controle de armamentos e - scielo · aquele que é o maior problema da ... o sucesso industrial...

8
Controle de Armamentos e Poder Militar John Kenneth Galbraith Devo falar-lhes do meu prazer de estar aqui, neste belo e nada acanhado campus, esta manhã. Devo também dizer-lhes que estou no Brasil há uma semana e falar-lhes da minha satisfação em tirar umas férias da economia. É a primeira vez que tenho a oportunidade de abrir a boca sem que me peçam imediatamente que minha opinião sobre o Plano Cruzado II. Compareci a uma série de entrevistas coletivas de imprensa, nas quais os jornalistas fizeram todos sempre a mesma pergunta. Foi um sacrifício assegurar-me de lhes dar sempre a mesma resposta. Estou aqui, esta manhã, a convite do Goldemberg. É um convite que se originou do interesse comum que partilhamos e da identificação que ambos temos com uma organização que vem sendo alternadamente chamada de "Parlamentares para a Ação Global" ou "Iniciativa de Paz dos Cinco Continentes". Vimo-nos pela última vez em um Encontro no México, onde comungamos nossa preocupação com aquele que é o maior problema da atualidade: descobrir como podemos garantir a continuidade da sobrevivência do Planeta e a continuidade da sobrevivência civilizada das pessoas que habitam este mundo. É em relação a tal tema que desejo fazer meus comentários iniciais. A inquietação central, à qual me refiro nesta ocasião, relaciona-se a um fator que exerce decisiva infuência de controle sobre os orçamentos, a dívida, a privação e a fome existentes no nosso tempo, e que também se relaciona à questão crucial da nossa sobrevivência. A origem desta questão é algo que me tem preocupado de forma crescente, nos últimos tempos. O Poder Militar Creio que, se quisermos avaliar a nuvem sob a qual vivemos, o perigo reinante da nossa época, precisaremos começar a redefinir de maneira mais precisa o poder ao qual estamos sujeitos neste mundo como indivíduos como pessoas. Creio que, quando fizermos isso, daremos maior atenção ao que hoje chamarei (sem qualquer pretensão inovadora) de poder militar da nossa era. Daremos atenção ao papel que o poder militar exerce em nações grandes, pequenas e médias, à forma pela qual a crescente militarização hoje ameaça a sobrevivência de todos no Planeta e à maneira pela qual a militarização, através da simples privação e da fome, é efetivamente uma ameaça à vida de muitas pessoas muitos milhões de pessoas no presente imediato. Esta manhã, quero falar-lhes sobre a natureza deste poder. Quando me refiro ao poder militar, refiro-me, é claro, às Forças Armadas de qualquer país: ao Exército, Marinha e Aeronáutica. Mas também me refiro à burocracia civil que a eles está associada, que dirige e presta serviços ao poder militar. Também me refiro ao complexo industrial a serviço dos militares. Refiro-me igualmente a um assunto algo técnico e um tanto delicado de ser tratado em uma universidade, que é o do papel dos cientistas e engenheiros empregados sob os auspícios do poder militar. Não é preciso dizer que me refiro, da mesma forma, aos políticos que se tornam cativos do poder militar e por ele são controlados. De maneira geral, faço referência àquilo que o presidente Dwight D. Eisenhower chamou, no seu discurso mais notável (e alguns diriam que foi seu único

Upload: vuhuong

Post on 25-Nov-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Controle de Armamentos e

Poder Militar

John Kenneth Galbraith

Devo falar-lhes do meu prazer de estaraqui, neste belo e nada acanhado campus,esta manhã. Devo também dizer-lhesque estou no Brasil há uma semana efalar-lhes da minha satisfação em tirarumas férias da economia. É a primeira vezque tenho a oportunidade de abrir a bocasem que me peçam imediatamente quedê minha opinião sobre o Plano CruzadoII. Compareci a uma série de entrevistascoletivas de imprensa, nas quais osjornalistas fizeram todos sempre a mesmapergunta. Foi um sacrifício assegurar-mede lhes dar sempre a mesma resposta.

