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1 INSTITUTO SUPERIOR DE CIÊNCIAS SOCIAIS E POLÍTICAS CONTRIBUTOS PARA UMA HISTÓRIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PORTUGUESA JOAQUIM CROCA CAEIRO Prof. Associado Convidado com Agregação (documento destinado apenas ao apoio aos alunos da Licenciatura em Administração Pública, do 1.º Ano do ISCSP, contendo ainda muitas imperfeições, gralhas, eventuais erros e matérias por desenvolver.)

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INSTITUTO SUPERIOR DE CIÊNCIAS SOCIAIS E POLÍTICAS

CONTRIBUTOS PARA UMA HISTÓRIA DA ADMINISTRAÇÃO

PÚBLICA PORTUGUESA

JOAQUIM CROCA CAEIRO

Prof. Associado Convidado com Agregação

(documento destinado apenas ao apoio aos alunos da Licenciatura em

Administração Pública, do 1.º Ano do ISCSP, contendo ainda muitas

imperfeições, gralhas, eventuais erros e matérias por desenvolver.)

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I. INTRODUÇÃO

1. Considerações introdutórias à História da Administração Pública

Portuguesa

Integrada no plano de estudos da Licenciatura em Administração Pública, lecionada

no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, a

unidade curricular de História da Administração Pública Portuguesa, pretende

refazer a caminhada dos quase nove séculos desde a formação do Estado português

até à actualidade da história portuguesa no que à Administração Pública respeita,

ainda sem que antes se procure fazer uma pequena abordagem dos principais

acontecimentos que de forma directa ou indirecta se constituíram em génese do que

seria a realidade que se transformou em unidade independente a partir do século XI.

Com efeito, a dinâmica da história do Estado português ao longo dos séculos é para

além de extraordinariamente rica também muito

2. Autonomia da História da Administração Pública

3. As questões da origem do poder e suas determinações na

evolução do Estado

Ligado ao conceito de Estado e à natureza da sua formação, o conceito de poder

político também atravessa os séculos de evolução do homem e determinou a forma

como o Estado se organizou, como a sociedade se desenvolveu e como o homem

de forma geral foi gerindo a sua relação com os restantes homens e sobretudo a

relação entre governantes e governados.

Com efeito, o conceito de poder tem inequivocamente a ver com o Estado, e a

existência de um implica a existência do outro. E desde muito cedo a questão da

origem e da natureza do poder, passou a ser de extrema relevância para a relação

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política entre os governantes e os governados e sobretudo, para a legitimação do

exercício desse poder.

O conceito de Poder “vem do latim vulgar potere, que substituiu o clássico posse,

o qual deu em português poder. Expressão esta que tanto quer dizer poder ser, isto

é, o poder em potência, da legitimidade, como ser, o poder em acto. Um poder que

também se poderia dizer poderio e podestade (…) englobando (na língua

portuguesa) a potestas, que equivale ao francês puissance, como a potentia,

próxima do francês pouvoir. Tanto abrange o poder referido às pessoas que

comunicam e actuam em conjunto, a potestas, como o poder de uma pessoa para

com outra, a potentia.”1

Ora, é este poder que tem ao longo dos séculos, merecido explicações e justificações

diversas, para que se torne possível a sua conquista, exercício e manutenção.2 Pelo

que, para explicar a forma como o poder se organizou e se desenvolveu desde os

tempos mais remotos da consolidação do Estado português, e sobretudo a influência

exercida pelo clero no decurso da formação deste Estado, importa descortinar a

problemática da origem do poder.

A origem do poder tem desde os tempos mais remotos sido aceite como tendo

origem divina, motivo pelo qual, os detentores do poder desde cedo também

procuraram a sua identificação com a divindidade.

Pelo que, com o aparecimento e desenvolvimento do Cristianismo, a explicação

teológica, segundo a qual o poder é instituído por Deus, segundo a fórmula Non est

potestas nisi a Deo, em que “ não há Potestade, que não venha de Deus: e as

Potestades que há, por Deus foram ordenadas. Pelo que aquele que se opõe à

Potestade resiste à ordenação de Deus”3.

Em face desta perspectiva dominante durante muitos séculos, o pensamento social

e político medieval acaba por ser dominado pela aceitação da “existência de uma

ordem universal (cosmos), abrangendo os homens e as coisas, que orientava todas

1 Maltez, José Adelino. 1991. Ensaio sobre o Problema do Estado: Da Razão de Estado ao Estado-

Razão. Tomo I. Lisboa: Academia Internacional da Cultura Portuguesa, p. 260

2 Moreira, Adriano. 1984. Ciência Política. Reimpressão. Coimbra: Almedina

3 S. Paulo, Epístola aos Romanos

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as criaturas para um objectivo último que o pensamento cristão identificava com o

próprio criador”4. O que adquiriu ainda maior dimensão no período que se seguiu

à queda do Império Romano, face ao fracionamento em poderes locais ou regionais

sob o controlo militar dos diversos grupos étnicos invasores, a ajuda e

reconhecimento mútuo dos poderes em presença teve como resultado a

harmonização e fusão entre os dois poderes.

Com o fracionamento do Império Romano e a criação de muitas unidades políticas

independentes no contexto europeu, a Igreja viria a ter um papel decisivo na

constituição dos Estados cristãos, tendo por via disso um crescimento em prestígio

moral e capacidade de cooptação, além da auto-suficiência financeira e patrimonial

de que dispunha. Motivo pelo qual, a origem divina do poder e o consequente

desenvolvimento do Estado segundo a mesma razão, acabaria por se transformar

em razão indiscutível para teólogos e filósofos da época.

E, ainda que em face dos interesses emergentes na época, a própria instituição

religiosas tenha ficado em perigo, o Papa estabelece uma aliança com Carlos

Magno, consagrando-o e reconhecendo-o como imperador e restaurador do Império

Romano do Ocidente, considerando no entanto, a origem divina do poder que lhe

transmitia.

Por esta acção, Carlos Magno obtém o reconhecimento da sua autoridade moral

perante o povo, enquanto o Papa vê garantida a protecção da sua Igreja e facilidade

para a difusão do catolicismo junto dos povos ainda não totalmente convertidos.

Deste modo o “imperador compromete-se a colaborar na eleição do papa,

respeitadas as prescrições canónicas, porém cabendo-lhe a confirmação da

eleição; e ao papa compete coroar e consagrar os imperadores. Trata-se do

estabelecimento de um esquema de investidura recíproca, que afectará

negativamente a Igreja nos diversos degraus da hierarquia eclesiástica, a ponto de

constituir objecto de conflito posterior”.5 Ainda assim, o modelo permitiria a Carlos

4 Hespanha, António Manuel. 1994. As vésperas do Leviathan: Instituições e poder político,

Portugal séc. XVII. Coimbra: Almedina, p. 299

5 Bugallo, Alexandre. 1988. Secularização das Estruturas da Igreja e Sacralização do Poder. In

Moreira, Adriano et al. Legado Político do Ocidente: O Homem e o Estado. Lisboa: Academia

Internacional da Cultura Portuguesa, p. 76

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Magno imiscuir-se em assuntos eclesiais, o que de certo modo viria a influir

directamente na organização eclesiástica, na disciplina e na formação do clero.

Carlos Magno, será chamado David e Constantino, somando as tradições

teocráticas do Velho Testamento, e a imperial. Exercendo uma função – regalae

ministerium -, o rei será responsável perante Deus pela salvação do seu povo. Uma

função exercida sobre o povo de Deus. Que portanto deve tender para a unidade.

De tal modo, quando em 800 foram concedidos a Carlos Magno “o título e a coroa

imperiais, ficaram estabelecidos os dois pontos de referência da unidade europeia.

Um personalismo cristão; um poder imperial”.6

Santo Agostinho, em tempo anterior, a partir do século IV, havia contudo, de vir

fundamentar teoricamente uma nova estrutura funcional para o Clero e para o

Estado. Competiria à Igreja estabelecer os limites e as proporções da relação entre

as duas entidades. Na sua perspectiva, “a cidade dos homens resultou de uma

criação de Adão e Caim, a partir do pecado original que teria acabado com o

homem-anjo da «cidade de Deus», o qual, por não ter cometido pecado, também

não tinha de trabalhar. Assim, o homem, porque é pecador, tem de submeter-se ao

poder terrestre, mesmo que este seja exercido por homens maus.”7

O Estado, tinha segundo Santo Agostinho, de ser analisado do ponto vista

teocrático, em vista da relação do Homem com Deus. E, tal como Cícero, entendia

que o Estado é uma colecção de homens unidos pelo acordo sobre os valores e a

utilidade comum.

Com efeito, Santo Agostinho havia ensinado “na cidade de Deus, que o poder

deveria realizar a justiça divina. Os comentadores concluíram que a lógica exigia,

então, que a cidade de Deus deveria absorver a cidade terrestre. Uma sociedade

apenas, Estado e Igreja”.8

6 Moreira, Adriano. 2004, A Europa em Formação: A crise do Atlântico, 4.ª Edição. Lisboa: ISCSP-

UTL, p. 61

7 Maltez, José Adelino. 1991. Ensaio sobre o Problema do Estado: Da Razão de Estado ao Estado-

Razão. Tomo II, op. cit. p. 251

8 Moreira, Adriano. 2004, A Europa em Formação: A crise do Atlântico, 4.ª Edição. Lisboa: ISCSP-

UTL, p. 60

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A conversão de Constantino, por outro lado, no início do Século V, obriga a Igreja

a uma unificação mais avançada e a assumir-se como uma instituição com

responsabilidades acrescidas, sobretudo no domínio do Estado. Desta forma, a

Igreja viria a estabelecer a dissociação dos poderes num campo do poder político e

de autoridade religiosa, criando limites específicos ao poder político em relação ao

fenómeno religioso. A chamada «Doação de Constantino» determina

expressamente “que a dignidade pontifícia não seja inferior, mas que seja

considerada como uma dignidade e glória maiores do que as do império terreno,

concedemos ao referido pontífice (Silvestre), papa universal, e deixamos e

instituímos em seu poder, por decreto imperial, como possessões de direito da

Santa Igreja Romana, não só o nosso palácio como foi dito, mas também a cidade

de Roma e todas as províncias, distritos e cidades de Itália e Ocidente (…) porque

não é justo que o imperador terreno reine onde o imperador celeste estabeleceu o

principado do sacerdócio e a cabeça da religião cristã”.9 É neste contexto que a

questão da origem divina do poder vai adquirindo importância suficiente para

delimitar a forma como as relações sociais e políticas se vão estabelecer no período

em causa.

E a conflitualidade entre o temporal e o espiritual, ou de outro modo, entre o

Príncipe e a Igreja, adquire uma maior evidencia. Consubstanciada na separação de

poderes em dois polos distintos, concorrentes e independentes, um consagrado por

Deus ao Papa e outro adquirido pelo Imperador.

Com efeito, enquanto o príncipe pugnava pelo sentido da unidade política, a Igreja,

pretendia a diferenciação da sua doutrina e sobretudo a evolução da sua unidade.

Motivo pelo qual, não aceitavam um ou outro de bom grado, a invasão das suas

questões internas.

Os doutrinadores teocráticos passaram a sustentar a Doação de Constantino como

um argumento fundamental do reconhecimento do poder divino como superior ao

9 O primeiro dos imperadores cristãos, teria doado ao Papa Silvestre, representante da Igreja, a

soberania sobre a Itália e o Ocidente, no intuito de recompensar o Papa por uma cura milagrosa de

Constantino, e pela qual o Imperador assegura atribuir maior honra ao Reino de Pedro do que ao seu

próprio. Esta doação haveria de tornar-se determinante a partir do século VIII na mediação das

disputas entre o papado e o poder imperial. Tal circunstância faria pender para o lado da Igreja a

importância da gestão do reino terreno, evidenciando-se a autoridade papal.

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poder terreno, e por consequência da limitação do poder imperial face ao poder

papal. O que não deixaria, no entanto, de merecer forte contestação por parte do

poder imperial, argumentando este, para além da falsidade da origem e paternidade

da doação a da sua consideração apenas como lenda herética, reduzindo deste modo

a sua importância e influência.

Por volta do ano de 500, o Papa Gelásio I, procurando delimitar a relação do Papa

com o Imperador, produz uma teoria importante para a relação entre o poder

temporal e o poder espiritual. O governo do Mundo era realizado por duas entidades

distintas: a autoridade sagrada dos Pontífices e o poder real. Contudo, o pendor

maior do encargo do poder seria, em seu entender, da Igreja, porquanto, teria de

prestar contas a Deus, não apenas dos indivíduos no mundo, mas de forma decisiva

dos próprios reis, pelo que, estes deveriam reconhecer que a sua salvação dependia

dos ministros das coisas divinas.

De modo que, para Gelásio I, se estava perante uma distinção hierárquica entre a

autorictas dos sacerdotes e a potestas do rei. Pelo que, o sacerdote, ficava por um

lado, obrigado a reconhecer o poder temporal, sobre as coisas terrenas, uma vez que

aquele poder temporal também foi concedido por Deus, ficando por conseguinte

subordinados ao rei nos assuntos estritamente públicos. Mas, e com importância

acrescida, a Igreja manifestava-se como superior ao Império, já que também seriam

superiores a este, as questões divinas.

Ainda que Gelásio I, entenda a existência de dois poderes separados, o certo é que

o poder espiritual estava dentro do Império para as questões do mundo, mas este

estava dentro da Igreja para as coisas divinas. E estas seriam preponderantes.

Gelásio I, acolhe aqui uma espécie de diarquia hierárquica que permitia uma certa

acalmia nas relações entre Império e Igreja.

Esta perspectiva nem sempre foi aceite pelo Império, não tendo este qualquer

obstáculo ainda durante muito tempo em assumir as funções religiosas como parte

integrante do seu reino.

Em 753-754, o Papa Estêvão II, colocou fim a esta ingerência do Império nas

questões divinas e sobretudo na vida da Igreja. Desloca-se de Roma até ao Reino

Franco, para aí coroar o rei franco Pepino, dando-lhe o título de «patrício dos

romanos» e atribui-lhe o papel de protector e aliado da Igreja de Roma.

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A importância desta iniciativa, reside particularmente, na mudança de eixo da

política papal. Até aí, tinham manifestado uma relação de dependência com o

Império Bizantino e subordinação com os seus imperadores, os quais garantiam a

defesa da Igreja, a troco da sua aquietação e subordinação. Mas, a partir daquele

momento, o papa colocava fim à opressão e aos perigos provenientes de Bizâncio,

alterando a esfera de influência do poder temporal, para um poder mais próximo,

mais eficaz, menos civilizado, mas também eventualmente mais dócil. E os papas

iniciam assim a assumpção de uma função política, anulando a perspectiva dual

promovida por Gelásio, e assumindo-se assim como uma monarquia espiritual

superior à temporal.

A partir do Século XI, os papas acresceram fundamentação teorização à prática

estabelecida por Estêvão II, argumentando a favor da primazia do seu poder, com a

doutrina do “verus imperator “ a qual se fundava na ideia de que tendo o Papa

recebido de Deus a totalidade do poder para depois o delegar como

entendesse, o papa seria o verdadeiro imperador, argumentando ainda com as

bulas papais como um exemplo disso mesmo, ou seja, o Papa era o imperador

do mundo continuador dos imperadores romanos, na medida para além da

detenção do poder temporal também eram adorados como Deuses. Assim se impôs

a doutrina segundo a qual o Papa constituía a cúspide e o eixo de todo o sistema da

organização eclesiástica, que o conceito de plenitude de poder ( plenitudo

potestatis) pretende designar, e difundido pelos canonistas do século XII.10

10 Foi com Inocêncio III que o conceito de plenitudo potestatis se tornou um termo técnico, servindo

para designar a soberania pontifícia. As origens da fórmula remontam a Leão I (século V). Mas é

apenas nos últimos decénios século XII que o papado passa a aplicá-la para indicar a legitimidade

de intervenção nas questões seculares. Em 1198 entrou decisivamente na linguagem da chancelaria

pontifica. Os canonistas adoptá-la-ão também (tradicionalmente, definia-se a autoridade papal como

plena potestas, plena auctoritas, pelnaria potestas, plena et libera administratio). O sucesso da

fórmula ficou assegurado pelo entusiasmo com que Bernardo de Claraval também a acolheu, e pelo

aprofundamento jurídico e doutrinal de Huguccio, cuja definição veio a tornar-se clássica: «A

autoridade plena existe quando contém ordem (preceptum), validade e necessidade; estes três

elementos encontram-se no papa, ao passo que os restantes bispos reúnem apenas o primeiro e o

terceiro». Martins, António Rocha. Origem divina e fonte humana do poder civil em Guilherme de

Ockham: Emergência da liberdade.

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Até ao renascimento do direito romano, no século XIII é por consequência o

teocentrismo a doutrina dominante, o que significa, que a vida, a sociedade, o

mundo, depende do poder divino estando Deus no centro do undo. A Europa é a

Respublica Christiana, na qual o papa ocupa a posição hierárquica mais elevada da

estrutura social e o imperador e os príncipes estão ao serviço de Deus.

O século XII, contudo, traz à evidência uma figura que marcaria de forma indelével

todo o pensamento político religioso na Europa: S. Tomás de Aquino. O Doutor da

Igreja, ao reivindicar a independência de origem do domínio temporal lança as

bases das doutrinas que no século XVI se viriam a impor nas relações entre o poder

temporal e o poder espiritual.

Para S. Tomás sendo a sociabilidade uma característica natural do homem, a

natureza é eminentemente normativa, e que a lei natural constitui a participação

humana, através da razão, na lei eterna, e é, portanto imutável, pelo que o poder

civil transcende o tempo e o espaço, a diversidade de crenças e de raças.

Deste modo, a sociedade é essencialmente finalista e de que todo o homem tende

para um fim ulterior. No entanto, como a sociedade pode ter um fim intermédio, ao

homem cabe o fim último, em razão do qual todo o poder civil se deve organizar.

Á sociedade civil, contrapõe-se a sociedade eclesiástica, a Igreja, destinada a

assegurar a custódia espiritual para atingir o fim superior do homem: a bem

aventurança.

E, como a toda a sociedade corresponde um poder, necessário se torna para este

fim, um poder diferente do poder civil, e que para S. Tomás, adversário do

conciliarismo, reside no Papa. O poder temporal, não procede do poder eclesiástico,

em face da independência da sua origem, mas sim, com origem em Deus. Donde,

também fica limitado o poder espiritual. Pois se, o poder temporal é independente

daquele e tem a mesma origem, força é que tenha também um campo próprio,

autónomo e não inferior, não podendo ser limitado ou suprimido senão em virtude

da natureza do fim a que se destina.

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De igual forma, sendo independente do poder temporal o poder espiritual tinha

como função assegurar o fim último do homem, fundamentalmente um fim

superior: a bem-aventurança.11

Aponta ao pontífice poderes temporais de modo indirecto. O poder temporal

“possui independência pela origem, embora ela possa vir a ser limitada ou mesmo

suprimida em função da natureza do fim a que se destina. A fé e o pecado nada lhe

acrescentam ou retiram. A sua origem é natural, campo em que todos os homens

são iguais. E o direito positivo, fonte de onde derivam as prerrogativas

eclesiásticas, não anula o direito natural.”12 De tal modo, só através da figura da

“legítima defesa, pode o Papa intervir temporalmente, pois, por direito divino e

natural, é lícito a qualquer um defender-se e, portanto, à Igreja”,13 assim,

admitindo que num conflito de direitos prepondera o superior, e sendo a função da

Igreja assegurar o fim último do homem, logo o fim superior.

Os opositores do papado, não vêm nas correntes hierocráticas motivos suficientes

para sustentar a superioridade do poder espiritual sobre o poder temporal, pelo que

de imediato procuram contraditar tais perspectivas. Duas correntes distintas são

apontadas como exemplos de tal contestação. Uma, a que considerava que ainda

que sem separar o espiritual do temporal distinguia no entanto os direitos que

respeitavam ao príncipe e os direitos respeitantes ao Papa. Outra, reivindicava para

o Estado uma base temporal e por conseguinte recusava ao poder espiritual qualquer

predomínio sobre a potestas civilis.

A primeira, com início no século XI, tem como principais defensores Henrique IV,

Guy de Osnabruck, entre outros e a base da sua contestação assenta na consideração

de que o poder espiritual e temporal estão interligados pela via da cooperação, e

logo, que a cristandade deve ser governada pelas duas entidades que detém tais

11 Vide, Albuquerque, Ruy de e Albuquerque, Martim de. 1999. História do Direito Português

(1140-1415). Lisboa: PF, p. 463

12 Albuquerque, Ruy de e Albuquerque, Martim de. 1999. História do Direito Português, op. cit.

p. 465

13 Albuquerque, Ruy de e Albuquerque, Martim de. 1999. História do Direito Português, op. cit.

p. 465

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poderes, o Imperador e o Papa. Tanto mais que o poder temporal decorre

directamente de Deus para o soberano, sem necessidade de intermediários.

Os segundos, em cujos representantes encontramos entre outros, Guilherme de

Occam, Marsílio de Pádua ou Dante, propõem a separação clara entre o poder

temporal e o poder espiritual, assumindo que o primeiro é recebido directamente de

Deus e os fins últimos do Estado são divergentes dos fins últimos do homem, tendo

aquele que se preocupar apenas com o domínio externo das acções.

A questão da origem do poder e do seu exercício temporal e espiritual influenciou

de forma intensa as relações de poder que se desenvolveram no contexto do

desenvolvimento da Europa dos Estados a partir da queda do Império Romano e,

sobretudo, no que se relaciona com Portugal, a partir da génese da formação e

consolidação do reino português. E, bem assim, a influência que foi exercendo ao

longo dos séculos XII a XVI, a qual fica bem patente na luta travada entre o papado

e a Igreja e a tentativa de centralização do poder real ao longo daquele tempo, e

cujo argumentário teve sempre na base a questão do poder e da sua origem e

sobretudo da legitimidade directa ou indirecta para o seu exercício.

Em síntese, as ideias justificativas sobre a origem do poder da época, seriam que “o

poder em abstracto vem de Deus e deve ser considerado como um remédio divino

para o nosso estado de imperfeição e pecado; o poder em concreto tem a sua

origem em Deus, mas não por designação expressa do príncipe; as formas por que

se adquire concretamente o poder são várias, mas em todas elas deve existir o

consentimento do povo”14

A questão da origem do poder foi influenciando do ponto de vista teórico a forma

de relacionamento entre a Igreja em Portugal e o poder real, tal como influenciou

as relações internas em matéria de domínio, importância e poder da Igreja sobre as

restantes classes sociais e a tentativa constante da mesma em condicionar o

desenvolvimento da estrutura interna do poder.

4. O Estado como forma de organização política

14 Merêa, Paulo. Traços fundamentais do regime político. História de Portugal, ed. dirigida por

Damião Peres, II, p. 467

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4.1. A teoria aristotélica (comunidades perfeitas) e tomista (bem comum)

4.2. Como sociedade de homens livres, formada por associação deles

A construção do Estado, no modelo que mais se aparenta com a sua estrutura actual,

apresenta a sua génese remota nos alvores do período feudal. Isto não significa, no

entanto, que a existência de uma entidade congregadora de comunidades e acima

dos cidadãos enquanto ser individual, não tenha acompanhado o desenvolvimento

social do homem.

A dicotomia entre os que acreditam que onde existe uma sociedade tem de existir

um Estado, pois que qualquer espécie de associação política tem necessariamente

de ser um Estado, defendendo, por conseguinte, uma concepção maximalista para

a sua origem15 e os que a contrário, defendem uma perspectiva minimalista,

considerando que a existência do Estado apenas se identifica em certas formas de

associação política, que podem ter maior amplitude que o conceito de Estado

Moderno16 ainda hoje tem razão de ser. Ainda continua, pois a ser de grande

evidência e actualidade a discussão sobre a origem e evolução do Estado e

sobretudo das circunstâncias do seu aparecimento No entanto, fica a sua discussão

fora do nosso objecto de estudo, importando no essencial para a questão da

distinção do Estado no contexto das sociedades mais antigas e período feudal e o

15 Distinguem-se entre outros, quanto à concepção maximalista, Nadel, S.F. 1951. The Foundation

of Social Anthropology; Lara, António C. A. Sousa. 1987. A Subversão do Estado. Lisboa: ISCSP;

Almond, Gabriel e Coleman, James. 1960. The Politics of Developing Areas. Princepton, New

Jersey: Princepton University Press; La Palombara, Joseph. 1963. Bureacracy and Political

Developement.

16 No que se refere à concepção minimalista da existência do Estado, entre outros, Engels, Friedrich.

A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 1986. Lisboa: Avante; Hauriou,

Maurice. 1925. La Théorie de L’Instituition et de la Foundation. In Cahiers de La Nouvelle Journée.

n. º 4. Blond et Gay; Máspetiol, Roland de. 1951. Qu’est ce que l’État? In Revue Politique et

Parlamentaire. Dez.; Clastres, Pierre. 1990. A Sociedade contra o Estado. 5ª Edição. Rio de Janeiro:

Francisco Alves

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Estado Moderno. E sobremaneira importa saber que a organização social do homem

contou sempre com uma entidade superior no seu enquadramento.17

Importa-nos agora, e no contexto do desenvolvimento da génese e evolução da

Administração Pública portuguesa, perceber a forma como o Estado, já integrado

pelos seus aspectos caracterizadores, como sejam a autoridade, a legitimidade, a

existência de um dado e especifico território, com uma comunidade de costumes e

usos similares e com uma proximidade linguística, se tem assumido como elemento

catalisador do desenvolvimento e do crescimento da sociedade onde se integrava.

Impõe-se ainda analisar as etapas que determinaram a construção do estado

português e, sobretudo, a forma a partir da qual se foi também construindo uma

Administração Pública que permitisse o seu funcionamento. As instituições que por

força da existência do estado se vão criando e multiplicando decorrem também do

desenvolvimento do próprio Estado.

E, neste aspecto, não podemos perder de vista a contextualização social, económica,

política e cultural de cada época em estudo para percebermos com eficácia a

evolução do conceito de Estado e por sua vez o da evolução das instituições públicas

que o vão integrando e moldando.

Em face do que fica dito supra, e aceitando que o “conceito de estado, no sentido

de um «independente, auto-suficiente, autónomo corpo de cidadãos que vive por

assim dizer na sua própria essência e usa suas próprias leis» (…) não foi familiar

ao período medieval antes do século XIII”18, merece uma atenção especial, para o

período que decorre entre o século XII e XIII, período que marca o nascimento e

formação do reino de Portugal e consequente afirmação de um Estado agregador de

comunidades.

Como conclui Manuel de Lucena, “definir o Estado como poder político

juridicamente regrado é defini-lo como ordem coactiva, desde que se veja na

coacção o elemento distintivo do Direito, o traço que nos permite separá-lo

17 Vide, Balandier, Georges. 1987. Antropologia Política. 2.ª Edição. Lisboa: Editorial Presença,

Freund, Julien. 1985. L’Essence du Politique, Paris, Bergeron, G. 1965. Fonctionnement de l’Etat,

Paris,

18 Ulmann, Walter. 1975. A History of Political Trought: the middle ages. Peguin Books, s.i., p. 17

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conceitualmente de outros sis- temas normativos: das regras religiosas, morais ou

de etiqueta. Na minha tentativa de definição tomei o cuidado de salientar que esse

poder político normativizado (regrado, normalizado, estabilizado) a que

chamamos Estado não é só o poder central, mas antes um enlace de poderes

centrais e periféricos, formalmente reconhecidos e consagrados ou não”.19

O Estado é ao mesmo tempo, e só o é assim, integrado por um conjunto de

instituições, funcionários, reis, conselheiros, tribunais e prisões, juízes e meirinhos,

pelo que, sem eles não se torna possível a sua concretização. Ainda que

desconhecendo a sua importância, o seu lugar no desenvolvimento do Estado e até

o seu papel enquanto instrumento da evolução do Estado, o certo que todos eles são

elementos determinantes na sua vida.

O Estado, é pois “uma entidade política a se, originária e independente, distinta do

respectivo titular e dos governados e como tal denominada”20 pelo que fica

evidente, a sua necessidade de desenvolvimento e crescimento de forma

independente, quer de uns quer de outros, mas marcada pelos seus contributos

seculares.

É por tal motivo que a glória dos reis se inscreve na glória dos Estados e dos povos

e vice-versa. E o papel das instituições políticas adquire um significado

determinante na vida dos Estados tornando possível a existência do espaço social.

O aparecimento da realidade Estado, não pode ser dissociada dos conceitos que de

forma diversa foram utilizados para explicar a mesma realidade, ainda que

paulatinamente tenham vindo a afastar-se e a criar uma dimensão diferente e

conceptualmente diferenciada. Estão neste caso, os conceitos de povo, coroa, reino

e respublica.

19 Lucena, Manuel. 1976. Ensaios sobre o tema do Estado: Ensaio sobre a origem do Estado (i). in

Análise Social, vol. XII (48), 4.°, 917-981

20 Albuquerque, Martim de. 1983. Política, Moral e Direito na construção do conceito de Estado

em Portugal. in Estudos de Cultura Portuguesa, 1.º Volume. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da

Moeda, p. 132

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O primeiro dos conceitos (populus) “serviu desde cedo para referir uma

congregação numerosa articulada por condição política comum”21, tendo a partir

do século XIII assumido uma dimensão de comunidade humana politicamente

ordenada e diferenciada de outras comunidades.

A palavra república, derivada do latim respublica, queria no tempo significar uma

alteridade política, já quanto ao termo coroa, este passou a significar não apenas um

símbolo da “dignidade régia, mas por expansão, se usou para referir a entidade

jurídica (…) representada pela sucessão dos reis”.22

Quanto ao termo reino, este foi usado para descrever a realidade politicamente

organizada num determinado território mas também numa dimensão de união

jurídica do governante e da comunidade.

No caso português, tal como um pouco por toda a Europa, o conceito de Estado foi

evoluindo também em função do próprio progresso verificado nos laços que uniam

os membros das várias comunidades entre si e, entre aqueles que de forma vária os

governam. É certo que no período pré idade média e durante parte significativa

desta, o vínculo que ligava o individuo ao seu governante, manifestava-se por um

laço de vassalagem, pelo qual está ligado por uma relação contratual ou pactuada

com o seu governante, o que significa que o vassalo se liga directamente ao senhor,

implicando “o princípio da inferioridade ou da obediência como um elemento

vital”23.

E que este vínculo eminentemente privado, se vai diluindo à medida que se avança

em direcção à Idade Moderna. Nos primórdios desta, inicia-se então a transição

para a manifestação de vínculos públicos que ligam os indivíduos ao centro político

da comunidade passando a concretizar-se na figura do cidadão, o qual, tem face aos

titulares do poder, direitos e deveres provenientes da sua posição natural dentro da

21 idem, p. 146

22 Idem, p. 148

23 Albuquerque, Martim de. Política, Moral e Direito na construção do conceito de Estado em

Portugal, op. cit. p. 148

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comunidade. E, é nesta dimensão que o Estado, se vai assumir como o “único corpo

público que vive nas suas próprias leis e na sua própria substância intrínseca”24.

Com efeito, terão sido as transformações do direito público a conduzir ao respeito

dos princípios fundamentais do direito privado e, nesta medida, as “nossas

jurisdições estatais e da igreja e a imposição de modelos de conduta social,

procuram o respeito por aquelas regras essenciais do direito privado, em especial

do direito da família (casamento tridentino) e das obrigações (principio da culpa

e obrigações do foro da consciência) ”25.

Fica assente que o Estado no sentido em que ele se configura em tempos mais

próximos, tem a sua evidência nos finais da designada Idade Média. No entanto, tal

não significa, que desde tempos muito recuados não tenham os homens criado as

suas associações para de forma mais racional e eficiente, prosseguirem a sua luta e

adaptação face ao meio ambiente que o rodeava e sobretudo para fazer face aos

instintos hegemónicos dos outros grupos humanos.

É que é a “presença ou a ausência da formação estatal que fornece a toda a

sociedade o seu elo lógico, que traça uma linha de irreversível descontinuidade

entre as sociedades. O aparecimento do estado realizou a grande divisão tipológica

entre selvagens e civilizados, e traçou uma indelével linha de separação além da

qual tudo mudou, pois o Tempo se torna História”.26

Segundo Engels, tempos houve em que a sociedade não conhecia Estado e tempos

virão em que ele deixará de existir. Concebido como instância autoritária, surge nos

braços da divisão social do trabalho, em consequência de uma apropriação privada

dos instrumentos produtivos e da correlativa divisão da sociedade em classes. As

classes tendem para o conflito aberto, inexpiável, ameaçando destruir a sociedade.

E o Estado, ao assegurar a ordem, garante e reforça ao mesmo tempo o predomínio

de uma delas. A saber: da que já for a classe economicamente dominante. Nesta

24 Ulmann, Walter. A History of Political Trought: the middle ages, op. cit. p. 206

25 Homem, António Pedro Barbas. 2006. O Espírito das Instituições: Um estudo de História do

Estado. Coimbra: Almedina, p. 41

26 Clastres, Pierre. 1990. A Sociedade contra o Estado. 5ª Edição. Rio de Janeiro: Francisco Alves,

p. 141

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ordem de ideias, «o Estado antigo era, antes de mais nada, o Estado dos

proprietários de escravos [...] como o Estado feudal foi o órgão da nobreza [...] e

como o Estado representativo moderno é o instrumento da exploração do trabalho

assalariado pelo capital»27

E, ao contrário do quer pretendia Marx, não é a infra-estrutura económica que

determina a grande alteração no quadro da humanidade, mas é a ruptura política, a

revolução política, o aparecimento do Estado quem promove a grande separação

entre povos primitivos e a civilização.

Segundo a teoria marxista, o Estado é o fruto das diferenças de riqueza entre os

homens e da divisão em classes, “a confissão de que a sociedade se embrenha numa

insolúvel contradição consigo própria, por se ter cindido em inconciliáveis

oposições que não consegue conjurar”.28 Donde a necessidade de um poder

separado e «superior», capaz de controlar o conflito, de o manter dentro dos limites

da ordem. Esse poder é o Estado “que nasce da sociedade, mas se lhe vai tornando

cada vez mais estrangeiro”29. Para Manuel Lucena é “Esta a essência. De um ponto

de vista descritivo, avultam em seguida três elementos constitutivos do Estado: a

territorialidade, que se substitui aos vínculos gentílicos do sangue como critério de

repartição dos súbditos; a instituição de uma força pública, «que não se compõe

apenas de homens armados, mas também de instrumentos materiais, prisões e

penitenciárias... que a sociedade gentílica ignorava completamente; e, enfim, a

percepção de impostos, também absolutamente desconhecidos da gens, mas

necessários à manutenção do novel aparelho de Estado”.30

27 Engels, F. A. 1954. Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Paris: Éd. Sociales,

pp. 84 e 91-9

28 Engels, F. A. 1954. Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, op. cit. 52

29 Engels, F. A. 1954. Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, op. cit. 52

30 Lucena, Manuel. 1976. Ensaios sobre o tema do Estado: Ensaio sobre a origem do Estado (i), op.

cit. 981

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O aparecimento da política é que determina a existência e desenvolvimento do

conceito de Estado e nestes termos o seu baptismo resulta da evidência daquela.31

Maquiavel é segundo muitos, o seu primeiro caracterizador. Proclamando a

“separação radical da política e da moral corrente, a autonomia da política e a

sua prioridade: politica acima de tudo”32, de modo que “o pai da politica seria

também o pai do Estado.”33

A origem do conceito de política assenta também numa divergência teórica e

intelectual que coloca em confronto várias concepções históricas, ideológicas e

politicas. A expressão política teve os seus auspícios a partir do século XIII quando

o tratado de Aristóteles, Política começou a ser traduzido na versão latina.

Este Estado, que no principio confundia o seu património com o daqueles que

exerciam nele o poder político, que não distinguia a soberania e o território de forma

clara e que marcou a sociedade até que por força dos circunstanciais mecanismo da

evolução, começou a diferenciar o património do Estado face ao património do

governante, a acentuar o elemento soberania e a delimitação territorial, que

integrava um povo e costumes comuns ou de proximidade, transformando-se noutra

dimensão com exigências metodológicas e diferenciação funcionais cada vez mais

exigentes.

4. A administração e o Estado

4.1. A administração no Estado

- O Estado coloca a administração no centro do processo político.

- Variações ao longo da evolução do Estado.

A administração e o sistema representativo (principio democrático):

A acção administrativa é enquadrada e controlada pelos representantes da Nação

(Assembleias);

31 Vide, Maltez, José Adelino. 1991. Ensaio sobre o Problema do Estado: Da Razão de Estado ao

Estado-Razão. Tomo II. Lisboa: Academia Internacional da Cultura Portuguesa

32 Chevalier, Jean Jacques. 1979. Histoire de la pensée politique. Paris: Payot, p. 224

33 Albuquerque, Martim de. Política, Moral e Direito na construção do conceito de Estado em

Portugal, op. cit. p. 164

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A administração coloca-se sob a autoridade do executivo (governos)

Os serviços administrativos são dirigidos pelos eleitos (ministros)

As estruturas administrativas são parcialmente democráticas (colectividades locais,

institutos públicos)

Administração e aparelhos de coacção

Inclusão

Autonomização

Reciprocidade entre administração e justiça

Administração e exército como instituições distintas

4.2. A administração como aparelho do Estado

A administração como rosto do Estado. Órgão encarregado de assumir as funções

delegadas do Estado. Tal decorre do exercício da existência de Funções atribuídas

ao Estado. Estas funções são essencialmente, Simbólicas, pelas quais o interesse

geral e interesse colectivo da sociedade, identificação com o próprio Estado.

Funções de Dominação: preservação da coesão social e para a reprodução dos

equilíbrios sociais. E Funções de Regulação: Ajustamento de comportamentos e de

estratégias dos actores sociais, e pela mediação entre interesses particulares e

coelctivos.

Implementação do poder do Estado

4.3. A Administração Pública e o Estado

No contexto que temos vindo a analisar sobre a evolução do Estado, impõe-se

referir que a Administração Pública tem a sua história de forma indelével ligada à

evolução do Estado. Mais. A História da Administração Pública é uma parte da

história do Estado Moderno, o que significa que as condições que conduziram à

Administração Moderna não são passíveis de separação das condições do

aparecimento do Estado Moderno.

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Vários factores são passíveis de enumerar para delimitar a manifestação de uma

dada administração pública. Em primeiro lugar, a centralização do território e com

ela a criação de maiores dimensões do território do Estado.

Em segundo lugar, pela necessidade de realização comum de tarefas permanentes

e relevantes. Neste sentido, encontram-se neste aspecto os grandes impérios

burocráticos da Mesopotâmia e do Egipto, para cuja manutenção se necessitava de

um grande aparelho administrativo. Também no império romano, se verificou o

desenvolvimento de uma grande administração articulada entre o aparelho militar

e a dimensão civil.

De igual modo ainda, na transição da época feudal para a idade moderna trouxe a

configuração de uma nova administração pública sobretudo pela criação de

exércitos permanentes e toda a logística que tinha associado, e bem assim em face

da necessidade do nascente Estado Moderno de exercer uma dominação mais

efectiva e mais centralizada sobre as forças e os mecanismos sociais, exercendo aí

de forma mais eficiente o seu poder. Neste contexto, a evolução da Administração

Pública também se encontra marcada pela própria evolução do Estado e dos seus

mecanismos de autoridade e poder. Com efeito, “tal como es conocido, los fines del

Estado se han ampliado gradualmente y para cumprirlos la Administración

también debía ampliarse. El rol estatal pasó de ser pasivo o no interventor en la

sociedad (en el Estado liberal), a tener un papel más activo y de presencia en la

misma (en el Estado social). De esta manera, el proceso de industrialización y más

aún, el Estado de Bienestar, contribuyó a que las necesidades sociales se

incrementaran y por consiguiente a que se crearan nuevos ministerios,

departamentos, oficinas administrativas, empresas públicas, empresas

semipúblicas, e incluso una red de organizaciones no estatales que participan en

la ejecución de políticas de Estado las cuales debían responder a las nuevas

necesidades de la sociedad”.34

Deste modo a génese da Administração Pública, evidencia a estreita conexão entre

o conceito de Estado e o de Sociedade no sentido em que esta trilogia, como lhe

podemos chamar, se desenvolveu historicamente em relação de proximidade e de

influência reciproca. O que significa que é no contexto do desenvolvimento do

34 BAENA DEL ALCAZAR, Mariano. 2005. Manual de Ciência de la Administración. Madrid:

Síntesis, p. 50

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estado que a Administração Pública se foi criando e desenvolvendo e ao mesmo

tempo é esta Administração Pública que vai moldando e promovendo o

desenvolvimento do próprio Estado.

Mas, no contexto em que desenvolvemos estas considerações importa procurar

delimitar o conceito de Administração Pública definindo-o no sentido em que os

acompanhará ao longo deste texto e ao longo do processo de investigação e

leccionação.

O conceito de Administração Pública não é tarefa fácil, uma vez que implica um

variado número de actividades e de aplicações e integrada por uma diversidade de

indivíduos. A actividade da Administração Pública, encontra-se desde logo, na

disposição dos resíduos sólidos na gestão de grandes projectos tecnológicos, os seus

funcionários podem apresentar-se com grande especialização técnica enquanto

outros se apresentam com níveis de educação mais baixo, mas como refere

Rosembloom, conhecer o que faz a Administração Pública não resolve o problema

do seu conceito.35

Também Dwight Waldo um dos teóricos mais importantes da Administração

Pública apresenta uma definição sistémica que pode ter grande utilidade para a

formação de um conceito operacional e que nos permita entender o seu percurso.

Em primeiro lugar, e sobre uma discussão que todavia no está resolvida, Waldo

acrescenta que la Administração Pública foi tradicionalmente considerada como

ciência ou como arte. O tratamento que se faça da Administração Pública como

uma ou outra coisa, dependerá do enfoque a partir do qual se queira definir. Será

considerada como uma análise ou disciplina do ponto de vista da ciência ou como

um processo ou actividade a partir do ponto de vista que a considera uma arte.36

:::::::::

4.4. A evolução da Administração Pública em Portugal até à época feudal

35 Rosenbloom, David H. 1983. Public Administrative theory and the separation of powers.

American Society for Public Administration, vol. 43, núm. 3: 219-227

36 Waldo, Dwight. 1961. Estudio de la Administración Pública. Madrid: Aguilar, p. 30

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A administração de uma forma geral pode encontrar-se desde os primórdios da vida

em sociedade, ainda que, até bastante tarde, a mesma se encontrasse confundida

com o governo ou executivo e com o aparelho judicial. Com efeito, os romanos já

usavam providências administrativas sobre a fazenda pública, tributos, caminhos e

rios públicos. Já organizavam os exércitos e definiam o modo de organização do

Império. Muitas das leis existentes, avulsas, no período romano, acabaram por ver

suspensa a sua vigência com as invasões dos povos germânicos, com excepção das

leis civis que integrando o Digesto, passaram a ser a lei dos novos povos. Para além

disto, os romanos assentavam a sua estrutura organizativa na família, a qual para

“além da realização das finalidades morais e educativas que cabem à família

moderna, realizava ainda as finalidades próprias de um Estado, quer no âmbito da

segurança, quer na satisfação regular das necessidades de bem-estar económico

dos seus componentes”37 motivo pelo qual se pode considerar que as funções das

famílias no sentido da organização a produção e distribuição dos frutos da

propriedade familiar, tais como as que visavam a garantia da sua defesa se

configuram “como funções ‘públicas’ ou melhor , funções de interesse colectivo

que estão na génese das funções públicas do Estado contemporâneo”.38

Com o desenvolvimento do estado romano e o seu crescimento populacional e

territorial, as funções de administração passaram a ser atribuídas a uma entidade

superior ao do pater famílias, o rei, cujas funções para além de políticas, eram

também legislativas, executivas e judiciais. Mas, a complexidade de tais funções

conduziu à necessidade da delegação de alguns poderes do rei para um conjunto de

cidadãos que reunidos em assembleia e em representação do rei exerciam algumas

funções judiciais, a cúria. Esta assume-se assim como a circunscrição político-

administrativa em que agrupava os cidadãos para o exercício das suas funções

militares e políticas. E, ao mesmo tempo, enquanto representante da polis, assume

em nome do rei um conjunto de outros poderes de índole militar, religioso e

37 Santos, António Pedro Ribeiros dos. 2007. As origens da Função Pública em Portugal. In Revista

de Estudos Políticos e Sociais, Lisboa: ISCSP-UTL. 1997, 1-2, p. 168

38 Santos, António Pedro Ribeiros dos. 2007. As origens da Função Pública em Portugal, op. cit.

168

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políticos. A função pública, surge assim, como uma extensão dos poderes do rei em

virtude da complexidade da vida da polis.

Esta primeira fase, que se caracterizou de forma geral pela inexistência de um poder

central organizado, decorrente de uma grande anarquia social, desorganização

institucional e pouca clarificação no quadro da intervenção dos poderes públicos,

não existindo, por via disso, uma administração pública regular, ainda que como

vimos atrás, não possamos deixar de considerar a sua organização como a génese

da Administração Pública.

No que toca à sua influência sobre a Administração Pública portuguesa, impõe-se

referir que as raízes romanas em muito influíram na mesma. Com efeito, depois da

conquista e pacificação da Península Ibérica, cerca de do século 19 a. c. é tempo da

sua romanização e de lhe atribuir um conjunto de instituições que já eram

determinantes na Roma imperial. A organização burocrática começa a concretizar-

se, com a hierarquização dos funcionários, diferenciação funcional ao nível do

poder civil e militar e uma descentralização clara entre poder municipal e

centralizado, para além de uma bem estruturada divisão administrativa. A divisão

da península é feita em cinco províncias, Baetica, Lusitânia, Gallaecia,

Tarraconensis e Carthaginensis, cada uma delas governada por um Governador e

por uma Assembleia Provincial. Abaixo das províncias em termos de estrutura

hierárquica, surgem os conventos que tinham como funções a aplicação da justiça.

Com o advento do cristianismo os conventos são substituídos pelas Dioceses,

subordinadas ao praefectus governa um ‘vicarius’. Dentro de cada território

provincial coexistem vários tipos de cidades, que se distinguem consoante a sua

resistência ao invasor romano. Assim se designam de livres, estipendiárias e

urbanas ou rurais. São livres as que por um acto unilateral de Roma obtinham

isenção de pagamento de impostos e o reconhecimento da sua soberania, e as que

sendo mais poderosas e houvessem aceitado sem grande resistência a integração no

império conseguindo grande autonomia administrativa face a Roma, mediante um

tratado (foedus), e que adquiriam a designação de federadas. Estipendiárias eram

aquelas que por terem oferecido resistência a Roma e sido conquistadas com grande

violência, pagando pesados tributos a Roma.

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Na escala mais elevada da hierarquia encontravam-se os magistrados militares que

detém o poder supremo militar. Nas prefeituras, governava um praefectus que

subordinado ao imperador assume poderes legislativos, judiciais e administrativos.

Para além das prefeituras, os romanos criavam cidades que designavam de colónias

e que seguiam de perto toda a estrutura organizacional de Roma, constituídas por

cidadãos romanos, legionários e outros que institucionalmente se organizavam

segundo as regras das cidades originais, assentes em rês órgãos: os magistrados, os

‘duoviri iure dicundo’ superintendendo no governo municipal e nas finanças e

tinham a seu cargo a justiça e os ‘duoviri aediles’ que tinham a seu cargo o governo

civil (obras públicas, polícia, mercados, aquedutos), um senado municipal e uma

assembleia popular.

De igual forma, as cidades indígenas às quais Roma outorgava o foro municipal,

mantinham a mesma divisão administrativa das colónias romanas, atribuindo aos

munícipes a cidadania romana atenuada ou plena consoante fosse municípios

latinos ou romanos.

A distinção entre colónia e município decorria de que a primeira era uma “cidade

fundada com cidadãos vindos de Roma ou do Lácio, enquanto o município

representava uma comunidade pré-existente, mas indígena, subordinada a

Roma”39, mas no decurso do Império e no que à Península Ibérica respeita, esta

diferença foi-se esbatendo, pelo que a designação de município passou a ser

atribuída a todas as cidades de tipo romano, cujos cidadãos tivessem os direitos dos

romanos ou dos latinos (município romano e município latino). A sua característica

principal “ era o reger-se segundo as leis romanas, administrando-se mediante

resoluções dos seus cidadãos tomadas nos comícios (que se reuniram até ao sec.

II) e dos decuriões na cúria, e elegendo os magistrados ou duúnviros”.40

Ora, é neste contexto, que os romanos na medida em que o império se vai

desenvolvendo e ao mesmo tempo crescendo em dimensão espacial, vão também

organizando a estrutura de poder e do próprio Estado, criando um conjunto de

39 Caetano, Marcello. 1994. Estudos de História da Administração Pública Portuguesa.

(Organização e prefácio de Diogo Freitas do Amaral), Coimbra: Coimbra Editora, p. 325

40 Caetano, Marcello. 1994. Estudos de História da Administração Pública Portuguesa, op. cit. P.

326

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funcionários que dependentes do poder real, absoluto, centralizado e autocrático,

transmitido hereditariamente e onde o rei se identifica com Deus, numa dimensão

“dominus et deus”, e responsáveis perante ele como é evidente.

O desenvolvimento económico e social do Império conduz então a uma intervenção

maior do próprio Estado, no sentido em que “chama a si a satisfação de uma massa

de necessidades económicas e sociais, até então providas pela actividade

particular. Industriais e artífices, todos são funcionários…” 41.

Decorre então, que o funcionalismo público tem um forte incremento no Império,

o qual fica hierarquizado numa estrutura que tem no topo da pirâmide quatro

funcionários de primeira categoria, e que em conjunto com outros funcionários de

segunda categoria, constituíam o ‘Sacrum Consistorium’, sendo os principais

funcionários, o ‘questor sacri pallati’ que tinha a função jurídica de preparação dos

projectos de lei e de responder às consultas dirigidas ao imperador, o ‘magister

officiorum’ cujas funções eram a de gerir a organização interna do império bem

como as suas relações externas, o ‘comes sacrarum largitionum’ espécie de

ministro das finanças que administrava o tesouro público, e o ‘comes rerum

privatorum’ o encarregado de administrar a fortuna pessoal do imperador.

Com as invasões visigóticas, o fim do império romano e posteriormente as invasões

árabes vai verificar-se uma nova alteração do ponto de vista da estrutura da

administração na península ibérica. A anarquia, em muitos aspectos da vida social

era um dos aspectos mais comuns pelo que a Administração era em muitos casos

inexistente.

O contacto com as tradições e o direito romano e a sua consequente integração na

cultura visigótica, veio a traduzir-se no desenvolvimento de uma nova dimensão da

estrutura organizativa deste povo, quer do ponto de vista da organização do poder

central, quer do ponto de vista do poder local. Nestes termos, vai verificar-se desde

logo, uma alteração na estrutura do poder real, porquanto o rei, considerado como

um funcionário do povo e que tinha como funções a defesa e governo do reino com

41 Guedes, Armando Marques. 1954. A Concessão, Estudos de Direito, Ciência e Política

Administrativa. Lisboa, p. 30

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justiça e protecção da Igreja, evolui para uma concepção de centralização da

estrutura do poder com o necessário fortalecimento do poder do rei.

No sentido de tal evolução, enfatiza-se o carácter electivo do rei, com o tempo

passou a integrar a associação dos seus filhos ao governo do reino para garantia da

sua sucessão. O que muito rapidamente se transformou em sistema hereditário a

sucessão no trono dos reis visigóticos.

No que respeita à administração central, era o rei quem assegurava o controlo da

administração central, coadjuvado por vários funcionários, que tomavam o nome

de ‘comes’ seguido da indicação do cargo, tais como, ‘comes notariorum’, espécie

de chanceler, ‘comes patrimonii’ para a gestão do património do reino, etc.

Já nesta organização visigótica, os reis asseguravam o conselho para a tomada de

decisões mais importantes, através de um conjunto de nobres, dignitários religiosos

e os funcionários mais importantes do reino, a que se deu o nome de Aula Régia e

mais tarde Cúria Régia.42

Quanto à administração local, encontramos também no período visigótico, um

conjunto de elementos que nos permitem entender como génese do poder municipal

em Portugal. Aliás, o poder local neste período adquire maior importância em face

das alterações introduzidas na administração do território por parte dos visigodos

em comparação com o tipo organizativo delimitado pelos romanos.

Os povos romanos tinham uma predilecção especial pelo meio rural em detrimento

do meio urbano. Com efeito, tais alterações, conduzem a “uma progressiva

importância da administração local, debilmente subordinada ao poder central, e a

uma concentração de atribuições administrativas, jurídicas e militares nas mãos

do mesmo funcionário da administração local”43, de modo que à frente da

“administração provincial encontrava-se um ‘dux’, ou mesmo um ‘comes’ (…)

consequência da perda de significado e de importância desta circunscrição”.44

42 Sobre esta temática debruçar-nos-emos mais tarde em pormenor, em capítulo e tema próprio.

43 Santos, António Pedro Ribeiros dos. 2007. As origens da Função Pública em Portugal, op. cit.

185

44 Santos, António Pedro Ribeiros dos. 2007. As origens da Função Pública em Portugal, op. cit.

185

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Ao lado do conde, o mais alto funcionário da administração local desse tempo,

encontramos outro funcionário que o coadjuva nas suas funções, o ‘vicarius

comitis’, para além de outros que se atem a funções de natureza mais específica,

como sejam para a aplicação da justiça, o ‘iudices territorii’ ou o ‘iudices civitatis’.

As invasões muçulmanas trouxeram, no que à organização municipal respeita a sua

extinção não se encontrando no decurso do domínio deste povo qualquer referência.

As cidades, eram governadas por representantes do Califa, enquanto supremo juiz

na qualidade de sucessor do profeta, exercendo aí as funções sacerdotais de

aplicação do direito corânico.

A ocupação árabe trouxe um conjunto evidente de alterações no que se relaciona

com a organização administrativa, jurídica, social e económica da península. Desde

logo, do ponto de vista administrativo o sistema da territorialidade característico

dos visigodos foi suplantado pela perspectiva totalitária da organização árabe que

assentava exclusivamente no livro sagrado, o Corão, e que se destinava a reger

todos os aspectos da sociedade (ético, social, religioso, político e jurídico) e

permitindo apenas a integração plena em tal sociedade àqueles que aceitavam a

religião professada pelo Corão.

Ainda assim, os muçulmanos, deixaram do ponto de vista social a possibilidade de

convivência entre os povos peninsulares e eles próprios articulando-se no conjunto

de situação de aculturação que permitiram também à posteriori a manutenção de

algumas raízes históricas e tradições.

Do ponto de vista da sua estrutura administrativa, surgia no topo da pirâmide, o

Califa, cuja soberania decorria da determinação teocrática, considerados como

vigários enviados por Deus, abaixo do qual, se situa um primeiro-ministro ‘hachib’,

os ministros ‘vizires’, o chanceler ‘catib’, um conselho de vizires presidido pelo

primeiro-ministro e um conjunto de várias secretarias ‘diwan’.

Do ponto de vista da administração do território, o Califado divide-se em províncias

interiores ‘kuras’, províncias fronteiriças ou marcas ‘tagr’, sendo as primeiras

predominantemente de índole civil e as segundas de índole militar.

A cidade é o principal elemento da administração local, operando-se ai, grande

parte da actividade mercantil, e é governada por um ‘vali’, decorrendo daí todo um

sistema administrativo, integrado por um ‘cadi’ que administrava a justiça, e vários

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28

juízes especiais em função da tipologia da justiça a aplicar, designados de

‘almotacé’, juiz do mercado e do policiamento económico e o ‘al-musrif’ ou

almoxarife para a cobrança de impostos.

