diariamente, faz chamada, respeita prazos: entrega de notas, preenchimento de diário de classe, obedece à grade de horários, participa de reuniões pedagógicas, incluindo-se em projetos escolares e eventos, faz atividades extraclasse, comparece a passeios. O professor desfila na semana da pátria com a comunidade, abre portas, liga e desliga luzes e ventiladores, carrega televisão, rádios e tocadiscos, zela e doutrina colegas e alunos pelo cuidado com a coisa pública e com o próximo e pelo respeito ao grupo. Sofre, porém, de invisibilidade, já que é difícil reconhecer nele atitudes individualistas ou originais visto que suas ações são tomadas a partir da síntese que realiza das vontades alheias.

O terceiro professor tem muita paciência. Ele escuta calado, muitas vezes, aos desacatos constantes à sua pessoa. Ofensas de alunos com idéias inconsistentes se espalham em boatos covardes, fofocas e intrigas que nada têm a ver com o que se aprende ou ensina na escola. Ele teme ser agredido, pois se

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vê alvo fácil, em destaque no grupo. Por que não foge? Porque sabe que sua vulnerabilidade é resultado de sua postura acessível para o diálogo com todos. Mas também conta com o apoio de outros alunos e colegas. Pessoas que o percebem em suas mazelas e, ao enxergarem o desrespeito, o apoiam. Expressam solidariedade e, por serem a maioria na escola, isso faz valer a pena, apesar das humilhações. O professor, então, pesa e pondera as contradições que o desafiam, acreditando na capacidade de o meio formar os indivíduos. Tem fé nas mudanças, talvez imagine que a liberdade para aprender seja realçada por essas ações opressoras isoladas, que só encontrarão amanhã o vazio do esquecimento.

Vivem em nós inúmeros; Se penso ou sinto, ignoro Quem é que pensa ou sente. Sou somente o lugar onde se sente ou pensa. Tenho mais almas que uma. Há mais eus do que eu mesmo. Existo todavia Indiferente a todos. Faço-os calar: eu falo. (Ricardo Reis - Fernando Pessoa)

Há, um, outro tipo: o confuso. Alimenta-se de erros e está engordando.

Planeja, é verdade, porém ao final de cada aula sempre percebe que algo não saiu como deveria. Se o conteúdo era adequado, errou na metodologia. Se pede participação para a turma, esquece de prestar atenção no que a turma tem a dizer. Faz provas e não dá retorno de correções. Determina as regras e é o primeiro a ser cobrado por descumpri-las, sem conseguir justificar suas ações, pois suas apostas sustentam projetos fadados ao fracasso. Trabalha constantemente na administração de perdas. Para este, a cada dia se evidencia mais e mais a sina de professor medíocre. Mesmo assim insiste. Crê em um dia ganhar a sorte grande. Por isso se mune, todos os dias de novas fichas de aposta

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e as joga. Pequenas vitórias esporádicas assopram baixinho em seu ouvido que um dia o seu dia vai chegar.

Tem o arrogante. Ele parte do princípio de que sabe mais do que qualquer um sobre sua matéria. A turma deve prestar muita atenção e evitar manifestar-se, para captar todo o conhecimento. Deposita seu furor de inteligência nas mentes e não entende como os alunos não conseguem ter a mesma paixão pelos estudos. ¤s vezes pensa, mesmo sem manifestar: não adianta lutar contra o que é assim mesmo, eles não têm condições, são fracos para o estudo. Ninguém se atreve a enfrentá-lo. Pelas suas costas, costuma-se criar boatos e críticas sobre ele. Quando a direção da escola toma a decisão de colocá-lo à disposição, ele a princípio não entende o fato de não ser imprescindível para a educação, depois se conforta, na esperança de que a próxima escola haverá de valorizar o seu idealismo em transformar ignorantes em pessoas úteis e capazes na vida.

O último é o animado, desafiador, sagaz, criativo. Os colegas o admiram, os alunos o respeitam. Suas idéias trazem à luz renovadas possibilidades, outros pontos de vista para a educação. Que interessantes! De um limão ele faz uma limonada, e seu copo está sempre meio cheio e jamais meio vazio. Suas conversas são inteligentes e nele pode-se ver no olhar um brilho que denuncia uma contagiante motivação para conhecer o mundo, conviver e partilhar saberes. O humor é a sua arma mais poderosa e a generosidade dele é atraente. Colaboradores e amigos se nutrem do seu espírito guerreiro. Para ele a educação é pura transformação. É incansável, jamais se lamenta do passado, nem deixa nada para amanhã; faz do momento presente um presente para si e para todos ao seu redor. Segue determinado de que nunca passará pelo mesmo lugar duas vezes, por isso pratica todo o bem ao próximo, aqui e agora, a todo instante.

Fim de jogo. Alguns espelhos se quebraram. Descobriu-se o que por detrás da aparente semelhança os faz diferentes em nuances, conforme os desejos desenham seus contornos. Talvez num próximo encontro se descubra outro, que sempre esteve por aqui, sem ser notado, que poderá contar um pouco de si e de todos.

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Há metafísica bastante em não pensar em nada. O que eu penso do mundo? Sei lá o que penso do mundo! Se eu adoecesse pensaria nisso. (Alberto Caeiro – Fernando Pessoa).

Os trechos de poesias de Fernando Pessoa foram extraídos do livro da LPM, Porto Alegre, 2001.

A citação de Heidegger veio do livro „Elementos de Estética‰, de Ursula Rosa da Silva e Mari Lúcie da Silva Loreto.

O conceito „docente táxi‰ é da página 24 do livro „Aprender desde el arte‰, de Constanza Ortis e Natalia Catalano Dupuy, da Argentina.

O programa de entrevista foi „Marília Gabriela‰ do GNT, de maio 2008.

A frase „O que será?‰ que encerra o primeiro texto encerra também a música „Eclipse Oculto‰ de Caetano Veloso.

A letra da música „Abril‰ de Adriana Calcanhoto.

Orientação do professor Rafael Arenhaldt.

Correções ortográficas e gramaticais do texto da jornalista Maria Teresa Severo e da professora e escritora Maria Teresa do Valle.

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MEMORIAL DE CARLA ODETE BALESTRO SILVA

Das utopias

Se as coisas são inatingíveis... ora! Não é motivo para não querê-las...

Que tristes os caminhos, se não fora A presença distante das estrelas!

(Mário Quintana)

Explicar a si mesmo é uma tarefa difícil. A dificuldade de resumir a si mesmo, então, toma proporções estratosféricas. Organizar a vida, contar os fatos passados e resgatar deles aquilo que proporcionaram de positivo ou de negativo é uma construção que nos afronta e amedronta. Analogamente, é como a faxina de final de ano, na qual revolvemos aquilo que vivemos naquele período, escolhendo o que segue conosco, o que fica pelo caminho, o que deve servir a outra pessoa. Sempre é, mesmo sendo o manuseio de objetos banais, um momento de decisão, de relembrar, de reviver.

Nesse momento, então, em que escrevo o memorial para o curso de pós-graduação vivo esse momento de reviver, selecionar, interpretar. Logicamente, um momento muito mais difícil que a faxina do final do ano e muito mais cheio de enfrentamentos e medos.

Ao ser desafiada a escrever o memorial e, mais do que isso, escrevê-lo de forma criativa, utilizando outros instrumentos que não somente a escrita, poesia foi o que me veio à cabeça. Gosto muito de poesia, embora nada saiba

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tecnicamente sobre ela, ou sobre os poetas. Sinto a poesia apenas como arte, não a explico e não leio explicações sobre ela. Basta-me lê-la e senti-la. Nada mais.

Assim também com a fotografia. Gosto de imagens estáticas mais do que as que se movimentam. Prefiro a fotografia ao cinema. A fotografia me permite ler as entrelinhas, sentir os aromas do momento e pensar em melodias apenas intuídas.

A poesia e a fotografia me permitem tomar a arte como minha. Interpretá-la a minha maneira. Vesti-la com as minhas emoções e fantasias.

Assim, pensei em dividir cronologicamente a minha vida em etapas e para cada uma delas escolhi um poema de Mário Quintana, poeta que gosto muito e cujos versos me acompanharam e acompanham em diversos momentos da minha vida. Não por escolha consciente, mas por escolha do acaso. Confio muito no acaso.

Ao leitor desse memorial, fica o convite a explorá-lo da forma que mais lhe agradar, seguindo a sequência da esquerda para a direita, de baixo para cima, sem nenhum compromisso que não a curiosidade.

A escolha do poema que inicia o memorial se deu porque acreditar e querer as coisas inatingíveis me resume. E mesmo que algumas coisas pareçam impossíveis, não deixo de sonhar com elas. „Que tristes os caminhos, se não fora/ A presença distante das estrelas!‰ (Quintana, 1999).

O Auto-Retrato No retrato que me faço - traço a traço – às vezes me pinto nuvem, às vezes me pinto árvore... às vezes me pinto coisas de que nem há mais lembrança... ou coisas que não existem mas que um dia existirão...

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e, desta lida, em que busco - pouco a pouco – minha eterna semelhança, no final, que restará? Um desenho de criança... Terminado por um louco! (Mário Quintana) Meu nome é Carla Odete Balestro Silva, nasci em 1976 na cidade de

Caxias do Sul/RS. Sou descendente de italianos. O sobrenome Silva foi acrescido com o meu casamento. Meus pais, naturais de Três Pinheiros, distrito de Dois Lajeados/RS, trabalharam na lavoura desde muito cedo. A vida na colônia na década de 60 tinha as suas particularidades que permanecem vivas, ainda hoje, em alguns recantos mais esquecidos do Brasil: uma escola precária com uma única professora que atendia todas as crianças das redondezas em classes multisseriadas.

Meu avó materno, homem simples e rígido, sempre deu muito valor ao estudo. Dizia que, se tivesse estudado, almejaria ser presidente do Brasil.

Meus pais não estudaram muito (não concluíram o antigo primeiro grau), mas sempre mantiveram bom contato com a leitura e me incentivaram a estudar antes de qualquer coisa.

Desde muito pequena, uma das minhas brincadeiras favoritas era dar aula para as bonecas. Passava horas da minha infância a corrigir lições fictícias.

O primeiro dia de aula, o cheiro da mochila novinha, os primeiros exercícios que fiz no caderno são lembranças muito queridas e ainda muito vivas. Minha relação com a escola primária sempre foi de muito prazer. Estudar sempre foi o meu principal objetivo e em torno desse objetivo construí a minha vida.

Meu avô teria orgulho de mim.

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Dos Sistemas

já trazes, ao nascer, tua filosofia. as razões? essas vêm posteriormente. tal como escolhes, na chapelaria. a fôrma que mais te assente... (Mário Quintana)

Cursei, no antigo segundo grau, o curso de Magistério. Formei-me em 1994 e segui, por forças alheias a minha vontade, outros caminhos profissionais, afastando-me da educação para trabalhar em outro segmento, já que na vida real os sonhos de infância encontram alguns obstáculos que me fizeram ajustar as velas do barco.

Do Magistério tenho lembranças de toda ordem: tristes, alegres, traumáticas, suaves, marcantes. Lembro de dedicar-me muitas e muitas horas a fazer o Calendário Cívico para a disciplina de Didática de Estudos Sociais; confeccionar fantoches para a disciplina de Literatura; pintar palitos de picolé com anilina para trabalhar, na Matemática, as centenas, dezenas e unidades de forma concreta; estudar um complicadíssimo livro de Psicologia cuja prova com consulta foi a mais difícil que já fiz na vida.

De imediato, quando lembramos do Magistério, são essas coisas práticas que nos vem à cabeça. No entanto, a formação proporcionada pelo exemplo de professores que tive naquele curso embasa muito da minha postura diante dos meus alunos e colegas de trabalho. Volta e meia me percebo dizendo frases que ouvi na sala de aula naquela época e fico refletindo na importância que esses profissionais tiveram na minha formação como pessoa.

Sou docente. Ministro aulas para o Ensino Médio. Acredito que por força da minha profissão irrompa na vida deles em um momento delicado de aprendizado e amadurecimento. Quero ser um bom exemplo e contribuir para a vida profissional futura. Contribuir não só com a técnica, mas principalmente como ser humano.

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Os Degraus

Não desças os degraus do sonho Para não despertar os monstros. Não subas aos sótãos – onde Os deuses, por trás das suas máscaras, Ocultam o próprio enigma. Não desças. Não subas, fica. O mistério está é na tua vida! E é um sonho louco esse nosso mundo... (Mário Quintana)

Em 1995, iniciava um novo curso de graduação na instituição, na qual cursei o Magistério1. A área despontava como grande campo profissional, interessei-me e prestei vestibular. Cursei, então, Ciência da Computação que, embora seja uma área da qual gosto muito não supria em mim, de todo, as minhas aspirações profissionais.

Isso se devia, talvez, à forma como o objeto de estudo era abordado nas disciplinas: sem discutirmos os aspectos éticos e as implicações para a sociedade dessa ciência e, muitas vezes, com certo ar de superioridade diante de outras formações. Nesse momento, então, eu vivia uma dualidade: por um lado apreciava o objeto de estudo, mas, por outro, me sentia alienada e preparando-me para uma formação alienante.

Hoje, como docente, ministro aulas dessa ciência procurando nunca manter o olhar distante da dimensão humana, da ética.

Quem Ama Inventa

Quem ama inventa as coisas a que ama... Talvez chegaste quando eu te sonhava.

1 Cursei o Magistério no Colégio La Salle - Canoas/RS que divide o espaço físico com o Centro Universitário La Salle - Unilasalle.

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Então de súbito acendem-se a chama! Era a brava dormida que acordava... E era um revôo sobre a ruinaria, No ar atônito brilhavam sinos, Tangidos por uns anjos peregrinos Cujo dom é fazer ressureições... Um ritmo divino? Oh! Simplesmente O palpitar de nossos corações Batendo juntos e festivamente, Ou sozinhos, num ritmo tristonho... Ł! meu pobre, meu grande amor distante, Nem sabes tu o bem que faz à gente Haver sonhado... e ter vivido o sonho

(Mário Quintana)

Na época da conclusão da graduação em Ciência da Computação me encontrava bastante apreensiva com relação ao futuro profissional dentro dessa formação e precisava realizar o trabalho de conclusão. Conheci, então, através da disciplina Informática na Educação uma integração possível entre Informática e a Educação o que me deu vistas a novos horizontes profissionais.

Realizei o trabalho de conclusão, então, dentro dessa linha2.

Dentro da universidade onde estudava o embate foi difícil. A união de Educação e Informática sofria um preconceito que, juntamente com a professora orientadora, tive que enfrentar de frente. A visão de superioridade dos acadêmicos da Computação via com desprezo os trabalhos realizados articulando Informática e Educação, pois os consideravam simplistas e de fácil execução. Uma idéia completamente errônea, mas que estava consolidada dentro da universidade e que viria a cair por terra somente três ou quatro anos depois, quando a Educação a Distância (EAD) começou a tomar mais corpo e o estudo da união dessas duas grandes áreas tinha que ser pensada e repensada.

2 O trabalho realizado foi um software educacional baseado na teoria das Inteligências Múltiplas de Howard Gardner. O software destinava-se à crianças em idade pré-escolar.

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No meio desse confronto intelectual, meu pai adoeceu e a percepção da finitude daqueles que amamos me acometeu pela primeira vez. Foi um tempo, então, de emoções muito fortes que me levaram a um amadurecimento e um constante questionar sobre o valor das coisas.

Procuro hoje, como docente, sempre manter-me atenta ao que acontece na vida dos meus alunos e como eles vivenciam essas situações. A forma gélida como a minha angústia foi recebida pela maioria dos docentes que me assistia na graduação não é o tipo de recepção que quero dar a meus alunos em nenhum momento. Na coordenação dos trabalhos do curso de PROEJA em Informática da Unidade de Charqueadas do CEFET-RS, onde trabalho, procuro sempre sensibilizar os professores com relação a isso de forma a fazer bater um pouquinho o coração de alguns "homens de lata".

Meu pai saiu-se bem da enfermidade. O meu trabalho de conclusão recebeu nota máxima da banca avaliadora. Foi um tempo difícil, mas que rendeu bons frutos.

Os conceitos construídos nessa experiência de embate entre Educação e Informática embasam grande parte do meu discurso como docente e me mantém longe da frieza que, por vezes, pauta a vivência dos profissionais das ciências exatas.

O Sabor das Coisas

Por mais raro que seja, ou mais antigo, Só um vinho é deveras excelente: Aquele que tu bebes calmamente Com o teu mais velho e silencioso amigo...

(Mário Quintana)

Na época de conclusão do curso de graduação em Ciência da Computação, construí um grande laço de amizade com a minha professora orientadora. O embate que enfrentamos para realizar o trabalho de conclusão

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fez surgir uma grande afinidade intelectual e pessoal que se estendeu para além da formatura.

Fui convidada a auxiliá-la tecnicamente no gerenciamento dos Laboratórios de Informática da Universidade, setor que ela assumia e para o qual tinha excelentes planos de ampliação. Embora cuidasse da parte técnica dos laboratórios, trabalhava conjuntamente com a coordenação pedagógica, desenvolvendo trabalhos junto aos professores do Colégio La Salle e do Centro Universitário La Salle.

Trabalhamos juntas por seis anos e os aprendizados foram muitos. A experiência adquirida nesse período foi também essencial para o desenvolvimento do meu perfil como docente. Trabalhei com dezenas de jovens em início de carreira e pude perceber as angústias que eles traziam para o seu primeiro estágio, como viviam esse momento de mergulhar no mundo do trabalho e como as formações técnicas pouco os preparavam para enfrentar situações difíceis com ética, respeito pelos direitos dos outros e consciência de seus deveres. Considero essas percepções fundamentais para o exercício da minha profissão.

Quem Disse que Eu Me Mudei

Não importa que a tenha demolido: A gente continua morando na velha casa [em que nasceu.

(Mário Quintana)

Em 2003, paralelamente às minhas atividades nos Laboratórios de Informática do Unilasalle em Canoas, comecei a trabalhar como professora substituta no CEFET-RS3 - Unidade de Ensino de Sapucaia do Sul ministrando

3 Centro Federal de Educação Tecnológica de Pelotas.

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aulas4 para os alunos do Ensino Médio, Ensino Técnico, Ensino Tecnológico e para o Ensino Médio para Adultos, mais conhecido como EMA.

O EMA foi uma das poucas experiências dos Centros Federais de Educação Tecnológica junto ao público de jovens e adultos e vivenciei, dentro da unidade de Sapucaia do Sul, a luta dos professores engajados no projeto por espaço dentro da escola técnica e as angústias e apreensões pelas formações docentes muito distantes das necessidades desse público. Esse espírito empreendedor dentro da unidade envolveu a todos que trabalhavam com o EMA e gerou várias discussões com relação aos saberes docentes envolvidos na prática de ministrar aulas a um público tão diferente dos que, normalmente, passam nos concorridos processos seletivos do CEFET-RS. Tive o prazer de participar dessas discussões que envolviam questões metodológicas, logicamente, mais iam muito além disso, versavam sobre o papel da escola pública, o papel dos docentes em uma formação fortemente comprometida com o aluno, na discriminação dos sujeitos da EJA, enfim, questões que permeiam a educação de jovens e adultos.

De todos os cursos aos quais ministrava aulas na Unidade de Ensino de Sapucaia do Sul era com o EMA que preferia trabalhar e nesse curso me era possível utilizar a Informática no seu potencial mais motivador: a inserção do aluno no mundo digital, fronteira até então intransponível entre os alunos que cursavam os cursos regulares e os alunos de EJA. A maioria dos alunos do EMA sequer tinham tocado no mouse alguma vez e vê-los utilizar a ferramenta, não sem dificuldade, mas sem medo, era extremamente gratificante. Os trabalhos integrados que conseguimos realizar com outras disciplinas eram motivadores, molas propulsoras para novos desafios e fortificantes na luta pela adoção do EMA como um curso a ser oferecido regularmente pela escola5.

4 Ministrava as aulas de Informática Básica para os cursos de Ensino Médio, Ensino Técnico em Transformação de Termoplásticos, Ensino Médio para Adultos e a disciplina de Informática e Introdução à Teoria de Banco de Dados dos cursos tecnológicos em Fabricação Mecânica para Ferramentaria e Gestão da Qualidade para a Indústria de Termoplásticos. 5 O EMA era oferecido em caráter experimental dentro da unidade e a abertura de novas turmas era sempre motivo de embates com a direção da escola que não apoiava de todo a iniciativa.

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Com esse curso, então, tive os primeiros contatos com a educação de jovens e adultos, com as problemáticas e os desafios envolvidos, principalmente dentro de uma escola, onde os alunos eram marginalizados, o que não deixava de refletir o caráter pejorativo que a sociedade tem atribuído à EJA.

O que o Vento não Levou

No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas que o vento não conseguiu levar: um estribilho antigo um carinho no momento preciso o folhear de um livro de poemas o cheiro que tinha um dia o próprio vento...

(Mário Quintana)

Trabalhando no CEFET/RS - Unidade de Ensino de Sapucaia do Sul - como professora substituta meu contrato era curto (dois anos) e, como tinha interesse em continuar o exercício da docência, prestei o concurso para professora efetiva da unidade e fui chamada, um tempo depois, para assumir na unidade nova da escola na cidade de Charqueadas. Unidade essa construída no Plano de Expansão da Educação do Governo Federal.

A direção da Unidade de Charqueadas optou por iniciar as atividades da escola com um curso que atendesse ao Programa Nacional da Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos - PROEJA.

Os professores, e incluía-me nessa equipe, trabalharam na elaboração do Curso Técnico de Nível Médio em Informática - Forma Integrada - Modalidade EJA. Por ser formada na área técnica na qual o curso era oferecido e por ter experiência, mesmo que pequena, na educação de jovens e adultos, fui escolhida coordenadora do curso.

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No dia 11 de setembro de 2006, iniciaram-se as aulas e, hoje, os alunos estão cursando o segundo semestre do segundo ano letivo.

Como coordenadora do curso busquei estudar a legislação que versa sobre a educação no Brasil e estudando sobre ela entendi a complexidade do programa e a sua inovação ao juntar a EJA ao ensino profissionalizante e atribuindo à escola técnica, excelência em educação profissional, a tarefa de pensar formações profissionais atreladas à formação geral, para os que não tiveram acesso à educação dita regular.

Devido à minha experiência com o EMA e o aprofundamento nos estudos teóricos, senti-me ainda mais motivada a lutar pela consolidação desse programa dentro da escola técnica e, mais, a consolidação desse programa em uma forma perene de oferecer uma formação de qualidade que contribua para as funções da EJA (equalizadora, reparadora e permanente) como nos fala o Conselheiro Jamil Cury no Parecer CEB n° 11/2000.

Pela inexperiência dos professores, desconhecimento do programa e vários problemas sobre os quais fomos adquirindo experiência, depois que as aulas começaram (e os alunos que imaginávamos criaram rostos e adquiriram histórias), o curso foi reformulado. Para que essas reformulações acontecessem e para discutir os aspectos do programa e questões pertinentes à educação de jovens e adultos, formamos um grupo de pesquisa dentro da escola para discutir mais profundamente as leis, os pareceres, o documento base e alguns textos de autores que versam sobre as temáticas referentes ao amplo escopo que o programa propõe. Os estudos realizados pelo grupo de pesquisa viraram momentos de formação dos docentes e estão embasando a elaboração de mais um curso de PROEJA em nossa escola.

Das Idéias

Qualquer idéia que te agrade, Por isso mesmo... é tua. O autor nada mais fez que vestir a verdade Que dentro de ti se achava inteiramente nua...

(Mário Quintana)

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Devido aos estudos desenvolvidos dentro e fora do grupo de pesquisa que formamos na Unidade de Charqueadas do CEFET-RS para estudar a particularidade do PROEJA, comecei a observar com mais atenção o sujeito professor-técnico e a sua formação precária no que se refere ao atendimento do público de EJA.

O curso de especialização em PROEJA é uma oportunidade de aprofundar os meus estudos dentro do programa, sua proposta de formação geral e profissional atreladas buscando uma formação que „respeite as dimensões sociais, econômicas, culturais, cognitivas e afetivas do jovem e adulto em situação de aprendizagem escolar‰ como nos diz o Documento Base do PROEJA e a sua possível contribuição para a construção de práticas profissionais que ultrapassem os limites da educação bancária (Freire, 1987).

O escopo da pesquisa ainda precisa ser definido, logicamente, mas entendendo que todo professor pode atuar com educação de jovens e adultos e concordando que a escola técnica, no seu papel de escola pública deve atender à EJA através do PROEJA ou de outras iniciativas, gostaria de aprofundar os meus estudos sobre o sujeito professor-técnico que atende à demanda do PROEJA, a sua formação profissional, como repensa sua prática, pois

o caráter multidimensional da proposta pedagógica lida com diferentes estilos cognitivos e de aprendizagem, situação complexa em si para a organização do processo pedagógico e para a formação de professores que atuam nesse campo (Machado, 2007),

constituindo, assim, uma grande oportunidade de produzir conhecimentos que vão subsidiar formações especializadas de profissionais da educação.

Por coordenar e ser professora do curso de PROEJA de nossa unidade de ensino, acompanho de perto as realidades que nos instigam a pensar alternativas, buscar metodologias adequadas que respeitem as especificidades do público de jovens e adultos e me impelem a buscar constantemente respostas para as questões que inquietam a mim e a meus pares. Portanto, tenho interesse em aprofundar os meus estudos nessa temática e colaborar, com o meu trabalho, na produção de conhecimento que possa servir ao se pensar em

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formações de profissionais para atuar nessa esfera já que, como afirma Dante Henrique Moura (2007), „não existem profissionais que atendam à demanda dessa inovação educacional que o PROEJA propõe‰. E, além disso, contribuir de alguma forma para a consolidação da proposta desse programa dentro da escola, auxiliando os docentes, incluindo-me, a construir propostas que de fato atendam os objetivos do PROEJA e façam diferença na vida dos alunos que nos procuram com esperança e alegria por voltar a estudar e, por estar de volta à escola, antevêem melhores perspectivas socioeconômicas e culturais.

Descrição para um portão de Cemitério

Na mesma pedra se encontram, Conforme o povo traduz, Quando se nasce – uma estrela, Quando se morre – uma cruz. Mas quantos que aqui repousam Hão de emendar-nos assim: „Ponham-me a cruz no princípio... E a luz da estrela no fim!‰

(Mário Quintana)

BALESTRO, Carla O. Brincando com Kauê - Uma hiperhistória para auxiliar no desenvolvimento das múltiplas inteligências. Canoas: Unilasalle, 2000. Trabalho de Conclusão de Graduação.

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CEB n° 11/200 e resolução CNE/CEB n° 1/2000. Diretrizes Curriculares para a Educação de Jovens e Adultos. Brasília: MEC, maio de 2000.

BRASIL. Ministério da Educação. Programa de integração da educação profissional técnica de nível médio ao Ensino Médio na modalidade de Educação de Jovens e Adultos - PROEJA - Documento Base. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/ setec/arquivos/pdf2/proeja_medio.pdf. Acesso em 14/11/2007.

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CAMPOS, Marcia de B. Sistema Hipermídia para Apoio às Relações Espaço-Temporal e Lateralidade Baseado em Hiperhistórias. Porto Alegre: CPGCC/UFRGS, 1996. Dissertação de Mestrado.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17À Ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1987.

QUINTANA, Mário. Antologia Poética. Porto Alegre: L&PM, 1999.

MACHADO, Lucília. Proeja: o significado socioeconômico e o desafio da construção de um currículo inovador. In: TV Escola/Programa Salto para o Futuro Boletim 16. MEC, 2006.

MOURA, Dante H. M. O PROEJA e a necessidade de formação de professores. In: TV Escola/Programa Salto para o Futuro Boletim 1., MEC, 2006.

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MEMORIAL DE LORITA APARECIDA VELOSO GALLE

Introdução

Alguém certa vez me disse:

Somos três pessoas:

Aquilo que pensamos ser,

Aquilo que os outros pensam que somos e

Aquilo que realmente somos!

Neste momento pensei quem sou eu mesmo?

Agora tenho a oportunidade de realizar um pouco deste confronto, quem sou e como cheguei a ser o que sou.

Construir um memorial é refazer uma viagem, é voltar a um passado que nos estruturou e nos trouxe até este ponto de nossas vidas. É rever pessoas, fatos, lugares, situações que nos ajudaram a compor o que somos, o que pensamos e o que fazemos, porém, com outra lente, uma lente mais melhorada capaz de perceber como cada coisa refletiu neste tempo presente e a parcela que cada uma representa nesta estação da viagem em que nos encontramos; que

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marcas foram deixadas e que repercussão causou. Uma experiência agradável e também desafiadora. Eis aqui uma viagem pelas estações da minha memória formativa!

Ponto de partida

Sou a filha mais nova entre três irmãos. Fui um bebê bastante desejado por meus pais, pois já tinham dois meninos, na época com 12 e 14 anos. Apesar de ter pais praticamente analfabetos, a escola sempre foi algo muito importante para eles, que vieram do interior de Lagoa Vermelha, tentar a sorte em Jaquirana, na época, distrito de São Francisco de Paula. Posteriormente, deixaram o distrito e vieram morar na sede, onde meu pai trabalhava como caminhoneiro e minha mãe se ocupava das tarefas domésticas. Então, já em São Francisco de Paula, em 27 de fevereiro de 1965 começou minha história.

Quando eu nasci, uma prima, na época com 15 anos, veio de Lagoa Vermelha morar conosco, a Eronita, „Nita‰. Meus pais iriam ajudá-la nos estudos e ela ajudaria a me cuidar. É alguém por quem sempre tive um carinho muito especial. Logo que manifestei interesse em ler e escrever, por volta dos 5 anos, lembro dela ter comprado no bazar que trabalhava, um caderno e uma caneta e começado a me ensinar a escrever meu nome. Nesta época, 1970, ingressei no jardim de infância da Escola Estadual José de Alencar, a maior escola da cidade. Tudo era maravilhoso. Minha professora, Chiquinha, seu apelido, era muito amável e minha vida escolar foi correndo.

Lembro de não ser uma boa aluna, percebo agora a minha dificuldade na 1À série com uma professora sem a menor vocação para educadora, uma pessoa sem paciência alguma. Acho que não aprendi a ler na 1À série, mas como minha mãe estava sempre na escola participando e perguntando sobre meu desempenho ganhei um voto de confiança, fui para a 2À série e lá encontrei uma paixão de pessoa que soube me ajudar a vencer as lacunas da 1À série: a professora Eda. É um doce de pessoa, há uns três anos atrás eu a encontrei e foi tão bom ganhar um abraço e ser lembrada por alguém que tanto tinha me ajudado e compreendido.

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E assim os anos foram passando. Como já relatei, nunca fui uma excelente aluna, mas hoje através do tempo, percebo que sempre tive a sorte de ter professores compreensivos e que souberam valorizar meu potencial e acreditar que eu era capaz. Penso sempre nisto quando me deparo com alunos que apresentam dificuldades em aprender.

Na 5À série (1975), aconteceu a minha primeira experiência docente e talvez o início do meu gosto pela ciência. Minha professora de ciências, uma baixinha como eu, chamava-se Ledi, selecionou alguns alunos que tinham bom desempenho para atuarem como monitores de outros cinco que estavam „mal‰. As supostas aulas deveriam acontecer na casa do monitor, deveria haver um planejamento e caso houvesse melhora no rendimento dos monitorandos, o monitor ganharia uma nota extra. Me senti muito importante de ter sido escolhida para ser monitora e mal podia esperar „meus alunos‰ chegarem. Organizava um espaço no quarto de visitas da minha casa para esperá-los e em um quadro minúsculo escrevia os conteúdos que imaginava que eles precisariam rever, tínhamos recreio e lanche por conta da minha mãe. Me senti uma verdadeira professora e gostei muito da experiência. Ao final deste „reforço‰, todos superaram as dificuldades e eu pude ganhar o bônus que tinha sido prometido. Mais tarde, como professora de matemática de uma 5À série, apliquei a mesma metodologia. A professora Ledi era bem evoluída para a época, nos levava ao laboratório, fazia experiências, pedia relatórios. Suas aulas eram totalmente fora do tradicional e isto motivava a turma que ficava a semana esperando.

Era 1978 e eu estava no final da 8À série e a pergunta cruel: o que fazer depois? Passei o ano inteiro pensando se iria para o magistério como minha prima Nita ou para o Auxiliar de Patologia Clínica e, posteriormente, fazer vestibular para Medicina. No final fiquei com a segunda opção.

Em 1979, aprendi o que era estudar de verdade. Mudei muito, amadureci, cresci, era outra pessoa, a legítima „CDF‰. Tinha um grupo de professores de primeira linha, apesar de ser uma escola estadual do interior, eram pessoas muito capazes, dos quais sentia orgulho de ser aluna. Acho que pela primeira vez na vida li um livro inteiro, era de geografia, sobre o Brasil. Tínhamos que apresentar um trabalho individual sobre alguns capítulos deste

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livro. Ao apresentar o trabalho, recebi um elogio que mudou meu pensamento de ser médica. Minha professora de geografia, professora Vanda, que era extremamente inteligente, disse após minha apresentação:

-Tu darias uma ótima professora!