Estou aqui, esta manhã, a convite doGoldemberg. É um convite que seoriginou do interesse comum quepartilhamos e da identificação queambos temos com uma organização quevem sendo alternadamente chamada de"Parlamentares para a Ação Global"ou "Iniciativa de Paz dos CincoContinentes". Vimo-nos pela última vezem um Encontro no México, ondecomungamos nossa preocupação comaquele que é o maior problema daatualidade: descobrir como podemosgarantir a continuidade da sobrevivênciado Planeta e a continuidade dasobrevivência civilizada das pessoas quehabitam este mundo. É em relação atal tema que desejo fazer meuscomentários iniciais.

A inquietação central, à qual me refironesta ocasião, relaciona-se a um fator queexerce decisiva infuência de controlesobre os orçamentos, a dívida, aprivação e a fome existentes no nossotempo, e que também se relaciona àquestão crucial da nossa sobrevivência. Aorigem desta questão é algo que me tempreocupado de forma crescente, nosúltimos tempos.

O Poder Militar

Creio que, se quisermos avaliar a nuvemsob a qual vivemos, o perigo reinanteda nossa época, precisaremos começara redefinir de maneira mais precisa opoder ao qual estamos sujeitos nestemundo como indivíduos — comopessoas. Creio que, quando fizermosisso, daremos maior atenção ao que hojechamarei (sem qualquer pretensãoinovadora) de poder militar da nossa era.Daremos atenção ao papel que o podermilitar exerce em nações grandes,pequenas e médias, à forma pela quala crescente militarização hoje ameaça asobrevivência de todos no Planeta e àmaneira pela qual a militarização,através da simples privação e da fome,é efetivamente uma ameaça à vida demuitas pessoas — muitos milhões depessoas — no presente imediato. Estamanhã, quero falar-lhes sobre a naturezadeste poder.

Quando me refiro ao poder militar,refiro-me, é claro, às Forças Armadasde qualquer país: ao Exército, Marinhae Aeronáutica. Mas também me refiro àburocracia civil que a eles está associada,que dirige e presta serviços ao podermilitar. Também me refiro ao complexoindustrial a serviço dos militares.Refiro-me igualmente a um assuntoalgo técnico e um tanto delicado de sertratado em uma universidade, que é odo papel dos cientistas e engenheirosempregados sob os auspícios do podermilitar. Não é preciso dizer que merefiro, da mesma forma, aos políticosque se tornam cativos do poder militare por ele são controlados. De maneirageral, faço referência àquilo que opresidente Dwight D. Eisenhowerchamou, no seu discurso mais notável(e alguns diriam que foi seu único

discurso notável), de "conflitosindustriais militares". Refiro-metambém à organização que, emcontrapartida, existe na UniãoSoviética, e aos organismos, um poucomenos abrangentes, que há em outrospaíses. Tudo isso é o que chamareide poder militar, esta manhã.

No tocante às duas grande potências,a posição é mais do que clara, se nosdetivermos para observá-la. As duassuperpotências, como ainda sãochamadas, atualmente exibemarmamentos de uma força destrutivainimaginável. E procuramincessantemente obter ainda maisarmas, armamentos de poder

desestabilizante cada vez maior,sistemas de controle por computadorcada vez mais perigosos e cada vez maisfáceis de serem detonados. Desejamtambém armas de custo cada vez maior.

Acredito, contudo, que nesse particularcometemos um erro quando culpamos osgovernos — o governo dos Estados Unidosou o governo da União Soviética. Épreciso enxergar mais a fundo, olharpara além dos governos onde reside ainfluência à qual os próprios governosestão sujeitos, hoje em dia. Isto é algoque fazemos em pensamento mas que, deforma geral, evitamos fazer por escritoou verbalmente. Existe, em muitaspartes do mundo, sem excluir os Estados

Unidos e a União Soviética, uma espéciede temor que toma conta das pessoasquando se trata de falar sobre o podermilitar. O máximo em termos de poder éser tão poderoso a ponto de as pessoasnão quererem falar sobre o poder quese exerce.