A sucessão régia e as suas formas de desenvolvimento, ao longo dos primeiros

tempos de governação dos reis visigodos no decurso da reconquista cristã e depois

no decurso da formação do Estado português, teve também importância

fundamental na consolidação do poder, por um lado, e sobretudo, no

desenvolvimento da Administração Pública e de igual forma na capacidade de

exercício do poder conducente à sua centralização.

Uma das formas de escolha do rei desde os primórdios da governação visigótica,

foi a da eleição real tendo por base um determinado universo de eleitores, e limitado

poder de escolha, o que conduzia por norma a uma mescla entre eleição e

hereditariedade. Com efeito, a escolha apenas podia incidir sobre uma determinada

estirpe de eleitos e de igual modo, apenas uma mínima parte da população que

integrava a mesma estirpe podia promover a escolha. De tal modo, que em termos

de exemplo, no Sacro Império a eleição decorria de uma cooptação entre os

príncipes alemães, na Polónia só os membros de três casas nobres podiam ascender

ao Trono, e no Reino Visigótico só os membros da estirpe real podiam ser eleitos

reis.

A escolha real gerava de forma sistemática o aparecimento de facções e de conflitos,

o que na monarquia visigótica conduziu à sua destruição pelos mouros na sequência

de um tal conflito entre candidatos ao Trono - um dos quais não hesitou em chamar

em seu auxílio os berberes do Norte de África.

Era o critério do sangue que assumia, pois, o factor designativo da qualidade de

sucessível ao trono e só depois o povo (aqui entendido em sentido muito restrito)

podia proceder à escolha do seu efectivo representante, ou seja do príncipe que

exerceria o regímen politicum.

A hereditariedade foi outro dos sistemas de escolha real terminando como sistema

de sucessão e como reacção aos conflitos que os sistemas eleitorais geravam, ou

aos que se manifestavam quando a realeza era ocupada pelo nobre, ou pelo chefe

de clan, que dispusesse de mais força. Frequentemente a sucessão transformava-se

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29

num longo período de lutas, em que o candidato mais forte eliminava os

concorrentes, e até por vezes as suas famílias.

Estes dois princípios de escolha dos governantes, acabariam por influenciar

directamente os reinos peninsulares durante a Reconquista, ficando evidente o

“vestígio do velho direito de sangue, a designação de rei e rainha aplicada a

membros de estirpe régia. Rainhas são ainda, entre nós, por exemplo, sem terem

cingido qualquer coroa, as filhas dos primeiros monarcas. Vemos também a

transmissão do trono dentro da estirpe real, mas nem sempre por forma

hereditária.”45

A fase da administração municipalista tem início no período da reconquista cristã e

assenta nas dinâmicas territoriais e sociais que esta vem implementar no âmbito

peninsular. O movimento da reconquista, tem na sua base toda uma nova dimensão

organizativa, política, jurídica e social que impõe também novas forma de

organização. Por um lado, porque o poder real vai sair reforçado de todo este

movimento, como aliás não podia deixar de ser, porquanto a iniciativa da guerra

aos mouros dependia daquela iniciativa, e por outro lado, porque a transição de

monarquia electiva para monárquica hereditária se vai constituir a partir daqui.

4.5. O Estado Feudal e a (re) descoberta da Administração Pública

O desenvolvimento do feudalismo, cuja estrutura do Estado, passa a caracterizar-se

pela existência de um grande número de pequenos estados e com um poder político

atomizado, onde a guerra existia como a principal profissão das elites

nobiliárquicas, conduziria também à consolidação da monarquia portuguesa. Neste

novo período, um dos aspectosconsolidou-se, já iam avançados os alvores do

feudalismo, e todas as instituições existentes eram fundadas na posse da terra: o que

era senhor da terra era também senhor das respectivas pessoas. Assim, a condição

social de cada um, dependia da sua relação com a terra. O senhor, detentor da terra

e das pessoas, era assim, o Administrador e o governo dela e das pessoas. E

nomeava também as autoridades que em cada terra a governariam. E, de igual

forma, os reis nomeavam as suas autoridades em face da posse de terras, mas tinham

45 Albuquerque, Ruy e Albuquerque, Martim. 1999. História do Direito Português, op. cit. p. 529

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30

reduzida capacidade para nomear magistrados para os domínios dos restantes

senhores, fazendo-o por isso, excepcionalmente quando se tratava de administrar a

justiça nesses domínios, nomeadamente, meirinhos mores, regedores de justiça,

vedores, corregedores de justiça, etc.

O caso específico de Portugal, é o de que desde o início da sua monarquia e

constituição como reino independente, começou por escolher e impor o modelo da

sucessão hereditária, como ficou desde logo definido da Bula que reconhece o reino

e que afirma o princípio da hereditariedade e de igual forma a posição de Sancho I,

nos últimos anos do reinado de Afonso Henriques como consors regni, ou seja,

como co-regente.

Ainda assim, como forma de acautelar a sucessão os primeiros reis, Sancho I,

Afonso II e Sancho II, não deixaram de regular cuidadosamente nos seus

testamentos a sucessão no trono real. Só depois destes, talvez por ficar já claro, o

princípio dominante, os sucessivos reis deixaram de regular de forma testamental a

sua sucessão.

A época feudal, no que ao caso português e peninsular respeita, apenas se inscreve

de forma clara, a partir da reconquista cristã. Talvez por isso, ao contrário do que

sucedeu em outros estados da Europa, os pressupostos caracterizadores do Estado

feudal, nem sempre se tenham feito sentir com a mesma preponderância com que

aconteceu naqueles. Pode, em conformidade com a maioria dos estudiosos sobre o

assunto, concluir-se que a época feudal em Portugal é muito atenuada face ao

contexto europeu, e muitas das características definidoras do período acabaram por

não fazer-se sentir no reino portucalense ou se fizeram a sua aparição fizeram-no

de forma atenuada.

No tempo que marca o período entre a formação do estado português e a sua

consolidação e que termina com a transição para o Estado moderno, a administração

pública nacional vai desenvolver-se tendo por base a dicotomia entre a dimensão

central dessa administração e a sua dimensão local. Com efeito, a intervenção régia

vai fazer-se em dois sentidos. Em primeiro lugar pela consolidação do poder rei e

pela criação de estruturas que permitam a sua centralização, como sejam a captura

do aparelho judicial e a aplicação da justiça, a organização administrativa da corte

e do país e pelo desenvolvimento do sistema fiscal pela via da cobrança de tributos.

Em segundo lugar, e como já se verificava desde o tempo da reconquista, o rei vai

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31

também descentralizar o seu poder atribuindo perifericamente o estatuto de

administração aos poderes locais sobretudo as estruturas municipais e concelhias.

Com efeito, decorrente de uma maior organização social e do Estado os municípios

passaram a assumir uma importância determinante no seu contexto e muitas vezes

arrogando cada um deles, uma grande dose de soberania face ao poder do Estado.

Esta alteração vai ter reflexos evidentes em toda a organização do Estado e

sobretudo na organização funcional local e central, na confusão entre património

do rei e do reino, passando este a ser concebido como passível de transmissão

hereditária, na atribuição de privilégios aos senhores feudais e aos altos

representantes do clero. Daqui decorrem novos nexos de ligação entre o rei e os

súbditos que conduzem a novos laços de soberania entre eles.

Também as novas funções atribuídas às estruturas da administração são

desenvolvidas e criadas outras, nomeadamente funções consultivas atribuídas à

Cúria Régia como veremos adiante.

4.6. A modernidade dos Estados e a nova arquitectura do poder

O nascimento do Estado Moderno é caracterizado por um conjunto de

circunstâncias que promovem a ruptura com o Estado feudal, alterando de forma

radical os pressupostos em que este último assentava e determinava de igual forma

a relação entre os indivíduos, a sociedade em que se integravam e as instituições.

Uma dessas circunstâncias é o aparecimento da dimensão individualista que destrói

de forma radical a ideia de ordem social e política que caracterizava a época feudal.

Tal ideia, consubstanciava-se na perspectiva de que a organização política decorria

da vontade de Deus e por conseguinte fixadas as regras pela ordem natural. Pelo

que “o individuo não estava, assim, na origem da constituição política ou da

organização social; era esta, pelo contrário, que lhe atribuía um determinado

papel social ou um certo conjunto de direitos e deveres”.46

Ora, a dimensão individualista, colocando o Homem no centro do mundo e que toda

a dimensão política depende da sua vontade põe em causa o equilíbrio tradicional

da sociedade anterior. E, por esse motivo, a constituição da sociedade decorre de

46 Hespanha, A. Manuel. As estruturas políticas em Portugal na Época Moderna, … p. 2

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um pacto ou contrato cujas cláusulas dependem em exclusivo das partes. De igual

forma, todas as relações sociais passam a ser entendidas como sendo passíveis de

modificação por iniciativa das partes.

É neste contexto, que o Estado Moderno se vai concretizando, atribuindo à noção

de “Estado” uma importância decisiva e determinante no desenvolvimento das

sociedades humanas. O Estado, passa a ser o resultado de uma organização do poder

caracterizada pela racionalidade, generalidade e abstração, na qual, a primeira das

características consistia numa forma racional de organizar a sociedade, a segunda

como uma forma abstracta e geral de regular a dimensão social e finalmente um

modelo impessoal de participação política.47

Para além desta dimensão do Estado do ponto de vista da estrutura do poder,

também o novo modelo de Estado tem origem num “Estado de monopolização

muito definido. O individuo foi despojado do direito de dispor livremente dos meios

do poder militar que está reservado a uma autoridade central, qualquer que seja a

sua forma”.48 E de igual modo, também a cobrança de impostos sobre os bens ou

sobre o rendimento de cada pessoa está igualmente concentrado nas mãos de uma

autoridade central da sociedade estabelecido que fica o monopólio do militar e

fiscal “as lutas sociais já não visam a eliminação do monopólio de soberania, mas

sim decidir quem deve dispor do sistema de monopólio, onde recrutar os seus

elementos e como distribuir os respectivos encargos e lucros. É com a formação d

etal monopólio permanente, detido pela autoridade central e de um tal sistema de

soberania especializado que as unidades de soberania adquirem o caracter de

«Estados» ”49. O Estado, assume assim um conjunto de ideias força que o

caracterizam de forma determinante, como sejam a separação do público do

privado, a autoridade da propriedade e a política da economia. A promoção da

concentração de poderes num só polo, eliminando o plenamismo político, e o

Estado instituiu um modelo racional de governo.

47 Vide, Weber, Max, Economia e Sociedade…

48 Elias, Norberto. 1990. O Processo civilizacional. Lisboa: D. Quixote, p. 93

49 Idem. p. .94

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O Estado moderno, tem no entender da maioria dos autores, foros de identidade a

partir do século XIII, fazendo a sua aparição na Europa dos Estados.

……

E que este vínculo eminentemente privado, se vai diluindo à medida que se avança

em direcção à Idade Moderna. Nos primórdios desta, inicia-se então a transição

para a manifestação de vínculos públicos que ligam os indivíduos ao centro político

da comunidade passando a concretizar-se na figura do cidadão, o qual, tem face aos

titulares do poder, direitos e deveres provenientes da sua posição natural dentro da

comunidade. E, é nesta dimensão que o Estado, se vai assumir como o “único corpo

público que vive nas suas próprias leis e na sua própria substância intrínseca”50.

Com efeito, terão sido as transformações do direito público a conduzir ao respeito

dos princípios fundamentais do direito privado e, nesta medida, as “nossas

jurisdições estatais e da igreja e a imposição de modelos de conduta social,

procuram o respeito por aquelas regras essenciais do direito privado, em especial

do direito da família (casamento tridentino) e das obrigações (principio da culpa e

obrigações do foro da consciência) ”51.

De outro lado, o nascimento do Estado moderno, “encontra-se ligado à crise da

sociedade no século XVI, em consequência dos descobrimentos e da reforma

religiosa. A disciplina imposta pela Igreja estava a ser colocada em causas e a

autoridade da casa já não era capaz de impor a disciplina, no momento em que as

relações sociais pareciam seguir novos modelos: o Estado tornou-se necessário

neste momento para restabelecer a ordem e disciplina sociais. Disciplina que é

imperativa para os reis, juízes, funcionários, etc”52.

É neste contexto que o Estado em Portugal também vai seguindo o seu caminho.

Se, no decurso dos séculos XII a XV, ele assenta numa perspectiva atomística, com

um poder político difuso, assente numa dimensão de força e de capacidade para os

50 Ulmann, Walter, A History of Political Trought: the middle ages, op. cit. p. 206

51 Homem, António Pedro Barbas, O Espírito das Instituições. Um estudo de História do Estado,

Coimbra, Almedina, 2006, p. 41

52 Homem, António Pedro Barbas, O Espírito das Instituições. Um estudo de História do Estado,. p.

42

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34

eu uso, numa comunidade de interesses e de cultura próximas, ainda que em

construção e em crescimento, motivo pelo qual se pode entender a sua relativa

predominância na esfera pública, já a partir do século XVI se evidencia com clareza

a mudança a que se assistirá a partir daí.

O novo Estado adquire, por força das alterações sociais, políticas, culturais e

sobretudo económicas, uma dimensão claramente diferente. Já não assegura uma

certa hierarquia de poderes, mas assume-se como o poder. Não assenta na

atomicidade, mas ajusta-se no sentido do núcleo centralizado do poder. Já não

assegura apenas uma certa dimensão geográfica, mas passa a consagrar um

elemento aglutinador de uma comunidade dentro de um território, com uma cultura

própria e com uma dimensão social e política também específica.

A crise de 1383-85 consubstanciou de forma evidente esta dinâmica cultural, social

e económica, distinguindo o contexto povo e determinando a circunstância território

como elemento fundamental de tal povo e a natureza do novo Estado, ficará aqui

bem delimitada.

O Estado moderno é caracterizado por dois tipos de processos.

Um dos processos é o da institucionalização, no sentido em que as suas funções são

organizadas de forma estável, traduzindo-se assim, na emergência de uma entidade

abstracta, na transformação do status dos governantes (órgãos do estado que

exercem o poder em seu nome), na subordinação ao direito, na transformação do

poder em autoridade e na existência de um aparelho estruturado e coerente de

dominação, pelo monopólio da violência legítima53, de que decorrem em três

aspectos principais, o poder de coacção legal, a possibilidade de uso da força física

e o monopólio do uso da força e da coacção,

O outro processo é o da autonomização, na medida em que se verifica uma

delimitação uma delimitação das suas funções colectivas.

A monarquia portuguesa, consolidou-se, já iam avançados os alvores do

feudalismo, e todas as instituições existentes eram fundadas na posse da terra: o que

era senhor da terra era também senhor das respectivas pessoas. Assim, a condição

social de cada um, dependia da sua relação com a terra. O senhor, detentor da terra

53 Max Weber e Norbert Elias

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35

e das pessoas, era assim, o Administrador e o governo dela e das pessoas. E

nomeava também as autoridades que em cada terra a governariam. E, de igual

forma, os reis nomeavam as suas autoridades em face da posse de terras, mas tinham

reduzida capacidade para nomear magistrados para os domínios dos restantes

senhores, fazendo-o por isso, excepcionalmente quando se tratava de administrar a

justiça nesses domínios, nomeadamente, meirinhos mores, regedores de justiça,

vedores, corregedores de justiça, etc.

A sucessão régia e as suas formas de desenvolvimento, ao longo dos primeiros

tempos de governação dos reis visigodos no decurso da reconquista cristã e depois

no decurso da formação do Estado português, teve também importância

fundamental na consolidação do poder, por um lado, e sobretudo, no

desenvolvimento da Administração Pública e de igual forma na capacidade de

exercício do poder conducente à sua centralização.

Uma das formas de escolha do rei desde os primórdios da governação visigótica,

foi a da eleição real tendo por base um determinado universo de eleitores, e limitado

poder de escolha, o que conduzia por norma a uma mescla entre eleição e

hereditariedade. Com efeito, a escolha apenas podia incidir sobre uma determinada

estirpe de eleitos e de igual modo, apenas uma mínima parte da população que

integrava a mesma estirpe podia promover a escolha. De tal modo, que em termos

de exemplo, no Sacro Império a eleição decorria de uma cooptação entre os

príncipes alemães, na Polónia só os membros de três casas nobres podiam ascender

ao Trono, e no Reino Visigótico só os membros da estirpe real podiam ser eleitos

reis.

A escolha real gerava de forma sistemática o aparecimento de facções e de conflitos,

o que na monarquia visigótica conduziu à sua destruição pelos mouros na sequência

de um tal conflito entre candidatos ao Trono - um dos quais não hesitou em chamar

em seu auxílio os berberes do Norte de África.

Era o critério do sangue que assumia, pois, o factor designativo da qualidade de

sucessível ao trono e só depois o povo (aqui entendido em sentido muito restrito)

podia proceder à escolha do seu efectivo representante, ou seja do príncipe que

exerceria o regímen politicum.

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36

A hereditariedade foi outro dos sistemas de escolha real terminando como sistema

de sucessão e como reacção aos conflitos que os sistemas eleitorais geravam, ou

aos que se manifestavam quando a realeza era ocupada pelo nobre, ou pelo chefe

de clan, que dispusesse de mais força. Frequentemente a sucessão transformava-se

num longo período de lutas, em que o candidato mais forte eliminava os

concorrentes, e até por vezes as suas famílias.

Estes dois princípios de escolha dos governantes, acabariam por influenciar

directamente os reinos peninsulares durante a Reconquista, ficando evidente o

“vestígio do velho direito de sangue, a designação de rei e rainha aplicada a

membros de estirpe régia. Rainhas são ainda, entre nós, por exemplo, sem terem

cingido qualquer coroa, as filhas dos primeiros monarcas. Vemos também a

transmissão do trono dentro da estirpe real, mas nem sempre por forma

hereditária.”54

O caso específico de Portugal, é o de que desde o início da sua monarquia e

constituição como reino independente, começou por escolher e impor o modelo da

sucessão hereditária, como ficou desde logo definido da Bula que reconhece o reino

e que afirma o princípio da hereditariedade e de igual forma a posição de Sancho I,

nos últimos anos do reinado de Afonso Henriques como consors regni, ou seja,

como co-regente.

Ainda assim, como forma de acautelar a sucessão os primeiros reis, Sancho I,

Afonso II e Sancho II, não deixaram de regular cuidadosamente nos seus

testamentos a sucessão no trono real. Só depois destes, talvez por ficar já claro, o

princípio dominante, os sucessivos reis deixaram de regular de forma testamental a

sua sucessão.

Esta a situação até ao reinado de D. João I, quando este mesmo rei, aproveitando o

posicionamento de muitos nobres favoráveis a Castela, iniciou o estabelecimento

do poder central com uma supremacia sobre os restantes.

Com D. João II, fica clara esta tendência de centralização do poder, com a redução

do poder da aristocracia e da criação de um exército permanente e de uma estrutura

administrativa superior.

54 Albuquerque, Ruy e Albuquerque, Martim. 1999. História do Direito Português, op. cit. p. 529

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37

Os monarcas nacionais iniciam então o processo objectivo de controlo do Poder e

a chamar para si a capacidade de nomear os seus representantes em todas as

estruturas administrativas, jurídicas e financeiras criando um corpo de funcionários

públicos para os quais se definem regras, normas e procedimentos cada vez mais

eficazes e funcionais. A componente burocrática, adquire cada vez uma maior

importância. É a nomeação de funcionários régios, como os Corregedores, os

Provedores e os Juízes de Fora que identificam este desenvolvimento e

concretização burocrática. No entanto, e apesar de todas estas alterações, continuou

a administração a ser confundida com a justiça: aos corregedores incumbia a

política e parte da administração da fazenda; aos provedores a administração da

fazenda, mas também a administração e fiscalização dos hospitais e confrarias, os

juízes de fora, continuam a dividir com os juízes ordinários a intervenção jurídica,

principalmente no julgamento das causas em primeira instância, e também intervêm

de forma sistemática na presidência dos municípios regulando assim o poder

concelhio.

O Poder municipal, por sua vez, não conseguia autonomizar-se face do poder

central régio, sobretudo, porque em muitos dos municípios ainda que tendo a sua

estrutura organizativa eleita, o seu Presidente decorria da intervenção e nomeação

régia, o Juiz de Fora.

Com o Marquês de Pombal no poder ficou clara a intenção, em muitos dos casos

conseguida, da alteração da administração do reino. Manteve-se, todavia, alguma

confusão na dinâmica da intervenção administrativa. Os corregedores continuaram

a desempenhar funções de polícia, os procuradores continuaram com as suas antigas

funções e os juízes de fora, continuaram a ser os presidentes dos municípios. A

grande alteração, contudo, consistiu na criação de autoridades administrativas

centrais, atribuindo maior força ao poder central.

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38

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Books

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40

II. O ADVENTO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA EM PORTUGAL

5. As raízes históricas da Administração Pública

5.2. A organização político-administrativa dos primitivos povos peninsulares

A diversidade da península: Iberos (a mais antiga raça migrante) e Celtas

(invadiram a península cerca dos séc. VI ou V A.C e introduziram a civilização do

ferro). Os Celtiberos (discussão da sua génese. Fusão ou mescla dos iberos com os

celtas. Um dos grupos mais importantes da península). Os Tartéssios (Povo mais

culto e avançado da Península. Estabelecidos ao Sul, na região delimitada pelo

Guadiana. Dentre estes destacavam-se os Turdetanos que ocupavam a parte baixa

da bacia do baixo Guadalquivir. Os Calaicos (com significativa expansão cultural).

As colonizações estrangeiras. Os Fenícios (povo comerciante e navegador da Ásia

Menos e com hegemonia mercantil do mediterrâneo); Os Gregos (sec. VII A.C.,

com motivos económicos e comerciais); Cartagineses (oriundos de Cartágo, uma

das cidades mais ricas e fortes da época. Luta pela hegemonia com os fenícios, quer

pela via armada quer através da fundação de colónias).

Os Lusitanos. (a mais poderosa das nações ibéricas; elemento fundamental,

permanente e característico da evolução social do território nacional).

5.3. Organização política.

Ausência de unidade política do território peninsular; divisões em face dos grupos

e dentro dos próprios grupos. Base de organização social: a cidade (pequeno Estado

aristocrático constituído por uma povoação principal, bem fortificada e por um

grupo de povoações mais pequenas, construídas ao redor dela (duns ou briga ou

castra). Dentro da cidade agrupamento em famílias do tipo monogâmico e

patriarcal, cujo chefe exercia poderes políticos, religiosos e judiciais. As famílias

constituem-se em gentilidades (agrupamentos de famílias vinculadas por laços de

consanguinidade; identificadas no culto religioso e na chefia política, com normas

de direito próprias). As cidades agrupavam-se em tribos (cada uma das quais tinha

o seu governo, quase sempre monárquico). Os Lusitanos terão criado uma

confederação de tribos (agrupamento de tribos sob a autoridade de um chefe a quem

os reis das tribos prestavam vassalagem). As classes sociais. As classes sociais:

homens-livres – com personalidade jurídica -, e servos – considerados coisas e logo

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objectos de direitos -). Os homens-livres, distinguem-se por uma classe privilegiada

(mais poderosos) e pela maioria da população livre (condição económica e social,

variava de caso para caso; Lusitanos concediam tratamento especial aos anciãos).

A clientela (as populações em face das dificuldades económicas, abrigavam-se sob

os mais poderosos (o patrono que dispensava protecção económica e pessoal ao

cliente, o qual se obrigava a absoluta fidelidade e submissão); A devotio, (forma

especifica de clientela), o cliente (devotius) obrigava-se a seguir o patrono na guerra

e consagrava a sua vida a uma divindade para que esta a aceitasse em vez da do

patrono. Morrendo o patrono em combate o devotius devia suicidar-se.

5.4. O período romano e a evolução do sistema político-administrativo

5.4.1. A conquista.

1.ª Fase: A conquista. Das primeiras lutas á expedição de Décimo Júnio Bruto –

137 A.C. Confederação das tribos lusitanas chefiadas por Viriato. 2.ª Fase: A partir

de 137 A. C. Tentativa de exploração das riquezas locais. Sertório (72 A.C.). 3.ª

Fase: César e o fim da resistência. Conclusão da conquista e pacificação da

Península.

5.4.2. Assimilação (Romanização).

Legiões romanas de ocupação (instalação em terras conquistadas as quais

cultivavam). Construção de obras públicas (estradas, pontes e viadutos).

Funcionários administrativos e colonos. Recrutamento de auxiliares lusitanos para

as tropas imperiais. Culto do imperador (imposto a todos os cidadãos e súbditos).

A difusão do cristianismo. O elemento jurídico: concessão da latinidade (Traduzida

na concessão de benefícios excepcionais e regalias aos nativos, ius commercii

(aplicação do direito romano a todas as transações económicas), e a possibilidade

de concessão de cidadania romana). Não era no entanto, concedido o ius connubii

(permissão de contrair casamento e constituir família nos termos do ius civile) e a

concessão da cidadania (generalização da cidadania romana a todos os nativos de

condição livre, a partir de Caracala (212). As províncias: territórios fora de Itália

submetidos à jurisdição de um magistrado “cum imperium” (poder administrativo,

judicial e militar). Da sua administração. O Governador (representante directo do

Imperador e suprema autoridade militar, administrativa e da fazenda). A

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Assembleia Provincial (celebrada anualmente na capital de cada província.

Constituída por delegados (legati) das suas diversas comunidades. Administração

da justiça: O governador administra a justiça aos cidadãos e não cidadãos (sobre

estes tem jurisdição limitada). O Conventus juridici: local onde o Governador

administra periodicamente a justiça em público, acompanhado pelos seus

conselheiros e assessores. As cidades das províncias. Comunidades políticas

indígenas dotadas de governo e leis próprias. Urbanas e rurais. As cidades

estipendiárias (conquistadas violentamente, por occupatio bellica e aquelas que

ainda que tendo resistido negociavam a tempo). As Cidades livres (comunidades

urbanas que se governavam sob a forma republicana, conservando a sua autonomia

legislativa e institucional. As colónias (organizadas pelo modelo de Roma ou das

cidades latinas, e cujos cidadãos tinham a cidadania de Roma ou o direito dos

latinos). Os municípios (cidades indígenas acolhidas na comunidade romana)

5.5. A administração visigótica

5.5.1. As invasões germânicas.

Povo de raça indo-europeia proveniente da Ásia e da Europa Central, fixado nas

margens do Mar Báltico (Zona da Dinamarca, Sul da Suécia e na região alemã de

Schleswig-Holstein). Primeira migração em direcção ao Norte, ocupando toda a

península Escandinávia e depois Europa Oriental. Distinção entre Germanos

Antigos ou Ocidentais (Francos, Suevos, Bávaros, Alamanos, Turíngios, Saxões,

etc.) e Germanos do Norte (Suecos, Dinamarqueses, Islandeses, Noruegueses).

Invasão do império romano como processo de infiltração lenta. Causas: Motivos

económicos (acréscimo populacional e necessidade de bens alimentares); carácter

guerreiro e aventureiro; decadência económica, institucional e política do Império

Romano. Invasão de 406 chega à península ibérica. Suevos ficam sozinhos na

Península (norte do Douro, Minho e Galiza). Os Visigodos. Vários períodos no

estabelecimento em Portugal. Só a partir de 467 se estabelecem em definitivo na

Península, sob o domínio de Eurico. Mas é com Leovigildo a partir de 558 que o

domínio da Península se faz efetivamente.

5.5.2. Os Visigodos

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43

Vários períodos no estabelecimento em Portugal. Só a partir de 467 se estabelecem

em definitivo na Península, sob o domínio de Eurico. Mas é com Leovigildo a partir

de 558 que o domínio da Península se faz efetivamente.

As instituições políticas. Instituições jurídicas deixadas pelos Visigodos: Código de

Eurico. Breviário de Alarico. Código revisto de Leovigildo. O Código Visigótico:

Princípio da personalidade, segundo a qual o código de Eurico seria aplicado apenas

às populações visigodas, enquanto á população romana se aplicaria o Breviário de

Alarico, e da territorialidade, sustentando-se que se aplicava a todas as populações

senhoriadas por Eurico e sucessores. As teses mais recente (Garcia-Gallo entre

outros) vão no sentido de considerar que as diversas leis visigóticas têm todas

aplicação territorial, enquanto para outros (Paulo Mêrea) consideram como

predominante a aplicação segundo o princípio da personalidade.

A civitas visigótica: a. Comunidade de homens do mesmo sangue que se organizam

para a aventura e para a guerra sob a chefia de um príncipe; b. Unidos pela

obediência ao mesmo chefe. c. A Assembleia ou concilium civitatis. O Estado

visigótico na península. Mescla entre o originário estado e o resultante do contacto

com o Estado Romano.

5.5.3. Administração e organização social e territorial.

O rei e respectivos poderes: chefe militar e chefe religioso (até à conversão ao

catolicismo). Legislador e administrador da justiça. Superintendente em todos os

negócios do governo e da administração. Limites do poder real: acatar as leis; a

procura do bem comum; influência moral e poderio da nobreza e do clero.

Monarquia electiva (entre os membros de certa e determinada família).

Os povos Germanos não se encontravam no mesmo estádio da evolução, se

comparado com os romanos, ainda que o funcionamento das assembleias populares

germânicas representassem um progresso, já que elas constituíam o «órgão

soberano» O conselho dos chefes não podia deixar de lhes submeter todos os

assuntos importantes, residindo nela o poder judicial.

Entre os Germanos, o Estado nasce directamente da conquista de vastos territórios

estrangeiros, pelo que á cabeça dos organismos romanos da administração local, era

preciso colocar um substituto do Estado romano, o qual não podia ser senão um

outro Estado.

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5.5.4. A intervenção do Clero.

As funções dos concílios. Os Concílios (assembleia de bispos diocesanos e de

outras dignidades eclesiásticas dotadas de jurisdição reunida para tratar de pontos

de fé, moral e de disciplina eclesiástica). Da sua importância (afastamento de Roma,

criando a necessidade de uma discussão sobre a moral, as leis eclesiásticas

(cânones) para as províncias ou para a Nação. O IV Concílio de Toledo - 633 – e V

Concilio – 636 – com objectivo para moralização da vida pública.

5.5.5. Órgãos legislativos da monarquia visigótica. As províncias. Divisão

romana. O dux (administrador de cada província). O território (zona territorial

circundante de uma cidade governada pelo comes civitatis). As cidades e distritos

rurais. A perda de importância e descrédito no período visigótico.

5.6. As invasões muçulmanas

A conquista da península. O corão: código político, moral e jurídico. A guerra santa.

Os moçárabes e os renegados. As várias fases da organização muçulmana.

Província do califado de Bagdad, com governo de um vali nomeado pelo Emir;

monarquia independente- sultão-, desde 755; cisão em muitos e pequenos reinos e

principados independentes; monarquia unitária.

A administração. Califa, como supremo juiz na qualidade de sucessor do profeta.

Cadi, o juiz ordinário e vários juízes especiais. Direito com carácter muito especial:

totalitário e religioso. Cristão e judeus. A conversão ao islamismo dos cristãos. A

possibilidade de manutenção do credo religioso pelos judeus mediante a condição

de protegidos do islão.

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Motivo pelo qual, foi possível a aceitação do que chamavam ‘os infiéis do livro’,

ou seja aqueles que professando a religião católica e seguidores da Bíblia (cristãos

e judeus), não se lhes movendo perseguição, desde que se submetessem, e

aceitassem o pagamento ao Estado de tributos sobre as suas pessoas, a ‘jizia’ e sobre

os seus bens fundiários a ‘kharadi’, sendo este último tanto mais gravosos quanto

maior a resistência oferecida.

Esta situação evidenciava também a possibilidade da existência de fenómenos de

aculturação “provocados sobretudo pelo convívio da vida rural, onde cristãos se

mesclaram com árabes, adoptando trajes, usos e até a língua dos dominadores: são

os moçárabes, aos quais lhes é permitido continuarem a reger-se pelas leis cristãs e

a manterem as suas autoridades, e os renegados, que por terem abraçado a religião

muçulmana eram completamente integrados na sociedade islâmica”55

6. A reconquista cristã e a organização política e administrativa do

território peninsular.

6.1. A Monarquia leonesa e o Condado Portucalense.

O reino das Astúrias. Na ressaca das invasões muçulmanas, os Visigodos, sob o

comando de Pelágio, deslocam-se e refugiam-se nas Astúrias. Destas montanhas no

norte peninsular o reino visigodo e iniciam a reconquista.

É com Afonso I, genro de Pelágio, que após a morte deste lhe sucede que se inicia

a reconquista, a qual vai da Galiza ao Douro e de Leão a Castela.

Com a reconquista e pelo impulso de Afonso I, inicia-se também um amplo

movimento de repovoamento do território, levado a cabo pelos reis visigodos dentro

das possibilidades que a guerra iam deixando. Sucede-lhe na titularidade do poder

55 Santos, António Pedro Ribeiros dos. 2007. As origens da Função Pública em Portugal, op. cit.

188

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real, Fruela que mantém a mesma perspectiva de expansão territorial e de

ordenamento territorial. Não consegue no entanto, estabilizar internamente os

Visigodos que travam no seu seio grandes dissensões, lutas pelo poder e

movimentos de desagregação. Esta grande instabilidade com maior intensidade

entre os séculos VII e VIII, impede uma maior reorganização dos visigodos e o

maior e mais rápido sucesso no movimento de reconquista. Os vários reis visigodos

têm de lutar com várias tentativas de sublevação, umas conseguidas, o que

implicava a mudança radical da estrutura do poder, enquanto outras abortadas,

conduzem na maior parte dos casos a amplos movimentos de vingança dos

vencedores sobre os vencidos.

Ordonho I, sucede a seu pai, Ramiro I, bárbaro e sanguinário que no contexto das

dissensões internas a que foi sujeito, se mostrou implacável com os seus opositores

a quem aplicou duras penas. Um desses é Piniolo, que pretendendo provocar a

usurpação do trono, teve como castigo a pena de morte, extensiva também aos seus

sete filhos. Ordonho I, com uma dinâmica mais conciliadora conseguiu reiniciar o

movimento de conquista territorial aos mouros, e criou as condições para a

reedificação das povoações de Leão e da Galiza. Seguidamente, pacificou os

vascónios e conseguiu a ocupação efectiva de algumas terras em poder dos

muçulmanos, Coria e Salamanca, Orense, entre outras.

Afonso III, sucede a Ordonho I, não sem antes, Fruela se apossar do trono, ainda

que por pouco tempo. Foi assassinado no seu próprio palácio, sendo aclamado rei,

Afonso III. Com este rei volta o período das conquistas aos muçulmanos,

conseguindo passar para lá do Douro, ocupar Salamanca e, durante cerca de 12

anos, conseguiu alcançar a conquista de Lamego, Viseu, Coimbra, até Idanha e

Mérida.

Neste entretanto, e numa perspectiva estratégica, o rei visigodo promove a paz, com

o emir de Córdova, o que conduziu a um longo período de paz na península de

quase 27 anos. Esta situação permitiu então que os visigodos pudessem iniciar um

movimento interno de reorganização e repovoamento do território, acompanhado

do restabelecimento da ordem e pacificação internas.

No entanto, passado aquele período de tempo, os muçulmanos, sob o comando da

Ahmed reiniciam as hostilidades contra a cristandade mas acabarim de novo por ser

vencidos. Internamente, o filho de Afonso III, Garcia, pretende derrubar o seu pai,

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dando inicio a um período de guerra civil, que terminou com a abdicação do trono

de Afonso III sucedendo-lhe o filho, Garcia de Leão, que inicia o movimento de

luta contra os mouros.

Sucede a Garcia, Ordonho II e com ele volta novamente a guerra contra os

muçulmanos e a reestruturação dos territórios.

Sucede-lhe Afonso IV, após um ano de reinado de Fruela II. O seu reinado durou

seis anos, tendo abdicado para o seu irmão, Ramiro II e, recolheu ao mosteiro de

São Facundo. Este rei, continua a guerra contra os muçulmanos tendo chegado até

Madrid.

Entretanto do ponto de vista da reorganização dos territórios conquistados, os

cristãos iniciam amplos processos de razias, sobretudo no norte e centro da

Península, de que resultava a destruição completa, quer da população quer dos

territórios conquistados, mantendo-se abandonado durante um período de tempo

mais ou menos longo.

Em paralelo com as razias, os cristãos promoveram também o que pode designar-

se por Ermamento, e que na prática….

Discussão do seu carácter, extensão e duração. Implicações no domínio dos usos e

costumes e na formação do direito. O repovoamento das cidades e a organização do

território. Afonso III (866-910) e Ordonho II (914-924) são grandes

impulsionadores.

6.2. O repovoamento das cidades e a organização do território.

O ordenamento territorial, primeiro da Península Ibérica e depois do reino de

Portugal, ficou marcado de forma categórica, pela questão da reconquista,

conduzindo assim a uma necessidade de reorganização de toda a estrutura

territorial, o que levaria a um vasto conjunto de situações jurídico-sociais

determinantes na configuração política da época e que marcaria também o quadro

do secular desenvolvimento do país.

E, como vimos ainda que de forma muito rápida atrás, são Afonso III (866-910) e

Ordonho II (914-924) os grandes impulsionadores do repovoamento territorial da

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península reconquistada e respectiva organização. O primeiro distingue-se

sobretudo pelo repovoar das cidades e organizar os territórios, sobretudo o território

ao sul do rio Minho e da cidade de Portucale ocupada em 868 e estendeu a

reconstrução de cidades até Viseu.

O segundo, Ordonho II deslocaliza a capital do reino para a cidade de Leão, com o

intuito de melhor governar a superfície crescente do território.

Na perspectiva jurídica do tempo e sobretudo na perspectiva dos vencedores, todas

as terras tomadas ao Muçulmanos – res nullius- eram susceptíveis de ocupação.

Pelo que, em face da reconquista territorial, das necessidades de reorganização do

espaço também pelo conjunto de vicissitudes que da conquista decorreram, o rei

como forma de agradecimento dos serviços prestados, quer pela sua nobreza

guerreira quer pelas ordens militares de cristãos que promoviam a guerra santa,

atribuía-lhes um vasto conjunto de recompensas, por norma grandes extensões

territoriais, sobre as quais exercia o seu poder.

Mas, para além das recompensas directamente atribuídas pelo rei outras ocupações

de terras se processavam sem o consentimento ou sem o conhecimento directo do

rei.

A esta forma de aquisição do domínio, muitas vezes à revelia do rei, dava-se o nome

de presúria…..

Mesmo nos casos em que a apropriação era desconhecida do rei, o dever de

obediência não ficava em causa, e por via dela, muitos dos territórios incultos

passaram a ser colonizados, por homens livres ou servos que acompanhavam os

nobres a quem o rei conferia o poder de repovoar ou que assim procediam por

iniciativa própria.

O nobre assumia assim propriedade por “apreensão” ou por “presúria”. Esta,

também podia ser realizada por iniciativa de vilãos que entre si repartiam as terras

apresadas tratando ao mesmo tempo de promover a reorganização dos meios rurais.

A ocupação decorrente das presúrias, conduziria a dois tipos de ocupação rural: os

grandes domínios, pertença de um nobre ou de uma corporação eclesiástica e a

pequenas explorações, que tinham a sua origem naqueles que haviam efectuado as

presúrias plebeias ou recebido de um nobre glebas para desbravar.

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Por outro lado, do ponto de vista militar e económico, também resultaram

desigualdades estruturais da sociedade que conduziriam a uma vincada

diferenciação social e a estatutos político-sociais claramente antagónicos. Por tal

motivo, e porque a necessidade de protecção, segurança e defesa era evidente, quer

em face das investidas dos árabes que depois de derrotados e expulsos dos

territórios até ai ocupados, pretendiam a sua reconquista de novo, quer pela

intervenção do próprio nobre, que muitas vezes exercia represálias junto daqueles

que menores capacidades de defesa tinham, levava a que os mais fracos

procedessem à entrega dos seus bens e ao juramento de fidelidade ao nobre, quer

na paz quer na guerra, sem que no entanto, deixasse de ser um homem livre.

No caso da protecção do Senhor face ao vassalo a pedido deste aquele ao aceitar

esta situação obrigava-se à garantia efectiva da segurança do vassalo. É o que que

se designa por Recomendação. Esta podia ser territorial e pessoal, sendo a primeira

a carta de incomunicação, ou seja, o acto pelo qual o pretendente à protecção fazia

com o vizinho um pacto sob a forma de doação que associava ambos na propriedade

da terra, ou formava uma espécie de parceria, com a condição da defesa do primeiro

pelo segundo.

A recomendação pessoal traduzia-se num acordo pelo qual, o pretendente à

protecção entregava uma ou mais terras suas ao senhor, que lhas restituía oneradas

por certos encargos constitutivos do preço da segurança almejada, e designavam-se

por pacto de benfeitoria.

Tenure ou tenência.

Os benefícios. Outorga a título de estipêndio consistindo na fruição de bens móveis

(cavalos e armas) e imóveis a título precário.

O feudo. Forma vitalícia de fruição dos bens imóveis.

Doações régias. Disposição do património da coroa ou dos senhores para beneficiar

nobres e corporações eclesiásticas. Revogáveis ad nutum e vitalícias (transmissão

para os herdeiros dependente de renovação da liberalidade pelo doador) e a título

hereditário.

Testamentos. Deixas que por via de herança ou legado, os ricos e mais poderosos

instituíam nos seus testamentos a favor da Igreja e ordens monásticas.

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De todo o conjunto de circunstâncias delimitadas atrás, resulta a estrutura de

domínio vigente subordinada à grande propriedade, cujos principais detentores são

a nobreza, a igreja e as ordens militares. Eram ainda estes grandes proprietários

beneficiados com um conjunto de prerrogativas de autoridade e supremacia pessoal

sobre os restantes. A estes privilégios correspondia ainda um conjunto de

imunidades, que atribuíam aos seus detentores um conjunto de direitos que lhes

permitiam, inclusive, o de não obediência aos funcionários régios, e a possibilidade

do exercício da justiça, da administração específica do território e do direito de

tributação. É o que se designa por Senhorios, e que adiante trataremos com mais

pormenor.

Condes e condados. Nobres que governavam extensas regiões de forma

independente ou ligados ao rei por meras relações vassálicas, ou aqueles que

acompanhavam habitualmente o monarca auxiliando-o no governo, na

administração, na justiça e na guerra (condes de palácio).

Bibliografia Aconselhada

Barros, Henrique da Gama. História da Administração Pública em Portugal nos

Séculos XII a XV. Tomo I, Lisboa: Imprensa Nacional, 1885, pp. 1-70

Caetano, Marcello. História do Direito Português (Sécs, XII-XVI). Lisboa:

Editorial Verbo, 2000, pp. 111-118

Chevalier, Jacques. Science administrative. Paris: PUF, 2007, pp.75-95

Costa, Mário Júlio de Almeida, História do Direito Português. Coimbra: Almedina,

1992, pp. 149-157;

Herculano, Alexandre, História de Portugal: Introdução.Tomo I, Lisboa: Livrarias

Aillaud & Bertrand, s.d., pp. 28-109

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7. A consolidação do estado nacional e da administração pública

central e local

7.1. A emergência de uma unidade política e a conquista da autonomia

A Idade Média em Portugal não trouxe, no que à estrutura do poder respeita,

grandes alterações face ao período visigótico, sobretudo quanto aos princípios

fundamentais. O Rei era o chefe supremo de todos os poderes (militar, judicial e

administrativo) provindo de Deus a sua autoridade. O rei tinha então como

prerrogativas inerentes à sua soberania e logo inalienáveis, a “suprema

administração da justiça, o direito de alterar o valor da moeda, e o de exigir a

fossadeira, e o direito do jantar, ao qual correspondia para cada terra a obrigação

de prover à subsistência do rei quando por ela transitava”.56

O rei, suserano dos suseranos, ocupa o lugar de topo na hierarquia feudal. Embora

membro da nobreza, o rei é o mais poderoso de todos os nobres, pois é o que tem

mais terras, sinónimo de mais riqueza e de mais poder, podendo distribuir essas

terras como recompensa de serviços prestados e delegar poderes, que só ele à

partida tem do usufruto da totalidade do território. Estende os seus direitos a todos

os homens não-livres e livres, embora seja difícil determinar até que ponto esses

direitos se verificaram na prática, pelo menos em relação às camadas mais altas da

nobreza e do clero, visto que a natureza política da sociedade feudal assentava na

fragmentação e na privatização do poder.

O rei possui determinadas regalias - que o distinguem de todos os outros senhores

feudais, nomeadamente o alto-clero e a alta-nobreza, objectivados em certos

atributos, como por exemplo, o direito de aplicação da justiça e da manutenção da

paz, e em determinadas insígnias simbólicas como a coroa, o manto ou o ceptro.57

56 Barros, Henrique da Gama. 1885. História da Administração Pública em Portugal nos Sécs XII a

XV. Tomo I, Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias. p. 42

57 Vide, Guerreiro, Maria João Peste Santos. Por graça de Deus, Rei dos Portugueses: as intitulações

régias de Afonso Henriques e D. Sancho I. Dissertação de mestrado em estudos medievais-estudos

sobre o poder. Universidade Aberta.2010

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Característica importante é a da não distinção entre poder público e poder privado,

conduzindo de tal modo à patrimonialização dos bens pelo rei, o que de certa forma

conduziria a alguma desfragmentação territorial e, sobretudo, conduziria à

atomização do poder no espaço territorial português. Tudo isto se concretizaria no

conjunto das doações régias à nobreza e ao alto clero o que em conjunto com outras

imunidades, originaria o poder senhorial que durante muitos séculos confrontou o

poder real.

Desde os alvores da monarquia nacional, os reis procuraram a centralização do

poder numa clara dicotomia do seu exercício. É um facto, que as intenções da

distribuição das benesses e das recompensas reais foram sendo aproveitadas pela

nobreza e pelo alto clero para o desenvolvimento do seu poder pessoal e

enriquecimento face ao rei. E este, nem sempre atribuiu tais benesses com o intuito

de ver afastar de si, o centro do poder político. Por este motivo se comprova que a

partir dos séculos XII e XIII se desenvolveu a intenção de centralização do poder,

iniciada com Afonso II e a promulgação das primeiras Leis Gerais do Reino, em

1211 e entre 1217 e 1221, com a organização das primeiras Confirmações do Reino,

e em 1220, ter determinado a realização das primeiras Inquirições. Estas têm a

importância de avaliar a legitimidade das doações de terras e as posteriores

confirmações do direito de posse das mesmas.

Afonso II mostrou-se convicto na defesa do trono e dos interesses reais, mesmo

quando do lado contrário se encontrava a própria família, o que lhe valeria a

excomungação pelo papa e a interditação do reino em Março de 1212 e levantada

apenas em Janeiro de 1214.

As Leis Gerais, decretadas com a intenção de assegurar a posição do monarca no

trono e, bem assim, impor à Igreja e Nobreza o respeito pelos seus direitos, mas são

também uma forma de mostrar a sua capacidade de governação. São integradas por

um Preâmbulo e 24 Leis, que intervêm na esfera judicial, social, económica e

eclesiástica. No âmbito judicial, cria um conjunto de leis para todo o reino, ainda

que assumindo a precedência às leis canónicas.

A realeza portuguesa, tal como a dos restantes Estados da Europa, atribuiu grande

importância à questão da simbologia legitimadora do poder, como forma de

secularização desse mesmo poder. De entre outros, mecanismos simbólicos do

poder real, a investidura régia, era um processo pelo qual o soberano se fazia

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legitimar perante os súbditos, mediante um conjunto protocolado de acções rodeado

de grande solenidade, sobretudo em França e em outros reinos do centro da Europa

e, sobretudo na tradição da coroação.

No reino português, a investidura régia era realizada com menores solenidades do

que as referidas acima, sendo um acto puramente laico, e que “conquanto o trono

fosse hereditário, o nosso direito público conservava, como vestígio do princípio

consensual e como expressão do dualismo rei-nação, a instituição do

levantamento. Assim, como na França, se é certo que ‘o rei não morria’, todavia

só a sagração conferia o título e a dignidade de rei, assim também entre nós o novo

rei estava de antemão designado, mas necessitava, não obstante, ser aclamado”58.

Em Portugal, também ao contrário de outras monarquias europeias, os reis não

foram ungidos e coroados, pelo que apresenta grande interesse a entrega das

insígnias, tal como referia Oliveira Martins “os soberanos investidos na autoridade

perdem-na se despem os símbolos que a representam. Tanto a autoridade é

abstracta, ou impessoal, para a imaginação primitiva, que ela a não concebe

separada dos símbolos representativos, retirando à pessoa do monarca a soberania

quando o acaso lhe rouba as insígnias”.59 E, bem frisa “um rei caído é sempre

destronado. De que vale a pessoa sem o trono, símbolo da soberania? Na lenda

sebastianista, o povo português introduziu este traço – que os nossos reis, desde a

catástrofe, não podiam mais pôr a coroa na cabeça, pois D. Sebastião perdera em

África essa alfaia simbólica”.60

Em qualquer circunstância, e também na especificidade portuguesa, o rei medieval

sempre se afirmou entre outras duas instituições de poder unipessoal, formadas e

reforçadas durante a Alta Idade Média, o Papado e o Império, caracterizando-se

globalmente por ser “monárquico, cristão e nobre: monárquico por representar um

sistema político baseado no poder de um rei único, investido do poder supremo e

colocado no topo da hierarquia social, superior a todos os seus súbditos; rei cristão

porque o rei é a imagem de Deus, rex imago Dei, e é em Cristo que a realeza

58 Merêa, Paulo. 1923. O poder real e as cortes. Coimbra: Coimbra Editora.

59 Martins, Oliveira. 1953. Quadro das Instituições Primitivas. Lisboa: Guimarães Editores.

60 Martins, Oliveira. 1953. Quadro das Instituições Primitivas, op. cit.

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associa o seu poder, Christus rex, gloriae rex , enriquecendo esse poder

ideologicamente com associações bíblicas, nomeadamente ao reis David, Josias e

Salomão, associações muitas vezes traduzidas em temas iconográficos; o rei é

também um elemento da nobreza, grupo social de onde provém o seu genos”.61

Do que fica dito, percebe-se que a aclamação dos reis portugueses, assentou assim

em solenidades de menor importância externa do que as usuais em outros estados

europeus. Pese embora o facto de que algumas simbologias régias, terem feito

tradição na determinação da legitimidade do poder real e na soberania do príncipe,

para além da investidura. A espada ou estoque “representava a vitória sobre os

inimigos e simultaneamente a justiça punitiva”.62

O ceptro e a coroa constituíam das insígnias mais representativas da realeza. O

ceptro foi a “vara do juiz, o bordão o patriarca, nas eras remotas da vida da tribo

errante guiando os rebanhos. Essa autoridade de juiz que tornava sagrada a função

do monarca, fez do ceptro o símbolo tipo da autoridade; e esse ceptro é ainda nas

investiduras feudais da Idade Média, um bastão, um bordão, um cajado.”63

Também entre nós, o ceptro pertence à simbólica do Estado. Desde Sancho I e

Sancho II que o rei já está representado, cavalgando, coroa na cabeça, espada

batalhante numa das mãos, erguendo o ceptro na outra, representando este, a justiça.

No entanto, de todos os actos de elevação real, o mais importante é “o juramento

pelo qual o rei promete guardar os foros, os usos e os costumes do reino, governar

os povos bem e ministrar-lhes justiça”.64

No contexto da estrutura operacional do poder real, este foi-se consubstanciando na

luta contra o clero65 que sistematicamente invadia a sua autoridade, obrigando este

61 Le Goff , Jacques. 2004. Héros du Moyen Âge, le Saint et le Roi, Paris, pp. 1074-1119

62 Martins, Oliveira. 1953. Quadro das Instituições Primitivas, op. cit. 534

63 Martins, Oliveira. 1953. Quadro das Instituições Primitivas, op. cit. 534

64 Martins, Oliveira. 1953. Quadro das Instituições Primitivas, op. cit. 535

65 O Clero era constituído por todos os que de forma específica se dedicavam ao culto religioso,

ainda que se considerassem como integrantes desta classe, outros indivíduos como os pertencentes

às ordens militares, os professores universitários e alguns dependentes de instituições religiosas. Por

norma, tornava-se possível a sua distinção entre baixo clero, integrado pela multidão indiferenciada

de religiosos, desde os párocos e curas até aos membros de alguma ordem com menor poder

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à sujeição das leis civis às quais se procurava eximir. E, tal poder real foi ainda

obtendo maior amplitude pela via das inquirições e confirmações régias e

finalmente pelo exercício do direito de correição e na instituição dos juízes de fora.

A luta com o clero para a consolidação do poder real foi de grande intensidade no

decurso da afirmação do Reino de Portugal e, sobretudo, na delimitação do espaço

político-territorial. O clero, durante muitos séculos, conseguiu subtrair-se à

autoridade do rei, quer assumindo a sua acção no reconhecimento da independência

portuguesa, com a útil e determinante intervenção papal através da Bula Manifestis

Probatum e consequente interesse dos reis nacionais nessa acção protectora dos

papas.

No quadro dos privilégios que eram atribuídos aos membros do clero, destacam-se

entre outros, o privilégio do foro, que estabelecia que os seus membros apenas

podiam ser julgados em tribunal eclesiástico, os quais tinham ainda a competência

para conhecer de certas matérias ligadas às questões da fé, bem como as questões

relativas aos bens clericais e eclesiásticos, de igual forma as pessoas e bens

eclesiásticos, estavam isentos de impostos, excepto aqueles que se ligavam

directamente à religião, o direito de asilo, consagrando a possibilidade de albergar

nas instituições religiosas os criminosos que enquanto aí se encontrassem ficavam

livres da justiça dos homens.

Mas, o clero não tinha atribuídos apenas imunidades e privilégios, tinha também

algumas incompatibilidades e restrições, das quais as mais importantes, era a da

incapacidade matrimonial, sucessória e a aquisição de bens.

económico, e o alto clero, constituído pelos grandes eclesiásticos, bispos, os membros dos cabidos,

os abades das casas monásticas e conventuais, os mestres, comendadores e cavaleiros das ordens

militares.

Para além desta distinção também a que distingue entre clero secular e clero regular, sobretudo do

ponto de vista social e político, sendo o primeiro aquele que vivia no seio dos demais fiéis, entre as

pessoas comuns da sociedade enquanto o regular vivia em comunidade, dirigido por uma regra,

integrando este os membros das ordens religiosas e militares.

Vide, Mattoso, José. 1995. Identificação de um país. Ensaio sobre as origens de Portugal (1096-

1325). 5.ª Edição. Lisboa: Editorial Estampa. I volume – Oposição; Albuquerque, Ruy de e

Albuquerque. 1999. Martim de. História do Direito Português (1140-1415). Lisboa: PF

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Com todas estas imunidades e privilégios, o poder do clero, começava a tornar-se

demasiado oneroso para o poder real, e para a sua tendência para a centralização do

poder, tendência que se manifestou sobretudo a partir do século XII. Motivo pelo

qual, Afonso III, D. Dinis e Afonso IV, haviam de iniciar e procurar a concretização

da redução do poder do clero. Ainda assim, este poder havia de perder o seu peso

de forma clara quer com a intervenção do Marquês de Pombal e finalmente com a

revolução liberal de 1820.

A Nobreza66 por seu lado, durante muito tempo também se assumiu como um

contrapoder ao rei, aceitando apenas a possibilidade de aquele se assumir como um

primus inter pares, mas aceitando apenas o contexto de um poder atomizado, no

qual cada senhor feudal era senhor das suas propriedades, exercendo aí a sua

66 A nobreza para além do que costuma chamar de classe dirigente, englobava na sua constituição

aqueles que de uma forma ou de outra tinham como função a militar e a política, com exclusão de

qualquer actividade lucrativa. Por englobar grande diversidade de características é possível

distinguir pelo menos duas características principais de nobres: a dos ricos-homens e a dos

infanções. A primeira das classes era constituída por governadores de territórios (comités,

potestades) e membros da Cúria Régia, enquanto os segundos integravam a classe inferior.