Senti-me muito gratificada, pois realmente tinha me esforçado e ela era para mim uma grande mestra. Comecei a gostar da idéia de ser professora. Pensei em biologia, pois a professora Leda que me dava aulas desde a 7À série, havia me desafiado a tal ponto. Suas aulas eram expositivas, mas a forma como ela demonstrava conhecimento dos assuntos me fascinava. Podia imaginar os anticorpos travando guerra com os corpos estranhos que invadiam nosso corpo, ou então imaginar um bebê nascendo de parto normal, o esforço da mãe e a sensação de se respirar pela primeira vez. Tudo era tão real que muitas vezes tive enjôos só de imaginar as situações. A mulher era puro conhecimento, não era nem um pouco afetiva, nunca a vi sorrir, por exemplo, mas se fazia respeitar pelo conhecimento. Eu queria ser professora de biologia e saber tanto quanto a professora Leda.

Viagem por lugares desconhecidos

Em 1982 fiz vestibular para medicina na UFRGS, pois meu pai, que havia falecido no ano anterior, comentava que gostaria de ter um filho médico. Foi um desastre! Decidi então tentar Licenciatura em Ciências na PUCRS com o objetivo de cursar biologia. E neste passei! Foram tempos complicados, sair de „São Chico‰ e vir para Porto Alegre, sem nada conhecer. Minha mãe fez questão de vir junto e alugou um apartamento no bairro Passo d, Areia, próximo a uma prima casada, sendo estes (o casal) e minha mãe as duas únicas pessoas conhecidas. O primeiro contato com a faculdade foi algo totalmente fora da minha realidade, era tudo tão diferente! Pessoas, lugares, cidade... Passei por um longo período de adaptação, novas amizades, conhecer e aprender a me deslocar neste novo espaço, lidar com a doença da minha mãe... Quanto às aulas, aos poucos, com muita garra, consegui superar a carga a que havia me comprometido. Já no 1… semestre, o encanto que a biologia me causava foi pelo ralo. A forma como a professora Leda conseguia me fascinar ao expor o

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conteúdo de biologia não era correspondida por aqueles professores com tantos títulos. Compreendo agora, após as leituras que este curso me proporcionou, que o verdadeiro professor é aquele que te desafia, que te faz acreditar que tu és capaz.

Como no ensino médio, a química que aprendi era precária, na faculdade fui desafiada a aprender esta disciplina, e percebi que aqueles mestres (professores de química) realmente me desafiavam e, então, vi neles a minha mestra inspiradora. Ao terminar a Licenciatura em Ciências fui para a Licenciatura em Química. Realizava-me a cada disciplina e tudo era um grande desafio.

Há muitos acontecimentos que ajudaram a constituir meu fazer pedagógico: pessoas maravilhosas, inteligentes, humanas, embora outras nem tanto, mas assim é a vida e as pessoas... Houve alguém especial na PUCRS: o professor Maurivan, de Prática do Ensino de Química. Suas aulas eram somente através de desafios para que nós, futuros professores, soubéssemos fazer nossos alunos „lerem‰ o mundo ao seu redor, pelos olhos da Química. Ele era um discípulo de Paulo Freire: tema gerador, problematização, abaixo a transmissão de conhecimento. Lembro uma vez em que ele falou que transmitir conhecimento é como colocar alguém a escutar rádio; a ação pedagógica é algo mais complexo e a figura do professor é sempre indispensável, portanto, educar não é transmitir conhecimento. Tornei-me sua fã, ia às vezes fora do horário só para trocar idéias com meu „mestre‰. Eu o via falando e pensava: eu quero ser como ele!

Fiz meu estágio sob a orientação do professor Maurivan, através das técnicas que ele me ajudava e motivava a aplicar.

Nas férias de inverno em 1984, vim para Três Coroas e na escola em que minha cunhada trabalhava (Colégio Estadual 12 de Maio, onde eu trabalho hoje), precisavam de alguém para substituir um professor de ciências que fazia faculdade de férias. Foi a primeira experiência como professora propriamente dita. Eu era só insegurança, afinal era o confronto com minhas teorias acadêmicas e a prática docente. As coisas não eram tão bacanas como eu tinha imaginado. Neste mesmo ano, conheci meu futuro marido, que fazia parte do grupo escoteiro local, do qual meu sobrinho participava e, através dele,

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ingressei no mesmo, participando por vários anos. O Escotismo é uma atividade educativa, na qual os „chefes‰ (adultos que coordenam as atividades das crianças e jovens), aplicam o método escoteiro criado por Baden-Powell em 1907, cuja base é „aprender fazendo‰.

Em síntese, o objetivo de nosso Escotismo é cativar o espírito dos jovens em plena fase de ardente entusiasmo, orientá-lo no bom caminho e estimular o desenvolvimento de sua individualidade de modo que o jovem, possa se auto-educar e se tornar uma pessoa de bem e um cidadão válido e útil a seu país (Baden-Powel, 2000, p. 99).

Através do Movimento Escoteiro, aprendi a acreditar no potencial dos jovens e o quanto um trabalho voluntário nos enriquece.

Em 1986 iniciei como professora contratada pela prefeitura para atuar nesta mesma escola. No primeiro semestre foi uma verdadeira loucura, estava em final de curso em Porto Alegre e ainda tinha que conciliar as aulas em Três Coroas. Em agosto de 1986 a tão sonhada formatura e a vinda definitiva para Três Coroas.

Outras estações

Em 1987, recebi uma proposta para trabalhar na Escola Cenecista de Igrejinha (distante 7 km de Três Coroas), eram turmas de 7À e 8À séries no turno noturno, ensino supletivo. Hoje percebo o quanto aquele momento foi legal, a troca que havia entre mim e os meus alunos, pois muitos eram bem mais velhos que eu, que, na época tinha 22 anos. Lembro de levar sempre uma caixa com materiais para realizar pequenas experiências, e isto era a sensação das aulas.

Em 1988, fiz o concurso para o estado, mas só fui nomeada em 1989, então tive de desistir da Escola Cenecista por não poder conciliar os horários, fiquei efetiva quarenta horas na escola que trabalho até hoje.

Em 2000, aceitei o desafio de atuar vinte horas como vice-diretora na Escola Estadual Professor Augusto Roennau, localizada em um bairro de Três Coroas. Outra realidade, poucos alunos, mas muitos desafios. A escola fica

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localizada próxima de um orfanato e recebe crianças vítimas dos mais diferentes tipos de violência e a clientela de fora é composta de crianças cujos pais trabalham em fábricas o dia todo e os afazeres domésticos competem a elas, ou seja, desde cedo aprendem a ser adultos e têm na escola o único espaço para serem crianças. Na escola, não havia pessoal preparado para trabalhar com as dificuldades, então a própria equipe diretiva tinha que atender os mais diferentes problemas. Costumava dizer para a diretora: „aqui matamos um leão por dia‰. Ali, entendi na prática, já com certa experiência, o que significa dizer que „magistério é missão‰ e o quanto educar exige tolerância, dedicação e carinho.

Quando saí de lá, minha visão de educadora mudou muito, havia mais comprometimento, um senso maior de responsabilidade e a crença mais forte de que a escola é um dos poucos lugares que algumas crianças têm para serem ouvidas e percebidas, além de que muitas vezes o conteúdo é um elemento secundário, mas o olhar especial, a atenção, o falar manso e o sorriso são sempre essenciais, quando se quer ser um educador. Fiz muitas amizades (professores e alunos) que cultivo até hoje e só não permaneci lá pelos gastos que tinha com transporte. Porém, em 2007, retornei como professora de matemática de uma 5À e de uma 6À série, o que foi muito importante para mim, pois estava mais próxima dos alunos e pude conhecê-los melhor. A escola estava trabalhando o Projeto „˘gua: fonte de vida‰, e utilizei os conteúdos de matemática destas séries para inserir no projeto; bem como alguns conteúdos ocultos como higiene, ética, meio ambiente, saúde e economia. Eram grandes viagens as nossas aulas, mas, no final, tive alunos mais críticos e participativos. Porém „não foram tudo flores‰, tive que fazer vários reparos, pois havia muitos alunos sem limite, outros que vinham apenas para brincar e um grupo bem complicado que estava fora da faixa etária. Era desafio e desafio, mas no final colhi os frutos, apresentamos os trabalhos em data show e todos se sentiram valorizados. No final do ano, meu contrato terminou e ficou o sentimento de quero mais. Estar em uma comunidade carente de tudo, faz com que percebamos o verdadeiro sentido de nossa profissão.

Minha experiência na EJA aconteceu em 2003. Eram alunos que faziam parte de um grupo de reabilitação de viciados (álcool e drogas): o „Desafio Jovem‰ de Três Coroas. O grupo era formado por 20 alunos, sedentos em

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aprender e que apresentavam as mais variadas histórias e dificuldades, principalmente nas disciplinas exatas. Então procurei adaptar os conteúdos o mais próximo da realidade, trazendo para as aulas, sempre que possível, temas atuais. Com eles pude entender o que é ser professor facilitador e pude também repensar minhas atitudes com alunos do ensino regular. Essa experiência reformulou muito minha prática, me fez mais humana, mais alerta sobre o meu real papel de educadora. Penso sempre neles e espero ter feito um bom trabalho. Não sei se ensinei algo, só sei que aprendi muito com aquele grupo de pessoas tão humildes e machucadas pela vida.

No início de uma viagem pelo magistério, tudo é novo e desafiante, queremos mudar o mundo, temos mais garra, com o tempo vamos nos acomodando, nos contaminando por vários „vírus‰ que existem, impregnando os ambientes escolares e tiram a boniteza de ser professor (Paulo Freire, 1996), mas eu sempre procurei me esforçar para que isto não ocorresse, fazendo cursos, participando de encontros e tudo, é claro, para injetar ânimo nas minha práticas. Sempre houve um desejo muito grande em voltar a estudar, porém, durante este tempo, a minha prioridade foi minha família: meu marido, Carlito, com quem estou casada há 21 anos; minha filha, Cássia de 19 anos; e meu filho Vicente de 15 anos. Pensava que para estudar, teria de retirar deles um tempo para então me dedicar a uma especialização. Agora, com os filhos crescidos, estou mais à vontade para dedicar mais tempo a minha formação, fato que estou podendo concretizar agora.

Rumo ao desconhecido

Analisando minha trajetória, acho que procurei e procuro fazer o melhor, sou insatisfeita e procuro ir sempre além. Meu maior desejo é trazer a disciplina com que trabalho, Química, o mais próximo do cotidiano dos meus alunos, ou seja, que o que ensino sirva efetivamente para tornar suas vidas mais felizes, compreender o universo que os cerca e nele interagirem de forma positiva. É um desafio!

A oportunidade desta especialização acontece na hora certa, estou mais madura e consciente e sei que irei aproveitar muito. Estou podendo refletir

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muito sobre vários aspectos; como conhecer nossos alunos e como cada um tem um jeito de aprender, o que me coloca a pensar na responsabilidade que tenho em estudar mais e criar situações para que cada aluno se sinta estimulado a buscar mais conhecimento.

A partir das leituras e reflexões, estou podendo rever o meu papel de educadora em um mundo cheio de adversidades. Houve e está havendo rupturas. Através das leituras e da metodologia aplicada, é possível entender o quanto o ato de educar é profundo. Percebi que minha formação foi voltada para dadores de conteúdos (Vasconcellos, 2003), mas que posso transformar isto, porém é necessário mobilização, estudo, construção, desconstrução, ação e, principalmente coragem, que há um desenvolvimento pessoal do professor (Demo, 1995) que não deve esperar que outros o motivem e sim, deve estar baseado na formulação de sua própria proposta de vida. Sempre acreditei que a competência é tudo e uma citação me tocou profundamente; ela diz „que quando se é pouco competente e muito mal pago, é difícil buscar razões para gostar do que se faz‰ (Demo, 1995), e para desenvolver esta competência, é preciso que conceitos sedimentados sejam desmanchados e reconstruídos a todo momento. Tenho certeza de que achei o lugar certo para isto!

Como professora estadual, percebi que devo ir além das aulas, pois trabalho com uma camada social que não tem vez nem voz e eles merecem o melhor de mim. Devo ajudá-los a recuperar a capacidade de sonhar (Vasconcellos, 2003), para melhorar sua leitura de mundo e nele poder ser inserido como ser que pensa, que tem direitos, deveres, sonhos e angústias.

Posso ver o quanto o magistério é uma profissão maravilhosa que nos permite crescer intelectual e emocionalmente. Não consigo me imaginar fazendo outra coisa, a escola é um espaço mágico; conviver com crianças, jovens e adultos nos renova, embora muitas vezes nos tragam frustrações e tristeza, pois nem tudo depende da nossa boa vontade, mas isto também faz parte da nossa trajetória.

Algo, porém me incomoda muito e este é o tema que pretendo estudar: a evasão escolar. Qual o perfil, os motivos que levam nossos alunos a evadirem e o que eles esperam da escola. Pretendo fazer meu trabalho de conclusão nesta linha e focado na realidade da minha escola que apresenta um alto percentual

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de evasão, especialmente no 1° ano do ensino médio. Gostaria de ir a fundo na realidade de um grupo de alunos evadidos, conhecer seu mundo, seus anseios, sua relação com o mundo do conhecimento e esperanças em relação à escola e como elas foram frustradas e os levaram à evasão. Já estou lendo sobre o assunto e fazendo alguns apontamentos.

As viagens continuam, hora por lugares já conhecidos, hora desconhecidos com caminhos a serem desvendados. Há momentos em que as pessoas que viajam conosco, nos influenciam a tal ponto, de nós acabarmos embarcando em suas formas de olhar o mundo e entendê-lo. Assim percebo esta minha opção pelo magistério, acho que sentei ao lado de pessoas desafiadoras, incansáveis e sábias (meus pais, minha prima Nita, os professores Eda, Ledi, Leda, Maurivan e outros que encontrarei) e que acreditaram em mim e emprestaram sua força para que eu fosse adiante. Acredito que esta seja a grande missão do professor: emprestar sua força, sua esperança e seus sonhos para que outras pessoas possam ajudar a construir um mundo melhor para todos.

Referências

BADEN-POWELL of Giwell, Lord. Guia do Chefe Escoteiro. Porto Alegre: Edição

Escoteira, União dos Escoteiros do Brasil, 2000.� DEMO, Pedro. ABC: iniciação à competência reconstrutiva do professor básico. Campinas, SP: Papirus, 1995.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia - Saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

VASCONCELLOS, Celso dos Santos. Para onde vai o professor? Resgate do professor como sujeito de transformação. São Paulo: Libertad, 2003.

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MEMORIAL DE RICARDO PAMPIM DOS SANTOS

Ensinar é um exercício de imortalidade. De alguma forma continuamos a viver naqueles cujos

olhos aprenderam a ver o mundo pela magia de nossa palavra. O professor, assim, não morre

jamais (Rubem Alves).

As primeiras linhas

Já havia me esquecido do quanto é desafiador falar de si mesmo. De repente, lembrei-me das primeiras entrevistas em busca de trabalho, daquelas dinâmicas de grupo em que cada candidato tinha de se apresentar e falar de si mesmo, das experiências, expectativas, o porquê de buscar a vaga e por aí vai. Falar em público era algo muito difícil para mim.

A idéia de escrever sobre minhas memórias também é um desafio. Embora haja em minha trajetória muitos momentos que me marcaram e me modificaram de alguma forma, tenho dúvidas de como vou discorrer sobre o assunto para que o memorial não se torne um tratado.

Vou usar o método tradicional para facilitar as coisas: começo do início.

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Minhas raízes

Nasci em Porto Alegre, em 1972. Minha mãe veio do interior em maio de 1971 e trabalhou durante anos para uma mesma família. Foi na casa dessa família que cresci rodeado de pessoas que me deram muito carinho e nutriram um grande respeito e admiração por minha mãe pela sua história de vida.

Sempre muito trabalhadora, minha mãe lutava para que não faltasse nada para mim e para que eu não sentisse a ausência de meu pai. Nunca soube o que é ter um pai, mas minha mãe esteve sempre muito presente na minha criação, me orientando sobre a vida. E a fez com muito êxito.

Aos sete anos, fui para a escola. Estudei todo o 1… grau na Escola Elpídio Ferreira Paes, no bairro Cristal, onde morei durante 17 anos.

Tive uma infância tranquila, mas com sete anos tive minhas primeiras responsabilidades para não sobrecarregar minha mãe. Ela trabalhava muito e eu precisava me virar para ir à escola, me alimentar e aprender a cuidar de mim.

A violência não era tanta como agora, mas o cuidado com tudo e com todos sempre foram as dicas de minha mãe.

Minha vó de „coração‰ também cuidou muito bem de mim, enquanto minha mãe fazia os trabalhos domésticos e assessorava uma família de cinco pessoas.

Alguém especial

Nessa mesma época, minha mãe conheceu alguém que se tornou uma pessoa muito especial na minha vida. Ele nunca teve a pretensão de suprir a falta de meu pai, mas para mim foi o que muitos pais biológicos não são para os próprios filhos: meu padrasto. Sempre me respeitou e me deu carinho da sua forma. Anos mais tarde, quando eu tinha uns doze anos, minha mãe teve uma menina, fruto desse relacionamento que já tinha alguns anos.

Minha irmã Juliana nasceu em 1984.

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Na escola I

Tive problemas para me relacionar com os colegas na escola e para fazer amizades. Minha escola tinha alunos de classe social privilegiada. É incrível como somos seletivos desde crianças. Lembro-me de como era isolado pelos colegas porque eu era pobre, morava em vila e minha mãe pouco podia ir à escola, pois precisava trabalhar.

Minhas primeiras professoras foram Beatriz Dias, na primeira série; e Marilice Lopes, na segunda. Não sei dizer o porquê de nunca tê-las esquecido, mas acredito que seja pela atenção e pela forma como me ensinavam as coisas. Penso muito sobre isso hoje, por ser um professor.

Era fascinado por elas. Tudo era novidade para mim e as descobertas daquele mundo novo me deixavam feliz, quando chegava a hora de ir para escola.

Durante todo o 1… grau, nunca fiquei em recuperação e isso era motivo para minha mãe se orgulhar de mim, e eu dela. Éramos nós dois surpreendendo um ao outro. E assim, seguíamos nossa vida.

Minha mãe pôde me ajudar muito pouco com as lições de casa, pois estudou só até a quarta série, mas se envolvia de alguma forma, mostrando-me que era importante realizar as tarefas e acreditar que aquela fase era de grande valia para a minha formação. Ela sempre acreditou em mim de forma positiva, mas nunca deixou de me repreender, quando eu estava errado.

Ela sempre teve uma visão muito clara da vida, dos valores, da integridade e da confiança como formas de conquistar as pessoas.

Isso eu tenho como valores primordiais para mim. Procuro sempre me lembrar disso, embora, às vezes, se faça necessário fugir disso por uma questão de sobrevivência. É, vivemos momentos de muita concorrência em que a ordem é, via de regra, farinha pouca, meu pirão primeiro. É lamentável.

Mas essa não é minha essência. Já pensei muito nos outros primeiro e dependendo da situação e de quem, abro mão em benefício do outro sem arrependimentos.

Tudo para mim é aprendizado.

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Na escola II

Fiz meu 2… grau na Escola Técnica Parobé. No final da década de oitenta, o meu mundo já era bem diferente. Todos os „fantasmas‰ que me assombravam nos anos anteriores já não me assustavam mais. Superei-me ao conquistar amizades que naquela época eram as mais verdadeiras. Senti-me mais livre para começar a construir uma identidade para mim, mas não sabia o que queria de fato da vida. Mas era cedo. As festas eram garantidas todos os finais de semana. Legião Urbana, RPM, Titãs e Lobão eram verdadeiros hinos que expressavam toda uma geração. Saudades!!

Nunca fui do grupo dos estudiosos. Era um aluno considerado normal. Estudava para passar e não para saber. Que pena! Engraçado que pouco me lembro, para não dizer quase nada, dos anos de estudos do 2… grau. Só dos estudos!

Acho que isso também era normal ou ainda é até hoje, faz parte da juventude.

O fato é que terminei o 2… grau e não sabia o que fazer, nem para onde ir.

Continuei fazendo festa...

O primeiro trabalho

Os passeios nos fins de semana começaram a exigir uma fonte de renda. Nem sempre minha mãe podia patrocinar minhas festas. Fui atrás de emprego. O que fazer? Sem experiência, sem referência, sem nada de nada.

Minha mãe perguntou para a dona de um supermercado pequeno, que havia perto de casa, se tinha alguma coisa que eu pudesse fazer. Fui trabalhar como empacotador. Na verdade empacotava os produtos, limpava chão, ensacava batatas - na época as batatas eram vendidas em saquinhos amarelos que pareciam umas redes - além de etiquetar produtos e limpar os queijos velhos e fedidos para colocá-los novamente nas prateleiras para serem vendidos. Que feio! Mas era a ordem.

Esse problema estava resolvido. Agora era só festa e festa.

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O tempo passou e as cobranças da vida chegaram. Era hora de pensar em um tempo mais distante, mais à frente, diferente daquele depois da festa com a galera.

Eu precisava de me auto-afirmar diante das angústias, inquietações e de conflitos internos que estavam gerando conflitos externos.

Parei para pensar quem eu era e quem eu queria ser. Foi difícil responder a qualquer uma das perguntas. Mas elas passaram a existir todos os dias na minha cabeça.

De volta à sala de aula

Sem saber o que queria, resolvi voltar a estudar. Fui fazer cursinho pré-vestibular. Na época, matriculei-me no Universitário. Nem sei se ainda existe. Era o que o meu bolso podia pagar. Achei o máximo. Senti-me realizado por conseguir pagar um curso pré-vestibular.

Agora as relações foram mais fáceis, pois todos ali tinham, no mínimo, uma coisa em comum: passar no vestibular.

Tempo bem legal. Mas não sabia ainda que curso escolher. Lembrei-me do filho de minha vó de „coração‰, a chamo assim por ela ter me adotado como seu neto e minha mãe como filha mais velha. Ele havia feito Relações Públicas na PUC-RS. Achava interessante o trabalho dele e me passava a idéia de uma profissão de status. Ganhava bem, tinha um bom carro, ia às melhores festas e era rodeado de pessoas bonitas. Era isso que eu queria, afinal, quem não gosta de ter sucesso na vida pessoal e profissional!?

Fiz a inscrição. Chegou o tal vestibular. Na época, tinha um número de acertos mínimos para entrar na UFRGS. Nove em cada prova, se não me falha a memória. Não obtive os acertos mínimos em matemática e física.

Mas não desisti. Gostei do cursinho e resolvi fazer de novo. Agora estava mais amadurecido e sabia que queria mesmo fazer uma faculdade. Mas aquele deslumbre de achar que a profissão de Relações Públicas, do filho da minha vó era o „canal‰ para mim, não fazia mais a minha cabeça. Minha

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escolha não poderia ser dessa forma, baseada no sucesso de uma pessoa que foi bem sucedida na sua opção.

Minha escolha precisava ter uma relação direta comigo. Resolvi que iria fazer Letras. Sempre gostei de português, mas nunca tive bons professores durante minha vida escolar. Nunca soube articular corretamente nossa língua e sempre tive muita dificuldade de me expressar e de escrever. Também penso nisso hoje, quando estou dando aula para os meus alunos.

No meio da caminhada

No ano seguinte, comecei a trabalhar numa livraria. Gostei bastante da experiência e do contato com os livros. Tinha um salário básico e ganhava comissão sobre as vendas.

Matriculei-me no cursinho, porém, tive dificuldades de pagá-lo. As vendas não estavam boas, então, minha avó ajudou-me a pagar as mensalidades.

Em setembro de 1998, minha mãe teve um AVC e teve de fazer uma cirurgia às pressas, pois corria risco de vida. Depois de um bom tempo em coma, ela acordou, mas ficou com muitas sequelas. Parei de estudar para cuidá-la, pois não caminhava nem falava. Foi um período muito difícil para mim. Minha irmã com 13 anos estava muito abalada com tudo isso.

Em dezembro do mesmo ano, minha mãe com 47 anos, faleceu.

Voltei à estaca zero. E agora? Quem sou eu novamente? Perdi meu alicerce.

De novo aquela sensação de insegurança me incomodava. Não sabia o que fazer. Sem trabalho e sem cabeça para estudar. O vestibular era em janeiro.

Mas não tinha outra saída. Mesmo abalado pensei que para baixo não existia mais nada, pois eu já estava no fundo do poço. A saída só podia ser para cima. Ergui a cabeça e busquei forças jamais usadas, para cuidar de minha irmã e de mim.

Fiz o vestibular da UFRGS, mas não passei. Minha vó me disse para procurar uma particular que ela me ajudaria a pagar.

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Depois da chuva vem o sol

Fiz o vestibular na FAPA. Fiquei muito feliz, pois eu precisava que algo de bom me acontecesse. Era uma nova fase que começava, mesmo que com cicatrizes. Era hora de seguir em frente e pensar no futuro. Foi um sonho de minha mãe que eu realizei. Ela sempre me dizia que eu estudasse para ser alguém, pois ela não pôde estudar, porque precisava trabalhar para ajudar a criar os irmãos pequenos. Minha avó biológica ficou viúva aos 37 anos e com nove filhos para criar. Segundo minha mãe dizia, foi uma fase longa e difícil de passar.

Na academia

Durante o curso, amadureci muito. Fiz muitas amizades com colegas e professores que duram até hoje. Foi um período ótimo da minha vida. Realmente o mundo acadêmico é diferente. É um espaço de experiências de vida, de projetos, de escolhas, de crescimento, de evolução...

Enquanto estudava, trabalhava como promotor de vendas da Nestlé. Passava o dia inteiro na rua. Mas o meu cansaço só alimentava mais a minha vontade de evoluir profissionalmente e buscar a realização dos meus sonhos. Era difícil estudar para as provas, pois eu tinha de trabalhar até nos domingos. Mas consegui vencer esse desafio de trabalhar e estudar. Fiz minha faculdade em cinco anos. Saí bem diferente de lá.

Quando eu estava no quarto semestre de curso, me inscrevi para contrato na prefeitura de Porto Alegre. Umas duas semanas depois, fui chamado. Trabalhei em uma escola na Lomba Pinheiro, zona leste da capital. Fiquei lá por dois anos, pois era o máximo de tempo permitido por lei para fazer estágio.

Após esse período, fiquei um ano sem trabalho fixo, só fazendo alguns „bicos‰ para sobreviver.

No ano seguinte, fui chamado para trabalhar em uma escola particular. Estava lá há seis meses, quando me chamaram para contrato temporário no Estado. Trabalhei nas duas escolas, mas não estava aguentando o cansaço e a

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correria, pois uma escola era em Porto Alegre e a outra em Novo Hamburgo. Optei por ficar no Estado, embora a escola fosse mais longe. Era mais garantido e eu tinha mais horas. Escolha certa. No final do mesmo ano, fizeram „uma limpa‰ na escola particular e mandaram vários professores embora por contenção de despesas.

Desafios como professor

O período de estágio na prefeitura era, na verdade, para auxiliar/monitorar junto ao professor titular. Mas a realidade foi bem outra. Desde o momento em que eu cheguei, ganhei uma turma só para mim. E foi assim durante os dois anos em que fiquei estagiando. Embora indignado, pois não foi isso o combinado na contratação, foi muito bom para eu adquirir experiência. A escola para mim, serviu como oficina para uma nova profissão que havia escolhido. Passei momentos muito difíceis com alunos e professores, mas soube me defender.

No Estado, comecei trabalhando com o Ensino Fundamental, Médio e EJA. No primeiro momento foi um choque, mas tinha de encarar isso. Não tinha a mínima idéia de como trabalhar na EJA e nem sabia por onde começar. Deram-me uma folha com meia dúzia de conteúdos e um „boa sorte‰ e era isso... Aprendi na marra. Alguma coisa tinha de sair. Comecei conversando com todos os alunos das salas em que eu entrava. Precisava conhecê-los para saber por onde começar.

O trabalho não foi nada fácil, pois a escola não tinha bem estruturada essa modalidade por motivos de troca de coordenador ou falta dele, falta de professores... aqueles velhos problemas da educação pública estadual.

Hoje, passados oito anos como professor, embora tenha me formado há quatro, tenho como premissa que ainda há muito que fazer por parte de governo, professores, pais e gestores de escola. Nesses oito anos, passei por escolas municipal, particular e estadual e vejo que todas elas têm suas falhas. Vejo que é fundamental pensar em uma escola inovadora voltada para as vertiginosas transformações pelas quais passamos todos os dias. Uma escola que emancipe, que transforme, que ensine o aluno a ser empreendedor e não uma

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escola que passe a idéia de que apenas o diploma de ensino médio é importante para garantir um futuro melhor. A idéia de que diploma de Ensino Médio é sinônimo de emprego garantido já era.

Falta muito ainda para alcançarmos uma escola que queira desafiar a educação que existe e que não está preparando, de fato, um aluno que será independente, capaz de pensar, questionar, transformar e modificar o seu mundo.

Reflexões

Não culpo somente as escolas, mas também as famílias que se acomodam diante dos fatos e nada fazem para mudar a realidade da escola e que aceitam, sem contestação, as mudanças radicais deliberadas pelos governos. Na escola pública, não se consegue avançar por culpa do sistema político e econômico.

Nunca existirá mudança sem envolvimento, trabalho e conhecimento. E acredito que governos sempre farão o básico pela educação porque é um direito garantido constitucionalmente. Mas, muitas vezes, fica subentendido, através de ações governamentais, que educação é gasto e não investimento. Verbas existem. Faltam políticas para o setor e boa vontade por parte dos governantes.

É notório que exista uma grande desmotivação dentro das escolas por parte de alunos, professores e gestores e, assim, fica difícil dar uma „repaginada‰ urgente e necessária na educação pública. E isso é favorável a governos que pouco ou quase nada investem na educação por conta desta inércia da sociedade.

Dentre os vários textos discutidos nas aulas do curso de especialização PROEJA, lembro-me de ter lido um trecho do texto de C. Wright Mills, A Imaginação Sociológica, do qual cito uma passagem:

A precisão não é o único critério para a escolha do método e não deve ser confundida, como ocorre com frequência, com o ‰empírico‰ ou o „verdadeiro‰. Deveríamos ser tão precisos quanto

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formos capazes em nosso trabalho sobre os problemas objetos de nossa atenção, mas nenhum método, como tal, deveria ser usado para delimitar os problemas que tomamos, quanto menos não fosse pelo fato de que as questões mais interessantes e difíceis de método começam, habitualmente, quando são aplicáveis as técnicas consagradas (1969, p. 82).

Mas por que cito essa passagem de Mills no momento em que estou refletindo sobre a minha trajetória e experiências como docente? Percebo que durante esses anos que já trabalhei, em todas as escolas sempre houve uma forma única de trabalho defendida por parte de gestores, supervisores, enfim, o pessoal do setor burocrático. Nunca houve, em reuniões pedagógicas, uma abertura para rediscutir a forma de como deve ser o processo de aprendizagem do aluno que temos hoje: um ser que está crescendo diante de uma sociedade extremamente competitiva, de desigualdades cada vez mais avassaladoras, de uma cultura na qual prevalece o individual, a necessidade de ser crítico e do poder como arma para subordinar pessoas.

Como fica o professor que quer adaptar o seu método de trabalho a essas questões se o que vale é a maneira de como três ou quatro pessoas que estão numa direção „veem‰ a escola?

Na prática, os professores acabam por trabalhar de forma igual, independente do perfil da turma, e isso desmonta com os conceitos da pedagogia de que cada aluno é um ser individual, portanto, deve ter o seu processo cognitivo desenvolvido de acordo com suas habilidades e competências.

Por mais que os professores busquem se atualizar, na prática, não há uma „liberdade‰ para trabalhar e aplicar o seu método, por culpa do sistema padronizado de avaliação que tem que ser seguido.

Há muitos equívocos na escola atual.

Ðltimas linhas

Está bem evidente, neste memorial, que estou muito decepcionado com a educação que está sendo oferecida. Todos têm sua parcela de responsabilidade

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nisso tudo como já citei anteriormente. Mas ainda defendo que a mudança virá por questões políticas e participativas.

Lembro-me de uma discussão sobre um texto do Paulo Freire na aula do professor Alexandre Virgínio em que fiz a seguinte pergunta a ele: Por que atrás de todo o discurso pedagógico está evidenciado que o professor tem que rever a sua prática pedagógica, ou seja, ele é o principal responsável pela transformação no processo ensino-aprendizagem, enquanto está muito claro que a base dessa discussão deveria ser a revalorização do professor, alunos desinteressados em adquirir conhecimento por culpa de uma cultura de massa que invade suas casas e de gestores que pensem em uma educação necessária diante desse panorama?

Minha inquietação é constante diante dessas questões.

Já fiz diversos cursos, visando atualizar-me, modificar-me na forma de trabalhar, mas acabo esbarrando na política escolar, no aluno que não quer trabalhar e é indiferente a tudo que acontece ao seu redor.

Sinto-me como um „remador‰ (Rubem Alves) perdido em alto-mar em meio a uma tempestade e que não sabe para onde dirigir o seu barco.