Esse poder mais amplo, mais profundo, éque atualmente influencia e talvez atécontrole a política governamental. É umpoder que se desenvolve (este é um pontoextraordinariamente importante) atravésde uma relação de estreita cooperaçãoentre o poder militar soviético e o podermilitar americano, no caso das duassuperpotências. Existe uma dinâmicade interação a serviço do poder militarde cada país. Cada um dos efetivosmilitares realiza uma ação que exige, emcontrapartida, uma reaçãocorrespondente no outro país. A seguirdá-se o contrário. Cada um dosestabelecimentos militares sente-seobrigado a realizar determinada açãoporque isso é o que o outro está fazendo,ou pretende fazer ou poderia fazer. Destaforma, o poder militar de um país ajudaa sustentar a autoridade do poder militarno outro, numa relação cooperativacrescente até a catástrofe eventual.

A Questão Armamentista

Falamos com freqüência, nos EstadosUnidos, sobre a necessidade de existirmaior cooperação entre os EstadosUnidos e a URSS — a União Soviética.Mas já existe uma cooperação militar emnível altamente desenvolvido. No ano de1958, o primeiro-ministro Kruschev foiaos Estados Unidos e manteve longasconversações com o presidenteEisenhower. Numa dessas conversas,Eisenhower disse: "Nós somos um paísrico, mas eu estou sempre sendopressionado pelos meus generais, paraque lhes dê mais armas. Eles dizem queisso é necessário por causa do que vocêsestão fazendo. Procuro resistir às pressõesmas, por fim, acabo cedendo. Issoacontece no seu país?". Kruschevrespondeu: "No nosso país é diferente.Os generais também vêm me dizer queprecisam de mais armas mas eu lhesrespondo: 'Camaradas, estamosconstruindo o socialismo neste paíse não temos recursos para isso'. Então

eles me afirmam que, nesse caso, nãopodem garantir a proteção da Naçãocontra os Estados Unidos. A partir daí,presidente Eisenhower, nossa situaçãoé semelhante. Eu também acaboconcordando em dar-lhes armas".

As conseqüências de tudo isso são bemclaras. Essa relação, repito mais uma vez,representa uma ameaça para toda ahumanidade e para toda a vida doPlaneta. Seria desnecessário dize-lo diantede uma platéia universitária como esta.Trata-se de um assunto do qual vocêsjá estão suficientemente cientes. Mas,além disso, há também o desvio derecursos que esta competição acarreta,recursos estes que poderiam serutilizados para o bem-estar. No meupaís, os Estados Unidos, as evidênciasdisso são bem claras, estão ali aos olhosde quem quiser vê-las.

O Japão e a Alemanha, após a SegundaGuerra Mundial, tornaram-se as duasgrandes histórias de sucesso econômicodos últimos quarenta anos. A sorte para aeconomia desses dois países foi teremperdido a Guerra pois, em conseqüênciadisso, voltaram-se para conquistas civis,não militares. Foram obrigados pelosvencedores a limitar seus gastos militarese a canalizar as energias para o êxitocivil. Desta forma, houve capitaldisponível para a indústria civil. Foramutilizados recursos de capital, os quais,nos Estados Unidos (e também naInglaterra), eram destinados aarmamentos.

Em 1979, para falar de uma épocaanterior ainda à recente corridaarmamentista, a relação entre gastosmilitares e capital civil, nos EstadosUnidos, era de 33. Essa era a proporçãodaquilo que gastávamos para finsmilitares quando comparado ao quegastávamos com a criação de capitalcivil. Na Alemanha, por outro lado, aproporção dos gastos militares versusformação de capital civil era de apenas20 e no Japão de 3,7. Além disso, aodesenvolver sua indústria civil, osjaponeses contavam com o talento paraa ciência e para a engenharia, talentoesse que nós dedicamos a estéreisobjetivos militares.

O sucesso industrial japonês — o milagreeconômico do nosso tempo — é

conseqüência direta e inevitável dospequenos recursos econômicosdestinados a fins militares e da escassezde capital e de força de trabalhodedicadas a isso. Seria convenientenotar que este fato (o dos motivos doêxito japonês) é algo que nossosporta-vozes, nos Estados Unidos,percebem de forma implícita, poisagora começam a incentivar o Japãoa gastar mais com a ampliação de seusefetivos militares. A lógica por trás disso,evidentemente, é a de que assim aindústria civil japonesa seria prejudicada.