A nobreza constitui-se a partir de um conjunto de factos aquisitivos que lhe dão o sentido e a

distinção, dos quais podemos referir como os mais importantes a ocupação de certos cargos, a posse

de certos bens, o sangue a atribuição régia do estatuto de nobre, etc. Mas para além destes, é a guerra

quem definitivamente distingue esta classe de todas as restantes.

Nestes termos, o estatuto traduzia-se num conjunto de privilégios e vínculos, de direitos e deveres,

de variação e graus diversos, dos quais um dos principais era a isenção tributária. Ainda que, em

muitos momentos esta isenção não tenha sido completa e total, porquanto, como veremos, sobretudo

com as sisas gerais, alguns dos reis, não pouparam a classe a esse pagamento.

Também ao nível do foro, os nobres apenas podiam ser julgados em tribunal de pares, ou seja, um

tribunal de nobres.

Já quanto aos deveres e obrigações, ressalta o dever de fidelidade e vassalagem, um código de honra

e determinadas inibições em função do estatuto. Ainda a restrição à posse de terras em alguns

concelhos, a não ser que sujeitos ao estatuto e encargos dos vizinhos. Também o exercício da

advocacia lhes era vedado.

Vide, Mattoso, José. 1995. Identificação de um país. Ensaio sobre as origens de Portugal (1096-

1325). I – Oposição. 5.ª Edição. Lisboa: Editorial Estampa; Albuquerque, Ruy de e Albuquerque.

Martim de.1999. História do Direito Português (1140-1415). Lisboa: PF

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autoridade sobre as coisas e pessoas que nelas se integrava, impedindo o rei de

exercer aí a sua plena jurisdição, quer do ponto de vista militar, quer do ponto de

vista fiscal.

Só a partir do reinado de D. João II, o rei inicia a centralização do poder e a sua

acção sobre todo o território, numa clara superação entre público e privado, que

conduziria à distinção entre o património do rei e o património do Reino.

Ainda que com interesses divergentes, a Nobreza e o Clero, enquanto classes

privilegiadas, procuravam aliar-se para obstaculizar ao poder do rei. É por tudo isto,

que o rei, se vê na necessidade de procurar apoio junto do povo67, o qual, vitima

dos privilégios das outras duas classes sociais, via no apoio ao rei e do rei uma

forma de amenizar tais prepotências. Com efeito, era no povo que pesava o maior

número de encargos públicos, maior parte dos quais impostos pela nobreza e pelo

clero. Motivo pelo qual o rei e os concelhos se foram unindo contra os privilegiados.

No entanto, a centralização do poder do rei não foi tarefa fácil e muito menos a sua

centralização burocrática. Esta demorou séculos, como de igual forma demoraram

as lutas contra o clero e contra a nobreza. E, tal evolução para a centralização foi

sendo sucessivamente acometida por recuos que tinham a ver com a incapacidade

real de suplantar o poder do clero. Só com a perda de influência do poder do papa,

a partir dos finais do século XIII, é que também o clero se viu diminuído da sua

67 Integra a classe comummente designada por povo, o conjunto da população que não pertence ao

clero ou à nobreza. Dentro desta classe, ainda se tornava necessário distinguir em virtude da grande

diferenciação social existente, um conjunto de estratos importantes. Desde logo, os homens-livres

ou ingénuos, habitantes de behetria, homens dependentes ou semi-livres e servos.

Os factores de separação destes estratos radicavam entre outros, na liberdade pessoal, e esta era

caracterizadora, sobretudo, dos homens-livres que tinham nela o seu maior bem. Já por outro lado,

os semi-livres, integravam-se no conjunto que foi transitando do colonato servil para formas menos

rígidas de dependência e tinham várias designações e estatutos. Depois ainda os servos da gleba que

ocupavam o escalão inferior da hierarquia social e que eram aqueles a quem o senhor instalou no

seu domínio atribuindo-lhes uma parte do terreno que cultivavam, e ainda que se encontrassem

ligados, de forma vinculativa ao senhor e à terra que cultivava, tinha determinados direitos

familiares, reais e obrigacionais, que os distinguiam dos anteriores escravos. Vide, Vide, Mattoso,

José. 1995. Identificação de um país. Ensaio sobre as origens de Portugal (1096-1325). I – Oposição.

5.ª Edição. Lisboa: Editorial Estampa; Albuquerque, Ruy de e Albuquerque. Martim de.1999.

História do Direito Português (1140-1415). Lisboa: PF

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influência e permitiu que o poder do rei viesse a consolidar-se de forma sistemática,

vindo a atingir o seu auge no século XV pela mão do rei D. João II.

Mas, na medida em que o poder do rei se consolida, pela diminuição do poder do

clero, também o povo se vê afastado do beneplácito régio, e mais, o rei vai também

acrescer o seu poder junto desse povo, nomeadamente pela nomeação dos juízes de

fora para a administração dos concelhos, substituindo os juízes da terra, eleitos

pelos povos e ampliando o peso fiscal.

7.2. Do Condado portucalense à conquista da autonomia.

O Condado portucalense.

A concessão a D. Henrique como recompensa de serviços prestados contra os

almorávidas ou por derrota de Raimundo junto de Lisboa (Paulo Mêrea).

As Instituições e a organização administrativa.

D. Afonso Henriques, rei de Portugal.

O Reinado de D. Sancho I.

A partir de 1170 conduziu o governo, em substituição de Afonso Henriques, após

o seu grave ferimento em Badajoz. Sobe ao trono em 1185. Continuação das acções

militares contra os mouros e expansão territorial. A instabilidade social e os maus

anos agrícolas tiveram repercussões drásticas no período.

O Reinado de Afonso II.

Sobe ao trono em 1211 e tem como objectivo a consolidação e enquadramento das

funções régias. Cúria Régia, em Coimbra no ano de 1211, para afirmação do poder

soberano. As questões com a Igreja católica e com o clero. As questões com os

senhores. A propriedade como questão de fundo. A confirmação régia. A guerra

civil. A intervenção do papa e a invasão de Portugal pelas tropas de Afonso IX de

Leão em 1212.

A ajuda de Afonso VIII de Castela e do Papa Inocêncio III, que absolveu o rei

português das censuras eclesiásticas. A expansão territorial contra os mouros. A

importância das ordens militares na expansão.

O Reinado de D. Sancho II.

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59

Subiu ao trono em 1223, com treze anos de idade. Turbulência dos senhores, leigos

e eclesiásticos. Desrespeito da autoridade régia. Violência generalizada em todo o

país, guerras privadas, usurpações de terras da coroa. Ausência de justiça. Iniciativa

papal para destituição do rei. Excomunhão do rei pelo papa Gregório IX em 1238.

A bula Grandi non immerito (1245) refere o rei como opressor das igrejas e

mosteiros entre outros aspectos ainda mais negativos. Conflitualidade social.

No período que interessa, deve reter-se a questão da criação de um Estado autónomo

a partir do reino de Leão, que se consagrou em face da especificidade da conjuntura

da época, reconquista do território ocupado pelos mouros. O que isto significa é que

a criação de um reino independente a partir do Reino consolidado de Leão, decorre

senão na totalidade, pelo menos, em grande parte da luta contra um inimigo comum,

os mouros, e a capacidade de fazer face a um espaço territorial de maior dimensão,

por parte de um pequeno território, mas que se afigurava vital para a vitória sobre

os invasores. E, ainda que tenha nascido o reino português de uma simples

atribuição de um governo com terra imune ao Conde D. Henrique, acabaria por se

tornar independente face ao Imperador de Leão e Castela.

Neste contexto, o Condado Portucalense, pequena franja de território que tinha por

sede a cidade de Portugale (Porto) situado ao sul da Galiza entre os rios Minho e

Douro e que se estendia para além do rio Ave, confinando a norte com o território

bracarense,68 acabaria por se tornar autónomo face ao poder de Leão e Castela e

sobretudo, a adquirir a sua independência.

Este território, foi entregue a D. Teresa e ao Conde D. Henrique, por Afonso VI rei

de Leão, como forma de agradecimento pelos serviços prestados na luta da

reconquista, para aí assentar a sua moradia e jurisdição.69

Ao longo da vida do Conde D. Henrique, a relação com Afonso VI processou-se

dentro do contexto normal para a época, em que o vínculo feudal da vassalagem

68 Merêa, Paulo, p. 415

69 Coloca-se o problema de saber a que título terá sido entregue este território….Ver MCaetano, p.

140 e ss, Merêa, p. 279

A data da outorga, rondará o ano de 1094 ou 1095, depois da derrota de Lisboa das forças de

Raimundo, que governava superiormente toda a Galiza desde 1092.

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determinava as relações de poder entre suserano e súbdito. Certo é no entanto, que

alcançado o senhorio da Terra Portucalense, Henrique se intitulou conde.70 Todavia,

com a morte do sogro, Henrique inicia de forma clara uma política de libertação

dos laços de vassalagem, a qual seria prosseguida, após a sua morte por D. Teresa.

E tanto mais, porque com a morte de Afonso VI, não se afigura necessária a

confirmação régia da hereditariedade do Conde D. Henrique, continuando, pois, à

frente do governo do território.

Apoio da nobreza portucalense contra os barões da Galiza

Revolta-se contra a mãe, que vence em 1128 (Ourique)

Toma o título de Rei (1139)

Afonso VII de Leão reconhece a Independência (Tratado de Zamora)

Bula Manifestus Probatum e o reconhecimento pela Igreja da Independência

8. A administração central

8.1. A organização política: Da Cúria Régia às Cortes

A Aula Régia. As funções da Ala Régia. Função de eleição do rei a partir da

estabilização territorial e de Conselho do Rei composto pelas personalidades mais

importantes do reino. Evolução ao longo do tempo: dignitários da corte e

superintendentes nos vários ramos da administração real; governadores das

províncias e dos principais territórios; altos dignitários eclesiásticos e outros

merecedores da confiança do rei. Consulta sobre leis e questões de administração,

de governo e judiciais. As lutas pela coroa.

Com a fuga para as Astúrias, a organização política e administração sofreu grandes

alterações. A reduzida extensão territorial, o estado permanente de guerra, a

instabilidade interna, forçaram a uma centralização do poder. O rei e os seus mais

70 Discute-se ainda se Henrique de Borgonha já era detentor do título de conde ou comes como era

mais habitual ou se o adquiriu em virtude da entrega do território em questão e daqui também a

natureza do vínculo que o ligava ao seu sogro Afonso VI como vimos na nota anterior. Ver Merêa,

p. 305

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61

próximos, decidiam conforme as necessidades, sobre todas as questões, desde

militares a económicas, jurídicas e religiosas.

A Igreja desorganizou-se também bastante, e os bispos, obrigados a abandonar as

dioceses, passaram a residir na corte onde muitos se tornaram cavaleiros e vieram

a integrar o exército do rei na reconquista.

A organização política visigótica, tinha desde os tempos que se sucederam à

conquista da península Ibérica aos romanos, na sua orgânica uma assembleia

consultiva, onde se integrava a nobreza que directamente colaboravam com o rei,

os ‘comite palati’, os grandes dignitários eclesiásticos, sobretudo os bispos mais

importantes e os funcionários com maior importância da administração local, e que

tinha como principal atribuição ser órgão de consulta do rei, para os assuntos que,

dada a sua importância, o rei entendia pedir conselho.

Tratava-se da Aula Régia, a qual se foi mantendo em funções, até que, por força

das invasões árabes e da reorganização cristã nas Astúrias, sofreu algumas

modificações. Desde logo, também o poder real, sofreu alterações que a isso

conduziram. Com efeito, o princípio electivo na determinação do rei, foi substituído

pela sucessão hereditária, o que transforma o poder em património pessoal do rei,

repercutindo-se como é evidente na organização funcional central e local, e por

consequência a uma modificação do conceito de soberania do poder do rei.

Por outro lado, a reconquista territorial da península, vem trazer também alterações

substanciais nas relações entre o rei e os seus próximos colaboradores, quer sejam

nobres ou altos dignitários da igreja. A necessidade de recompensar, por um lado,

as ajudas daqueles colaboradores na guerra, e por outro, a necessidade de

reorganização e povoamento do território conquistado, impõe que o rei disponha do

património do reino, das suas riquezas e das suas necessidades com alguma

parcimónia.

Motivo pelo qual, manteve em seu redor um conselho consultivo, que acabaria

ainda por ter outras designações, como ‘palatium’, ‘palatinum collegium’, ‘sunctus

togae palatii’, até à designação de Cúria Régia, a qual se manteria até por volta de

1254, no reinado de Afonso III, alterando a partir aí a sua designação para Cortes.

Já trataremos adiante deste assunto.

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62

Por agora, importa dizer que a Cúria Régia tinha enquanto órgão consultivo, os

assuntos de natureza administrativa, que iam dos militares, à feitura das leis a

promulgar pelo rei, à administração económica e política, mas também porque o rei

adquira a função de chefe temporal da Igreja Leonesa, os assuntos relacionados com

a aplicação da justiça, quer como primeira instância através dos juízes ou alcaides

da cúria delegados do rei, quer como tribunal de apelação. Com a constituição da

monarquia portuguesa e com a independência do reino face a Leão, a Cúria Régia,

mantém a sua base organizativa e de funcionamento, ainda que, com algumas

alterações mais ou menos importantes.

A cúria portuguesa, surge do ponto de vista da sua organização e funcionamento

distinta em cúrias ordinárias, nas quais participavam as pessoas mais próximas do

rei: membros da família real, dignitários da corte, magnates laicos e eclesiásticos. e

cúrias extraordinárias, com carácter solene, sendo convocadas pelo monarca.

Nestas participavam todos os nobres, prelados e principais clérigos do reino (cúria

plena), ou eram restritas aos que pertenciam a uma região específica (cúria regional)

e em casos mais raros, apenas à classe nobre (cúria de nobreza).

A cúria enquanto órgão auxiliar do rei, tinha a função de intervir em todos os

assuntos da vida do Estado, discutindo-se, durante muito tempo se apresentavam

um papel apenas consultivo ou tinham também funções deliberativas.

Paulo Merêa, entende neste domínio, que “qualquer que fosse a forma da sua

interacção, o que ela nunca tinha era um papel deliberativo: as suas resoluções

não se impunham de direito ao soberano, nem a aprovação da cúria era de modo

algum indispensável para que as determinações do monarca tivessem carácter

obrigatório”.71

Em sentido diferente, Coelho da Rocha, acentua que “não se pode negar, que eram

assembleias deliberantes (as cúrias) que moderavam o poder do rei, e com ele

exerciam uma parte da soberania: e portanto, que o governo não era puramente

monárquico ou Absoluto”72 ainda que no respeitante à “organização e atribuição

71 Merêa, Paulo. 2006. A administração Central e as Cortes. In Estudos de História de Portugal.

Lisboa: INCM, p. 171

72 Rocha, Coelho. 1841. Ensaio sobre a História do Governo e da Legislação em Portugal ara servir

de introdução ao Estudo do Direito Pátrio. Coimbra: imprensa da Universidade, p. 54

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das cortes, fossem muito informes e irregulares por falta de lei expressa, que as

fixasse, e que a sua convocação, por não ser periódica dependesse da vontade do

monarca”.73

Por seu lado, António Caetano do Amaral e Rebelo da Silva, apontam como

característica determinante das Cortes a partir de 1254, tal como antes as Cúrias, o

carácter apenas consultivo.74

Marcello Caetano, por sua vez, entende que “a transformação da instituição não é

apenas questão de forma, é principalmente, digamos mesmo essencialmente,

questão de função e de espirito”75 pelo que as Cortes de Leiria de 1254, não “podem

aparecer-nos como um brusco fenómeno de nascimento de novas instituições, mas

traduz incontestavelmente um passo decisivo na evolução das existentes”76, pois a

presença de homens-bons dos concelhos, ainda “quando meros mensageiros não

munidos de poderes característicos dos mandatários, na assembleia magna do

Reino não deixará mais de se verificar.”77

Analisaremos adiante esta questão com mais pormenor, deixando aqui, apenas a

nota de que existe ainda opinião diferenciada quanto ao verdadeiro carácter

vinculativo das cúrias régias, ainda que, sem dúvida, o rei nacional, salvo em

circunstâncias limitadas no tempo e no modo de relacionamento com os súbditos,

nunca deixou de convocar as assembleias e de na sua maior parte respeitar as suas

decisões, e nas vezes em que o não fez, teve ou de alterar as suas decisões ou de se

confrontar com o agitamento dos seus súbditos.

73 Rocha, Coelho. 1841. Ensaio sobre a História do Governo e da Legislação em Portugal ara servir

de introdução ao Estudo do Direito Pátrio, op. cit. p. 54

74 Amaral, António Caetano do. 1945. MEMÓRIAS: Memória V para a história de legislação e

costumes de Portugal. Edição de M. Lopes de Almeida e César Pegado. Porto: Livraria Civilização,

Editora, (Biblioteca Histórica - série miscelânea), p. 49-50

75Caetano, Marcello. 1994. Estudos de História da Administração Pública Portuguesa. Coimbra:

Coimbra Editora, p. 43

76 Caetano, Marcello. 1994. Estudos de História da Administração Pública Portuguesa. op. cit. p.

44

77 Caetano, Marcello. 1994. Estudos de História da Administração Pública Portuguesa, op. cit. p.

43

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64

No que respeita à composição das Cúrias Régias, eram constituídas, pelo Mordomo

da Cúria, o seu principal membro civil, seguido pelo Chanceler, o Porteiro-mor e o

Reposteiro-mor, os sobrejuízes e os clérigos do rei. Quanto ao âmbito militar, a

primeira figura era a do Alferes-mor e algumas vezes com um Alferes-menor ou

Sub-Alferes-mor.

A designação da Cúria Régia, cai com o passar do tempo, em desuso, através de

uma lenta evolução, passando a assumir a designação e a estrutura de Cortes.78 E,

esta alteração traduz-se, desde logo, na integração nas cortes, dos procuradores dos

concelhos.

A primeira corte de que existe noticia, é a que tem lugar em Leiria em 1254, no

decurso do reinado de Afonso III, e na qual intervém pela primeira vez o elemento

popular, para além dos representantes do clero e da nobreza que tradicionalmente

tinham assunto na cúria.

Esta integração não é de todo ingénua, pois que o rei, aproveita em seu favor a força

política que revestia o elemento popular no sentido do reforço da sua autoridade.

De importância, é a questão das cortes de Leiria terem sido convocadas para que se

pronunciassem sobre questões de ordem financeira, o que a partir daí seria uma

questão recorrente, porque fundamental para a legitimidade tributária do rei.

As cortes, tinham ainda que com um funcionamento de tipo assembleia, funções

meras consultivas, no sentido em que as suas resoluções não tinham força

obrigatória geral, a não ser que fossem sancionados pelo Rei. Nas cortes, os

representantes das várias classes aconselhavam o rei, faziam exposições dos seus

78 Marcello Caetano, tem uma interpretação diferente sobre a questão, pois “quando o rei convocava

uma cúria plena, fazendo vir de todos os pontos do reino, prelados, barões e representantes dos

concelhos, necessariamente tinha de dispor-se a consagrar uma série de dias a audiências para os

ouvir e despachar os seus pedidos. Nas raras cúrias anteriores a 1254 isso talvez não se desse tão

pronunciadamente (…) mas desde que os homens-bons dos concelhos foram chamados, muitos dos

municípios tinham assuntos locais e expor para obterem despacho régio. Assim, a assembleia

plenária exigia audiências régias consecutivas, isto é, o rei dispunha-se a todos os dias, durante

certo período ou, pelo menos, em dias muito próximos uns dos outros, celebrar audiência públicas

e solenes, cúrias sucessivas ou cortes”. Estudos de História da Administração Pública Portuguesa.

Coimbra: Coimbra Editora, 1994, p. 22

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65

agravos e pediam soluções para os seus problemas, ainda que a presença nestas não

apresentasse importância igual para todas as classes.

Se a nobreza e o clero tinham importância política e social em face das suas

riquezas, pela tradição ou pelo desempenho de cargos de relevância, já o povo, não

valendo individualmente do ponto de vista social e político, adquiria-a no facto de

estar em colectivo e na capacidade que assim tinha para reivindicar as suas

exigências. Deste modo, do acordo tácito entre o rei e o povo, vai “surgindo (…) a

ideia de representação de classes, visto que, ao dever de acudir aos conselhos do

rei, se foi aliando o direito, reconhecido às diversas forças sociais, de serem

convocadas e ouvidos”.79 Assim, as cortes passavam a assumir para além da sua

função consultiva, o direito de petição, formulando artigos ou agravamentos que o

soberano aceitava ou rejeitava.

A representação das cortes, ficava então assegurada com a presenta da nobreza, do

alto clero e a partir de então, com os representantes dos concelhos, que garantiam

assim, uma certa dinâmica participativa a estas assembleias.

Com efeito, assistir às Cortes constituía um dever de vassalagem e o dever de

prestar conselho ao seu senhor, sempre que este o reivindicasse, sendo esta uma

prática antiga, já entre os visigodos, pelo que quando o monarca fizesse a chamada,

todos os súbditos deveriam acorrer ao seu auxílio. Deste modo, o dever de assistir

à Curia Régia e, posteriormente, às Cortes integrava-se no dever do súbdito para

com o seu rei e senhor, enquanto órgão máximo do Estado, e não na obrigação de

um vassalo atender à convocação de seu senhor feudal.80

Para Gama Barros, a presença de nobres e clérigos dependia do arbítrio real, no que

respeitava ao número de pessoas, tendo em consideração a importância social de

cada um. De tal forma, um prelado ou rico-homem cuja prerrogativa em sentar-se

nas Assembleias era garantida pelo direito costumeiro dificilmente seria

esquecido.81

79 Merêa, Paulo. 2006. A administração Central e as Cortes, op. cit. p. 178

80 Perez-Prendes, V. J. 1974. Cortes de Castilha. Barcelona: Ariel, p. 15-41

81 Barros, Henrique da Gama. História da Administração Pública de Portugal, III. Lisboa: Sá da

Costa, 1945. p. 191

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66

Deste modo, quanto à sua participação nas Cortes podemos distinguir a existência

de quatro grupos distintos. O primeiro, é o grupo daqueles que se encontram mais

próximo do rei e com ele convivem de forma constante. É este grupo que organiza

o evento e trata de toda a sua infra-estrutura. Integram-no, por conseguinte, os

familiares do monarca, os membros do seu conselho particular e os funcionários do

Estado e da chancelaria, tais como juristas, oficiais e notários. Dirigiam e

orientavam os participantes face aos aspectos relativos ao protocolo, à ordem dos

trabalhos e que aconselhavam o rei quanto às atitudes a tomar e sobre as respostas

a serem dadas aos artigos que lhe eram dirigidos. Eram ainda da sua competência a

escrita dos documentos e respectivos selos.

O segundo grupo era o que integrava os elementos do Clero. Mas também a sua

presença nas Cortes de 1254 não é de todo certa e sobretudo a sua presença

generalizada. É certo que estiveram presentes alguns representantes do Clero, mas

parece que não os do Alto Clero. Bispos, Abades ou Mestres de ordens militares

parecem não ter tido ai a sua presença. Questiona-se o porquê dessa ausência, mas

as respostas não são concretas. É que os clérigos não iam enquanto grupo, mas a

título individual, quer por direito adquirido, quer por convocação régia, mediante

convocação por carta régia, pelo que se desconhecem as razões para uma tão

reduzida presença dos membros do Alto Clero nestas reuniões.82

O terceiro grupo era o dos nobres, que eram também os membros mais destacados

do grupo que tinham participação garantida, e de que se destacavam os fidalgos,

ricos-homens, condes e cavaleiros. Já os da pequena nobreza, como os escudeiros,

só excepcionalmente tinham presença nas Cortes - era mais fácil ver escudeiros

presentes como procuradores dos concelhos, do que entre o grupo dos nobres.

Tal como aconteceu com o Clero, desconhece-se a dimensão da Nobreza na

presença das Cortes de Leiria e bem assim a qualidade da sua representação. Os

documentos disponíveis não permitem clarificar essa questão.83

82 Caetano, Marcello. 1994. Estudos de História da Administração Pública Portuguesa. Coimbra:

Coimbra Editora, p. 33-34

83 Caetano, Marcello. 1994. Estudos de História da Administração Pública Portuguesa. op. cit. p.

35

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67

O quarto grupo, era o constituído por homens do povo, os homens-bons dos

concelhos, que passaram a ter assento na Corte, a partir de 1254, durante o governo

de Afonso III. Mas mesmo nesta data, ainda restam dúvidas quanto à sua presença

assídua e de direito próprio, pois que não existem muitas provas da sua efectiva

presença nessas Cortes.

O que se conhece, a partir de algumas cartas régias expedidas de Leiria, é a

referência a petições e reclamações formuladas por alguns concelhos, mas que

podiam dispensar a presença dos representantes dos concelhos na Corte, bastando

apenas a procuração para que alguns procuradores pudessem resolver as questões.

Contudo a partir de 1254 em diante, este extrato da população nunca mais deixou

de comparecer, a ponto de, no século XV, a instituição assumir uma feição política

eminentemente popular.84

As Cortes de 1254 em Leiria, para além de se distinguirem pela intervenção dos

representantes do povo, também se apresentam com a “intenção de fazer leis para

o melhoramento, correcção e emenda do reino das quais leis se acham várias no

foral antigo de Santarém e Beja, e bem assim no livro das leis antigas, e ordenação

d’ el rei D. Duarte, misturadas com outras feitas em Coimbra e Lisboa. Nelas se

concederam vários privilégios a Santarém, e se decidiu que a terça parte das

barcas que navegassem no Douro, e as naus de França, que ali aportassem

descarregassem em Gaia e não no Porto”.85

Como defende Alexandre Herculano, trataram as cortes, pois, de fazer leis gerais,

respeitando ao processo judicial e quanto ao processo a seguir na corte, e

providências especiais, que constam de cerca de 20 diplomas transcritos e que vão

84 Caetano, Marcello. 1994. Estudos de História da Administração Pública Portuguesa. Coimbra:

Coimbra Editora, p. 37-38

85 Carvalho, José Liberato Freire, 1830. Ensaio Histórico-Político sobre a Constituição e Governo

do Reino de Portugal: onde se mostra ser aquele reino, desde a sua origem, uma monarquia

representativa: e que o absolutismo, a superstição, e a influência da Inglaterra são as causas da sua

actual decadência, PARIS: em casa de Hector Bossange. P. 45

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desde a resolução dos agravamentos de Santarém, diplomas de interesse geral da

cidade de Lisboa, até à confirmação do foral da Guarda.86

E, têm ainda a intenção de tratar da pertinente questão da moeda. E, terá sido, por

tal motivo que os homens-bons dos concelhos foram convocados para estas Cortes.

Com efeito, em Dezembro de 1253, o Rei em Lisboa determinou o tabelamento das

mercadorias mais procuradas para substituir o dinheiro metálico nos patrimónios

ameaçados pela quebra, o que conduziu a um movimento para o convencer a não

mexer na moeda.87

86 Herculano, Alexandre. História de Portugal, Caetano, Marcello. 1994. Estudos de História da

Administração Pública Portuguesa p.41

87 Caetano, Marcello. 1994. Estudos de História da Administração Pública Portuguesa, op. cit. p.

41

A realeza sempre se atribuiu e reservou para si o direito de cunhar moeda, o que no direito

consuetudinário da monarquia leonesa-castelhano e no reino de Portugal, posteriormente se veio a

reforçar, nomeadamente com o poder de alterar o valor da própria moeda já cunhada. Em Portugal,

é este um expediente usado pela primeira vez por Afonso III, ao qual se atribui a designação de

quebra de moeda.

A quebra de moeda, consistia na recolha da moeda corrente, procedendo-se depois à sua refundação

e promovendo a alteração do respectivo valor:

a. Com menos toque de metal precioso (prata e.g) e mais liga (e.g. cobre), mas com o mesmo

valor nominal da moeda antiga;

b. Com menos peso global e o mesmo valor facial

c. Com maior valor nominal, embora o peso e a liga permanecessem iguais.

Em qualquer destas modalidades, o que acontecia era a possibilidade de a receita pública ser de

forma extraordinária aumentada. Com efeito, como a moeda na Idade Média valia apenas pelo seu

valor relativo como mercadoria e no mesmo reino era possível a circulação de mais do que um tipo

de moeda em concorrência com a moeda oficial. Assim, o rei ao tirar parte do valor intrínseco da

moeda e como ela valia pelo valor efectivo do seu peso em ouro ou prata e era esse o valor que

servia para a troca de mercadorias, a partir daí a tendência seria a de o vendedor exigir mais moeda

pela compra da mesma mercadoria.

Ora, este artifício, assustava as classes mais ricas, porquanto se viam limitadas na sua dimensão

económica, e sempre que se previa uma situação deste tipo, a tendência era de se desfazer da moeda,

substituindo-a por coisa de valor inalterável. Por seu lado, os mercadores começavam de imediato a

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Ainda que assim pudesse pensar-se que aconteceria, o certo é que o rei, terá mesmo

nas Cortes decidido a quebra de moeda, ao arrepio da contrariedade dos

representantes, quer do clero quer da nobreza e do povo. Motivo pelo qual, no

decurso do ano de 1255 estalou um conflito entre o monarca e sobretudo as ordens

religiosas que se terão recusado a entregar a sua moeda, obrigando o rei a jurar em

Março de 1255 que não quebraria a moeda, comprometendo-se o clero e o povo ao

pagamento de um tributo.

Nas Cortes de Santarém, realizadas em 1263, ficaram aprovadas leis para a

correcção dos costumes, e para a entrega de certos bens pertencentes às igrejas, em

virtude de uma bula do Papa Gregório X, em resulta da queixa dos bispos do reino.

Mas, Afonso III acabaria por obrigar o Clero e os prelados a contribuírem para o

bem público, e para suprir as despesas necessárias para a segurança e felicidade dos

povos e da nação em geral.

Já no reinado de D. Dinis, ganhariam importância as Cortes de Lisboa realizadas

em 1289, no decurso das quais D. Dinis fundou, a universidade em Lisboa, a qual,

depois de várias mudanças, acabaria finalmente por ficar em Coimbra. Mandou

ainda o mesmo rei erigir escolas em todas as grandes cidades do reino, acção que

sem mudar de procedimento com a igreja lhe granjearia a estima de parte

significativa deste estrato social.

Ainda no decurso daquelas cortes proibiu que nenhuma pessoa vendesse bens de

raiz às comunidades seculares ou regulares argumentando que a Igreja não era

senão a depositária dos bens dos pobres, e quando acumulava e entesourava retinha

o que não era seu. Além disso, caso estes bens adquiridos viessem a cair em mãos

que não se podiam desfazer deles, em pouco tempo a igreja seria a detentora de

tudo.

No reinado de Afonso IV, reuniram-se as cortes seis vezes, realizando-se a primeira

em Évora em 1325, nas quais se fizeram muitas leis e dentre elas uma acerca da

moeda. Em 1331 reuniram-se as Cortes em Santarém, repetindo-se ainda nova

reunião em 1334, em que para além da aprovação de várias leis se aprovaria o

aumentar os preços dos bens com receio de verem transferidos para eles os riscos da quebra de

moeda e a exportar os metais preciosos em seu poder.

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casamento do príncipe com a infanta D. Constança. Em 1335 reuniram-se em

Coimbra e em Santarém, no ano de 1340.

Com D. João I a importância das Cortes sai amplamente reforçada, e bem assim o

seu prestígio, transformando-as o rei num órgão claramente interventivo nas

decisões reais. Reunir-se-iam no seu mandato as Cortes vinte e cinco vezes tratando

algumas delas assuntos de grande importância. Desde logo, as de 1385 realizadas

em Coimbra que decidiram a aclamação do Rei e se legislou sobre as grandes

questões do reino. Dois anos depois em 1387, reúnem as Cortes no Porto, nas quais

se concede à Igreja de Elvas, a requerimento do concelho da mesma terra, a isenção

da redizima que antes pagavam. E em 1387 a reunião é feita em Coimbra, onde

seriam lançadas as sisas gerais por um ano para as despesas da guerra. Ainda no

mesmo ano, voltam a reunir em Braga, desta vez para aprovação de pagamento pelo

povo de sisas dobradas por um ano para as mesmas despesas da guerra.

No reinado de D. Duarte, reúnem-se as Cortes em Leiria no ano de 1434, nas quais

se faria o juramento do rei. Foram depois transferidas para Santarém, e aí se decidiu

sobre as primeiras ordenações do reino, o Livro de Leis e Posturas de D. Duarte.

No ano de 1455 realizaram-se as Cortes de Évora, e no ano seguinte (1456) ainda

na mesma cidade, nas quais se determinaram o subsídio de pedido e meio para a

expedição de África. Finalmente no ano de 1458 foram as Cortes de Leiria, nas

quais se deliberou que se devia entregar a praça de Ceuta para resgate do infante D.

Fernando.

Com Afonso V, e dado que durante muitos anos em virtude da pouca idade do

Príncipe, o poder esteve nas mãos do tio do futuro rei, o infante D. Pedro, duque de

Coimbra, as Cortes reuniriam vinte e duas vezes sendo que as primeiras seis

decorrem no tempo da regência, e as restantes no governo do rei durante a

maioridade.

Com a evolução do sistema político para a absolutização do poder real, um dos seus

pressupostos, foi a da redução da participação e representação dos povos no

exercício do poder com reflexo directo na convocação das Cortes que os monarcas

foram esquecendo.

9. A organização administrativa

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71

9.1. A Administração Central

O Rei adquire neste tempo uma cada vez maior importância social e política e

chama para si um espaço de intervenção na esfera da administração do Estado que

até4 aí não havia tido. A questão da justiça e respectiva aplicação e a incidência

tributária são elementos que trazem uma maior preocupação governativa e ao

mesmo tempo permitem uma evolutiva centralização do poder real.

O Rei, assume cada vez de forma mais evidente as funções de Chefe Militar, ainda

que não tendo um exército permanente e ao seu serviço os restantes extratos sociais

reconheciam nele a figura carismática e tradicionalista que deveria conduzir os

designios militares do Reino. É assim que o rei, ainda que de forma sistemática

houvesse de negociar o apoio da nobreza e dos exércitos privados que cada senhor

feudal dispunha viu a sua capacidade administrativa e organizativa aumentada.

De outro lado, o rei vai, na procura da centralização administrativa que lhe

concretizaria o poder, organizar a questão da justiça e da sua aplicação,

desenvolvendo estratégias que consubstanciariam, por um lado, a exclusividade da

sua aplicação e, por outro, reduzir a margem de direito privado que permitia a

aplicação de forma desregrada e diferenciada da justiça por parte da alta nobre e do

alto clero. Esta justiça privada era de forma clara, uma forte concorrência do poder

do rei e um limite à sua capacidade de intervenção global no país.

Sabe-se que na transição para a formação do reino português e durante cerca de

mais dois séculos, o Código visigótico determinava a lei comum em vigor, o que

enformava o conjunto de leis gerais em vigor no reinado de Afonso Henriques, mas

na sua grande maioria, os textos de lei efectivamente são desconhecidos de parte

significativa da população do reino ao tempo eram muito limitados. No entanto, a

partir do século XIII, as referências àquele Código foram-se tornando cada vez mais

raras, passando a ser suplantadas pelo direito consuetudinário e pelos privilégios

municipais. O costume, passou a ser assim, a fonte de direito mais usada e aplicada

e assim se manteve durante muito tempo. Os casos julgados constituíam fonte de

direito privilegiados, de que se destacam as façanhas, que em muitas ocasiões

adquiriam força de lei com origem no direito costumeiro local.

Já as cartas de privilégio revestiam também estatuto de fonte de direito. Destas, os

forais constituíam o direito mais importante e resultavam da concessão do rei ou de

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algum senhor a uma determinada população. Estavam na esfera de intervenção dos

forais sobre questões de natureza fiscal, administrativa, sobre a aplicação da justiça

e sobretudo, sobre as penas a aplicar em face dos delitos em presença, sobre a

obrigação do serviço militar, sobre liberdades concedidas às pessoas e aos bens.

A partir do reinado de Afonso III a legislação régia vai ter um desenvolvimento

incremental extraordinário, ainda que, ao seu lado, continuassem a existir muitas

determinações régias destinadas a sujeitos e situações específicos sobretudo devido

“à penetração do direito justinianeu nos estados hispânicos e ao incremento que

rapidamente tomou a legislação nacional de carácter geral.”88

Com D. Dinis, em 1317, volta a afirmar-se com vigor o direito régio de julgar em

última instância, os direitos de jurisdições exercidos por nobres e eclesiásticos, sem

excepção, mostrando dessa forma a sua autoridade suprema, e visando diretamente

uma das mais características regalias das ordens privilegiadas89, já que até então a

tendência fora sempre no sentido de não interferir nas terras privilegiadas e para se

deixar à nobreza plena liberdade de jurisdição. 90

Mas é só no reinado de D. Duarte se vem a conhecer a primeira sistematização legal

realizada em Portugal, o Livro das Leis e Posturas ou as designadas Ordenações de

D. Duarte. E posteriormente, com maior desenvolvimento e sistematização com as

Ordenações Afonsinas promulgadas por Afonso V, seguidas com a intervenção de

D. Manuel I, das Ordenações Manuelinas e no tempo da ocupação espanhola as

Ordenações Filipinas. Disto falaremos adiante.

.No que respeita à administração central e à sua organização, é sob os auspícios de

D. Dinis, que se inicia o processo de criação de um corpo de funcionários régios

denominados nobreza de Corte, dependente do soberano e que criava as necessárias

condições para o início da luta contra os benefícios e imunidades dos senhores,

88 Merêa, Paulo, Estudos de História de Portugal, op. cit. . 216

89Peres, Damião. 1951. História de Portugal: Origens e formação da nacionalidade. Porto:

Portucalense Editora, vol. I, p. 233

90 Marques, Oliveira, A. H. de. 1987. Portugal na crise dos séculos XIV e XV, op. cit. p.228)

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interferindo nos seus domínios, e passando a impor-lhes “uma doutrina, uma

autoridade e um centralismo que violavam todos os seus direitos e tradições”.91

Inicia-se então um novo período na organização do Estado e da administração

central, trazendo para a esfera do poder régio, a jurisdição administrativa do reino,

constituindo uma rede de funcionários que têm como intuito a regularização da

administração central, com a consequente promoção de uma maior fiscalização dos

concelhos e restantes lugares, proporcionando condições à Coroa para o exercício

cada vez mais evidente do poder, consubstanciando uma maior intervenção na

vigilância da administração da justiça e na cobrança dos impostos

9.2. As Inquirições-Gerais e a questão dos direitos senhoriais: o chamamento geral.

A nobreza teve sempre uma atitude orientada no sentido do abuso da sua posição

privilegiada, no sentido da obtenção de direitos que lhes não pertenciam

contrapondo-se assim ao poder régio e levando a que o rei procurasse alterar tais

privilégios. Para obviar a esta questão que limitava o poder do rei em termos gerais

e do ponto de vista financeiro ainda mais, a partir dos inícios do século XIII os reis

portugueses criariam algumas regras e instrumentos de averiguação com os quais

pretendem ver onde o poder senhorial é abusivo e até ilegal. São as inquirições

gerais com as quais o monarca pretende perceber como está distribuída a

propriedade fundiária, em que circunstâncias e a legalidade da sua posse.

No reinado de D. Afonso III, aquele processo adquire nova dimensão e importância,

confiando este as inquirições a letrados, impondo ao meio rural e senhorial um

conjunto de valores que tem na lei, escrita e na representação política os seus mais

fortes apoios ideológicos.

Impunha também Afonso III, uma prática diferenciada da anterior. Não bastava

agora o consenso comunitário para a legitimação dos usos e dos direitos. Era

importante afirmá-los por escrito. No entanto, no campo estritamente prático da

atitude do rei perante as inúmeras sonegações dos senhorios, parece que pouco

efeito terão tido. Com efeito, terá apenas limitado a sua acção à consolidação das

91 Marques, Oliveira, A. H. de. 1987. Portugal na crise dos séculos XIV e XV. Lisboa: Editorial

Presença, vol. IV, p. 65

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formas de execução prática dos valores ideológicos representados pela escrita e pela

imposição da lei, pela fidelidade dos seus representantes locais e pelo respeito

devido a estes.92

No entanto, a criação da figura do meirinho-mor em 1261, põe em evidencia que a

acção contemporizadora do rei terá sido meramente aparente e que de facto

procurou criar soluções efectivas em relação à posse da propriedade.

É, todavia, no reinado de D. Dinis que as inquirições tiveram efeito apreciável, quer

pela verificação das ilegalidades existentes, quer porque o rei conseguiu em parte

significativa regular a posse da propriedade.

As Inquirições e as confirmações, tinham por finalidade pôr cobro aos abusos

cometidos, principalmente pelos fidalgos, que não permitiam, entre outras coisas,

que os agentes do fisco entrassem nas suas terras93 para cobrar os créditos reais.94

A medida tem grandes consequências no plano da organização do Estado, apesar

de não ser inédita e de ter sido ditada por razões basicamente administrativas,

destinando-se sobretudo, a evitar a usurpação dos direitos régios, ou seja, a

diminuição dos rendimentos da coroa.

Visavam essas averiguações dotar a administração central com um cadastro de

todas as propriedades do reino, fazendo com que, dessa forma, o rei pudesse

estabelecer com firmeza a sua autoridade, interferindo no sentido de organizar uma

justiça centralizada e de dispor de um sistema financeiro planificado.

Por esses procedimentos administrativos já se percebe os muitos abusos cometidos

pelas classes privilegiadas e eles revelaram-se nessa oportunidade, um instrumento

bastante eficaz na defesa dos direitos da coroa contra as usurpações constantes das

92 Mattoso, José. 2001. O triunfo da monarquia portuguesa: 1258-1264. Ensaio de história política.

Análise social, vol. XXXV. Lisboa. 899-935

93 Martins, Oliveira, J. P. 1942. História de Portugal. 12.ed. Lisboa: Livraria Editora, tomo I. p. 132

94 Ribeiro, Ângelo. “Política de fomento nacional”. História de Portugal: edição monumental.

Direção de Damião Peres e Eleutério Cerdeira. Barcelos: Portucalense Editora Ltda, 1929. Vol. II.

p. 293

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ordens privilegiadas.95 Tratava-se, pois de proceder a um rigoroso levantamento

dos foros e prestações devidas pelos súbditos e dependentes do rei em todas as terras

do reino situadas a norte do rio Mondego. O cadastro dos foros resultante seria um

dos monumentos legados pela administração régia portuguesa durante a Idade

Média.

Estas iniciativas, importantes para o desenvolvimento do poder real eram no

entanto, pouco desejáveis para os poderes instalados donde resultaria sempre um

permanente conflito: de um lado os senhores feudais e senhoriais e o clero e do

outro o rei. Os primeiros prosseguindo a privatização do poder através da detenção

da propriedade privada e dos privilégios daí resultantes. Os segundos reduzindo

aqueles privilégios e procurando a publicização do poder e uma maior amplitude

dos seus direitos.

É ainda com D. Dinis, que a lei consagra que as apelações de quaisquer juízes vão

para a corte de el-rei e para mais ninguém, significando a clara tentativa de

consagrar o direito público como elemento fundamental da política real, retirando

tal citério do domínio da intervenção privada dos senhorios.

Ainda assim, esta lei tem vastas excepções, tanto com D. Dinis, como com D.

Afonso IV, nomeadamente junto dos mais privilegiados, e nos lugares onde o

costume tivesse estabelecido a apelação para os senhores.

No entanto, já antes daquelas Inquirições, tinha D. Dinis, através de uma carta de

26 de dezembro de 1283, anulado todas as doações feitas desde o início do seu

reinado até esta data96, medida que poderia até ser vista como revolucionária.

Incansável no seu intento de implementar a todo custo os mecanismos de controlo

governamental, com vista à consolidação do Estado português, bem como com o

95 Saraiva, José Hermano. 1987. História Concisa de Portugal. 11.ª Edição. Lisboa: Publicações

Europa-América, Lda, p. 84

96 Amaral, António Caetano do. 1945. Memórias: Memória V para a história de legislação e

costumes de Portugal. Edição de M. Lopes de Almeida e César Pegado. Porto: Livraria Civilização,

Editora, (Biblioteca Histórica - série miscelânea), p. 49-50; Leão, Duarte Nunes de. “Chronica D’el

Rei Dom Dinis”. Crónicas dos reis de Portugal. Reformadas pelo licenciado. Introdução e revisão

de M. Lopes de Almeida. Porto: Lello & Irmão- Editores, 1975, p. 191 236 (Tesouros da Literatura

e da História), p. 194

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objetivo de verificar a existência de terras usurpadas97, estabeleceu D. Dinis, a par

das Inquirições, as Confirmações, onde os nobres eram obrigados a levar à

aprovação do Rei, as doações recebidas do monarca antecedente. Para tal eram

examinados documentos comprobatórios do acto a confirmar98. A partir de então,

o documento escrito e a Lei, passam a ser o critério adoptado no apuramento da

verdade de factos decorridos no passado, o que fez com que o rei saísse privilegiado,

dada a superioridade, em número, da documentação de que dispunha99.

No âmbito da luta contra o domínio senhorial e pela supremacia dos direitos da

coroa, D. Afonso IV decretou que pelas comarcas se fizesse chamamento geral de

todos os que tinham vilas, castelos, coutos, honras ou jurisdições para a dia certo,

virem perante os ouvidores dos feitos do rei, mostrar o título da sua posse.

Como se referiu, verificaram-se de imediato conflitos, queixas e pleitos que se

arrastaram por vários anos, mas que acabaram por ser na sua maior parte favoráveis

aos desejos reais. E em 1343 ou 44, uma lei então publicada vem estipular qual a

jurisdição dos senhores nas suas honras, de modo que aquelas cuja existência

tivesse sido verificada pelas inquirições de 1268, continuariam na sua posse com

todas as jurisdições e direitos que então tinham, e nestas bem como nas que tinham

feito até vinte anos antes da morte de D. Dinis, não entraria mordomo nem saião.

Todas as restantes seriam devassas. O que significava que se mantinham para

alguns senhorios os direitos adquiridos mas para outras o poder do rei acabava por

se sobrepor ao poder do seu proprietário.

A mesma lei referida acima, determinava ainda qual devia ser a jurisdição dos juízes

e vigários na falta de declaração das actas das inquirições e de privilégio especial.

D. Fernando, entre outras medidas para reprimir os abusos dos senhores e regular o

exercício da sua jurisdição, atribuiu a jurisdição criminal aos concelhos nos lugares

97 Mattoso, José. 1995. Identificação de um país: Ensaio sobre as origens de Portugal (1096-1325).

Oposição. 5ª. Edição. Lisboa: Editorial Estampa, vol. I., p. 295-296

98 Saraiva, José Hermano. 1987. História concisa de Portugal. op. cit. 84

99 Krus, Luís. 1982. “A vivência medieval do tempo”. Estudos de história de Portugal. Homenagem

a A. H. de Oliveira Marques. Lisboa: Editorial Estampa, vol. I. p. 343-355, p. 355

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que pertenciam aos seus termos e bem assim o direito de escolher as autoridades

locais e de reger a administração.

E uma medida ainda mais drástica, levada a efeito pelo mesmo rei, em 1375, é a de

impedir o exercício de jurisdição em primeira instância assim como a atribuição de

cartas de segurança ou de perdão aos senhorios. Apenas excepcionava os familiares

mais próximos do rei.

10. A reforma dos mecanismos fiscais e o incremento dos rendimentos da Coroa: os

mecanismos administrativos e de gestão da Fazenda. Almoxarifes e porteiros.

A complexidade que o património real foi adquirindo ao longo dos primeiros

reinados dos monarcas portugueses levaram a que a forma de contabilização e

gestão desse património sofresse alterações organizativas. Neste contexto, uma das

alterações que se impunha era a exigência de exigindo funcionários cada vez mais

especializados, aos quais foram concedidos amplos poderes.

Já no início do reinado de Afonso II, este rei mandou registar um regulamento

económico da casa real, de 15 de Julho de 1216 pelo qual se assentavam

regularmente, nos livros de recabedo regni as receitas do Estado e, ficava evidente

a existência de uma contabilidade pública ainda que rudimentar. E a Cúria régia

tinha por função a verificação das contas públicas sob a presidência do rei,

porquanto ela intervinha em todas as questões políticas, administrativas, jurídicas e

financeiras do reino.

Com o desdobramento das funções da Cúria Régia e o incremento e complexidade

dos assuntos ligados à vida administrativa e financeiro do reino, os assuntos

relativos à questão financeira passaram a estar submetidos a uma intervenção mais

circunscrita. É assim que o exercício destas funções foi primeiramente confiado ao

Portarius Maior, (porteiro-mor) e posteriormente transferidas para os Ouvidores da

Portaria, a quem o sobreano delegou a verificação da contabilidade,

permanentemente, pois a eles passou a incumbência de verificar as contas do

património real e as daqueles que se ocupavam da cobrança dos direitos das rendas

da coroa.100

100 Vide Barros, Henrique. História da Administração Pública…op. cit. Vol. III, p. 240 e ss

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Com o evoluir da situação portuguesa e sobretudo das especificidades das questões

fiscais, verifica-se uma diferenciação das contas da fazenda real, separando-se dos

iniciais livros de recabedo regni, a que não estava alheia a fixação da residência

real em Lisboa e a sedentarização dos vários órgãos da administração pública e da

justiça nesta cidade e bem assim dos da contabilidade e do arquivo real.

É então em Lisboa que no tempo de D. Dinis é criada uma repartição onde se

concentravam as contas da Fazenda d’el Rei: Os Contos. Nesta procede-se a toda a

organização, contabilização e fiscalização do património real. A Casa dos Contos

tornou-se assim no primeiro órgão de ordenação e fiscalização das receitas e

despesas do Reino, como nos dá conta um documento de 16 de Junho de 1296, e

que nos informa da existência da repartição onde se reuniam os documentos e

contas das despesas públicas e administração económica e financeira.

No decurso do reinado de D. Fernando, a partir de 1370, as funções até aí atribuídas

aos ouvidores são transferidas para os Vedores da Fazenda, que tinham a

administração superior do património real e da fazenda pública, à qual estavam

associados atribuições contenciosas da esfera fiscal.

Também do cargo de tesoureiro mor há “notícia pelo menos desde a segunda

metade do século XIII, sendo um dos ofícios em que mais frequentemente estavam

investidos indivíduos de raça hebraica, nomeadamente o arrabi-mor. Este e outros

funcionários que de um modo ou outro intervinham na administração da casa real

eram muitas vezes abrangidas na denominação genérica de «ovençais»”101

Provando que a organização dos Contos era já completa foi concedido uma carta de

privilégio aos contadores, escrivães e porteiros que serviam nos Contos emitida em

4 de Outubro de 1375, por D. Fernando.

É também neste período que se concretiza a distinção entre os Contos de Lisboa e

os Contos d’el Rei. Nestes termos, competia aos contadores dos Contos de Lisboa

tomar, verificar e registar nos livros de Contabilidade as contas de todos os

almoxarifados do país, e aos contadores d’el Rei executar idênticas funções, só que

referentes à Casa Real. Daqui resulta uma nítida separação entre o património do

101 Merêa, Paulo. A administração central e as cortes. História de Portugal, ed. …… p. 480

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rei e o património do reino, em face da separação entre a gestão das finanças

públicas e a gestão das despesas e receitas da Casa Real.

Com D. João I, este modelo organizativo irá sofrer grandes alterações, com a

outorga do regimento dos Contos (o mais antigo), o regulamento de 5 de Julho de

1389, onde os Contos de Lisboa são divididos em duas partes: numa, as diversas

contadorias espalhadas pelo Reino e noutra, a cidade de Lisboa e respectiva

comarca.

Em 28 de Novembro de 1419 foi aprovado um segundo regulamento, onde se

determinava que todas as rendas da cidade de Lisboa e seu termo recebidas, tanto

direitos como sisas, fossem guardadas no Tesouro e conferidas pelos contadores e

escrivães.

Em 1434, já no reinado de D. Duarte, foi publicado um terceiro regulamento que

dizia respeito unicamente aos Contos de Lisboa e que encarregava o Contador-Mor

de controlar e evitar a negligência dos funcionários.

Os almoxarifes, cargo que vem do séc. XII e se generaliza no séc. XIII e que tinham

atribuída uma área considerável ou um núcleo populacional importante – vila ou

cidade – relativamente à qual lhes cumpria receber as rendas régias e cobrar os

impostos. Eram coadjuvados pelos mordomos dos julgados e competia-lhes ainda

receber as sisas gerais e outros impostos gerais, recebendo ainda os direitos das

portagens e dos reguengos para o que tinham ao seu serviço uma série de outros

funcionários menores. Anualmente apresentavam à coroa as contas dos impostos

cobrados através dos vedores da fazenda.

11. Afonso IV e a organização da Casa do Cível (fixa em Lisboa) e da

Casa da Suplicação. Os juristas e os letrados ao serviço da política

centralizadora. Juízes de feitos cíveis e juízes de feitos criminais.

12. A divisão administrativa do Reino: as comarcas.

A circunscrição político-administrativa mais importante era a província. Herdada

da presença romana, significando aí o território atribuído pelo poder central à

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competência de um magistrado, mas só aparece na tradição político-administrativa

nacional, nos finais do século XVII, designando o território sujeito a um governador

de armas, mas usava-se o termo no sentido corográfico, para designar zonas com

identidade geográfica ou étnico-cultural. Neste sentido, se falava da existência de 6

províncias no reino: Entre Douro e Minho, Trás-os-Montes, Beira, Estremadura,

Alentejo (ou Entre Tejo-e- Odiana) e Algarve, e que tem presença desde o século

XIII.102

A comarca ou correição é outra das divisões territoriais, correspondente ao distrito

de jurisdição de um corregedor, magistrado criado no século XIV, inicialmente com

jurisdição apenas delegada ou comissarial, abrangendo os assuntos e a área

territorial contida na carta régia de delegações.103

No século XVII constituem já os corregedores uma magistratura ordinária e

exercendo-a sobre um território determinado por providências legais ou por usos

bem estabelecidos. Eram nomeados pelo rei por períodos trienais.

As suas atribuições principais respeitavam a matérias de justiça, tais como a

inquirição das justiças locais (excepto dos juízes de fora) e dos seus oficiais,

defender a jurisdição real e a ordem pública, inspecionar as prisões, conhecer por

acção nova ou avocar os feitos.

Os corregedores das comarcas (atribuições administrativas e de polícia). Com

matérias ligadas à justiça, tem no início jurisdição apenas delegada ou comissarial,

abrangendo os assuntos e área territorial contida carta régia de delegação.

13. Reforma da administração concelhia.

Regulamentação dos corregedores e surgimento dos vereadores: forma de redução

do poder e da autonomia municipal. A participação dos concelhos e dos vereadores

no governo do reino.

102 Vide, Hespanha, Antonio, …..p. 96

103 Vide, Hespanha, Antonio, …..p. 199

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14. O Desembargo Régio: a indistinção entre Administração Central

e Justiça Superior ou a interpenetração da esfera judicial e

administrativa.

A reforma administrativa prosseguida pelos reis portugueses sobretudo a partir de

Afonso III, tem como objectivo central, a intervenção no quadro da justiça criando

as condições para que a intervenção dos nobres e dos clérigos, senhores em muitas

circunstâncias da exclusividade da sua aplicação e para que o domínio privado

dessa justiça, até aí preponderante, se transformasse em domínio de aplicação

colectiva e sob uma perspectiva essencialmente pública. A intervenção dos letrados

juristas, foi o impulso decisivo para esta alteração de mentalidades e sobretudo de

princípios e de métodos.