No início desse trabalho, coloquei um pensamento dele sobre o que é educar. Acredito muito no que ele diz e talvez seja isso o que ainda me faça ter esperanças de um dia ver a diferença, embora, sendo bem realista, não veja muita perspectiva para isso.

Desculpe-me professor ou professora por ter manifestado minhas idéias, não sei se foram bem claras, aqui neste trabalho. Não sei se a proposta me permitia isso, mas durante a escrita do memorial minhas lembranças sobre esses anos de docência fervilharam. Vivenciei muitas situações que deixariam qualquer pessoa, que respeita o seu trabalho, indignada diante da prioridade e da visão que há dentro das escolas. Mas isso talvez eu traga em um outro momento, lá no TCC.

Para finalizar, cito uma passagem do livro de Rubem Alves, Conversas com quem gosta de Ensinar:

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Para onde queremos que o barco vá? Somente depois de respondidas estas perguntas teremos condições de tomar decisões lúcidas acerca do que deve ser pesquisado. Uma vez tomada a decisão, e somente então, faz sentido suar o remo. Antes disso seremos apenas sonâmbulos que não sabem o que fazem (1985, p. 87).

Referências:

ALVES, Rubem. Conversas com quem gosta de ensinar. São Paulo: Ed. Cortez, 1985.

MILLS, C. Wright. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1969.

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MEMORIAL DE JEANE RODRIGUES NUNES

Eu sou eu mas também sou

gato pato

e mato

Nós somos o universo e o universo é nós

Frustração

· Guria! Foi quando vocês tinham uns sete anos!

Tais palavras de sua mãe vieram-lhe a mente naquele momento! A melhor colega, já muito amiga, discursava para a turma certas noções de linguística. A parte que lhe cabia ficou num suspenso e pesado silêncio por toda a sala de aula. Ninguém! Simplesmente! Conseguira compreender suas palavras.

Um nó de sufoco surgiu na garganta, desestabilizando toda a parte orgânica responsável pela fala... como se isso não acontecesse frequentemente! Lutou contra as próprias forças que exigiam que ela chorasse⁄ não! Não poderia chorar! Iria ficar um clima ainda mais ruim, dificultando a fala da colega amiga.

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· Guria! Foi quando vocês tinham mais ou menos uns sete anos!

Num misto de raiva e frustração, após as apresentações da aula, balbuciou baixo, após a seguinte pergunta: O que houve, Jeane?

· Professora! Eu sou gaga!

Não conseguiu evitar que os olhos ficassem úmidos, mas ouviu a indicação de uma fonoaudióloga, numa fala gentil e compreensiva. Logo depois, chegou a vez dos colegas:

· Não desiste, Jeane!

· Olha, eu tenho uma irmã que está jogada em cima de uma cama, quase sem poder se mexer, porque não se esforçou.

Engoliu seco! Sabia que tinha colegas maravilhosos, que não iriam desampará-la numa hora destas. Mas o problema estava ali! Acompanhando sua vida⁄ incessantemente⁄

· Guria! Foi quando vocês tinham uns sete anos!

Não! A mãe estava errada! Quando nasceu para a vida consciente, pelo meio dos cinco anos, já gaguejava! Não poderia esquecer! E assim ficou enclausurada dentro de si mesma, com medo de falar para não ser alvo de chacotas e risadas. A irmã também era assim e, além do fato de serem gêmeas, isso as aproximou ainda mais. Identificavam-se!

A parada do ônibus estava fria! Era inverno! Os colegas continuavam falando, encorajando... a mãe também era gaga, mas as pessoas não notavam por sua fala ser mais rápida do que repetitiva ou bloqueada. Três parentes na família da mãe também assim eram! Seria genético? O fato é que a família não tinha recursos para pagar um atendimento especializado⁄ quando procurou atendimento gratuito desistiu, a fila de espera era grande e, quando se conseguia, era difícil dar continuidade. Quando chegou em casa a tormenta íntima acabou desabando!

Eu queria ser escritora! Entrei no curso só para aprimorar a escrita! Por que acabei gostando do curso como um todo? E num desabafo de cansaço,

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depois do novo encorajamento por parte da família, saiu da boca um longo suspiro:

· Por que somos gagas?

E num último suspiro⁄

· Por que sou gaga?

O Sarau

Como não são fáceis os relacionamentos sociais, íntimos ou os dois juntos! Cada ser humano carrega em si um universo de ideias, pensamentos, emoções, mas não é capaz de se conhecer completamente... tampouco conhecer o outro... mas, mesmo assim, só existimos em conjunto.

Para mim, sempre foi difícil fazer amigos, colegas, porque a fala é essencial para isso e sou gaga. Sendo assim, sou tímida, acanhada, mas surpreendi-me comigo mesma ao iniciar minha trajetória profissional. Na sala de aula sou outra pessoa, comunicativa, aberta e encarando meu problema de frente, tanto que meus alunos não caçoam disso.

Lembro que no início na minha experiência profissional a escola tinha dois ambientes bem distintos para mim: a sala de aula e a sala dos professores. Em cada um desses ambientes eu me comportava de forma diferente. Em aula era expansiva, com os colegas, tímida. Não tinha receios de revelar meu problema de fala para meus alunos, mas sim, e muito, para meus colegas.

Acabou acontecendo um fato que acontecia na minha vida particular. Mesmo não querendo, muitas vezes a vida profissional e a vida particular se entrelaçam. Como sou mais ouvinte do que falante, fora da sala de aula, algumas pessoas costumam se aproximar de mim espontaneamente, porque tenho um jeito simpático, apesar da timidez, e muitas vezes as pessoas necessitam ser ouvidas.

Pois bem! Uma de minhas colegas, da mesma área, estava responsável por organizar uma revista da escola e, como muitos professores não ajudavam com a desculpa de suas altas cargas horárias, ela estava decepcionada. Veio

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puxar conversa comigo e, lógico, pedir ajuda. Considero tal fato muito importante na minha vida profissional e pessoal, pois foi através da Ana que comecei a me relacionar melhor com todos os colegas de trabalho. Ajudei na elaboração do jornal, juntamente com alguns colegas que também se propuseram a isso. O trabalho em conjunto aproxima as pessoas e, infelizmente, trabalhos assim, interdisciplinares, ainda são praticamente um sonho na escola.

Depois da elaboração da revista, Ana convidou-me para participar de um Sarau que seria realizado na escola, planejado pela Secretaria Municipal de Educação. O que eu não sabia era a tarefa pensada por ela: uma poetisa da comunidade e eu deveríamos apresentar o Sarau. Foi algo que me deixou feliz e nervosa ao mesmo tempo. E seu eu gaguejasse bastante ao ponto das pessoas não me entenderem? Felizmente, isso não aconteceu! Senti-me motivada para compartilhar da apresentação do Sarau com a sua abertura, nas palavras da Ritinha. A poetisa, depois de alguns comentários preliminares, leu a linda Oração de São Francisco, isso me deixou comovida, pois eventos assim, dentro da escola num fim de semana, podem contribuir para a mudança da violência e individualismo, que caracterizam a sociedade.

A então Secretária de Educação gostou tanto do Sarau que deu a idéia de dar continuidade a ele, uma vez por mês na escola. Aconteceram, assim, muitos Saraus em que eu participei e compartilhei as apresentações e organização, com a preciosa participação do Clube Literário de Gravataí, na presença de Borges e de tantos outros poetas e escritores, e de alguns poucos interessados alunos que participaram.

O Sarau daquele dia foi um marco muito importante na minha vida pessoal e profissional, pois retomei o contato maravilhoso com poetas e escritores que tinha tido em Rio Grande, na minha cidade natal, com a Casa do Poeta Brasileiro no Cassino, onde fiz amizades preciosas, bem como com o aprender a declamar, no CTG Farroupilha.

Diante desses acontecimentos, bem como de tantos outros, tenho a idéia de que a sabedoria reside no aprender em conjunto, que eu não seria hoje uma pessoa melhor, sem o contato com colegas e alunos, pois somos todos humanidade e natureza.

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O Dia

Da grande sala, através de uma pequena janela retangular no alto da parede, podia avistar uma das tantas salas um pouco menores do prédio. Não era qualquer sala, aquela. Era a sala do pior dia da semana!

Passava o copo de café de uma mão para a outra, apesar de não ser ambidestra, como que querendo espantar da alma um mau presságio. Deu outra olhadela para a tal sala, o líquido escuro parou no meio da garganta⁄ tossiu! Pensou que o café seria uma solução para ficar, além de mais ativa e alerta, confiante. Por esta razão, decidiu continuar tomando. Outra olhadela! Associou a alta temperatura do líquido com um embate acalorado de sentimentos, de idéias, de contrafeitas⁄ desistiu de tomar o resto, dirigindo-se até uma pia no fundo da grande sala, despejando o restante do líquido escuro e lavando o copo, pondo-o onde estava anteriormente. Sentou novamente. Inspirou profundamente⁄ o ar enchendo os pulmões⁄ expirou lentamente⁄ sensação divina⁄ maravilhosa⁄ calmante⁄ pouco durou! O sinal bateu! Martírio embrionário! Pegou o material como se fosse um escudo, enfim iria para a arena, não tinha como evitar! Subiu as escadas lentamente, não podia fugir! Martírio fetal! Olhou o alto da escada e uma das alunas de uma outra turma esclareceu:

· Professora, Deus está com a senhora! Como um relâmpago claro, mas bem breve, passou pela sua mente „Por que esta aluna falou isso? Não é religiosa!‰ Adentrou a sala em meio aos olhares apagados de praticamente fim de ano letivo dos alunos. Como a vida era dura em certos momentos! Continuava na luta para tornar as aulas mais agradáveis, para conquistar a afeição da turma, mas era tarefa muito difícil! Nos comentários e debates não conseguia fazer com que os alunos falassem um de cada vez, tornando as reflexões pouco significativas. Para lerem era um sacrifício! Tentou trabalhar com música, mas não paravam para ouvir, nem mesmo músicas do momento.

Logo o embate começou! O mais terrível de todos insistiu para botar a classe no meio da porta da sala, estava um calor sufocante! Tentou dissuadi-lo, inutilmente. Era fim de ano, não quis criar mais tensões, deixou que ele ficasse. A turma nas conversas altas, insuportáveis, gritou, nada adiantou.

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Dali a pouco a Vice-Diretora passou pelo corredor, olhou para o interior da sala naquele tumulto. Com voz autoritária pediu para o pior aluno botar a classe para dentro da sala, o olhar acusador para ela, a professora. Martírio nascido! Quanta vergonha! Uma professora sem domínio de classe, com um bando de adolescentes esperando e implorando por limites que ela não sabia dar. Não aguentou mais tempo, levou o pior de todos para a direção. A Vice olhou com raiva aquele guri mais uma vez, quase gritando:

· Também! Deixando ele na porta da sala e... interrompeu suas palavras, fez um gesto com as mãos para que ela se retirasse, sabia que estava se excedendo. Voltou para a sala derrotada! Encontrou os outros alunos bem calmos, assustados. Por que não fez como os colegas, mandando para a direção os casos mais problemáticos desde o início do ano? Mas não! Não queria excluir aluno!

Afinal! Como fazer se impor sem exclusões? Como tornar as aulas mais divertidas? Suspirou! Ainda tinha muito o que aprender! Teria de deixar a timidez de lado e trocar ideias com os colegas, continuar inventando e reinventando, impor-se até mesmo com a direção.

Suspirou novamente! Sabia que a batalha jamais acabaria!

Sabia que anjos existiam, que tentavam ajudar. A falta de segurança e fé em si mesma inutilizaram o aviso para a mudança.

Mais um aprendizado!

Confiança e trabalho para ouvir os anjos em meio aos demônios!

Início e Fim

Fui criada no meio das galinhas e patos, plantas e árvores... a manifestação da natureza externa também ficou interna! Fui criada no meio do povo, do trabalhar e do pouco ganhar, dos colegas que chegavam à escola com fome e dela saíam sem. Fui criada no meio de lares em que mulheres trabalhavam em casa e os homens fora.

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Gostei muito de trabalhar na Escola Técnica Agropecuária Visconde, em São Leopoldo, na Feitoria. Lá fiquei por menos de um mês, mas no painel da experiência docente e de vida, lá permanecerei para sempre!

Escola linda, rodeada de natureza por todos os lados! Alunos internos, com estudos anteriores fracos, mas fortes na questão da terra, e por ela seriam fortes nos estudos. Alunos que declamavam! Através deles voltei a declamar. Aulas inesquecíveis! A gramática e a declamatória, palmas e palavras.

Amarga opção! Permanecer no contrato ou ir ao encontro da nomeação? Deixar a bela escola e os belos alunos e colegas ou ficar? O incerto não quis assim permanecer!

Antes de partir, correção de redações! A declaração de amor à terra!

· Sinto saudade de ver o pôr-do-sol tomando chimarrão com meus pais e irmãos.

· Gosto da época das colheitas, de voltar para casa muito cansado e suado, mas feliz.

· Gosto de andar de cavalo pelo campo fora.

Também estou longe da minha terra natal! Também sinto saudades da família e das galinhas! Por isso choro, de felicidade! Sou como vocês, queridos alunos! Saí com o objetivo de ganhar a vida, hoje aqui estou! Ganharão a vida, com toda a certeza!

Hoje! Escola Municipal Santa Rita de Cássia, Gravataí.

Turmas com características de EJA, no Ensino Médio regular.

Pergunta: · Quando cai a noite, o que vocês mais querem?

Surpresa: · Esquecer do meu dia! Que não fiz nada! De contar as moedas para poder viver! Nunca trabalhei, só fico em casa!

Assim vou te conhecendo, querida aluna! Trabalhas muito, sim! Serviço de casa é dobrado! Mas se queres um trabalho fora para melhorar a renda no lar, se assim queres também como satisfação pessoal, aí está: estudo.

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Resultado final

A vida caminha!

Ando também!

Não com duas pernas

Mas com muitas!

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ENCAIXANDO AS PEÇAS DE UM QUEBRA-CABEÇAS 1

A primeira reflexão que surgiu quando a presente atividade foi proposta foi a indagação de que sentido tem o meu trabalho, para quem se destina esse caminho de educadora que busco seguir a vida toda. Dessa forma, não posso deixar de dedicar a motivação para mais esta caminhada aos educandos da Educação de Jovens e Adultos de Sapucaia do Sul, que me permitiram ter esperança na construção de um futuro melhor por meio da educação, acreditando que a missão do educador faz diferença e por fazer, também, com que eu percebesse que para aprender não há idade.

Em um largo rio de difícil travessia, havia um barqueiro que atravessava as pessoas de um lado para o outro. Em uma das viagens, iam um advogado e uma professora. Como quem gosta de falar muito, o advogado perguntou ao barqueiro: Companheiro, você entende de leis? Não, respondeu o barqueiro. E o advogado compadecido: é pena, você perdeu a metade de sua vida! A professora muito social na conversa: seu barqueiro você sabe ler e escrever? Também não! Respondeu o remador. Que pena! Condói-se a mestra. Você perdeu a metade de sua vida! Nisso chega uma onda bastante forte e vira o barco. O canoeiro preocupado, pergunta: Vocês sabem nadar? Não responderam rapidamente. Então é uma

1 Memorial de Elizabet Petersen.

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pena! Conclui o barqueiro - vocês perderam a vida toda! Não há saber mais ou menos: há saberes diferentes! (Freire).

Quebra-cabeças sempre foi algo que me fascinou. Lembro que desde que era garotinha e ficava olhando meus irmãos mais velhos, montar um daqueles quebra-cabeças complicados com muitas peças, me perguntava que pecinhas mágicas seriam aquelas capazes de dar forma e cor a coisas muito variadas, a elementos vivos.

Um dia, não resisti e perguntei a um de meus irmãos, porque ele gostava tanto de quebra-cabeças e ele me disse algo que ficou martelando na minha cabeça: „quebra-cabeças são como a nossa vida, vamos testando os encaixes e fazendo-os de modo a dar forma ao que nós somos e ao que nós fazemos‰. Conto isso, nesse momento, para justificar a forma com que se apresenta o meu memorial.

Quando me foi proposto que fizesse um memorial formativo e me foi apresentada essa possibilidade de reflexão de minha trajetória de vida profissional até o momento, primeiramente pensei em ter como recurso um formato de Calendário Escolar, pois este é muito presente em meu dia-a-dia profissional na Secretaria de Educação do município de Sapucaia do Sul, sendo ele um dos meus instrumentos de trabalho. No entanto, refletindo um pouco mais, me dei conta de que um calendário escolar é algo bastante necessário para o processo gestacional da educação, ao mesmo tempo que uma exigência para que tenhamos uma uniformidade nos processos de educação pública. Só que, também, um calendário é algo muito fixo e impositivo, as demandas de regras e prazos com os quais lutamos diariamente. Afinal, hoje em dia parece que todo mundo anda sempre com um relógio em uma das mãos e um calendário em outra.

Se o que me inspira é um propósito de educação, bastante alicerçado nas idéias do mestre Paulo Freire, o calendário é importante, sim, mas é somente mais uma das peças do imenso quebra-cabeça que é ser educador no Brasil.

Temos vivenciado continuamente muitas mudanças, principalmente a partir das décadas de 80 e 90. Estas mudanças se apresentam não somente de

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maneira localizada, mas em nível mundial. Refletem-se em todas as áreas: econômica, social, política e cultural. As instituições escolares, por sua vez, não ficam à parte destas mudanças e vêm sendo pressionadas a repensar seu papel diante destas transformações que ocorrem na sociedade.

A razão, a ciência e a técnica foram muito desenvolvidas e continuam em larga escala de desenvolvimento. No entanto, Costa revela que basta olhar o noticiário atual para perceber o quanto a ciência, a razão e a técnica afastaram os indivíduos de ideais mais humanos, como:

- Na relação consigo, o homem parece cada vez mais marcado pela ansiedade, por frustrações e pelo medo, entregando-se aos anestésicos da cultura de massas.

- Na relação com os outros, o individualismo, a competição, a exploração e o uso instrumental do ser humano marcam as relações interpessoais, enquanto que, no plano das relações coletivas, dentro das nações e entre as nações, o cinismo e a força bruta parecem ganhar cada vez mais espaço.

- Na relação com a natureza, a quebra sistemática dos ecossistemas vai desequilibrando as bases dos dinamismos que sustentam a vida, gerando consequências como a diminuição da biodiversidade, os buracos na camada de ozônio, comprometendo o direito à vida das gerações futuras (2005).

Constata-se, nas afirmações de Costa que a sociedade está em crise. E, em grande parte, o próprio homem encaixou as peças desse quebra-cabeça sem cor e sentimentos. Só que eu acho que não podemos nos conformar, por isso que eu decidi ser educadora e continuar buscando sempre aprender um pouco mais e me aperfeiçoar.

Paulo Freire sempre acreditou que o meio é muito importante na formação do indivíduo. Concordo plenamente com ele e, é por isso que levanto todas essas questões. Sei que a minha educação foi e é baseada no meio em que

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estou inserida e nas influências que recebo deste. Assim como sei que esse meio complexo pode ser mudado por meio da educação.

Essa é parte de minha história. Nasci no ano de 1961 no município de Sapucaia do Sul, do qual nunca me desvinculei. Por ser a caçula da família, minhas irmãs sempre disseram que eu tive muitas regalias. Digo que não, mas no fundo acredito que elas podem ter um pouco de razão, mas estas regalias que elas falam me fizeram bem, pois me despertaram desde cedo um espírito crítico e contestador. Nunca me conformei com o que me era apresentado, sempre acreditei nas entrelinhas.

E, dessa forma fui crescendo. Ingressei aos sete anos na escola e sempre gostei bastante de estudar. Mas minha família sempre enfrentou dificuldades financeiras e ainda menina tivemos a perda de minha mãe. Eu tinha sete anos. Desde então, perdi todas as regalias e vi minha família se desestruturar com a ausência contínua de meu pai e o fato de ter que encarar a vida de outra forma. Quando eu tinha treze anos tive que abandonar os estudos para ajudar minha irmã no seu armazém, assim como faziam e fazem até hoje milhares de crianças e jovens oriundos de famílias carentes no Brasil.

Pesquisas de educação sempre apontam índices alarmantes de evasão escolar. Daí sempre surgem os mais diversos debates sobre a importância de estudar, porém a realidade diária nos mostra que nem sempre é assim, que muitas vezes temos que sacrificar o estudo em troca do pão de todo dia.

Com catorze anos, consegui um emprego em um supermercado da cidade e tive pela primeira vez minha carteira profissional assinada. Após dois anos, deste emprego fui direto para outro, onde ganhava a mesma coisa, mas com cumprimento de horário em que teria a oportunidade de voltar a estudar.

Esse sempre foi meu desejo. Sempre me inspirei muito na mãe de uma amiga, Dona Aurealícia, que era professora, e esta é outra peça do meu quebra-cabeça com encaixe perfeito: a cena de Dona Aurealícia entrando e saindo de casa com seus cadernos nos braços.

Retomei os estudos e segui adicionando mais peças na minha trajetória. No ano de 1980, tive um divisor de águas, com dois grandes acontecimentos na minha vida: meu casamento e o meu ingresso no curso de magistério em uma

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escola particular no município de Esteio, após completar o Supletivo. Como eu fiz supletivo em duas etapas, tinha muitas dificuldades de acompanhar a turma, mas isso não seria o motivo que me faria desistir de meu sonho de ser professora. Entretanto, outros dois fatos me fizeram parar novamente meus estudos. Meu marido foi transferido para a cidade de Taquara para gerenciar uma filial da empresa em que trabalhava e a chegada de nossa primeira filha. Outra vez enfrentava um novo desafio, arrumar alguém que cuidasse da Débora para que eu pudesse retomar meus estudos, em uma cidade que eu não conhecia ninguém, ambiente novo e sozinha. Mas não desisti, matriculei-me na escola Santa Terezinha, e lá eu fiz meus dois anos de magistério que faltavam.

Minha história, assim como a de muitos outros brasileiros, se encaixa perfeitamente em uma campanha publicitária veiculada por bastante tempo, que buscava uma valorização do povo brasileiro. Baseada em histórias de superação tinha o slogan: „sou brasileiro e não desisto nunca‰. Creio que essa é uma grande verdade para nós que enfrentamos no dia-a-dia um país com tanta desigualdade. É inegável a força que temos e a esperança que se renova sempre. Paulo Freire, Rubem Alves e tantos outros são exemplos disso, de que mesmo com tantas dificuldades que se constata, nunca podemos desistir.

É esse sentimento também que faz meu olho brilhar, quando vejo em cada um dos jovens e adultos que passam por nossas escolas em projetos EJA. A vontade de superar as dificuldades, de acreditar e ter esperança que podemos fazer um final diferente.

Depois que terminei o Curso de Magistério, voltamos a morar em Sapucaia do Sul e fui fazer o estágio, sendo efetivada pela Prefeitura de Sapucaia do Sul para trabalhar na área da educação, logo em seguida. Trabalhei por quatro anos em salas de aula, quando decidi pedir demissão, para ter mais autonomia sobre meu tempo, pois nesta época nós já tínhamos o nosso segundo filho e ajudar a cuidar da empresa de prestação de serviços e fornecimento de materiais em ajardinamentos do meu marido. E, por catorze anos, fiquei totalmente desligada da educação, mas nunca deixei de sentir-me uma educadora.

Em 1999 prestei vestibular. Ingressei na universidade com 39 anos, porque tinha prestado um concurso público na área da educação para nível 1

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(magistério), e aguardava ser chamada. Nessa época eu tinha uma Floricultura que já tinha catorze anos de existência, tempo no qual meu certificado de educadora ficou „adormecido‰.

Retomei minha trajetória na área e diretamente em sala de aula. Esse período durou pouco, mas foi muito intenso. Acredito que as peças se encaixam na hora certa, pois toda a experiência que trazia comigo me fazia ser educadora por amor, por comprometimento e por acreditar naquilo, muito mais do que buscar uma renda.

Como destaca Fonseca o ser humano não chega à escola „zerado‰ e dali começa a escrever sua personalidade e história. Ele já chega à escola com muitas referências e influências do meio em que vive e de sua família. Esta, por sua vez, está intimamente ligada à sociedade, a qual pertence (2002, p. 36). Dessa mesma forma está o professor que chega à escola com toda a sua bagagem de vida, seus sentimentos, traumas, frustrações e conquistas.

Reconhecendo isso, fui criando minha identidade enquanto educadora, pois segundo destaca Nóvoa:

A identidade não é um dado adquirido, não é uma propriedade, não é um produto. A identidade é um lugar de lutas e de conflitos, é um espaço em construção de maneiras de ser e de estar na profissão. Por isso, é mais adequado falar em processo identitário, realçando a mesma dinâmica que caracteriza a maneira como cada um se sente e se diz professor (1996, p. 62).

Sempre me senti professora na realidade em que vivemos, com todo o turbilhão por que passamos diariamente. Sempre achei muito errado a forma como a educação se apresentava e isso ficou ainda mais forte nos meus cursos de formação, pesquisas e na prática diária.

Vivemos sob a égide de uma „educação bancária‰, diagnosticada por Paulo Freire, na qual os alunos são sujeitos passivos, sobre os quais despejam-se „conhecimentos‰ previamente definidos e, muitas vezes, desvinculados de sua realidade e de suas vidas, que acabam perdendo seu significado no meio do caminho.

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Muitos autores que me acompanharam ao longo dessa jornada como Rubem Alves e Gadotti, além do contato com professores e colegas de educação deram cor a esta realidade que enfrentamos, em que o ensino é desvinculado da realidade dos educandos e acaba por robotizá-los e não lhes dá oportunidades de crescimento. Funciona mais ou menos como uma nave para o futuro com embarque em locais já marcados e que levam para posições de continuação do sistema.

Sempre busquei combater isso e, por meu jeito de estar sempre em movimento, fui convidada para ser vice-diretora da mesma escola em que lecionava. Nesse momento, percebi como é difícil administrar uma escola, verificar as práticas desenvolvidas pelos colegas, e o que os educandos faziam para não assistir as aulas, porque muitas delas não tinham nada que pudesse ser interessante para eles. Muitas vezes fui abordada por alguns alunos que me perguntavam quando eu iria voltar a dar aulas. Uma vez uma aluna me disse algo que me emocionou muito e me fez ver que estava no caminho certo: „adoro suas aulas até o cheiro é diferente!‰

Quando eu recebi o convite, em janeiro de 2005, para ser Coordenadora geral de Educação, sem ainda ter terminado a minha graduação, faltando dois semestres, fiquei muito orgulhosa pela confiança em meu trabalho e sabia que a missão era grande e muito valiosa. Foi um reconhecimento em minha trajetória perceber que meu olhar de educadora já não podia ser para uma sala de aula com trinta alunos, ou para uma determinada escola com quinhentos alunos, mas sim, para vinte e seis escolas e quinze mil educandos.

Muitas peças se encaixaram então e, dessa forma, eu continuei mesmo após a conclusão do curso de graduação. Ao escolher uma área para focar meu curso de Especialização acabei fazendo um balanço geral de minha vida e de minha trajetória profissional até o presente; acabei percebendo que estudei em períodos de vida fora dos padrões normais, sempre soube o que era ter que assumir responsabilidades desde cedo e conheço bem a realidade enfrentada por todos os indivíduos que recorrem aos projetos de Educação de Jovens e Adultos. Assim, acredito que vale a pena investir em algo na área da educação que domino bem e na qual acredito.

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Minha história com a Educação de jovens e adultos, vem desde antes de cursar a faculdade, pois eu também conclui meus estudos depois do período indicado. Acredito que a função do educador é muito complexa e, como define Gutiérrez:

não é ficar com os braços cruzados, vestindo o casaco do comodismo, mas sim, o educador tem a função de buscar motivar seus alunos à apontar novas formas de reverter esses tempos de crise, ajudando pôr em prática a chamada cidadania planetária, em prol de todos e não de uma minoria (2000, p. 22).

Conforme destaca Gadotti

a cidadania planetária deverá ter como foco de superação da desigualdade, a eliminação das sangrentas diferenças econômicas e a integração a diversidade cultural da humanidade (apud Gutiérrez, 2000, p. 23).

Volto novamente a uma tecla bastante „batida‰ por autores, políticos, pesquisadores e até mesmo cidadãos em geral de que „toda sociedade começa e se fundamenta com a educação‰, ou ainda, „a educação é o futuro da nação‰. Assim, os educadores precisam absorver em sua prática estes termos para sair do estágio de hibernação e apatia, buscando fazer a diferença em sua prática, ir do discurso à teoria.

Busquei lançar projetos que aproximavam o Hip Hop das escolas e, procurei incentivar o espírito crítico, a autonomia e valores humanos nos nossos educandos, indo além dos currículos formais e já empoeirados de um sistema que não deu certo. Segundo Boleiz Júnior, é necessário que se forme uma „utopia possível‰, ou seja, „uma consciência nova que deve supor o respeito pelo semelhante, independentemente de quem ele seja e de onde ele esteja‰ (2000).

Muito tem se falado de que as pessoas têm que aprender a conhecer, aprender a viver juntas, aprender a ser e aprender a fazer. Entretanto, para que isso aconteça, é necessário que as pessoas aprendam a sentir, mas sentir o belo e o bom.

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A cultura dominante tem como emoção fundadora o medo, acarretando muitas consequências negativas para as pessoas. O verdadeiro, o bom para o conjunto têm que fazer parte das pessoas para que possa haver a preocupação com o outro e não somente consigo mesmo (Boff, 1996).

O laço afetivo que une os profissionais da educação aos educandos faz a profissão ser diferente das demais, pois quanto mais se ensina, mais se aprende.

Ainda tenho um longo caminho a percorrer, pois espero que meu quebra-cabeça esteja distante do encaixe final. Mas ele continua me atraindo muito, pois a possibilidade de acrescentar na minha profissão faz com que ele vá tomando cor e forma a cada novo passo, a cada nova descoberta.

Essa montagem do quebra-cabeça também evidencia a necessidade de realizarmos profundas reflexões sobre a EJA e o que se deve buscar na mesma, através de elementos para uma aprendizagem atrativa e coerente para que o aluno acredite que o que ele aprende na escola tem utilidade para sua vida e para transformação da sua vida e não somente para a reprodução do sistema excludente. Eis aí uma tarefa nada fácil, mas como diz a cultura popular, „os feitos grandiosos nunca são fáceis‰. Se já conseguimos bastante, não custa nada continuar tentando sempre e cada vez mais!

Referências:

BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano. São Paulo: Schwartz Ltda., 1996.

BOLEIZ JÐNIOR, F. Carta da Terra para crianças. Campinas: Papirus, 2000.

COSTA, A. C. D. G. Por uma educação interdimensional. São Paulo: Hedgien Griffo, 2005.

FONSECA, M. L. Construindo caminhos com a educação. Petrópolis (RJ): Vozes, 2002.

GUTIERREZ, F. Ecopedagogia e cidadania planetária. Petrópolis (RJ): Vozes, 2000.

NŁVOA, A. As ciências da educação e os progressos de mudanças. IN: PIMENTA, F. G. Pedagogia, ciências da educação. Petrópolis (RJ): Vozes, 1996.

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TRAJETŁRIA DE UMA PROFESSORA: SEUS SABERES, VALORES E AMORES1

Amor da minha vida Daqui até a eternidade

Nossos destinos foram traçados Na maternidade

Paixão cruel, desenfreada Te trago mil rosas roubadas

Pra desculpar minhas mentiras Minhas mancadas

(Trecho da música Exagerado - Leoni)

Apresentação

Em abril de 2008 surge uma necessidade em meu caminho: a escrita de um memorial formativo, para ser entregue ao final do primeiro módulo do Curso de Especialização em Educação Profissional Integrada à Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

1 Memorial de Josiane Coelho dos Passos. Dedicatória: Para Anne Caroline, amor da minha vida.

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Mais precisamente no dia cinco de abril o professor Alexsandro dos Santos Machado, o qual estava substituindo o professor Rafael Arenhaldt, instigou-nos a iniciar a escrita do referido memorial.

Nesta fase da minha vida, na qual trabalho 60 horas semanais e participo deste curso de especialização nas sextas-feiras e sábados, preocupam-me as "mancadas‰ que posso estar cometendo com a minha filha. Nos tempos que posso dedicar-lhe, procuro acarinhá-la e demonstrar o imenso amor que tenho por ela, participando de suas brincadeiras e me deliciando com suas histórias.

Através da escrita deste memorial, enxerguei em minhas mãos a possibilidade de contar a minha trajetória à Anne, meus saberes, amores e valores, transformando assim, a falta de tempo em herança de amor.

Portanto, para elaborar o presente memorial levei em conta as condições, situações e contingências que envolveram os relatos aqui expostos. Procuro destacar os elementos que, marcados por coerências e incoerências e por meio das relações estabelecidas com o mundo, possibilitaram a construção da minha vida privada e profissional.

Além de considerar esse memorial autoavaliativo, acredito que ele acaba se tornando um instrumento confessional de meus sonhos. E por dedicá-lo a ti, minha filha, quero dizer-te que, ao contar a minha história, penso estar narrando fatos verídicos, mas se não for bem assim... digo-te que é assim que a vejo, porque como trata Paulo Freire:

Quem observa o faz de um certo ponto de vista, o que não situa o observador em erro. O erro na verdade não é ter um certo ponto de vista, mas absolutizá-lo e desconhecer que, mesmo do acerto, de seu ponto de vista é possível que a razão ética nem sempre esteja com ele (1996, p. 14).