Vou desviar-me do assunto para lembrarum fato que ocorreu há muitos anosatrás. Eu estava depondo sobre essesassuntos diante do Congresso dosEstados Unidos e do chefe da comissão,o senador William J. Fullbright, um dosgrandes parlamentares do mundo delíngua inglesa. Quando terminei minhaexposição, ele disse: "Os alemães e osjaponeses obtiveram êxito porque

perderam a Guerra e porque nósimpusemos limites aos gastos militaresque eles realizavam". Concordei com issoe Fullbright continuou: "(...) Agoraestamos chegando ao fim dessa guerracom o Vietnã". "Espero que sim",respondi. "E nós não estamos ganhandoessa guerra, estamos?", ele indagou."Não, não estamos", disse-lhe. "Seráque não haveria um jeito de fazer comque o inimigo de Hanói limitasse deforma parecida os nossos gastosmilitares? "Tive que dizer-lhe que asugestão dele não era muito prática.

Desenvolvimento e "Armamentismo"

Não falo com a mesma autoridade sobreos efeitos do desvio de recursosfinanceiros para armas e usos militaresquando me refiro à economia soviética. Oesforço militar é, por natureza, umexercício de economia planejada, umobjetivo econômico planejado. Talvez,

numa economia onde o planejamento é anorma ou é pelo menos habitual, osgastos militares sejam menos nocivos doque são no nosso mundo menoscontrolado, menos dirigido. Estouabsolutamente convicto de que os meuscompatriotas que apregoam que atravésde maiores gastos militares conseguiremosfazer com que os russos retrocedam,completamente convencido de queaqueles que dizem que aumentando osgastos levaremos os russos à submissãosão (sem querer abrandar a expressãonem mesmo neste agradável ambienteacadêmico) malucos. Apesar de tudo,não se pode duvidar de que o socialismotem em comum com o capitalismo osmesmos efeitos nefandos do uso derecursos para fins militares. Podemosafirmar com segurança que a maléficaconcorrência entre os estabelecimentosmilitares das duas superpotências e aexigência que ela faz sobre os recursoseconômicos é amplamente prejudicialpara ambos. É assim que atua o podermilitar entre as grandes potências (comoainda são chamadas, repito) e no interiorde cada uma delas.

Os bispos católicos da França, falandocom a sucinta precisão que se espera dosfranceses, colocaram muito bem aquestão ao povo. Eles disseram: "Todocidadão paga o preço das armasnucleares. Primeiro com impostos edepois como vítima em potencial".

Mas não é somente (nem talvez demaneira especial) nos grandes paísesindustrializados que devemos reagircontra o poder militar e sua causa. Esteé um gravame que também oprime ospaíses pobres do Planeta. Uso aexpressão países pobres para fugir doeufemismo. É notável verificar o quantose evitou usar essa frase, essa referência.Houve uma época em que falávamosde países subdesenvolvidos, mas isso nãoparecia ser muito correto. Entãopassamos a falar em países emdesenvolvimento mas, no caso de algunspaíses, tinha-se a impressão de que adenominação era um pouco otimistademais. A seguir falamos em TerceiroMundo, apesar de nunca ter ficado claroqual era o segundo mundo, afinal.Depois passamos a referir-nos a Nortee Sul. Penso que aqui, neste encontroacadêmico realizado num dos países

industriais em maturação, possotranqüilamente referir-me a países pobres.O ônus militar também está representadono gravame que ele impõe a esses países.Isto ocorre de duas maneiras. Em cercada metade das nações do mundo, o podermilitar exerce seu domínio sobre o povodireta ou indiretamente, hoje em dia.

Um dos prazeres que sinto em vir aoBrasil, nesta ocasião, é o de estar numpaís que foi recentemente libertadodesse poder. Mas em outros lugares (épreciso encarar a triste realidade), emmuitas partes da África e de formaextensiva em outras regiões, o povotrocou o domínio colonial do séculopassado pelo domínio militar desteséculo. E isso não é tudo. Existemmuitos países onde os dirigentes civis(como nas Filipinas de hoje) vivemolhando temerosamente por cima doombro para ver o que os generais e oscoronéis estão se preparando para fazer.Esta é uma das formas de opressão: atomada direta do poder, a efetivasupressão da democracia e de suaspromessas. Mas a opressão mais ampla,mais profunda, deriva dos enormese horripilantes custos da organizaçãomilitar nos países pobres. Emconjunto, os países pobres despendemem armas maior porcentagem do seujá diminuto produto interno brutodo que os ricos. No mundo de hoje, ospaíses pobres importam armamentos emvalores que beiram os 30 bilhões dedólares ao ano. Grande parte dessesofisticado equipamento tempropósitos que sequer se relacionam aqualquer possível uso em tempo deguerra. Ele se destina a alimentar aauto-estima da organização militar. Nãohá nenhum general em todo o mundoque se sinta totalmente seguro em suaauto-estima sem possuir um caçasupersônico de última geração, mesmoque estes sejam absolutamenteirrelevantes para os objetivos militares.