O desembargo régio foi, por conseguinte, um instrumento pelo qual os reis acionais

iniciaram a reorganização do poder político e a reorganização da administração

pública, submetida àquele poder e bem assim a centralização da estrutura política

do Estado sob a sua autoridade. Por isso, o desembargo régio, foi essencialmente

um órgão da administração central que permitiu dar início a um período crescente

de reforço do poder do rei sobre o reino.

Mas, não era o desembargo régio, a “Administração Central”. Esta integrava

certamente já no tempo muito mais órgãos ou instituições, tais como o Conselho

Régio, a Casa Real, a Justiça Superior, as finanças régias, entre outras.

Neste contexto, o desembargo régio, representava pois, um órgão da administração

pública que ao serviço do rei, incluía um conjunto já vasto de funcionários

superiores e funcionários menores e cuja atribuição principal era a de servir o rei.

O Desembargo Régio começa a aparecer no domínio legislativo, a partir do reinado

de D. Pedro e praticado efectivamente nas cartas régias a partir de 1370, adquirindo

maior substanciação já no reinado de D. João I, e sobretudo a partir de 1390,

podendo caracterizar-se como o “conjunto dos funcionários e serviços que, junto

do monarca, assegura por um lado a publicitação das respectivas leis, por outro o

despacho dos assuntos correntes da Administração, ou seja a resposta aos feitos e

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petições que à Corte forem presentes, traduzida na feitura das cartas respectivas,

de justiça e de graça ou de fazenda, seguindo aqui as designações tradicionais.”.104

O Desembargo Régio, afirma-se assim como um órgão de Governo do Reino, no

qual têm assento as figuras mais importantes da Corte, escolhidas pelo rei, e que

tinham atribuídas funções diversificadas e apresentavam uma hierarquização

funcional clara.

Ainda assim, o Desembargo Régio surgia com indistinção entre Administração

Central e Justiça Superior, motivo pelo qual nem sempre ficava clara a distinção

entre a dinâmica administrativa e judicial. Com efeito, o que ficava mais evidente

era a interpenetração da esfera judicial e administrativa, porquanto em face das

funções atribuídas, durante muito tempo o Desembargo era também o órgão

administrador da justiça superior, no qual exercia a presidência o rei e tinham

assento juízes superiores que analisam e aplicavam a justiça de recurso. Ora,

também e ao mesmo tempo, desempenhava funções de administração do reino, do

palácio real e ainda se apresentava como órgão de conselho do rei. Donde, a

separação entre órgão de justiça e órgão de administração nem sempre fosse

possível de determinar.

Integravam o Desembargo Régio, como se referiu as figuras mais importantes do

Estado, a nomeação do rei e com as funções que este lhes atribuía. Desde logo, o

Chanceler-Mor, cargo de muita importância, desde os primórdios da administração

portuguesa, mas a partir do século XIII sofreu um razoável declínio. Depositário do

selo real e encarregado da elaboração das cartas régias, tem intervenção directa nas

decisões do rei. Com o andar dos tempos, a figura do chanceler vai ser relegada

para funções essencialmente burocráticas, sobretudo a verificação de escrituras e

da conformidade com as decisões tomadas.

O Corregedor da Corte é um cargo regulamentado apenas pelas Ordenações

Afonsinas, mas terá aparecido provavelmente durante o reinado de Afonso IV,

competindo-lhe o conhecimento dos feitos e desembargos vindos dos juízes

ordinários dos locais onde o rei estivesse. É um órgão essencialmente judicial, mas

as suas atribuições vão também ao campo policial e administrativo, sendo a sua

104 Homem, Armando Luís de Carvalho. 1985. O Desembargo Régio (1320-1433). vol. 1. Porto:

INIC, p. 16

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jurisdição de 5 léguas em volta do locar em que se encontra, com excepção das

causa onde intervenham pessoas notáveis ou nos crimes considerados graves

(traição, moeda falsa, sodomia) podendo no entanto julgar e chamar as partes à

corte.105

Os Vedores da Fazenda, terão vindo substituir os ouvidores da portaria, cerca de

1372, e pelas ordenações afonsinas, a dministração superior do património real e da

fazenda pública ficava a seu cargo, a quem se subordinavam os almoxarifes,

contadores e outros empregados do fisco. Era da sua competência conhecer dos

feitos das sisasa que julgavam em única instância, no lugar onde estava a corte

instalada e por apelação tendo origem em lugar diverso.

É com D. Manuel I que os vedores da fazenda têm o seu regimento em 1521.

E, coloca-se no Regimento a necessidade de os Vedores da Fazenda cumprirem um

conjunto de requisitos que lhes conferiam uma clara distinção face aos funcionários

anteriores e que deveriam nesse contexto, não deixar de considerar a necessidade

de apresentarem um conjunto de qualidades profissionais, morais e éticas

indispensáveis para o desempenho daquelas funções. Com efeito, a ausência de

transparência nas contas públicas, na cobrança dos impostos e na elevada corrupção

que grassava nestes funcionários impunha alterações fundamentais a esse nível. D.

Manuel I procura por conseguinte, moralizar esta actividade e sobretudo procurar

criar uma nova dimensão organizativa do tesouro público. Assim, rezava o

regimento que “Os Vedores da fazenda devem ser homens honrados, e de boas e

sãs consciências, e práticos na ordem judicial das coisas, que a seus ofícios

pertencem, e homens que tenham grande cuidado de olhar por todas as coisas, que

pertencem a nosso serviço, principalmente nas cousas de nossa fazenda: e com

toda a diligência prover em todas as coisas que se requere provisão para bem dela.

E devem de ser homens abastados: por tal que a falta não os obrigue a deixarem

de fazer o que por razão de seus ofícios são obrigados por socorrer a suas

necessidades. E tanto que o Vedor da fazenda for provido no tal ofício, antes que

105 Homem, Armando Luís Carvalho. 1990. «Subsídios para o estudo da administração central no

reinado de D. Pedro I», Portugal nos finais da Idade Média, Estado, Instituições, Sociedade

Política, Livros Horizonte, Lisboa, p. 55 e ss

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comece a servir ou fazer alguma coisa que ao dito Ofício pertença, lhe seja dado

juramento pelo Chanceler Mor, segundo seu Regimento”.106

Desembargadores

Escrivão da Chancelaria

Juiz dos Feitos de el-Rei

Conjunto de subalternos

A organização do reino do ponto de vista administrativo sofre alterações evidentes

a partir da segunda metade do Século XIV, quer pela reformulação do Desembargo

Régio quer pela redução do número de funcionários que o compõem, quer ainda em

face da reformulação das competências que lhes são atribuídas.

O Desembargo régio, apresenta uma nova orgânica com novos cargos e com

funções mais concretas. Comporta o Desembargo os seguintes cargos: Chanceler-

mor, Corregedor da Corte e Vedor da Fazenda em função do que podemos

considerar o desenvolvimento de várias matrizes caracterizadoras da administração

da época: a matriz burocrática, financeira, judicial e política. Para além destes

cargos superiores comportava ainda o Desembargo outros cargos de menos

importância, de que se destacam os Desembargadores, Magistrados e o Escrivão da

Chancelaria.

Os Desembargadores, são funcionários que não têm atribuídas funções definidas

nem expressamente regulamentadas, estando apenas qualificados como vassalos do

Rei, tendo de forma mais ou menos esporádica exercido funções judiciais. Ainda

assim enquadravam-se num nível hierárquico bastante elevado na estrutura

funcional.

O Escrivão da Chancelaria, tinha atribuído um conjunto de tarefas de cariz

burocrático, tais como o registo das cartas nos livros da chancelaria.

106 Regimento dado aos védores da fazenda, systema ou collecção de regimentos reaes, contem os

regimentos pertencentes á administração da fazenda real, dado a luz por joze roberto monteiro de

campos coelho e sois a. tomo primeiro: Lisboa, Officina de Francisco Borges de Soisa, 1783

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15. A “matriz burocrática”. A sedentarização dos serviços. Os

funcionários da administração central: esferas de competência e

intervenção. O chanceler-mor: seu declínio e a ascensão dos

“secretários”.

A organização do reino do ponto de vista administrativo sofre alterações evidentes

a partir da segunda metade do Século XIV, quer pela reformulação do Desembargo

Régio quer pela redução do número de funcionários que o compõem, quer ainda em

face da reformulação das competências que lhes são atribuídas.

O Chanceler-mor, era o depositário do selo do rei e participante na preparação das

decisões do soberano, mas que com o andar dos tempos acabaria por ver reduzidas

as suas funções a assuntos de natureza eminentemente burocráticas, ligadas à

efectiva verificação da conformidade das cartas régias com as decisões tomadas,

seguida da aposição do selo e da publicação. O Chanceler-mor é assim ultrapassado

nas suas funções mais políticas com a criação do cargo de Escrivão da Puridade. E

verifica-se assim, a despolitização do desembargo em favor do aumento da sua

«burocratização». O primeiro ofício a destacar.se na coordenação do despacho

régio terá sido o «chanceler-mor». No século XIII, o «chanceler» coordenava o

conjunto dos oficiais da escrita, «escrivães», «notários», «tabeliães» e «guardas dos

selos».

Carvalho Homem, num notável estudo sobre as práticas administrativas do reinado

de D. Pedro I, baseando-se sobretudo na análise dos «escatocolo» das cartas régias,

data de 1361 as primeiras Ordenações conhecidas sobre desembargo das petições,

onde o «Chanceler» ou quem possuísse o selo, devia estar presente no desembargo

régio107. Depois de devidamente analisado na Chancelaria, o documento seria

firmado como selo régio, em princípio por si detido (ou ministro da sua

dependência, guarda- selos ou tenente dos selos). Só depois desta verificação a

ordem do rei, na sua expressão escrita, assumia a sua plena «autoridade pública».

107 Homem, Armando Luís Carvalho. 1990. «Subsídios para o estudo da administração central no

reinado de D. Pedro I», Portugal nos finais da Idade Média, Estado, Instituições, Sociedade

Política, Livros Horizonte, Lisboa, p. 63 e ss

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Apesar da Chancelaria ter um Arquivo e Secretaria fixos em Lisboa, o «Chanceler»

acompanhava o rei na sua itinerância.108

Nas Ordenações Afonsinas, conservou-se o destaque do «chanceler» como ofício

primordial da Casa Real. Com efeito, na segunda metade do século XV, o

«chanceler-mor» tinha uma actividade intensa, actuando como conselheiro do rei e

enviado às Cortes da Europa.109 O Chanceler-mor mediava as relações entre o Rei

e os homens, no que respeitava às questões temporais. Neste sentido, cabia-lhe

verificar da legalidade as decisões régias em face do quadro legal em vigor o

preceituado naquelas Ordenações.

As Ordenações Manuelinas vêm por seu lado, já nos primórdios do século XVI

delimitar as competências do chanceler-mor, no sentido em que lhe atribuía como

tarefas tudo o que se relacionasse com a correspondência real, comentar as cartas

dos desembargadores sempre que verificasse erros, contradições ou omissões, ao

que lhes colocar o respectivo selo. Era ainda sua atribuição publicar as Leis e

Ordenações, e o poder de atribuir «cartas de mercê” aos escrivães e dar juramento

a todos os oficiais dignos de registo na Casa Real, incluindo o escrivão da puridade,

tal como a todos os conselheiros do rei, validando com a sua assinatura e selo a

nomeação régia.

Até ao século XVII o chanceler continua a apresentar grande protagonismo quanto

à questão da correspondência real e confirmação documental, ainda que

paulatinamente viesse decrescendo a sua importância, sobretudo pelo granjear de

cada vez maior importância do «escrivão da puridade» e dos secretários de estado.

E sobretudo, a partir da intervenção castelhana em Portugal pela assumpção do

trono português por Filipe I e com a criação do Conselho de Portugal.

A “ascensão dos secretários” vai reduzir o poder político do Chanceler e confiná-lo

a uma posição meramente burocrática: a publicação das escrituras e a sua

conformidade com as decisões tomadas. Ainda assim, a sua importância ainda é

considerável e continuará a ser, como o estatuem depois as Ordenações Afonsinas,

108 Caetano, Marcello, Lições de História do Direito Português, op. cit. , p. 153 e ss

109 Freitas, Judite Antoniete Gonçalves de, «Temos por bem e mandamos», a burocracia régia e os

seus oficiais em meados de Quatrocentos (1439-1460), Dissertação de Doutoramento em História

da Idade Média, Faculdade de Letras, Universidade do Porto, Porto, 1999, vol. I, pp.88-96

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principalmente como elemento controlador do bom funcionamento da

administração.

O Escrivão da Puridade, de início será um secretário que pelas suas características

tinha privilégio junto do rei, e que detinha o selo particular do rei (selo de camafeu).

Com o tempo, adquiriu mais notoriedade e as suas funções vieram a constituir um

verdadeiro cargo político, o de primeiro-ministro do despacho, assumindo uma

função coordenadora dentro do Desembargo. Com efeito, todas as petições e cartas

passavam pelo escrivão da Puridade, as quais faria chegar depois ao funcionário a

quem o seu desembargo competisse.

O ofício surgiu no século XIII, cerca de 1250, no reinado de D. Pedro I, designando

um oficial do rei que «tinha à sua guarda o selo particular destinado a autenticar

as missivas (documentos de importância manifesta ou grande segredo) a que

apenas um círculo restrito devia ter acesso»110. Apenas a partir de 1250, a

designação «escrivão da puridade» passou a significar uma certa proeminência

sobre os restantes servidores do despacho. O rei procurou com este novo cargo

controlar a proliferação de ofícios de redacção, submetendo a este oficial os

«papéis» da Câmara régia.111

A emergência do «escrivão da puridade» absorveu o processo “administrativo”, os

mecanismos de decisão e mesmo o desenho das prioridades na execução dos

“negócios públicos”. O crescimento dos poderes do rei obrigou à manutenção da

continuidade das decisões, de forma a responder a todas as solicitações dos

vassalos: não haveria aumento do poder régio sem a correspondente capacidade de

tratar as «petições» dos vassalos.

O vedor da chancelaria, é o subalterno do Chanceler, com papel de intermediário

entre este e os restantes funcionários e com importante função administrativa. As

suas atribuições principais eram as de depositário do selo do rei e encarregado da

110 «Regimento» no reinado de Pedro I, em 1361. Segundo o conde de Tovar, a denominação não

surge no Regimento mas numa Carta Régia dada em Portela 20 de Dezembro de 1362, Conde de

TOVAR, «O Escrivão da Puridade», Estudos…, pp. 31-36

111 Fernão LOPES, Crónica de D. Pedro I, cit. por Francisco Trigozo MORATO, «Memória sobre

os Escrivães da Puridade...», p. 162

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elaboração das cartas régias. Participa ainda na preparação das decisões do

monarca.

16. A “matriz judicial”. A administração da Justiça Superior. O

corregedor da Corte (o “Ministro da Justiça”: atribuições de carácter

judicial, policial e administrativo). Os ouvidores da Corte e os

sobrejuízes da Casa do Cível.

O Corregedor da Corte, adquire estatuto próprio com as ordenações afonsinas, é no

tempo uma espécie de «ministro da justiça», competindo-lhe o conhecimento dos

feitos e desembargos vindos dos juízes ordinários dos locais onde o Rei estivesse,

de modo idêntico aos corregedores das comarcas. Tem ainda funções policiais e

administrativas, e a sua jurisdição compreende uma área de 5 léguas em torno do

lugar em que se encontra, com excepção das causas em que intervenham pessoas

notáveis ou nos casos de crimes graves. E das suas atribuições decorre ainda uma

acção fiscalizadora sobre os juízes e os meirinhos.

Os Sobrejuízes, dois clérigos e dois leigos têm funções no plano estritamente

judicial, sendo os encarregados das apelações dos feitos cíveis. Os dois primeiros

participam na relação do crime e todos com outros magistrados na relação do cível.

Os Ouvidores, por seu lado, distinguiam-se em ouvidores do crime e ouvidores da

portaria, sendo os primeiros em número de quatro, repartidos por duas audiências,

uma conhecendo de apelação nas causas dos presos e outra que acompanhava o

itinerário régio encarregados dos pleitos crimes e os segundos, ocupados com os

pleitos relativos, enquanto os segundos se encontravam ocupados com os pleitos

relativos à fazenda real. Estes integravam ainda um tribunal superior que se

designava de Audiência da Portaria.

17. A “matriz financeira”: a Casa dos Contos e os Vedores da

Fazenda.

O cargo de Vedor da Fazenda (de que existe já exemplo em 1372 e que sucedeu ao

porteiro-mor assegurando a administração superior do património real e da fazenda

pública à qual se associava atribuições contenciosas da esfera fiscal). Evidencia o

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desenvolvimento de uma fiscalidade permanente e organizada, no decurso da

estabilização das sisas assumindo-se os vedores da Fazenda como os responsáveis

pela administração dos direitos e rendas do Rei e do Reino. São normalmente

vários, entre três e quatro.

A Casa dos Contos tem origem no final do final do século XIII quando com D.

Dinis se começou a desenhar o embrião de uma repartição contabilística no que

viria a ser o primeiro órgão de ordenação e fiscalização das receitas e despesas.

Só a partir de D. João I se conseguiu a autonomia dos Contos. O seu mais antigo

Regimento data de 5 de Julho de 1389. Através dele tentava o poder central, com

os meios de coacção disponíveis, dominar e disciplinar a burocracia que aumentava

em número e abusos. Segue-se-lhe um segundo regimento em 28 de Novembro de

1419 e, com D. Duarte, um terceiro, em 22 de Março de 1434.

Denotam estes regimentos não só o intuito de alcançar uma maior eficácia da

contabilidade mas também, uma maior precisão e rapidez na liquidação e

fiscalização das contas.

17. A “matriz política”: o Conselho do Rei.

D. Afonso III e os “privados” do rei como consultores e assessores do monarca, e

em clara diferença com a Cúria Régia. Desde logo, no que se refere ao número de

entidades a escutar pelo rei e também pela não obrigatoriedade do seu recrutamento

entre os oficiais ou dignitários da cúria.

No segundo e terceiro quartéis do século XIV o Conselho tem nítido progresso na

sua organização e composição. Em qualquer circunstância o Conselho teve, regra

geral, papel de relevo na esfera da normação. O que significa que o Conselho se

afirma, sobretudo em matéria legislativa, tanto do lado do rei como em

sobreposição algumas vezes, De outro modo, o Conselho não adquire autonomia

senão apenas na medida em que o Rei o consinta.

Importante ainda, o facto de na sua evolução o Conselho para além de registar uma

tentativa de participação obrigatória de Conselheiros oriundos de todos os

estamentos, procurar incluir o conhecimento e a sabedoria dos homens do reino. Os

teólogos e juristas saíram amplamente beneficiados.

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18. As incidências da crise de 1383-1385 na administração central: As

cortes de 1385.

Reunidas em Coimbra em Março e Abril. Importância: Sancionaram juridicamente

a Revolução popular de Abril de 1384, sob a chefia do Mestre de Avis; Eleição de

novo Rei, instaurando nova dinastia; Definiram as regras de um regime

constitucional. A «ordem de trabalhos»: a. Atribuição da coroa; b. Financiamento

da guerra; c. Formulação dos habituais capítulos que a cada um dos três estados

podia propor à resolução régia. Composição: clero e nobreza, concelhos e letrados.

19. A legislação régia medieval e o objectivo da “utilidade da pública”:

o Livro das Leis e Posturas e as Ordenações de D. Duarte:

Instituição de juízes, proibição da vingança privada; as ideias da paz e do bom

governo; a intervenção “positiva” do rei em matéria de governo e administração

(sobretudo judiciária).

20. Remodelação do Conselho Régio e do Desembargo Régio.

Renovação dos quadros humanos e aumento do número de funcionários com

preparação jurídica universitária.

21. A fiscalidade como importante mecanismo de poder: O

lançamento de impostos gerais permanentes: as sisas gerais.

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22. A administração local: O poder senhorial

Já tivemos oportunidade de referir com algum pormenor as grandes questões que

conduziram à criação e forte desenvolvimento dos senhorios e a toda a vicissitude

que delas foram decorrendo ao longo dos séculos. Com efeito, a guerra com os

muçulmanos e a necessidade de organizar o território conquistado conduziu a que

a politica régia ao favorecimento da nobreza e à outorga de grandes espaços

territoriais que concretizaram os seus domínios e ao mesmo tempo, a transmissão

do exercício do poder tributário e aplicação da justiça em muitos dos casos.

Os senhorios têm desde logo, uma importância económica e geográfica que decorre

da necessidade de ocupação e reorganização territorial, implantando nos territórios

geográficos um maior, ou, menor agregado populacional que preservasse a

independência do território, o reorganizasse do ponto de vista económico e que

mantivesse uma ligação ao monarca e lhe garantisse o apoio e a ajuda sempre que

necessitasse.

Mas, também do ponto de vista politico, os senhorios são também os detentores da

autoridade e do poder nos domínios militar, judicial e fiscal, constituindo-se por

conseguinte “como o principal centro e o reordenador da vida social”,112

constituindo-se como o conjunto do exercício de poderes de chefia, de organização

das relações colectivas, de mando ou de arbitragem de conflitos, de redistribuição

dos excedentes de produção no seio da comunidade.113 Mas também fazem parte

integrante do mundo senhorial, as questões da vassalagem que ligam os senhores

feudais ao suserano e que são resultado de especialização guerreira dos detentores

de propriedade. É por este conjunto de motivos e, bem assim, em face de

proximidade do rei com a nobreza, tanto do ponto de vista da necessidade que tem

deste para alcançar os te desígnios de conquista e de manutenção do território, como

também para a manutenção, exercício e conquista do poder que lhe é indispensável.

Necessidade de administrar e fazer justiça em terras ocupadas e povoadas mas

isoladas em vastos espaços e longe do poder real. Coutos. Terras imunes, onde o rei

112 Mattoso, José. 1995. Identificação de um Reino...op. cit. p. 83

113 Id. P. 84

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renunciava a cobrar impostos, incluído a parte que lhe cabia nas multas ou

composições resultado da punição de actos delituosos. Privilegiado por carta que

delimitava a terra abrangida e demarcada pelo interessado mediante a colocação de

marcos ou padrões.

Coutos eclesiásticos e doações régias.

Honras.

Préstamos concedido aos nobres para remunerar serviços prestados ao rei,

representante da colectividade. O rei ficava privado de voz e coima (parte que

segundo o costume revertia para a coroa das sanções penais pecuniárias), de

achaque (tributo anual de 2,5% dos haveres dos mouros) de vida (constituída pelo

jantar ou comedorias a que o rei e seus representantes tinham direito quendo em

trânsito pelas localidades, mas que foi em muitos casos transformada em prestação

periódica regular, por vezes expressa em dinheiro) de anúduva (obrigação de

trabalho na reparação de castelos reais ou casas fortes) e da hoste (prestação militar

correspondente ao dever de incorporação no exército real quendo houvesse

convocação) e fossado (prestação militar correspondente à incorporação nas

expedições de defesa local próxima).

Beetrias. Colectividade de homens-livres, geralmente pequenas, que detinham o

privilégio de eleger o nobre que desejassem por patrono para seu senhor (tomar

senhorio) com a faculdade de mudar outro, quando se verificassem as

circunstâncias previstas nos costumes locais. Relação de patrocínio estabelecida

entre um homem livre, que não deixa de o ser, e alguém mais poderoso que o proteja

e favoreça.

Poderes de propriedade associados de apropriação indevida ou do legítimo

exercício de funções públicas conferidas ao senhor.

“Disseminação dos direitos próprios da soberania, numa fragmentação do

conteúdo desta e sua distribuição por diversos indivíduos, em cujo património

passam a fundir-se, misturando-se com direitos de índole privada e ingressando

com estes no comércio jurídico” (Paulo Mêrea)

Goza de imunidades, ficando vedada intervenção dos oficiais régios nos seus

domínios.

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Exercia os poderes que genericamente competiam ao rei (tributos, justiça, e

administração)

Agentes: mordomos e vigários

23. A administração local: Os Concelhos

Controvérsia da origem e evolução dos municípios

Assembleia de vizinhos para tratar de interesses comuns

Assembleia dos homens-bons

Concessão do rei ou do senhor como instrumento da sua política

De povoamento

De aumento da riqueza pública

De multiplicação de fontes tributárias

Reunião em vários sítios destacados:

na praça do concelho

debaixo de uma árvore secular no adro da igreja

Concelhos

Ordinários: reunião uma vez por ano para escolher o juiz ou juízes, os alvazis ou

os alcades

Extraordinários:

Concilium pregonatum (concelho apregoado), com a presença de todos ou quase

todos os chefes de família

Consilium (conselho restricto), formado por um número limitado de homens-bons,

a quem competia zelar pelos interesses do município (os alcaldes, os alvazis, etc.)

Atribuições

Posturas municipais

Eleição dos alcaldes (ou alvazis)

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Eleição de outros magistrados concelhios

Juízes (auxílio da Assembleia na aplicação da justiça)

Almotacés (Funções policiais e de sanidade)

Sesmeiros (repartição dos terrenos do concelho pelos vizinhos)

Mordomos (cobrança das rendas do concelho)

Bibliografia Aconselhada

Albuquerque, Ruy de e Albuquerque, Martim de. História do Direito Português

(1140-1415). Lisboa: PF, 1999, pp. 503-576

Barros, Henrique da Gama, História da Administração Pública em Portugal nos

Séculos XII a XV. Tomo I, Lisboa: Imprensa Nacional, 1885, pp. 1-70

Caetano, Marcello. História do Direito Português (Sécs, XII-XVI). Lisboa:

Editorial Verbo, 2000, pp. 111-118

Costa, Mário Júlio de Almeida, História do Direito Português. Coimbra: Almedina,

1992, pp. 149-157;

Herculano, Alexandre, História de Portugal: Introdução.Tomo I, Lisboa: Livrarias

Aillaud & Bertrand, s.d., pp. 28-109;

Caetano, Marcello. Estudos de História da Administração Pública Portuguesa.

Coimbra: Coimbra Editora, 1994, pp. 191-266

Homem, Armando Luís de Carvalho. Conselho Real ou Conselheiros do rei? A

propósito dos «privados» de D. João I, in Revista da Faculdade de Letras. Porto:

Universidade do Porto, 1987

Merêa, Manuel Paulo. “Organização Social e Administração Pública”. in História

de Portugal: Edição Comemorativa do 8º Centenário da Fundação da

Nacionalidade, II, pp 445-524

Homem, Armando Luís de Carvalho. Uma crise que sai d’“a crise”, ou o

Desembargo régio na década de 1380

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III. O ESTADO MODERNO E O PROCESSO DE DIFERENCIAÇÃO

ADMINISTRATIVA

24. O advento do Estado Moderno em Portugal

24.1. Dimensão e caracterização do novo conceito de Estado

O nascimento do Estado Moderno é caracterizado por um conjunto de

circunstâncias que promovem a ruptura com o estado feudal, alterando de forma

radical os pressupostos em que este último assentava e determinava de igual forma

a relação entre os indivíduos, a sociedade em que se integravam e as instituições.

Uma dessas circunstâncias é o aparecimento da dimensão individualista que destrói

de forma radical a ideia de ordem social e política que caracterizava a época feudal.

Tal ideia, consubstanciava-se na perspectiva de que a organização política decorria

da vontade de Deus e por conseguinte fixadas as regras pela ordem natural. Pelo

que “o individuo não estava, assim, na origem da constituição política ou da

organização social; era esta, pelo contrário, que lhe atribuía um determinado

papel social ou um certo conjunto de direitos e deveres”.114

Ora, a dimensão individualista, colocando o Homem no centro do mundo e que toda

a dimensão política depende da sua vontade põe em causa o equilíbrio tradicional

da sociedade anterior. E, por esse motivo, a constituição da sociedade decorre de

um pacto ou contrato cujas cláusulas dependem em exclusivo das partes. De igual

forma, todas as relações sociais passam a ser entendidas como sendo passíveis de

modificação por iniciativa das partes.

É neste contexto, que o Estado Moderno se vai concretizando, atribuindo à noção

de “Estado” uma importância decisiva e determinante no desenvolvimento das

sociedades humanas. O Estado, passa a ser o resultado de uma organização do poder

caracterizada pela racionalidade, generalidade e abstração, na qual, a primeira das

características consistia numa forma racional de organizar a sociedade, a segunda

114 Hespanha, A. Manuel. As estruturas políticas em Portugal na Época Moderna, … p. 2

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como uma forma abstracta e geral de regular a dimensão social e finalmente um

modelo impessoal de participação política.115

Para além desta dimensão do Estado do ponto de vista da estrutura do poder,

também o novo modelo de Estado tem origem num “Estado de monopolização

muito definido. O individuo foi despojado do direito de dispor livremente dos meios

do poder militar que está reservado a uma autoridade central, qualquer que seja a

sua forma”.116 E de igual modo, também a cobrança de impostos sobre os bens ou

sobre o rendimento de cada pessoa está igualmente concentrado nas mãos de uma

autoridade central da sociedade estabelecido que fica o monopólio do militar e

fiscal “as lutas sociais já não visam a eliminação do monopólio de soberania, mas

sim decidir quem deve dispor do sistema de monopólio, onde recrutar os seus

elementos e como distribuir os respectivos encargos e lucros. É com a formação d

etal monopólio permanente, detido pela autoridade central e de um tal sistema de

soberania especializado que as unidades de soberania adquirem o caracter de

«Estados» ”117.

O Estado, assume assim um conjunto de ideias força que o caracterizam de forma

determinante, como sejam a separação do público do privado, a autoridade da

propriedade e a política da economia. A promoção da concentração de poderes num

só polo, eliminando o plenamismo político, e o Estado instituiu um modelo racional

de governo.

O Estado moderno, tem no entender da maioria dos autores, foros de identidade a

partir do século XIII, fazendo a sua aparição na Europa dos Estados.

……

E que este vínculo eminentemente privado, se vai diluindo à medida que se avança

em direcção à Idade Moderna. Nos primórdios desta, inicia-se então a transição

para a manifestação de vínculos públicos que ligam os indivíduos ao centro político

da comunidade passando a concretizar-se na figura do cidadão, o qual, tem face aos

titulares do poder, direitos e deveres provenientes da sua posição natural dentro da

115 Vide, Weber, Max, Economia e Sociedade…

116 Elias, Norberto. 1990. O Processo civilizacional. Lisboa: D. Quixote, p. 93

117 Idem. p. .94

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comunidade. E, é nesta dimensão que o Estado, se vai assumir como o “único corpo

público que vive nas suas próprias leis e na sua própria substância intrínseca”118.

Com efeito, terão sido as transformações do direito público a conduzir ao respeito

dos princípios fundamentais do direito privado e, nesta medida, as “nossas

jurisdições estatais e da igreja e a imposição de modelos de conduta social,

procuram o respeito por aquelas regras essenciais do direito privado, em especial

do direito da família (casamento tridentino) e das obrigações (principio da culpa e

obrigações do foro da consciência) ”119.

De outro lado, o nascimento do Estado moderno, “encontra-se ligado à crise da

sociedade no século XVI, em consequência dos descobrimentos e da reforma

religiosa.

A disciplina imposta pela Igreja estava a ser colocada em causas e a autoridade da

casa já não era capaz de impor a disciplina, no momento em que as relações sociais

pareciam seguir novos modelos: o Estado tornou-se necessário neste momento para

restabelecer a ordem e disciplina sociais. Disciplina que é imperativa para os reis,

juízes, funcionários, etc”120.

É neste contexto que o Estado em Portugal também vai seguindo o seu caminho.

Se, no decurso dos séculos XII a XV, ele assenta numa perspectiva atomística, com

um poder político difuso, assente numa dimensão de força e de capacidade para os

eu uso, numa comunidade de interesses e de cultura próximas, ainda que em

construção e em crescimento, motivo pelo qual se pode entender a sua relativa

predominância na esfera pública, já a partir do século XVI se evidencia com clareza

a mudança a que se assistirá a partir daí.

O novo Estado adquire, por força das alterações sociais, políticas, culturais e

sobretudo económicas, uma dimensão claramente diferente. Já não assegura uma

certa hierarquia de poderes, mas assume-se como o poder. Não assenta na

atomicidade, mas ajusta-se no sentido do núcleo centralizado do poder. Já não

118 Ulmann, Walter, A History of Political Trought: the middle ages, op. cit. p. 206

119 Homem, António Pedro Barbas, O Espírito das Instituições. Um estudo de História do Estado,

Coimbra, Almedina, 2006, p. 41

120 Id. p. 42

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assegura apenas uma certa dimensão geográfica, mas passa a consagrar um

elemento aglutinador de uma comunidade dentro de um território, com uma cultura

própria e com uma dimensão social e política também específica.

A crise de 1383-85 consubstanciou de forma evidente esta dinâmica cultural, social

e económica, distinguindo o contexto povo e determinando a circunstância território

como elemento fundamental de tal povo. E, a natureza do novo Estado, ficará aqui

bem delimitada

O Estado moderno é caracterizado por dois tipos de processos. Um desses processos

é o da institucionalização, no sentido em que as suas funções são organizadas de

forma estável, traduzindo-se assim, na emergência de uma entidade abstracta, na

transformação do status dos governantes (órgãos do estado que exercem o poder

em seu nome), na subordinação ao direito, na transformação do poder em

autoridade e na existência de um aparelho estruturado e coerente de dominação,

pelo monopólio da violência legítima121, de que decorrem em três aspectos

principais, o poder de coacção legal, a possibilidade de uso da força física e o

monopólio do uso da força e da coacção. O outro processo é o da autonomização,

na medida em que se verifica uma delimitação uma delimitação das suas funções

colectivas.

25. A organização política e administrativa

25.1. As ordenações do reino e a legislação extravagante

O processo de codificação e arrumação de leis corresponde a uma fase de unificação

do poder régio, de organização dos regulamentos em vigor e consolidação da

orgânica do Desembargo e dos organismos da Cortes.

O seu ponto mais importante a partir das ordenações de D. Duarte, cerca de 1436 a

que se seguiram as Ordenações Afonsinas e finalmente as Ordenações Manuelinas

em versão definitiva de 1521. As primeiras e últimas vêm consagrar a delimitação

da expansão ultramarina portuguesa, respectivamente, e ambas traduzem a vontade

do rei no conhecimento e cumprimento da sua soberania.

121 Max Weber e Norbert Elias

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As ordenações traduzem-se num instrumento suficientemente capaz de consolidar

a centralização do poder real, criando uma estrutura organizada do ponto de vista

administrativo, delimitando funções e funcionários e delimitando medidas

administrativas, fiscais, legislativas e judiciais. E, particularmente, a organização

judicial vem a ser reforçada no sentido de passar a ser uma instância privilegiada

na administração nacional.

D. Manuel I, seguindo o percurso do seu antecessor, D. João II, vem organizar o

reforço do poder real, com a organização da justiça, orientando-se para uma

aplicação da justiça de forma mais simples e mais eficiente.

Interesse político na compilação:

Esclarecimento das funções e níveis de intervenção dos oficiais régios

Resposta às invectivas das Cortes

Tentar dirimir conflitos entre oficiais régios e delegados municipais

Plano administrativo:

Preocupação do monarca em assegurar a memória documental dos actos régios

anteriores

Execução da transcrição e a compilação dos diplomas régios para novos livros

25.2. As Ordenações Afonsinas e o inaugurar da definitiva consolidação

jurídica.

Por morte de el-rei D. Duarte, governando o reino na menoridade de D. Afonso V

o infante D. Pedro, ordenou o regente «que as ditas Ordenações e Compilação

fossem revistas e examinadas pelo Doutor (Ruy Fernandes), e pelo Doutor Lopo

Vasques, Corregedor da Cidade de Lisboa, e por Luiz Martins e Fernão Rodrigues,

do desembargo do dito senhor Rei». Esta compilação começou a vigorar em 1446,

e foi provavelmente lei geral do Estado até aos primeiros anos do reinado de D.

Manuel, reinado aliás fértil em leis que alteram e reformam a legislação.

As Ordenações Afonsinas, surgem na sequência de insistentes pedidos formulados

em Cortes, no sentido de ser elaborada uma colectânea do direito vigente que

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evitasse as incertezas derivadas da grande dispersão e confusão das normas, com

graves prejuízos para a vida jurídica e a administração da justiça.

E, tal concretização iniciar-se-ia com D. João I, que procurando a atender aos

pedidos feitos em Cortes pelos povos, mas, ainda assim, apenas em 1446/1447 (não

é possível afirmar uma data exacta), se procede à publicação das Ordenações, já no

reinado de D. Afonso V. Os trabalhos duraram os reinados de D. João I e de D.

Duarte, cabendo ao Infante D. Pedro, regente na menoridade de D. Afonso V, o

papel de grande impulsionador da conclusão da obra.

Não é no entanto, fácil precisar o início da sua vigência, já que na época, não existia

uma regra definida sobre a forma de publicitar os diplomas legais e o início da

correspondente vigência. Com as Ordenações Afonsinas procurou-se

essencialmente, sistematizar e actualizar o direito vigente na época, tendo na sua

elaboração, sido utilizadas diversas espécies de fontes anteriores, tais como as leis

gerais, as resoluções régias, as concórdias, as concordatas e bulas, as inquirições,

os costumes gerais e locais, os estilos da Corte e dos tribunais superiores, e ainda

normas extraídas das Siete Partidas e preceitos de direito romano (“leis imperais”

ou “direito imperial”), de direito canónico (“santos cânones” ou “decretal”) e

alusões ao direito comum.

Quanto à técnica legislativa, empregou-se, via de regra, o estilo compilatório, isto

é, transcrevem-se na íntegra, as fontes anteriores, declarando-se depois os termos

em que esses preceitos eram confirmados, alterados ou afastados. Noutras

passagens da obra (o Livro I, por exemplo), recorreu-se ao estilo decretório ou

legislativo, que consiste na formulação directa das normas sem referência às suas

eventuais fontes anteriores. Talvez por influência dos Decretais de Gregório IX, as

Ordenações Afonsinas encontram-se divididas em cinco livros, correspondendo a

cada um, certo número de títulos, com rubricas indicativas do seu objecto e estes,

frequentemente, acham-se divididos em parágrafos.

As Ordenações Afonsinas assumem uma importância destacada na história do

direito português. Constituem a síntese do trajecto que desde a fundação da

nacionalidade, ou, mais acertadamente, a partir de D. Afonso III, afirmou e

consolidou a autonomia do sistema jurídico nacional no conjunto peninsular.

Representam o suporte da evolução subsequente do direito português pois as

Ordenações que se lhes seguiram, pouco mais fizeram do que, em momentos

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sucessivos, actualizar a colectânea afonsina. Não apresentam, contudo, uma

estrutura orgânica comparável à dos modernos códigos e por isso se encontrem

longe de revelar uma disciplina jurídica completa. Trata-se, no entanto, de uma obra

que nada fica a dever quando comparada com outras compilações da época

elaboradas noutros países europeus.

Do ponto de vista político, a sua publicação liga-se ao fenómeno geral da luta pela

centralização política, que desde sempre foi perseguida pelos monarcas nacionais a

seguir a Afonso Henriques e, é perceptível uma acentuada independência do direito

próprio do Reino em face do direito comum, subalternizado no posto de fonte

subsidiária por mera legitimação da vontade do monarca.

As Ordenações Afonsinas oferecem à investigação histórica, um precioso auxiliar,

no sentido de melhor conhecer certas instituições, pelo menos de um modo tão

completo e em aspectos que escapam nos documentos em avulso da prática.

25.3. As Ordenações Manuelinas

Duraram pouco tempo as Ordenações Afonsinas. Já em 1505 se advogava a sua

reforma. Com efeito, nesse ano, D. Manuel encarregou três destacados juristas da

época (Rui Boto, Rui da Grã e João Cotrim), de procederem à actualização das

Ordenações do Reino, alterando, suprimindo e acrescentando o que entendessem

necessário. Dois motivos, se apresentam geralmente, como justificativos desta

decisão de D. Manuel, a introdução da imprensa, em finais do século XV, em

diversas vilas e cidades do país, facilita a difusão da obra, o que a concretizar-se, se

afigurava lógico que apenas ocorresse após uma cuidada revisão da colectânea. Por

outro lado, admite-se que um reinado pautado por momentos altos na gesta dos

descobrimentos, estimulasse D. Manuel a ligar o seu nome a uma reforma

legislativa de vulto.

Começou a reforma em 1505 «El-rei D. Manuel... Começou neste ano de mil e

quinhentos e cinco um negócio de muito trabalho, que foi mandar reformar as

ordenações antigas do reino, e acrescentar nelas algumas coisas que lhe

pareceram necessárias» (10) e tão interessado estava o monarca na reforma que

determinou que o reino se devia reger pelo novo código até 1521, altura em que se

publicam as Ordenações e que viriam a ser lei vigente até á publicação das

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Ordenações Filipinas, (1603) determinando por aquela ocasião D. Manuel que se

rompessem todos os exemplares das Ordenações antecedentes.

Depois de algumas atribulações próprias de um empreendimento desta natureza, a

edição definitiva das Ordenações Manuelinas acaba por ter lugar em 1521 (ano em

que morre D. Manuel). Com a sua publicação, e na sequência da Carta Régia de 15

de Março de 1521, determina-se a total destruição, num prazo de três meses, das

anteriores colectâneas, a fim de evitar possíveis confusões, sob pena de multa e

degredo.

As Ordenações Manuelinas, conservam a estrutura básica dos cinco livros,

integrados por títulos e parágrafos, a distribuição das matérias é semelhante à da

colectânea afonsina, assinalando-se, todavia, algumas diferenças de conteúdo, não

sendo possível falar de uma profunda e radical alteração do direito português, mas

tão-só, de meros ajustamentos de actualização.

Do ponto de vista formal, a obra marca um importante progresso de técnica

legislativa, que se traduz, sobretudo, no facto de os preceitos se apresentarem

sistematicamente redigidos em estilo decretório, ou seja, como se de normas novas

se tratasse, o que resultava num menor interesse para a reconstituição do direito

precedente.

26. A centralização do poder na autoridade régia: a organização da

fazenda régia

A centralização do poder régio, foi um processo cumulativo de intenções iniciado

nos primórdios da formação do reino português, conduzido por todos os reis desde

então, procurando com isso, a aquisição do poder político de forma clara,

eliminando os poderes periféricos ou pelo menos retirando-lhes espaço de

autonomia, sobretudo, aos nobres senhoriais e ao alto clero. Esta eliminação

periférica da estrutura do poder assentou sobretudo na publicização da justiça,

eliminando a grande intervenção da justiça privada e no controlo das finanças

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públicas, principalmente ao nível da recolha tributária e na organização burocrática

da estrutura administrativa.

Desde Afonso III que a tendência os monarcas portugueses foi a de reduzir o poder

dos vários agrupamentos sociais preferenciais, sobretudo da nobreza, especialmente

o poder que existia nos senhorios e que se assumia não raras vezes, como um

contrapoder, e do clero, principalmente o alto clero e as ordens religiosas que

reclamavam um estatuto especial e que se tornavam um obstáculo ao poder real,

quer reivindicando o não pagamento dos impostos, a aplicação da justiça e o

reconhecimento de um estatuto privilegiado na estrutura do poder.

Também D. Dinis, renovou esta tendência centralizadora, quer na aplicação das

inquirições, quer na reforma que procurou fazer no domínio legal para restringir o

poder da nobreza e do clero, quer no conjunto de realizações que promoveu para a

assumpção privilegiada do poder.

Esta tendência centralizadora, teve ainda maior desenvolvimento no domínio da

reorganização da administração central e a criação de um conjunto de figuras no

foro administrativo, fiscal e político e na tentativa de alteração dos princípios

orientadores da administração local, reforçando os poderes do rei e das suas

instituições sobre as decisões, as escolhas e as orientações do poder local e

nomeadamente pela nomeação de funcionários régios com força superior para

actuar ao nível dos concelhos, com a criação dos juízes de fora, da reorganização

administrativa do país e sobretudo dos concelhos.

O rei não aparece só como um grande proprietário sobre cujas terras, colonos e

instrumentos de produção ou comercialização o concelho não tem jurisdição

alguma, nem apenas como o senhor da terra que, à maneira senhorial, cobra

impostos e vigia a justiça. Começa a impor regras ao Concelho, tendendo a esquecer

a sua autonomia. Tal resultará de uma estratégia política para apertar os laços que

unem os concelhos ao rei e a ideologia começa a fazer os seus frutos, colocando o

rei acima de todos os interesses colectivos ou individuais. É assim esta forma que

os reis se assumem como protectores dos concelhos, contra as excomunhões dos

clérigos e os ataques da nobreza. No entanto, aina assim, a autonomia dos

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concelhos, integrando-se num corpo político de dimensão nacional e a cingir-se à

centralização estatal.122

É com D. João I que se verifica um reforço da centralização do poder do rei, por

duas razões principais: a primeira pelo início da codificação legal reduzindo a

margem de intervenção da aplicação privada do direito e a segunda pelas

disposições contidas na Lei Mental. É principalmente esta lei que visa regular a

transmissão dos direitos senhoriais e que reinicia uma longa luta contra os direitos

senhoriais, a qual só terminaria nos alvores do regime liberal. A Lei Mental, que

visava regular a sucessão dos bens da coroa e quando em caso de dúvida, o ónus da

prova pertencia ao procurador da coroa, pois a presunção era a de que os bens eram

património privado do rei. Ainda assim, em face das excepções que ficavam

traduzidas naquela lei e na confirmação régia das doações na sua maior parte, o

poder senhorial manteve muitas das suas prerrogativas.

A Lei Mental, tem ainda no que respeita à centralização do poder do rei, a

importância de, como dissemos atrás, reduzir a dimensão política e económica dos

senhorios. Efectivamente, a recuperação de terras da coroa doadas à Nobreza ou à

Igreja, e que posteriormente haviam sido de forma ilegítima ocupada, reveste

importância no acréscimo do poder económico e fiscal do reino, impedindo que

aquelas ordens privilegiadas continuassem a usufruir de direitos sobre terras que

não lhes pertenciam ou atribuindo impostos sobre as mesmas.

Mas, é com D. João I que o poder régio continua a evoluir no sentido de uma maior

centralização. É no domínio fiscal que tais passos se vão concretizando, porquanto

começa a ser claro que o processo fiscal é um importante mecanismo de exercício

e controle o poder político. E um desses mecanismos é a introdução das Sisas

Gerais123 como imposto que se traduzia na captação de receitas para o Estado com

122 Vide Mattoso, José .1995. Identificação de um País (1096-1325). Lisboa: Editorial Estampa. II

– Composição, p. 172-174

123 As Sisas Gerais eram um imposto indirecto que incidia sobre contratos de compra e venda ou

troca, exercido a nível municipal, de carácter temporário, tendo a sua existência desde o século XIV.

Mas em algumas circunstâncias os monarcas acabaram por se aproveitar de tal imposto, como

aconteceu com D. Fernando, tornando-o num imposto régio, o que levantava da parte do povo vivas

contestações.

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o intuito expresso de prover o reino dos montantes financeiros suficientes para os

encargos da guerra com Castela.

Seguindo a razão do estado fiscal, de procurar o máximo de receita com o mínimo

de oposição, D. João I, nas Cortes de Coimbra de 1387, fez aprovar as Sisas Gerais,

alargando o seu âmbito de aplicação a todo o território nacional e com carácter

universal. O que significava que, pela primeira vez, se criavam impostos de

aplicação generalizada a toda a população e com âmbito de aplicação territorial. As

tradicionais excepções à nobreza e ao clero deixam de ter aplicação, motivo pelo

qual estes estamentos levantaram alguma contestação ao seu pagamento. E, mais

importante ainda é que o imposto que se destinava a ser apenas transitório e por

período de um ano, transformou-se em imposto permanente com fundamento no

bem comum da nação, assinalando-se com isto o nascimento do estado fiscal

português.124

As sisas gerais seriam assim, o prenúncio da alteração dos laços senhoriais

tradicionais entre o príncipe e os seus súbditos, dando lugar a uma relação de poder

público, ao qual todos ficam subordinados de modo igual enquanto contribuintes.

Ainda no domínio da centralização do poder real, impõe-se referir ainda o tempo

de D. João I e as repercussões que as alterações provocadas pela crise de 1383-85

tiveram no desenvolvimento social, político e administrativo no Estado nacional a

partir dos inícios do seculo XV. E, para além da questão fiscal e territorial, também

a questão da justiça, adquiriu dimensão desde cedo o problema da aplicação da

justiça enquanto mecanismo diferenciador da posição hierárquica dos detentores do

poder no espaço nacional. A possibilidade de uma aplicação privada da justiça

conduziu a uma clara descentralização da estrutura do poder e de igual modo a uma

redução o peso régio. De modo que, a tentativa de colocar o rei como o centro e

topo da hierarquia de todos s senhores de Portugal impunha que a justiça e a

organização institucional do Estado como elementos preponderantes. Assim, o rei

chama a si as funções de chefe militar, de protector da igreja, de promoção da

expansão territorial (sobretudo até D. Dinis) e de prover ao enriquecimento do

território nacional, mas também de aplicador da justiça em exclusividade. É este

124 Vasques, Sérgio. 2009. A evolução do sistema fiscal português, in Revista Fórum do Direito

Tributário. RFDT, Belo Horizonte, ano 7, n.º 37, Jan-Fev

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106

aspecto que a partir de finais do século XIV se marca de forma diferenciadora as

funções régias, no sentido de que mediante o domínio do direito se produz um forte

mecanismo da imposição da disciplina social ou de dominação social. A

consolidação do Estado Nacional, sinónimo do forte papel do estado e da sua acção

centralizadora a partir do qual emanariam ordens para todo o espaço territorial do

reino com a necessária obediência numa relação hierárquica directa, é o exemplo

desta acção de centralização junto da justiça.125

Sabemos, no entanto, da dificuldade que assistia ao rei na fiscalização da obediência

das leis nacionais, por todos e em todo o território. O que transformava em maior

dificuldade a assumpção do quadro jurídico e da centralização da administração da

justiça, tanto mais que era claro também, a existência de um vasto conjunto de

forças que se opunham à vontade do rei e procuravam impedir tais medidas.

Ainda assim, os monarcas a partir de D. João I, procuravam com denodo a

centralização e fiscalização da justiça, quer com recurso à codificação jurídica, quer

com o recurso à nomeação de funcionários régios que no espaço nacional pudessem

assumir o encargo de fazer cumprir as decisões régias

Ora, este conjunto de acções ais ou menos concretas, não podia ter tido

consequências práticas se não estivesse fundada num conjunto de que questões que

se resumem à cultura, ao ensino e à educação de uma arte da população, sobretudo

ligada à Igreja. Com efeito, a aposta de Afonso III no ensino superior e sobretudo

no ensino do Direito daria os seus frutos. Os letrados, juristas formados no estudo

do Direito Romano Justiniano, vêm prestar um fundamental auxílio na elaboração

das leis mais importantes que a partir de Afonso III começam a ser decretadas e que

assumindo um âmbito de aplicação geral se vão impondo àquelas que vigoravam

localmente. E, começam a partir daqui a criar-se os órgãos de carácter

administrativo especializado, sob a autoridade régia e principalmente os de natureza

judicial. É, pois, com estes letrados, proeminentes juristas que, na proximidade do

rei, se vão construindo os suportes para o desenvolvimento do domínio político do

monarca sobre os restantes agrupamentos sociais.

125 Caetano, Marcello, História do Direito Português, op. cit. p.

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107

Mas, se com D. Afonso IV, esta tendência, fica de algum modo, em suspenso, pois

este permitirá de novo o reforço dos poderes da nobreza e do alto clero, D. João II

vem de forma definitiva impor a centralização do poder, o reforço da sua posição

dominante no seio das restantes forças sociais, e a determinar com rigor o

significado do poder absolutizado. A redução do domínio senhorial, para o que

contou com o apoio das cortes em 1481, a delimitação das confirmações régias e

uma acção concertada junto da nobreza e alto clero, permitiu-lhe assumir o novo

paradigma que, na Europa começava a dar os seus primeiros passos: a absolutização

do poder real.

Os seus sucessores, sobretudo D. Manuel I e D. João III, confirmariam e

aprofundariam a política absoluta do rei e centralizadora do Estado, contribuindo

decisivamente para o aparecimento e desenvolvimento do estado absoluto

português.

27. A centralização do poder na autoridade régia: Corregedores e

juízes. Conselheiros e validos

A centralização do poder na autoridade régia foi no decurso dos séculos de

formação do estado nacional, um dos principais objetivos dos vários monarcas

como em várias ocasiões já referimos. Nesta dimensão, adquire especial

importância a nomeação por parte dos reis, de vários oficiais régios, cujas

atribuições principais decorriam da representatividade real junto dos vários estratos

populacionais e junto das várias circunscrições geográficas.

Um dos instrumentos que permitiu o desenvolvimento do poder régio foi a criação

dos corregedores, oficiais régios que assumindo funções variadas, desde as

administrativas às judiciais pretendiam organizar e estruturar o poder central junto

das populações e das várias regiões do país.

A sua mais antiga menção, data de 1278, mas entre esta data e 1323 foi a mesma

usada de forma pouco regular, pelo que é nesta última data que a função adquire

maior importância com a nomeação por D. Dinis de um corregedor para a região de

Entre Douro e Minho com o intuito de fazer justiça e «corregimento» sobre todos

aqueles que praticassem malfeitorias na região. A sua alçada “estendia-se sobre os

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meirinhos, juízes e tabeliães, cumprindo a estes últimos dar-lhe notícia de todos os

crimes praticados para que os pudessem punir dum modo exemplar”.126

É no entanto, com Afonso IV que a função assume permanência institucional,

através da publicação de uma lei de 1330, mas é só com o Regimento datado de

1332 é que adquire estabilidade a figura do corregedor. As suas atribuições

passaram então a incluir o conhecimento da existência de bandos de criminosos, a

sua origem, e a promover a efectiva aplicação da justiça, o saber com recurso a

pregão público da existência de querelas com o alcaide-mor por parte dos

moradores, com os juízes ou outros poderosos.

Ainda no âmbito das suas competências, devia conhecer como se comportavam, no

exercício das suas funções concelhias, os agentes autárquicos na sua esfera pública

e privada e como administravam o dinheiro proveniente das rendas dos concelhos.

Uma inovação importante, foi a da “nomeação por parte do corregedor, de seis

homens bons que teriam a seu cargo a incumbência de trocarem opiniões, em local

apartado, sobre o governo da terra”.127 Significava portanto, a criação de uma

espécie de órgão de conselho do corregedor que o ajudava nas decisões mais

importantes do governo do concelho e seus termos.

Os corregedores, tinham por conseguinte uma importante função, enquanto

funcionários régios, nomeados directamente pelo rei, devendo por isso, ser

escolhidos de entre aqueles que de forma geral fosse homens bons, honrados,

entendidos na sua missão e sem qualquer tipo de suspeita. Com efeito, procurava-

se já, neste tempo, a moralização do sistema judicial e fiscal, uma vez que,

sobretudo nas zonas do interior norte do país, o desempenho de tais funções era

tratado de forma pouco ortodoxa. É que, uma série de questões tinham levado o rei

a agir junto dos lugares, quer porque os poderosos em muitas situações recorriam

ao abuso do poder como forma de intervenção, quer porque a peste negra, obrigava

126 Moreno, Humberto Baquero. A presença dos corregedores nos municípios e os conflitos de

competências (1332-1459), p. 77

127 Moreno, Humberto Baquero. A presença dos corregedores nos municípios e os conflitos de

competências (1332-1459), p. 77

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a uma intervenção régia, sobretudo por causa dos testamentos e respectiva

execução.