O ponto de partida

Mamãe nasceu em 1979, quando o nosso país encontrava-se com dificuldades econômicas devido à crise do petróleo. Época em que o general Figueiredo, último presidente militar, assumia o governo do Brasil.

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Sou a terceira filha de uma família de quatro irmãos – dindo Carlinhos, tia Neca e dinda Lisa. A vovó Nita e o Vovô Nito eram microempresários do Bar e Armazém Ipiranga, do qual tenho boas e saudosas lembranças.

Meus pais, advindos da agricultura e com pouca escolarização, precisavam adaptar-se à industrialização, a qual trouxe o comércio como consequência. Percebo em minha mãe uma excelente habilidade lógico-matemática e em meu pai o gosto pela leitura. Era este gosto que transformava cada noite de nossa família em um mágico protocolo. Assim que fechava a porta de acesso dos clientes ao armazém, abria-se a do nosso mundo afetivo, o da família unida.

Era preciso silêncio. O pai colocava os óculos de grau, pegava o jornal, lia-o todo, era o momento mais importante do dia. Nós aprendíamos que os adultos precisavam estar atualizados e o exemplo de vê-lo lendo nos contagiava.

Depois olhávamos o jornal Nacional, respondíamos boa noite ao apresentador, íamos para a cama da mãe ver a novela e, antes de irmos para o nosso quarto, falávamos com Deus cantando e fazendo nossas orações.

Ao revisitar esses momentos consigo depreender que a educação realmente acontece através do exemplo. Aprendi em nossas orações os valores morais, no trabalho digno, que faz levantar cedo todo dia, a certeza de que se pode construir uma família com honestidade e nas leituras de meu pai, só agora percebo, que o encantamento que sentia naqueles momentos formou-me uma pessoa apaixonada pela leitura e me encaminhou ao curso de Letras.

Quem sabe é esta a explicação da certeza pela escolha da Licenciatura em Português e Literatura. E também, pelo meu orgulho em ver em ti, filha, que esse amor pela leitura virou a herança da nossa família.

[...] nas condições de verdadeira aprendizagem os educandos vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinado, ao lado do educador, igualmente sujeito do processo. Só assim podemos falar realmente do saber ensinado, em que o objeto é apreendido na sua razão de ser e, portanto, aprendido pelos educandos (Freire, 1996, p. 26).

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O início da trajetória: educação infantil e ensino fundamental

Desde quatro anos de idade eu já sonhava ser professora, o que era comum para meninas na década de 80, pois tínhamos uma visão romântica acerca da profissão. Embora a sociedade atual não tenha mais essa imagem do professor, ela reina em mim, mesmo aliada a algumas angústias.

Iniciei meus estudos aos cinco anos de idade (1984) na Escola Municipal de 1… grau incompleto Lourdes Fontoura da Silva, a qual frequentei até a 5À série porque, naquele tempo, eram poucas as escolas do meu município que ofereciam o primeiro grau completo.

Filha, na pré-escola, chamávamos a professora de tia Naiva. Chamar a professora de tia, naquele tempo, era referência de afeto e aproximação com a professora. Hoje essa nomeação é considerada depreciativa, o que eu considero correto, em tempos de mal-estar docente, pois o professor não é parente e sim um profissional qualificado para receber este título.

A escola Lourdes Fontoura acentuou a minha escolha pelo Magistério. A diretora da época, Dona Aurealícia Chaxim Bes, mãe da tia Naiva, sempre relatava que só deixaria a escola quando eu estivesse pronta para lecionar lá. Desejo que se cumpriu.

No ano que a Dona Aurea saiu da escola, deixou organizada uma turma para o meu estágio. Para ela foi uma satisfação ter me deixado na nossa escola e para mim, uma honra ter conseguido assumir o meu lugar.

Quando eu estava na terceira série do Ensino Fundamental a apresentadora infantil Xuxa Meneghel, a mesma que te fascina, já contagiava o país com o Xou da Xuxa. Eu era fã dela e por isso meus cadernos tinham suas fotos estampadas.

Quando somos crianças aceitamos passivamente o que a mídia nos oferece. Infelizmente, isso permanece em muitos adultos. Na minha infância, nos 80, a propaganda de massa invadiu os lares dos brasileiros através da televisão, embora ainda tivesse cunho contestatório, porque a grande maioria dos jornalistas eram da esquerda.

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A manipulação do povo, através da mídia, expandiu-se fortemente em duas décadas. O consumismo é o maior problema da sociedade atual. E a escola, produto dela, parece perdida quanto ao seu papel. Entretanto é preciso que a educação abrace essa causa e reformule sua postura, pois dessa forma, encaminhará melhor seus educandos a uma solução para esta problemática, como nos orienta Alexandre Virgínio:

A sociedade deve ser apreendida como um processo em construção. E a escola, como parte, processo e produto desta sociedade, pode ter um papel decisivo, diferenciado, porquanto mais substantivo do que vem tendo há mais de um século. Ela precisa, mais do que curvar-se ao mundo do consumo, procurar desenvolver processos de formação que possam gerar, senão recriar, indivíduos indignados, críticos e curiosos o suficiente, de forma que busquem, a partir de sua educação, uma forma democrática e cidadã de intervenção no mundo (2007, p. 123).

Na Escola Lourdes Fontoura eu fazia parte de todas as atividades extraclasse: apresentações, formação de grupo de danças gaúchas etc. Vejo que a criança participa das atividades da escola com um comprometimento nato e o adolescente traz consigo a timidez ao expor-se, porém quando se sente sujeito do processo, despe-se das desculpas e torna-se protagonista, dispensando muitas vezes, a ajuda do professor.

A primeira frustração da mãe também foi na escola Lourdes Fontoura, na quarta série. A minha professora mostrava-se autoritária para manter o domínio da turma, por isso, provavelmente, eu tenha ficado com medo de pedir para ir ao banheiro. O fato é que ter feito xixi na sala de aula fez com que eu sentisse uma vergonha que parecia não ter solução.

Devido a esse fato procurei ter o cuidado de encaminhar com o maior carinho e paciência a retirada de tuas fraldas e toda a passagem pela fase anal, da mesma forma como procuro fazer em todas as fases da tua vida.

Essa questão de deixar ou não, ir ao banheiro é pauta de todas as reuniões de professores. Ao professor cabe o papel de ser árbitro desse impasse. Ele deve decidir se a ida ao banheiro é necessidade fisiológica ou fuga consentida aos alunos.

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Na sexta série transferi-me para a Escola Municipal de 1… grau completo João de Barro. Com essa mudança, tornei-me aluna grande e troquei as brincadeiras por conversas de adolescentes no recreio.

No ano em que eu concluiria o primeiro grau a grade curricular da 8À série sofreu adaptações. A disciplina de OSPB voltou a fazer parte do currículo e a de Técnicas Domésticas foi substituída pela disciplina de Língua Inglesa, adequando-se assim, às necessidades do mercado de trabalho.

Em dezembro aconteceu a formatura. Eu, como oradora, falei em nome da turma sobre a satisfação de ter concluído essa etapa de nossas vidas. Teu pai assistiu ao evento como meu namorado.

Ensino Médio: a escolha do caminho

Ao concluir o Ensino Fundamental, todo adolescente depara-se com a necessidade de escolher a profissão que almeja seguir. Eu não tive dúvidas em optar pelo Magistério, o inconveniente era saber em qual escola eu iria cursá-lo, pois em nosso município apenas uma escola particular oferecia este curso.

Próximo ao final do ano letivo a Escola Estadual de 1… e 2… Graus Rubén Darío anunciou que abriria no ano letivo seguinte, nove turmas de Magistério. Então eu me matriculei.

Anne, em março de 1994 foi a festa de 15 anos da mamãe. Esta fase da minha vida era de mudança. Nela havia novos colegas, as conversas entre nós encaminhavam-se para o mundo profissional e as nossas curiosidades eram a respeito dele.

Durante o curso de Magistério simulamos muitas aulas, analisamos muitas teorias e criticamos muitas práticas dos professores que atuavam nas escolas. O sonho de fazer diferente e assim transformar a educação nos acompanhava desde o princípio. Talvez porque fazíamos parte de um Brasil que já tinha passado por muitas mudanças e era preciso que ela acontecesse também na educação.

Acreditávamos que o Construtivismo poderia revolucionar e fazer com que nossos alunos, através de suas relações com o mundo, poderiam se tornar

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cidadãos mais autônomos e que nós não recorreríamos aos métodos tradicionais, nos quais os conhecimentos eram transmitidos aos alunos como se estes nada soubessem.

Nós nos pautávamos nos ensinamentos de Freire: „Ensinar não é transmitir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção." (1996, p. 22).

Nosso sonho não foi em vão, pelo contrário. Ele é possível, pois é o caminho para a mudança social que nosso país precisa. Mudança que, permeada na educação, partirá dos cidadãos críticos, os quais formaremos.

Embora o Construtivismo tenha sido mal interpretado pelos profissionais da educação e em muitos casos o tenham confundido com bagunça, caindo assim em descrédito, ele foi caminho para os questionamentos aos métodos tradicionais em prol de uma educação libertadora.

Em fevereiro de 1997 eu e o papai casamos. Houve uma bela festa e, após dezoito dias iniciava o meu estágio na Escola Lourdes Fontoura da Silva. Relacionei-me facilmente com a comunidade escolar, já que era conhecida por todos devido a inúmeras substituições de professores que fiz enquanto era aluna do Magistério. O estágio ocorreu tranquilamente e foi uma experiência animadora, pois recebi bastantes elogios. Em setembro deste ano, realizou-se a formatura.

Após o término do estágio trabalhei durante três meses na Loja Paquetá de Esteio. O trabalho de caixa-crediarista foi uma experiência horrível. Eu sentia uma falta muito grande do ambiente escolar e intrigava-me a idéia de estar formada e não poder exercer a minha profissão.

As inscrições do concurso público para professores em Sapucaia do Sul aconteceram no mês de novembro daquele mesmo ano e, em 31 de março de 1998 tomei posse como professora adjunta municipal, iniciando assim, minhas atividades docentes como alfabetizadora na Escola Lourdes Fontoura da Silva e na Escola Afonso Guerreiro Lima.

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Universidade: é por aqui que se chega lá

Há algum tempo veiculava na televisão a campanha do vestibular da Universidade do Vale do Rio dos Sinos („Unisinos – é por aqui que se chega lá‰). Realmente, a universidade é o caminho que nos conduz a uma profissão, mas mais do que isso, a um compromisso com ela.

Eu sempre sonhei em frequentar a universidade, mas parecia-me um sonho tão distante, pois eu e teu pai estávamos iniciando nossa vida conjugal e nossa condição financeira nos impedia. Papai não concluiu seus estudos na idade adequada, por isso precisaria frequentar as aulas do supletivo.

Embora jovens, a responsabilidade de progredir financeiramente tendo em vista um futuro promissor, nos conduzia a investir, principalmente, em educação. Então, quando eu fui nomeada em concurso público, teu pai matriculou-se no Ensino Supletivo de 2… grau e eu prestei vestibular de inverno. Assim, em julho de 1998 ingressei no curso de Pedagogia da Unisinos, porém algum tempo depois percebi que aquela área da educação não era a que eu buscava.

Ao desvincular-me do curso de Pedagogia ingressei no de Letras Português -Inglês. Enfrentei dificuldade para acompanhar as aulas de inglês, já que este era um déficit da escola pública, pois esta disciplina fizera parte do meu currículo somente na oitava série e no primeiro ano do Magistério.

Era preciso que eu disponibilizasse tempo para frequentar um curso de inglês e, em passos acelerados, correr atrás do conhecimento que não fora ensinado/ aprendido.

Anteriormente eu já havia lecionado português e, nessa época, estava lecionando inglês. Apesar de ter conseguido adquirir um bom conhecimento desta língua estrangeira, com essas duas vivências pude concluir que o foco do meu trabalho é o ensino da Língua Portuguesa.

Em 2004, migrei para Letras Português - Literatura. Um curso belíssimo que junto aos aprendizados que obtive para a minha formação docente, depreendi dos personagens da literatura a interpretação da vida, porque a boa

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literatura é verossímil e desta forma, faz com que o leitor, sujeito do processo, compreenda a vida real.

O maior sonho das nossas vidas, minha e de papai, também se realizou durante a formação universitária. Era primavera, dia 30 de setembro de 2004, quando pela maternidade cruzou em nosso caminho a florzinha mais linda do jardim. Uma florzinha bem planejada, muito esperada e querida, que contagiou nosso lar de alegria – você, Anne Caroline, amor da nossa vida!

Na formação universitária sempre busquei as respostas para as minhas indagações de sala de aula. Fui uma universitária comprometida com o aprendizado e com a busca do conhecimento.

Devido aos sabores e alguns dissabores da vida, o tão sonhado dia da colação de grau ocorreu somente em 2006. Foi um orgulho ser aprovada com distinção pela banca examinadora do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e um prazer indescritível ser aplaudida por todos os meus amores.

Eu sempre me preocupo com teus sentimentos a respeito de ter uma mãe aluna, professora (trabalhadora) e mulher, mas acredito na educação pelo exemplo, e é nessas datas como a da minha formatura, vendo o teu gritinho orgulhoso no momento em que eu era chamada para colar o grau, que legitimo.

Docência: o ponto de chegada

Sou professora desde 1998, na rede municipal de ensino, em Sapucaia do Sul, onde fui nomeada por concurso público, num regime de 40 horas de trabalho semanais.

No primeiro ano trabalhei como alfabetizadora em duas turmas. Em 1999, alfabetizava crianças no turno da manhã e à noite trabalhava como secretária no anexo do Supletivo Vitória, ambos na Escola Lourdes Fontoura da Silva, onde mamãe leciona até hoje.

Trabalhei até 2002 como secretária do Supletivo e também, como professora titular ou de projetos (Inglês e Hora do Conto) nas séries iniciais. No final daquele ano o anexo da escola fechou.

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Como eu já era aluna do curso de Licenciatura em Letras fui convidada a lecionar as disciplinas de Língua Portuguesa para 5À e 6À séries do Ensino Fundamental à tarde e Língua Inglesa para o currículo por atividades pela manhã.

Em 2004 retornei ao turno da noite, agora na modalidade EJA, como professora de Inglês e Português. No turno da tarde permaneci no ensino da Língua Portuguesa.

No ano de 2005 comecei a trabalhar em Informática Educativa com alunos da Educação Infantil à 8À série do Ensino Fundamental e da EJA porque era preciso liberar a vaga de professora de Língua Portuguesa, pois esta seria destinada ao professor aprovado em concurso para a referida disciplina, sendo que eu havia feito concurso para séries iniciais.

Embora soubesse que a vaga de português não era minha por direito, eu já me sentia professora titular da disciplina e pensava que lecionar para crianças não fazia mais parte da minha carreira. Então assumi o Laboratório de Informática Educativa da escola porque acreditava que assim poderia utilizar dos meus conhecimentos da língua portuguesa, manter contato com os adolescentes e também aproximar-me novamente das crianças.

Essa atuação no Laboratório de Informática é enriquecedora, pois a tecnologia envolve os alunos e desperta sua curiosidade para a aprendizagem. A web utilizada com criticidade facilita que o aluno exerça sua capacidade de aprendizagem, como trata Paulo Freire:

Quanto mais criticamente se exerça a capacidade de aprender tanto mais se constrói e desenvolve o que chamamos de „curiosidade epistemológica‰, sem a qual não alcançamos o conhecimento cabal do objeto (1996, p. 21).

No final do ano de 2006, fiz concurso em Sapucaia do Sul para professora de Língua Portuguesa. No início do ano letivo de 2008, fui nomeada para mais 20 horas semanais. Portanto, estou lecionando 60 horas semanais nas disciplinas: Português, Informática Educativa e Educação Artística para o Ensino Fundamental Regular e EJA.

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Pós-Graduação: A caminhada continua

Sempre tive muito medo de não poder continuar estudando, ou melhor, de não ter mais vínculo com Estabelecimentos de Ensino como discente, isso representa, para mim, a estagnação e o atraso, este medo já me acompanhava desde o penúltimo semestre do curso de Letras.

Tenho a convicção de que uma professora competente e comprometida com o que faz busca sempre a renovação, pois nenhuma verdade é eterna, e a educação precisa ser atual.

Ao término do curso de Letras, papai e eu tomamos duas novas decisões: mudaríamos de bairro e, agora, a oportunidade de estudar seria dada a ele. Conseguimos trocar nossa casa por uma próxima ao centro da cidade e, em 2008/01, ele prestou vestibular para Administração de Empresas pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Lembra da faixa de bixo que colocamos para ele, Anne?

Felizmente, como nada nessa vida é por acaso, desemboca em meu caminho o curso de formação de professores para EJA, promovido pelo SENAC e ofertado pela prefeitura municipal. Eu e meus colegas fomos informados do edital de seleção para a Especialização em Educação Profissional Integrada à Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos da UFRGS.

Depois de selecionada, pude prosseguir meus estudos. É para ti entender, filha, que tudo o que desejamos e nos determinamos a conseguir, certamente fará parte da nossa vida.

Tenho interesse em desenvolver meu curso de pós-graduação na linha de pesquisa „Realidade como ponto de partida para ensinar e aprender‰. Um possível título para o meu problema poderia ser o seguinte: „Escolarizar o cotidiano dos jovens e adultos: uma armadilha‰.

O termo „armadilha‰ é proposital, pois pretendo problematizar a corrente que se tornou em nossas instituições de ensino o pressuposto de que, para desenvolver os processos de ensino e aprendizagem, precisamos valorizar os saberes do sujeito e da sua comunidade. Orienta-se que uma prática

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pedagógica de qualidade parte da realidade na qual o aluno vive e trabalha o que se reflete com maior intensidade e recorrência na EJA.

Para Paulo Freire „a leitura de mundo precede a leitura da palavra‰, o que nos faz entender que tudo o que aprendemos não está no mundo por acaso, já que o cotidiano do qual fazemos parte é histórico e cultural e marcado por lutas entre culturas que pretendem impor suas verdades. A partir disso, Clarice Salete Traversini orienta para dois aspectos:

Como temos significado a prática de Âpartir da realidadeÊ para ensinar e aprender na educação de jovens e adultos? Que parcelas da realidade têm sido selecionadas ou privilegiadas para integrar os currículos ou as propostas pedagógicas para jovens e adultos? (2004, p. 97-105).

Tenho como hipótese o fato de partimos de um saber cotidiano do sujeito ou da comunidade para motivar o discente, porém, depois, enquadramos o saber na lógica escolar. Traversini chama essa nossa intenção de „isca‰ para mobilizar os alunos porque qualquer saber trazido à escola precisa ser enquadrado nela.

A realidade, o cotidiano, ou, para dizer de outro modo, o currículo, a cultura e o espaço escolar devem ser propostos como ferramenta para construir um processo educativo menos escolarizante. Tentar novas metodologias, outras maneiras de ensinar e aprender. Dessa forma, dificilmente serei a mesma docente, pois a diferença e a multiplicidade oferecem muitas possibilidades, para que eu continue trilhando no caminho do conhecimento.

Minha filha amada! São as possibilidades que encontramos e criamos em nosso caminho que nos levam a algum lugar. A minha trajetória não é merecedora de horário nobre, ela pertence à vida real. Uma vida de sonhos e de lutas, que muito me orgulho em te contar, porque tu caminhas junto comigo desde 2004.

Que o meu desejo por um mundo mais fraterno e justo possa fazer parte da tua realidade. Quero que saibas que independente das escolhas que fizeres em tua trajetória, ela está unida a minha pelo elo do amor, o maior do mundo!

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Te amo!!!

Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia a autonomia – Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

TRAVERSINI, Clarice Salete. Partir da realidade. Será que algum dia voltaremos? Anais do IV Simpósio Nacional de Educação: Políticas de Professores no Brasil. v.1. Frederico Westphalen: URI - Universidade Regional Integrada do Alto do Uruguai e das Missões.

VIRG¸NIO, Alexandre Silva. Ser professor em tempos de mal-estar na modernidade. In: SCOCUGLIA, Afonso Celso (org.). Educação no tempo presente: práticas e reflexões. São Leopoldo: Oikos, 2007, p. 114-153.

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CARTAS PARA MARIA ANTłNIA1

São Francisco de Paula, 01 de dezembro de 2006.

Gostaria de iniciar este texto lembrando as palavras de um dos/as muitos/as mestres com quem convivi na fábrica: meus/as queridos/as educandos/as trabalhadores/as. Vanderli escreveu um dia:

Vivendo a vida que levo Vivendo a vida que tenho Vivendo a nossa era Vivendo a longa espera Vivendo a vida nobre Vivendo a vida de pobre Vivendo a vida que Deus nos deu Vivendo a vida que ele nos tira Vivendo a vida mentira Vivendo pelas estradas Vivendo a noite estrelada Vivendo abrindo compasso (...)

1 Memorial de Maria do Carmo Canani.

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Vivendo, vida, viver... Lembro-me, então, das palavras de Olímpio, outro mestre trabalhador que me (re)ensinou a escrever, a pensar sobre a função social da escrita e sobre a própria vida:

Nasido: 21 de Setembro: 1938 Flio de Marcelino Braz dos Santos: Maria Macemilia dos Santos

Família pober nuga tive e tudo porqe tina qetrablira

Ajudar opai nafazeda porqe ganava muito poço

Naudava para oalimto Senpe pecava nodia melhor

Nos era 11: Filios garnde epiqnos ganav tezetos mires poeano para Porbe vir nafazeda

qenos trabaliva tenpo rui dias melor pesava udia deusia majudar Pacei mita fome nuga

dezisti lutemito dia meliopr virão cevoce tiver feedeus enosa ceinora e nos amicos tudo

vaidae certo nuga e tarde parvecer ojania Anosa vidaemtaboa Dabralutar porela naoe

defice devecr e oras boas erue ogetudo mudo par melior (...).

A história de Olímpio repete-se na história de vida e exclusão de muitos/as trabalhadores/as. Na verdade, repete-se um pouco, também, no texto da minha vida. Sou Maria do Carmo Canani, 43 anos, filha de Aura da Rocha Canani, costureira por cinquenta anos, e de Gentil Protásio Canani, açougueiro por mais de vinte anos, mas, também, tropeiro, vendedor de roupas, entre outros ofícios. Nasci em São Francisco de Paula, no dia 8 de março de 1963 (certamente, não foi por acaso), e sou a quinta das cinco Marias: Eva Maria, Miriam Jussara (que também é Maria), Maria Luiza, Maria da Graça, Maria do Carmo. Mas havia, também, o Protásio Joaquim, o César Luís, o Túlio Vinícius e o José ˜ngelo. Dos nove, ficamos em quatro: Protásio, José, Maria Luiza e eu.

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Da infância pobre, lembro poucas coisas (muitas, talvez, não queira lembrar). Lembro-me, por exemplo, de que, por volta dos oito anos, pedia livros emprestados a um vizinho para poder ler (minha grande paixão, que me levaria, anos mais tarde, a cursar Letras). Lembro-me, também, de que, desde muito pequena, brincava de aulinha num quarto velho de minha casa, elegendo como alunos/as alguns/as bonecos/as de papel que eu construía e colava nas cadeiras, como se fossem gente.

Lembro-me, ainda, de dormir escutando as histórias de minha vó Adolfina, que por um tempo morou conosco. Ela me embalava e contava coisas interessantes do tempo em que vivera pelas casas dos/as fazendeiros/as, como uma das primeiras professoras do município, na época em que não havia escolas por aqui. Aliás, o „ofício de mestra‰ dizia ela ter aprendido com meu bisavô Maximiano, que, muitos anos depois, viraria nome de escola: Escola Municipal Maximiano Augusto da Rocha (hoje desativada), na localidade de Faxinal dos Pelúcios, distrito de Tainhas. Contava minha vó que ele chegara ao Brasil com 12 anos, vindo de Minho, Portugal, onde teria iniciado seus estudos. No Brasil, ficou no Rio de Janeiro por algum tempo, indo depois para Minas Gerais, onde permaneceu por alguns anos. Não continuou seus estudos, pois, desde cedo, teve que trabalhar para sobreviver. Mas era um grande estudioso, lia muito, procurando aumentar cada vez mais seus conhecimentos. Com 19 anos, chegou em São Francisco de Paula, e então começou sua carreira como professor, e lecionava para os filhos dos fazendeiros, em suas casas, tendo sido, mais tarde, nomeado professor municipal. Sua primeira escola foi aquela que depois ganhou seu nome. Nessa caminhada, foi inspirando minha vó e uma outra filha a serem também professoras.

Anos mais tarde, analisando alguns documentos e cadernos de minha vó (do início do século XX), percebo que, apesar de sua pedagogia ser um reflexo da época, intuitivamente ela fazia um trabalho diferenciado (por exemplo, o estímulo à produção da poesia e da escrita de cartas, e os cálculos ligados ao cotidiano das pessoas daquele lugar). Um outro fato interessante: o caderno de chamada ou diário de classe apresentava dados muito importantes sobre cada um/a dos/as alunos/as, bem mais do que os diários de hoje. Importantíssimo: minha vó contava que, geralmente, quem participava de sua aula eram os/as filhos/as dos/as fazendeiros/as, raramente um peão. Na

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verdade, ela deve ter sido bastante discriminada na época, pois foi mãe solteira em 1918. Uma mulher forte, persistente, mas que sofreu muito, assim como minha mãe.

Pensando em minha mãe e em meu pai, começo a lembrar-me de outras histórias. Lembro-me, por exemplo, de ouvir minha mãe contar que, em alguns momentos, nossa família chegou a não ter o que comer. Mas lembro-me, sobretudo, de duas histórias que até hoje me entristecem e me revoltam.

Uma dessas histórias, ouvi várias vezes de minha mãe. Contava ela que, aos seis anos de idade, lavava roupa na fonte (muitas vezes, com o frio da neve) e também escovava a casa enorme e velha da família. Tudo isso fazia para agradar os tios, por quem foi criada. Ingenuamente, ela dizia que os tios eram muito bons para a sobrinha. Minha mãe quase ficou sem ser alfabetizada, apesar de minha avó ter sido professora. Quando visitava a filha, de vez em quando, vó Adolfina ensinava-lhe um pouco do alfabeto. Ainda assim, minha mãe aprendeu a ler e a escrever, muito bem. Por sinal, lembro que ela tinha o hábito de escrever, no mesmo caderno em que tirava as medidas de suas freguesas de costura, sobre coisas que a entristeciam ou alegravam (uma vez, encontrei, em um de seus velhos cadernos de medidas, um desabafo que fez por causa de uma decepção que teve com meu irmão). Em minha experiência como educadora de adultos, sempre me lembro dela quando vêm à tona as histórias de vida e trabalho, quando alguém se encoraja a escrever sobre isso. Devo dizer que minha mãe é uma de minhas inspirações para abraçar essa causa - a educação de adultos. Quando ela „mudou de lado‰, no dia 30 de dezembro de 2004, aos 86 anos, escrevi um pequeno texto, que lembro neste momento:

86 anos costurando vidas... Quase sempre, tendo apenas a agulha da fé, a linha da persistência e alguns poucos botões de esperança... Muitas vezes, eu sei, machucando os dedos e a alma com as alfinetadas das dificuldades, da incompreensão, da solidão no quarto da costura... Muitas vezes, já com os olhos e o coração cansado, ajudando a remendar nossas dores, nossas limitações, nosso desânimo... Mas era preciso continuar tecendo os dias... 86 anos costurando, desmanchando, remendando, tentando enfeitar o tecido das nossas vidas... E hoje, no arremate desta vida, sabemos que a peça que nos entregas precisa continuar sendo costurada, talvez fazendo alguns ajustes ou acrescentando alguns acessórios

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que, com certeza, sonhaste para a tua e para as nossas vidas: alargar a fé e a união, estreitar o egoísmo e a intolerância, encompridar o perdão e a caridade... Obrigada, minha amiga querida, por tudo o que me ensinaste, na tua oficina de costura, sobre amar e viver... Descansa em paz. Que Deus te ilumine e te acompanhe sempre!!! Da amiga, eternamente, Maria do Carmo 30/12/04.

A outra história era meu pai quem contava. Por incrível que pareça, sua família era considerada tradicional, bastante rica. O que ocorreu foi que os/as mais espertos/as acabaram „passando a perna‰ nos/as mais ingênuos/as. Foi o caso de meu pai, que acabou sendo empregado de meu tio, fazendeiro, e trabalhando muitos anos em um açougue do irmão, sem salário. Só saiu de lá quando a doença não mais lhe permitiu continuar trabalhando, sendo substituído por meu irmão, que também acabou sendo „escravo‰ de meu tio, enriquecendo-o mais ainda. Lembro-me agora da música Cidadão, pensando na relação entre o que um/a trabalhador/a produz e o que consegue usufruir dessa produção:

tá vendo aquele edifício, moço/ ajudei a levantar foi um tempo de aflição era quatro condução duas pra ir, duas pra voltar hoje depois dele pronto „óio‰ pra cima e fico tonto mas me vem um cidadão e me diz desconfiado: tu ta aí admirado ou ta querendo roubar? Meu domingo ta perdido Vou pra casa entristecido Dá vontade de beber E pra aumentar o meu tédio Eu nem posso „oiበpro prédio Que eu ajudei a fazer

Apesar de todas as dificuldades enfrentadas por minha família, fui a única dos nove filhos a seguir adiante nos estudos, ainda que tenha ingressado

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na universidade somente aos vinte e sete anos. Antes disso, após o Magistério, cursei dois anos de Estudos Adicionais em Alfabetização, na FEEVALE – 1986 a 1988.

Do chão de uma família pobre, na pequena São Francisco de Paula, ao chão da universidade, uma grande travessia... Considero que foi no campo profissional que melhor consegui desenvolver o exercício da rebeldia (e é incrível como as coisas foram encaminhando-se para isso). Já no Curso Magistério (1977 – 1980), pensava eu que a educação tinha que mudar. O que mais me indignava era ouvir os/as educadores/as (ou professores?) dizerem que o ensino tinha que ser algo significativo, voltado à realidade dos/as alunos/as, e, ao mesmo tempo, perceber que sua prática educativa não tinha nada disso.

Concluí o Curso Magistério em 1981, e em 1982 comecei a lecionar, trabalhando com crianças de pré-escola. Trabalhei na escola pública (municipal e depois estadual, como professora concursada) até o ano de 1988. Nessa época, fui bastante discriminada nas escolas onde trabalhava, pois tentava fazer algo diferente. Como trabalhava de forma isolada e sem ser compreendida ou apoiada pelos colegas e pela direção, meu trabalho era muito questionado. Dessa experiência, uma lembrança bonita, apesar disso tudo, é a do grupo de teatro que organizei com as crianças da quarta série, junto com uma outra colega (eu escrevia as peças, e a gurizada envolvia-se de uma forma muito interessante – íamos para a escola até aos domingos, criar roupas e cenários).

Lembro-me de que, nesse tempo, escrevi uma peça que era uma espécie de fábula sobre a vida em sociedade, e uma das personagens era o Macaco Pinduriba Peludo, prefeito da cidade e corrupto. Havia também a Coelha Orelhucha Coelhudo, uma professora revolucionária, que organizava com seus/as alunos/as um protesto, na Semana da Pátria. A peça falava de corrupção, injustiça social, liberdade, numa linguagem infantil. No dia em que a apresentamos na escola (por sinal, a mesma escola onde estudei e concluí o Curso Magistério), estava presente, na plateia, o pessoal do Núcleo do CEPERGS (Centro de Professores do Estado do Rio Grande do Sul), que elogiou o trabalho e convidou-nos a apresentar a peça em Taquara (sede do Núcleo). Para surpresa minha, horas depois, fui chamada por uma das vice-diretoras, que me questionou sobre o sentido crítico do texto e determinou que

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não faríamos a apresentação. O mais triste, ou mais grave, é que, de fato, a peça acabou não sendo apresentada. Mas eu era teimosa, e continuei escrevendo.

Anos depois, numa época de greve, na mesma escola, eu e um aluno do Ensino Médio (segundo grau, na época) escrevemos uma peça que tinha a ver com a Velha República e a Nova (foi logo depois que Tancredo Neves morreu). A peça foi apresentada por um grupo de professores/as e de alunos/as da escola, mas, dessa vez, não houve nenhum impedimento à apresentação.

Em 1989, fui convidada a fazer parte da Assessoria Pedagógica da Secretaria de Educação, Cultura e Desporto de São Francisco de Paula. Apesar de nesse período ter ficado fora da sala de aula, esse foi um tempo de „graça‰ em minha vida profissional, sobretudo pela convivência com os/as educadores/as e educandos/as da zona rural, que me ensinaram muito sobre educar, aprender, viver. Através desse trabalho, ouvindo relatos de educadores/as, educandos/as e pessoas das diferentes comunidades, visitando escolas no „fundo do mato‰, coordenando a formação de educadores/as, participando de vários seminários e cursos, tive a oportunidade de repensar-me como pessoa e como educadora.