A conseqüência é, como já disse, o custoenorme que isto traz para os povos maispobres do mundo. Nos Estados Unidos,na União Soviética, Inglaterra, França eoutros países industrializados, os gastoscom armamentos são subtraídos de umpadrão de vida relativamente alto. Mas,nos países pobres, essa despesa se faz àscustas da própria vida humana. Do outro

Existem muitos paísesonde os dirigentes

civis (como nasFilipinas de hoje) vivemolhando temerosamente

por cima do ombropara ver o que os

generais e os coronéisestão se preparando

para fazer. Esta é umadas formas de opressão:

a tomada direta dopoder, a efetiva

supressão da democraciae de suas promessas.Mas a opressão mais

ampla, mais profunda,deriva dos enormes

e horripilantes custosda organização militar

nos países pobres.

lado da moeda dos atuais gastos militaresem países pobres temos a privação, afome e a morte da população civil.

O secretário-geral das Nações Unidas,Javier Pérez de Cuéllar, fez umaafirmação relevante sobre o assunto aqual repetirei aqui. Ele disse: "Ocomercio de armas empobrece o receptore corrompe o fornecedor". Completoudizendo: "Existe uma semelhançaimpressionante entre o comércio dearmas e o comercio de drogas".

Os gastos militares são, além do mais,uma fonte recíproca de medo,desconfiança e conflito. Isto é maisgrave entre os países pobres do mundodo que entre os ricos. No mês de outubro

próximo, data da Revolução de 1917,irão completar-se setenta anos em que osEstados Unidos convivem em paz (umapaz de fato, mesmo que nem sempredas mais amigáveis) com a UniãoSoviética. Serão setenta anos de pazentre os dois países. Excetuando-se umaprematura e incompreensívelintromissão de soldados ocidentais nofim da Primeira Guerra Mundial, nesseperíodo ninguém morreu emconseqüência de conflito armado entreas duas superpotências. O mesmo nãoacontece no Terceiro Mundo (perceboque usei o eufemismo). Conflito armadoe morte são o destino reservado, hojeem dia, aos povos mais pobres do mundo.

Tudo que acabo de dizer é de nossoconhecimento, tanto em relação àsgrandes potências quanto às pesquenas. Otema, porém, não nos apaixona. Deforma bastante acentuada, eliminamoso poder militar de nossas preocupações.Pensamos e falamos muito em poder.Falamos do poder das grandescorporações, do poder dos sindicatos,do poder das organizações políticas,do poder de grupos religiosos e do poderde líderes politicamente carismáticos.Esse poder faz parte de nossaspreocupações diárias. É um assuntocom o qual temos nos preocupadoprofundamente desde a época de Marxe Max Weber. Falamos bem menos dopoder militar. Muito menos. E minhaúltima pergunta, esta manhã, é por quê?

Controle de Armamentos, PoderMilitar e Democracia

Não falamos nele em parte porque nossapreocupação com o poder é ultrapassadae obsoleta. Arrisco-me a dizer que éultrapassada e obsoleta especialmentenas nossas universidades. No séculopassado e no começo deste, o poder dasempresas capitalistas, o controle que elasexercem sobre o Estado, o podercontrário dos sindicatos e a esperançasocialista de neutralização eram nossaspreocupações fundamentais. E estaconcepção de poder continuafirmemente arraigada em nossa mente.Mas estes não são mais os conceitossocial e politicamente válidos de poder.O fato de não falarmos no poder militardeve-se a que nosso conceito de poderé obsoleto. Gostaria de fazer um apelopara que, no futuro, pensássemos muitomais no poder militar e muito menosna General Motors, General Electric,IBM e outras grandes companhias quetalvez façam parte do poder militar, mascertamente não são mais o fator decisivode controle. Os governos estãocapacitados para saber lidar com osfabricantes de automóveis, mas estesmesmos governos estão sujeitos àautoridade militar do complexoindustrial militar.