A competência dos corregedores era, portanto, de inspecção judicial, e no âmbito

de tais funções se justifica o conhecimento dos processos em que fazem parte os

juízes e magistrados locais ou os poderosos. Ainda assim, muitos são os exemplos

em que os corregedores são apontados como tendo praticado abusos, tentando a

sobreposição face à justiça local.

O certo, é que os corregedores foram em mutas ocasiões vivamente atacados

sobretudo pelos representantes do povo, nas cortes realizadas, por não cumprirem

a sua obrigação, motivo pelo qual os conflitos entre aqueles e as autoridades

municipais era recorrente.

Esta constante incompatibilidade entre os corregedores e os concelhos, levaria a

que em 1459, nas cortes de Lisboa, se apresentasse uma proposta para a sua

extinção, em face das acusações de destruidores públicos. Ainda que não houvesse

decidido em favor da pretensão apresentada, Afonso V dava razão aos concelhos e

prometia a instauração de inquéritos sobre as suas vidas, prometendo de igual forma

a redução substancial do seu séquito, o qual seria constituído pelo chanceler,

escrivão da chancelaria, tabelião geral e meirinho com os seus homens.128

As comarcas, onde os corregedores exercem a sua acção fiscalizadora e justiceira,

são circunscrição administrativa que dividiam o território nacional, com um número

muito variável, desde a altura da sua criação, pelas ordenações manuelinas, com 27

comarcas, 38 no final do século XVIII e 48 no final do Antigo Regime em resultado

da Lei de 1790, que diminui o peso dos donatários, deixando estes de poder nomear

os corregedores dentro das suas donatarias, e também pela redução do peso político

dos próprios corregedores.

Cada comarca tem o seu corregedor, sendo ele o mais importante elo de ligação

entre as comunidades locais e as instituições centrais. As ordenações afonsinas,

descrevem com minucia as funções do corregedores, atribuindo-se-lhes vastas

funções administrativas e judiciais, julgando em primeira instância as causas das

pessoas poderosas, prover a defesa dos direitos reais, nomeadamente, quanto a fisco

128 Barros, Henrique da Gama. História da Administração Pública….op. cit. Tomo XI, p. 200-201

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e aos forais, o exercício da tutela da legalidade e do mérito das autoridades locais.

Quanto às suas funções de polícia, as suas competências permitiam a determinação

da realização das obras públicas nos concelhos (estradas, poços, pontes, chafarizes).

E, podiam ainda, proceder a inquirições anuais do modo como os magistrados e

funcionários locais exerciam os seus cargos.

Os juízes de fora, eram oficiais de nomeação régia e tinham como atribuição

principal a substituição da justiça concelhia em casos de prevaricação ou deficiente

aplicação da justiça. O seu mandato era de três anos, devendo trabalhar nos lugares

e seus termos (ordenações filipinas).

A distinção do juiz de fora face ao juiz ordinário decorria dos primeiros, serem

letrados, com formação jurídica e por consequência de nomeação régia.

No entanto, os juízes de fora, não eram em muitas circunstâncias bem acolhidos,

por colocarem em causa a escolha dos juízes pelos povos, julgando estes como uma

situação violadora dos seus foros e porque representavam grandes encargos

salariais a custear pelos concelhos.

A razão justificativa por parte do rei era a de que, em muitas circunstâncias os

juízes ordinários não julgavam e aplicavam a justiça e forma correcta, quer porque

sendo eleitos pelos seus pares e outras vezes por influência de algum poderoso, quer

porque tinham de julgar os casos dos seus familiares e parentes, o que diminuía a

necessária objectividade. Mas, os monarcas tinham também outra intenção, nem

sempre apresentada que se atinha à sua perspectiva de centralização do poder e

consequente redução da autonomia dos concelhos.

A sua instituição deve-se a Afonso IV, embora houvesse notícia deles em épocas

mais antecedentes, e uma das atribuições mais importantes era a de presidirem à

vereação municipal, em conjugação com funções de polícia, com a

responsabilidade da segurança das ruas, fiscalização de hospitais, etc.

Os conselheiros,

A figura do valido diferenciava-se dos conselheiros privados que existiram ao longo

da história, porquanto estes detinham a exclusividade das decisões políticas,

assumindo a condução dos destinos do poder, em nome do monarca. Com efeito,

os validos tinham uma enorme proximidade ao poder, uma vez que acabava por ser

o favorito entre todos os privados. Foi sobretudo no decurso dos finais do século

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XVI e com maior ênfase nos tempos do domínio filipino que a figura do valido

adquiriu maior importância. E principalmente, porque o valido assumia em primeira

instância os confrontos políticos com as várias forças sociais que contestavam a

figura do monarca. Assim, as queixas da governação espanhola, foram na maior

parte das vezes canalizadas contra o valido, deixando espaço e resguardo ao rei, em

face do afastamento por parte da nobreza portuguesa relativamente ao centro de

decisão política.

As imposições fiscais, o reforço administrativo, a repressão de revoltas e clientelas

rivais, encontravam-se no desígnio de actuação dos validos, pelo que em face das

vicissitudes das monarquias, os validos “representavam” os reis nas suas acções

mais contundentes. Agiam de forma objectiva e ao mesmo tempo, resguardavam a

imagem dos seus monarcas atenuando as críticas dos opositores.

Após o final da Regência, em 1662, o corpus politicum conheceu uma fórmula

governativa já conhecida e duramente criticada durante a União Dual: o Valimento.

O Conde de Castelo Melhor, nomeado Escrivão da Puridade, para além de ter dado

um impulso decisivo à guerra, reformulou as fórmulas políticas tradicionais na

Corte Portuguesa, que em parte colidiam com o sistema polissinodal que fora

dominante até lá. Este é considerado o momento sintomático da luta entre facções,

que grassou na Corte Portuguesa desde 1640..

28. O Desembargo do Paço

O Desembargo do Paço, durante muito tempo não teve estrutura autónoma, estando

a subordinado à Casa da Suplicação, da qual viria a ser separado dessa apenas na

publicação do seu regimento especial em 1521 no quadro das Ordenações

Manuelinas. Transformou-se então no Tribunal dos Desembargadores do Paço,

agregando às suas funções a revisão de processos julgados pela Câmara do Cível

ou da Suplicação.

O regimento de 1521 estabelecia como algumas de suas atribuições, expedir, em

nome do rei, alvarás e provisões referentes à questões judiciais, graças e mercês;

despachar os alvarás de fiança; receber e despachar petições e perdões; comutar as

condenações ou penas. Deliberava também sobre petições, confirmava a eleição de

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magistrados, reconhecia sentenças, perfilhamentos, doações e concedia cartas de

privilégios de habitação e de legitimação

É todavia, sob o impulso de D. João II que em 30 de Maio de 1533, o Tribunal do

Desembargo do Paço, foi criado e se transformou talvez na mais importante

instituição do sistema político do Ancien Regime, tendo sofrido alterações

sistemáticas mais ou menos profundas, em 1564 e 1586 e principalmente em 27 de

Julho de 1582, nas Ordenações Filipinas, com a introdução de um novo regimento.

Depois ainda, em 1607 e 1641, novos aditamentos orgânicos e funcionais.

Já nos finais do século XVIII sofre o Tribunal novas alterações, de que se destacam,

uma na sequência da Carta de Lei de 19 de Julho de 1790, na qual se determina a

extinção das ouvidorias e as isenções de correição, outra pelo Regulamento de 7 de

Janeiro de 1792 na qual se ampliam as competências do Desembargo, quanto aos

territórios de intervenção dos donatários, dos juízes de fora e quanto à anexação dos

concelhos ou sobre a sua criação. Outra ainda, pela Carta de Lei de 17 de Dezembro

de 1794, para proceder à organização das reuniões dos censores da extinta Real

Mesa Censória nas instalações do Desembargo do Paço, ficando as inspecções a

cargo do Santo Oficio, arcebispos e bispos quanto à matéria episcopal e pontifícia

enquanto para o Tribunal ficavam as matérias de autoridade régia, e deque resultou

a criação da Secretaria da Revisão.

Por fim, nos inícios do século XIX, o Desembargo por alvará de 22 de Abril de

1808 passaria a ter uma nova instituição no Rio de Janeiro, designada «Mesa do

Paço e da Consciência e Ordens» que passava a tratar dos assuntos do Desembargo

do Paço, da Mesa da Consciência e Ordens e Conselho Ultramarino.

Foi extinto em 1833 no final da guerra civil que opôs liberais e absolutistas nos

primeiros anos depois da Revolução Liberal, sendo as suas funções distribuídas

pelas secretarias de Estado, pelo Supremo Tribunal de Justiça e pelos demais

juízes.129

129 Subtil, José Manuel Louzada Lopes. 1993. Os poderes do centro: Governo e Administração. In

Mattoso, José (Dir.) História de Portugal: O Antigo Regime (1620-1807). IV Volume. Lisboa:

Círculo de Leitores, pp. 157-272

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113

Durante vários séculos o tribunal do Desembargo do Paço constituiu o «núcleo»

central do dispositivo institucional da Coroa, tendo desempenhado um papel

fundamental no quadro da administração da justiça.130

Até ao reinado de D. Sebastião, o Desembargo do Paço foi presidido pelo próprio

monarca, tornando-se a maior instância jurídica do reino, com alargamento

sucessivo de suas atribuições. Porém, não podemos esquecer que o Desembargo do

Paço possuía também uma competência ampla e diversificada no plano

administrativo e político.

No plano administrativo-jurídico era directamente responsável pela gestão da

magistratura letrada, tanto central como periférica; confirmava as eleições de juízes

ordinários, para além de examinar tabeliães e escrivães; arbitrava conflitos entre os

demais tribunais da Coroa, concedia a revista das sentenças, aconselhava o rei em

matéria de perdão nas causas de crime, decidia legitimações, adopções e cartas de

doação, concedia dispensa de idade e de nobreza, concedia alvarás de fiança e

perdão de delitos de certos crimes.

No plano político, o Desembargo do Paço, “consulta o rei quanto à reforma e

revogação das leis e aprovação de novas medidas legislativas; aconselha o rei ou

o regente quando este o solicita; aprecia e propõe a aprovação de bulas e breves

papais para introdução no reino, depois de exame do Procurador da Coroa

(beneplácito régio); autoriza a concessão de mercês e a instituição de morgado e

capelas”.131

130 João Pinto Ribeiro, não poupa nos elogios ao tribunal, considerando-o “o próprio e

verdadeiro conselho doas senhores reis deste reino; porque nele e com os ministros dele se

aconselharam sempre: com ele resolviam e resolvem as matérias, que só lhes tocam como a

reis e em que consiste a essência e substância da soberania real e o ser de rei. De modo, que o

mesmo é tribunal do paço, que conselho de sua majestade enquanto rei e senhor soberano. O

mesmo é desembargor do paço que conselheiro. estes são os senadores de que propriamente se

diz serem parte do corpo do príncipe”, João Pinto Ribeiro. 1729. Lustre ao Dezembargo do

Paço, in João Pinto Ribeiro, obras varias sobre varios casos, com tres relaçoens de direito, e

lustre ao dezembargo do paço, às eleyções, perdões, & pertenças de sua jurisdicçao. Coimbra:

J. Antunes da Sylva, -3 p. 7

131 Homem, António Pedro Barbas. 2006. História das Instituições: Um Estudo de História do

Estado. Lisboa: Almedina, p. 159

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114

E enquanto órgão de governo, a sua competência incluía, a “preparação do

provimento de todos os ofícios judiciais (lugares de letras), nomeadamente,

desembargadores, juízes da Coroa e Fazenda, ouvidores do crime, corregedores e

juízes de fora, o provimento de todos os ofícios de justiça, nomeadamente, escrivão,

porteiro e outros, a confirmação da eleição dos vereadores e de outros titulares de

órgãos do poder local”.132

A revisão e a censura dos livros constituíam também uma atribuição deste tribunal;

possuía, por outro lado, competências no plano da «graça», assistindo o rei na

tomada de decisões que extravasavam o terreno da justiça; por fim, o Desembargo

do Paço teve algumas iniciativas legislativas, intervindo em diversos domínios da

sociedade portuguesa dos finais do Antigo Regime.133

Do ponto de vista da sua composição, o Desembargo do Paço tem um Presidente,

escolhido entre a principal nobreza e desembargadores de carreira, sem número fixo

– entre cinco a de, por vezes mais -. Os desembargadores são magistrados de

carreira, s quais chegam ao topo pela idade, experiência e prestigio profissional e

social. A “sua nomeação é o coroar de uma longa carreira judicial como juiz de

fora, corregedor, desembargador numa Relação ou logo na Casa da Suplicação,

antecedendo finalmente, a nomeação para a Mesa do Desembargo do Paço”134.

Quanto à sua organização interna, o Desembargo do Paço integra quatro

repartições, a repartição dos Cargos, a Repartição das Justiças e do Despacho da

Mesa, a Repartição das Comarcas e a Mesa do Desembargo, chefiadas por cinco

escrivães, um para cada repartição, e um escrivão do despacho para a mesa. A Mesa

tem ainda um tesoureiro, um distribuidor e vários outros oficiais.

29. As reformas Administrativas de D. Manuel I

132 Homem, António pedro Barbas. 2006. História das Instituições: Um Estudo de História do

Estado. Lisboa: Almedina, p. 160

133 Subtil, José Manuel Louzada Lopes. 1996. O Desembargo do Paço (1750-1833), Lisboa,

Universidade Autónoma de Lisboa,

134 Homem, António pedro Barbas. 2006. História das Instituições: Um Estudo de História do

Estado. Lisboa: Almedina, p. 160

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115

29.1. Regimento dos Oficiais das Cidades, Vilas e Lugares destes Reinos

29.2. A reforma dos forais e as implicações na administração local

29.3. A organização da Fazenda régia: O Conselho da Fazenda

30. As modificações introduzidas por D. João III no panorama da

administração pública.

30.1. O regimento da Fazenda de 1560

30.2. O Conselho de Estado

O Conselho de Estado, decorre de forma directa das sucessivas reorganizações que

a Cúria Régia foi tendo ao longo dos vários reinados dos monarcas nacionais a partir

de Afonso Henriques. E também foi tendo as suas alterações em função da doutrina

que no decurso dos séculos XIII, XIV e XV se foi estabelecendo um pouco por

todas as monarquias europeias, e de forma evidente a partir do século XVI em

Portugal com o período de dominação filipina.

As raízes medievais do Conselho de Estado podem resumir-se na expressão

Consilium atque Auxilium a qual sintetiza, os deveres daqueles que deviam auxiliar

e aconselhar o Rei sempre que para isso fossem solicitados, deslocando-se até à

Cúria que o acompanhava. Progressivamente o Conselho, que adquiriu força e

individualidade face à Cúria Régia, foi-se constituindo como um órgão algo

heterogéneo, onde tinham assento todos os altos dignitários, tanto laicos como

eclesiásticos, encarregues de aconselhar o Rei em diversas matérias, especialmente

nas ligadas à justiça.

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116

Um dos principais teóricos sobre o Conselho ao rei e sobretudo sobre a sua

necessidade e importância é Juan de Santa María, comissário da Cúria Romana e

capelão de Felipe III, que entende que o “Conselho” é a alma, a razão ou a

inteligência do próprio Estado. Com o “Conselho”, o Príncipe consegue dominar,

não através da sua vontade, mas em função da sua razão, o que lhe permite a

aceitação pelo povo. Pelo que, sempre que o Príncipe que se afaste das resoluções

do “Conselho” entre no domínio imoral e anti-cristão da tirania. Com efeito, “Se o

monarca, seja ele quem for, se decidisse apenas pela sua cabeça, sem acudir ao

seu Conselho ou contra o poder dos seus conselheiros, ainda que acertasse na sua

resolução, sairia dos termos da monarquia para entrar nos da tirania.”135

Também pelo mesmo tempo histórico, Furió Ceriol, protegido de Carlos V e

bibliotecário do seu filho Felipe II, faz do Conselho a apologia, considerando-o

fundamental para a ajuda do Príncipe na governação. Defende, pois que “o

Conselho do Príncipe realmente não é senão um, porquanto não tem mais do que

uma cabeça, que é o Príncipe, é todavia necessário que seja dividido em muitas

partes, as quais terão para com o Príncipe as mesmas responsabilidades que têm

as pernas, braços e outros membros, os quais, ainda que diferentes em lugar, forma

e ofício, vemos que não formam mais do que um homem”.136

O Conselho é na sua perspectiva um órgão fundamental para o Príncipe,

assegurando que as suas decisões são as mais hábeis, as mais importantes e

sobretudo, aquelas que o ajudam na sua relação com os governados. O Conselho “É

para com o Príncipe como quase todos os seus sentidos, o seu entendimento, a sua

memória, os seus olhos e os seus ouvidos, a sua voz, os seus pés e as suas mãos;

para como povo é pai, é tutore curador; e ambos, digo o Príncipe e o seu conselho,

são tenentes de Deus cá na terra. Daqui se segue que o bom conselho dá perfeito

ser e reputação ao seu Príncipe, sustenta e engrandece o povo, e os dois, digo o

Príncipe e o seu conselho, são bons e leais ministros de Deus.”137

135 Cf. Juan de Santa María. 1615. Tratado de república y política cristiana,

136 Cf. Ceriol, Furió. 1559. El Concejo e Consejeros del Príncipe,

137 Cf. Ceriol, Furió, 1559. El Concejo e Consejeros del Príncipe,

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117

Pelo que, e “Resumindo, a dedicação, a coragem, a probidade e a capacidade

fazem a perfeição do conselheiro de Estado, e o concurso de todas estas qualidades

deve encontrar-se na sua pessoa.”138

O conselheiro do Príncipe, aquele que deve ser o bom conselheiro, o perfeito bom

“conselheiro”, deve ter um conjunto de características destrinçadoras dos simples e

comuns assessores, deverá ser aquele que, virtuoso solicita a confiança do Príncipe

e “que não pode consumir em deliberações o tempo de actuar, que deve falar com

agudeza, que deve ser pronto no acudir e fácil no entender, que deve ser claro no

ensinar e contido no humor” esse é o “conselheiro.” 139

Era o Conselho, um órgão de debate e de consulta, procurando auxiliar o Rei nas

suas decisões, mais difíceis, o que permitia a ocorrência de divergências entre os

seus membros, em face da existência de conflitos entre os interesses dos diversos

grupos que estes representavam, de pressões das diversas forças políticas,

condicionando o debate, a decisão política e, como desfecho, os rumos do poder e

da governação.

No entanto, ainda que os Conselheiros houvessem de apresentar um conjunto de

características diferenciadoras face aos simples assessores ou outros funcionários

régios, em consequência da própria natureza humana, nunca poderiam ser

totalmente isentos ou livres de preconceitos e daí a formação de facções políticas

que, mais uma vez, tentavam influenciar num ou noutro sentido.

Nestes termos, pertencer ao Conselho de Estado significava fazer parte da principal

elite governativa do Reino, onde as estratégias de manutenção e exercício do poder

se associavam a fórmulas próprias para a influência das instituições e do poder

decisório. Devendo os conselheiros opinar sobre um conjunto vasto de acções,

desde a guerra, a comunicação com os Vice-Reis, as matérias diplomáticas, como

a correspondência com os embaixadores ou os casamentos régios, observando as

138 Cf. Armand-Jean du Plessis, El Criticón, 1651-1657

139 Bento, António, O Príncipe, o Conselho de Estado e o Conselheiro. www.lusosofia.net, 2008

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práticas dos governos estrangeiros, fossem eles amigos ou inimigos. Teriam,

principalmente, de pugnar pela defesa, conservação e aumento do Estado.140

O nosso Bartolomeu Filipe, na sua Arte de Roubar , vê o Conselho de Estado como

“a âncora de que pode perder-se ou salvar-se toda a Republica, e é ele quem olha

por ela, é a alma da Republica, e é como a prudência no homem que olha para o

proveito de todo o corpo. Com que neste conselho se determina devem conformar-

se todos os outros conselhos cada um por si e todos juntos. Chama-se ao Conselho

de Estado o Conselho da Paz porque sua principal intenção é procurar que toda a

Republica viva em paz, que este é o fim para que se institui o conselho de Estado,

que não se fazem as guerras senão para viver em paz”141, pelo que o Conselho de

Régio deveria ser o primeiro na hierarquia conciliar.

Para outros importantes autores da era moderna portuguesa, tais como António de

Sousa Macedo142, Francisco Manuel de Melo143 que lhe atribuía a designação de

Conselho Supremo, “o último onde chegavam os maiores”, ou Sebastião César de

Meneses,144 para quem o Conselho Régio era, no contexto da governação, o órgão

político mais importante. O eclesiástico Nicolau de Oliveira também expressa a

opinião de o Conselho de Estado, deveria ser a instituição do topo hierárquico da

estrutura polissionodal.

É neste contexto histórico e doutrinário que o Conselho Régio se vai afastando da

Cúria Régia tornando-se o conselho cada vez mais referenciado, passando a ser

140 Pedraza, Francisco Bermudez de. 1973. El Secretario del Rey, Madrid: Instituto Bibliográfico

Hispánico,

141 Bartolomeu Filipe, a Arte de Roubar

142 Macedo, António de Sousa. Armonia Política dos Documentos Divinos Com as Conveniências

d’ Estado. Exemplar de Principes no Governo dos Gloriosíssimos Reys de Portugal, Haya: Samuel

Brow, 165

143 Melo, Francisco Manuel. 1720. Aula Politica. Curia Militar. Epístola declamatória ao

Serenissimo Principe D. Teodozio e Politica Militar. Lisboa, e Tacito Portuguez. Vida e Morte,

dittos e feytos d’ El Rey Dom João IV de Portugal. Pref. e leitura do manuscrito por Raul Rêgo,

Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1995

144Meneses, Sebastião César. 1650. Summa política, oferecida ao Principe D. Theodosio de

Portugal, Amesterdam: Tipographia de Simão Dias Soeiro Lusitano.

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119

apontado como “o órgão básico da administração, o órgão supremo do governo,

formando um corpo unido com o Rei.”145 Neste sentido, a Cúria afastou-se

progressivamente para um campo teórico, ao contrário do Conselho, que lentamente

evoluiu para um órgão mais preciso e definido junto do monarca.

Quanto à composição orgânica do Conselho, integravam-no os três principais

oficiais régios, o chanceler, o mordomo e o alferes, ainda que outros oficiais

também o integrassem. Poderia incluir alguns ricos- homens, o capelão, alguns

clérigos, juristas e sobrejuízes.

Do ponto de vista da historiografia nacional, é nas Cortes de 1385, realizadas em

Coimbra, que os povos pediram ao monarca para que a sua governação tivesse o

auxílio de um conselho representado pela Nobreza, pelo Clero, por cidadãos das

quatro maiores cidades do reino e diversos letrados. Deveria ter, como funções para

além de auxílio ao rei, outros poderes de consulta e vinculação, que implicassem

que nada se revolvesse no plano governativo sem a sua consulta e sem um certo

consenso.146 Tomando como bom este pedido, ainda que o não respeitando na

íntegra, D. João I teve o cuidado de organizar um Conselho restrito, pessoal, com

remuneração para os seus membros.147

Ainda no reinado do mesmo rei, e durante as Cortes de 1438, foi apresentado e

aprovado um Regimento do Reino elaborado pelo Infante D. Henrique, pelo qual o

Conselho deveria ter na sua composição nove pessoas. Seis delas seriam de

nomeação régia e deveriam servir durante quatro meses incluindo entre eles um

Bispo, ou o Abade de Alcobaça ou o Prior de Santa Cruz. Os restantes três eram

eleitos pelas Cortes, em representação dos três estados, por um período anual. Nesta

composição, chegaram a ser vinte e quatro os membros do Conselho, entre nobreza,

145 Homem, Armando Luís de Carvalho, 1996. «A Corte e o Governo Central», Nova História de

Portugal, dir. de Joel Serrão e A.H. de Oliveira Marques, Vol.II – Portugal em definição de

Fronteiras: Do Condado Portucalense à Crise do Século XV. Coord. de Maria Helena da Cruz

Coelho e Armando Luís de Carvalho Homem, Lisboa: Editoral Estampa.

146 Caetano, Marcello. 1981. História do Direito Português. Lisboa: Editorial Verbo, pp. 456-459

147 Lopes, Fernão. 1983. Crónica de D. João I, parte II, cap. CCII, ed. de M. Lopes de Almeida e

A. Magalhães Basto. Porto: Livraria Civilização, pp. 460-461

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120

clero e letrados, e trienalmente eram admitidos neste Conselho um letrado, um

prelado, um cidadão e um fidalgo.

Com D. Afonso V, o Conselho Régio reunia para que nele fossem debatidos os

problemas mais relevantes da governação do Reino e Conquistas, sendo os

membros mais destacados Pêro d’Alcáçova, D. Jorge da Costa (futuramente

Cardeal Alpedrinha) e João Fernandes da Silveira (Barão de Alvito).148

Já com D. Manuel I, o papel do Conselho viria a consolidar-se progressivamente,

utilizando-o, especialmente, para se afastar da Corte e destacar desta um grupo

especial de homens que o aconselhasse e acompanhasse no governo.149

No reinado de D. João III, o Conselho Régio, assumiu um papel mais preponderante

na política portuguesa, estruturando-se enquanto órgão, ainda que sem a

regulamentação institucional que só futuramente viria a ter, reduzindo

substancialmente o número de conselheiros honoríficos, passando o total de

membros a ser de apenas sessenta e seis. A importância do Conselho fica

evidenciada, porquanto foi nele delegada a regência do reino, após a morte do rei

em conjunto com a rainha viúva e o Cardeal D. Henrique.

E nesta mesma regência verificou-se uma efectiva manifestação do que deveria ser

um Conselho Régio, uma vez que, durante as Cortes realizadas nesse ano, os povos

pediram que se escolhessem doze portugueses para o Conselho, interditando a

presença de estrangeiros, o que foi aceite pelo regente. E tomaram assento neste

mesmo Conselho, os duques e o Prior do Crato determinando-se ainda que não

existissem precedências nos assentos e nos votos.150

Ao longo dos séculos XVI e XVII, outros órgãos de Estado foram sendo criados,

em função da matéria e da função a desempenhar, tais como, o Conselho de Estado,

148 Maltez, José Adelino. 1998. «O Estado e as Instituições», Nova História de Portugal, dir. de Joel

Serrão e A.H. de Oliveira Marques, Vol. V – Portugal: Do Renascimento à Crise Dinástica, coord.

de João José Alves Dias, Lisboa, Editorial Estampa, p. 393

149 Maltez, José Adelino. 1998. «O Estado e as Instituições», Nova História de Portugal, dir. de Joel

Serrão e A.H. de Oliveira Marques, Vol. V – Portugal: Do Renascimento à Crise Dinástica, coord.

de João José Alves Dias, Lisboa, Editorial Estampa, p. 393

150 Loureiro, Francisco Sales. 1978. D. Sebastião, antes e depois de Alcácer Quibir, Lisboa: Vega

p. 45

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121

o Conselho da Fazenda, o Conselho Ultramarino e o Conselho da Guerra, o que de

alguma forma foi reduzindo o âmbito de intervenção do Conselho de Estado, aliás,

como aconteceu com as próprias Cortes. Aproximava-se o tempo em que o Estado

e o rei se concretizavam num só e a absolutização do poder seria o critério

dominante.151

O Conselho de Régio, altera a sua designação para Conselho de Estado, a quando

da determinação do seu Regimento em 8 de Setembro de 1569, criando

especificamente o Conselho de Estado enquanto órgão governativo e integrante da

estrutura do governo polissinodal português. É a primeira estrutura conciliar criada

em Portugal, precedendo em algumas décadas o Conselho da Fazenda.152

No Regimento atribuído pelo rei ficaram redefinidas as atribuições do novo órgão,

o qual deveria reunir três vezes por semana, implicando, “alem das cousas que eu

particularmente mandar que se tratem no dito Conselho, se comunicarão nelle as

mais que se offerecerem do meu serviço, e bem dos meus Reinos: […] depois de ter

inteira informação das rendas, que por qualquer via pertencerem à minha Fazenda,

assim do que valem, como das despesas que se dellas fazem, verão e consultarão

as que por ora se devem e podem escusar para suprimento de outras

necessárias”153.

Determinava-se o local onde devem decorrer as sessões, uma casa própria no paço

para o efeito e a duração de cada reunião, que deveria ser de duas horas. A

presidência do Conselho era rotativa, cada conselheiro poderia ser presidente

durante uma semana154. A votação dos Conselheiros também obedecia a uma ordem

151 Hespanha, António Manuel. 1982. História das Instituições – Épocas Medieval e Moderna,

Coimbra: Almedina p. 345

152 Gama, Maria Luísa Marques da. 2011. O Conselho de Estado no Portugal Restaurado –

Teorização, Orgânica e Exercício do Poder Político na Corte Brigantina (1640-1706), Dissertação

para a Obtenção do Grau de Mestre em História Moderna, Faculdade de Letras- Departamento de

História, Universidade de Lisboa

153 Silva, José Justino de Andrade. 1854. Collecção Chronologica da Legislação Portugueza (1603-

1612), Lisboa, p. 271

154 BNP, Cod. 749, fl. 27

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122

pré-estabelecida: “fará vottar nelles, e começando pelos mais modernos será o dito

Presidente o derradeiro”.155

O secretário passou a deter um papel fulcral dentro desta instituição, pois deveria

assistir a todas as reuniões, tomar nota dos votos e resoluções, para fazer o assento

da consulta que mais tarde entregaria ao rei.156 Ainda que não tivesse direito de

voto.

Com a intervenção filipina em Portugal, as Cortes de Tomar vieram garantir a

continuidade do Conselho de Estado Português, mas a importância que tinha

adquirido durante a menoridade de D. Sebastião, com o Regimento de 1569 e a

crise dinástica do final da década de setenta, acabaria por ser relegado para segundo

plano, com a criação de outro conselho criado por Filipe I, com a designação de

Conselho de Portugal. Agora o Conselho o Estado ficava junto do Vice-Rei tendo

como principal ocupação os assuntos relativos ao Estado e à Guerra, enquanto o

Conselho de Portugal, por seu lado, funcionaria junto do Rei, em Madrid, e nele

deveriam ser tratados todos os assuntos relativos ao governo da Monarquia.157

Em Lisboa, junto do Vice-Rei, o Conselho de Estado continuou a funcionar todas

as segundas-feiras, conforme indicava o regimento. Todavia, parte das atribuições

que tradicionalmente lhe estavam confiadas foram transferidas para o Conselho de

Portugal em Madrid, especialmente nas matérias de Guerra e Política Externa.158

155 BNP, Cod. 749, fl. 27

156 Subtil, José. 1993. «As Estruturas Políticas de Unificação», História de Portugal, Dir. de José

Mattoso, vol. III – No Alvorecer da Modernidade, coord. de Joaquim Romero de Magalhães,

Lisboa: Editorial Estampa, p. 85

157 Barata, Maria do Rosário Themudo. 1997. «A União Ibérica e o Mundo Atlântico: 1580 e o

Processo Político Português», A União Ibérica e o Mundo Atlântico, Lisboa: Edições Colibri, p.

61

158 Gama, Maria Luísa Marques da. 2011. O Conselho de Estado no Portugal Restaurado –

Teorização, Orgânica e Exercício do Poder Político na Corte Brigantina (1640-1706), Dissertação

para a Obtenção do Grau de Mestre em História Moderna, Faculdade de Letras- Departamento de

História, Universidade de Lisboa

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123

Entre 1580 e 1640, o Conselho de Estado continuou a ser um órgão destacado no

organigrama dos poderes institucionais, com um prestígio considerável junto do

Vice-Rei, mas, todavia, sem grande capacidade de influência no processo decisório.

Com o fim do dominio filipino, volta o Conselho de Estado a ser alvo de

reorganização e adquire importância, sobretudo com o novo Regimento de 31 de

Março de 1645. Nele se consagra que tal como havia ficado definido no regimento

de 1569, também agora se devia o Conselho reunir todas as segundas feiras pelo

menos durante duas horas, assumindo as funções de ajudar, servir e aconselhar o

reino na conservação dos seus reinos e beneficio comum dos seus vassalos.

Com D. Pedro II, o Conselho de Estado reune-se de forma regular, por norma todas

as semanas, tendo por atribuição o aconselhamento do rei. No entanto, este

Conselho de Estado, passou a ser substituido pelo «Gabinete do Rei», de natureza

mais restrita do que aquele, integrado pela rainha, validos, desembargadores e

eclesiásticos. Esta tendencia para a transferencia de atribuições para umórgao cada

vez mais restrito, vai-se acentuando cada vez mais, motivo pelo qual a sua

actividade diminui bastante desde os finais do reinado de D. João V, não havendo

conselheiros em 1754.

É o Marquês de ombal quem vem reestruturar o Conselho de Estado em 1760,

nomeando para o efeito cinco conselheiros.

Em 1796, D. Maria nomeou 14 conselheiros e deu aos ministros de Estado a

categoria de conselheiros natos, mas terá deixado de reunir em 1801.159

31. A administração no domínio Filipino.

Autonomia

Institucional

Respeitar os foros, usos e costumes, privilégios e liberdades concedidos ao longo

dos tempos pelos reis lusitanos

Cortes, quando convocadas, reunir-se-iam sempre em território português

159 Hespanha, António Manuel. 1995. História de Portugal Moderno: político e constitucional.

Lisboa: Universidade Aberta, p 238

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124

Criaria um Conselho de Portugal

Língua a usar nos documentos oficiais seria exclusivamente a portuguesa

Exclusivamente a portugueses

• Governador de Portugal

• Todos os ofícios da Casa Real de Portugal

• Provimento dos cargos da administração

periférica nas matérias de justiça e finanças

Económica

Não se alterasse a estrutura da organização dos tratos comerciais com

a Índia, Guiné, Angola e outras terras descobertas

Moedas cunhadas em Portugal a partir do ouro e prata exibiriam apenas

as armas portuguesas

Facilidades na importação de cereal de Castela para fazer face ao deficit

de produção lusitana

Subsídio de 300.000 cruzados destinado ao resgate dos captivos de

Alcácer-Quibir

Bens das Igrejas do Reino não seriam onerados com tributos

Utilização dos recursos disponíveis de Portugal no combate ao corso

Representativa

Rei prolongaria a sua presença em Portugal

Portugueses admitidos ao serviço da Casa Real em

Madrid

Rainha favoreceria o casamento de damas de honor

portuguesas

FUNÇÕES

Inicialmente todas as apelações de feitos cíveis e crime;

Depois da criação da Relação no Porto em 1582 a apelação e

agravo dos feitos cíveis e crime nas comarcas e ouvidorias de Estremadura

(excepção de Coimbra e Esgueira) Algarve, Entre Tejo e Guadiana e comarca de

Castelo Branco, bem como as ilhas;

Julga em primeira instância os feitos crimes e civel da corte, ou

seja Lisboa;

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125

Juízo privativo da Misericórdia e Hospital de Todos os Santos

31.1. O Conselho de Portugal.

Criado por Filipe II em 1582

Sugestão das Cortes de Tomar de 1581

Regimento em 1586

Novo Regimento em 1645

COMPOSIÇÃO

1 presidente

4 conselheiros

2 secretários

FUNÇÕES

Assegura a ligação entre o reino e a corte em Madrid

O despacho fazia-se com o vice-rei, ou com o governador do reino, directamente

para os secretários do rei em Madrid

31.2. O Conselho da Índia

Criado por Filipe II em 1604

Pouco aceite em Portugal

Extinto em 1614

FUNÇÕES

Trata de todas as questões, independemente do assunto, desde que se referissem a

territórios ultramarinos, com excepção de Norte de Africa

Competências

Provimento dos bispados, beneficios e oficios

Mais negócios peretncentes á coroa pelo mestardo da Ordem de Cristo

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126

31.3. Os secretários do rei.

31.4. A Restauração e a Administração Pública.

32. A organização da Fazenda régia: O Conselho da Fazenda

O Conselho da Fazenda instituído por Filipe II, através do Regimento de 20 de

Novembro de 1591, e que resultou da conversão num único dos três tribunais do

Reino, Índia, África e Contos, que então funcionavam separadamente. Esta reforma

tinha como objectivo alcançar um maior rigor administrativo e uma maior

celeridade no despacho das partes.

Do ponto de vista da sua composição, integrava o Conselho da Fazenda um vedor

(que, cumulativamente, era o seu presidente), quatro conselheiros e quatro

escrivães. O expediente encontrava-se distribuído por quatro repartições, sendo a

primeira a do Reino e do Assentamento, a segunda a da Índia, Mina, Guiné, Brasil,

ilhas de São Tomé e Cabo Verde, a terceira a das ilhas dos Açores e Madeira e dos

Mestrados das Ordens Militares e a quarta a de África, Contos e Terças.

O Conselho da Fazenda herdou, de um modo geral, as competências dos antigos

vedores da Fazenda, expostas nos Regimentos e Ordenações da Fazenda, de 17 de

Outubro de 1516 e que consistiam em arrendar, aforar ou emprazar todos os bens e

rendas reais, no Reino e Domínios Ultramarinos, e fazer proceder aos respectivos

pagamentos. Ainda faziam parte das suas competências dar assistência aos negócios

da Índia e prover ao apresto das armadas, ordenar melhoramentos e reparos em

lezírias, paços e fortalezas, vigiar toda a escrituração da contabilidade pública,

decidir, por via voluntária ou contenciosa, todas as acções relativas a bens e direitos

detidos ou contestados à Coroa, fazer proceder, por meio da elaboração de tombos,

à descrição de todos os bens da Coroa e despachar todas as despesas do Estado com

os seus funcionários, segundo critérios de direito vigente (estava excluído da sua

competência o despacho de graças e mercês de bens reais).

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127

As amplas competências do Conselho da Fazenda foram restringidas por várias

reformas administrativas ao longo do séc. XVII, entre as quais se destacaram: a

nova regulamentação da Casa dos Contos do Reino e Casa, exposta no Regimento

dos Contos, de 3 de Setembro de 1627, que concedeu a esta instituição maior

autonomia jurídico-processual nas acções de contabilidade pública.

A criação do Conselho Ultramarino, por Regimento de 14 de Julho de 1642, retirou

ao Conselho da Fazenda toda a jurisdição sobre bens situados nos Domínios

Ultramarinos (com excepção das ilhas dos Açores e da Madeira e dos lugares do

Norte de África, que continuaram sob administração do Conselho da Fazenda).

A criação, por Alvará de 18 de Janeiro de 1643, da junta dos Três Estados, à qual

foi cometida a administração de importantes rendimentos, como os direitos da

décima, do real da água, das caixas de açúcar e da Chancelaria-Mor da Corte e

Reino.

As amplas competências do Conselho da Fazenda foram restringidas por várias

reformas administrativas ao longo do séc. XVII, nomeadamente, o Regimento dos

Contos, de 3 de Setembro de 1627, pelo qual se consagra maior autonomia jurídico-

processual nas acções de contabilidade pública, o Regimento de 14 de Julho de

1642, que cria o Conselho Ultramarino, pelo qual se lhe retira toda a jurisdição

sobre bens situados nos domínios Ultramarinos. A criação da Junta dos Três

Estados, por Alvará de 18 de Janeiro de 1643, conferindo a administração de

importantes rendimentos, como os direitos da décima, do real da água, das caixas

de açúcar e da Chancelaria-Mor da Corte e Reino. A lei de 22 de Dezembro de

1761, a qual vem atribuir, a título exclusivo, ao Conselho da Fazenda as jurisdições

voluntárias e contenciosa sobre toda a natureza de bens da Coroa. O Alvará de 17

de Dezembro de 1790 que integrou o Conselho da Fazenda no Erário Régio.

Decreto de 15 de Dezembro de 1788 e Decreto de 8 de Outubro de 1812

Criação e regulamentação da Secretaria de Estado dos Negócios da Fazenda

Esfera de competências cada vez mais confinada às de um tribunal superior fiscal

Estrutura interna do Conselho da Fazenda sofreu algumas alterações durante os

sécs. XVII a XIX

Introdução de várias reformas administrativas

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128

Emergência de novas realidades económicas

Criação do Conselho Ultramarino

Repartição da Índia, Mina, Guiné, Brasil, ilhas de São Tomé e Cabo Verde

convertida na Repartição da Índia e Armazéns

Alvará de 25 de Agosto de 1770

Extinta a Repartição de África, Contos e Terças, passando as suas competências

para a Repartição das Ilhas e Mestrados das Ordens Militares

Decreto de 23 de Janeiro de 1804

Fusão das Repartições das Ilhas e Mestrados das Ordens Militares e da Índia e

Armazéns, dando origem à Repartição da Índia e Ordens

Resolução de 30 de Outubro de 1824

Criada a Repartição do Tombo Geral do Reino

Decreto de 11 de Dezembro de 1830

Criada a Repartição das Capelas da Coroa

Decreto de 16 de Maio de 1832

Extinção do Conselho da Fazenda (Tribunal do Tesouro Público)

33. A organização dos tribunais: A Casa da Suplicação a Casa do

Cível e a Relação do Porto.

33.1. A Casa da Suplicação

A Casa da Suplicação que resulta da separação do tribunal da corte para as matérias

de justiça, acolhe em termos de competência o julgamento em última instância, dos

pleitos judiciais. A sua competência territorial assentava em todas as comarcas do

reino que não estivessem sobre a alçada da Casa do Cível, quanto ao território

continental, nas ilhas, no ultramar e quanto a certos juízos privilegiados e especiais.

Integra a Casa da Suplicação um Regedor, Desembargadores, Juiz dos feitos d´el

rei, Corregedor da corte, Ouvidores, Escrivães e Porteiros

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129

O Regedor em face da Casa da Suplicação ser o maior Tribunal da Justiça “de

nossos Reinos, e em que as causas de maior importância se vem a apurar e decidir,

deve o Regedor dela ter as qualidades, que para cargo de tanta confiança e

autoridade se requerem. Pelo que se deve sempre procurar, que seja homem

Fidalgo, de limpo sangue, de sã consciência, prudente, e de muita autoridade, e

letrado, se for possível: e sobre tudo tão inteiro, que sem respeito de amor, odio, ou

perturbação outra do ânimo possa a todos guardar justiça igualmente. E assim deve

ser abastado de bens temporais, que sua particular necessidade não seja causa de

em alguma coisa perverter a inteireza e constância, com que nos deve servir. Isso

mesmo deve o Regedor ser nosso natural, para que como bom e leal deseje o serviço

de nossa pessoa Estado”

Motivo pelo qual, devia o Regedor sempre que viesse a ser provido “do Ofício,

antes que comece servir, ou faça coisa alguma, que a ele pertença, lhe será dado

juramento pelo Chanceler Mor em nossa presença, naquela forma que se contém no

livro da Relação, em que está escrito, e ao pé do juramento assinará o Regedor com

os que se acharem presentes, como testemunhas do tal acto”.

33.2. Casa do Cível

A casa do cível assegura também o desdobramento do tribunal da corte para as

matérias de justiça. A sua competência era o julgamento em última instância dos

pleitos judiciais. A Casa Cível exercia a competência nas comarcas e Ouvidorias,

de Entre Douro e Minho, Trás-os-Montes, Beira, Esgueira e Coimbra.

Tinha como principais funções inicialmente, todas as apelações de feitos cíveis e

crime, mas depois da criação da Relação no Porto em 1582 asseguram também a

apelação e agravo dos feitos cíveis e crime nas comarcas e ouvidorias de

Estremadura (excepção de Coimbra e Esgueira) Algarve, Entre Tejo e Guadiana e

comarca de Castelo Branco, bem como as ilhas, julgando em primeira instância os

feitos crimes e civel da corte, ou seja Lisboa, sendo ainda o juízo privativo da

Misericórdia e Hospital de Todos os Santos.

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130

34. Especificidade da administração pública nas terras descobertas.

A Relação da Índia e a Relação do Brasil.

35. A administração no domínio Filipino.

35.1. O Conselho de Portugal.

35.2. O Conselho das Índias.

35.3. A Mesa da Consciência e Ordens.

A Mesa da Consciência foi criada por D. João III em 1532, com o intuito de criar

as matérias respeitantes à obrigação de “consciência” do monarca, mas em 4 de

Janeiro de 1551, os mestrados das três Ordens Militares de Cristo, Sant’Iago de

Espada e S. Bento de Avis, são unidos à coroa, passando os seus assuntos a ser

tratados, tanto em primeira como em segunda instância, na Mesa da Consciência,

que passaria a partir daqui a designar-se por Mesa da Consciência e Ordens.160

O Tribunal, tal como aconteceu com o Desembargo do Paço viria a ser extinto no

rescaldo das lutas liberais, pelo Decreto de 16 de Agosto de 1833.

160 Subtil, José Manuel Louzada Lopes. 1993. Os poderes do centro: Governo e Administração. In

Mattoso, José (Dir.) História de Portugal: O Antigo Regime (1620-1807). IV Volume. Lisboa:

Círculo de Leitores, pp. 157-272; Homem, António Pedro Barbas. 2006. História das Instituições:

Um Estudo de História do Estado. Lisboa: Almedina, p. 176

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131

Para além das principais competências que lhe estavam atribuídas, nomeadamente,

o foro da consciência do monarca, a jurisdição sobre os privilégios dos freires,

cavaleiros e comendadores das três ordens, conhecer em última instância os seus

processos-crime e as petições de perdão, tinha como fundamento da sua criação o

facto da existência da supremacia teórica da teologia no conjunto dos saberes da

época. Com efeito, esta supremacia levava a que de forma geral os monarcas

portugueses e europeus em geral consultassem juntas de teólogos sobre os grandes

temas do direito internacional, o que conduzia a um pensamento estruturalmente

dependente das perspectivas teológicas. É por estes motivos que a Mesa da

Consciência tem o seu aparecimento com D. João III, para além de representar

também um aspecto político fundamental, sobretudo porque os confessores dos reis

têm neste campo preponderância. Daí até à relação institucional entre o Estado

moderno e a consciência é um pequeno passo.

Para além das competências referidas supra, a Mesa tem ainda as atribuições de

governar e inspecionar na Universidade de Coimbra, o governo da provedoria dos

cativos e defuntos, a superintendência da Casa dos órfãos da Cidade de Lisboa, o

governo e provimento das capelas e mercearias de D. Afonso IV, D. Beatriz, D.

Catarina, infante D. Luís e D. Leonor, o provimento dos negócios do Hospital das

Caldas e demais hospitais e albergarias, etc.161 E, ainda uma competência crucial

para o funcionamento das monarquias ao lado do Conselho de Estado: a verificação

dos impedimentos dos reis que justificam a sua substituição temporária.162

No que respeita às suas competências, a Mesa da Consciência e Ordens constitui

uma jurisdição superior especializada nas matérias de consciência do príncipe,

sendo integrada essencialmente por teólogos e porquanto ter proferido decisões

contrárias aos interesses e vontade do rei, mas com cujas decisões ele se

conformou.163 E do ponto de vista político, a possibilidade de recurso para a Coroa

161 Subtil, José Manuel Louzada Lopes. 1993. Os poderes do centro: Governo e Administração. In

Mattoso, José (Dir.) História de Portugal: O Antigo Regime (1620-1807). IV Volume. Lisboa:

Círculo de Leitores, pp. 157-272

162 Homem, António Pedro Barbas. 2006. História das Instituições: Um Estudo de História do

Estado. Lisboa: Almedina, p. 178

163 Homem, António Pedro Barbas. 2006. História das Instituições: Um Estudo de História do

Estado. Lisboa: Almedina, p. 177

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132

das decisões a Mesa da Consciência, como se de recurso eclesiástico se tratasse, o

que levou a que se considerasse como uma invenção dos reis portugueses para

usurpar a jurisdição eclesiástica.164

Quanto à sua organização a Mesa articulava-se em torno de três serviços: o do

governo das ordens, assegurado por quatro secretarias, o do Despacho da Mesa e

Comum das Ordens, a Secretaria da Ordem de Cristo, a de Sant’Iago e Espada e a

de S. Bento de Avis, o Tribunal, dividido em Tribunal dos Juizos dos Feitos e dos

cativos e a Conservatória das Três Ordens e o que tratava das questões da Fazenda,

através da Administração dos Contos e de duas Repartições de Contadoria, para as

Ordens de Cristo e Sant’Iago e Espada.

35.4. Os secretários do rei.

36. A Restauração e a Administração Pública.

37. O Estado Absoluto

37.1. As reformas da administração pública

37.2. O Erário Régio e a nova administração financeira

A insustentabilidade da situação financeira e fiscal nacional, decorrente da

deficiente organização da administração da Fazenda Pública, onde a corrupção, o

compadrio e a falta de zelo eram a normalidade, permitiu a Sebastião José de

164 Homem, António Pedro Barbas. 2006. História das Instituições: Um Estudo de História do

Estado. Lisboa: Almedina, p. 179

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Carvalho e Melo – Marquês de Pombal – concretizar uma reforma que procurava

por cobro à situação. Aproveitando a destruição completa do edifício onde

funcionava a Casa dos Contos, inicia uma remodelação da Fazenda Nacional,

extinguindo o cargo de Contador-mor, os Contos do reino e a Casa dos Contos, e

em sua substituição cria o Erário Régio, pelo alvará de 22 de Junho de 1761.

Este novo órgão da Administração Pública, tinha como principal incumbência

procurar evitar a proliferação de canais de captação de receitas e que impediam um

necessário controlo sobre as mesmas.

Ao Erário Régio, fica a presidir o próprio Sebastião de Carvalho e Melo, com a

designação de Inspetor-geral do tesouro. Na sua dependência, o tesoureiro-mor e

respectivo escrivão. Integrava a sua estrutura uma Tesouraria-Geral e quatro

Contadorias, encarregadas de gerir as rendas e despesas, que seriam divididas entre

as áreas que abrangiam os territórios portugueses na África, América e Ásia.

O novo órgão tinha como principal atribuição ser “o centro da contabilidade da

receita e despesa de todos dinheiros públicos, os quais deviam ali dar entrada em

espécie; a fim de evitar a desordem, com que antes se pagava e recebia por

diferentes estações sem nexo, o que tornava difícil, ou antes impossível a

fiscalização.”165 Neste contexto, foi adoptado como sistema contabilístico o das

partidas dobradas, sendo para o efeito “nomeados três tesoureiros gerais: um para a

receita e despesa dos ordenados, outro para a receita e despesa dos juros e outro

para a receita e despesa das terças.”166

O Erário Régio, acabaria por conseguir pelo menos no decurso do reinado de D.

José, alcançar de forma evidente os objectivos propostos com a sua criação, de tal

forma que “foi tão próspero o estado do tesouro no reinado de D. José, que se diz

terem ficado por morte dele, sobras de muitos milhões.”167

165 Rocha, Coelho da, Ensaio sobre a História do Governo e da Legislação de Portugal para servir

de Introdução ao Estudo do Direito Pátrio, Coimbra, 1861, p. 219

166 Martins, Guilherme d’Oliveira, O Ministério das Finanças. Subsidio para a sua História no

Bicentenário da criação da Secretaria de Estado dos Negócios da Fazenda. Lisboa: Ministério das

Finanças-Secretaria de Estado do Orçamento, 1988. P. 19

167 Rocha, Coelho da, Ensaio sobre a História do Governo e da Legislação …., op. cit. p. 220. Esta

questão é desmentida por Oliveira Martins, pois “ na altura da saída do Marquês de Pombal do

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134

Conseguiria, contudo, e de forma menos contestada, alcançar outro dos seus

objectivos, o da centralização e modernização do aparelho de Estado, bem como a

centralização das finanças do reino e domínios.

Com efeito, estas alterações conseguidas, fundavam-se num domínio mais amplo,

na emergência dos novos princípios administrativos que se pautavam pela

promoção do bem-estar social, enquadradas pela “ciência da polícia”168 então em

franco florescimento teórico. Já não estava apenas em questão o poder da coroa,

mas antes, o poder do Estado, pelo que o erário acabaria por concentrar a

arrecadação, ordenando uma “fiscalização mais ostensiva das repartições e deu

instruções (o alvará de 22 de Junho) relativas aos procedimentos de arrecadação,

realização de pagamentos e de balanços”.169

Ainda que houvesse conseguido no tempo do Marquês de Pombal suster as finanças

e o respectivo défice, independentemente dos muitos milões ou de alguns milhares,

o certo é que logo no reinado seguinte em 1796 “para ocorrer às necessidades do

Estado e atraso dos pagamentos abriu o Governo, um empréstimo de dez milhões

de cruzados com o juro de cinco por cento, em apólices, que não fossem inferiores

a cem mil reis (…)” e, “as necessidades públicas aumentaram com tal rapidez, que

Governo em 1777, transmitindo ao seu sucessor no Erário, o Marquês de Angeja, o balanço dos

cofres do Tesouro, havia um saldo de 637.562$654 reis a a que deveria acrescentar cerca de

360.000$000 do cofre de reserva – em lugar dos 31 mil milhões de reis (ou 78 milhões de cruzados)

em que se baseia Coelho da Rocha e que constam das Memórias do Marquês.” O Ministério das

Finanças. Subsídio para a sua História …, op. cit. p. 21

168 A “Ciência da Polícia”, ou Camaralismo é uma designação genérica para classificar um conjunto

de escritos heterogéneos, sobre a administração pública, elaborados numa perspectiva prática e sem

preocupação científica, na sua maioria de autores alemães. Esta emergência de novos princípios

administrativos tinha como orientação fundamental o prosseguimento do bem público, um bem

acima dos particulares, que só podia caber no âmbito de um poder que se assumisse como supra-

individual, isto é, um poder de Estado e não já um poder da Coroa … José Subtil, o Governo da

Fazenda e das Finanças (1750-1974)

169 Subtil, José. Governo e administração. In: Mattoso, J. História de Portugal. Lisboa: Círculo de

Leitores, 1993, v. 4. p. 180-181

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135

no ano seguinte foi o mesmo empréstimo elevado até onze milhões com o juro de

seis por cento”.170

O Erário Régio, sofreria por via destas questões inúmeras alterações na sua

estrutura, na tentativa de dar conta das constantes exigências impostas pelas

finanças públicas de um país com extensos domínios coloniais. Destaca-se o alvará

de 14 de outubro de 1788, que elevou o órgão à categoria de Secretaria de Estado e

nomeou o presidente e inspector do Erário Régio como Ministro e Secretário de

Estado da Repartição da Fazenda. Nesse mesmo ano, o alvará de 5 de Junho de

1788 estabeleceu que o presidente do Erário Régio seria o inspetor da Real Junta

do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação.

A preocupação na racionalização da administração das finanças manifestou-se em

15 de Julho de 1809, procurando adaptar-se às especificidades das transações

comerciais locais e prurando formar funcionários públicos mais competentes, com

os conhecimentos primordiais de cálculo e método das transações, usados na

arrecadação e distribuição da Fazenda e Fisco Real a decisão n. 9, de 6 de maio de

1818, determinou que os amanuenses e praticantes admitidos no Erário Régio

deveriam frequentar a Aula de Comércio da Corte.

Em 1790 viria a ser integrado no então criado Conselho da Fazenda, dependente do

Ministro de Estado e da Fazenda que a ele também presidia.

37.3. Instituições político-administrativas

37.4. A Intendência Geral da Polícia

37.5. A reforma do Tribunal da Inquisição e a criação da Real Mesa Censória.

170 Rocha, Coelho da, Ensaio sobre a História do Governo e da Legislação …., op. cit. p. 221

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37.6. O “Novo Código” e a administração pública

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137

Bibliografia Aconselhada

Bulhões, Augusto de. 1955. Ministros da Fazenda do Brasil (1808-1954). Rio de

Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional,

Cunha, Alexandre Mendes. O lugar do cameralismo no pensamento econômico

português: reflexões sobre sua influência na centralização das finanças do Reino na

segunda metade do século XVIII,

Martins, Ana Canas Delgado. Governação e arquivos: D. João VI no Brasil.