Nessa época, tínhamos mais de sessenta escolas municipais, sendo mais de cinquenta rurais, funcionando em regime de classes multisseriadas. Uma experiência muito gratificante dessa época foi a construção do Jornal Construir, cuja coordenação ficou sob minha responsabilidade. Esse jornal, publicado mensalmente, era expressão da proposta de sociedade e de educação em que acreditávamos e que estávamos buscando construir, embora com muitos limites. Para se ter uma ideia, o veículo era todo feito na Secretaria, quase de forma artesanal (texto datilografado, diagramação feita por uma colega, letreiros por outra, e por aí afora). Mas o bonito era que ele registrava várias vozes, várias expressões, ou procurava fazer isso: educandos/as, educadores/as, comunidade, equipe da Secretaria de Educação, Cultura e Desporto.

Em 1993, voltei à escola pública (estadual), como professora de Língua Portuguesa nas turmas de 5À à 8À série (estava já cursando Letras, desde 1990, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS). Nada havia mudado nessa escola, e eu, de novo, sentia-me frustrada, impotente.

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Mas houve, então, nessa época, algo que revolucionou minha vida profissional, pessoal e social. Depois de tantos anos no chão da escola formal, um grande desafio: pisar o chão de uma fábrica como educadora de Língua Portuguesa no Projeto Supletivo de Trabalhadores (convênio entre a Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS – e empresas da Grande Porto Alegre). Foi nesse chão que comecei a descobrir o verdadeiro sentido de ser ou aprender a ser educadora (e, mais do que isso, educanda). Porém, lembro que o início dessa experiência, de certa forma, representou pisar o „chão do medo‰.

Como em todo processo educativo, houve um momento de estranhamento - nesse caso, também pelo fato de ser a primeira vez em que entrava em uma fábrica. Vem-me à mente e ao coração, neste momento, o texto de um educando, e é preciso, então, contar um pouco da história desse texto. No último encontro de Língua Portuguesa, na turma de Gérson, levei para a fábrica um texto em homenagem à turma (um hábito que construí ao longo dos anos: sempre que encerrava o trabalho em uma turma, escrevia alguma coisa para os educandos/as). Quando fui lê-lo, já no final do encontro, Gérson disse que ele também havia produzido um e que gostaria de lê-lo antes de mim. Propus, então, que ele fosse à frente e fizesse a leitura do seu texto, e disse que eu sentaria no seu lugar. Ele disse que eu tinha que sentar no meio do círculo, bem no centro da sala, e escutar. O texto não foi lido, foi dramatizado! Gérson, negro, tão tímido no início do processo, consegue, poeticamente, através da escrita, mostrar toda a caminhada de sua turma, de medo e coragem. Principalmente, o educando consegue, como ninguém, falar do medo do desconhecido, por parte da educadora e dos/as educandos/as, ocorrido no início da experiência na fábrica.

Foi nesse chão, de tantas contradições, que iniciei meu aprendizado social e político no campo da educação. Foi ali, entre o barulho das máquinas e os cheiros tantos da fábrica, mas, sobretudo, com aquelas mulheres e com aqueles homens, que eu comecei a ter melhor compreensão de diferentes realidades e do mundo do trabalho (inclusive, do mundo do meu trabalho), da minha própria condição humana. Acho que ali comecei a compreender um pouco melhor, também, a história de minha mãe, de meu pai, de meu irmão, de tantos outros Josés e de tantas outras Marias, ou seja, a história dos/as

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excluídos/as. Excluídos/as, inclusive, da história oficial da humanidade, lembrando o texto Perguntas de um Trabalhador que Lê:

Quem construiu Tebas, a de sete portas? Nos livros estão os nomes de reis. Arrastaram eles os blocos de pedra? E a Babilônia várias vezes destruída – Quem a construiu tantas vezes? Em que casas da Lima dourada Moravam os construtores? Para onde foram os pedreiros na noite em que a Muralha da China ficou pronta? A grande Roma está cheia de arcos do triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem triunfaram os Césares? A encantada Bizâncio Tinha somente palácios para seus habitantes? Mesmo na lendária Atlântida Os que se afogavam gritaram por seus escravos Na noite em que o mar a tragou? O jovem Alexandre conquistou a ¸ndia. Sozinho? César bateu os gauleses. Não levava sequer um cozinheiro? Felipe da Espanha chorou Quando sua armada naufragou. Ninguém mais chorou? Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos. Quem venceu além dele? Cada página uma vitória. Quem cozinhava o banquete? A cada dez anos um grande homem. Quem pagava a conta? Tantas histórias Tantas questões Brecht

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No final das contas, pisar num chão de fábrica, durante cinco anos, como educadora, significou, principalmente, pisar num chão de grandes interrogações. Uma dessas interrogações, por exemplo, compartilhei com o trabalhador Geronildo e seus colegas quando a empresa não nos permitiu fazer uma viagem a São Francisco de Paula, minha cidade, há muito sonhada e planejada (nas palavras do Gerente de Recursos Humanos: „quer ver mato, vai no fundo da fábrica, que tem bastante!‰). Geronildo tornou-se porta-voz da frustração do grupo, escrevendo „Viagem de Sonho‰ (a viagem que ele daria a sua filha como presente de aniversário).

Muitas dessas interrogações, em parte, transformaram-se no tema de meu trabalho de conclusão do Curso de Letras, intitulado „Escrita, Subjetividade e Trabalho: A Fábrica da Vida que Teimosamente se Fabrica‰. No texto de introdução, fiz perguntas que até hoje continuam me interrogando:

Quem são esses personagens e essas personagens (ou homens e mulheres?), caras barbudas e lisas, mãos ásperas e calejadas, andar cansado, olhar arrastado, alma escondida, que pisam diariamente o chão de uma fábrica, construindo, ao mesmo tempo, a riqueza do país e a sua pobreza? De que se faz sua vida (sua vida se faz?), além do relógio-ponto, do barulho das máquinas, do suor no rosto e das dores nas costas, do silêncio no bolso e no peito no final do mês? Têm eles (ainda) sonhos? Qual é a matéria-prima de seus sonhos? É-lhes permitido sonhar? É-lhes permitido amar? O que da fábrica está na sua vida? O que da sua vida está na fábrica? O que pensam os „homens‰ desses personagens e dessas personagens (ou desses homens e dessas mulheres)? Mão-de-obra barata? Operários sem cultura e sem consciência? Homens sem história? Homens e mulheres que pensam e amam? Sujeitos históricos? Como se mostram? Qual é sua linguagem? O que é que neles e nelas fala, grita, gesticula, silencia, faz criar? Qual a sua relação com a escrita? Qual é o material da sua inspiração? Pode o chão de uma fábrica ser também (ou vir a ser) um „chão de sonhos‰, um „chão de conquistas‰, sendo, quem sabe, trilha para o „chão de uma nova vida‰? Afinal, quem são esses personagens e essas personagens?

Em 1995, num ato de coragem (ou covardia, quem sabe), exonerei-me da rede pública estadual. Em 1997, ainda trabalhava, nessa época, na fábrica, fui convidada, por indicação de uma colega que trabalhava comigo no Supletivo de

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Trabalhadores, a trabalhar como educadora de Língua Portuguesa e Literatura num Curso de Magistério coordenado pelo Setor de Educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no Instituto de Educação Josué de Castro, mantido pelo Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária (ITERRA), em Veranópolis, RS. De início, um grande susto, afinal, embora teoricamente me identificasse com a causa da reforma agrária, ainda não a compreendia muito bem e nunca havia tido nenhum contato com o Movimento.

Para surpresa minha, numa turma de aproximadamente oitenta educandos/as, de todos os „cantos‰ do Brasil, a metodologia por mim utilizada foi bastante aprovada pelo grupo, talvez por aproximar-se de sua cultura, de seu jeito de ser. Eles/as esperavam aulas de gramática, e eu investi na linha textual, trabalhando com várias linguagens por eles/as vivenciadas: música, teatro, literatura. Segundo os/as educandos/as, na avaliação do trabalho realizado, a metodologia aproximava-se da sua mística.

Continuei trabalhando com o Magistério, em outras turmas, e essa experiência abriu caminho para várias outras. Passei, então, a fazer assessoria ao Setor de Educação do MST em nível nacional. Entre 1997 e 1999, coordenei várias oficinas pedagógicas relacionadas à educação de jovens e adultos, além de prestar assessoria à Coordenação do Curso de Magistério, através de diversas atividades (por exemplo, acompanhar os estágios dos/as educandos/as em acampamentos e assentamentos – Oficinas de Capacitação - OCAPS).

Em 1998, fui desafiada a acompanhar o trabalho dos/as educadores/as do MST no Estado do Maranhão, com o objetivo de, futuramente, coordenar o Setor de Educação nesse Estado. Durante o mês de abril, participei de seminários, visitei assentamentos e acampamentos, conversei com educadores/as e lideranças locais e coordenei oficinas pedagógicas, principalmente na área de educação de jovens e adultos. Na volta, participei de um grande encontro sobre Educação de Adultos, em Pernambuco, em homenagem a Paulo Freire. Por motivos pessoais, acabei não assumindo tal coordenação. Quando me lembro desse tempo, lembro-me de muitas músicas e poemas do Movimento, mas uma música que não me sai da cabeça e do coração é „Sempre é Tempo de

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Aprender‰, do poeta popular Zé Pinto, que já foi meu educador-educando (EJA – Ensino Médio):

Quem é que tem interesse em participar, quem é que se prontifica para ensinar tá lançado o desafio, e o refrão vamos cantar /: „Sempre é tempo de Aprender, Sempre é tempo de ensinar‰:/ Quando criança nos negaram esse saber; Depois de grande vamos pôr os pés no chão, /: a quem não sabe o dever de repartir, todos na luta pela alfabetização:/ Jovens e adultos, papel e lápis na mão, Unificando educação e produção, /: num gesto lindo de aprender e ensinar se educando com palavra e com ação:/ Na nossa conta um mais um tem que crescer, A liberdade vai além do ABC, /: um conteúdo dentro da realidade vai despertando o interesse de saber:/.

Depois, também trabalhei como educadora de Língua Portuguesa e Literatura num Curso de EJA – Ensino Médio, no Assentamento Sepé Tiaraju, em Viamão, RS. Esse curso era destinado a lideranças nacionais do MST. Nesse grupo, surgiu algo muito interessante: por serem lideranças, com grandes responsabilidades, alguns/as desses/as educandos/as entendiam que deviam estudar a Língua Portuguesa a partir da gramática normativa para melhor se prepararem para a luta. Isso provocou, da parte de alguns/as, certa resistência à proposta de trabalho, que priorizava a „linguagem viva‰, representada pela poesia, pela música, pelo teatro, pela conversa, pela leitura num enfoque mais informal. Em contrapartida, alguns/as outros/as entendiam que essa metodologia era importantíssima no sentido de tirar as „cascas‰ (termo utilizado por um educando, referindo-se à herança de uma sociedade e de uma educação impositiva, conservadora, burguesa, capitalista). O debate desencadeado por essa divisão de opiniões foi riquíssimo, mostrando, parece-

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me, o quanto somos contraditórios/as, independente de nossas vivências, de nossa cultura.

Fortaleci-me nessa experiência, enquanto pessoa, mulher, educadora, cidadã. Nessa caminhada, muito venho aprendendo sobre: Reforma Agrária; Movimentos Sociais; Educação Popular (principalmente no âmbito da Educação de Jovens e Adultos); Cooperativismo (lembrando que o Instituto de Educação Josué de Castro, por exemplo, é gerenciado pelos/as próprios/as educandos/as); Formação de Educadores; Educação no Campo. Importantíssimo: tenho hoje uma compreensão social do Movimento e da Reforma Agrária que me permite compartilhar com outras pessoas o que venho aprendendo com essas experiências, para além do que a mídia apresenta. Acima de tudo, a convivência com os/as companheiros/as do MST tem contribuído, principalmente, para alimentar minha utopia como educadora social, através de sua mística.

Em 1999, fui selecionada para ser Educadora Social do Programa Integrar/Metalúrgicos, em Sapiranga, RS, e, então, pude fortalecer um pouco mais minha utopia, minha rebeldia e minha amorosidade. Em 2000, fui convidada a ser Assistente de Formação no mesmo Programa, mas optei por continuar como educadora, entendendo que, no momento, precisava aprender um pouco mais na experiência de ser educadora social.

Para mim, participar durante quase cinco anos desse programa possibilitou-me, sobretudo: aprofundar a compreensão sobre o mundo do trabalho (iniciada no chão de fábrica, em 1993); participar de um processo de formação de educadores que tem como base a dimensão social e política (o que ainda é raro em termos de formação de educadores); discutir, construir e pôr em prática um currículo que não se baseia na fragmentação do conhecimento, mas na ideia da integralidade dos sujeitos, tomando o trabalho como eixo desencadeador e articulador de toda a proposta político-pedagógica, na perspectiva, também, da construção de alternativas de trabalho e renda.

Mas essa experiência significou muito mais, no plano pessoal, pois essa época coincidiu, também, com os dois momentos mais bonitos e mais dolorosos de minha vida: a gravidez de Maria Eduarda e a de Maria Antônia. Tanto numa gravidez como na outra, os/as educandos/as „engravidaram‰

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comigo. Lembro-me muito do chá de fraldas que as duas turmas, num total de sessenta pessoas, organizaram na primeira gestação. Foi lindo demais, mas Maria Eduarda não pôde ou não quis ficar (nasceu morta, aos oito meses de gravidez, e eu quase fui junto). Nem é preciso dizer o que esses/as amigos/as do Integrar ensinaram-me, nesse momento, sobre solidariedade... Mas veio, depois, Maria Antônia, e minha alegria foi a deles/as, também. Uma de minhas mestras/educandas, Olívia, cuidou de mim como se cuida de um/a filho/a, e é uma das madrinhas de minha filha.

São muitas as lembranças desse tempo. Numa das formaturas do Programa, organizada pelos municípios do Vale dos Sinos, o grupo de educadores/as escolheu-me para fazer o discurso em nome de todos/as. No final desse discurso, trago à tona, poeticamente, um momento muito bonito que aconteceu em uma de nossas turmas de Sapiranga:

[...] Por isso, queridos educandos-mestres-trabalhadores/as, formandos/as ou não, esta é uma noite de celebração do espetáculo da vida. E por falar em espetáculo, vem-me à lembrança, neste momento, uma certa noite quente, numa certa praça de uma certa cidade, quando, numa roda de viola, entre risos, canções e cochichos, uma educanda-mestra-trabalhadora, num instante de rara beleza, disse: „Meu Deus! Quando é que eu ia pensar que um dia ia estar olhando as estrelas?‰.

Que essas estrelas que hoje voltamos a olhar (ou olhamos pela primeira vez) nos façam mais brilhantes, mais fortes, mais solidários, mais gente, para que, juntos/as, possamos nos tirar e tirar outros/as da fábrica escura da vida. Muito obrigada, educandos-mestres-trabalhadores/as, por podermos estar fazendo parte desta produção!

No ano de 2003, retornei ao Programa de Educação Básica de Jovens e Adultos Trabalhadores · Supletivo de Trabalhadores (UNISINOS), agora como educadora dos trabalhadores/as da Doux Frangosul, em Montenegro, e assessora pedagógica na ˘rea de Linguagem. Nessa experiência, foram priorizadas a discussão e a construção da rede temática a partir das histórias de vida dos/as educandos/as.

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Em junho de 2005, voltei a trabalhar na Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Desporto de São Francisco de Paula, assumindo, entre outras funções, a Coordenação do Programa Brasil Alfabetizado. É preciso, então, contextualizar um pouco a educação de adultos no município. Ainda que considerado o Estado com menor índice de analfabetismo no país, o Rio Grande do Sul possui 501.261 analfabetos/as absolutos/as, o que representa 6,7% da população do Estado que não teve acesso à escolaridade mínima, e um percentual de analfabetos/as funcionais que representa 20% da população do Estado. De acordo com o Parecer 11/2000, „o maior número de analfabetos se constitui de pessoas com mais idade, de regiões pobres e interioranas e provenientes dos grupos afro-descendentes‰.

São Francisco de Paula faz parte desse cenário. O município está localizado no Nordeste do Rio Grande do Sul, a aproximadamente 112 quilômetros da capital, tendo como área total 3.289,70 quilômetros quadrados, assim distribuídos: área urbana de 190 quilômetros quadrados e 3.099,70 quilômetros quadrados de área rural, sendo que a maioria da população vive na zona urbana, ou seja, 12.269 pessoas, num universo de 19.968 habitantes. Esse é um dado significativo, que evidencia o êxodo rural na região.

Outro dado importante diz respeito à predominância da população acima de 15 anos no município: 14.220 pessoas. Nesse universo populacional, 1.356 pessoas são analfabetas, num percentual de 9,10%. No período de 2000 a 2004, foram alfabetizadas apenas 62 pessoas. No ano de 2004, somente 33 analfabetos/as encontravam-se em sala de aula. Portanto, em 2005, havia necessidade de alfabetizar-se 1261 pessoas, considerando-se que, até setembro desse ano, existia no município apenas uma turma de alfabetização, com 11 educandos/as, estando essa turma inserida no Programa Alfabetiza Rio Grande (concluído no município em setembro de 2005).

Diante da situação apresentada, a Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Desporto sentiu-se (e sente-se) desafiada a construir uma proposta político-pedagógica de Educação de Jovens e Adultos, voltada para as classes populares. Assim, ainda em 2005, o município começou a desenvolver o Programa Brasil Alfabetizado, com verba oriunda do Governo Federal, contemplando um universo de 100 pessoas (zona urbana e zona rural) num

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período de oito meses (novembro/2005 a julho/2006). O Programa visa à alfabetização inicial e pós-alfabetização (o equivalente aos quatro anos iniciais do Ensino Fundamental). Os/as educandos/as, em sua maioria, têm mais de 30 anos (alguns/as, mais de 70 anos).

Uma gota de esperança num oceano de exclusão, poder-se-ia dizer. Afinal, em 2005, eram apenas nove (9) turmas – cinco (5) na zona rural e quatro (4) na zona urbana, num universo que depois não foi mais de 100 pessoas (considerando-se o processo de evasão que ocorreu em algumas turmas), contra a realidade de mais de mil (1000) analfabetos/as que continuam excluídos de quase tudo. No entanto, entendendo-se que a Educação de Jovens e Adultos comprometida com os interesses das classes populares ocupa ainda um lugar marginal no contexto da educação brasileira, é importantíssimo que cada vez mais se possa refletir sobre experiências nessa área, independente do número de pessoas que sejam envolvidas.

Que proposta de educação busca-se construir?

Na Educação de Jovens e Adultos, no Brasil, podem ser percebidos dois projetos de sociedade e de educação. De acordo com Gaudêncio Frigotto (2005), no primeiro projeto, excludente, a concepção de educação está relacionada a uma visão utilitária e empresarial do saber, dentro da ideologia da empregabilidade, reduzindo o processo educativo a cursos de treinamento e reconversão profissional. Nesse contexto, o objetivo é o de formar um/a cidadão/ã mínimo/a, alienado/a, que não pense e não exerça pressão para mudar os privilégios dos/as poderosos/as. Nessa proposta, não há educação, portanto, não há educando/a e nem cidadão/ã – o ser humano é considerado um objeto.

No segundo projeto, a concepção de educação está relacionada à vida, numa perspectiva de humanização e emancipação humana. Valoriza-se a realidade cultural e social dos/as educandos/as, numa tentativa de construir capacidade para ler e escrever criticamente a realidade que os/as cerca, construindo-se, portanto, sujeitos capazes de transformar-se, transformando coletivamente seu meio local para transformar a sociedade excludente em

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sociedade solidária. Essa é a concepção de educação com a qual a Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Desporto de São Francisco de Paula identifica-se. O projeto de sociedade e de educação defendido nessa proposta, dessa forma, busca sua essência nos saberes construídos pelas classes populares, sendo a educação, enquanto prática humanizadora, seu princípio norteador. A base desse princípio, de acordo com Paulo Freire, é o diálogo, fundamentado pela amorosidade, que é compromisso com todos os seres humanos.

Como se concretiza essa proposta?

Na proposta pedagógica desenvolvida por Paulo Freire, são valorizadas, fundamentalmente, a cultura e a realidade do/a educando/a. Para Freire, essa realidade é o ponto de partida para que a pessoa construa compreensão do mundo e de si mesma como sujeito da história. Segundo a concepção freireana, o trabalho pedagógico não se dá pela imposição de conteúdos, mas por uma construção do conhecimento em que o/a educador/a e o/a educando/a ensinam e aprendem ao mesmo tempo.

Nesse contexto, as histórias de vida constituem-se o elemento desencadeador e articulador de todo o processo educativo. Conforme Charlot:

Aprender, sob qualquer figura que seja, é sempre aprender em um momento de minha história, mas, também, em um momento de outras histórias: as da humanidade, da sociedade na qual eu vivo, do espaço no qual eu aprendo, das pessoas que estão encarregadas de ensinar-me [..]. Qualquer que seja a figura do aprender, o espaço do aprendizado é um espaço-tempo partilhado com os outros. (2000, p. 69).

Assim, desde o início, os/as educadores/as, nos encontros de formação, vão discutindo sobre a importância de construir com os/as educandos/as um ambiente significativo para que essas histórias sejam trabalhadas, sendo exploradas as mais diferentes linguagens: práticas de fala e escuta, música, imagens, desenhos, fotos, filmes, dança, teatro, leitura de textos diversos (poemas, biografias, letras de músicas), entre outras. Então, a escrita das histórias vai acontecendo aos poucos, e os/as educadores vão buscando

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estimular os/as educandos/as para que escrevam do seu jeito, ajudando, se necessário, criando um clima de confiança para que, naturalmente, discutam com os/as colegas sobre a questão da escrita.

O trabalho com as histórias de vida vai impulsionando a análise da realidade, uma vez que nesse contexto estão envolvidos aspectos diversos da conjuntura (local e global): trabalho, sociedade, política, economia e outros. Além disso, essa prática vai estimulando o estudo e a pesquisa sobre temáticas de interesse dos grupos (por exemplo: etapas da vida – infância, adolescência, velhice; relações familiares; valores, sentimentos; espiritualidade etc). Nesse sentido, trabalhando com temáticas significativas para os/as educandos/as, os/as educadores/as vão procurando construir com eles/as atividades que lhes oportunizem fazer diversas relações entre as áreas de conhecimento, numa perspectiva transdisciplinar, e, ao mesmo tempo, oportunizem-lhes avançar no processo de alfabetização, pela variedade das situações de leitura e de escrita, tomando-se o texto como unidade de sentido, sempre.

Nessa experiência, é importante salientar a presença do „Banco de Textos‰ mediando toda a proposta pedagógica. O que é o „Banco de Textos‰? Trata-se de uma coletânea de diferentes tipos de texto (poemas, crônicas, fábulas, letras de música, contos, reportagens, artigos etc) – atualmente, mais de 100 textos, selecionados inicialmente pela Coordenação do Programa (com a possibilidade de que esse „Banco‰ seja ampliado pelos/as educadores/as e educandos/as), a partir de temáticas selecionadas nas formações pelo coletivo dos/as educadores/as, tendo por base o trabalho inicial com as histórias de vida (família, trabalho, questões sociais, espiritualidade, entre outros). Esses textos („Banco‰) ficam à disposição dos educandos/as, estimulando-os/as, desde o início do processo, à curiosidade pela leitura e ao gosto por outros textos. Assim, num horário que é escolhido por cada grupo, é propiciado – a cada dia, semanalmente, ou de outra forma - um momento de leitura livre (em que os/as educandos/as tanto podem ler textos do „Banco‰ como outros, levados de casa ou disponibilizados pelo/a educador/a: revistas, jornais, livros, cadernos de receitas, folhetos e outros), socializado, num segundo momento, de diferentes formas (conversando sobre o que cada um leu, desenhando etc). Além disso, o „Banco subsidia o desenvolvimento das temáticas que vão surgindo nos grupos. Por exemplo, a partir do trabalho com as histórias de vida, surgem discussões

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sobre a questão do trabalho, e então cada turma, de acordo com sua realidade, pode utilizar diferentes textos do „Banco‰ para trabalhar essa temática: A Trajetória de Josefa – da Bahia para São Paulo (texto biográfico); Cidadão (música de Zé Ramalho); Meninos Carvoeiros (poema de Manuel Bandeira); Mulher na Luta (música do cantor popular Zé Pinto); Há Futuro para o Trabalho? (Rodrigo Gurgel); A Força que Nunca Seca (música de Vanessa da Mata), entre outros, o mesmo ocorrendo com outras temáticas.

E, muitas vezes, os textos do „Banco‰ desencadeiam assuntos inesperados, como o caso de uma turma que passou a trabalhar com a questão das diferentes formas de discriminação a partir da descoberta de um texto do „Banco‰ por um educando: A Mão da Limpeza, de Gilberto Gil. Cabe aqui destacar, nesse sentido, o quanto a literatura está presente nessa proposta (literatura clássica e popular).

Por tudo o que já foi colocado, ressalta-se, também, que o trabalho pedagógico busca integrar-se a um processo de inserção cultural, econômica, política e social, tendo em vista seu caráter emancipatório e o contexto social, econômico, cultural e político de São Francisco de Paula: a questão do êxodo rural, gerando o subemprego e o desemprego; a extensão territorial do município, que caracteriza um sistema latifundiário, em que predominam situações temporárias de trabalho, trabalho pouco remunerado e a desvalorização do trabalhador; o número de analfabetos do município, e o fato de serem eles e as pessoas menos escolarizadas os que mais sofrem com essa situação.

A partir da problematização da realidade, que é uma das bases metodológicas da prática que se está buscando construir, pretende-se oportunizar aos/às educandos/as que não apenas construam elementos para melhor se compreenderem e compreenderem sua realidade como para dela participarem e nela poderem intervir. Nesse sentido, é fundamental estimular/desafiar os/as educandos/as para que participem de ações/atividades que favoreçam sua inserção no ambiente social, econômico, político e cultural de sua comunidade e de seu município: participação em associações de bairro e em outros movimentos populares: participação em sessões da Câmara de Vereadores e em outros atos políticos de sua comunidade e de seu município;

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visitas a locais públicos e entidades sociais e culturais; participação em eventos sociais e culturais do município, como feira do livro, festas da comunidade e outros eventos. Considera-se, também, que o trabalho pedagógico deve estimular/desafiar os/as educandos/as a buscar alternativas de trabalho e renda (cooperativas, por exemplo), ou a participar de ações que já existam no município nesse sentido.

As primeiras turmas (cinco na zona rural e quatro na zona urbana) concluíram suas atividades no início de julho/2006, e novas turmas estão funcionando hoje, em 2006, a partir de setembro (seis na zona rural e quatro na zona urbana). Além disso, pretende-se solicitar ao Conselho Estadual de Educação a autorização para funcionamento de Educação de Jovens e Adultos nas escolas municipais, no próximo ano, considerando-se que apenas duas escolas (estaduais e urbanas) oferecem educação de jovens e adultos no município (uma no centro da cidade e uma outra na periferia), sendo que na zona rural nenhuma escola oferece essa modalidade de ensino.

A Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Desporto de São Francisco de Paula está desenvolvendo também, desde 2005, o Programa Escola de Fábrica · quatro turmas já concluíram, e outras estão sendo organizadas para o ano de 2007. Além disso, está ocorrendo no município, desde o segundo semestre deste ano, uma experiência-piloto que integra a escolarização em nível de ensino fundamental e a organização de uma alternativa de trabalho e renda ligada ao artesanato (parceria entre a Central Ðnica dos Trabalhadores – CUT – e o Ministério da Educação (MEC). Estão funcionando duas turmas de aproximadamente vinte e cinco (25) educandos/as, uma na zona urbana e a outra na zona rural. A proposta político-pedagógica é da própria CUT, e a formação dos educadores também é de sua responsabilidade, mas, em nível municipal, sou eu quem está assessorando pedagogicamente as duas educadoras envolvidas nesse processo, embora não seja da minha responsabilidade a coordenação do projeto.

Na verdade, essa experiência é um pouco inspirada no Programa Integrar, também idealizado pela CUT. Digo um pouco porque me parece que, nesse projeto, há algumas perdas em relação ao que propunha o Integrar enquanto proposta de educação preocupada com o mundo dos trabalhadores.

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Embora minha análise seja muito provisória, esse projeto parece preocupar-se muito mais com a organização de um empreendimento (já não se fala mais em cooperativismo!) do que com uma formação política e social mais aprofundada dos sujeitos envolvidos no processo. Uma prova disso é que todo o planejamento das aulas é feito anteriormente pela CUT, não dando muitas possibilidades aos/as educadores/as, embora a ideia seja de construção coletiva.

Voltando ao Brasil Alfabetizado, é importante dizer que a coordenação desse Programa compreende várias funções: realizar levantamento do número de analfabetos do município (absolutos e funcionais); mapear a procedência desses analfabetos, pesquisando em diferentes fontes: cartório eleitoral, agentes de saúde, lista de beneficiários do Programa Bolsa-Família e de outros programas sociais, associações de moradores, entre outras; realizar reuniões nas localidades onde ocorre maior número de analfabetos, para mobilização das comunidades e organização das turmas; elaborar a proposta pedagógica do município para esse Programa, tendo em vista a obtenção de recursos financeiros junto ao MEC; coordenar o processo de seleção de alfabetizadores; cadastrar alfabetizandos, alfabetizadores e turmas; planejar e coordenar a formação inicial e continuada dos alfabetizadores; acompanhar e avaliar o processo de alfabetização.

Porém, a alma dessa experiência está no que realmente é possível acontecer quando as pessoas encontram-se, quer seja nos diferentes espaços onde essa ação desenvolve-se (escola, igreja, casa do educador ou do educando, associação de bairro e outros espaços), quer seja nos espaços de formação dos educadores, com todos os limites que possam ser citados ( por exemplo, o fato de o educador trabalhar quase voluntariamente, e o de não se receber praticamente nada de verba para investimento na formação dos educadores e em recursos, além do fato de que a educação de adultos é ainda tratada como campanha, ou como uma ilha, no contexto educacional do município e do país (a quem e a que a educação de adultos está ainda servindo?).

Nesse sentido, atrevo-me a ter esperança, quando tanta coisa bonita acontece: nos textos que nascem, entre „a cruz e a estrela‰ nossa de cada dia, educandos/as e educadores/as; nas trocas de experiência entre os/as educadores/as, pela palavra ou até pelo silêncio - que, muitas vezes, fala mais

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alto; nas conversas descontraídas que surgem na roda das turmas, quando chego como visita; nas lições aprendidas na diversidade (por exemplo, a lição do educador „apenado‰ Carlinhos, quem sabe condenado injustamente, e mais livre que tantos de nós, com sua alma de poeta e seu violão-pássaro livre); nos momentos surpreendentes que acontecem nas oficinas como foi o caso da educadora Luciana, que, na „Oficina dos Sapatos‰, construída com a ideia de discutir a temática „trabalho‰, olha para um sapato, escolhido por ela entre tantos, e diz: „ Será que quem faz usa os sapatos?‰ - contando aos colegas, depois, que, quando operária de uma fábrica de calçados, via belos tênis passando pela esteira, mas não conseguia comprar um par para seu filho ou para si mesma. Retornando à esperança, diz-nos Frei Beto:

A esperança é um pássaro em vôo permanente. Segue adiante e acima de nossos olhos, flutua sob o céu azul, não se lhe impõe nenhuma barreira. É assim em tudo aquilo que se nutre de esperança: o amor, a educação de um filho, o sonho de um mundo melhor.

Pensando nas oficinas pedagógicas como parte da formação dos/as educadores/as do Programa Brasil Alfabetizado, lembro-me de que venho desenvolvendo esse ofício desde 1994, em assessoria a universidades, secretarias municipais de educação, escolas. Essa forma de trabalho, na verdade, nasceu da minha prática com a educação de adultos, nesses anos todos. Recordo que um dia, lá pelo ano de 94, conversando com uma amiga que também tem formação em Letras e naquele tempo era diretora de uma escola aqui em São Francisco, contei-lhe um pouco sobre minha experiência com os/as trabalhadores/as, na época, na fábrica. Na metade da conversa, ela me pediu que eu fizesse uma oficina com seus/as educadores/as, que estavam precisando conviver com algo diferente, e eu comentei que nunca havia feito isso e que só sabia trabalhar em sala de aula. Tanto ela insistiu, que eu acabei aceitando. Na época, foi bem interessante, mas não havia nada de tão especial, a meu ver. A ideia era simplesmente trabalhar com a expressão, provocando reflexão sobre aspectos do cotidiano.

Nessa primeira oficina, que depois acabou ocorrendo em outros espaços, começava-se pedindo que cada participante „desse uma palavra para

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sua vida‰. Num segundo momento, era distribuída a cada pessoa uma coletânea de fragmentos de texto (músicas, poemas etc) , com o propósito de que cada educador escolhesse um ou mais fragmentos que se relacionasse(m) com a palavra escolhida inicialmente. A seguir, as palavras e textos escolhidos e sentidos individualmente eram socializados em pequenos grupos, provocando reflexões. Por último, cada grupo tinha o desafio de apresentar aos demais a essência de sua reflexão, expressando-a através de um texto na linguagem escolhida pelo grupo: desenho, teatro, dança, música, entre outras. A partir das apresentações, abria-se espaço para outros comentários, outras reflexões, fazendo-se uma relação entre a atividade realizada e os processos educativos, na escola e fora dela. Logicamente, alguns/as, inicialmente, foram resistentes à proposta, principalmente por tratar-se de algo que, de certa forma, podia mexer com aspectos bem pessoais. Bem, essa oficina foi feita, depois, em outros espaços, como em uma Formação do Integrar, em Capão da Canoa, quando vários educadores choraram ao pensar em sua história de vida.