Existem ainda outras razões paraurgência. A expressão suprema do poderdá-se quando as pessoas não seinteressam em desafiá-lo de viva voz,quando ele consegue absorver e

neutralizar as reações adversas. Esteé o caso do poder militar. Além disso,o poder militar tem uma aura depatriotismo e de identidade nacional.Identifica-se com nacionalismo, compatriotismo, com o Estado em si e,afinal de contas, ninguém deseja atacarseu próprio Estado. Nos lugares onde osgovernos são vulneráveis ou o povo épobre e insatisfeito, ali estão os militarescom suas armas. Essas armas, por maisque se tente provar o contrário, estãoacima de disputas ocasionais. É o quevemos acontecer em muitos países, asFilipinas... Sem correr o risco de serinjustos, podemos também dizer queessa não é uma situação pouco comumaqui, na América Latina. Em algunspaíses (no México e espera-se que noBrasil), o poder militar foi reduzido aum papel relativamente menor. Mesmoassim, existem muitos lugares naAmérica Latina onde, como já mencionei,os governos olham temerosos para opoder militar.

Devo dizer que ao chegar aqui, vindo dosEstados Unidos, surpreendi-me um poucocom as despesas militares e o serviçomilitar obrigatório existentes na AméricaLatina. Pergunto-me por que tais coisasseriam necessárias em países sem inimigosavista. Bem, concordo que o Brasil devater uma grande preocupação com umapossível invasão vinda do Paraguai, masessa é apenas uma das raras exceções. Porfavor, não me levem muito a sério nessadeclaração...

Chego, por fim, ao meu apelo final destamanhã. Vamos evitar as evasivas, vamosdiscutir o poder militar de maneira ampla,franca e aberta. Vamos falar sobre asdimensões desse poder, sobre as formasde controlá-lo e de contrabalançar suaação geradora de tensões internacionais —tensões estas que, obviamente,contribuem substancialmente para amanutenção do poder militar e paraengordar os orçamentos a ele destinados.(£ interessante notar que, nos EstadosUnidos, o medo da União Soviética e desuas ações cresce consideravelmente nosdois meses anteriores à aprovação doorçamento.) Vamos discutir as formas delimitar as despesas orçamentárias militaresno mundo inteiro e vamos dirigir-nos comênfase ao comércio de armas e fazer comque ele seja refreado não só por aqueles

que as vendem, mas que também sejacontido pelos países que as compram.Vamos encontrar maneiras de vencer osaparelhos militares que hoje em diacontrolam qualquer esforço maissignificativo feito no sentido de limitaro armamento.

As conversações sobre limitação de armasque se desenrolam em Genebra e as queaconteceram em Reykjavik estão emgrande parte sujeitas ao poder militar.Elas não se destinam, na verdade, areduzir o poderio armamentista dassuperpotências. Destinam-se a amainar omedo e a desconfiança da população ea dar a ela a impressão de que algo estásendo feito. O maior perigo que existepara o poder militar é o medo que muitaspessoas sentem de morrer. É preciso,portanto, que haja dentro do podermilitar algum mecanismo para suavizar

esse medo. Isto é fundamental para amanutenção do poder. Por isso, asnegociações de controle armamentista,realizadas por um pequeno número depessoas que costumamos chamar deteólogos nucleares, não visam à efetivaredução de armas. Elas visam a reduzir omedo que as pessoas sentem da corridanuclear, visam a arrefecer o temorpopular de uma eventual extinção.

Nada disso será possível enquanto nãoformos capazes de reconhecer a amplarealidade da situação em que nosencontramos. Precisamos dar-nos contade que o poder militar exerce um papelindependente no nosso tempo e de queele resiste a qualquer tentativa delimitação de sua força, limitação esta queo controle de armas, a paz mundial ea própria democracia exigem de formaurgente e politicamente inevitável.