Lisboa: Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, 2006

Salgado, Graça (coord.). 1985. Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil

colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira

Subtil, José. 1993. Governo e administração. In: Mattoso, José. História de

Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, Vol. 4.

Subtil, José. 1996. O Ministério das Finanças (1801-1996). Estudo orgânico e

funcional. Gabinete do ministro. Lisboa: Ministério das Finanças

Subtil, José. O governo da Fazenda e das finanças (1750-1974). In: Secretaria Geral

– Ministério das Finanças e Administração Pública. Disponível em:

http://www.sgmf.pt/NR/rdonlyres/475FB16B-566A-4DA8-97EB-

8C53E9ACF1/3262/ensaios3_subtil_n1.pdf. Acesso em: 03 de Julho de 2013

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IV. LIBERALISMO E A REFORMA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

38. A ruptura constitucional.

39. Os liberais. A contra-revolução. A guerra civil. A revolução liberal.

Uma «revolução social».

40. A administração central no contexto da Constituição de 1822 e na

Carta Constitucional

40.1. A Constituição de 1822

Com a revolução de 1820 e a constituição de 1822, ficou estabelecido um conjunto

de princípios de administração que permitiriam a alteração do contexto

administrativo quer do ponto de vista local, quer do ponto de vista central.

A Constituição de 1822 veio superar a administração do aparelho judicial, dividindo

o reino em Distritos Administrativos, com um Administrador em cada um deles, e

uma Junta de Distrito de escolha popular, reconhecendo a diferença entre o

Magistrado, que exerce a acção executiva e a Junta a quem compete a deliberação.

E, quanto ao poder municipal, a mesma constituição estabeleceu Câmaras em todos

os concelhos, com eleição popular e presididos pelo vereador mais votado. E

promulgou-se a Lei de 20 de Junho de 1822 (?) desenvolvendo as bases para as

eleições das Câmaras.

Com a Carta Constitucional de 1826, estabelecem-se as bases relativamente às

Câmaras ficando tudo o resto dependente da emanação de poder regulamentar. Mas,

em 1828, a guerra civil veio impedir a iniciativa e conclusão de tais regulamentos.

Só com o final da guerra civil que opõe miguelistas a liberais se pode considerar a

existência de um sistema de administração em Portugal, o que decorre dos decretos

de 16 de Maio de 1832. O primeiro dos decretos

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40.2. A Carta Constitucional

No que se refere à estrutura do aparelho de Estado, resulta da Carta Constitucional

que o Rei é o chefe do poder executivo exercendo-o através dos seus ministros, e

estes referendam todos os actos do poder executivo, sem o que não poderão ter

execução. O chefe do poder executivo é por conseguinte o Rei, sendo os ministros

seus agentes e subordinados, que ele nomeia e demite livremente, (art.º 74, § 5sendo

certo por outro lado, que o Rei não pode exercer o poder executivo senão através

dos seus ministros (art.º 75.º), para além de que sem a referenda dos ministros os

actos do poder executivo não podem receber execução (art.º108º). São, pois, as

assinaturas dos ministros condição necessária para que possam executar-se os actos

do poder executivo.

Quanto às secretarias de Estado o art.º 101.º da Carta determina que “haverá

diferentes secretarias de estado. A lei designará os negócios pertencentes a cada

uma, e seu número; as reunira ou separará, como mais convier.” A divisão das

secretarias de estado não pode ser fixada a priori, por isso que deve necessariamente

depender da multiplicidade dos negócios, da maior ou menor centralização, da

extensão do território, e da crescente actividade e civilização do país.

A secretaria do reino, tinha como atribuições as questões das eleições dos

deputados, o expediente acerca da nomeação dos pares, convocação, prorrogação e

adiamento das Cortes, dissolução da camara, sessões reais de abertura e

encerramento, nomeação do pessoal da presidência do corpo Legislativo, sanção

das leis sua remessa e dos decretos assinados das cortes aos arquivos respetivos e a

nomeação dos conselheiros de estado, e convocação em assembleia geral. São ainda

da sua competência as graças e mercês honorificas, os negócios de cerimonial de

etiqueta na corte, e os negócios relativos á administração geral e municipal, os actos

de administração graciosa e contenciosa, os trabalhos do recenseamento, da

população, da divisão do território, etc. E, ainda as questões relativas á segurança

geral interna do estado, à policia preventiva e repressiva dos crimes, captura dos

presos e a sua entrega nos tribunais, e também a execução das leis e ordens

regulamentares acerca do recrutamento, ou de qualquer outra força civil.

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41. As reformas da Administração Pública no período liberal

41.1. A reforma administrativa de Mouzinho da Silveira

41.1.1. Os antecedentes

A estrutura administrativa da monarquia absoluta assentava na concentração de

poderes e da não separação das tarefas fiscais, judiciais e administrativas, funções

que eram, frequentemente, exercidas pelos mesmos funcionários. A existência de

privilégios e isenções de pessoas e entidades não estavam de acordo com a lei geral,

o que criava situações de diferenciação entre os cidadãos. O aparelho administrativo

era complexo e a Coroa não conseguia controlar a administração local e

desconhecia a realidade social e política dos aglomerados do interior.

Os corregedores continuavam a ser os primeiros magistrados na hierarquia judicial

e administrativa ao nível local, sendo as pedras fundamentais na estrutura

administrativa ao serviço da Coroa, tendo como objectivo o controlo da vida

política do país. Esta tarefa nem sempre foi conseguida, pois que muitos espaços

territoriais não estavam cobertos pela sua acção, pois apenas cerca de 60% das

comarcas é que tinham corregedores de nomeação régia.

Os corregedores desempenhavam uma multiplicidade de funções de carácter

administrativo-judicial e muitas também de natureza fiscal. Deslocavam-se, uma

vez por ano, pela sua área de jurisdição, procurando aferir da conformidade das

actividades das câmaras municipais de acordo com a lei geral. Para além das

comarcas e seus corregedores, destacam-se também as ouvidorias, onde os seus

representantes, os ouvidores, eram nomeados pelos donatários da Coroa

desempenhando as suas funções em nome dos respectivos senhores. Apesar de

abolidos pela lei de 1790, tais jurisdições mantiveram-se em vigor até à reforma de

Mouzinho da Silveira.

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141

Os provedores, altos funcionários de nomeação régia, estavam ao nível dos

corregedores e desempenhavam diversas funções, não só na área financeira, mas

também judicial e administrativa, nomeadamente na execução dos testamentos e na

fiscalização da administração dos bens dos órfãos, sempre na dependência e no zelo

pelos interesses financeiros da Coroa. A sua área de jurisdição era mais vastas que

as dos corregedores podendo, neste caso, abarcar duas ou mais comarcas.

As diferentes estruturas administrativas que demos conta atrás apresentavam-se

demasiado complexas, com práticas herdadas nos ancestrais privilégios da

aristocracia e, no geral, incapazes de dar resposta às necessidades do Estado

absoluto. A Coroa, nos finais do século XVIII, como tivemos oportunidade de ver,

sentiu-se na necessidade de desenvolver esforços para a racionalização da

administração do reino, que obviasse aos profundos problemas organizativos que

então se verificavam. Ainda assim, uma reforma mais profunda da máquina

administrativa só foi conseguida aquando das profundas transformações políticas e

sociais decorrentes da substituição do podere absoluto pelo regime liberal em 1820.

A nova organização política e administrativa que resultou da revolução liberal, seria

de forma muito profunda influenciada pelas ideias surgidas da Revolução Francesa.

Nestes termos a Assembleia Constituinte francesa saída da Revolução, pretendeu a

criação de uma administração simples, fortemente hierarquizada, de modo a

conseguir realizar os ideais liberais de garantia da liberdade e igualdade perante a

lei. Para isso, alterou a componente administrativa, acabou com as isenções e

privilégios locais, destruiu as circunscrições administrativas consideradas

complexas e desajustadas, pretendeu criar um quadro uniforme para garantia da

homogeneidade dos serviços públicos e a igualdade de oportunidade aos cidadãos

no acesso a esses mesmos serviços.

Os ventos de mudança chegaram a Portugal com um atraso de cerca de trinta anos,

ainda que não possa deixar de ter em conta o facto de a influência francesa no campo

da administração pública se iniciar a partir dos primeiros anos do século XIX, com

as invasões francesas. Com efeito, alguma intelectualidade liberal, solicitou a Junot,

o General francês da primeira invasão, a aplicação da legislação napoleónica

propondo a divisão do território em oito províncias e um novo modelo de

organização administrativa, fiscal e judicial de acordo com o modelo francês.

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142

Nesse sentido, e porque havia forte interesse por parte do invasor, nas alterações do

quadro legislativo nacional, para uma maior adequação à invasão e às estruturas

que se pretendiam, Junot empreendeu algumas alterações ao sistema vigente. No

entanto, estas modificações conferiam uma espécie de “superpoderes” aos

corregedores, visavam assegurar o seu domínio sobre o território nacional, as quais

não foram do agrado do povo em geral.

É então em 1820 que a revolução liberal se concretiza em Portugal depois de um

longo período de submissão estrangeira, primeiro com as invasões francesas e

sobretudo com Junot que ainda se assumiu como rei durante bastante tempo e de

uma regência inglesa, através do General Beresford a partir de 1810.

A implantação liberalismo conduziu no imediato criação de uma Corte Constituinte

com o intuito da elaboração e aprovação de uma Constituição de pendor liberal. E,

é neste contexto, que aprova e põe em vigor a Constituição de 1822, assente na

separação dos poderes e estabelecendo as linhas gerais para a reforma do aparelho

de Estado, nomeadamente no que respeitava à reforma administrativa.

A Constituição de 1822, apresentava novas soluções governativas, do ponto de vista

político, social e administrativo, e sobretudo neste último aspecto propondo-se

mesmo uma reforma administrativa. Nela se determina a divisão do país em

distritos e concelhos – art.º 212 e 218 - nos quais os primeiros tinham como

dirigente um administrador geral, de nomeação régia, ouvido o Conselho de Estado,

assistido por uma junta administrativa com representação os concelhos- art.º 213 -.

Ainda antes da “publicação da Constituição (que tem a data de 23 de Setembro e

foi jurada em 1 de Novembro) as Cortes providenciaram acerca da reforma das

Câmaras Municipais, sua composição e modo de eleição, pela Lei de 20 de Julho

de 1822, completada pelo Decreto de 5 de Abril de 1823”171 ficando os concelhos

dependentes da alçada das câmaras municipais, cujos corpos (municipais) gozavam

de ampla autonomia.

Os anos seguintes foram politicamente instáveis. Desde logo, com o regresso do rei

ao país proveniente do Rio de Janeiro onde estava desde 1806 e com a primeira

171 Caetano, Marcello. 1994. Estudos de História da Administração Pública Portuguesa, Coimbra:

Coimbra Editora, p. 360

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143

tentativa sublevação das forças mais conservadoras ligadas a D. Miguel e à rainha

D. Carlota Joaquina, que ficaria conhecida pela Vila Francada. Ao seu lado,

surgiam as forças conservadoras, nobres e militares, mas também algumas figuras

ligadas a 1820, como o Brigadeiro Sepúlveda e o capitão Faustino Sá Nogueira, o

Marquês de Palmela e os futuros duques de Saldanha e da terceira.

O descrédito que se tinha apoderado da Revolução e do Parlamento de 1822 era de

tal forma que muitos liberais indefetíveis se mostraram ao lado de D. Miguel e de

sua mãe. O rei por seu lado, apoiado nos conselhos do Marquês de Loulé e do

general Pamplona que lhe terão mostrado a iminência de uma guerra civil, não se

mostrou favorável às intenções dos revoltosos, acabar com a Constituição e

devolver a D. João VI o poder absoluto, pelo que repudiando esta acção, rejeitando

o poder absoluto e considerando em vigor a constituição, promoveria a remodelação

do governo, colocando como Ministro dos Negócios Estrangeiros ao duque de

Palmela, o Ministério da Guerra ao General Pamplona e D. Miguel era nomeado

Comandante-Chefe do Exército com o título de generalíssimo.

O monarca prometia respeitar as liberdades individuais dos cidadãos, as sociedades

secretas eram extintas, por contribuírem para a ruína do trono e do altar, concedeu-

se ampla amnistia aos presos e desertores do exército e denunciava os males feitos

pela constituição para o que se propunha um novo texto constitucional que a isso

efectivamente conduzisse.

Mas, a ideia de um novo texto constitucional que viesse, por outorga directa do rei,

legitimar a representatividade liberal, não agradava aos partidários de D. Miguel,

os quais nos inícios de 1824 procuraram organizar o afastamento do rei e colocar

na regência Carlota Joaquina, pelo que, aproveitando o assassinato do Marquês de

Loulé, com evidente crueldade em Salvaterra, em 30 de Abril, colocou as tropas no

Rossio, prendeu os chefes liberais moderados (Condes de Palmela e Vila Flor) e

procurou forçar D. João VI a abdicar do trono. Não conseguindo D. Miguel

efectivar os seus intentos, o rei promove a sua destituição de generalíssimo do

exército e o seu exílio em Viena de Áustria.

No seguimento destes episódios apenas afilha Isabel Maria se mantém próximo do

monarca até à sua morte em 10 de Março de 1826, a qual seria indicada por D. João

VI para assumir a regência do reino e nomeava como sucessor do trono português,

o Infante D. Pedro, Imperador do Brasil.

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144

Conhecendo da morte do rei em 26 de Abril de 1826, D. Pedro optando por

permanecer no Brasil, promulga a Carta Constitucional três dias depois e abdica do

trono em favor da sua filha, Maria da Glória, com sete anos de idade, a qual deveria

casar com seu tio, D. Miguel, que deveria ser nomeado regente no ano seguinte,

depois de jurar a Carta Constitucional. Entretanto, mantinha-se na regência do

reino, a infanta Isabel Maria. Em Viena, em Junho do mesmo ano, D. Miguel jurava

a Carta Constitucional e comprometeu-se a casar com a sobrinha.

A Carta Constitucional, apresentava algumas alterações face à Constituição de

1822, e sobretudo, no domínio que nos interessa, o da Administração Pública. O

seu título VII, era dedicado à administração e economia das províncias.

E no diário da câmara dos deputados, na sessão de 21 de Dezembro de 1826, a mesa

nomeou diversas comissões, destacando-se a do código administrativo e a da

divisão do território, com o intuito de cumprir o prescrito na Carta Constitucional,

quanto à reforma administrativa.

Enquanto isso, o país continuava a definhar do ponto de vista económico, social e

político e a conspiração absolutista mantinha-se activa, pelo que o regresso de D.

Miguel a Lisboa, agoirava o iniciar de novas altercações na ordem pública nacional.

É neste contexto, que aguardando fazer 25 anos para assumir a regência em

conformidade com o prescrito na Carta Constitucional, D. Miguel apenas pretendia

regressar a Portugal depois de 26 de Outubro de 1827. Apenas o faria em 22 de

Fevereiro de 1828, e sob o apoio dos partidários do absolutismo, e depois de várias

acções políticas e militares, D. Miguel acabaria por se proclamar rei de Portugal,

em 7 de Julho de 1828, enveredando por uma forte política de repressão com o

intuito da consolidação do poder régio, suspendendo a Carta Constitucional.

Entre 1828 e 1832 o país viu-se submetido a uma guerra civil que o deixaria numa

situação desastrosa do ponto de vista político, económico e social. D. Miguel,

contudo, seria incapaz de lidar com a governação no decurso desse período, quer

interna quer internacionalmente, onde o seu reconhecimento oficial não teve

grandes apoios.

Após a rendição das forças miguelistas assinar-se-ia em 26 de Maio de 1832, a

Convenção de Évora Monte, que colocaria fim ao conflito.

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145

41.1.2. Sistema administrativo público – 16 de Maio de 1832

41.1.3. Prolegómenos da reforma administrativa

Depois de um período vivido com grande intensidade após a revolução liberal de

1820, e de um exílio forçado pela intervenção miguelista em Portugal e o iniciar

da guerra civil, Mouzinho da Silveira reúne-se a pedido de D. Pedro com as forças

liberais estacionadas nos Açores. Aí e no decurso da constituição de um Governo

para Portugal integrado no espirito liberal, viria a ser nomeado por D. Pedro para

chefia o Ministério da Fazenda e da Justiça, “Hei por bem, em Nome de Sua

Magestade Fidelissíma a Senhora D.Maria II, Minha Augusta Filha, Nomear a José

Xavier Mousinho da Silveira, do Conselho de Sua Magestade Fidelissima, Ministro

e Secretário de Estado dos Negócios da Fazenda e Encarrega-lo interinamente do

Expediente dos Negocios Ecclesiásticos, e de Justiça”172

Decreto 4 de Abril de 1832: Abolição dos pequenos vínculos

Disposições relativas a morgados e capelas

Abolição dos pequenos vínculos

Proibição de uniões de vínculos e de anexação de bens livres existentes

Nova jurisdição relativa ao aforamento dos bens vinculados

Decreto de 19 de abril de 1832: extinção das Sisas Gerais

Tributo intolerável do ponto de vista liberal e com enormes desvantagens para o

comércio e agricultura

Explicava este imposto o motivo pelo qual Portugal havia fundado tantas colónias

e tão pouco comércio dos seus produtos

Perpetuação de uma agricultura de subsistência

172 Registado a fls. 21 do Livro Particular do gabiente de S.M.I.-Publicado no Arquivo dos Açores-

Vol 6, pág.303

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146

Estagnação comercial implicava o não desenvolvimento da indústria

As despesas suportadas pelas sisas seriam pagas pelos bens dos concelhos ou por

derramas ou fintas a lançar pelas câmaras municipais.

Decreto de 30 de Julho de 1832: extinção dos dízimos

Medida legislativa das mais importantes de M. Silveira

Abater o poderio e a influência do clero

Fomentar o desenvolvimento da agricultura, libertando-a do encargo que pesava

sobre os agricultores

Decreto de 13 de Agosto: extinção dos forais e bens da coroa

Emancipação da terra exonerando-a dos obstáculos à sua transacção

Redução do peso dos donatários e da sua influência sobre a economia

Espaço para a intervenção da burguesia no domínio agrícola

Concretização do princípio da propriedade privada

A Guerra Civil termina com o governo liberal em funções na ilha Terceira,

constituído entre outros, por Mouzinho da Silveira na pasta da Fazenda, onde

procedeu a um processo de reforma legislativa com vista a uma profunda alteração

administrativa do país. Nos Açores, o ministro de D. Pedro IV, elaboraria os

decretos que viriam a ser publicados a 16 de Maio desse mesmo ano, já com o

governo em Lisboa.

Ainda que tenha sido profícua a sua intervenção reformadora, o ministro manter-

se-ia em funções, apenas até ao final de Dezembro de 1932, tendo sido substituído

por José da Silva Carvalho, em virtude das fortes inimizades que o seu carácter

reformador patenteava, da sua intransigente defesa da propriedade privada e a luta

contra os poderes senhoriais.

A sua política, ainda que não tivesse concretização pela impossibilidade de os

acervos legislativos produzidos não chegarem a entrar em vigor, serviria para que

as reformas que e procuraram fazer no âmbito da administração pública tivessem

como base as suas propostas e o seu pensamento futurista e assertivo. Efectivamente

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147

o grande obstáculo às reformas de Mouzinho da Silveira decorreu das forças que se

levantaram dos diferentes quadrantes da população portuguesa, desde o povo até ao

próprio sistema institucional implantado, apesar do seu autor ter tentado adaptá-las

à realidade nacional e respeitar o programa liberal que vinha desde a constituição

de 1822, mas que apresentava uma visão claramente reformadora para o hábito e os

interesses nacionais do tempo.

A mudança proposta confrontava os valores enraizados, facto que despoletava

tensões e conflitos no seio da comunidade. Refira-se que, as alterações eram

profundas, consequência da transição política, pois alteravam a matriz implantada,

quer nas instituições, quer na organização administrativa do território

A legislação produzida por Mouzinho da Silveira tinha como fonte de inspiração a

legislação francesa de pendor napoleónico, nomeadamente o decreto de 22-XII-

1798 e a própria Constituição francesa de 1791, consubstanciando as ideias liberais

que fervilhavam em Portugal desde o início do século XIX e o grande movimento

de simpatia ainda existente pelo modelo francês e que acabaria por integrar também

a Constituição de 1822 e, bem assim na Carta Constitucional de 1826.

A proposta de Mouzinho da Silveira recolhia nas suas disposições a influência dos

trabalhos teóricos levados a cabo pelo projecto de «lei orgânica da administração

geral das províncias do reino» apresentado na Câmara dos Deputados em 20 de

Março de 1827, pela Comissão do Código Administrativo, nomeada para esse

efeito. E que se aproximava de forma clara das posições teóricas de Bonnin, teórico

das reformas administrativas no período pós revolução francesa.173

É a proposta de reorganização administrativa, decretada em 16 de Maio de 1832,

que propõe reformar a estrutura administrativa nacional, que acabaria por ser um

pilar de uma nova estrutura e a procura de um projecto global da sociedade, a partir

do qual, se tornasse possível, como ele gostava de referir, terminar com o Portugal

velho e lançar as bases do Portugal Novo.

Neste contexto, não será de estranhar que a reforma proposta por Mouzinho da

Silveira procurasse dar resposta aos objectivos para a construção de aparelhos de

173 Bonnin, Charles-Jean Baptiste. 1808. De l’importance et de la necessite d’un code aministratif.

Paris: Chez Garnery.

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148

Estado liberais, que exigiam sistemas administrativos novos, onde “cada instituição

reproduz o modelo representativo subjacente à organização do Estado, o que

significa que os agentes administrativos exercem o poder não em nome próprio,

mas em nome, por um lado, da instituição que representam e, por outro, do próprio

Estado, que neles delega parte da autoridade de que está investido”174.

De igual forma procura a promoção do bem comum através da aplicação das leis

gerais, e intenta a procura de solução dos problemas locais ao nível da comunidade,

onde “justificou e legitimou a construção dos novos aparelhos administrativos, cuja

eficácia garantiria a todos, se excepção, as condições de fruição da liberdade,

necessária ao desenvolvimento pleno das actividades económicas, sociais,

culturais e mesmo religiosa”175.

Mouzinho sabia que o novo aparelho de Estado teria de abarcar todo o País e, as

leis administrativas deveriam complementar o que estava exarado na Carta

Constitucional, pelo que, a nova máquina administrativa tinha de ser capaz de

garantir ao Estado “o exercício do poder em todo o território nacional, de forma a

reprimir os intentos das velhas classes dominantes e a assegurar o predomínio

político das forças burguesas ascendentes”176.

O decreto de 16 de Maio de 1832, tinha como objectivo a aplicação dos preceitos

inscritos na Carta Constitucional,177 sobre a administração pública e, na sua ideia

principal, a separação dos poderes consagrada na Constituição de 1822.

Mouzinho não concordava com a indefinição de atribuições aos diferentes órgãos

e, consequentemente, a sobreposição de funções, por vezes incompatíveis, que daí

advinham. Pelo que, estando criado o modelo teórico bastaria a criação de leis para

a sua operacionalização.

174 Manique, António Pedro. 1989. Mouzinho da Silveira. Liberalismo e Administração Pública.

Lisboa: Livros Horizonte, p. 76.

175 Manique, António Pedro. 1989. Mouzinho da Silveira. Liberalismo e Administração Pública.

op. cit. , p. 77.

176 Manique, António Pedro. 1989. Mouzinho da Silveira. Liberalismo e Administração Pública.

Lisboa: Livros Horizonte, p. 78.

177 Cf. Título VII da Carta Constitucional de 1826

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149

A administração era para Mouzinho da Silveira “a cadeia que liga todas as partes

do corpo social e que lhe dá forma única”178 ficando implícita a ideia de

uniformização do espaço territorial, aplicando a todo o país, as normas contidas na

lei geral, respeitando as características das comunidades locais, bem como os seus

interesses e, cujas deliberações, deviam pertencer aos representantes locais, sem

desvirtuar a lei geral. É nestes termos que o decreto que trata da reforma

administrativa vem estabelecer a separação entre os diferentes órgãos

administrativos, tanto do ponto de vista orgânico, como do ponto de vista funcional.

A proposta contido no decreto supra referido, divide Portugal em províncias,

comarcas e concelhos, abolindo-se todas as outras divisões territoriais em vigor

desde o ancien regime.

Quanto aos órgãos propostos, seriam todos os de natureza executiva de nomeação

régia. Na província, o Prefeito, seria o chefe único a quem compete administrar a

circunscrição. É o chefe único de toda a administração da província, delegado da

autoridade do rei e investido de todas a atribuições. Depende directamente do rei,

competindo-lhe vigiar os interesses da Fazenda Pública.

Na sua visita anual pela província, o Prefeito deve, in loco, aperceber-se das

necessidades públicas, obter informação relevante sobre todos os aspectos e

informar o Governo dos melhoramentos e reformas a implementar na sua província.

Nas comarcas, subdivisão da província em que não resida o Prefeito, deveria existir

um seu delegado, o Sub-Prefeito. Este executaria de forma delegada as atribuilções

acometidas pelo prefeito. A Junta de Comarca apoiava o Sub-Prefeito.

O concelho seria administrado por um Provedor, nomeado pelo Rei e é depositário

único e exclusivo da autoridade administrativa, e enquanto delegado do poder

executivo tem a seu cargo velar pela boa execução das leis, enquanto chefe da

polícia na prevenção dos delitos, como encarregado de todas as funções executivas

da municipalidade possui as atribuições de benevolência e de confiança que o

fazem, na sua localidade, o tutor e defensor natural de todos os interesses

178 Manique, António Pedro. 1989. Mouzinho da Silveira. Liberalismo e Administração Pública.

Lisboa: Livros Horizonte, p 79.

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comuns”179. O Provedor não teria vencimento. O seu “salário” era uma forma de

gratificação, cujo valor decorria de uma percentagem do rendimento líquido dos

bens do concelho.

Cada um destes magistrados seria coadjuvado por diferentes corpos

administrativos, que se consubstanciaria numa junta de cidadãos da confiança dos

povos e por eles eleitos para “fiscalizar a administração e deliberar ou emitir

pareceres sobre determinados assuntos de interesse local ou regional”180.

A Câmara Municipal do Concelho funcionava junto do Provedor electiva, mas

apenas com meros poderes de iniciativa e de consulta. Os membros deste órgão –

os vereadores - eram eleitos pelos cidadãos com determinados rendimentos.

A composição da Câmara variava de acordo com o número de fogos do concelho,

nos concelhos com menos de 2000 fogos três vereadores, entre 2000 e menos de

5000 fogos cinco vereadores, mais de 5000 e menos de 10000 sete vereadores, mais

de 10000 e menos de 20000 nove vereadores, e com mais de 20000 fogos treze

vereadores. O Presidente da Câmara, no diploma em apreço, era o vereador que na

eleição tivesse o maior número de votos. O mandato dos vereadores, bem como o

do presidente da câmara, tinha a duração de três anos conforme se dispunha no

artigo 8.º do Decreto em apreço. Por sua vez o Prefeito era assistido pela Junta Geral

da Província.

Além destes agentes, propunha-se a criação de uma autoridade administrativa

judiciária, o Conselho da Prefeitura, e que forma especial, decidia sobre o

contencioso da administração. O Conselho de Estado exercia a Inspecção Geral

Administrativa.

E quanto ao tempo de função o citado diploma referia que “todos os magistrados

administrativos são amovíveis a prudente arbítrio do governo, todos os corpos

administrativos eleitos podem ser dissolvidos na forma que as leis determinam”181.

Ficavam igualmente revogadas todas as leis, decretos e disposições em contrário.

179 Cf. Artigo 60º, capítulo V, título II. Decreto n.º 23 de 16 de Maio de 1832.

180 Manique, António Pedro. 1989. Mouzinho da Silveira. Liberalismo e Administração Pública.

Lisboa: Livros Horizonte, p. 81.

181 Cf. Artigo 10º, capítulo II, título I. Decreto n.º 23 de 16 de Maio de 1832.

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Mouzinho da Silveira, dando expressão prática ao preceituado na Carta

Constitucional, define uma “delimitação conceptual entre as funções

administrativa e judicial do Estado; segundo, a separação orgânica entre as

instituições que só poderiam exercer a primeira e aquelas outras que, por seu lado,

só poderiam desempenhar a segunda; e terceiro, o estabelecimento de mecanismos

destinados a impedir qualquer sobreposição ou acumulação de outras autoridades

e funções cuja separação era tão importante assegurar como a da administração e

a da justiça”182.

Apesar de se estar perante um decreto novo e reformador, a operacionalização do

seu conteúdo nem sempre foi pacífica. Recorde-se a forte influência francesa e a

elevada concentração de poderes do Prefeito, assente num aparelho administrativo

demasiado centralizado. Neste sistema, as câmaras viram confirmadas e

acrescentadas todas as suas antigas atribuições, podiam deliberar sobre todos os

problemas do concelho, mas cabia ao Provedor a sua execução, dando-lhes pouca

autonomia e demasiada dependência em relação ao poder central.

A reforma de Mouzinho da Silveira, que durante muito tempo foi considerada como

sendo “improvisada em Ponta Delgada, na pressa de estampar no jornal oficial da

regência os textos jurídicos da revolução liberal antes do desembarque no

continente”,183 acabaria por ser reconhecida como importante no cotexto das

reformas administrativas nacionais, pois que “ tudo foi feito à pressa, não há

duvida. Mas que se tratasse de improviso puro, vindo da inspiração de um

Mouzinho deslumbrado pela observação das instituições francesas, durante as

emigrações, isso é que já não será tão exacto.”184 E ao mesmo tempo, acontece

alguma retratação face às perspectivas iniciais, pois que, Mouzinho, terá sido “mais

182 Amaral, Diogo Freitas do. 2008. Do absolutismo ao liberalismo: as reformas de Mouzinho da

Silveira. Coimbra: Edições Tenacitas, pp. 26-27.

183 Caetano, Marcello, Os Antecedentes da reforma administrativa de 1832 (Mouzinho da Silveira),

in Estudos de História da Administração Pública Portuguesa… op. cit. p. 359

184 Amaral, Diogo Freitas do. 2008. Do absolutismo ao liberalismo: as reformas de Mouzinho da

Silveira,op. cit. pp. 26-27.

184 Caetano, Marcello, Os Antecedentes da reforma administrativa de 1832 (Mouzinho da Silveira),

in Estudos de História da Administração Pública Portuguesa… op. cit. p. 360

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152

original na medida em que não se limitou a transpor apressadamente para os seus

decretos preceitos ou conceitos bebidos em França durante a emigração, sem

cuidar da sua adaptação a Portugal. Ele afinal veio dar corpo aos trabalhos de dez

anos e limitou-se a concretizar ideias que andavam no ar respirado pelos liberais

portugueses do seu tempo”185 ainda que, “tenha sido menos original , uma vez que

não foi sua apenas, a convicção da necessidade das reformas de 16 de Maio nem a

obstinação de decretá-las.”186

Outros autores e críticos seus contemporâneos também se pronunciaram sobre a sua

obra, apoiando ou asperamente criticando. Um desses deles foi Almeida Garrett,

que de forma clara assumia que “Mouzinho pensava no futuro, e pela boca do Príncipe

cuja confiança alcançara, dava leis ao porvir. Seja qual for o ponto de vista de que se

considerem, forme-se o conceito que se formar delas, é inquestionável que as leis de 16

de Maio, de 30 de Julho e de 13 de Agosto de 1832 são um grande monumento, são o

termo onde verdadeiramente acaba o velho Portugal e de onde começa o novo.” 187

E o sempre corrosivo e assertivo Oliveira Martins, não deixa de reconhecer que foi

a Mouzinho da Silveira “[...]que coube a honra de dar à revolução um caracter social

mais profundo, mais grave, mais fecundo, do que o caracter de intriga pessoal, [...] ou de

questão dinástica. Desde logo o papel do ministro acabou. Segurara com tamanha força

a Ocasião, que a guerra foi condenada a revolucionar o País. Passou como passa rápido

um aerolito e apagou-se caindo. Foi um clarão de luz que rompeu num instante as trevas

anteriores, deixando logo tudo entregue ao formigar obscuro dos homens cegos. Desse

momento em que um estadista, com uma teima e uma pena, impôs a um exército a

obrigação de consagrar a vitória com uma revolução; desse momento ficava tanto, quanto

à França custara anos de anarquia e terrores, de ruínas, de guerras, tiranias, misérias,

torpezas. As três leis de 16 de Maio, 30 de Julho e 13 de Agosto são o nosso”.188

185 Caetano, Marcello, Os Antecedentes da reforma administrativa de 1832 (Mouzinho da Silveira),

in Estudos de História da Administração Pública Portuguesa… op. cit. p. 369

186 Caetano, Marcello, Os Antecedentes da reforma administrativa de 1832 (Mouzinho da Silveira),

in Estudos de História da Administração Pública Portuguesa… op. cit. p. 369

187 Garrett, Almeida, «Memória histórica [...]»,Obras de Almeida Garrett, vol. I, Porto, 1963 op.

cit, p. 994.

188 Martins, J. P. Oliveira. 1976. Portugal Contemporâneo, t. I, liv. III. Cap. V, 8.ª ed., Lisboa:

Guimarães e C.ª Editores, pp. 346-37

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153

Já o grande estudioso da Guerra Civil do século XIX, Luz Soriano, ainda que

apresentando um diferente retrato de Mouzinho da Silveira, chega, contudo, a

conclusão idêntica quanto ao alcance da sua obra:

“Mouzinho da Silveira [...] era um destes maníacos e visionários políticos a quem nada é

capaz de demover da teima, e aferro às opiniões que professam, fundadas no orgulho da

sua sabedoria, e crentes de que neste ponto nada ha capaz de os igualar. Espirito

systematico e especulativo, não só desanimava com quaesquer obstáculos que as

circunstâncias lhe oppunham, mas era por outro lado excessivamente irritável, e cheio de

grosseria quando todos os projectos que ideava lhe contradissessem ou rejeitassem um

só8. Enquanto D. Pedro tratava dos arranjos militares do exército libertador, sucedia

igualmente que o seu ministro e secretario de estado dos negócios da justiça e da fazenda,

José Xavier Mouzinho da Silveira, convencido de que a sua penna vinha a Portugal fazer

uma formal revolução contra D. Miguel e o seu governo com o decretamento de medidas,

que para esse fim concebera, principiou a propor-lhas á assignatura, sendo umas, por

assim dizer, destinadas a armar à popularidade, e outras à derrogação das antigas leis,

reguladoras dos differentes ramos da administração publica, e substitui-las por outras

favorecedoras do estabelecimento do novo systema de governo, estatuído pela carta

constitucional. Relatando, como temos feito, o que nos Açores se passou, com relação á

parte mais importante da legislação de D. Pedro, assumpto sobre o qual julgamos

conveniente chamar a atenção do leitor, para o instruir das leis que mais concorreram

para desmoronar o nosso antigo systema governativo [...]”.189

Os novos princípios da administração pública.

A criação de um corpo assalariado de funcionários públicos e a teoria do serviço

público.

Pressuposto de destruição dos poderes da aristocracia e notáveis locais

As finanças públicas na óptica de Mouzinho da Silveira

Execução da carta constitucional

189 Soriano, Simão José da Luz. 1867. História da Guerra Civil e do estabelecimento do Governo

Parlamentar em Portugal: Compreendendo a História Diplomática, Militar e Política deste Reino

desde 1777 até 1834. Primeira Parte. Tomo III. Lisboa: Imprensa Nacional, p. 387

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154

Substituição de um sistema de tributação local que permitia ao clero e nobreza a

apropriação de parte dos impostos

Extinção do Erário Régio

Criação do Tribunal do Tesouro Público

Criação do Ministério da Fazenda

Elemento Base

Recebedores Gerais: junto dos prefeitos mas independentes

Recebedores Particulares: nas Câmaras Municipais

Escrituração rigorosa das receitas e despesas, com inspecção a todos os níveis

Universalidade da contribuição

A Reforma da justiça

Divisão judicial do território

Círculos

Comarcas

Julgados

Freguesias

Supremo tribunal Administrativo: Lisboa

Círculos: Tribunais de 2.ª instância

Comarcas: Juízos de 1.ª instância

Julgados: Juízes ordinários

Freguesias: Juízes de paz e juízes pedâneos

41.2. Da “ordem” ao “cabralismo”. A “regeneração”. Um novo liberalismo. O

fracasso do reformismo liberal.

41.2.1. Carta de Lei de 25 de Abril de 1835

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155

A carta de Lei de 25 de Abril de 1835, aprovada e publicada no contexto da

contestação à reforma administrativa de Mouzinho da Silveira, divide o Reino em

Distritos – até 17 -, administrados por um magistrado de nomeação régia, havendo

nele, uma Junta de Distrito electiva com as mesmas atribuições das Juntas de

Província criadas pelo Decreto de 16 de Maio de 1832.

Os distritos dividiam-se em Concelhos, existindo em cada um deles, um Agente de

Administração geral, designado de Administrador do Concelho, escolhido pelo

Governo, sob lista tríplice, nos concelhos onde o município só tenha 5 membros e

quíntupla nos restantes concelhos, feita por eleição directa. Os Concelhos de

Prefeitura seriam substituídos por três membros das Juntas de Distrito, os mais

votados e mais antigos.

O Governo ficava autorizado, nos termos desta Carta de Lei a fazer a divisão

administrativa do reino e os regulamentos indispensáveis para a sua implementação

e apresentar junto das Cortes na próxima sessão para aprovação, pelo que o Decreto

de 18 de Julho de 1835 e nos termos expressos da Carta de lei de 25 de Abril de

1835, determina a divisão administrativa do país.

Nos termos do decreto supra, o Reino ficará dividido em Distritos, subdivididos em

Concelhos e estes em Freguesias. Em cada Distrito, existirá um magistrado com a

designação de Governador Civil, em cada Concelho, um Administrador de

Conselho e em cada Freguesia um Comissário de Paróquia.

Junto a cada magistrado administrativo e segundo a ordem da sua hierarquia um

corpo de cidadãos eleitos pelos povos, a saber, Junta Geral do Distrito, junto ao

Governador Civil, Câmara Municipal junto ao Administrador do Concelho e Junta

de Paróquia, junto ao Comissário de Paróquia. Haverá ainda em cada capital de

Distrito um conselho permanente com a designação de Conselho de Distrito.

As Juntas de paróquia são integradas por 3 membros nas freguesias com menos de

200 fogos, 5 membros nas freguesias entre 200 a 600 fogos e nas restantes

freguesias 7 membros. As eleições para este órgão decorrem de forma idêntica às

da Câmara Municipal. A eleição destas é directa e da forma determinada pelo

Decreto de 3 de Junho de 1834.

Quanto às Juntas Gerais do Distrito, integram-nas 13 procuradores, eleitos pelos

eleitores de província, da mesma forma dos deputados, com excepção dos Distritos

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156

de Lisboa e Porto, onde se integram respectivamente, 17 e 15 procuradores. São

elegíveis todos os que o podem ser para deputados.

O Governador Civil, é no distrito o chefe da administração, nomeado por decreto

do Governo, de igual modo o Secretário-geral do Distrito é nomeado pelo Governo.

Ambos têm salário fixo.

O Administrador do Concelho, é escolhido pelo Governo sobre uma lista tríplice

nos concelhos, cuja municipalidade tiver até 5 membros e quíntupla nos restantes

por eleição directa. Não tem vencimento fixo, tendo no entanto, uma gratificação

paga pelo rendimento do concelho.

O Comissário da Paróquia é escolhido pela administração do concelho sob lista

tríplice através de eleição directa, e podem ser reeleitos. As suas funções são de

natureza gratuita.

O Conselho de Distrito é integrado por três membros da Junta Geral do Distrito

(mais próximos do mais votado e maior idade), sendo as suas funções de natureza

gratuita, e presidido pelo Governador Civil que tem voto de qualidade.

41.2.2. O Código Administrativo de 1837

Na sequência das alterações às propostas de lei de Mouzinho da Silveira, de 1835

que precederam à reorganização administrativa do país, foi apresentado e aprovado

o primeiro código administrativo que inscreve em lei formal o conjunto dos

pressupostos da Administração Pública Nacional. Esta codificação decorre, das

grandes contestações e descontentamento manifestado pelas populações quanto às

leis de Mouzinho, tal como as iniciativas legislativas atrás referidas, com o intuito

de amenizar os ânimos mais exaltados.

A exaltação tinha levado ao poder os principais defensores da Constituição de 1822

com destaque na oposição à Carta Constitucional de 1826. O “Setembrismo”, a

revolução de 9 de Setembro de 1836, restaura a Constituição de 1822 e com ela, de

novo as incidências administrativas aí propostas.

O decreto de 11 de Setembro deste ano, publicado pelos revolucionários, altera a

designação dos Governadores Civis, para Administradores Gerais, mantendo-se

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157

provisoriamente o que estava instituído - Distritos, Juntas Gerais e Conselho de

Distrito -.

Suprime-se, por Decreto de 15 de Setembro de 1836, o Conselho de Estado,

passando as suas funções para o Conselho de Ministros. Em 3 de Outubro, um novo

decreto procede à remodelação do Conselho de Distrito.

Entretanto, na noite de 3 para 4 de Novembro ocorre um golpe de estado contra-

revolucionário, designado de “Belenzada”, e na sequência do qual a Rainha, demite

o Governo em funções. Volta a altera-se o status quo político e em Dezembro a

alteração administrativa viria a desenhar-se de novo.

É na sequência desta instabilidade que o Decreto de 6 de Novembro de 1836

procede a uma nova divisão administrativa. O território do Reino ficava dividido

em 351 Concelhos, suprimindo-se 445 municípios. E, publicar-se-ia de seguida o

Decreto de 31 de Dezembro que aprovava o Código Administrativo.

O Código Administrativo era composto por 256 artigos, repartido por seis Títulos:

I. Organização Administrativa, II. Sem Designação, mas tratando de matéria da

competência e atribuição dos magistrados administrativos, III. Também inominado,

versando sobre a formação dos Concelhos de Distrito e suas atribuições, IV.

Disposições Gerais, VI. Disposições penais, VII. Disposições transitórias.

Decorre do Título I que a divisão administrativa do reino, assentava em Distritos

administrativos subdivididos em Concelhos e estes em Freguesias. O número de

distritos e concelhos estaria em conformidade com o Decreto de 6 de Novembro de

1836, respectivamente de 17 e 51, devendo o número de freguesias e sua extensão

de ser oportunamente regulado.

Nos Açores, seria o Arquipélago dividido em 3 Distritos, Ponta Delgada, onde se

integravam as ilhas de S. Miguel e Santa Maria, Angra, com as ilhas de Terceira,

Graciosa e São Jorge, e Horta, integrando as restantes ilhas.

A Madeira, ficaria com um Distrito, Funchal, de que faziam parte as ilhas da

Madeira e Porto Santo.

Em cada Distrito, haveria um magistrado administrativo, designado Administrador

Geral, e em cada Concelho, um Administrador do Concelho, enquanto em cada

Freguesia, existiria um Regedor de Paróquia.

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Junto a cada um dos magistrados, haveria um corpo de cidadãos eleitos pelo povo:

Junta Geral Administrativa do Distrito, Junto ao Administrador Geral, a Câmara

Municipal, Junto ao Administrador do Concelho e a Junta de Paróquia, junto ao

Regedor de Paróquia. Instalar-se-ia ainda em cada capital de Distrito, um Conselho

Permanente, com a designação de Conselho de Distrito.

Quanto à composição daqueles órgãos, dispunha o art. 9.º que as Juntas de Paróquia

seriam compostas por três membros nas freguesias com menos de 200 fogos, de 5

nas que tivessem entre 200 e 800 fogos e de 7 nas restantes. Nas freguesias com

número insuficiente de cidadãos para formação de uma junta de paróquia, esta podia

por decisão do Administrador Geral em Conselho de Distrito, ficar anexada a uma

ou mais freguesias vizinhas.

Podiam exercer o direito de voto na eleição das juntas de paróquia, todos os

cidadãos residentes na paróquia, no gozo dos seus direitos civis e políticos. E,

podiam ser eleitos os cidadãos residentes na paróquia que pudessem votar na sua

eleição.

Em cada concelho uma Câmara Municipal, integrada por cinco vereadores nos

concelhos até 1.000 fogos, por sete nos que tivessem entre 1.000 e 6.000 fogos e de

novo acima de 6.000 fogos. A Câmara do Porto teria onze vereadores e a de Lisboa,

13 vereadores. O Presidente da Câmara seria o mais votado pelos vereadores e o

fiscal da Câmara também eleito pela Câmara entre os vereadores.

Podiam votar na eleição das Câmaras Municipais cidadãos portugueses e

estrangeiros naturalizados, maiores de 25 anos, com domicílio de um ano no

concelho com o gozo dos seus direitos políticos e civis e “que tiverem uma renda

anual de cem mil réis proveniente de bens de raiz, indústria, emprego ou

comércio”. Tratava-se de uma capacidade eleitoral censitária, não universal,

excluindo, para além do mais, os pobres, as mulheres e os homens de idade inferior

a 25 anos, entre outras restrições indicadas no art. 24.º.

A possibilidade de exercício do poder, continuava ainda limitada aos mais

poderosos e, por conseguinte, o governo local ficava na mão destes, enquanto todos

os restantes ficavam legalmente impedidos de integrar o governo das localidades.

Era o corte com a legislação mais democrática do tempo da revolução setembrista.

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159

Quanto ao Administrador Geral, cargo de nomeação do governo, com atribuições

expressas no art. 105.º, continuava a ser Chefe superior da Administração. O

Administrador do Concelho escolhido pelo Governo sobre lista quíntupla feita por

eleição directa e pela mesma forma das eleições da Câmara Municipal. O Regedor

de Paróquia, é eleito, de forma directa, de forma idêntica às demais eleições,

servindo por dois anos, podendo ser reeleitos.

O Código Administrativo permitia no entanto, uma certa descentralização face ao

poder central, mormente ao nível das Câmaras Municipais com o grande número

de competências atribuídas e no âmbito das deliberações tomadas pelo seu

Presidente, acrescentando-se o facto de a sua eleição ocorrer de forma directa. No

entanto, todos restantes órgãos, cuja nomeação dependia poder central viam tolhida

a sua autonomia.

Pouco tempo após a promulgação do Código, a contestação voltou ao país.

Argumentando, sobretudo, com a necessidade da sua revisão, apontavam-se para

tanto razões, tais como a existência de grande número de cargos electivos, a duração

reduzida dos cargos, a multiplicidade e frequência das eleições, a falta de

responsabilidade dos funcionários. Como refere Marcello Caetano, a “crítica do

Código de 1836 está feita pelos próprios resultados dele. Inspirada em generosas

ideias nacionalistas e liberais, quis enxertar nas antigas instituições municipais um

democratismo exótico para o qual não havia no país nem preparação, nem

vocação”. 190

Neste contexto, em 3 de Agosto 1838 teve inicio a preparação para a revisão do

código, tendo sido nomeada para o efeito, uma comissão cujos resultados foram

apresentados pelo Ministro do Reino, Fernandes Coelho, na Câmara dos Deputados,

em 16 de Março de 1839. Acontece que não terá sido discutida nunca.

Em 17 de Janeiro de 1840, o Ministro do Reino, Rodrigo da Fonseca Magalhães,

apresenta nova proposta de revisão do Código. A Comissão de Administração

Pública da Câmara dos Deputados, na sua sessão de 24 de Agosto, apresenta uma

contraproposta, da qual resultaria a Lei de 29 de Outubro de 1840.

190 Caetano, Marcello, Estudos de História da Administração Pública Portuguesa, Org. e prefácio

de Diogo Freitas do Amaral, Coimbra, Coimbra Editora, 1994 p. 392

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160

41.2.3. A Lei de 29 de Outubro de 1840

A Lei de 29 de Outubro de 1840 revoga algumas das disposições do Código

Administrativo, no que se refere ás Juntas de Paróquia, que passam a integrar três

membros nas que não excedam mais de quinhentos fogos e cinco nas restantes. O

Pároco é o seu Presidente e membro da Junta, sendo o Secretário e o Tesoureiro

nomeados pela Junta de entre os seus membros ou fora deles. Deixam, por outro

lado, de fazer parte da organização administrativa, limitando-se as suas atribuições

à administração do que pertence à Igreja e dos bens comuns dos fregueses, bem

como a prática de actos de beneficência que lhes sejam recomendados por lei ou

autoridades superiores.

As Câmaras Municipais, são constituídas por cinco vereadores nos concelhos com

mais de 3.000 fogos e por sete nos concelhos com povoação superior, com excepção

de Lisboa e Porto, mantendo o mesmo número de vereadores. São eleitas por

mandatos de 2 anos.

Quanto às Juntas Gerais do Distrito, são estas integradas por procuradores

nomeados pelas Câmaras e pelos Concelhos Municipais. O Administrador Geral

em Conselho de Distrito designaria o número de procuradores que deviam eleger-

se no município.

Os Regedores de Paróquia, passavam a ser propostos pelos administradores dos

concelhos ou julgados e nomeados por um ano, pelo administrador geral. Os

regedores também ficavam excluídos dos quadros dos magistrados administrativos.

O Administrador do Concelho era nomeado pelo Rei e amovíveis a qualquer

momento. O Conselho de Distrito exercia o contencioso administrativo.

Em 16 de Novembro, nova lei é publicada para regular a organização e atribuições

dos conselhos municipais e a situação dos tesoureiros dos concelhos. Concluía-se

assim, a organização prévia do Código Administrativo de 1842 que a breve trecho

iria ser aprovado e acabaria por ser o que durante mais tempo vigoraria em Portugal.

41.2.4. O Código Administrativo de 1842

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161

Em 1842 entrava em vigor um novo Código Administrativo fruto das alterações

legislativas que já investigamos e que, de certo modo, procurava dar guarida às

reivindicações que se faziam sentir um pouco por todo o país.

O Código Administrativo manteve grande parte dos critérios adoptados em 1840 e

igualmente, consagrou a obrigatoriedade de se saber ler, escrever e contar, situação

que, num contexto de elevadas taxas de analfabetismo, contribuiu para afastar a

esmagadora maioria da população adulta masculina do acesso ao poder municipal,

reduzindo, obviamente, o número de eleitores e elegíveis. O regime de apuramento

das vereações municipais mantinha-se censitário e dependente da capacidade

individual, logo, verdadeiramente restritivo. Em suma, a participação no acto

eleitoral, como eleitor e, sobretudo, como elegível, tornou-se privilégio de um

pequeno grupo de cidadãos. De igual forma manteve as atribuições e organização

dos corpos administrativos nele consagrado.

Nestes termos, a divisão do território continua a estar assente em Distritos e

Concelhos, sendo os de Lisboa e Porto divididos em Bairros. O Distrito era

administrado por um magistrado com a designação de Governador Civil e o

Concelho por um Administrador do Conselho. Poderiam ser administrados pelo

mesmo administrador, mais do que um concelho mediante proposta do Governador

Civil e decisão do rei. Os Bairros de Lisboa e Porto seriam administrados por um

Administrador de Bairro. Junto a cada um dos magistrados administrativos

funcionava um corpo de cidadãos eleitos pelo povo: Junta Geral, junto do

Governador Civil e Câmara Municipal junto do Administrador do Concelho.

Determinava ainda o novo Código a criação de um Tribunal Administrativo em

cada distrito, com a designação de Conselho do Distrito.

Em comparação com o Código de 1837, as alterações são evidentes e importantes.

O regresso da designação Governador Civil, como a figura mais importante do

Distrito e o chefe superior de toda a administração do seu distrito. Nomeado por

decreto do Governo, assume atribuições no domínio da organização da fazenda

pública para além das que lhe eram acometidas na esfera administrativa e política.

É o exemplo claro, da centralização administrativa que dominava o espirito do

poder central. Os seus elementos assumiam assim grande capacidade de ingerência

junto dos órgãos locais.

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162

Importante também, é a restrição à intervenção na gestão dos municípios. Ao

contrário do Código de 1836, o novo código, limita tal exercício àqueles que

“pagarem anualmente de décima de juros, foros e pensões, ou de quaesquer

proventos d’empregos de câmaras municipais, misericórdias e hospitaes, a quantia

de dez mil réis” – art. 13.º, II -, e aos que tivessem uma prestação mensal de cem

mil réis, funcionários do Estado, na efectividade de serviço ou reforma com

ordenado superior a cem mil réis anuais.

Resulta que a administração municipal foi limitada aos maiores contribuintes dos

concelhos, impedindo desta forma, a possibilidade do acesso a vereações e

magistraturas a qualquer elemento do concelho, como acontecia na vigência do

código de 1836. Só podiam, integrar o concelho municipal os vogais do conselho

municipal que pagassem maior quota de décima no concelho, devendo saber ler,

escrever e contar.

Diferentes ainda são as atribuições da Junta Geral do Distrito. No código de 1842

são expressas atribuições deliberativas ou consultivas – art. 215.º -, competindo a

execução das atribuições deliberativas ao Governador Civil. Por seu lado, as

atribuições da Junta Distrital, limitam-se às consagradas no art. 253.º, tratando-se

da informação ao Governo sobre os melhoramentos a fazer na divisão

administrativa do território e concessão de algumas licenças e alvarás – art. 254.º-.

O Administrador do Concelho, é também no quadro do Código de 1842, um

elemento de centralização do poder em face da sua nomeação pelo rei e da sua

dependência directa para efeitos de exoneração. Depende, no entanto, do

Governador Civil para a execução das leis e regulamentos da administração – art.

246.º-.

De inovador, o código de 1842, apresenta o Conselho de Distrito como tribunal

administrativo, integrado pelo Governador Civil, que presidia e por quatro vogais

nomeados pelo Rei sobre proposta da Junta Geral. Das suas atribuições destacam-

se o dar parecer ao Governador Civil sobre os assuntos relativos à administração

geral dos concelhos e o julgamento do contencioso administrativo, com recurso

para o conselho de Estado.

O Código de 1842, determinava ainda a existência em cada freguesia de uma Junta

de Paróquia e de um regedor de Paróquia. A junta seria eleita directamente pelos

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163

eleitores da paróquia, apenas podendo votar, no entanto, os eleitores que tivessem

capacidade para o fazer para a Câmara Municipal.

A Junta de Paróquia continuava fora da organização administrativa pública, ao

contrário do definido no Código de 1836, sendo constituída pelo Pároco, que

preside e por dois ou quatro vogais eleitos directamente. O regedor de Paróquia,

também não fazia parte da organização administrativa pública. Era nomeado pelo

Governador Civil de quem dependia, mediante proposta da Administração do

Concelho, pelo prazo de um ano, com possibilidade de recondução.

Os distritos, em número de 21 entre o Continente e Ilhas, ficavam organizados da

seguinte forma: Braga, Porto, Vila Real, Bragança, Aveiro, Coimbra, Viseu,

Guarda, Castelo Branco, Leiria, Lisboa, Santarém, Portalegre, Évora, Beja, Faro,

Ponta Delgada, Angra, Horta, Funchal. O número de concelhos ficava registado

como sendo de 413.

Tendo na época sido um passo significativo para a reorganização administrativa do

país, ainda assim, no tocante ao número de distritos, concelhos e freguesias

continuavam a apresentar um número elevadíssimo em termos de custos e de

organização administrativa, motivo pelo qual, logo em 1843, pela Lei de 29 de

Maio, se autoriza o Governo a reduzir até 12 o número de Distritos no Continente

e a promover a alteração da divisão territorial em concelhos.