Com o tempo, foram surgindo outras ideias, e fui descobrindo que seria interessante trabalhar com outros textos, não-escritos, como, por exemplo, pedras, carvão, sapatos, peças de roupa. Essa ideia exótica (seria mesmo isso?) de trabalhar surgiu quando, numa certa ocasião, eu estava no Paraná, pensando em como montar uma oficina para educadores/as de jovens e adultos do MST. De repente, no meio de tantos textos literários, dei de cara com o poema „No Meio do Caminho‰, de Drummond (No meio do caminho tinha uma pedra!). Por acaso, olhei pela janela e vi muitas pedras, pois o local da formação era rural. Bolei, então, uma oficina que integrava pedras, poesia, música (tudo começava com a escolha individual de uma pedra, entre tantas). Assim, outras oficinas foram surgindo. Hoje, tenho esse ofício como uma grande paixão. Em especial, gosto muito das oficinas que surgiram para discutir a questão do „mundo do trabalho‰. A ideia é sempre a mesma: chegar a uma reflexão sobre a dupla dimensão do trabalho (criação e exploração). O que muda são os produtos/objetos utilizados para desencadear a reflexão (carvão, roupas brancas, sapatos etc) e os textos utilizados (poemas, músicas e outros).

Na „oficina do carvão‰, cada pessoa, primeiramente, tira de um saco, ou de uma caixa, um pedaço de carvão. Depois, o desafio é que cada um/a expresse, através de desenho ou escrita, a primeira impressão/sem-

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sação/sentimento a partir da escolha. Num terceiro momento, em pequenos grupos, são socializadas as impressões/ sensações/sentimentos, surgindo uma reflexão, e o próximo desafio é que cada grupo produza um texto para apresentar aos demais, na linguagem que desejar: desenho, música, teatro, painel, dança etc. Feitas as apresentações, eu digo que também vou fazer minha apresentação, e lanço a ideia de trabalho. O que é muito interessante, pensando nos grupos com que já desenvolvi essa oficina (crianças, jovens e adultos, educandos/as e educadores/as, participantes de movimentos sociais) é que, geralmente, numa primeira leitura do pedaço de carvão, ninguém o associa a trabalho humano. Surgem muitas ideias: energia, calor, destruição da natureza, churrasco, mas muito raramente fazem uma relação com o „mundo do trabalho‰. Depois de certa discussão, „saboreamos‰ o livro „O Velho Vendedor de Carvão‰, de autores chineses (na China, esse texto é muito conhecido – um texto de crítica social, de belíssimas imagens). Faz-se, também, uma relação entre esse texto e o poema de Manuel Bandeira, „Meninos Carvoeiros‰, além de trabalhar-se com três músicas relacionadas à temática „trabalho‰: A Força que Nunca Seca, de Vanessa da Mata; Capitão de Indústria, do Grupo Paralamas do Sucesso, e Cidadão, de Zé Ramalho. Depois de todas essas vivências e reflexões, as pessoas são desafiadas a escrever suas ‰memórias de trabalho‰.

Na oficina em que são utilizadas as roupas brancas como desencadeadoras de uma reflexão sobre trabalho, é dada ênfase ao trabalho da mulher (lavadeira, costureira, bordadeira). Inicia-se essa oficina de uma forma muito sutil, pois as pessoas são convidadas, num primeiro momento, a passear por um ambiente constituído de cadeiras caídas e roupas brancas jogadas ao chão (acho que a inspiração vem de uma Bienal da qual participei uma vez), ao som de um fundo musical, sugerindo-se que escolham uma peça no final da música. Da mesma forma que na oficina do carvão, nessa também, num primeiro momento, as pessoas geralmente não associam as peças de roupa a trabalho humano.

Hoje, 2006, volto à academia para fortalecer-me nessa caminhada, percebendo que muito preciso estudar e aprofundar. Está sendo uma experiência fantástica, pela troca com os/as colegas, pelas discussões com o grupo, pelas leituras, pelo nível de conhecimento dos/as educadores/as, pela oportunidade, enfim, de poder redimensionar meu trabalho e minha própria

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existência. Acima de tudo, estou encorajando-me a continuar estudando, depois que concluir este curso de especialização. E estou bastante animada com a abordagem que estou pretendendo fazer na monografia (como não poderia deixar de ser, pelo apaixonamento, a questão da formação de educadores/as de jovens e adultos a partir das oficinas pedagógicas, que brevemente comentei.

Volto, neste momento, ao texto que escrevi para os/as trabalhadores/as do Programa Integrar, em sua formatura, para concluir provisoriamente este texto:

Da fábrica escura à vida nova explodida. Quantas aprendizagens nessa construção! A maior delas talvez seja a de que as pessoas só se educam pela necessidade, cumplicidade e solidariedade, buscando compreender humanitariamente o mundo para nele poder intervir, o que nos faz descobrir que nesse processo não há educadores/as e educandos/as, pois todos somos educandos/as-mestres-trabalha-dores/as.

Filha querida, as histórias que aqui conto são para ti. Não são histórias de príncipes e de princesas, nem de fadas, nem de um reino encantado, mas de um mundo onde muitas pessoas levam ainda uma vida „borralheira‰, inclusive crianças, que, muitas vezes, ajudam a fazer os sapatinhos de muitas Cinderelas. Mas são histórias de sonhos, de coragem, de luta, de persistência, de solidariedade. Quando tu cresceres, tomara que todos esses sonhos „borralheiros‰, essa coragem, essa luta, essa persistência, essa solidariedade tenham transformado esse mundo „borralheiro‰ num outro mundo, não de faz-de-conta, mas de verdade. Que o meu sonho e a minha luta, enquanto pessoa, mulher, educadora social, cidadã, por um mundo mais justo e fraterno, possa ser, também, o teu sonho e a tua luta.

Com carinho, um beijo no teu coração,

Maria do Carmo

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MEMORIAL DE CRISTINA LUISA CONCEIÇ‹O DE OLIVEIRA

Sou sobrinha professora alfabetizadora e cresci sentindo o cheiro da folha mimeografada. O cheirinho dos exercícios, desenhos e provas estão presentes nas minhas mais antigas memórias. Hoje, talvez poucos professores tenham a oportunidade de conhecer essa ferramenta tão primitiva e ao mesmo tempo tão eficiente e que hoje foi substituída pela impressora.

Quando eu, o meu irmão e o meu primo éramos crianças, ajudávamos a colocar álcool na almofada do mimeógrafo e rodar as folhas. Minha tia trabalhava na Escola de Ensino Fundamental Incompleto Tito Marques Fernandes, lá no Morro Santa Tereza em Porto Alegre, e que fica dentro do quartel do exército. Esta escola tem alunos carentes e trabalha com os poucos recursos oferecidos pelo estado. Na época, lembro que ajudávamos a destacar as laterais das folhas de formulário contínuo doada pelos bancos e usávamos o verso destas folhas para passar no mimeógrafo. Tudo isso era muito divertido. Desde criança fomos criados no meio de folhas, lápis e borracha.

O meu primeiro contato com a escola, foi na minha festinha de aniversário de 2 anos que foi comemorada na turma da minha tia. Até as bonecas das alunas participaram da festa! Com passar dos anos continuei visitando a Escola e ajudando na preparação das aulas.

Ensino Fundamental

Fiz o ensino fundamental na escola Estadual de Ensino Fundamental Cândido Portinari, localizada no bairro Menino Deus, em Porto Alegre. Esta

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escola era próxima da minha casa, mas a minha mãe sempre me levava e me buscava até eu completar a quinta série.

Lembro que nos primeiros dias de aula fiz um teste, que deveria ser o Teste ABC. Quando a professora Tânia Marques comentou sobre este teste na disciplina Psicologia da Adolescência e da Vida Adulta, logo me lembrei da primeira semana na escola. Lembro que fiquei na turma A, a também conhecida como a melhor turma. E o pior é que essa divisão de turmas era conhecida pelas crianças.

Duas coisas marcaram a minha primeira série. A primeira foi a dificul-dade em escrever a letra F. Lembro que tínhamos que escrever a letra F em toda página do caderno. Depois que terminei a atividade, a professora me fez a pagar tudo, porque não estava bom. Neste dia, acabei furando a folha e foi bastante decepcionante. E, neste dia eu me senti a aluna mais fraca da turma A.

A segunda coisa marcante foi a cartilha O Sonho de Talita. Esta cartilha usava o método tradicional e continha palavras desconhecidas para os alunos do sul do Brasil, como por exemplo, vatapá. E até hoje não sei o gosto do vatapá! Como foi legal aprender a ler e a escrever! Mas eu não gostava de ler oralmente e torcia para não ser escolhida. Tive dificuldade em participar de todas as atividades propostas, pois era muito tímida. Tive poucos amigos, e a minha melhor amiga da escola pertencia à turma C.

Magistério

Permaneci na mesma escola durante todo o ensino fundamental e pude me formar junto com alguns colegas que havia conhecido na primeira série. Terminando essa fase, fiz prova de seleção no Colégio Estadual Júlio de Castilhos e na Escola Estadual Instituto de Educação General Flores da Cunha. Passei nas duas escolas, mas optei pelo magistério que era oferecido no Instituto de Educação. Foi aconselhada por minha mãe e minha tia, pois o magistério me daria uma profissão e já estaria encaminhada na vida. Eu como não tinha uma situação financeira muito confortável e já gostava de ser professora, achei que seria uma boa escolha, apesar de saber que faria 4 anos e meio de ensino médio. Então, em 1991 entrei na mais antiga escola de grau médio de Porto

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Alegre, criada em 1869, com a finalidade de formar professores para o ensino primário.

Um fato marcante nesta época foi a criação do calendário rotativo, que criava três diferentes anos letivos, que se revezavam. Esse sistema, criado pela secretária de educação Neuza Canabarro, gerou muita polêmica na época e as meninas que entravam nas turmas do calendário B ou C, eram bastante discriminadas pela maioria dos alunos da escola, por ingressarem na escola sem processo seletivo.

No magistério tive disciplinas como Didática Geral, Fundamentos da Educação Metodologia da Matemática, Metodologia de Ciências Naturais, Metodologia da Linguagem e Estrutura e Funcionamento do Ensino Fundamental, além de uma noção das disciplinas gerais do ensino médio. Com todas estas disciplinas e com o contato com os educandos durante os estágios, aprendi muitas coisas, como por exemplo, desenvolver algumas habilidades na construção de jogos, materiais didáticos, além de pensar em atividades concretas e prazerosas para as crianças.

Passei por quatro estágios em escolas anexas ao Instituto de Educação, em todas as etapas das séries iniciais e no final o magistério, fiz um estágio maior de um semestre. O estágio final foi realizado em uma turma de segunda série da Escola Estadual de Ensino Fundamental William Richard Schisler, no bairro Menino Deus.

Na formatura de magistério minha tia me deu três coisas que pertenciam a ela, um anel enorme de formatura e com os símbolos do magistério; o título do clube do Professor Gaúcho, que ela havia comprado enquanto o clube ainda estava na planta; e um mimeógrafo, é claro.

Só no final do quarto ano de magistério comecei a pensar na universidade. Eu queria continuar sendo professora e como tive excelentes professoras de Biologia e de Metodologia de Ciências Naturais, escolhi o Curso de Ciências Biológicas.

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Primeiro emprego

Acabando o magistério, o emprego não veio tão facilmente. O meu primeiro emprego foi no final de 1995, na Creche Ursinho Branco. Eu era professora do Jardim B e da turma de reforço, (dois níveis na mesma sala), e na carteira de trabalho aparecia recreacionista. ¤ noite, saindo da Creche, eu ia cansada para o cursinho pré-vestibular.

Biologia- UFRGS

Em janeiro de 1996, fui acordada com uma bela notícia, pois tinha passado na Biologia da UFRGS. Foi algo inacreditável, pois havia estudado em escolas estaduais e feito magistério. Esperei alguns meses para entrar na biologia, pois passei de segundo semestre e também foi ano de greve na Universidade. Mas isso não era novidade, pois já estava acostumada com as greves estaduais.

Logo no segundo semestre da Biologia, em 1997, já ganhei uma bolsa de pesquisa no laboratório de ictiologia (estudo dos peixes). Lá aprendi muitas coisas e tenho muito que agradecer ao meu orientador pela oportunidade. Foi lá também que tive o primeiro contato com um computador e com a internet.

No quarto trimestre tive que escolher a ênfase do curso, então como, eu já estava desenvolvendo um trabalho de pesquisa, optei pelo bacharelado com ênfase Ambiental. Mesmo assim, sempre que possível fazia cadeiras da licenciatura. Então, quando me formei no bacharelado, só faltava às práticas de ensino para terminar a licenciatura. Durante a faculdade, aproveitei as oportunidades que a UFRGS me oferecia, como o Salão de Iniciação Científica (3 anos como aluna e 2 como co-orientadora), Projetos de Extensão, Congressos, Palestras, verbas da Pró-reitoria de Pesquisa pagando o passagem de ônibus para apresentar trabalhos em eventos, desconto no RU (R$ 0,50 o almoço) e consultas médicas no Hospital de Clínicas.

No penúltimo semestre do curso, fiz a disciplina de Organização da Educação Brasileira com o professor Carlos Machado, substituto da Faculdade de Educação. Nessa disciplina, uma das avaliações era a organização de um

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projeto. Um grupo de alunos resolveu fazer um projeto de curso pré-vestibular popular e logo depois esse projeto foi colocado em prática. Convidaram, então, os colegas dos diferentes cursos de licenciatura que estavam fazendo essa disciplina. Logo que fiquei sabendo do projeto, me ofereci para participar e sou professora voluntária até hoje. Em parceria com a Associação de Moradores do Jardim Carvalho, conseguimos uma sala na Escola Estadual Gema Angelina Belia no turno da noite. Dois anos depois ampliamos o curso também para a escola Florinda Tubino Sampaio e hoje este curso funciona em uma sala comercial no centro de Porto Alegre.

Mestrado e Prática de Ensino em Biologia

Em 2001, entrei no Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Biologia Animal. No início fiquei sem bolsa, então comecei a trabalhar num curso supletivo, preparatório para as provas da Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul. Era um curso que funcionava em algumas salas comerciais do centro de Porto Alegre. Foi uma experiência enriquecedora, pois tive oportunidade de conviver com diferentes realidades, porém frustrante, pois aquele modelo de curso supletivo não tinha o objetivo de formar cidadãos e de construir conhecimentos. Ao mesmo tempo em que trabalhava no curso, fazia as cadeiras do mestrado e a prática de ensino de Biologia. Então, a orientadora de prática sugeriu que fizesse a prática em meu trabalho, com uma turma de supletivo do ensino médio. E sobre este trabalho no supletivo, fui convidada em 2004 para publicar um artigo no livro Metodologia de ensino em Foco - práticas e reflexões, organizado pelos professores Johannes Doll e Russel da Rosa.

Doutorado – abril de 2003

Logo após o mestrado, fiz rapidamente um projeto de doutorado e iniciei o doutorado também na Biologia Animal da UFRGS, porém com outro orientador.

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Em 2006 fui para George Washington University – USA, fazer parte das minhas análises do doutorado. Eu já conhecia o orientador americano, pois ele tinha estado no Brasil e trabalhava em parceria com o meu orientador da UFRGS. Lá trabalhei com microscopia eletrônica de transmissão e histologia durante cinco meses. Nunca tinha ficado tanto tempo longe de casa, e essa experiência foi ótima tanto para minha formação profissional como pessoal. Foi bom para poder comparar as diferentes realidades. Na George Washington University encontrei muitas facilidades e muitos recursos. Pude observar que no Brasil existem ótimos pesquisadores e que as universidades brasileiras são qualificadas, apesar de terem poucos recursos.

Colégio de Aplicação da UFRGS

Em abril de 2007 defendi a minha tese e em maio entrei no Colégio de Aplicação como professora substituta. Esta é a primeira experiência em escola, não contando os estágios. Estou adorando trabalhar com a sétima série e com o Projeto Amora, que é uma oportunidade única.

Curso de Especialização de Jovens e Adultos

Apesar de já ter feito pós-graduação na Biologia, sempre tive vontade de fazer uma pós-graduação na educação. Então, no final de 2007, entrei no Curso de Especialização em Educação Profissional Integrada à Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos. Acredito que este curso será importante, porque irá enriquecer a minha prática pedagógica em todos os níveis de escolaridade em que eu possa atuar, provocando muitas reflexões, trocas de experiências entre os alunos de diversas áreas e professores.

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„KỸ TÓG GE JA NỸG HAMẼ!‰ 1

Desde criança minhas características de fóg (branco) têm me marcado muito, sendo eu uma índia Kaingang. Lembro-me das inúmeras vezes em que minha avó materna chamava-me de inh fóg sĩ (minha branquinha), entretanto, nunca tive dúvidas sobre quem eu sou realmente. Ao contrário, aprendi desde muito cedo ter orgulho de minha origem. Prova disso, é que mesmo tendo nascido numa época em que meu povo sofria fortes pressões para o total abandono da língua kaingang, por resistência dos meus pais, o kaingang tornou-se minha língua materna, ao contrário de muitos que não tiveram este privilégio. Aprendi a falar o português fluentemente somente aos sete anos de idade, quando comecei a frequentar a escola.

Por muito tempo procurei compreender em que momento esse sentimento de patriotismo em relação a minha etnia aflorou em mim, por quais razões. Nessa procura, porem, encontrei muito mais do que meras razões. Nas histórias sagradas de meu povo me reencontro e compreendo a verdadeira essência de minha vida, embaraçado pelos longos séculos de luta e sobrevivência.

Pensei, refleti, mas não encontrei outra forma de falar de mim, de transcorrer sobre minha memória, sem falar de kaingang, de história kaingang.

1 Memorial de Márcia Nascimento. Kỹ tóg ge ja nỹg, hamẽ! Em Kaingang significa: "Então foi assim..."

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No meu primeiro ano de escola em 1987, a professora fóg, Suzana do Valle era quem ensinava a língua kaingang. Na escola não tinha professor índio na época. A professora não sabia falar o kaingang, apenas conhecia os sons das letras e o significado de algumas palavras. Parece que tinha uma boa noção de fonética. Muitas vezes tínhamos que adivinhar o que ela queria dizer, era divertido. Mas fui alfabetizada dessa forma. Somente na 4À série tive aulas com uma professora kaingang, falante da língua.

Assim que aprendíamos a ler e escrever, ganhávamos como prêmio, uma bíblia escrita no kaingang para ler no culto no domingo seguinte. Era um grande incentivo para nós, mal podíamos esperar para mostrar aos nossos pais que já sabíamos ler. Era um anúncio em grande estilo. Afinal esse era o principal objetivo de sermos alfabetizados em kaingang: ler a bíblia para ouvir a mensagem que ela nos trazia. Em outras palavras, isto era parte da política de integração que a escola exercia entre as comunidades.

Foi estudando as histórias bíblicas que um dia soube de coisas incríveis sobre nossos kujás (pajés). Possuíam poderes sobrenaturais, tinham uma sabedoria incomum. Era como se Deus andasse lado a lado com eles. Fiquei encantada. Mas logo me surpreendi, disseram que os kujás eram pessoas manipuladas por espíritos maus. Desde então, tenho me questionado porque não poderia ser Deus quem os ensinava. Não consigo entender porque Deus, justo, da maneira como o conheço, permitiria que meu povo fosse milenarmente enganado.

A primeira professora sempre marca nossas vidas, mas esta marcou profundamente. Ensinou-nos tantas coisas que ainda permanecem comigo. Ela, independentemente da finalidade de seu trabalho, nos conquistou com a sinceridade de seus gestos e nós a cativamos com nosso jeito de ser kaingang. Construímos uma grande amizade que permanece até hoje. A dedicação que recebi dela, procuro retribuir sempre para com os meus alunos. Suas palavras e ações, compreendo melhor hoje. Ela apenas trabalhava nossa autoestima como crianças nascidas de um povo cercado por preconceitos e discriminações. Sempre nos mostrava que éramos capazes, inteligentes. Dizia que deveríamos andar sempre de cabeça erguida. Depois percebi que o jeito de se portar fisicamente é, para os não-índios, uma forma muito eficaz de impor respeito.

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Quando passei a frequentar aulas fora da aldeia, é que compreendi o significado da palavra preconceito e todos os seus atributos. Para a minha surpresa esse preconceito não era diretamente comigo, pois com os meus cachos quase louros e os olhos nada negros, na adolescência, as pessoas nem desconfiavam que eu fizesse parte daquele „bando de bugres‰, como ainda muitas vezes nos denominam. Foram tantas as vezes que senti meu coração pulsar raivosamente ao ouvir denominações desprezíveis a respeito de meu povo. Raiva era a única reação que uma criança de 10 anos poderia ter numa situação como aquela, a não ser a vez em que no impulso, bati no rosto de uma colega ao ouvir dela denominação semelhante. Eu que crescera ouvindo nas aulas de religião de todas as semanas que pecamos contra Deus, ainda que em pensamento, se desejássemos o mal ao outro. Imagine então o grau desse pecado quando praticado.

Entretanto, cometi esse e tantos outros pecados, como por exemplo, guardar cada uma dessas situações em minhas lembranças, não como rancor, mas tenho pensado em revidá-los da melhor forma através de meus alunos. Fico feliz hoje ao ver crianças com capacidades de argumentação enfrentando situações parecidas. Crianças imunes aos danos psicológicos desse preconceito brutal que persiste em nossa sociedade.

Como professora kaingang, acredito que o fortalecimento da identidade da criança quanto a sua descendência étnica é um aspecto fundamental a ser trabalhado na escola, para que a criança possa adquirir segurança para superar essa fase com mais tranquilidade. Pois houve um tempo, não muito distante, que o preconceito produzia um efeito devastador, como relata DÊAngelis:

„Deixar de ser identificado como „bugre‰ pelos regionais passa a ser o sonho de muitos indígenas que buscam, pelos meios possíveis, demonstrar sua „integração‰ e sua condição de civilizado: pela língua portuguesa, pela conversão a igrejas e seitas religiosas trazidas pelos ÂbrancosÊ, pela aquisição de bens materiais. Nessa perspectiva, os ritos indígenas, as crenças próprias de sua cultura e a própria língua indígena passam a ser marcas de um tempo passado indesejado, a ser superado e, se possível, esquecido. (...)‰.

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Esse período, apesar de ser um „estágio psicológico‰, superável para o kaingang, é preciso que se trabalhe com os jovens. Muitas vezes o que faz a criança resistir todas as dificuldades e concluir seus estudos é o fato de a família sonhar junto com esse jovem, a se qualificar para tomar frente à autonomia de seu povo: se formar em direito para cobrar o cumprimento das leis, ser professor para ensinar a língua e assim por diante.

Recordo-me perfeitamente das palavras de meu pai, quando pensei seriamente em desistir de meus estudos na quinta série. Olhou em meus olhos e disse que eu precisava continuar meus estudos para ser advogada e defender nossas terras, pois manter a posse estava cada vez mais difícil. E que futuramente seríamos nós que estaríamos brigando pelas mesmas terras, pelas quais muitos haviam dado suas vidas. Na época não entendi muito bem qual era a ligação do estudo com a proteção das terras. Só sei que não tinha outra opção a não ser me esforçar para não reprovar naquele ano. Pois como na escolinha da aldeia só aprendíamos o português na segunda série, depois de ser alfabetizada no kaingang, chegávamos à quinta série com o português defasado. Assim é ainda hoje, este fato não é levado em consideração pelos professores das escolas de fora. Era muito comum as crianças indígenas reprovarem nesta série.

No meu caso, com um esforço incalculável consegui decorar todos os verbos imagináveis, em todos os tempos e modos, e consegui passar de ano. Somente hoje vejo alguma utilidade disso, contribui para eu compreender melhor os estudos sobre linguística, meu projeto de futuro.

E nesse percurso, perseguindo sonhos e objetivos, no ano de 2000, quando estava concluindo o ensino médio, o acaso me torna professora. Nas coordenadorias são abertas as inscrições para contratar professores bilíngues. Como era uma das poucas pessoas com grau mais alto de escolaridade na aldeia, fui convocada para a inscrição.

E no mês de maio do mesmo ano, comecei, então, a lecionar. Porém sem a mínima noção da responsabilidade que eu estava assumindo naquele momento. Não demorou muito e a responsabilidade chamou. De cara me deparei com a falta de material para o trabalho, e consequentemente a falta de qualificação para a elaboração desse material como também para lecionar. ¤

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medida que eu buscava e lia sobre educação escolar e principalmente sobre educação escolar indígena, sentia aumentar significativamente essa responsabilidade. Percebi que o trabalho a ser feito, estava além da sala de aula, além de ensinar a ler e escrever.

Para a minha imensa felicidade, no início do quarto semestre do mesmo ano da minha estréia como professora, participei do meu primeiro curso de formação, coordenado pela secretaria estadual de educação. Era um encontro a nível estadual, professores de todas as aldeias do Rio Grande do Sul estavam presentes, kaingang e guarani. O tema: Projeto Político Pedagógico das Escolas Indígenas do Rio Grande do Sul. A proposta era para discutir e elaborar dentro do específico e diferenciado. Era tudo o que eu buscava, ou melhor, era o que os professores indígenas buscavam há muito tempo. Participei atentamente de todas as discussões. Ouvir os professores mais experientes vindos de uma longa trajetória era o melhor que me julguei a fazer, para que eu pudesse extrair o maior número possível de informações sobre esse assunto.

Retornei para a aldeia com inúmeras idéias a serem trabalhadas na escola. Estava tudo mais claro para mim sobre a função que deveríamos atribuir as nossas escolas. Deveria ser um espaço, onde nossas crianças pudessem refletir sobre sua história e sua cultura. Um instrumento de fortalecimento de sua identidade.

Em fevereiro de 2002, o documento que elaboramos foi aprovado. Pela primeira vez as escolas indígenas do Rio Grande do Sul têm um ensino direcionado aos interesses das comunidades indígenas.

Foi uma grande conquista, uma vez que no Rio Grande do Sul encontramos muita resistência por parte do sistema educacional.

No final de 2000, enquanto discutíamos o Projeto Político Pedagógico de nossas escolas, os povos de Mato Grosso conquistaram o primeiro curso de formação de professores em nível de 3… grau. Através da administração da Funai de Santa Catarina, recebi o manual de inscrição para o vestibular, com data para janeiro de 2001.

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O que constava naquele edital era muito belo aos olhos de quem conhecia a longa trajetória de luta dos povos indígenas. Era um marco na história do Brasil. E eu queria fazer parte dessa história. Queria ser um dos duzentos alunos a carimbar o passaporte para um novo tempo na Educação Escolar Indígena.

Nas duas semanas que restavam para o vestibular li tudo que encontrei sobre índio, principalmente na área de educação. No dia marcado partimos de ônibus para Mato Grosso. Éramos num total de quatorze Kaingang do estado de Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Durante as quase 40 horas de viagem, muitas vezes me perdia em meus pensamentos, imaginando como seria aquele vestibular. O que representaria ter uma formação como aquela para eu e meu povo. Todos nós tínhamos bem claro que estávamos representando um povo, aliás um dos maiores do país. De uma coisa eu estava certa, ninguém insultaria o nome de meu povo em minha presença, todos serão índios, com uma história em comum. Isso me tranquilizava.

Chegamos à cidade de Barra do Bugres exatamente no dia do vestibular. Havia muita gente. Representantes de etnias de quase todos os estados do país buscavam por uma vaga.

No final do mesmo dia retornamos para Cuiabá para tomarmos o ônibus de volta para nossas aldeias de origem, no Rio Grande do Sul.

Enquanto eu me ocupava com minhas aulas, sonhava e torcia, mesmo que timidamente, por uma vaga. Sabia como era difícil conseguir. Pois eram apenas vinte vagas para os demais estados brasileiros e países latino americanos, e oitenta para o estado de Mato Grosso.

Quando já estava convencida de que seria impossível, veio a boa notícia. Eu era uma dos três kaingang que haviam sido aprovados no vestibular. Fiquei muito contente. Ao mesmo tempo tive uma sensação de medo. Mato Grosso era muito longe para eu que raramente saia da aldeia.

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Realmente o início das aulas foi um grande acontecimento a nível nacional e internacional. Era o início de um novo tempo na história da educação escolar indígena.

Entretanto, em torno desse acontecimento, eu vivia algo incrível em minha vida. Nunca me deparei com tantos olhares observadores e críticos como naquela semana. Eu e meus colegas kaingang junto com os acadêmicos do nordeste percebemos que estávamos sendo muito notados. Não éramos apenas mais alguns acadêmicos entre os demais como deveria ser. Éramos um contraste à realidade das etnias do centro-oeste e norte que estavam ali presentes. Dessa vez, meus cabelos e minha pele clara que antes de certa forma me protegiam do preconceito, hoje me condenavam a uma situação ainda pior. Parece que me contradiziam a aquilo que eu sempre fui, „o ser índia kaingang‰. Nossas características não estavam de acordo com o estereótipo do indígena que todos conheciam. Fomos então questionados quanto a nossa autenticidade indígena, pois estávamos ali preenchendo as vagas destinadas exclusivamente a indígenas.

Passei o mês inteiro dando explicações sobre mim, contando e recontando minha história. Eu que nunca tive dúvidas de quem eu era, pois tive o privilégio de nascer numa das regiões tida como referência por pesquisadores, quando se fala em comunidades kaingang, onde a cultura e a língua são um pouco mais preservadas, se é que se pode dizer assim. Onde meus pais tiveram o cuidado de me ensinar tudo que era de direito a uma criança kaingang: a língua, os costumes que ainda eram possíveis.

Dias difíceis foram aqueles. Recordo-me das vezes que, após longas discussões sobre identidade étnica, encontrava meus colegas profundamente revoltados.

Foi preciso fazer uma densa retrospectiva de nossas histórias, histórias de nosso povo, para que ficasse esclarecido onde e porque havíamos perdido o negro de nossos olhos e cabelos.

Cabelos enrolados são mais difíceis de cuidar. Mas os meus nunca me deram tanto incômodo como naqueles dias. Renderam tantas explicações... Daí então, para mim não são apenas cabelos, mas cachos de histórias de meu povo. Histórias que tenho procurado desvendar a cada dia com os meus alunos para

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que possamos construir de fato uma Educação Escolar realmente Específica e Diferenciada, que venha a atender nossos anseios.

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A TRILHA DA MINHA FORMAÇ‹O1

Eu penso que a educação escolar indígena específica e diferenciada é muito mais do que

alfabetizar na língua materna, é principalmente estar alicerçada na forma tradicional de ensinar de

cada povo (Andila Nivygsãnh)

Sou índia Kaingang, nascida na Reserva Indígena de Carreteiro, no Município de ˘gua Santa, Rio Grande do Sul. Meu nome em kaingang é Nivygsãnh e em português é Andila.

Sou professora bilíngue, formada na primeira turma de professores indígenas bilíngues de um curso pioneiro no Brasil e na América Latina.

O povo Kaingang pertence ao tronco linguístico „Jê‰. É um dos três maiores povos indígenas do Brasil, somando em torno de 30 mil pessoas, habitando a região sul, nos Estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Quando completei oito anos de idade, meu pai chamou-me certo dia e me falou: „- Filha, você já está uma mocinha e precisa começar a ir para a escola, pois precisa aprender a escrever‰.

1 Memorial de Andila Nivygsãnh.

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Falava de uma escola que o Estado do RS havia construído para nós dentro da nossa aldeia, lá pelos anos 50, na Reserva Indígena Carreteiro, Município ˘gua Santa/RS, aldeia natal da minha mãe, Joana Caetano, onde também nasci.

Na manhã seguinte, lá fomos nós, eu e meu pai, para me apresentar ao professor e, provavelmente, efetuar minha matrícula. Agarrada na mão de meu pai, eu ia feliz, com meu primeiro caderninho, que minha mãe colocava dentro de um saco plástico, juntamente com um lápis, com uma borrachinha branca acoplada à ponta do lápis preto. Não podia imaginar que aquela alegria, logo se tornaria o meu primeiro pesadelo a caminho de minha formação.

Meu pai cuidou de tudo, depois me deixou na escola e voltou para casa. Meu professor, que não era indígena, me levou até a classe, como era chamada pelos brancos. Nos bancos sentavam duas crianças cada, e o professor começou então a falar comigo, mas eu não entendia nada. Quanto mais ele tentava se comunicar comigo, mais assustada eu ficava. Saí correndo da sala, chorando desesperada, tomei o caminho de volta para minha casa.

Nos próximos dois anos, em vão meu pai tentou me fazer voltar para a escola, mas não me convenceu. No decorrer deste tempo, eu já havia aprendido a falar algumas palavras em português, então aceitei voltar para a escola.

Apesar de ainda enfrentar muitas dificuldades de comunicação, com 16 anos terminei a 5À Série, chamado de curso primário.

Quando eu me preparava para realizar o chamado Exame de Admissão, para prosseguir meus estudos no ginásio, de 6À a 8À Série, o servidor da FUNAI, responsável pela nossa reserva mandou chamar meu pai, que chegando lá, recebeu a „ordem‰ para que me preparasse porque em poucos dias a FUNAI me levaria para um colégio interno, em outra reserva indígena, chamada Guarita, localizada no Município de Tenente Portela/RS.

Lá, a Funai, em convênio com a IECLB (Igreja de Confissão Luterana do Brasil), tinha criado uma escola para formar monitores bilíngues em nível de 1… Grau, chamado CTPCC (Centro de Treinamento Profissional Clara Camarão), e era para lá que iriam me levar.

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VOLUME I | MEMŁRIAS E AFETOS NA FORMAÇ‹O DE PROFESSORES

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Quando meu pai voltou e contou para minha mãe e eu, ele não conseguiu esconder sua tristeza e nem as lágrimas que molharam o seu rosto. Nós, kaingang, não nos separamos assim dos nossos filhos, principalmente da filha mulher, que mesmo depois de casada pode continuar morando com os pais.

Fiquei tentada a não ir, mas certamente meu pai seria responsabilizado e penalizado. Outros dois rapazes, que também já haviam terminado a 5À Série tinham sido „convocados‰, então já não iria sozinha, agora éramos três kaingang daquela aldeia, fiquei mais encorajada.

Assim, no começo do ano de 1970, tivemos a nossa aula inaugural, com muitas autoridades presentes e mais ou menos 30 jovens kaingang, que, fardados e perfilados, cantaram o Hino Nacional. Até esse momento não sabíamos por que estávamos ali. Ninguém nos dava nenhuma explicação. Não sei de quem partiu a iniciativa do Curso, mas hoje sei que ambos tinham interesse, ainda que bem distintos: Integração e evangelização. Fiel a tal ideologia, o regime de internato foi uma quebra brutal de nossos hábitos e costumes, o cumprimento de horários para todos os trabalhos, das 06 horas da manhã até as 22 horas, eram rigorosamente cobrados, nos tornamos escravos do relógio.

Em menos de seis meses, nossos ânimos estavam sensivelmente alterados, não aguentávamos mais a rotina. Então fazíamos greve de fome, de ficar cabisbaixo na sala de aula, de não fazer as tarefas diárias: era paralisação total. Então convocavam reunião de emergência da coordenação conosco. Esclareciam-nos que o projeto tinha normas, que precisavam ser cumpridas etc.

Ainda no primeiro semestre, levaram a maioria da moças embora, deixaram apenas cinco, chorei porque não me levaram também. Não sei até hoje porque fizeram isso. Sentimos muita falta delas, eram as mais velhas e com elas nos sentíamos mais protegidas. Na época entendemos ser discriminação, mas como a nossa opinião não mudaria o rumo do projeto ficamos caladas. E assim ficamos em 19 estudantes kaingang em formação, que depois de formados fariam a alfabetização na língua materna.

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Nossas greves senão resolviam nossos problemas, por outro lado abriam as portas para o diálogo entre a direção e nós, e isso já considerávamos um avanço. Dessa forma decidimos cooperar para facilitar a nossa estada ali, até porque não tínhamos outra alternativa, se fugíssemos, alguém nos traria de volta, foi então que nos concentramos em nossos estudos. „Inicialmente houve manifestação de autorejeição na classe sempre quando era feita qualquer referência ao Povo Kaingang e outros grupos indígenas‰.

O frio chegou, aumentando ainda mais a saudade de casa, do calor humano das famílias e do fogo no chão, mas não podíamos fazer fogo para nos aquecer, porque eles diziam que a fumaça fedia nas nossas roupas e cabelos.

Escrevia para meu pai, dizendo que estava sofrendo muito e passando fome, que viesse me buscar, mas tínhamos que entregar a nossa correspondência para a direção levar para o correio. Nossas cartas eram violadas e lidas e nunca chegaram aos seus destinos.

Não tínhamos o costume de comer verduras e legumes, como repolho, tomate, alface etc., essas coisas, então a diretora sentava à mesa e servia uma pratada de verdura para eu comer primeiro, depois, então, ganhava arroz, feijão e carne, se não comesse verduras, acabava ficando sem comer.

Num fim de semana, fugimos para a mata, para colher nossas verduras e legumes. Na volta, não nos deixaram preparar a nossa comida nas panelas da cozinha, como se fosse algo repugnante ou prejudicial à saúde, então nos tomaram para jogar fora. Passado algum tempo, descobrimos que tinham levado as nossas folhas para análise, e descobriram que as propriedades nutritivas delas superavam o espinafre, por isso, queriam saber onde encontramos para tirar as sementes. Respondemos que não era mais tempo, e que não tinha todo tempo, nem tempo certo.

Não queríamos aprender a escrever o kaingang, uma língua que o nosso povo queria que a esquecêssemos, era mais forte do que nós: era uma rejeição que vinha de dentro, marcas da discriminação sofrida pelo povo kaingang na década de 70, então debruçávamos sobre nossas carteiras. „O tempo passaria enquanto eles permaneciam nesta posição e às vezes o resto do tempo de aula se perdia por causa do desespero de grupo que os dominava‰.

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VOLUME I | MEMŁRIAS E AFETOS NA FORMAÇ‹O DE PROFESSORES

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Aos poucos e a muito custo aprendemos a escrever a nossa língua. Foi um momento único e histórico para nós, era a primeira vez que víamos ela escrita. Percebemos então que ela também era uma língua boa e de valor, porque também podia ser escrita. Um misto de alegria e arrependimento tomou conta da gente e não deixamos de sentir orgulho dela. Para completar nossa alegria tivemos aula de datilografia e descobrimos que a máquina também escrevia a nossa língua: ficamos todos muito orgulhosos dela! Para comemorar fizemos um jornal de circulação interna na nossa língua.

Como era proibido conversar a sós, com qualquer dos meus colegas, frequentemente eu estava de castigo, pois eu achava isso tão natural. Meus castigos não eram assim, um dia, nem dois, era uma semana, um mês, e até meses, eu até já morava na casa da diretora, pois os meus castigos constituíam em limpar a casa dela, que ficava fora do centro, de onde eu vinha só para assistir as aulas e fazer as refeições. Eu fazia também gravações na língua kaingang com ela e a tradução do Novo Testamento em Kaingang. Eu ficava lá isolada dos meus colegas, escrevendo. Por um lado era bom, porque de vez em quando ela fazia uns bolos muito gostosos que ela me dava também.

Digo isso, porque passamos muita fome lá, comemos por um bom tempo „triguinho‰ (era uma canjica de trigo), que vinha na merenda escolar, algumas vezes cheia de bichinho.

Aos poucos retomávamos a nossa identidade cultural, porque estávamos trabalhando com a nossa língua e ela não é vazia: é a expressão maior da nossa cultura.

No dia 07 de Setembro, na unidade local. Os estudantes apresentavam um quadro impressionante, carregando a bandeira de seu país e a da sua escola. Marcharam de cabeças erguidas enquanto os altofalantes proclamavam que eles eram a primeira turma de formando Monitores Bilíngues no Brasil, e que eram índios kaingang. Tal aceitação pública por parte da comunidade não-indígena era algo inédito.

E assim o tempo foi passando e nós nos preparávamos para dar aulas, confeccionando jogos didáticos, muito caprichados, quebra-cabeças, jogos de memória e outros.

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Quando o dia de sua formatura estava se aproximando, encorajamo-las a pensar no lema que deveriam levar consigo como professores para seu povo. Eles proclamaram seu lema: Através do ensino lutamos pela emancipação do nosso povo. Estas palavras não deixavam dúvidas de que eles estavam na sua profissão, orgulhosos por serem kaingang.

Final do ano de 1972, nos formamos. Foi um acontecimento nacional e internacional, amplamente divulgado. Não tínhamos clareza do que isso representava para nós, nem para os brancos, mas para eles era bem claro o que queriam, nos usar enquanto alfabetizadores da língua kaingang para fazer o processo da língua Kaingang para o português em pouco tempo. Então os professores brancos fariam o resto, abreviando a integração dos kaingang à sociedade nacional, usando os índios e a sua própria língua para descaracterizá-los enquanto povo.

Foi uma festa de arromba. Estávamos impecáveis: as meninas de vestido longo, num tecido fino com tonalidade azul bem claro, com estampa discretamente florida em azul mais forte, muito bonito, eu ainda me lembro. Os rapazes estavam de social, com direito a gravata e tudo. Como eu gostaria de olhar as fotos da nossa formatura, que não foram poucas, mas nunca tivemos acesso sequer para olhá-las!

Entre tantas outras coisas que a nossa diretora falou em seu discurso na solenidade da nossa formatura, uma ficou gravada na minha mente: „que a partir daquele momento não existiam mais ali alunos e professores, mas todos colegas de trabalho‰, estávamos nos sentindo muito importantes.

Após a solenidade, houve comes e bebes, foram servidos dois barris grandes de uma bebida chamada ponche. Nos chamou atenção porque era feita com frutas picadas e como os kaingang apreciam de modo especial as frutas, atacamos sem cerimônia, logo estávamos faceiros, falantes e prontos realmente para começar a festa. Não sabíamos que aquela bebida continha certa porcentagem de rum e aguardente. Não sei até hoje porque serviram aquela bebida na nossa formatura uma vez que era proibido aos índios consumirem bebidas alcoólicas. Quem sabe nem tinha sido preparado para nós.

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Quando todos se foram, e nós só iríamos retornar para nossas aldeias somente no dia seguinte, a diretora nos comunicou que iríamos ao cinema naquela noite, em Tenente Portela, Município vizinho, assistir um filme que estava sendo exibido, intitulado „Rosinha Minha Canoa‰, de José Mauro de Vasconcelos, se não me falha a memória, como presente de formatura.

Corri para casa da diretora, arrumar as minhas coisas para dormir pelo menos a última noite com as minhas colegas no nosso dormitório. Na porta, deparei-me com a diretora que estava voltando para casa e logo foi me perguntando: „aonde você pensa que vai?‰. Respondi: „ao meu dormitório, uma vez que agora somos colegas, não somos?‰. Fui saindo apressadamente antes que ela me fizesse voltar.

Alguns meses depois, a FUNAI, através de uma portaria coletiva contratou todos nós para então começarmos a trabalhar.

Em 06/07/72, a FUNAI baixou uma portaria que decretava que a educação bilíngue era um direito de todos os grupos indígenas. Isto possivelmente foi em decorrência deste projeto piloto que foi considerado um sucesso. Os monitores merecem elogios por isso.

Nos dividiram pelos três estados do Sul (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul). A nossa separação foi mais um sofrimento para nós, pois já estávamos acostumados a viver juntos como uma grande família.

Passado algum tempo, segundo o Setor de Educação da FUNAI de Brasília, que acompanhara os primeiros passos da nossa caminhada enquanto monitores, as coisas não iam bem. Por isso foi chamada uma reunião no CTPCC, Centro onde nos formamos, para todos os professores da FUNAI (não-índios), e monitores bilíngues, como éramos chamados, para tentar soluções pacíficas entre os professores „fóg‰ (em kaingang significa „não-indígena‰) e os monitores bilíngues.

O encontro havia sido programado para uma semana, de maneira que tivéssemos tempo de realizar os acertos e encaminhar os trabalhos em conjunto com os professores „fog‰. A Funai de Brasília estava representada nas pessoas de um professor, chefe do Setor de Educação e dois antropólogos. A reunião acabava de começar quando os professores „fog‰ nos alvejaram com acusações

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infundadas como: que estaríamos fazendo as crianças perderem tempo alfabetizando-as em kaingang, e que não tínhamos escolaridade suficiente para exercer o magistério, sendo assim o projeto não tinha razão de ser, que tudo poderia ficar bem se os monitores só auxiliassem os professores „fóg‰ na limpeza, na merenda e no diálogo entre eles e as crianças.

Então percebemos que não havia diálogo, terminamos a reunião no primeiro dia, e até ao anoitecer não queríamos nenhum professor „fog‰ nas dependências do CTPCC. Foi uma correria, mas todos foram embora antes do anoitecer. Então pudemos sentar e avaliar a reunião e traçar novas metas para enfrentar a situação.

Daquele dia em diante a relação dos professores e monitores começaria a mudar, mesmo que só aparentemente, já era um avanço, porque aquela briga ainda daria „muito pano para manga‰.

As nossas escolas sempre tiveram alguns livros didáticos por lá, então olhávamos e ensinávamos aqueles conteúdos na nossa língua. Os professores „fog‰ não nos ajudavam, mas mesmo assim as crianças aprendiam mais com a gente do que com eles. Aos poucos foi abrindo o entendimento dos professores „fog‰ com relação à importância do nosso trabalho. Então as barreiras começaram a ruir e começamos a conviver no mesmo espaço, a escola.

Até o fim dos anos 80, nossa luta foi mais voltada para assegurar nosso espaço dentro das nossas escolas e o trabalho junto às famílias kaingang, de convencimento da importância da nossa língua na preservação da nossa cultura e, principalmente, da nossa cultura na nossa identificação enquanto povo, para garantia dos nossos direitos. Para assim então aceitar o ensino bilíngue para as suas crianças. Foi um trabalho lento para que compreendessem que escrevendo nossa língua, estávamos também trabalhando nossa cultura.

¤ medida que os monitores bilíngues iam trabalhando, íamos conquistando as nossas comunidades com os resultados do nosso trabalho. Aos poucos fomos avançando nas outras áreas de conhecimento. Claro que tínhamos as limitações da nossa formação, pois fomos preparados somente para alfabetizar na nossa língua, somente isso, motivo que deu origem ao nome que nos deram „monitores bilíngues‰, nosso programa não tinha continuidade.

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Foi preciso passar 10 anos para percebermos que não era essa escola que precisávamos, estava nos despindo da nossa cultura, e não era isso que queríamos. Em 1985, a educação escolar ofertada para as nossas crianças, sem dúvida nenhuma, não era a melhor, estava incutindo nelas valores que desmereciam a nossa cultura, estava sendo danosa para as nossas comunidades. O nosso trabalho de alfabetizar as crianças e introduzir o português oral estava facilitando o trabalho de aculturação das nossas crianças pelos professores „fóg‰. Foi preciso trabalharmos mais de 10 anos para ver que estávamos a serviço da desintegração cultural do nosso povo.

Precisava voltar a estudar, procurei uma escola de 2… Grau Supletivo, apresentei a documentação exigida e efetivei a minha matrícula, mas antes que começassem as aulas me chamaram na secretaria da escola, descobriram que o Certificado de 1… Grau que recebi do CTPCC não era reconhecido pelo Conselho Estadual de Educação, submeteram-me a uma prova para que meus estudos fossem reconhecidos e regularizados.

Fui aprovada e pude então cursar o 2… Grau. Em dois anos de aulas frequentadas, terminei em 1989 o Ensino Médio, coroando meu sacrifício, pois trabalhava o dia inteiro na FUNAI e à noite ia para a aula, isso sem falar que, nesta época, minhas filhas eram todas pequenas.

Contudo, continuamos, eu e meu povo, sendo tratados como quem estava condenado a sempre depender dos outros. Isso começou a me inquietar e, por consequência, em 1992, cinco kaingang fizeram vestibular na Universidade de Ijuí/RS, em cinco áreas estrategicamente escolhidas: direito, enfermagem, pedagogia, agronomia e história. Não conseguimos a vaga para direito, mas ingressamos nas outras quatro áreas. Eu me lembro que saiu um artigo num jornal que dizia: „¸ndios invadem a universidade‰.

Para nossa decepção, apenas um terminou o curso, o de enfermagem, que hoje trabalha em sua comunidade.

As causas da desistência dos outros três foram várias. Não conseguiram se acostumar na cidade, e a condição financeira era precária para permanecer estudando.

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Quanto a mim, que cursava pedagogia, tenho particularmente as minhas razões, desisti porque o que se tratava no meu curso nada tinha a ver com os meus anseios e expectativas enquanto professora indígena, tinha também muita dificuldade para acompanhar a turma, era tudo muito corrido, os professores falavam demais e me perdia no meio de tantas falas, e depois, o professor saía e nem perguntava se alguém ficou com alguma dúvida, em seguida aplicava a prova. Era como de diz: „cada um por si e Deus por todos‰. Era assim, um querendo ser melhor que o outro. Desanimei e larguei a faculdade. Me doeu muito, porque sabia o que representava para mim e para o meu povo a minha formação no 3… grau, eu estava abrindo mão da única forma de ajudar a mudar o rumo da Educação Escolar Indígena do Povo Kaingang.

Minha preocupação maior era com os professores que alfabetizavam na nossa língua, pois desde que começamos a trabalhar nunca tivemos uma pessoa preparada para nos ajudar nas nossas dificuldades na língua kaingang. Sentia muito não ter terminado meu curso, mesmo que não me ajudasse muito, mas estaria mais apta para fazer frente às investidas dos professores brancos.

Enquanto queríamos as garantias do ensino diferenciado para conservar nossa cultura, não tínhamos quem nos ajudasse nas nossas dificuldades no ensino bilíngue, propriamente dito, o que ainda estava segurando pelo menos a língua, e eu via que os professores indígenas, pelas dificuldades enfrentadas na alfabetização na língua kaingang, e por falta de orientação e material didático apropriado, estavam deixando a língua e alfabetizando em Português, por ter mais recursos de que lançar mão.

Os anos foram se passando. Não pensava mais que pudesse ajudar os professores kaingang, quem sabe algum dia alguém dos nossos chegasse lá, para fazer esse trabalho, mas quem sabe tarde demais, para um povo que gradativamente está deixando de falar sua língua, como é o caso do Povo Kaingang.

Assim como dentro da FUNAI existem aqueles servidores relapsos, temos a sorte que existem algumas poucas pessoas que tem uma visão diferente, e nos têm ajudado, dentro das suas limitações. Assim sendo, alguns anos mais tarde, alguém da FUNAI teve acesso ao material informativo sobre uma tal universidade indígena, e mandou-me pelo correio. Continha os formulários

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para inscrições, corri atrás e consegui inscrever três professores da minha aldeia, tudo na correria, pois as inscrições já estavam se encerrando.

Quando se aproximou o dia do vestibular, a FUNAI de Chapecó/SC, providenciou as nossas passagens e embarcamos rumo à Cuiabá/MT, mais precisamente para Barra do Bugres/MT, em nove kaingang num total para pleitear vinte vagas ofertadas para os outros estados da federação. Quando vi o campus da UNEMAT cheio de índios das mais diferentes etnias, percebi que não iria ser fácil.

Passados alguns dias, já em minha aldeia, fui avisada que eu havia passado no vestibular. Efetuei minha matrícula por fax, e fique sabendo que apenas três kaingang tinham sido classificados, somente eu da minha aldeia.

Quando chegou o dia, viemos os três para fazer a primeira Etapa, outra vez estava cheia de esperança, senti mais uma vez a importância de voltar a sonhar.

Começaram as aulas. De cara, começamos a estudar as nossas origens, nossos povos, culturas e línguas de 36 etnias diferentes. Os sons de cada língua estão sendo estudados aqui. Suas representações gráficas e fonéticas. Cada etnia está descobrindo a estrutura de sua língua, etnomatemática etc. Aqui, não estamos brigando com a máquina de escrever para falar kaingang, estamos numa verdadeira „guerra‰, de línguas cruzadas com o „computador‰, porque estamos querendo que ele fale não apenas kaingang, mas as 36 línguas indígenas diferentes, faladas pelos acadêmicos do 3… Grau Indígena.

Nós, kaingang e outros povos indígenas mais aculturados, de outras regiões do Brasil, sofremos muita discriminação de alguns povos indígenas do Mato Grosso no 3… Grau Indígena, principalmente dos Xavantes, por terem suas culturas mais preservadas, que por essa razão se achavam mais índios. Mas tudo isso teve seu ponto positivo, pois tivemos oportunidade de socializar as diferentes histórias de contato destes povos indígenas que compunham o 3… Grau Indígena, possibilitando a compreensão de que tudo isso resultou do processo de „colonização‰ do território brasileiro, em que os povos indígenas mais afastados do litoral ficaram mais preservados em detrimento dos povos indígenas do litoral que foram contatados a „ferro e fogo‰, em que nações

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inteiras foram dizimadas pelas frentes colonizadoras. Toda essa polêmica resultou na gratidão e reconhecimento dos povos indígenas mais favorecidos neste processo, pelos povos mais atingidos e expropriados, tanto territorial, como culturalmente. E assim, o restante do curso prosseguiu sem mais discriminação.

Hoje somos três kaingang formados no 3… Grau Indígena, eu da Comunidade de Serinha (Ronda Alta/RS), Márcia da Comunidade Indígena de Nonoai (Nonoai/RS) e Sandro da Comunidade Indígena de Xapecozinho (Xanxerê/SC), muito gratos aos professores indígenas do Mato Grosso (nossos colegas), ao Coordenador do Projeto, Elias Januário, pela sensibilidade de dividir conosco a oportunidade da formação específica em nível superior.

Enfim, posso dizer que realizei o meu maior sonho, de fazer o meu 3… Grau e, principalmente, específico em Educação Escolar Indígena, porque sei que assim poderei ajudar em um futuro bem próximo na formação dos jovens do nosso povo. Posso ver jovens kaingang com orgulho de sua origem, com espírito crítico, imunes à manipulação dos brancos, com clareza das artimanhas da política indigenista, quanto da política indígena e de todos os nossos problemas, para que, numa tarefa conjunta, possamos conduzir o nosso povo, com segurança pelo caminhada tão sonhada „autonomia intelectual‰. Considerando que este é o fruto da formação específica e diferenciada dos professores indígenas!

Assim fica sempre dentro de nós, a tristeza de não podermos estar fazendo a formação dos professores kaingang aqui na região sul, que também esperam por uma iniciativa desta.

Hoje temos a UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, abrindo espaço para a formação de jovens kaingang, inclusive uma especialização onde estamos em três kaingang participando com intuito de construir um projeto de formação de jovens e adultos indígenas, no estado do RS, chamado PROEJA Indígena, um projeto do Ministério da Educação. Estamos otimistas com relação a este projeto, uma vez que o Estado enquanto responsável legal pela oferta da formação específica aos professores indígenas, não está assumindo este papel, e os professores indígenas se encontram em prejuízo e, consequentemente, a qualidade de ensino nas nossas escolas.

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MATRICIAMENTOS E MODELOS DA/NA DOC¯NCIA: A ESCRITA DE SI NOS MEMORIAIS FORMATIVOS

DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA

Ana Paula Dal Forno Dal Osto Baier1 Rafael Arenhaldt2

Resumo

Este artigo procura fazer um estudo sobre os Memoriais Formativos escritos pelos professores-alunos do Curso de Especialização em Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrada à Educação de Jovens e Adultos do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Instituto Federal Farroupilha – Campus São Vicente do Sul/RS, memoriais estes, apresentados como trabalho final do Primeiro Módulo – Matriciamentos da Formação Docente. Tendo como objetivo os modelos de docência que se identificaram e se apoiaram para ter o seu jeito docente de ser/estar. Para se efetivar este estudo, utilizaram-se como instrumentos investigativos o Diário de Reflexões, os Memoriais Formativos e os referenciais bibliográficos que tratam sobre o

1 Especialista em Educação PROEJA e Educação Ambiental. Pedagoga. Professora da Escola Municipal Dr. Ayres Cecconi. Endereço Eletrônico: [email protected] 2 Doutorando em Educação no PPGEDU/UFRGS. Professor da Especialização PROEJA. E-mail: [email protected]

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tema abordado. Por meio da leitura das escritas de si, nos Memoriais Formativos, e a Roda de Chimarrão desencadeiam-se as histórias de vida de professoras que se propuseram a estudar para atender com um olhar e uma leitura almada os alunos da Educação Profissional de Jovens e Adultos. Faz-se o uso do nome de árvores para denominar as „contadoras de histórias de si‰, para tratá-las de uma forma mais afetiva, até mesmo pela simbologia presente em cada nome de árvore por elas escolhido.

Palavras-chave

Matriciamentos. Memorial Formativo. Histórias de vida.

Cevando o chimarrão: A escrita dos Memoriais Formativos

Escutar a docência, nas suas mais diversas manifestações, é captar suas pulsações, seus ritmos e suas cores. É um fluir de emoções e lembranças

que constituem e afirmam as várias e diversas formas e jeitos de ser docente e estar na escola

(Arenhaldt, 2005, p. 33).

Escrever-se, descrever-se, colocar-se diante de um trabalho final do Primeiro Módulo – Matriciamentos da Formação Docente – do Curso de Especialização em PROEJA, é repensar toda uma trajetória de vida com alegrias, frustrações, medos, sucessos, mágoas. É mexer em gavetas que até então, estariam (ou não!) fechadas para ajeitá-las e torná-las um Memorial Formativo.

Trajetórias que levaram os sujeitos da pesquisa a tornarem-se docentes ou estarem docentes, suscitados pela Formação de Professores em PROEJA, atender com um olhar e uma leitura almada, uma especificidade de alunos que, até então, tem sido motivo de pouca preocupação da sociedade brasileira e de suas políticas públicas educacionais.

Os Memoriais Formativos são importantes ferramentas-fontes para o retrospecto das ações vividas, tomada de consciência das experiências e lições que cada um retira do que viveu/está vivendo. Permitem ainda, uma

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oportunidade de percepção de que são possuidores de conhecimento e que podem contribuir para a compreensão e aperfeiçoamento do processo de ensino e aprendizagem.

Parar, pensar, colocar no papel o que muitas vezes, fica escondido por trás de uma „proteção‰ criada para as aventuras e desventuras da vida docente e pessoal. O Memorial Formativo é uma ponte para compreendermos como o escrever é um instrumento de expressão, de reflexão, de entendimento, de aprendizagem de uma trajetória; é um importante instrumento para apre(e)nder quem somos, do ponto de vista pessoal e profissional, bem como da nossa atuação como educadores/pessoas, pois favorece um (re)pensar sobre o trabalho realizado no (per)curso de formação, com uma percepção crítica das possibilidades, limites, implicações e compromissos, do conhecimento de si e do outro, da própria vida e do próprio trabalho.

O Memorial Formativo é um gênero discursivo que se constitui de um espaço de reflexão e registro e que entrecruza saberes da experiência atual com a história pessoal e/ou profissional. É um texto narrativo escrito a partir da memória, da lembrança, da recordação, da experiência de momentos vividos.

O estudo dos memoriais é a escrita de si, do que se pensa, do que se fez em um determinado lugar-espaço-cenário, de que forma e do por quê. Constitui uma observação de como recolocar em circulação as representações acumuladas durante a trajetória de vida. Bolívar (2002, p.69) relata que uma formação para ser significativa „requer que cada adulto compreenda, se aproprie de sua própria formação e a reconstrua a partir de sua história de vida‰.

Ao retornar nosso olhar para o passado para recuperar caminhos da trajetória vivida, sempre o fazemos tendo em vista o momento no qual estamos vivendo, os saberes que estão presentes: livros, viagens, paixões, amores, música, os sentimentos que se sente (ou se sentiu), as conversas, os colegas, o aluno, as pequenas, às vezes, quase imperceptíveis, coisas do cotidiano. Tardif (2002, p. 11) assim expressa:

O saber não é uma coisa que flutua no espaço: o saber dos professores é o saber deles e está relacionado com a pessoa e a identidade deles, com a sua experiência de vida e com a sua história

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profissional, com as suas relações com os alunos e com os outros atores escolares.

A atividade de escrever um Memorial Formativo leva à reflexão sobre os saberes que estão juntos na nossa memória, funcionando como uma ferramenta privilegiada para a compreensão do processo de formação pessoal e profissional. É uma perspectiva que vem se afirmando progressivamente nos espaços de formação, à medida que toma as narrativas como gêneros discursivos privilegiados para os educadores escreverem suas histórias e comunicarem os seus saberes e conhecimentos (Nogueira, 2006).

Encilhando o chimarrão: Mudando o olhar da pesquisa

Fazer leituras de narrativas de vida requer uma desconstrução/cons-trução das próprias experiências tanto do professor/pesquisador como dos sujeitos da pesquisa. A narrativa leva a mudanças na maneira de compreender a si a aos outros.

Cunha destaca que

A narrativa provoca mudanças na forma como as pessoas compre-endem a si próprias e aos outros. Tomando-se distância do momen-to de sua produção, é possível, ao "ouvir" a si mesmo ou ao "ler" seu escrito, que o produtor da narrativa seja capaz, inclusive, de ir teori-zando a própria experiência. Este pode ser um processo profun-damente emancipatório em que o sujeito aprende a produzir sua própria formação, autodeterminando a sua trajetória (1997, p. 3).

Diante disso é preciso que o ator/professor esteja disposto a pensar, a separar os olhares, a colocar em dúvida algumas crenças e pré-conceitos, fazendo com isso a (des)construção da sua caminhada histórica para melhor compreender-se.

Ao narrar uma história, identificamos o que pensamos que éramos no passado, quem pensamos que somos no presente e o que gostaríamos de ser. As histórias que relembramos não são representações exatas de nosso passado, mas trazem aspectos desse passado e os moldam para que se ajustem às nossas identidades e

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aspirações atuais. Assim podemos dizer que nossa identidade molda nossas reminiscências; quem acreditamos que somos no momento e o que queremos ser afetam o que julgamos ter sido (Thomson, In: Guedes-Pinto, s./d., p. 02).

As primeiras indagações que surgiram na construção deste artigo, descrito nesta Roda de Mate de Chimarrão, foram: „O que e de que forma o movimento de reflexão de si, da trajetória e da experiência docente através da escrita do Memorial Formativo produz, afeta ou modifica no/o saber e na prática dos alunos-professores?‰.

Ao ler e reler os memoriais percebe-se que não houve uma descrição e uma reflexão sobre os processos de mudança, do que afeta, produz e modifica o saber docente, levando-se a mudar a maneira „do olhar‰ desses memoriais para um novo questionamento:

„Quais histórias/escritas de si produzem/desencadeiam/repercutem em modelos referenciais e matriciamentos da docência na pessoa?‰

Os modelos de docência estão muito presentes na identificação do docente, nesses modelos eles se espelham/apoiam para ter o seu jeito docente de ser/estar, muitas vezes não querendo ser aquele modelo que passou uma imagem de descrença com a docência.

A presença e a lembrança de experiências boas ou ruins tornam-se significativas no que tange à forma, ao jeito de ser docente na escola, ou seja, os modelos e os "matriciamentos", enquanto eram alunos, são fundamentais para construir uma imagem de ser professor. São os exemplos dos seus professores que desencadeiam um cenário de significações do que é ser um docente (Arenhaldt, 2005, p. 77).

A escrita do Memorial Formativo é um texto narrativo que evidencia uma reflexão de como nos tornamos o que nós somos; uma reflexão do porquê

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e do modo pelo qual nos tornamos educadores. É também, um olhar para o que passou, através da janela do presente, para reconstruir a trajetória na qual estamos; percebendo que somos „possuidores de conhecimentos‰, capazes de compreender e aperfeiçoar o processo de ensino-aprendizagem.

Para fazer uma análise-estudo dos memoriais me aliei a um grande „amigo‰: o Diário de Reflexões. Nele escrevi o que queria fazer, minhas frustrações, expectativas, citações de autores, fala dos professores e dos colegas em sala de aula e até nos corredores, no barzinho. Rabiscos, que foram adotados como forma de refletir sobre o andamento do que pretendia pesquisar. Tanto o Diário de Reflexões como os memoriais (produção de textos pelos professores) possuem um caráter qualitativo que auxiliaram na produção de dados para a pesquisa.

Com a definição do tema do projeto de pesquisa, passei a articular formas de ter acesso aos Memoriais Formativos dos meus colegas. Foi enviado um e-mail para as duas turmas explicitando os objetivos e procedimentos da pesquisa, buscando o consentimento e disponibilidade dos memoriais. A fim de enfatizar melhor o estudo que seria realizado, fui às duas turmas de Especialização em PROEJA para reforçar o pedido. As turmas A e B somavam sessenta alunos porém, desse total foram recebidos sete memoriais que compõem este estudo. Desses cinco eram da Turma A e dois da Turma B. A formação desses docentes está assim distribuída: dois formados em Letras, três em Pedagogia, um em Geografia e um em Informática.

O caminho metodológico que fundamenta e costura meu processo de escrita sobre os memoriais se desenvolve na leitura desses, juntamente com os suportes teóricos sobre o assunto. Nessa Roda de Chimarrão estavam presentes os Memoriais Formativos, Diário de Reflexões e os Referenciais Teóricos de Arenhaldt (2005), Barcellos (2007), Bolívar (2002), Oliveira (2004), Tardif (2002) entre outros, que auxiliaram nas leituras e nos olhares sobre a pesquisa. Cabe ressaltar que todas as docentes dos memoriais são alunas do Curso de Especialização em PROEJA, sendo todas mulheres.