Os distritos, no entanto, não sofreriam qualquer alteração, mas quanto aos

concelhos estes acabariam por ser alterados no seu número. Para além disso, ao

administradores dos concelhos passam a poder ser nomeados por de entre os

indivíduos estranhos ao concelho, o que evidenciava de novo o regresso ao

centralismo do poder central.

A longa vigência do código, permitiu por seu lado, organizar a administração

pública nacional, originando a “formação de uma burocracia competente e a

elaboração de uma compacta glosa em torno dos seus artigos, sedimentação de

usos, práticas e doutrina preciosíssima para a consolidação do sistema

administrativo e futuras reformas na legislação”. 191

191 Caetano, Marcello, Estudos de História da Administração Pública Portuguesa, op. cit. p

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164

41.2.5. As tentativas de reforma do Código Administrativo de 1842

O Código Administrativo foi sendo objecto de várias reformas e tentativas de

reforma, quer no domínio das circunscrições administrativas, quer no domínio da

tentativa de promoção da descentralização administrativa, quer ainda no sentido da

modernização do articulado do próprio código, conformando-o com os novos

tempos e com os novos pressupostos.

Uma das primeiras tentativas, foi levada a efeito por Almeida Garrett, pela qual o

famoso escritor e estadista, propõe a divisão administrativa em conformidade com

a reforma de Mouzinho – Províncias, Comarcas e Concelhos -, a que acrescia as

Paróquias. No concelho a administração pertencia às Câmaras Municipais, cujo

presidente seria designado pelo Governo de entre os vereadores e conselheiros

municipais. Propunha a extinção das administrações do concelho e seria nomeado

um Provedor de Câmara para fiscalização e inspeção, cujas atribuições ficariam

próximas das dos antigos corregedores.

Em cada Província deveria existir um Governador Civil, uma Junta e um Conselho

de Província, este último mantendo as atribuições consagradas ao Conselho de

Distrito, quanto ao contencioso administrativo. Finalmente, propunha a

manutenção da Junta de Paróquia e do Regedor de Paróquia.

A proposta nunca seria discutida ou votada na Câmara dos Deputados pelo que não

passaria disso mesmo, o ser uma proposta.

Anos mais tarde, ocorreria de novo uma tentativa de reforma, quando em 16 de

Abril de 1862 foi criada uma Comissão, nomeada pelo Ministro do reino Anselmo

José Braamcamp e cujo Presidente era o Visconde de Castro e os vogais os

Conselheiros José Silvestre Ribeiro e Diogo António Palmeiro Pinto, o Dr. Justino

António de Freitas e José Maria da Silva Leal.

A comissão deveria rever e reformar o Código administrativo, codificar e

harmonizar aas disposições posteriores e apresentar as propostas tidas por

convenientes para a melhoria da organização administrativa.

Desta comissão resultaram duas propostas de lei, mas com a substituição do

Ministro em Janeiro de 1864, acabariam por não se concretizar em qualquer

alteração. A primeira proposta, sugeria a divisão do reino em Comarcas, estas em

Concelhos e estes em regedorias. As comarcas correspondiam às comarcas judiciais

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165

enquanto as regedorias podiam integrar uma ou mais freguesias. Os magistrados

administrativos, seriam os seguintes: Governador Civil, Administrador de

Comarca, Adjunto do Administrador de Comarca, que em cada Concelho presidia

à Câmara, sendo nomeado pelo Rei e pelo Regedor. Subsistiam ainda as freguesias

com as Juntas de Paróquias.

A segunda proposta, apresentava um quadro de magistratura administrativa em que

se integravam os secretários gerais dos governos civis. Nestes termos, as categorias

seriam as seguintes: Governador Civil (1.ª, 2.ª e 3.ª classe), Conselheiro de Distrito,

Secretário-geral (3 classes), Administrador de Comarca (3 classes). Apenas o lugar

de Conselheiro não era de acesso.

41.2.6. O Código de 1867: A lei de Administração civil

Ainda que não hajam obtido sucesso as tentativas de reforma do Código

Administrativo de 1842, acontece que em 29 de Janeiro de 1867, Martens Ferrão,

então ministro do Reino, apresenta na Câmara dos Deputados uma proposta de lei

de administração civil, a qual se consubstanciaria na lei de Administração Civil,

aprovada pela Carta de Lei de 17 de Junho de 1867.

Presidia ao espírito e doutrina da nova proposta a procura da descentralização

administrativa, promoção de uma eficaz acção do poder central, responsabilidade

em toda a escala da Administração Pública, a organização da fazenda e da

contabilidade paroquial, municipal e distrital, representação popular nos corpos

electivos e a constituição do contencioso administrativo.

A lei dividia-se em 8 capítulos: Da divisão do território; Da paróquia e sua

administração; Do município; Do Distrito; Do contencioso administrativo; Da

eleição dos corpos administrativos; Dos magistrados e empregados administrativos;

Da inspecção administrativa.

No que respeitava à divisão administrativa do território, propunha-se na Lei a

divisão em Distritos, Concelhos e Paróquias Civis. Cada paróquia constituiria uma

unidade para a divisão administrativa. De grupos de paróquias resultavam os

concelhos e destes os distritos. Excepção para os distritos de Lisboa e Porto, que

seriam divididos em Bairros e estes em paróquias civis.

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Os distritos, seriam os seguintes: Algarve, com capital em faro; Alto Alentejo, com

capital em Évora; Baixo Alentejo, com capital em Beja; Estremadura, com capital

em Lisboa; Beira Alta, com capital em Viseu; Beira Baixa, com capital em Castelo

Branco; Beira Central, com capital em Coimbra; Douro, com capital em Porto;

Minho, com capital em Braga; Trás-os-Montes superior, com capital em Bragança;

Trás-os-Montes, com capital em Vila Real; Nas ilhas, Madeira, com capital em

Funchal; Açores Meridionais, com capital em Ponta Delgada; Açores Orientais,

com capital em Angra do heroísmo; Açores Ocidentais, com capital em Horta. As

paróquias civis, não podiam ter habitantes em número inferior a 1.000 nas cidades

e vilas e a 500 nas zonas rurais. Substituíam-se portanto, as freguesias.

As autoridades administrativas seriam o Administrador da Paróquia, o Conselho

Paroquial e o Pároco da Freguesia. O Conselho Paroquial era de eleição popular,

com mandato de dois anos e composto por 5 membros residentes, com funções

gratuitas. A sua atribuição decorria no domínio da fazenda paroquial, para além das

competências do foro administrativo. O Administrador de Paróquia, seria escolhido

pelo Governo de entre os membros do Conselho Paroquial.

O Governo e a administração de cada concelho competiam a uma Câmara

Municipal e a um Administrador do Concelho, cada “um nos limites das respectivas

atribuições especificadas na presente lei” – art. 51.º

Cada Concelho teria pelo menos 3.000 fogos. E independentemente da dimensão

da população de cada concelho, cada Câmara Municipal seria integrada por sete

vereadores, com excepção da de Lisboa, com 13 e Porto com 11 vereadores.

Os vereadores seriam escolhidos através de eleição popular, de forma directa, sendo

os mandatos dos vereadores de quatro anos, renovados de dois em dois anos, nos

termos da lei, a saber: sorteio dos vereadores que no segundo ano deviam ser

substituídos e dois anos depois seriam os restantes substituídos.

Às Câmaras Municipais, seriam atribuídas competências deliberativas, como

corporação administrativa e meramente consultivas, como conselho municipal

junto do Administrador do Conselho. A tutela, competia ao Conselho de Distrito,

ao Governo e às Cortes Gerais.

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167

Ao Administrador do Concelho estavam atribuídas competências de três espécies:

Executor das ordens do Governo; Fiscal do serviço municipal; Magistrado do

ministério público administrativo.

Em cada Distrito, haveria uma Junta Geral do Distrito, um Governador do Distrito

e um Conselho de Distrito. A Junta geral do Distrito, deveria ser um órgão

consultivo e deliberativo, eleito de forma directa, por quatro anos, renovada por

séries de 2 anos. O Governador de Distrito era o chefe superior e único da

administração distrital, delegado do Governo, representante do Distrito e inspector

administrativo, escolhido por eleição directa.

Quanto ao contencioso administrativo, era o mesmo regulado nos arts. 282 a 353.º,

sendo o Conselho do Distrito, integrado por 6 membros efectivos na Estremadura e

Douro e 4 nas restantes. O Governador do Distrito seria o Presidente, nomeado pelo

Governo sob proposta da Junta geral do Distrito.

VER E CITAR CAPITULO VII – arts 423 a 468 – funcionários públicos

Nos arts. 469 e ss regulava-se a inspecção administrativa atribuída ao administrador

do Concelho e ao Governador do Distrito respectivamente nas paróquias civis o

primeiro e nas paróquias e concelhos o segundo.

A lei de Administração Civil, entrou em vigor de imediato, mas um decreto de 14

de Janeiro de 1867 vem determinar que “ficam sem effeito a lei de 26 de Junho de

1867, sobre administração civil, enquanto as cortes não resolverem sobre as

propostas que o governo opportunamente lhes apresentará sobre este ramo do

serviço público” e ficava “igualmente sem effeito a circunscripção administrativa

approvada por decretos de 10 e 17 de Dezembro do mesmo ano”. Efectivamente o

decreto de 10 de Dezembro aprovava a circunscrição dos distritos, dos concelhos e

das paróquias, sendo 17 os distritos no continente e ilhas, o número de concelhos

era fixado em 178 e as paróquias civis seriam de 1.93 e as eclesiásticas, 3.971.

A suspensão do Código, decorreria da deposição do Ministro do Reino, Martens

Ferrão, no decurso da revolta popular a “Janeirinha” que contestava, para além da

reforma administrativa que ameaçava acabar com vários concelhos do país, como

vimos, e que contrariava profundamente a tradição municipalista portuguesa, a

introdução de um novo imposto de consumo.

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De facto, “a política desenvolvimentista e de forte investimento em obras públicas

conduzida pelos regeneradores, unidos em torno de Fontes Pereira de Melo, não

foi acompanhada por um crescimento paralelo da economia portuguesa nem por

reformas fiscais gradativas que, ao longo do tempo, permitissem ao Estado ir

equilibrando as suas contas, mesmo que à custa dos contribuintes”.192

O Governo regenerador, viu na introdução de um novo imposto de consumo a

solução mais fácil para os problemas financeiros do Estado. Mas foi surpreendido

pela revolta que se foi espalhando pelo país, profundamente insatisfeito não apenas

com o agravamento da carga pelo que a 4 de Janeiro de 1868 o Governo regenerador

caiu, sendo substituído por um Governo liderado pelo duque de Ávila e Bolama.

Deste modo, ficaria também sem efeito na mesma data este imposto de consumo,

por decreto que determinava que os impostos extintos pelo art. 1.º da referida carta

de lei – 10 de Junho de 1867 -, continuam em vigor. Eleita a nova Câmara “foi o

acto ditatorial aprovado pela lei de 29 de Maio de 1868, publicado em 30.”193

41.2.7. De novo o regresso ao Código de 1842 e o Código de 1878

Voltava a vigorar o Código de 1842, porquanto centrando-se sobretudo na divisão

administrativa do país proposta com base no número de fogos e consequente

supressão de muitos dos concelhos, conduziria de forma drástica à oposição popular

e consequente inviabilização da aplicação do novo código.

A questão administrativa nacional, ganhava no entanto, importância maior,

porquanto o código de 1842, já decorria há muito tempo em vigor e encontrava-se

por isso desactualizado e já tinha associado uma imensa profusão de leis, decretos,

portarias e resoluções, o que impedia a sua utilização e aplicação nas melhores

condições. E, cada vez mais, o país reclamava por uma alteração na administração

pública que promovesse a descentralização administrativa e o desenvolvimento

económico e social. A reforma da administração passava a ser um imperativo

fundamental, pelo que, o então ministro do reino, Duque de Loulé, viria a nomear

192 Sousa, Jorge Pedro (coord.). 2011. António Rodrigues Sampaio. Jornalista e político no Portugal

oitocentista, LX, Lab Com, , p. 390-391

193 Caetano, Marcello, Estudos de História da Administração Pública Portuguesa, op.cit. p. 408

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uma comissão para a reforma administrativa que tratasse de alterar o código de

1842.

Dos resultados da comissão de alteração ao Código de 1842, resultaria o Código

Administrativo aprovado por Decreto de 21 de Julho, o qual se consubstanciava

como se afirma no Relatório, “sobre duas bases fundamentais – ampliação das

faculdades e garantias dos corpos administrativos, isentando-os quanto possível

da tutela do poder central – e descentralização para as localidades de muitos

serviços e encargos que pesavam sobre o governo do estado, dotando-os ao mesmo

tempo com as mais amplas faculdades tributárias, para poderem satisfazer

convenientemente ao aumento das despesas que importa esta alteração no nosso

sistema de administração”.

Acontece, que mais uma vez, o sistema político nacional, não resistiu à instabilidade

característica dos tempos em apreço e, o mentor da revolução de 19 de Maio de

1870, Marechal Saldanha, viria a ser obrigado a demitir-se do governo, logo em

finais de Agosto. A consequência é a sua não a implementação pelo novo governo

que assumiu o poder, uma vez que nos termos do art. 2.º do decreto de 21 de Julho,

o código apenas deveria entrar em vigor em 1 de Janeiro de 1971.

A base das alterações do famigerado código de 1870, e novas propostas de revisão

integrariam a nova proposta de código administrativo de 1878. Aprovado pela carta

de lei de 6 de Maio de 1878 e em cumprimento do decreto das Cortes gerais de 27

de Abril do mesmo ano, o novo código administrativo acabaria finalmente por

substituir o código de 1842. O novo código, concebe a divisão administrativa do

país, em Distritos, Concelhos e Paróquias, reconhecendo todos os concelhos

existentes ao tempo da sua publicação. E, remete para a Câmara o poder para

promover qualquer alteração nas circunscrições dos distritos prevenindo de alguma

forma que se voltassem a repetir acontecimentos idênticos aos que impediram a

concretização das reformas de 1867 e 1870.

No que respeita às circunscrições administrativas, estava o País dividido, em 1878,

em 21 distritos no continente e Ilhas (17 só no continente) e 295 concelhos (263 no

continente). As comarcas eram então 160 (144 no continente). Já quanto às

alterações às freguesias, o Governo mantinha as competências no âmbito da sua

eventual agregação nos termos do próprio código e bem assim a circunscrição das

paróquias também poderia ser alterada pelo governo mediante acordo com a

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autoridade eclesiástica. Os corpos administrativos, eram no Distrito a Junta Geral,

no Concelho a Câmara Municipal, nas Freguesias a Junta de Paróquia. Funcionaria

também no distrito uma comissão executiva delegada da Junta Geral.

Quanto aos funcionários administrativos, no distrito, o Governador Civil, no

Concelho o Administrador e nas Freguesias o Regedor da Paróquia. Em cada

distrito um tribunal administrativo, denominado Conselho de Distrito. A Junta

Geral do Distrito seria eleita directamente pelos Concelhos, sendo o número de

procuradores de 21 em todas as Juntas, excepto, em Lisboa, 25 e no Porto, 23. A

Junta Geral detinha nos termos do código as seguintes atribuições: Administração

e promoção dos interesses distritais; Autoridade tutelar da administração municipal

e paroquial; Auxiliar na execução de serviços do interesse geral do estado.

Integram as Câmaras Municipais, sete vereadores, com excepção de Lisboa com 13

e Porto, com 11. Às atribuições das Câmaras Municipais da administração e

promoção dos interesses do concelho, acrescem o exercício da autoridade policial

e o auxílio da execução dos serviços de interesse geral do Estado e do distrito.

Competia ao Presidente da Câmara a execução das deliberações da Câmara, com

sujeição à mesma – art. 108.º -.

Inovador é o que se prescreve no art. 110.º, pelo qual se permite à Câmara a divisão

dos trabalhos da vereação pelos vereadores, tendo em vista diferentes ramos do

serviço ou pelouros. As Juntas de Paróquia, eram integradas por cinco membros

eleitos pela paróquia sendo suas atribuições, a administração da fábrica da Igreja, a

administração dos bens e interesses da paróquia e o desempenho de todos os actos

que enquanto comissão de beneficência lhe forem atribuídos.

O Governador Civil, nomeado pelo Governo e com a residência obrigatória na

capital do distrito, e o Administrador do Concelho nomeado por decreto do

Governo, sob proposta do Governador Civil. Para o exercício destas funções era

necessário que o nomeado tivesse um diploma de instrução superior.

O Regedor da Paróquia, era nomeado por alvará do governador civil, mediante

proposta do administrador do concelho. Apenas podia ser nomeado para o cargo

quem tivesse domicílio na paróquia ou nas paróquias anexas.

O Conselho de Distrito, tinha na sua constituição o Governador Civil que a ele

presidia e mais quatro vogais nomeados pelo governo sobre lista tríplice proposta

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171

pela Junta geral. Dois dos vogais teriam de ser bacharéis em Direito. As suas

atribuições, eram de natureza consultiva e contenciosa.

Atribuições consultivas, no sentido em que emitia o seu parecer em todos os

assuntos em que nos termos da lei teria de o fazer ou por consulta do Governador

Civil. Competências contenciosas, as decorrentes das atribuições de tribunal de 1.ª

instância nos termos do art. 243.º.

Todos os corpos administrativos seriam eleitos directamente pelos cidadãos

nacionais que o pudessem fazer. Estariam neste caso, todos os cidadãos portugueses

residentes no respectivo concelho ou paróquia, que tivessem direito a voto nas

eleições de deputados – art. 267.º -. Seriam elegíveis os eleitores do distrito os seus

eleitores, do município os eleitores do concelho e para as paróquias os eleitores das

freguesias desde que sabendo ler, escrever e contar.

O código administrativo de 1878, seria desde logo, o mais descentralizador de todos

os códigos portugueses até à data da sua aprovação e bem assim, nas épocas

subsequentes, porquanto voltaria a vigorar em 1910, estando suspenso entre 1894 e

aquela data e só voltaria a suspender a sua vigência em 1935 com o Código

administrativo do Estado Novo, claramente centralizador, como veremos.

Ainda assim, a prudência do relatório que o aprova é evidente, ao frisar que a

“descentralização completa entre nós, seria o fracionamento da unidade nacional,

o parcelamento do território em pequenas divisões incapazes de se governar, a

anarquia na administração e na política.” Mas, o facto de o poder do Governador

civil enquanto agente do poder central, ver reduzida a possibilidade de executar as

deliberações da Junta Geral para a delegar num grupo de cidadãos, é um sinal claro

de descentralização do código. Introduzindo as juntas de eleição directa e as

comissões distritais permanentes, absorveu nestes órgãos boa parte das funções do

governador civil, cada vez mais órgão de carácter político.

As Câmaras Municipais, ficavam sujeitas a tutela nas suas deliberações de âmbito

financeiro, nomeadamente as relativas a: empréstimos (cujos juros e amortizações,

de per si, ou junto aos encargos de empréstimos já contraídos, absorvam a décima

parte da receita autorizada no orçamento do ano respectivo); supressão de empregos

e estabelecimentos municipais; aposentação, demissão e suspensão por mais de

trinta dias de empregados; lançamento de contribuições; organização de

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172

orçamentos; estabelecimento, supressão, duração ou mudança de feiras ou

mercados periódicos; acordos celebrados com outras câmaras para interesse

comum; aprovação de posturas e regulamentos de execução permanente; aquisição

e alienação de bens imobiliários e transacções sobre pleitos; contratos para

fornecimentos e execução de obras (quando a despesa anual resultante desses

contratos, só de per si ou junta à despesa anual com outros contratos semelhantes,

absorver a décima parte da receita ordinária da câmara). Sem prévia aprovação,

aliás, da junta geral de distrito, as deliberações camarárias tomadas sobre estas

matérias não eram executórias.

As Câmaras Municipais, mantêm, no entanto, todas as garantias de independência

para as suas decisões e, principalmente, a possibilidade de lançar impostos

livremente, para que se tornasse possível a sua capacidade de sustentabilidade.

Poderiam livremente escolher os impostos, directos ou indirectos, sobre que

fundariam as suas receitas. «O regulamento sobre contribuições dos municípios,

variando consoante as necessidades, os hábitos e as faculdades naturais de cada

um deles, será ao mesmo tempo um título da sua emancipação do poder central»,

escrevia-se no parecer da Comissão Parlamentar.

O Código de 1878 introduziu um alargamento objectivo da faculdade tributária, em

matéria de impostos indirectos, dos municípios, que até então apenas podiam lançá-

los sobre géneros expostos à venda a retalho. Daí em diante, todos os géneros

expostos à venda, quer a retalho, quer por grosso, podiam ser tributados. Estabelecia

igualmente a possibilidade de as câmaras lançarem contribuições municipais

directas, mediante aprovação da Junta geral de distrito, em dinheiro ou serviços das

pessoas e bens. As contribuições em dinheiro consistiriam numa percentagem

adicional às contribuições gerais predial, industrial, de renda de casa e sumptuária.

Não impôs um limite máximo de quota ou percentagem para os adicionais, ao

contrário da legislação anterior. 194

41.2.8. O Código Administrativo de 1886

194 Serra, João B.1988. As reformas da administração local de 1872 a 1910, , in Análise Social,

Lisboa. vol. XXIV (103-104), (4.º, 5.º), 1037-1066, p. 1043

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173

Em 1879, chegados ao poder os responsáveis do partido progressista, sentiram no

imediato a necessidade de alterar a estrutura administrativa do país em consonância

com as suas perspectivas ideológicas. Assim, logo em 1880, o então Ministro do

Reino, José Luciano de Castro, propõe nas Cortes uma primeira tentativa de

alteração. Não singrou esta iniciativa, porquanto sendo substituído o Governo em

1880, acabaria por não ser discutido.

Mas, em 1886, o partido progressista volta de novo ao poder, com um governo

presidido por José Luciano de Castro e por Carta de lei de 17 de Julho ficaria

aprovado ditatorialmente um novo código administrativo, decorrente da “urgência

da reforma do anterior código”, como se expressa o relatório. Tanto mais que de

igual forma seriam frequentes as queixas dos povos, as reclamações na imprensa e

no parlamento, reivindicando um novo código.

É que, pode ler-se no mesmo relatório, o anterior código (1878) havia exagerado as

liberdades concedidas aos corpos administrativos, sobretudo quanto à questão

tributária, o que levaria à desordem das finanças e à facilidade de criar impostos e

contrair e acumular dividas.

A reforma assentava em vários aspectos principais, a saber: redução do serviço dos

corpos administrativos a 3 anos sem renovação de mandatos, por eleição directa e

classificação dos concelhos em três ordens, segundo a sua população. Isto

significava que, sendo os municípios diferentes entre si, tanto em extensão como

em riqueza, e não sendo politicamente aconselhável proceder a uma reestruturação

igualitária dos concelhos, havia que prever a possibilidade de eles se regerem

segundo normas diferentes, consoante as suas características.

A organização da fazenda local, fixando limites às suas faculdades tributárias. A

constituição nas sedes de distrito de tribunais administrativos independentes e a

organização de um regime especial nos concelhos com mais de 40.000 habitantes.

Para tanto, neste caso, impunha-se aquele mínimo de habitantes, anuência prévia

das câmaras municipais e de dois terços dos recenseados para as eleições

administrativas de cada um dos concelhos envolvidos, o que tais condições ficavam

longe de fácil satisfação.

O Código de 1886 aprovado e aplicado sob os auspícios da ditadura e por sua

consequência, não seria de esperar outra coisa que não o de alterando-se a situação

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política, se alterar a situação administrativa. A alteração tem início no ano 1892 o

qual encerra o ciclo “do experimentalismo rotativo na administração local. A

reforma decidida ao longo desse ano não foi codificada, mas abalou as bases do

sistema anterior. Depois dos decretos de José Dias Ferreira, nada voltou a ser

como dantes. De toda a legislação sucessivamente publicada, o leit motiv

permanece: a crise financeira exige disciplina na Administração, o Estado não

pode pagar uma aventura como a descentralização”.195

Ferreira Dias, sobe ao poder após a crise financeira de 1891, com o mandato

imperativo de sanar de vez a fazenda pública, pelo que, assim o acredita, a situação

financeira só podia ser resolvida mediante uma reforma administrativa. E, logo em

21 de Abril de 1891, publica um decreto, que extingue os tribunais administrativos,

atribuinco as suas competências contenciosas aos juízes de direito e as atribuições

consultivas e jurisdição de contas às Juntas Gerais. Este é o primeiro passo para a

revogação do Código administrativo em vigor.

E o Decreto de 19 de Janeiro de 1892, “continua a reforma com medidas de

contracção de despesas com vencimentos do funcionalismo. A lei manda cessar,

aos empregados e funcionários civis, o abono de quaisquer remunerações

extraordinárias ou gratificações que lhes tivessem sido abonadas depois de 1 de

Julho de 1891.

O diploma refere-se à Lei de 30 de Junho de 1891, a qual estabelecia que tais

gratificações terminassem no primeiro dia do ano económico em curso, mas

autorizava a continuação desse abono até à reformulação dos serviços, desde que

o vencimento total do empregado não excedesse os 360$000 réis”.196

Em 6 Agosto do mesmo ano publicava-se m decreto, extinguindo as Juntas Gerais

de Distrito, criando em sua substituição Comissões Distritais, “eleitas por

delegados das Câmaras em cada distrito e com reduzidas atribuições, sem receitas

nem património, desaparecendo a personalidade jurídica do distrito, que o

195 Serra, João B., As reformas da administração local de 1872 a 1910, op. cit. p. 1050

196 Id. Ibidem.

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175

Governador Civil representaria, a não ser em juízo, onde a representação ficava a

cargo do Ministério Público”.197

No ano de 1896, “reunidas as Cortes … tratou-se de rever a obra da ditadura; foi

deste modo submetido à câmara o Código de 1895 e dele se ocuparam as comissões

de Administração Pública e da Fazenda da Câmara dos Deputados que

apresentaram os seus pareceres na sessão de 24 de Março”.198

Por carta de lei de 4 de Maio seria o novo código aprovado vem substituir o código

de 1886 e de novo procurar a reorganização do padrão administrativo nacional. O

novo código, não tem a intenção de alterar profundamente o actual organismo

administrativo mas visando “apenas completá-lo e aperfeiçoá-lo para que mais

regular e eficazmente possa funcionar, harmonizando as conveniências da vida

local com os superiores interesses do estado”. 199

Nestes termos, mantém-se a extinção das Juntas Gerais, feita pelo decreto de 6 de

agosto de 1886, não se procedendo a nenhuma outra alteração importante quanto às

comissões distritais.

Quanto às câmaras municipais, padeciam de dois problemas gravíssimos: a falta de

pessoal habilitado para as vereações e a carência dos recursos precisos para regular

a satisfação dos seus encargos obrigatórios. Assim, uma das formas de corrigir estes

problemas estava no alargamento das circunscrições administrativas e o critério de

apuramento de concelhos na divisão comarcã, mantenha os povos, ligados pela

mesma administração Judicial também fiquem pela municipal.

Entendia-se no código que os diversos concelhos ou municípios se devem distribuir

por três categorias, classificadas, segundo o seu carácter, faculdades ou atribuições

e sobretudo pelas suas necessidades e possibilidades financeiras e não apenas pela

sua população como fizera o código de 1886.

Na primeira ordem, compreendiam-se os concelhos urbanos, isto é, as capitais de

distrito e aquelas em que houvesse importante população aglomerada e incremento

industrial ou comercial. Na segunda ordem e na terceira, os concelhos rurais, os da

197 Caetano, Marcello, Estudos de História da Administração Pública Portuguesa, op. cit. p. 421

198 Caetano, Marcello, Estudos de História da Administração Pública Portuguesa, op. cit. p. 424

199 Relatório ao Código Administrativo de 1896, Decreto de 2 de Março de 1894

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176

segunda com uma administração municipal completa, gerindo todos os interesses e

serviços locais, os da terceira com atribuições mais modestas, em harmonia com a

exiguidade dos seus recursos financeiros e com a escassez dos elementos em que

podem ser recrutados os seus corpos gerentes. Esta diversidade de organização

resulta das próprias desigualdades reais existentes, que nenhum artifício de simetria

doutrinária ou de igualdade legal, é capaz de fazer desaparecer.

Proporcionar assim as faculdades e as atribuições aos meios e às forças de cada

um, seria a forma de estabelecer uma organização lógica e natural assentando sobre

factos averiguados e positivos, e não apenas baseada sobre qualquer sistema

preconcebido, quási sempre incompatível com uma salutar realização pratica.

Nos concelhos de terceira ordem deviam os mais importantes negócios ser geridos

pela câmara da sede da comarca, ficando, porém, as dos referidos conselhos com

atribuições e autonomia próprias naquilo que fosse do de interesse local, sendo

obrigatória a sua consulta nos mais importantes assuntos de interesse comum,

especialmente no que se refere ao orçamento, estabelecimento de impostos e

levantamento de empréstimos.200 Às juntas de freguesia atribuía-se de novo o seu

papel antigo.

41.2.9. O código de 1900

Corria o ano de 1900, quando por causas idênticas às anteriores e sobretudo às que

impeliram à aprovação do Código de 1886, se vê aprovado outro código

administrativo, em substituição do que vigorava desde 1886. Por resolução das

Cortes de 4 de Julho de 1899, era o governo autorizado a modificar o actual código

administrativo em harmonia com as bases que constituem parte integrante desta lei

dando conta às cortes na próxima sessão do uso que fizer desta autorização. E, foi

no uso desta autorização que se publicou o novo código administrativo por decreto

de 23 de Junho de 1900.

No entanto, em 26 de Junho desse mesmo ano, um novo ministério regenerador

veio substituir o governo progressista, pelo que o código estava condenado a não

200 Vide, Relatório ao Código Administrativo de 1896, Decreto de 2 de Março de 1894

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177

ter execução para além da publicação no Diário do Governo, sendo suspenso pelo

decreto ditatorial de 5 de Julho de 1900.

O Código Administrativo de 1878, veria suspensa a sua vigência em 17 de Julho de

1886, altura em que a Carta de Lei da mesma data vem aprovar o novo código

administrativo. Mas, logo a seguir à revolução Republicana de 1910, o Código de

1878, voltaria a vigorar, repondo a situação administrativa do país em conformidade

com as suas disposições.

Com efeito, o Decreto de 13 de outubro de 1910, vem justificar a sua reposição em

vigor e as razões que penhoradamente entende para tal. O Decreto explica então

que “Sendo conveniente dar satisfação, pelo que respeita à organização

administrativa, as aspirações liberais e democráticas, tanto quanto possível e

desde já, enquanto a Nação não legislar sobre tão importantes assuntos, pareceu

ao Governo da Republica dever restabelecer o Código Administrativo aprovado

pela carta de lei de 6 de maio de 1878, na parte em que o seu restabelecimento

cause o mínimo de perturbação aos serviços públicos.

Encontra-se em vigor o Código Administrativo aprovado pela carta de lei de 4 de

maio de 1896, de estrutura intensamente conservadora, que de modo algum se

harmoniza com as doutrinas do sistema republicano.

Urge revogar a sua vigência, a fim de restituir a vida local incentivos e energias

capazes de permitir aos cidadãos uma fecunda actividade administrativa, que

engrandeça todos os agregados nacionais e fomente o seu desenvolvimento e a sua

riqueza, ao mesmo tempo que permita aos cidadãos urna ingerência sempre saltitar

na vida íntima da Nação.

Desta forma o Governo dá público testemunho do seu amor pelos princípios

liberais e dos seus propósitos de descentralizar a administração; e tendo felizmente

o país entrado numa época de tranquilidade que já permite dar á administração

pública uma garantia de estabilidade, pode o Governo substituir a situação

recentemente estabelecida por uma mais orgânica e profícua, aproveitando para

isso, provisoriamente, a orientação liberal e democrática do Código

Administrativo de 1878.

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178

Assim, os propósitos democráticos do Governo começarão a concretizar-se em

realidades, até que franca e abertamente possamos chegar a um fecundo regime

descentralizador e autónomo, que é a força e a vitalidade dos povos.”

Estabelecia, neste contexto o art.º. 1.º que “enquanto não for promulgado um

Código Administrativo elaborado de harmonia com o regime e os princípios

republicanos, serão adotados os magistrados e os organismos administrativos

estabelecidos pelo Código Administrativo aprovado pela carta de lei de 6 de maio

de 1878, com as atribuições que este código lhes confere, bem como as mais

disposições do mesmo código que não forem contrariadas por este decreto”.

Continuavam subsistindo as actuais circunscrições administrativas, e enquanto não

se procedesse a eleição dos referidos organismos, seriam estes constituídos por

comissões nomeadas pelos governadores civis, salvo as juntas gerais e os conselhos

de distrito, que seriam nomeadas apenas quando o Governo o ordenasse. Este

decreto entrava em vigor desde a data da sua publicação e será sujeito a apreciação

da próxima assembleia Nacional Constituinte.

V. A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO SÉCULO XX

42. Da I República ao Estado Novo

42.1. A revolução de Outubro. Antecedentes.

42.2. A administração central no contexto da reforma republicana

No que se refere à administração central, no rescaldo da Revolução Republicana de

1910, organizava-se ela de acordo com o preceituado na Constituição aprovada em

1991. Assim, no artigo 6.º, do Título III da Constituição Política da República

Portuguesa de 1911, integrado no contexto «Da Soberania e dos Poderes do

Estado», consagrava os três órgãos de Soberania “Poder Legislativo, Poder

Executivo e Poder Judicial” «independentes e harmónicos entre si».

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179

O poder legislativo, regulado nos - art.º 7.º a 35.º - ficava atribuído ao Congresso

da República, composto por duas câmaras, a Câmara dos Deputados e o Senado,

enquanto o poder executivo – art.º 36.º a 55.º- exercido pelo Presidente da

República e pelos ministros e, por fim, o poder judicial - art.º 56.º a 65.º- da

competência do Supremo Tribunal de Justiça e dos tribunais de primeira e segunda

instância.

O Congresso da República organizava-se num sistema bicameral, a Câmara dos

Deputados e do Senado, ambas eleitas por sufrágio directo e universal. Os seus

membros representavam toda a Nação e não apenas os colégios por que eram

eleitos. Ninguém podia integrar simultaneamente duas Câmaras.

Nos termos do artigo 11.º da Constituição, o Congresso reunia-se no dia 2 de

Dezembro de cada ano, na capital do País, tendo cada sessão legislativa uma

duração de quatro meses, a qual podia ser prorrogada ou adiada por deliberação das

Câmaras. Cada legislatura duraria três anos, mas o Congresso poderia ser

convocado extraordinariamente pela quarta parte dos seus membros ou pelo poder

executivo nos termos do disposto no art.º. 12.º.

As sessões de abertura e encerramento das duas câmaras, que se realizassem nos

mesmos dias, funcionariam de forma separada, em sessões públicas, excepto

deliberação em contrário. As deliberações seriam tomadas por maioria de votos,

estando presente, em cada uma, a maioria absoluta dos seus membros. As sessões

conjuntas seriam presididas pelo mais velho dos Presidentes das duas Câmaras.

«A cada uma das Câmaras compete verificar e reconhecer os poderes dos seus

membros, eleger a sua Mesa, organizar o seu Regimento interno, regular a sua

polícia e nomear os seus empregados», conforme disposto no art.º13.º, §único.

No exercício do seu mandato, tanto os Deputados como os Senadores são

invioláveis pelas opiniões e votos proferidos, sendo que o voto é livre e

independente de quaisquer insinuações ou instruções, nos termos do artigo 15.º.

Os deputados ou senadores não podem ser, julgados, peritos ou testemunhas, sem

a licença da sua Câmara, ser ou estar presos durante o período das sessões, sem a

antecipada autorização da respectiva Câmara, excepto se forem apanhados em

flagrante delito a que corresponda a pena maior ou equivalente na escala penal.

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180

Nos termos do artigo 18.º, se algum Deputado ou Senador for processado

criminalmente, o juiz irá comunicar à respectiva Câmara, que decidirá se este «deve

ser suspenso e se o processo deve seguir no intervalo das sessões ou depois de

findas as funções do arguido.»

Depois de eleito, era proibido a qualquer membro do Congresso a celebração de

contratos com o poder executivo, nem aceitar deste ou de qualquer governo

estrangeiro emprego retribuído ou comissão subsidiada, excepto situações

expressas no nos n.os 1 e 2 do art.º. 20.º.

Também não poderiam «servir lugares nos conselhos administrativos, gerentes ou

fiscais de empresas ou sociedades constituídas por contrato ou concessão especial

do Estado», nem «ser concessionário, contratador ou sócio de firmas

contratadoras de concessões, arrematações ou empreitadas de obras públicas e

operações financeiras com o Estado», como dispõe o art.º 21.º.

Ao Congresso atribuía-se as competências expressas no art.º 26.º e não estando o

Congresso reunido, as funções seriam exercida pelo poder executivo.

Aos membros do Congresso ou do poder executivo pertencia a iniciativa de todos

os projectos de lei, excepto quando relativos a matérias privativas do Congresso,

previstas na Constituição, sendo o projecto de lei adoptado numa das Câmaras

submetido à outra. Sendo aprovado por esta, seria enviada ao Presidente da

República para que o promulgasse como lei – art.º 33.º -.

Quanto à Câmara dos Deputados, era integrada por «um número indefinido de

deputados - a concretizar pela lei eleitoral -, com a idade mínima de 25 anos,

eleitos por um triénio.»201 Se for para ocupar alguma vaga por morte ou outra causa,

o deputado eleito apenas exercerá o mandato durante o resto da legislatura – art.º

22.º e 23º.

Da competência exclusiva da Câmara dos Deputados era”a iniciativa sobre os

impostos, organização das Forças Armadas, discussão das propostas do poder

201 Marques, A. H. de Oliveira (Cord.), Nova História de Portugal, Portugal-Da Monarquia para a

República vol. XI, Lisboa: Editorial Presença, p. 322

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executivo, pronúncia dos membros deste, revisão da Constituição e prorrogação e

adiamento da sessão legislativa (art.º. 23.º).”202

Ao Senado os art.º 24.º e 25.º, definiam a sua composição e respectivas atribuições,

a quem pertencia o poder legislativo. Na sua composição integrava “o número de

senadores que resultasse da eleição de três indivíduos por cada distrito do

Continente e ilhas adjacentes (63 durante todo o período da Primeira República)

e de um indivíduo por cada província ultramarina (8, o que totalizava 71), com a

idade mínima de 35 anos, eleitos por seis anos e renovados em metade todas as

vezes que se procedesse a eleições gerais.”203

Era da competência do Senado, “a aprovação das propostas de nomeação dos

governadores e comissários da República para as províncias do ultramar (art.

25.º).”204

Quanto ao Presidente da República, dispõem os art. 37.º a 48.º, da sua estrutura,

funcionamento e atribuições o qual representava a Nação nas relações gerais do

Estado e ao qual pertencia o poder executivo.

O Presidente era eleito por dois terços dos votos dos membros das duas Câmaras

do Congresso e não obtendo essa maioria, a eleição prosseguirá na terceira votação,

com os dois candidatos mais votados, sendo eleito o que tiver maior número de

votos. O Presidente da República podia ser destituído pelo Congresso, desde que a

deliberação fosse devidamente fundamentada e aprovada por dois terços dos seus

membros.

Em caso de vacatura da “presidência por morte ou qualquer outro motivo, o

Congresso elegeria novo presidente para exercer o cargo durante o resto do

período presidencial.”205

202 Miranda, Jorge. 2011. Manual de Direito Constitucional. Tomo I, Coimbra: Coimbra Editora,

9ª edição, p. 295

203 Marques, A. H. de Oliveira (Cord.), Nova História de Portugal, Portugal-Da Monarquia para a

República op. cit., p. 323

204 Miranda, Jorge. 2011. Manual de Direito Constitucional. op. cit. p. 295

205 Marques, A.H. de Oliveira (Cord.), Nova História de Portugal, Portugal-Da Monarquia para a

República, op. cit., p. 323

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O Presidente era eleito por um período de quatro anos e deixaria de exercer as suas

funções no mesmo dia em que terminar o seu mandato e não podia ser reeleito no

quadriénio imediato, nem se ausentar do país sem a autorização do Governo.

O Presidente da República promulgaria qualquer projecto de lei, num prazo de

quinze dias, iniciado a partir do momento em que o mesmo lhe fosse presente, não

o podendo vetar, pelo que se até ao último dia do prazo definido o Presidente não

se pronunciasse, o seu silêncio equivaleria à promulgação da lei.

As competências do Presidente da República decorriam do disposto no art.º 47.º,

exercidas por intermédio dos Ministros e de acordo com estabelecido no art.º 49.º,

necessidade de referenda pelo menos, um Ministro. Se não o forem, «são nulos de

pleno direito», não poderão ser executados e «ninguém lhes deverá obediência».

Os art. 49.º a 54.º, da Constituição Política da República delimitam a estrutura,

funcionamento e atribuições dos Ministros.

Os Ministros não podiam acumular mais que uma função, nem ser eleitos para a

Presidência da República, se não tiverem deixado de exercer o seu cargo antes da

eleição e nos termos do art.º 50.º os membros do Congresso que aceitarem o cargo

de Ministro não perderiam o mandato.

Cada Ministro era responsável política, civil e criminalmente pelos actos que

executassem, sendo julgado nos crimes de responsabilidade pelos tribunais

ordinários. Os Ministros deviam estar presentes nas sessões do Congresso, “tendo

sempre o direito de se fazer ouvir em defesa dos seus actos”206. Por seu lado, “O

Ministério seria chefiado por um presidente», nomeado pelo Presidente da

República, «que responderia não só pelos negócios da sua pasta mas também pelos

de política geral.”207 Nos primeiros quinze dias de Janeiro, seria apresentado o

Orçamento Geral do Estado pelo Ministro das Finanças, à Câmara dos Deputados.

Com o regime republicano, a estrutura do Governo permaneceu praticamente inalterável

em relação à da Monarquia Constitucional, exceptuando as alterações às suas

206 Marques, A.H. de Oliveira (Cord.), Nova História de Portugal, Portugal-Da Monarquia para a

República, op. cit., p. 323

207 A Marques, A.H. de Oliveira (Cord.), Nova História de Portugal, Portugal-Da Monarquia para

a República, op. cit., p. 323

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denominações, como dispõe o Decreto de 8 de Outubro de 1910: o Ministério do Reino

passou a Ministério do Interior; o de Negócios Eclesiásticos e Justiça para Ministério da

Justiça e Cultos; da Fazenda para Ministério das Finanças; o Ministério da Guerra

manteve a sua designação; o da Marinha e Ultramar para Ministério da Marinha e

Colónias; o Ministério de Negócios Estrangeiros manteve também a sua designação e, por

fim, das Obras Públicas, Comércio e Indústria para Ministério do Fomento. Incluía assim,

sete Ministérios ou Secretarias de Estado.208

No que respeita à organização e funcionamento do poder judicial integrava-o o

Supremo Tribunal de Justiça, cuja sede localiza-se em Lisboa e os tribunais de

primeira e segunda instância, distribuídos pelo país, consoante as necessidades da

administração da justiça.

Do ponto de vista da independência do poder judicial “Todos os juízes serão

vitalícios e inamovíveis”209 e as suas nomeações, demissões, suspensões,

promoções, transferências e colocações fora do quadro serão realizadas nos termos

da lei orgânica do poder judicial.

Os juízes ficavam impedidos de aceitar no Governo funções remuneradas, ainda

que o Governo pudesse requerer os juízes necessários para quaisquer comissões

permanentes ou temporárias. As nomeações seriam feitas de acordo com o

estabelecido na lei orgânica. Nos seus julgamentos, serão irresponsáveis, salvo as

excepções declaradas na lei.

Mantinha-se a instituição do júri, cuja intervenção seria “facultativa às partes em

matéria civil e comercial, e obrigatória em matéria criminal, quando ao crime

coubesse pena mais grave do que prisão a correccional e quando os delitos fossem

de origem ou de carácter político.”210

208 Maltez, José Adelino. 1991. Princípios Gerais de Direito - Uma Perspectiva Politológica: Direito

Positivo, Tomo III, Lisboa, p. 310

209 A Marques, A.H. de Oliveira (Cord.), Nova História de Portugal, Portugal-Da Monarquia para

a República, op. cit, p. 323

210 A Marques, A.H. de Oliveira (Cord.), Nova História de Portugal, Portugal-Da Monarquia para

a República, op. cit, p. 323

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184

O Presidente da República seria processado e julgado pelos crimes que

eventualmente cometesse, nos tribunais comuns. Levado o processo até a

pronúncia, o juiz comunicá-la-á ao Congresso, que, em conjunto com Câmaras,

decidiria se devia ser imediatamente julgado ou só quando terminasse o seu

mandato. O mesmo aconteceria quanto aos ministros.

42.3. As reformas republicanas no contexto da administração central

A grande tendência legislativa do poder na I República, procurando alterar de forma

sistemática e aprofundada o quadro governativo da monarquia, traduziu-se na

promulgação de 24 925 diplomas legislativos (leis, decretos e portarias), numa média de

cinco diplomas promulgados por cada dia, nem sempre reflectindo as necessidades e os

interesses do país.

Logo em 23 de Agosto o Governo restrutura e divide em dois o Ministério da Marinha e

Colónias, instituindo o Ministério das Colónias e o Ministério da Marinha. Ficando cada

“ministério dividido em direcções-gerais, por sua vez subdivididas em repartições e estas

em secções. Uma secretaria-geral coordenava, em regra, os vários serviços do

ministério. Existiam ainda, assessoriamente, múltiplos conselhos e comissões.”211

A Lei n.º 130 de 5 de Junho de 1913, organizou a Secretaria-Geral da Presidência da

República, passando a integrar cinco funcionários: um Secretário-Geral, um primeiro-

oficial, um segundo oficial e dois correios. Para além destes, ainda prestariam ai serviço

os serventuários dos antigos paços reais.

Esta intervenção legislativa pretendia contrariar o tradicionalismo existente no decurso da

Monarquia, que concedia ao rei e à família real vastos direitos e regalias, nomeadamente,

quanto ao número de pessoal ao seu serviço, cerca de 325 pessoas, integrando nessas cerca

de 93 com carácter honorário, e que se traduzia num evidente esbanjar de dinheiros

públicos e ineficiência de serviço.

Com a organização legislativa, publicou-se ainda, a Lei de 7 de Julho de 1913 criando o

Ministério da Instrução Pública, a lei n.º 494 de 16 de Março de 1916 criando o Ministério

211 A Marques, A.H. de Oliveira (Cord.), Nova História de Portugal, Portugal-Da Monarquia para

a República, op. cit, p. 290

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do Trabalho e Previdência Social, que se extinguiria a 25 de Novembro de 1925, o Decreto

n.º 3511, de 5 de Novembro de 1917 criando o Ministério do Comércio, que passaria a

designar-se do Comércio e Comunicações, o Decreto n.º 3902, de 9 de Março de 1918,

instituindo o Ministério da Agricultura e o Ministério de Subsistências e Transportes

(depois designado Ministério dos Abastecimentos e Transportes) que veio a ser extinto,

em Setembro de 1919, pela Lei n.º 882.212 213

Em 1917 e no auge da I Guerra Mundial, publicou o Governo de então a Lei n.º 813/1917

de 6 de Setembro, que permitia a ausência do Presidente da República do país com o

propósito de visitar o corpo do exército português que combatia em França.

Na mesma data e referente às mesas das duas casas do Congresso da República, a Lei n.º

816/1917 de 6 de Setembro permite que estas, em conjunto com a sua comissão

administrativa, promovam a reorganização dos quadros e vencimentos dos funcionários

do Congresso.

Para evitar a confusão entre os órgãos de Chefe de Estado e Chefe de Governo, promoveu-

se a reorganizando a Secretaria da Presidência da República, com a publicação do

Decreto n.º 4233/1918 de 7 de Maio passa a integrar um secretário-geral, dois terceiro-

oficiais, dois oficiais às ordens e dois ajudantes de campo, junto do Presidente da

República, determinando-se ainda que a Secretaria seria formada pelos adjuntos que

forem julgados necessários.

Com Sidónio Pais e a pretexto de lei eleitoral, realizou o Governo várias alterações

constitucionais, nomeadamente a modificação da composição do Senado, onde 49

senadores seriam eleitos pelas províncias e 28 repartidos pelas seguintes categorias

profissionais: agricultura, indústria, comércio, serviços públicos, profissões

liberais, artes e ciências, através do Decreto n.º 3997/1918, de 30 de Março,

enquanto o Presidente da República seria eleito por sufrágio universal e directo,

tendo a possibilidade de mandato mais longo do que os quatro anos - art.º 116.º e

121.º, respetivamente - e a ele competia a chefia da força armada de terra e mar,

aplicando-a quando necessário à segurança interna e à defesa externa da Nação -

212 Maltez, José Adelino. 1991. Princípios Gerais de Direito - Uma Perspectiva Politológica: Direito

Positivo, p. 311

213 Caetano, Marcello. 1951. Manual de Direito Administrativo. Coimbra: Coimbra Editora, p. 361

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artigo 122.º- e a livre nomeação e demissão dos seus Ministros e Secretários de

Estado – art.º 123.º-. Este decreto era a antevisão do regime corporativista e do

estabelecimento de um sistema presidencialista em Portugal e que no decurso do

Estado Novo viria a ter implementação, sobretudo a primeira.214

Também a estrutura organizativa da Administração Pública, sofreu várias reformas, como

as que tiveram efeito junto das várias Direcções-Gerais. Com efeito, no decurso da

Primeira Guerra Mundial o número de funcionários públicos aumentou e a sua

estrutura tornou-se bastante mais complexa, nomeadamente com o aparecimento de

várias estruturas prestadoras de serviços, sobretudo nos transportes e na economia.

Surgindo as inúmeras repartições em face da pressão da opinião pública e da ameaça de

restauração monárquica, que obrigaram os governos republicanos a fazer um esforço

desesperado para melhorar os serviços e cumprir promessas eleitorais e alíneas de

programas215

No Ministério do Interior, a República foi-o gradualmente desmembrando e

especializando, desde logo pela publicação do Decreto com força de lei de 9 de Fevereiro

de 1911 criou uma Repartição de Assistência Pública (que depois recebeu o estatuto de

direcção-geral) dentro da Direcção-Geral da Administração Política e Civil. Por sua vez,

em 1913, todas as questões referentes à instrução e cultura foram-lhe retiradas e

transferidas para o Ministério da Instrução Pública. O Decreto 4166/1918, de 27 de Abril

de 1918, veio criar a Direcção-Geral da Segurança Pública, à qual ficaram submetidos os

serviços policiais e de segurança de todo o território. Esta Direcção-Geral acabou por ser

extinta em 1924 através do Decreto n.º 9339/1924 de 7 de Janeiro.

No Ministério da Justiça e dos Cultos sentiu a República a necessidade de uma

reorganização dos seus serviços, pois “grande parte dos assuntos eclesiásticos,

compreendidos nas duas repartições da Direcção-Geral dos Negócios Eclesiásticos,

deixaram de ter existência depois da implantação da República e, com compensação,

outros serviços, como os do registo civil, tiveram maior desenvolvimento”, conforme

disposição do Decreto n.º 1105/1914 de 26 de Novembro. Justifica-se, assim, a existência

214 Miranda, Jorge. 2011. Manual de Direito Constitucional. op. cit., p. 299

215 A Marques, A.H. de Oliveira (Cord.), Nova História de Portugal: Da Monarquia para a

República, op. cit, p. 290-291

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de apenas uma repartição à Direcção-Geral dos Negócios Eclesiásticos e a criação da

Repartição do Registo Civil, o que significou na prática a separação dos assuntos da

religião face aos assuntos do Estado.

No Ministério das Finanças foram promulgados diversos decretos que criaram as

Direcções-Gerais da Fazenda Pública e das Alfândegas, extinguiram a Direcção-Geral da

Tesouraria, que passou a designar-se das Contribuições e Impostos, mantendo-se a da

Contabilidade Pública manteve-se inalterada. O Tribunal de Contas foi nos termos do

Decreto de 13 de Abril de 1911, substituído por um Conselho Superior da Administração

Financeira do Estado, procurando uma maior incidência de fiscalização que, para os

republicanos não havia sido conseguida através do Tribunal de Contas da monarquia, e

bem assim, tinham como objectivo descentralizar e tornar mais eficazes os serviços

públicos, simplificando-os e organizando-os logicamente.

O Decreto n.º 5525/1919 de 8 de Maio alterou a designação do Conselho Superior da

Administração Financeira do Estado para Conselho Superior de Finanças alterando

também o quadro, salários, emolumentos e atribuições.

O Decreto n.º 10151/1924 de 2 de Outubro instituiu uma Repartição do Pessoal

Disponível para fazer o cadastro dos funcionários civis nas situações de adido e de

disponibilidade e para os fornecer aos serviços carentes.

O Decreto n.º 11267/1925 de 25 de Novembro suprimiu o Ministério do Trabalho,

levando à integração de um Instituto de Seguros Oficiais Obrigatórios e de Previdência

Geral no das Finanças.

No Ministério da Guerra, o Decreto de 3 de Maio de 1911 criou um Conselho

Administrativo na Secretaria da Guerra.

Nos anos que se seguiram até ao final da primeira República, as alterações foram

sobretudo, na composição dos quadros da primeira e segunda Repartições da Direcção

Geral dos Serviços Administrativos do Exército, pelo Decreto n.º 7685/1921 de 27 de

Agosto e na extinção de repartições, como a 5.ª Repartição da Direcção-Geral dos

Serviços Administrativos do Exército através do Decreto n.º 8195/ 1926, de 12 de Junho.

O Ministério da Marinha integraria quatro Direcções-Gerais, como a da Majoria-Geral da

Armada, a do Pessoal, a do Material e a dos Serviços Auxiliares e Administração

Financeira e um Conselho-Geral da Armada, como dispõem os Decretos n.o 4451/1918

de 16 de Junho e n.º 5041/1918 de 3 de Dezembro respectivamente. Em 1921, veio alegar-

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188

se que a prática demonstrara que as alterações de 1918 não haviam promovido, antes

contrariado, a eficiência dos serviços que incumbiam à Armada por se mostrarem

excessivamente centralizadoras, pelo que o Governo de então promulgaria um novo

decreto - n.º 7842/1921 de 28 de Novembro que articulou o Ministério em seis grandes

divisões autónomas: a Majoria-Geral da Armada, presidido pelo ministro da Marinha, no

artigo 9.º, no subtítulo da Reorganização do Ministério da Marinha.

O Ministério dos Negócios Estrangeiros, viu alterados os pelouros das Direcções-Gerais,

pelo Decreto n.º 7899/1921, de 12 de Dezembro ocupando-se um dos Negócios Políticos

e Económicos e a outra da Expansão Económica. Para além destas, existia ainda uma

Secretaria-geral, o Conselho de Emigração e Colonização, Conselho Superior de

Comércio Externo, a Agência Oficial de Informação Colonial, o Instituto de Expansão

Económica definidos no decreto.

No Ministério do Fomento, com a criação do Ministério do Trabalho, saíram do seu

âmbito os Caminhos de Ferro do Estado, a Administração do Porto de Lisboa, a

Administração-geral dos Correios e Telégrafos, os serviços relativos a associações

comerciais e industriais, entre outros assuntos, como dispõe a Lei n.º 494/1916 de 16 de

Março sendo que mais tarde regressaram a este Ministério os três primeiros serviços. O

Ministério do Fomento viria a ser substituído pelo Ministério do Comércio, saindo do seu

seio todo o pelouro relativo à Agricultura como dispõe o decreto n.º 3511/1917 de 5 de

Novembro.