Faço uso do nome de árvores para denominar as „contadoras de histórias de si‰, para tratá-las de uma forma mais afetiva até mesmo pela simbologia presente em cada nome de árvore por elas escolhido. São elas:

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- Camélia, 51 anos, formada em Letras, professora de Português em Escola Estadual na cidade de São Francisco de Assis;

- Salso-chorão, 37 anos, formada em Letras, professora de Português em Escola Estadual em São Vicente do Sul;

- Romã, 45 anos, licenciada e bacharel em Geografia, professora de Geografia em Escola Estadual em São Vicente do Sul;

- Flamboyant, 30 anos, formada em Pedagogia, professora em Escola Estadual em Santa Maria;

- Laranjeira, 41 anos, formada em Pedagogia, professora de Séries Iniciais e Coordenadora Pedagógica em Escola Estadual em São Francisco de Assis;

- Timbaúva, 30 anos, formada em Pedagogia, professora de Séries Iniciais em Escola Estadual em São Vicente do Sul;

- Ipê Amarelo, 25 anos, formada em Informática, professora substituta do Instituto Federal Farroupilha – Campus São Vicente do Sul, mestranda da Universidade Federal de Santa Maria.

Essas contadoras de histórias de si „...são como velhas árvores. Possuem uma face, um nome, uma ÂestóriaÊ a ser contada‰, como destaca Alves (1997, p. 17) no seu livro Conversas com quem gosta de ensinar.

Mate solito: O movimento da escrita de si – o enfrentamento da escritura das lembranças

A elaboração de Memoriais Formativos tem como intuito proporcionar um contexto de produção que remeta o professor a reviver seu percurso, sua trajetória escolar e (re)pensando seu lado profissional. É uma experiência importante de reflexão sobre as memórias, tanto escolares como pessoais que

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construíram esse profissional da educação, tendo assim, um valor social e afetivo.

Cunha coloca que

quando uma pessoa relata os fatos vividos por ela mesma, percebe-se que reconstrói a trajetória percorrida dando-lhe novos significados. Assim, a narrativa não é a verdade literal dos fatos mas, antes, é a representação que deles faz o sujeito e, dessa forma, pode ser transformadora da própria realidade (1997, p.3).

Alguns fragmentos de textos presentes nos memoriais identificam o enfrentamento da escrita de si, o remexer em algumas lembranças até então anestesiadas, suscitando a cartografia pessoal do professor/contador de histórias.

Colocar-se diante do ato de escrever sobre si faz cada professora lembrar de personagens de sua infância, que poderiam ajudá-la no processo de remexer as gavetas da memória, ficando a olhar as etapas da sua vida, enquanto eram escritas e talvez mudar determinadas passagens e o caminho de sua história:

Quando penso escrever sobre minha história, gostaria que houvesse um Visconde de Sabugosa tal qual no livro de Memórias de Emília a fim de que ditasse e ele escrevesse (Laranjeira, 41anos, Memorial).

O papel importante do memorial formativo está descrito nas falas abaixo, no favorecimento para o professor reinventar a si mesmo, no pensar da rotina, das tribulações passadas, nas alegrias, pois o auxilia a perceber que:

É chegada a hora de (re)viver sonhos, cheiros e perfumes, numa jornada marcada por contradições, opções, decepções, transigências, intransigências, afetos, dores, pois estas etapas foram fundamentais nos processos de transformação pelos quais passei (Flamboyant, 30 anos, Memorial).

Buscarei no mosaico de minhas lembranças, as escolhas que fiz e o que fiz com as oportunidades que o mundo me ofereceu. Em que me tornei, ainda um mistério, talvez uma grande salada de frutas de

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vários recortes de experiências e leituras de vivências que fui fazendo no decorrer de minha existência (Timbaúva, 30 anos, Memorial).

Eu não tinha mais esperança, aos 51 anos de idade, aposentada em uma matrícula, em fazer este curso, muito menos ter de falar da minha vida pessoal... encontro muita dificuldade para colocar no papel sobre mim.. aqui estou para revelar ou expor alguns fatos marcantes da minha infância, adolescência, adulta e profissional (Camélia, 51 anos, Memorial).

No decorrer do processo de escrever-se, a professora/educadora entende que o procedimento de escrita do memorial constitui uma viagem em busca de si mesma.

Sempre tive dificuldade de escrever, quando foi proposto escrever o memorial não sabia por onde começar, achei que seria muito mais difícil, mas percebi é muito prazeroso relembrar as nossas memórias e ver a importância de alguns fatos vividos no passado que marcam a nossa personalidade (Ipê amarelo, 25 anos, Memorial).

As pessoas seriam diferentes se tivessem mais tempo para lembrarem e contarem suas histórias, sem precisarem o uso de "anestesia‰, como grande parte dos personagens do mundo atual tem feito. Neste grupo me incluo e estou Re-organizando, Re-direcionando e Re-pensando os atores e palcos que me acompanharam nesta viagem, por diferentes lugares e mundos, que a construção do memorial proporcionou (Romã, 41 anos, Memorial).

(...) tarefa difícil falar de nós mesmos... Defino-me como uma pessoa batalhadora, determinada e apaixonada (Salso-chorão, 37 anos, Memorial).

A escrita dos memoriais mexe com lembranças que estavam guardadas. Buscá-las e colocá-las no papel provoca uma revolução de pensamentos, atos, atitudes até então anestesiadas na memória de cada uma das contadoras de histórias de si. Fica clara a manifestação da dificuldade de escrever-se, colocar-se em um papel para „o outro‰ ou para si ler e ter contato com essas escritas. Pouco a pouco vai sendo rememorado/retomado/compreendido quando

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redesenhado no papel em forma de letras, que se agrupam/aglutinam para montar a sua história de vida.

Ser humano, complexo. Amores, desamores. Sabores, dissabores. Luz e escuridão, a contradição. Quem serei eu? Caminho ou trevas, grades ou asas, vida ou morte? (Timbaúva, 30 anos, Memorial).

Durante esse processo de colocar as letras no papel, começa-se a entender/questionar/repensar o ser humano que se transformou em um educador.

Roda de mate: As contadoras de história e a pesquisadora

Como descrito anteriormente a pesquisa procura entender nesse remexer de memórias: que momentos das escrituras de si desencadeiam, repercutem e produzem um modelo de ser docente?

Existe todo um olhar/leitura sensível para captar os modelos de matriciamentos descritos pelas contadoras de histórias de si, pois se encontra uma pluralidade de caminhos e significados para a história de vida de cada uma delas, gerados entre os saberes que cada uma já possui e as informações recebidas em todos os processos de formação. O ser educador começa antes de sua entrada nos cursos de formação inicial, mas já está parcialmente construído com as imagens e modelos enraizados nas experiências vividas na infância ou na convivência com os colegas e professores da própria escola.

A formação constrói-se a partir de uma história vivida intensamente, é diferente de quando e como se começou a docência. Nossa vida é uma formação continuada como escreve Flamboyant:

Dos encontros que tive com a turma dois da especialização em PROEJA (muitos são os aprendizados) e com alguns professores que direta ou indiretamente afetaram meu „ser educador‰, (re)significando minha formação docente, porque hoje, com o exercício forçado de (re)acordar histórias vividas no passado, posso criticamente fazer meu presente (Memorial).

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É através de um acompanhamento efetivo e afetivo que poderemos refletir sobre nossas práticas pedagógicas e colocar em circulação seus entendimentos. Assim, Salso-chorão se vê como o foco para transformar a realidade em que está inserida, mesmo que temporariamente.

Defino-me como uma pessoa batalhadora, determinada e apaixonada. Sou professora por opção, por amor ao próximo e por ver na Educação a única fórmula capaz de transformar a vida das pessoas e o mundo em que vivemos (Memorial).

Ao narrar-se na história de vida, o professor reinventa a si mesmo, partindo para uma reflexão dos modelos que o fizeram ser/estar professor e suas trajetórias afetadas por marcas daqueles professores:

[...] havia alguns professores que estavam preocupados em deixar o maior número de alunos em exame, como se isso dissesse quem eles eram ou os fizesse melhores que os outros (Flamboyant, 30 anos, Memorial).

Na faculdade tive um breve contato com a estatística que me fascinou, hoje mais do que nunca posso dizer que essa fascinação se deve a professora que ministrou essa disciplina, considero ela a melhor professora que já tive na minha vida. Após esse contato com a Estatística sempre me senti instigada a buscar mais sobre essa área (Ipê amarelo, 25 anos, Memorial).

Uma das contadoras de história refere-se com muito carinho e cumplicidade quando comenta sua experiência em sala de aula com alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA), pois quanto mais convivia com eles, mais amava ensiná-los e estar junto com eles. Nessa etapa de sua história ela realmente se vê professora, encontrou o seu lugar na vida desses alunos e na sua própria existência. Com isso ela coloca a EJA como um lugar „recheado‰ de marcas e experiências do mundo da vida.

Logo que iniciei, percebi que era o que eu sempre queria, fazer parte desta faixa de idade. Eu me sinto em casa quando entro na sala de aula desses alunos. Eu aprendo muito mais com eles do que eles comigo. Talvez porque eu fosse uma pessoa que custou muito a

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encarar a fase adulta... Ficava contente quando chegava a noite para dar aula aos alunos da EJA. Convivendo com eles, me encontrei como pessoa e professora, porque até então eu achava que era uma profissão conveniente. Hoje não, sinto prazer em me arrumar e sair para a escola (Camélia, 51 anos, Memorial).

Camélia cita ainda o livro Medo e Ousadia de Paulo Freire com a seguinte frase que resume toda a dedicação que ela tem com a EJA:

Ensinando, descobri que era capaz de ensinar e que gostava muito disso. Comecei a sonhar cada vez mais em ser um professor. Aprendi como ensinar, na medida em que mais amava ensinar e mais estudava a respeito (Freire, 1987, p. 38).

Cabe ressaltar também, que os educadores estão envolvidos nas práticas de PROEJA/EJA, que se preocupam em dar um novo sentido e uma nova conotação a esta modalidade de ensino, como um trabalho gratificante, um desafio diário e maior pois o aluno (geralmente) é adulto, tem seu trabalho e uma carga maior de conhecimento e vivências. Entendimento esse colocado por Romã:

Aprendi isto na caminhada com a EJA onde se percebe que é necessário reconhecer os saberes de fora da Escola, levar em conta o tempo e a experiência de vida, construindo e avaliando de forma emancipatória. Este é o sentido de sermos educadores, especialmente quando estamos envolvidos com Alunos Jovens e Adultos. A escola precisa ser um laboratório de autoria. Todos os envolvidos na educação precisam ser autores de sua própria história, e neste contexto entra o saber fazer do aluno (Romã, 41 anos, Memorial).

A contadora de histórias de si Ipê Amarelo, ressalta o posicionamento acima quando escreve sobre o contraste em ser professora no Ensino Médio Técnico e no PROEJA, quanto às práticas pedagógicas que se precisa ter

[...] percepção de valorizar o aluno enquanto sujeito no processo de aprendizagem a proposta do PROEJA tem demonstrado que é possível educar de forma diferente, sem repressões, incentivando a participação do aluno, valorizando o conhecimento prévio que cada

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sujeito tem do cotidiano e das experiências vividas (Ipê amarelo, 25 anos, Memorial).

Os memoriais se revelam em conhecimento de si, do outro, da escola, da formação, da opção em ser/estar professor. Mostram sinais e diferentes histórias do contexto familiar, da história de sua vida, da escolha profissional num tempo-espaço que muitas vezes, está voltado à infância com o modelo de uma professora que ajudou num momento de dificuldade, mostrando caminhos, como descreve Timbaúva:

[...] minha mãe me dava algumas dicas, mas ela não tinha muito tempo de me ajudar e eu tinha vergonha de dizer que não sabia (Timbaúva, 30 anos, Memorial).

[...] meu maior aprendizado enquanto profissional da educação... a turma era de uma professora com quem aprendi muito e admiro seu trabalho até hoje... me emprestou seu material e deu dicas importantes (Timbaúva, 30 anos, Memorial).

Os memoriais são uma forma de externalizar o sentimento de agradecimento para as pessoas que fizeram parte de uma trajetória, muitas vezes, tornando-se ídolos/marcas/referenciais da caminhada, enquanto pessoa/ profissional.

Agradecendo o chimarrão: Reflexões sobre a escrita de si

O memorial formativo é uma forma de registrar as vivências, memórias, experiências e reflexões que vem se tornando um meio de mostrar o que pensam e sentem os educadores e, também seus saberes e conhecimentos produzidos no seu cotidiano tanto como professores em sala de aula, como alunos do Curso de Especialização em PROEJA.

Ao fazer o movimento da escrita de si no memorial formativo, as contadoras de histórias de si colocam como seus modelos referenciais para ser/estar docentes, a professora que adorava o que fazia ou aquela que reprovava para provar que ela era quem „mandava‰. Vindo à tona o modelo

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que querem ser – o da professora que adorava o que fazia – e também aquele que não gostariam de ser – a professora que reprovava para provar a sua „eficiência‰ e também muito preocupada com a aprendizagem dos alunos. Isso pode ser percebido nas falas de Ipê Amarelo:

[...] nesse contexto tive bastante dificuldade na alfabetização que só se deu em casa com o auxílio da minha mãe (Memorial).

[...] tive um breve contato com a Estatística que me fascinou, hoje mais do que nunca posso dizer que essa fascinação se deve a professora que ministrou essa disciplina, considero ela a melhor professora que já tive na minha vida (Memorial).

O educador tem no seu viver-recordado as histórias que lhe eram contadas na família, as brincadeiras da infância, a preocupação dos pais em dar um futuro melhor. Isso desperta cheiros, sabores, alegrias e todo um envolvimento com o aprender do outro e com o outro.

Minha alfabetização foi iniciada em casa (Flamboyant, 30 anos, Memorial).

Uma das coisas que nunca esqueci eram as histórias que minha avó materna contava... sua casa na colônia... deitava no colo dela... ia adormecendo, a voz sumia... sumia... narrativas contadas a luz do lampião (Laranjeira, 41anos, Memorial).

Gostava de ir na escola com meu irmão, mas ele não deixava... falava que eu só atrapalhava... tinha cinco anos (Salso-chorão, 37 anos, Memorial).

Cabe ressaltar que os matriciamentos também são elaborados a partir do fato de o magistério ser considerado uma profissão (opção de trabalho) em que, o emprego se torna mais viável. No entanto ser educador envolve muito mais do que fazer a formação, envolve o sentimento, a ajuda mútua, o enfrentamento de diferentes olhares numa sala de aula, o estudar sempre (formação continuada), o carinho, o limite.

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Como já foi citado por Camélia sobre a alegria ao ser professora do PROEJA/EJA, Romã se refere a essa modalidade de ensino como sendo a „grande mola propulsora da prática e consciência como educadora‰ (Memorial).

As professoras contam que na sua experiência, seus saberes, modelos e vida no espaço PROEJA/EJA se percebe o quanto se faz necessário (re)conhecer os saberes de fora da Escola, levar em conta o tempo e a experiência de vida e, construir o saber junto com os alunos. Aqui está um dos sentidos de sermos educadores, especialmente quando envolvidos de fato. Como ressalta Romã

A escola precisa ser um laboratório de autoria. Todos os envolvidos na educação têm que ser autores de sua própria história, e neste contexto entra o saber fazer do aluno (Romã, 41 anos, Memorial).

Acredito que existem muitas outras coisas para serem desvendadas nas entrelinhas das histórias/escritas de si dessas educadoras que são construídas a partir de suas referências, de suas histórias vividas e que servem de suporte para o ser educadora de cada uma delas.

O trabalho nos deixa a sementinha plantada para que possamos entender e desvendar parte deste universo, que é a constituição de um ser, através da re-constituição de sua própria história vivida- esquecida, usando um canal intrínseco, que são suas memórias.

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MEMŁRIAS E IDENTIDADES

Simone Valdete dos Santos1

"Recordar é viver"

O ditado popular, tantas vezes repetido, revela que nossa capacidade de lembrar está vinculada às nossas vivências, que lembramos situações mediante nossas experiências imediatas.

A afirmação de Ecléa Bosi reforça o entendimento da memória vinculada ao imediato, ao agora: „A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão agora a nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual‰ (1983). Os materiais a nossa disposição, mencionados por Bosi, constituem-se em objetos evocadores de memória: um disco anteriormente ouvido que volta às nossas mãos, uma fotografia, um diário, documentos de um registro oficial, entre tantos outros exemplos, podem significar e ressignificar nosso passado envolto por esses objetos, a partir do que estes objetos representam em nosso presente e já anunciando para futuras experiências.

1 Doutora em Educação. Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenadora e Professora da Especialização PROEJA. E-mail: [email protected]

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Logo, as lembranças, as reminiscências, as recordações não nos ocorrem ao acaso, são provocadas e provocadoras de tensões / acontecimentos presentes e / ou vindouros. Em geral, há um trabalho de produção das memórias.

Os acontecimentos, as tensões estão relacionados e podem ser fonte de inspiração dos objetos, das imagens, dos sons, sendo estes evocadores e vestígios concretos das memórias.

As memórias tem caráter individual, subjetivo, com bem pondera Norbert Elias: "Cada ser humano, partindo de um ponto único dentro da sua teia de relações, percorre através de uma história única um caminho ao encontro da morte." (1993, p.40). Há uma relação dialética entre as memórias individuais e as memórias coletivas, sendo estas últimas uma interface constante da teia de relações analisadas profundamente por Elias em sua obra A Sociedade dos Indivíduos.

Uma canção pode evocar memórias de toda uma geração, um objeto pode ser representativo para determinada categoria profissional, assim como uma imagem para determinado povoado... A memória coletiva pode assumir intersecções entre pessoas de mesma idade, de mesmo sexo, moradoras de determinado lugar, ativistas políticos de um mesmo grupo, entre outras múltiplas possibilidades de articulações.

A visão, hoje muito difundida, de que um indivíduo mentalmente sadio pode tornar-se totalmente independente da opinião do "nós" [we group] e, nesse sentido, ser absolutamente autônomo, é tão enganosa quanto a visão inversa, que reza que sua autonomia pode desaparecer por completo numa coletividade de robôs. É isso que se pretende dizer quando se fala da elasticidade dos vínculos que unem a autorregulação da pessoa às pressões reguladoras do "nós". (Elias, 2000, p. 40).

A memória coletiva e a memória individual, neste contexto relatado por Elias, se colocam numa indefinição dos limites de uma existência única a uma existência inserida na sociedade.

A memória coletiva se coloca como um campo constante de disputa, pois conforma histórias de regiões, de nações, de coletividades, formalizando o

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que deve ser lembrado, como os heróis e os valores a serem cultuados, as tradições... Neste sentido, os diversos grupos políticos apregoam seus valores, e suas proposições, fazendo-os circular como verdade da memória.

A mídia exerce papel fundamental nas referidas disputas, quem não lembra da polêmica sobre a existência ou não do escultor Aleijadinho durante o barroco mineiro?

Várias reportagens, com a sustentação de pesquisas históricas, refutaram a possibilidade das esculturas em pedra-sabão terem sido produzidas por escultores portugueses em Portugal e transportadas para o Brasil... A polêmica foi lançada, porém, uma verdade é que as esculturas existem, caracterizam o barroco mineiro e brasileiro, mas o escultor Aleijadinho existiu, foi o autor das obras? A mídia televisiva diz que ele nunca existiu (uma matéria do Fantástico da Rede Globo).

Hamilton problematiza o papel da mídia enquanto construtora de memória:

Teme-se que a cultura de massa empobreça Ânossas memórias originaisÊ e que uma versão mais homogeneizada tome seu lugar. Teme-se também perder a comunidade e a identidade, já que a tecnologia de massa modifica não só nosso sentido do temporal, mas também a natureza especificamente espacial do lembrar. A noção de que podemos nos ÂlembrarÊ, por exemplo, do assassinato de Kennedy significa que nos lembramos de como foi apresentado na televisão ou no rádio, e não termos a experiência direta desse evento. O que Ulric Neisser chama de Âmemórias de flashÊ ou imagens repetidas reforça o impacto da representação visual (2000, p. 90).

Diante da rapidez das informações na atualidade, o alerta de Hamilton merece ser considerado, para que se valorize as experiências daqueles que vivenciaram os acontecimentos, tendo cautela em relação às interpretações dos meios de comunicação e a imposição homogeneizada de memórias.

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"Não recordar é viver"

A memória é seletiva e funciona entre a lembrança e o esquecimento. Recordar pode trazer muito sofrimento para um indivíduo ou para um grupo em determinadas situações e o ato de "esquecer" corresponde à resistência, à sobrevivência do grupo diante das mágoas vividas. Desta forma, não recordando, a pessoa ou o grupo vive melhor o seu presente, projeta um futuro desconsiderando tais registros.

Exorcizar tais fantasmas pode ser um desafio para o historiador, para aquele que contribui para a recuperação das memórias:

...há que considerar o lado mais positivo: a exploração coletiva de histórias de vida em projetos participativos pode ajudar as pessoas a reconhecer e valorizar experiências que foram silenciadas, ou a enfrentar aspectos difíceis e dolorosos de nossas vidas. Para alguns, esse processo será extremamente polêmico; para outros será gratificante: as novas histórias podem contribuir para divulgar as experiências vividas por indivíduos e grupos que foram excluídos ou marginalizados em narrativas históricas anteriores (Thompson, 2000, p. 72).

"Recordar é ser"

As memórias sacramentam a existência e o pertencimento a determinado grupo, com seus rituais, seus costumes, seus credos, sua etnia própria. Somos mais ou menos prestigiados conforme a "quantidade de memória" produzida, registrada.

Para Rousso (2000) a memória é:

uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado, uma passado que nunca é aquele do indivíduo somente, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional. Portanto toda memória é, por definição, ÂcoletivaÊ, como sugeriu Maurice Halbwachs. Seu atributo mais imediato é garantir a continuidade do tempo e permitir resistir à alteridade, ao "tempo que muda", às rupturas que são o destino de toda vida humana; em suma, ela constitui - eis uma banalidade - um

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elemento essencial da identidade, da percepção de si e dos outros. (p. 95, grifos meus).

A memória se produz e reproduz em um contexto de mudança, está em movimento, os registros aparecem em determinado momento da vida, em determinada época em um grupo social, em um país, em função de outros acontecimentos imediatos, outras recorrências, sendo estas recorrências de lembranças observadas pelos historiadores para constituir a memória coletiva.

O processo contínuo de lembrar e esquecer, de constituir identidades, de registrar as lembranças e valorizar os registros, vai garantindo a cidadania, a autonomia, a capacidade plena do "ser" político e social, possibilidades de inclusão social, tolerância e convivência na sociedade pelo conhecimento das suas memórias e de outros grupos sociais, que possuem outros credos, outras formas de alimentar-se, vestir-se, outros entendimentos sobre a vida.

As lembranças constituem o ser, e o ser constitui as lembranças por sua capacidade de lembrar e esquecer, impregnado de suas experiências imediatas.

Referências

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1983.

ELIAS, Norbert. A sociedade dos Indivíduos. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999.

ELIAS, Norbert e SCOTSON, John L.. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

THOMSON, Alistair, FRISCH, Michael, HAMILTON, Paula. Os debates sobre memória e história: alguns aspectos internacionais. In: Usos e Abusos da História Oral. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2000.

ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: Usos e Abusos da História Oral. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2000.

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OS MEMORIAIS COMO PROPOSTA DE IN(TER)VENÇ‹O PEDAGŁGICA

Rafael Arenhaldt1

Os Memoriais Formativos se constituíram enquanto ferramenta de intervenção pedagógica para a formação contínua de professores junto ao Curso de Especialização PROEJA no Rio Grande do Sul. A escrita de Memoriais se configurou como a principal atividade avaliativa e integrada das disciplinas do 1… Módulo do Curso, desenhada enquanto um trabalho interdisciplinar. É nesse sentido que este breve texto está organizado, enquanto uma proposta paradidática, ou seja, um o texto referencial que foi utilizado para orientar a elaboração da escrita dos memoriais formativos no Curso e que pode vir a servir de referencial para outros cursos e atividades de formação contínua de professores. Ressaltamos também que foi nesta perspectiva que organizamos o BLOG „Memoriais e Histórias de Vida‰2, no sentido de orientar os professores-estudantes na empreitada e na aventura da escrita de si.

1 Doutorando em Educação no PPGEDU/UFRGS. Professor da Especialização PROEJA. E-mail: [email protected] 2 BLOG “Memoriais e Histórias de Vida” in: http://memorialformativo.blogspot.com

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O que é e o que não é um Memorial Formativo?

O Memorial Formativo é:

- um gênero discursivo privilegiado para a divulgação dos saberes e conhecimentos docentes;

- uma escrita reflexiva sobre suas práticas e sobre si mesmo;

- uma narrativa reflexiva onde se pode fazer „dialogar‰ o processo de formação e a prática docente;

- uma possibilidade interessante para estimular uma reflexão sobre a escola e seus contextos de aprendizagem;

- uma reflexão de como nos tornamos o que nós somos, isto é, uma reflexão do porque e do modo pelo qual nos tornamos educadores;

- um olhar para o passado, desde a „janela do presente‰, recons-truindo, através da memória, a trajetória que nos constitui.

O Memorial Formativo não é:

- apenas uma narrativa de acontecimentos.

Nesse sentido, podemos dizer que o exercício da escrita autobiográfica é uma tarefa que exige que cada autor reflita a respeito do que e como viveu, mobilizando conhecimentos, saberes, crenças, emoções e o estabelecimento de relações não necessariamente percebidas até então.

Trata-se de uma perspectiva que pressupõe um sujeito protagonista de seu percurso de formação e dos diálogos que estabelece sobre sua atuação profissional. Tal como afirma Benjamim (1994), entende-se que a vida não pode ser separada do modo pelo qual podemos nos dar conta de nós mesmos: narrar nossas histórias é, portanto, um modo de dar a nós mesmos uma identidade. E assim, reinventarmo-nos permanentemente.

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A escrita do Memorial como recurso formativo: Por que escrever um Memorial em percursos formativos?

O Memorial Formativo tem sido cada vez mais utilizado enquanto ferramenta e instrumento em cursos e percursos formativos, devido sua natureza reflexiva, na perspectiva do „professor reflexivo‰.

A escrita de si - através da escrita de um Memorial - não se esgota em si mesma, ela estende suas fronteiras para além de si, como processo formativo e reflexivo, já que "a apropriação que cada pessoa faz do seu patrimônio existencial, através de uma dinâmica da compreensão retrospectiva, é fator de formação" (Oliveira, 1998, p. 9). O relato de si é reflexão de si, é formação. Trata-se, como destaca a autora, da "instalação de uma outra cultura na formação de professores [: a] cultura do professor reflexivo" (p. 10).

Assim sendo, o

exercício de produção de memoriais é uma plataforma de lançamento à reflexão sobre si mesmo e um dispositivo privilegiado para a compreensão do processo de formação pessoal e profissional. Essa é, em verdade, uma perspectiva que vem se afirmando progressivamente [nos espaços de formação contínua] à medida que toma as narrativas como gêneros discursivos privilegiados para os educadores escreverem suas histórias e comunicarem os seus saberes e conhecimentos (Nogueira, 2006).

A elaboração de Memoriais Formativos tem como objetivo proporcionar um contexto de produção que instigue cada professor em formação a rever seu percurso. Trata-se de um movimento e um processo que quem escreve um memorial o faz

Rever a trajetória escolar e refletir sobre o desenvolvimento profissional, já que somos profissionais que não deixamos a escola – nosso espaço de formação e de atuação profissional –, [...] uma experiência importante para ressignificar algumas memórias escolares e pensar as aprendizagens e suas condições de produção (Nogueira, 2006).

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Ainda, segundo os mesmos autores, a produção e a escrita de Memoriais, tanto na formação inicial quanto na formação continuada, permite que aquele que escreve se reconheça em seu „saber que sabe‰, ou seja, a percepção crítica das possibilidades, limites, implicações e compromissos. Nesse sentido, quando tomamos consciência desse „saber que sabe‰ já não poderemos recusar-nos em tomar posição diante da realidade. E se consideramos que o desenvolvimento pessoal e profissional são processos inter-relacionados, a escrita de memoriais nos processos formativos representa uma atividade privilegiada, porque potencializadora do conhecimento de si e do outro, da própria vida e do próprio trabalho.

Em outras palavras, a escrita autobiográfica, através do exercício de escrita de um memorial, tem reforçado que o registro de nossas lembranças e reminiscências mais significativas se faz importante pela possibilidade que inaugura de darmos sentido à nossa trajetória e projetarmos uma direção ao que ainda pretendemos construir e experimentar como aprendentes e mestres (Nogueira, 2006).

Orientações para produção dos Memoriais Formativos:

Memorial: do Lat. Memoriale; adj. 2 gén.; relativo à memória; que faz lembrar; memorável; s. m.; obra literária que relata fatos históricos; petição em que há referência a um pedido anterior; livrinho de lembranças; apontamento.

Sobre a formatação do texto do Memorial:

Compreendido enquanto um Trabalho Interdisciplinar do 1… Módulo do Curso de Especialização em Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrada a Educação Básica na Modalidade Educação de Jovens e Adultos, o Memorial Formativo deverá conter no máximo dez páginas, onde conste uma apresentação das experiências profissionais, acadêmicas e formativas que o docente julgar pertinente, articuladas às opções e escolhas de natureza teórica, no sentido de descrever brevemente e apontar seus interesses e abordagem para a elaboração do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC).

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- A formatação do texto segue a configuração padrão: fonte 12, Times New Roman ou equivalente e espaço 1,5.

- Com o intuito de auxiliar a escrita dos Memoriais Formativos estamos construindo um BLOG „Memoriais e Histórias de Vida de Educa-dores‰, no Endereço eletrônico: http://memorialformativo.blogspot.com

- Lá você encontra, além das Orientações para a Produção dos Memoriais, alguns exemplos de escritas autobiográficas e memoriais.

Vale destacar ainda que:

- a formatação do Memorial pode contemplar outros recursos criativos de forma para expor o conteúdo – não necessariamente e somente a escrita - como imagens, fotos, documentos, etc, que expressem outras possibilidades de inscrição/escrita de si.

- o texto do Memorial não necessariamente precisa ser linear do ponto de vista cronológico e, mesmo que seja, poderá obedecer a outra linearidade como a emocional, a afetiva.

- a avaliação e análise dos textos pauta-se pela presença e qualidade da articulação entre as vivências e experiências da profissão e as vivências e experiências da formação.

Algumas questões mediadoras para a escrita de si:

Que fatos marcaram a minha vida pessoal e profissional?

O que esses fatos fizeram comigo?

O que eu faço agora com que isso me fez (ressignificação e projeto de vida)?

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Outras questões mediadoras e provocadoras da reflexão de si:

Identificação

- Um relato e reflexão aberta de sua vida, formação e experiência, articulado com a noção de ser docente:

- Como você se apresenta?

- Relate os aspectos principais de sua formação (escolar, técnica, acadêmica, pedagógica etc)

- Relate os aspectos principais de sua experiência profissional e docente (profissões, escolas, tempo, funções, currículo etc)

- Como e em que circunstância foi aprendendo a ser professor?

- Como você se vê enquanto docente? O que te emociona em ser professor? Qual o significado de ser professor?

- Reflita sobre seus sonhos, desejos, medos e projetos de vida (relacionados ou não à docência)

A Docência e os Espaços de Formação

- Que fatores foram importantes para a sua opção (ou contingência, circunstância, falta de opção) em ser professor?

- Por que você é professor? Por que permanece na atividade docente? O que faz de você professor?

- Qual o lugar e o significado da escola – e de outros espaços de formação – na sua vida? Como você vive a escola onde atua?

- Como vai se operando o processo de aprendizagem docente para você e para os espaços de formação onde você atua?

- O que te move todos os dias até a escola ou a universidade?

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Referências:

BENJAMIN, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Benjamin, W. Magia e Técnica, Arte e Política – Obras Escolhidas, Volume I. 7. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

NOGUEIRA, Eliane Greice Davanço. A escrita de memoriais a favor da pesquisa e a formação. Anais II CIPA – UNEB. Salvador, 2006.

OLIVEIRA, Valeska Fortes de. Histórias de professores e processos de formação/subjetivação. In: Educação em Debate. Fortaleza, Ano 20, N…36, p.7-13, 1998.

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TODO DIA

Simone Valdete dos Santos

Todo dia andar por aí, Dias de correr, dias de lutar, Dias de acalmar Dias de sorrir, dias de chorar Dias de poetar, dizer versos ao luar, cantar Dias de dormir, dias de acordar, Dias de ver, dias de ser, dias de rever Tem também dias de recordar Dias de pensar Dias de olhar, contemplar, fotografar, Dias de lavar, de seqüestrar, de sonhar Dias de escrever, de educar, dias de pular Dias de socorrer, de gritar, de amar Dias de sorver, balançar, dias de acarinhar Acarinhar o filho, a filha, o aluno, o cachorro, o gato, a planta, a aluna, o amante... Dias de não sei quê, dias de não sei onde Dias do nó, dias de dar dó, dias de cair, de levantar Dias de seguir em frente, De andar para trás, Dias de borbulhar, de ferver, de amornar Dias de pilotar, dias de matear, de namorar Bom, tem dia para tudo, tem dia até para nada Para nadar, para amolecer... Para esperançar...

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Esta obra foi composta nas fontes Garamond-Normal Condensed e Arial Narrow

e impressa em papel Polen Soft 90g [miolo] e Triplex 250g [capa] pela

Gráfica (aqui vai o nome da gráfica que será definida)