Com o Decreto n.º 5541/1919 de 9 de Maio, o Ministério do Comércio e Comunicações

passou a integrar, para além de uma Secretaria-Geral, cinco Direcções-Gerais, a das Obras

Públicas, Comércio e Indústria, Ensino Industrial e Comercial, Trabalhos Geodésicos e

Topográficos e Caminhos-de-Ferro, extintas no ano seguinte e substituídos pelos Serviços

de Obras Públicas, dependentes da Secretaria-Geral e incluindo oito Administrações-

Gerais, Estradas e Turismo, Edifícios e Monumentos Nacionais, Serviços Hidráulicos,

Serviços Geodésicos, Topográficos e Cadastrais, Caminhos de Ferro do Estado, Correios

e Telégrafos, Porto de Lisboa e Transportes Marítimos do Estado, em conformidade com

os Decretos n.os 7001/1920 de 4 de Outubro e n.º 7036/1920, 7037/1920, 7038/1920 e

7039/1920 todos de 17 de Outubro.

A criação do Ministério das Colónias foi resultado da crescente preocupação pelo

Ultramar e valorização dos seus recursos, continuando Este ministério, «durante muito

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189

tempo, continuou a reger-se pelo decreto de 25 Maio de 1911 que tinha criado no

Ministério da Marinha, as duas Direcções-Gerais respeitantes ao Ultramar.

Sidónio Pais, criaria quatro Direcções-Gerais, a de Administração Civil de Fomento,

Militar e Finanças, a Repartição do Gabinete do Ministro e dos Serviços da Biblioteca e

Arquivo Histórico. Em 1919, apenas se alterou o nome da Direcção de Finanças para

Fazenda e juntaram-se às restantes, as Direcções de Serviços de Saúde e dos Serviços

Diplomáticos, Geográficos e de Marinha, disposto no Decreto n.º 5572/1919 de 10 de

Maio.

O Ministério da Instrução Pública, já colocado em prática por duas vezes, era uma antiga

aspiração e prioridade republicana. Este Ministério foi concretizado com o primeiro

governo de Afonso Costa, com a Lei n.º 12/1913 de 7 de Julho integrando uma Secretaria-

Geral, um Conselho de Instrução Pública e seis Repartições, a da Instrução Primária e

Normal, Instrução Secundária, Instrução Universitária, Instrução Industrial e Comercial,

Instrução Agrícola e Instrução Artística. Os serviços e estabelecimentos de ensino

dependentes e integrantes do novo Ministério provinham sobretudo do Ministério do

Interior, mas também do Fomento, da Guerra e das Colonias, nos termos do Decreto n.º

159/1913 de 13 de Outubro. Em 1917, foi criada uma sétima repartição. Esta repartição

separou a Instrução Primária e Normal em duas repartições, ficando uma com o pelouro

pedagógico e a outra com o do pessoal. Com Sidónio Pais, surgiu uma Repartição de

Sanidade Escolar e uma Comissão de Educação Popular que teria por missão promover

por todos os meios ao seu alcance a difusão da instrução do povo, organizando entre

outras, conferências populares educativas e publicações literárias e científicas destinadas

as classes populares, como dispõe o artigo 21.º, do Decreto n.º 4675/1918 de 14 de Julho.

Nos termos do art.º 29.º da Constituição de 1911, consagrava-se o «direito à assistência

pública», pelo que com o fim das ordens religiosas se tornou fundamental a criação de

mecanismos de assistência, ainda que o leit motiv principal tenha sido a Primeira Guerra

Mundial, que «motivou uma maior intervenção do Estado em todos os domínios da

economia e da vida, não escapando a assistência social.»216 Neste sentido, foi criado o

Ministério do Trabalho e da Previdência Social, em Março de 1916, cujo objectivo era

aumentar a intervenção do Estado na assistência. Compreendia duas Direcções-Gerais, a

216 Torres, Eduardo Cintra, Marinho, Luís. O Século do Povo Português- 1910-1926, Lisboa:

Ediclube, p. 54

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do Trabalho e a da Previdência Social e Subsistência, duas inspecções, a do Trabalho e a

da Previdência Social, três Administrações, a dos Correios e Telégrafos, a dos Caminhos-

de-Ferro do Estado e a do Porto de Lisboa e uma Direcção Fiscal da Exploração dos

Caminhos de Ferro.

Os assuntos agrícolas passaram para o Ministério da Agricultura e os de subsistência e

transportes para o Ministério relativo a esses serviços em conformidade com o Decreto n.º

3902/1918 de 9 de Março. Em Julho de o Decreto n.º 4641/1918 o Ministério foi

totalmente remodelado, integrando cinco Direcções-Gerais articuladas em repartições e

secções, Trabalho, Previdência Social, Minas e Serviços Geológicos, Assistência Publica,

e Saúde, uma Secretaria-Geral, conselhos e comissões.

O Ministério Agricultura criado no Governo de Sidónio Pais tinha o intuito de prestar

apoio às classes rurais.

Relativamente aos Subsecretários de Estado, a Lei n.º 524/1916 de 3 de Maio veio criar o

das Finanças, da Guerra e das Colónias, enquanto permanecesse em Portugal o estado de

guerra. É desta altura a atribuição aos Subsecretários de «funções ministeriais delegadas

pelo Ministro e exercidas sob a responsabilidade solidária deste»217. Sob proposta do

Presidente do Senado era designado o Subsecretário das Colónias, enquanto os restantes

era sob o Presidente da Câmara dos Deputados. A Lei n.º 693/1917 de 15 de Maio

veio criar o cargo de Subsecretário de Estado, no Ministério do Trabalho e Previdência

Social.218 Os Subsecretários criados, cessaram com o final da guerra e o regresso da paz

pelo Decreto n.º 4:582/1918 de 9 de Julho.

42.4. A administração local. A organização administrativa

42.5. O financiamento do poder local

217 Caetano, Marcello, Manual de Direito Administrativo, op. cit., p. 365

218 Caetano, Marcello, Manual de Direito Administrativo, op. cit, p. 365

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191

43. O Estado Novo e o reforço da centralização administrativa

43.1. A Constituição de 1933

A Constituição de 1933 e o Estatuto do Trabalho Nacional afiguram-se como a

dinâmica formal enquadrante da intervenção do Estado. Quanto à Constituição

apresentava como fundamentos, três objectivos, que para Salazar, eram

imprescindíveis na delimitação das suas concepções políticas, sociais e

económicas:219

a) Objectivo terapêutico, com que se pretendia sanar os abusos e revigorar as ruínas

provocadas pelo individualismo demagógico da I República;

b) Integrar a organização política e social portuguesa na evolução do Direito

Constitucional moderno, conformando os seus dispositivos com as tendências do

interesse colectivo que surgiam por todo o lado;

c) Adaptar a organização política e social à tradição e às necessidades reais do País;

Portugal é considerado como uma Nação assente num Estado independente, cuja

soberania apenas se encontra limitada pelo direito e pela moral. A Nação “impõe

ao Estado o respeito pelas garantias derivadas da natureza a favor dos indivíduos,

das famílias, das Corporações e das autarquias locais”,220 asegurando a liberdade

religiosa e garantindo a propriedade, o capital e o trabalho.

Quanto ao seu aspecto formal, a Nação Portuguesa seria uma República unitária e

corporativa, baseada na igualdade de todos perante a lei, no livre acesso de todas as

classes aos benefícios da civilização, na interferência das estruturas da Nação na

vida administrativa e na feitura das leis, na negação de qualquer privilégio. E essas

estruturas assentam nos cidadãos, nas famílias, nas autarquias locais, nos

organismos corporativos. Dedica ainda especial atenção à Família e às

Corporações.

219 Vide, Santos, Francisco I. Pereira dos. Un État Corporatif..., op. cit., pp.47 a 56

220 Salazar, Oliveira. Notas políticas II (1935-1937) …, op. cit., p. 337

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A família é percebida como fonte de conservação e desenvolvimento da raça, base

primária da educação, da disciplina e harmonia social, fundamento de toda a ordem

política, pela sua agregação e representação na freguesia e no município.

As corporações, descreve-as como agregações de cidadãos e famílias para actuação

política e defesa dos seus interesses legítimos. São diferenciadas em dois tipos: as

Corporações morais e as Corporações económicas, nas quais as primeiras

englobariam as Artes, a Ciência, a Assistência e a Solidariedade, em que o móbil

principal seria o elemento espiritual, e as segundas teriam em vista a prossecução

de interesses económicos que deveriam, no entanto, subordinar-se aos interesses

económicos nacionais, bem como à finalidade espiritual da Nação e aos indivíduos

que a compõem.

Quanto à ordem económica e social, encarrega-se o Título VIII da Constituição e o

art.º 29 estabelece um princípio-chave no qual «a organização económica da Nação

deverá realizar o máximo de produção e riqueza socialmente útil, e estabelecer

uma vida colectiva de que resultem poderio para o Estado e justiça entre os

cidadãos».

Por sua vez, nos termos do art.º. 30 é ao Estado que compete coordenar

superiormente a vida económica e social do País, no sentido de o desenvolver de

modo global, através dos objectivos definidos nos nºs 1º, 2º, 3º, 4º e 5º.221Além do

que se refere, o Estado deve ainda promover a formação e o desenvolvimento de

uma economia nacional corporativa, na qual a propriedade, o capital e o trabalho

221 O artº 31º da Constituição de 1933 estabelece então nos seus números o seguinte:

“1º Estabelecer o equilíbrio da população, das profissões, dos empregos, do capital e do trabalho;

2º Defender a economia nacional das explorações agrícolas, industriais e comerciais de carácter

parasitário ou incompatível com os interesses superiores da vida humana;

3º Conseguir o menor preço e o maior salário compatíveis com a justa remuneração dos outros

factores da produção, pelo aperfeiçoamento da técnica, dos serviços e do crédito;

4º Impedir os lucros exagerados do capital, não permitindo que este se desvie da sua finalidade

humana e cristã;

5º Desenvolver a povoação dos territórios nacionais, proteger os emigrantes e disciplinar a

emigração.”

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desempenhem uma função social, em regime de cooperação económica e

solidariedade.

Finalmente, para a execução destes princípios orientadores do Estado Novo, a

Constituição organiza a estrutura do Estado, o mecanismo e a hierarquia dos seus

órgãos: o Chefe de Estado, a Assembleia Nacional, o Governo e os Tribunais. Deixa

de fora a Câmara Corporativa, motivo pelo qual não pode ser considerada um órgão

de soberania.

A Constituição de 1933, e a sua doutrina expressa ao longo de todo o articulado,

não deixa pois de salientar todos os princípios históricos que a enformaram.

É contra-revolucionária, porque se assume como anti-liberal e anti-democrática. É

nacionalista, num sentido amplo, tal como defendera Oliveira Martins, ou seja,

tradicionalista e patriótica. É a procura de evocação dos grandes valores nacionais

de que Oliveira Martins havia sido um dos primeiros porta-vozes, mas que não

havia de deixar de ser propalada, quer pelo Integralismo Lusitano, quer por autores

mais à direita, como Martinho Nobre de Melo, como tivemos ocasião de afirmar.

A Action Française de Charles Maurras contribui para o sentimento nacionalista

em que, ao mesmo tempo, a Nação se afirma como grande e como se atribui uma

função histórica. É exaltação dos princípios definidos pela Encíclica Rerum

Novarum, do Papa Leão XIII, donde se salientam a aceitação quase sem limites da

propriedade privada e a sua transmissão hereditária, o repúdio pelo comunismo e

pelo socialismo, numa palavra, a aceitação do capitalismo, embora

limitadamente.222

222 Este só é aceitável se for socialmente útil e promover a realização da justiça entre os cidadãos. A

Constituição, “surge como um compromisso ponderado, medido, realista. Nega o capitalismo

descarnado, e restringe-lhe os vícios sociais e económicos; repudia o socialismo, por este

desrespeitar a essência da natureza; mas adopta daquele e deste os aspectos que considera válidos,

e produz o Corporativismo, sem que no entanto se caracterize o sistema por uma autonomia

ideológica ou doutrinal. Destrói a substância da democracia parlamentar: a responsabilidade do

executivo perante o legislativo, o partidarismo político. Mas conserva o aparato exterior e formal

de um regime democrático: a soberania emanada da Nação, as eleições, os votos, as câmaras, e o

debate político no seio destas. Constitui assim o Estado Novo uma transigência realista e uma

construção de prudência e de tacto: está animado de uma mística, de um credo, de um sopro

renovador, de um espírito heróico, de um ânimo de grandeza: mas está também impregnado de um

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Finalmente, a Encíclica Quadragesimo Anno definiu os contornos finais da

Constituição, quer através da sistematização dos princípios da Rerum Novarum,

quer através do aprofundar da luta contra o comunismo e o socialismo. E o pólo

aglutinador de todo aquele conjunto de influências, de ideias e de ideais que foram

transformando e moldando um regime é Oliveira Salazar que construiu à sua

imagem.

43.2. A organização corporativa

A organização corporativa em Portugal teve primeiramente como objetivo,

impulsionar a economia. A sua principal missão era dar resposta às exigências de

uma economia relativamente capitalista, incapaz de equilibrar de forma autónoma,

os niveis de produção e consumo. Ou seja, o Estado necessitava de ajuda para

regular o mercado, e essa ajuda viria das grandes entidades patronais e até mesmo

dos seus trabalhadores. Estamos a falar de uma economia corporativa, a partir do

momento em que entidades privadas auxiliam o Estado no controlo e direção da

economia nacional.

Existem dois tipos de corporativismo, o corporativismo de associação e o

corporativismo de Estado. Estamos perante um corporativismo de Estado sempre

que as corporações, por este criadas, o auxiliam a regular a economia, quando se

constituem orgãos estaduais não dotados de personalidade jurídica, e sempre que a

administração destes orgãos não seja feita de forma autónoma. No corporativismo

de associação, as corporações surgiam por iniciativa dos individuos. Aqui, o Estado

era considerado um “Estado Mínimo”, cujas funções tendiam a restringir-se, à

defesa da ordem interna e à representação externa.

A organização corporativa portuguesa encontrava-se hierarquizada em três níveis -

Organismos corporativos primários: os Sindicatos Nacionais, as Casas do Povo, as

Casas dos Pescadores e os grémios. Organismos corporativos intermédios: as

Federações regionais e nacionais de elementos primários semelhantes e as uniões,

sentido de tolerância, de respeito pelo foro íntimo das consciências, de limites aquém dos extremos,

até de paternalismo. Nogueira, Franco. 1977. Salazar (Os tempos áureos - 1928-1936. Coimbra:

Atlântida Editora, vol. II, p. 211

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de atividades já organizadas em grémios e sindicatos nacionais. E, por fim,

organismos corporativos superiores: as corporações.

Os Sindicatos Nacionais, de empregados ou operários, eram de inscrição

obrigatória, e os profissionais do ramo que não estivessem inscritos eram obrigados

a pagar quotas para o sindicato do seu setor de trabalho, sendo que os contratos

coletivos de emprego por ele subscritos eram de aplicação vinculativa a todos os

trabalhadores desse ramo, mesmo que não estivessem sindicalizados. Estes

sindicatos funcionavam a nível distrital e profissional, que restringiam a atividade

sindical, controlados pelo Governo, através do Instituto Nacional do Trabalho e

Previdência (INTP). As direções destes sindicatos estavam sujeitas a aprovação por

parte do Governo, podendo estas ser demitidas e o sindicato dissolvido em caso de

desobediência. Os Sindicatos Nacionais não tinham capacidades financeiras, nem

lhes era reconhecida liberdade de federação a nível nacional, regional ou setorial.

Também não era permitido aos trabalhadores fazer greve.

O Instituto Nacional do Trabalho e Previdência era um organismo que respondia

perante a Presidência do Conselho de Ministros, e que funcionava sob a supervisão

do subsecretário de Estado das Corporações e Previdência Social, tendo este

organismo sido extinto após o golpe de estado ocorrido 25 de Abril de 1974.

Numa dimensão administrativa redutora de conflitos sociais, podem

considerar-se as Casas do Povo e as Casas dos Pescadores, como representativas do

corporatismo puro. Eram elas que se encarregavam da organização, quer dos

trabalhadores quer dos patrões, relativamente aos setores da agricultura e da pesca,

existindo a proibição da criação de sindicatos para os assalariados destes setores. À

semelhança do que acontecia com os sindicatos nacionais, as Casas do Povo e dos

Pescadores também estavam sujeitas a um rigoroso controlo, exercido pelo INTP.

Estas casas tinham funções representativas do trabalho nas negociações colectivas,

meios de prestação de serviços de previdência e socorro, e salvaguardar a educação

e a cultura.

Os grémios, representavam o lado patronal, eram orgãos de intervenção económica,

de âmbito distrital, regional ou nacional, dotados de vastos poderes que em cada

setor, regulavam os preços e as quotas de produção, aquisição de matérias-primas,

bem como dos produtos na fase de comercialização, estavam encarregues das

contratações de trabalhadores, de realizar prospeções de mercado, davam pareceres

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196

acerca da industrialização, modernização e reorganização setorial. Estes elementos

primários da organização corporativa eram altamente protegidos pelo Estado.

Sendo que os principais grémios eram de inscrição obrigatória. Criados pelo

governo, contribuíam para a regulação da concorrência e da produção, sendo que a

sua área de atuação e respetivas funções eram estipuladas pelo Estado, que também

designava os seus dirigentes.

As corporações, como indica o nome, pertenciam a um dos níveis mais elevados do

corporativismo, e tinham representantes em número igual aos restantes níveis da

organização, que eram eleitos pelos sindicatos nacionais, grémios, federações e

uniões, sendo os presidentes de cada corporação eleitos pelo Conselho das

Corporações. Quanto ao seu estatuto jurídico, as corporações eram dotadas de

personalidade jurídica, semelhante à de outros organismos corporativos. Eram

órgãos que eram pouco ligados ao Estado, o que significava que tinham alguma

autonomia, no entanto, as suas funções eram meramente consultivas.

Na segunda metade dos anos 30, surgiu uma rede de organismos de coordenação

económica, dotada de poderes de gestão superiores e vinculativos no que dizia

respeito à atividade económica dos organismos corporativos que se encontravam

integrados nos setores por eles tutelados.

O Conselho Corporativo, foi o órgão de orientação superior da organização

corporativa nacional, foi criado pelo Decreto-Lei n.º 24 362, de 15 de agosto de

1934. A composição e funções sofreram alterações menores por força do Decreto-

Lei n.º 40 324, de 6 de outubro de 1955. Este conselho era constituído pelos

ministros da Presidência, da Economia e das Corporações e Previdência do

Ultramar, Social, sendo um órgão subalterno ao Presidente do Conselho. Os

ministros eram chamados para fazer parte de determinadas reuniões nas quais

também estavam presentes, os subsecretários de Estado a cujos departamentos

interessassem as questões inseridas na respectiva ordem dos trabalhos.

A Câmara Corporativa, como já foi referido anteriormente, era um órgão auxiliar à

Assembleia Nacional, cuja função era, como o Conselho Corporativo, meramente

consultiva, perante a Assembleia Nacional. Mais tarde, após a revisão

constitucional de 1935, passou a ser obrigatório ao Governo, recorrer a este órgão,

para que fossem emitidos pareceres e opiniões, acerca de matérias legislativas ou

propostas de lei, não sendo estes pareceres e opiniões vinculativos. Esta revisão

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constitucional, veio dinamizar e valorizar o papel da Câmara Corporativa,

atribuindo-lhe autonomia, o que permitiu, que esta passasse a ser também um órgão

com funções sugestivas do Governo. No ano de 1959, a Câmara Corporativa é

integrada no colégio eleitoral responsável por eleger o Presidente da República, o

que a torna, diretamente interveniente nas decisões políticas do país. A Câmara

Corporativa, era assim constituída por procuradores que agiam, enquanto

representantes das autarquias nacionais e dos interesses sociais comuns. A União

Nacional não se encontrava presente na Câmara Corporativa. Estes procuradores

estavam divididos em 12 secções, consoante as suas especializações que se

ocupavam dos setores existentes na sociedade. Sendo algumas dessas secções, a

indústria, comércio e agricultura... estando estas subdivididas, consoante a sua

importância, a nível dos interesses nacionais, que se reuniam em plenários no inicio

das sessões legislativas.

A organização corporativa portuguesa ao longo do tempo foi ficando cada vez mais

limitada pela burocracia e pela corrupção, que impedia o país de acompanhar a

modernização económica mundial.

As bases jurídicas que apoiavam e regulamentavam a organização corporativa

encontravam-se estabelecidas no capítulo VIII da Constituição da República

Portuguesa de 1933, mais concretamente nos artigos 34º: “O Estado promoverá a

formação da economia nacional corporativa, visando a que os seus elementos não

tendam a estabelecer entre si a concorrênca desregada e contrária aos justos

objetivos da sociedade e deles proprios, mas a colaborar mutuamente como

membros da mesma coletividade.” e 37º: “As corporações económicas

reconhecidas pelo Estado podem celebrar contratos coletivos de trabalho, sendo

nulos os que forem celebrados sem a sua intervenção.”

43.3. Os Órgãos de Soberania

Do ponto de vista da estrutura órgãos de soberania a Constituição Política de 1933,

considerava que o Chefe do Estado é o Presidente da República eleito pela Nação,

com um mandato de sete anos. O apuramento final dos votos era feito pelo Supremo

Tribunal de Justiça que proclamaria Presidente, o cidadão mais votado, o qual tinha

de ser cidadão português maior de trinta e cinco anos, no pleno gozo dos seus

direitos civis e políticos e desde sempre com a nacionalidade portuguesa. Eram

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inelegíveis para o cargo do Presidente da República os parentes até o 6.º grau dos

reis de Portugal.

O Presidente eleito assume as suas funções no dia em que expira o mandato do

anterior e toma possa perante a Assembleia Nacional. Responde perante a Nação

pelos actos praticados no exercício das suas funções, sendo o exercício destas e a

sua magistratura independentes de quaisquer votações da Assembleia Nacional. No

caso de vagatura por morte, renuncia, impossibilidade física permanente ou

ausência para pais estrangeiro sem assentimento da Assembleia Nacional e do

Governo, o novo Presidente será eleito no prazo máximo de sessenta dias.

Em pleno período da Ditadura Militar, em 193, foi criado um Conselho Político

Nacional para funcionar junto do Presidente da República, o qual viria a ser o

antecedente do Conselho de Estado criado com a Constituição de 1933 que

permaneceu até à de 1976. Promulgada a Constituição de 1933, o Conselho de

Estado enquanto órgão de soberania passou a funcionar junto do Presidente da

República integrando o Presidente do Conselho de Ministros, o Presidente da

Assembleia Nacional, o Presidente da Câmara Corporativa, o Presidente do

Supremo Tribunal de Justiça, o Procurador-Geral da República e ainda por cinco

membros, homens públicos, com competências superiores, nomeados de forma

vitalícia pelo Chefe de Estado.

O Conselho de Estado tinha obrigatoriamente de ser ouvido pelo Presidente da

República antes de serem exercidas as seguintes atribuições constantes dos n.º 4,

5.º e 6.º do art. 81.º da Constituição Política de 1933, respectivamente, dar à

Assembleia Nacional poderes constituintes nos termos do art.º. 134.º, convocar

extraordinariamente, por urgente necessidade pública, a Assembleia Nacional para

deliberar sobre assuntos determinados, e adiar as suas sessões, sem prejuízo da

duração fixada para a sessão legislativa em cada ano, dissolver a Assembleia

Nacional quando assim o exigirem os interesses superiores da Nação, sendo ainda

ouvido em todas as emergências graves da vida do Estado, ou até mesmo quando o

Presidente assim o entender.

O Governo é constituído pelo Presidente da República, Presidente do Conselho,

Ministros e Subsecretários, sendo o Presidente do Conselho, nomeado e demitido

livremente pelo Presidente da República, e tinha como uma das suas funções

propor, ao mesmo, nomes para os cargos de Ministro e Subsecretários, enviar ao

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presidente da Assembleia Nacional propostas de lei, responder pela política geral

do Governo, coordenar e dirigir a actividade de todos os Ministros, que perante a

ele respondem politicamente pelos seus actos.

Nos termos do art.º. 108.º da Consituição competia ainda ao governo, entre outras

atribuições, referendar os actos do Presidente da República, elaborar os decretos-

leis no uso de autorizações legislativas ou nos casos de urgência e necessidade

pública, elaborar os decretos, regulamentos e instruções para a boa execução das

leis, superintender no conjunto da administração pública, fazendo executar as leis e

resoluções da Assembleia Nacional, fiscalizando superiormente os actos dos corpos

e corporações administrativas e praticando todos os actos respeitantes à nomeação,

transferência, exoneração, reforma, aposentação, demissão ou reintegração do

funcionalismo civil ou militar, com ressalva para os interessados do recurso aos

tribunais competentes.

Os actos do Presidente da República e do Governos que envolvessem aumento ou

diminuição de receitas ou despesas seriam sempre referendados pelo Ministro das

Finanças.

A Assembleia Nacional era composta por noventa deputados eleitos por sufrágio

directo dos cidadãos eleitores, com um mandato de quatro anos, não sendo possível

fazer parte da Assembleia Nacional e da Câmara Corporativa em simultâneo.

Os deputados gozavam de imunidades e regalias entre as quais, o serem invioláveis

pelas opiniões e votos que emitiam durante o seu mandato, não podiam estar presos

sem assentimento da Assembleia, excepto se apanhados em flagrante delito ou por

crime a que corresponda a pena maior ou equivalente na escala penal, tinham direito

a uma subsídio nos termos que a lei eleitoral estabelecer.

As deputados ficava vedada a celebração de contratos com o Governo ou a

aceitação de qualquer emprego retribuído ou comissão subsidiada por parte do

Governo ou Governo estrangeiro, e do exercício dos seus cargos, durante o

funcionamento efectivo da Assembleia Nacional desde que funcionários públicos,

civis ou militares.

As suas principais atribuições eram a feitura das leis, sua interpretação, suspenção

ou revogação, vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis, tomar conta

respeitantes a cada ano económico, que serão apresentadas ao Tribunal de Contas e

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200

outros elementos que façam a sua apreciação, autorizar o Governo a cobrar as

receitas do Estado e a pagar as despesas públicas na gerência futura, autorizar o

Governo a realizar empréstimos e outras operações de crédito que não sejam de

divida flutuante, autorizar o Chefe do Estado a fazer a guerra, definir os limites dos

territórios da Nação, anulação de pena, perdoar facto punível, tomar conhecimento

das mensagens do Chefe do Estado.

A Assembleia Nacional funcionava em sessões plenárias e as suas deliberações

eram tomadas à pluralidade de votos, achando-se presente a maioria absoluta do

número legal dos seus membros. As sessões são públicas, salvo resolução, em

contrato, da Assembleia ou do seu presidente. A iniciativa da lei compete

indistintamente ao Governo ou a qualquer dos membros da Assembleia Nacional.

Os projectos aprovados pela Assembleia Nacional são enviados ao Presidente da

República, para serem promulgados como lei dentro dos quinze dias imediatos. Os

projectos não promulgados dentro deste prazo serão de novo submetidos à

apreciação da Assembleia Nacional, e, se então forem aprovados por maioria de

dois terços do número legal dos seus membros, o Chefe do Estado não poderá

recusar a promulgação.

A Constituição de 1933 reafirma que os tribunais constituem um dos órgãos de

soberania do Estado e considera o Supremo Tribunal de Justiça um tribunal

ordinário. A função judicial, em 1933, era então exercida por dois tipos de tribunais:

ordinários e especiais. Eram tribunais ordinários o Supremo Tribunal de Justiça, os

Tribunais de 2ª instância (nos distritos judiciais do Continente e Ilhas Adjacentes e

das Colónias), os tribunais de 1ª instância – nas comarcas de todo o território

nacional. Ao Supremo Tribunal de Justiça ficava assim, com competência para

fiscalizar os atos eleitorais para a Presidência da República.

O Estado é representado junto dos tribunais pelo Procurador-Geral da República,

pelo delegado do Procurador-Geral da República junto a cada tribunal de 1ª

instância e pelos representantes legais junto dos tribunais especiais.

Os juízes dos tribunais ordinários, são vitalícios e inamovíveis. Não podiam aceitar

do Governo outras funções onde fossem remunerados. Os juízes não são

responsabilizados pelos seus julgamentos – salvo raras exceções consideradas pela

lei – e a julgamento não podem estes aplicar leis que infrinjam os dispostos da

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Constituição. Para prevenção dos crimes e sua repressão, haverá penas e formas de

assegurar o bem-estar social, que têm por fim a defesa da sociedade e a readaptação

dos delinquentes ao meio social.

O artº 102º da Constituição da República Portuguesa que cria a Câmara

Corporativa, salienta que “Junto da Assembleia Nacional funciona uma Câmara

Corporativa composta de representantes das autarquias locais e dos interesses

sociais, considerados estes nos seus ramos fundamentais de ordem administrativa,

moral, cultural e económica, designando a lei aqueles a quem incumbe tal

representação ou o modo como serão escolhidos e a duração do seu mandato”. A

mesma redacção é do Regimento da Câmara Corporativa, aprovado definitivamente

em 22 de Abril de 1935. É o Decreto-lei nº 29111 de 12 de Novembro de 1938, que

regulamenta a Câmara Corporativa diz respeito. O seu artº 1º salienta no seguimento

do artigo constitucional acima citado, que ela é “constituída por procuradores das

autarquias locais e das corporações morais, culturais e económicas, e pelos

representantes dos interesses sociais de ordem administrativa”, sendo

procuradores o presidente de cada corporação e membros do respectivo conselho

em número e qualidade suficientes para condigna representação dos interesses nela

integrados, competindo ao Conselho Corporativo a designação das entidades que,

além do presidente, hão-de representar na Câmara cada corporação. O número dos

escolhidos não pode exceder o das corporações que se instituírem, devendo a

escolha recair em pessoas de superior competência na feitura das leis ou de

comprovado conhecimento das questões da administração pública. (artº 2º e 3º). Em

conformidade com o artº 102º da Constituição, os interesses e actividades,

representados na Câmara, são os seguintes: económicos, culturais e morais,

autarquias locais e administração pública (artº 4º DL 29111).

A Câmara Corporativa organiza-se em secções especializadas, as quais resultam da

natureza dos interesses e actividades nela representada, sendo as seguintes:

Interesses económicos, culturais e morais e Administração pública, com as

respectivas secções.

No que respeita ao funcionamento da Câmara Corporativa, o se Conselho exerce

um papel preponderante, quer podendo alterar o número e a designação dos

agrupamentos de actividades e de interesses previstos no sentido de a adaptar às

corporações que forem instituídas (artº 7º), quer na ampla liberdade que lhe era

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concedido na organização da Câmara: direito de escolher com total liberdade os

procuradores e os representantes, aquando da instituição das corporações.

Em consonância com o artigo 103º da Constituição de 1933, é da competência da

Câmara Corporativa relatar e dar parecer por escrito sobre todas as propostas ou

projectos de lei que forem presentes à Assembleia Nacional antes de ser iniciada a

discussão. Tal parecer deverá ser dado no prazo de trinta dias, ou no fixado pela

Assembleia se o respectivo projecto for considerado urgente pelo governo (§ 1º) e,

no caso de este parecer não ser dado nos prazos estabelecidos pode a Assembleia

iniciar a discussão dos projectos de lei (§ 2º). O artigo 104º estabelece, quanto ao

funcionamento que a Câmara Corporativa funciona durante o período das sessões

da Assembleia Nacional e por secções especializadas, podendo, contudo, reunir

duas ou mais secções ou todas elas se a matéria em estudo assim o reclamar. As

reuniões da Câmara Corporativa não são públicas, em conformidade com o artº 105º

da Constituição. Sem poder de iniciativa, tem no entanto a prerrogativa de, caso

recuse uma proposta a ela submetida e sugerido uma outra, esta possa ser aceite,

quer pelo Governo, quer por qualquer deputado que a toma como sua e a leva a

discussão sem necessidade de a submeter de novo à Câmara. Com a revisão

constitucional de 23 de Março de 1935, passa o Governo a poder consultar as

secções da Câmara sobre decretos a publicar ou sobre propostas de lei a apresentar

à Assembleia Nacional.

Finalmente, duas regras se assumem com especial relevância: que a Câmara

funcione através de secções especializadas, podendo todavia reunir duas ou mais

secções ou todas elas se a matéria em estudo assim o reclamasse (artº 104º) que, na

discussão das propostas ou projectos de lei, podem tomar parte o Ministro ou

Ministros competentes ou seus representantes e o membro da Assembleia Nacional

que deles houver tido a iniciativa (artº 104º § 1º).

O Conselho Corporativo tinha, em termos formais, um papel extremamente

importante, ainda que praticamente não o tenha exercido ao longo do tempo. Criado

pelo Decreto-lei nº 24362, de 15 de Julho de 1934, o órgão que tem a seu cargo

estudar a orientação superior da organização corporativa nacional e o estudo dos

grandes problemas que interessam à reforma do Estado e derivam daquela

organização (Preâmbulo e artº 3º nº 1), imprimir unidade de acção aos serviços

públicos na realização da organização corporativa (artº 3º nº 2).

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O Conselho Corporativo era integrado por membros permanentes, e membros não

permanentes.223 A Presidência estava entregue ao Presidente do Conselho de

Ministros (artº 2º nº 2) que o convocaria e fixaria com antecipação as matérias da

ordem do dia das sessões. (artº 4º). Podiam ainda os membros do Conselho propor

ao Presidente os assuntos sobre os quais se devem pronunciar. (idem)

Correspondendo em parte ao modelo italiano do Conselho Nacional das

Corporações, o Conselho Corporativo não aceita, na sua composição, os

representantes das corporações que naquela se verificava

Quanto ao âmbito das suas funções, o Conselho além do seu carácter consultivo,

apresentava um vasto leque de intervenções tais como “as deliberações do

Conselho Corporativo que não importem derrogação ou modificação de textos

legislativos constituem normas a seguir na organização corporativa nacional, as

quais serão imediatamente observadas pelos ministérios e serviços públicos a que

disserem respeito e pelo Sub-Secretário de Estado das Corporações e Previdência

Social”. – art. 5.º, Decreto-lei n.º 224.362 de 15 de Julho de 1934.

43.4. A intervenção social no estado novo: a previdência social e a legislação

do trabalho

No que respeita ao Estatuto do Trabalho Nacional, reflecte o espírito da doutrina

corporativista e é o elemento fundamental para o seu entendimento, no que respeita

aos aspectos económicos e sociais. Trata-se de colocar em lei os princípios

223 Eram membros permanentes do Conselho Corporativo os seguintes elementos: o Presidente do

Conselho de Ministros, o Ministro da Justiça, o Ministro das Obras Públicas e Comunicações, o

Ministro do Comércio e Indústria, o Ministro da Agricultura, o Sub-Secretário de Estado das

Corporações e Previdência Social e dois professores das Universidades de Lisboa e Coimbra que

rejam ou tenham regido o curso de direito Corporativo (artº 2º) e eram membros não permanentes

podem fazer parte quaisquer outros Ministros quando hajam de ser tratados assuntos relacionados

com a organização corporativa nacional e respeitante ao seu Ministério. (artº 2º nº 1)

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pragmáticos definidos pela Constituição. O artº 1º do Estatuto224 é influenciado de

forma directa pela Carta del Lavoro italiana assentando numa concepção de índole

fascista, evidenciando que o bem comum é superior aos bens individuais, pelo que

o Estado deve providenciar os meios necessários para assegurar a supremacia dos

bens colectivos, ao mesmo tempo que deve assegurar a unidade moral, política e

económica da Nação.

Reconhecendo a iniciativa privada, tal como o estabelece a Constituição, como

fundamento do progresso da economia da Nação (artº 4º), embora não seja este um

princípio sempre praticado, além de que se contradiz com o articulado dos artsº 7º

e ss. Proíbe a greve e o lock-out (artº 9º, regulado posteriormente pelo Decreto

23870), rejeita a luta de classes, reprime a greve geral e evidencia a colaboração na

empresa, definindo a estrutura corporativa, pelos sindicatos, grémios, fundações,

uniões e finalmente as Corporações. É também o Estatuto que define a organização

do sistema no Título III, denominado Organização Corporativa, a partir do artigo

40º e seguintes.

A organização corporativa assentava numa repartição em três elementos: primários,

intermédios e superiores. Os elementos primários englobam os sindicatos nacionais

operários e os grémios patronais. Os primeiros “agrupam em cada distrito

administrativo os trabalhadores de qualquer ramo do comércio ou indústria, ou

agrupam em um sindicato único, abrangendo todo o País, os que exerçam

quaisquer profissões livres”.225

A sua constituição não é obrigatória, mas necessita do reconhecimento do Estado

para a sua formação. A sua competência legal determina-se em face da sua

capacidade para representar o interesse de classe através da celebração de acordos

colectivos de trabalho. De forma enquadrante, o Dec-Lei 23050, de 23 de Setembro

de 1933 legisla sobre a organização dos sindicatos de origem facultativa, enquanto

o Dec-Lei 29171, de 24 de Novembro de 1938, legisla sobre os sindicatos de

inscrição obrigatória.

224 O artigo 1º do Estatuto do Trabalho Nacional, diz que “A Nação Portuguesa constitui uma

unidade moral, política e económica, cujos fins e interesses dominam os dos indivíduos e grupos

que a compõem”.

225 Leite (Lumbrales), Dr. João Pinto Costa. A doutrina Corporativa..., op. cit., p. 128

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Os grémios são associações que agrupam os patrões e que têm uma dupla função:

a regularização interna de cada ramo e a produção pela disciplina da concorrência;

a regulamentação das relações entre os diversos elementos da empresa por meio de

contratos colectivos de trabalho, realizados com os sindicatos operários.

A distinguir duas espécies de grémios: facultativos e obrigatórios. Os primeiros,

regulados pelo Decreto-lei 24715, de 3 de Dezembro de 1934, apresentam uma

menor extensão que os obrigatórios, pelo que têm também um menor poder de

intervenção. Os segundos, criados pelo Decreto-lei 23049, de 23 de Setembro de

1933, são organizados por distritos e os seus regulamentos necessitam de ser

aprovados pelo Governo, após parecer do Conselho Corporativo. Como

características gerais, apresentam a possibilidade de regulamentar alguns ramos do

comércio e da indústria e o terem carácter nacional.

Quanto aos elementos intermédios, estes são regulados pelo art.º 41º do Estatuto

que os define como agrupamentos dos órgãos primários, divididos em federações e

uniões. As federações, organismos regionais ou nacionais, agrupam sindicatos ou

grémios idênticos de uma mesma região ou de todo o País, constituindo um

elemento coordenador em que se mantém a distinção entre os diversos elementos

da produção. As uniões, estruturas representativas de interesses comuns de

actividades e ramos de produção afins, reúnem sindicatos ou grémios de indústrias

conexas e que em virtude disso, têm problemas comuns a resolver.

Os elementos superiores seriam então as Corporações, entendidas como

agrupamentos de federações e de uniões, dirigidas por um conselho paritário de

assalariados e patrões, que acabariam por ser no entanto, apenas reguladas em 1956

pelo Dec.-Lei nº 2086, de 22 de Agosto, são definidas como a «organização

integral das diferentes actividades de ordem moral, cultural e económica, e têm

por fim coordenar, representar e defender os seus interesses, para a realização do

bem comum» (Base I).

Todavia, é ainda em 1938, que o Decreto-lei nº 29110, de 12 de Novembro,

estabelece as regras necessárias à criação das Corporações previstas quer na

Constituição, quer no Estatuto do Trabalho Nacional.

Segundo o seu art.º. 1 é ao Governo que compete criar, através de decreto, as

Corporações morais, económicas e culturais. Ainda no mesmo Decreto-lei, o art.º 4

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enumera as atribuições das Corporações e que são: a) desenvolver a consciência

corporativa e o sentimento de solidariedade nacional entre todos os elementos

orgânicos que elas criem; b) coordenar a acção dos organismos corporativos que as

constituem, tendo em vista não apenas os interesses particulares, mas também os

objectivos superiores da organização; c) dar parecer ao Governo sobre todas as

questões que lhes forem submetidas; d) propor ao Governo as regras obrigatórias

para a regulamentação colectiva das relações económicas e para a disciplina unitária

das actividades que elas coordenam; e) promover a realização e o aperfeiçoamento

das convenções colectivas de trabalho e organização da Previdência Social; f)

analisar os recursos de carácter penal e tentar a conciliação nas controvérsias

colectivas de trabalho, quando o Governo o determinar.

Apresentando apenas uma missão consultiva, as Corporações não tiveram tempo de

iniciar a actividade que lhes estava destinada teoricamente, não tendo deixado,

contudo, de exercer, em casos que veremos, uma acção de grupos de pressão ou de

interesses.

Com o Estatuto do Trabalho Nacional, a que se seguiu um amplo acervo legal,226

fica institucionalizado o Corporativismo como doutrina económica e social, pese

embora o facto de não ser pacífica a aceitação de que na prática tal doutrina tido

grande aplicação.

Qualquer que seja o lado onde nos coloquemos, o certo é que o Corporativismo, no

sentido político e económico, veio servir os interesses de uma classe - a burguesia

industrializada - representada pelos capitalistas detentores de grande parte das

estruturas produtivas, do ponto de vista industrial, comercial ou agrícola e, embora

digladiando-se pela delimitação da sua capacidade de intervenção, se constituiu

como grupo de pressão que susteve e apoiou o regime.

Por outro lado, o Estado Novo, ao contrário do que por muitos tem sido afirmado

teve uma política social. Não teve, contudo, sempre aplicação prática ou em muitas

circunstâncias ficou aquém das expectativas ou das possibilidades do regime, ou

226 Veja-se de entre outros os seguintes diplomas legais que se destinaram a enquadrar o

Corporativismo económico, característico do Estado Novo: Organização Primária: Sindicatos:

Decretos-lei nº 23050; 23340; 23712; 25516; 27228; 34425; 35404; 37425; 40621; 27288; 23051;

23618; 28859; 30710; 24715; 25118; 31970; 24715; 36681; 41286; Lei 2086 etc.

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ainda pecou em muitas outras circunstâncias pelo atraso face ao que já se passava

na Europa, principalmente no período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial.

O Estado Novo no âmbito do seu quadro institucional não deixou de lado, a criação

de instituições de interesse social e o seu enquadramento legal ao trabalho. Ainda

que de forma incipiente o regime que se inicia em 1932 procura face ao seu quadro

ideológico, assegurar uma base social de apoio suficientemente ampla e estável que

lhe garantisse a estabilidade social e politica que pretendia alcançar.

Para além disso, era imperativo dos seus pressupostos ideológicos a criação de

estruturas sociais reguladoras no contexto das corporações. Ora, é aqui que a

questão social vem ganhar importância e são neste quadro criadas um conjunto de

instituições que pretendiam garantir o enquadramento corporativo.

Mas, não só de base social e apoio se trata quando se avalia a intervenção social do

estado Novo. A crise económica, social e política havia acompanhado o país

praticamente desde finais do Século XIX, adquirindo intensidade redobrada no

período que vai dos alvores da I Guerra Mundial até aos princípios de 1926, donde

resulta a intervenção militar que em 28 de Maio implantaria a Ditadura Militar e a

procura da respectiva estabilidade para o país.227 Oliveira Salazar, para ministro das

finanças é, julga-se, a salvação do país do ponto de vista económico e daí a

estabilização geral do país.

Não é fácil a tarefa, porquanto os conflitos laborais (greves para aumentos salariais,

jornada de trabalho muito alta, precariedade das condições laborais) são

preocupantes. A luta de classes que opõe capitalistas a proletários, continua a ser

uma guerra sem quartel e sem tréguas visíveis.

O que a revolução de 28 de Maio de 1926 pretendia em primeira instância, a paz

social e a estabilidade económico-financeira, estava em meados de 1932 muito

longe de ser possível. É neste contexto que a intervenção social do Estado Novo

adquire sentido. A legislação corporativa de que demos conta atrás, sobretudo o

Estatuto do Trabalho Nacional são o ponto de enquadramento a partir do qual se

desenvolve toda a iniciativa social.

227 Vide, Caeiro, Joaquim Croca Caeiro. 1993. Os militares no poder. Uma análise histórico-politica

do liberalismo a 1956, Lisboa: Huguin,

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208

O direito de associação é vedado pelo Estatuto e por conseguinte a greve. A defesa

dos interesses dos trabalhadores passa assim para a organização corporativa, a qual

deveria a partir dai criar as necessárias condições.

É neste sentido que a lei 1.884 de 16 de Março de 1935, vem criar as instituições

de previdência social, as quais podiam ser incluídas em qualquer das seguintes

categorias: instituições de previdência dos organismos corporativos, caixas de

reforma ou de previdência, associações de socorros mútuos e instituições de

previdência dos servidores do Estado e dos corpos administrativos – art.º. 1. -.

E, o decreto 25.935 de 12 de Outubro de 1935 define que as instituições de

previdência dos organismos corporativos passariam a usar a denominação de “caixa

sindical de previdência” acrescentado do título da profissão ou actividade

económica – art.º. 1. -, sendo constituídas pelos grémios e sindicatos nacionais e

respectivas federações, por meio de acordos ou através de contratos colectivos de

trabalho.228

O decreto 28.321 de 27 de Dezembro de 1937, vem por seu lado, estabelecer que

as caixas de reforma passarão a usar a designação de “Caixa de Reforma (ou de

Previdência)” acrescida do título da profissão, serviço especializado ou actividade

diferenciada, pessoal de empresas dos estabelecimentos comerciais ou

industriais.229

228 Outros diplomas legislativos de interesse, são entre outros, Decreto-lei n.º 32.640 de 23 de Janeiro

de 1943; 32.674 de 20 de Fevereiro de 1943, 33.345 de 20 de Dezembro de 1943; 33.533, de 21 de

Fevereiro de 1944; 33.744 de 29 de Junho de 1944; 34.410 de 29 de Dezembro de 1945; 35.611 de

25 de Abril de 1946; 35.896 de 8 de Outubro de 1946; 36.608 de 27 de Novembro de 1947; 37.244

de 27 de Dezembro de 1948; 37245 de 27 de Dezembro de 1948; 37.426 de 23 de Maio de 1949;

37.578 de 11 de Outubro de 1949; 37.747 de 30 de Janeiro de 1950; 37.910 de 1 de Agosto de 1950;

38.538 de 24 de Novembro de 1951; 38.818 de 3 de Julho de 1952; Lei n.º 2.007 de 7 de Maio de

1945, 2.036 de 9 de Agosto 1949; 2.044 de 20 de Julho 1950; Regulamento da Junta do Crédito

Público; Regulamento do Instituto Nacional do trabalho e da Previdência; Despacho de 25 de

Fevereiro de 1953; Despacho de 13 de Março de 1952

229 Outros diplomas legislativos de interesse neste âmbito, são entre outros, os seguintes: Decreto-

lei n.º 23.640 de 23 de Janeiro de 1943; 32.749 de 15 de Abril de 1943; 33.512 de 19 de Janeiro de

1944; 33.533 de 21 de Fevereiro de 1944; 35.410 de 29 de Dezembro de 1945; 36.772 de 1 de Março

de 1948; 37.426 de 23 de Maio de 1949; 37.739 de 20 de Janeiro de 1950; 37.749 de 2 de Fevereiro

de 1950; 37.762 de 24 de Fevereiro de 1950; 38.775 de 5 de Junho de 1952; 40.462 de 29 de Julho

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209

Quanto às associações de socorros mútuos vêm a ser reguladas pelo decreto 19.281

de 29 de Janeiro de 1931, que as caracteriza como instituições de previdência, de

capital indeterminado e número ilimitado de sócios, tendo por base o auxílio mútuo.

As Casas do Povo, são por seu lado, reguladas e criadas pelo Decreto 23.051 de 23

de Setembro de 1933 e são definidas como organismos de cooperação social, com

personalidade jurídica e com autorização para serem criadas em todas as freguesias

rurais, competindo a iniciativa da sua criação de particulares interessados e de

reconhecida idoneidade, das Juntas de Freguesia ou de qualquer outra autoridade

administrativa.

A sua esfera de acção circunscrevia-se à freguesia rural não podendo na mesma

freguesia haver mais do que uma Casa do Povo.

Quanto aos seus fins, as Casas do Povos, tinham os seguintes:

- Previdência e assistência, a prestar aos sócios no caso de doença, desemprego,

velhice ou inabilidade;

- Instrução, nomeadamente no ensino aos adultos e às crianças, desportos, diversões

e cinema educativo;

- Progressos locais, cooperação nas obras de utilidade comum, comunicações,

serviço de águas, higiene pública.

Podiam ainda, as Casas do Povo, promover entre os seus sócios, a organização de

sociedades cooperativas de produção ou de consumo.230

de 1955; 40.775 de 8 de Setembro de 1956; 41.595 de 29 de Abril de 1958; 41.890 de 30 de Setembro

de 1958

230 Outros diplomas considerados importantes acerca desta realidade, são entre outros os seguintes:

Decretos-lei n.º 23.618 de 1 de Março de 1934; 28.859 de 18 de Junho de 1938; 30.710 de 29 de

Agosto de 1940; 30.910 de 23 de Novembro de 1940; 34.373 de 10 de Janeiro de 1945; 38.540 de

24 de Outubro de 1951; 38.769 de 28 de Maio de 1952; 40.199 de 23 de Junho de 1955; 40.970 de

7 de Janeiro de 1957; 43.095 de 29 de Julho de 1960. Vide também o regulamento de 14 de

Dezembro de 1940 e a Lei n.º 2.092 de 9 de Abril de 1958 e os regulamentos do Fundo de

Previdência e dos Serviços de Invalidez.

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210

A lei n.º 1.953 de 11 de Março de 1937, vem por sua vez criar as casas dos

Pescadores, organismos de cooperação social, em todos os centros de pesca. A sua

esfera de acção era limitada à área da capitania ou delegação marítima respectiva.

Os seus fins eram os seguintes:

- Representação profissional, nomeadamente para exercício das funções inerentes

aos organismos corporativos do trabalho dentro dos limites superiormente

determinados e compatíveis com a profissão dos associados;

- Educação e instrução, principalmente no que respeitava ao ensino elementar de

adultos e crianças e rudimentos de instrução profissional;

- Previdência e assistência, através da concessão de subsídios ou pensões: fundação

de obras de protecção e auxílio nos casos de parto, doença, inabilidade ou velhice,

morte, perda de pequenas embarcações, distribuição de roupas e alimentos por

ocasião de grandes crises ou invernias.231

43.5. A administração central.

43.5.1. A organização de 1935

No Decreto-lei n.º 24833, de 2 de Janeiro de 1935, cria-se a Secretaria da

Assembleia Nacional destinada à execução dos serviços relativos à mesma

Assembleia e à Câmara Corporativa. Esta Secretaria está dependente da Presidência

do Conselho e está sujeitas a todas as disposições que regem o funcionamento e

disciplina do pessoal dos serviços subordinados a essa mesma Presidência. A

Secretaria será dirigida por um director-geral, nomeado vitaliciamente pelo

Presidente do Conselho, e os seus serviços serão repartidos por secções, com chefes

que exercem as suas funções em comissão. À primeira secção competem os serviços

de expediente resultante do funcionamento da Assembleia Nacional e da Câmara

Corporativa e a vigilância durante o período de sessões das mesmas. À segunda

secção competem a redacção e publicação do Diário das Sessões e do regimento e

leis complementares para uso dos deputados e documentos referentes aos trabalhos

231 Destaca-se entre outra a seguinte legislação enquadrante, Decreto-lei n.º 37.750 de 4 de Fevereiro

de 1950; 37.751 de 4 de Fevereiro de 1950 e o regulamento do Fundo de Assistência.

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legislativos. Já à terceira secção compete a conservação e actualização da biblioteca

destinada aos membros da Assembleia Nacional e da Câmara Corporativa.

A 22 de Janeiro de 1935, uma proposta é enviada pelo Governo à Assembleia

Nacional. Essa proposta reconhece a necessidade de introduzir certas modificações

na Constituição de 1933, umas decorrentes de uma análise cuidada do texto original

e alimentadas pelo desejo de aperfeiçoar a sistematização de matérias, outras

resultantes da experiência governamental durante os dois anos que a Constituição

esteve em vigor e da vontade de melhorar o funcionamento das relações entre os

diferentes órgãos de soberania.232 Desta proposta resultaram as leis nº 1885, nº

1910, nº 25236 e nº 26115.

A Lei n.º 1885, de 23 de Março de 1935, trouxe algumas alterações à organização

da Administração Central do país. Nesta lei declara-se que, em relação ao

Presidente da República, este, perante crimes estranhos ao exercício das suas

funções, passa a responder perante os tribunais comuns, no fim do seu mandato

(§único do artigo 78.º); em caso de renúncia de cargo, morte, problemas físicos que

impossibilitem o exercício das suas funções de Chefe de Estado ou ausência do país

sem consentimento da Assembleia Nacional, e enquanto a eleição do novo

Presidente da República não for realizada, ficará o Presidente do Conselho

responsável pelas funções de Chefe de Estado e do seu cargo originário,

simultaneamente (§ 2.º do artigo 80.º). Deste modo, passa também a competir ao

Presidente: abrir a primeira sessão legislativa de cada legislatura (nº 2 do artigo

81.º), o que permitiu ao Presidente ler o discurso inaugural sem necessidade de ter

de entregar a sua mensagem ao Presidente da Assembleia para ser lida por este,

estando ele presente233; representar a Nação e orientar a política externa, ajustar

convenções internacionais e negociar tratados de paz e aliança, arbitragem e

comércio, submetendo-os, agora por intermédio do Governo, à aprovação da

Assembleia Nacional (nº 7 do artigo 81.º); promulgar e fazer publicar também os

decretos-leis e os decretos regulamentares e assinar todos os decretos individuais,

232 Campinos, Jorge. 1975. A Ditadura Militar 1926-1933, Lisboa: Publicações Dom Quixote, p.

197

233 Marcello Caetano, Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, Coimbra editora, 1972,

Tomo II, p. 561

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212

sob pena de inexistência (nº 9 do artigo 81.º). Os seus actos passam a ser também

referendados pelo Presidente do Conselho e não só pelo Ministro ou Ministros

competentes, também sob pena de inexistência, no entanto, os assuntos que não

carecem de referenda são os mesmo que estavam presentes no texto original (a

nomeação e demissão do Presidente do Conselho, as mensagens dirigidas à

Assembleia e a mensagem de renúncia do cargo) (artigo 82.º).

Relativamente à Assembleia Nacional, as atribuições da mesma sofrem algumas

alterações, tais como: tomar as contas respeitantes a cada ano económico, as quais

lhe serão apresentadas com o relatório e decisão do Tribunal de Contas, mas só se

este as tiver julgado, e os demais elementos necessários para a sua apreciação (nº 3

do artigo 91.º); autorizar o Governo a cobrar receitas e a pagar as despesas públicas

na gerência futura, estabelecendo uma data limite, sendo esta até 15 de Dezembro

(nº 4 do artigo 91.º). No seu funcionamento, a Assembleia passa a realizar as suas

sessões com a duração de três meses, a iniciar-se em 25 de Novembro de cada ano,

salvo, agora, o disposto nos artigos 75.º – quando o Presidente assume as suas

funções –, 76º – quando o Presidente da República se ausentar – e 81.º, nº 5 –

quando o Presidente convocar extraordinariamente, por urgente necessidade

pública, esta mesma Assembleia (artigo 94.º); passa a funcionar em sessão plena e

as suas deliberações passam a ser tomadas à pluralidade absoluta de votos, achando-

se presentes a maioria do número legal dos membros desta Assembleia (artigo 95.º);

a iniciativa da lei continua a competir ao Governo ou a qualquer membro da

Assembleia Nacional, no entanto, estes não poderão apresentar projectos nem fazer

propostas de alteração relacionados com o aumento da despesa ou a diminuição da

receita do Estado, adicionando-se a este artigo um §único que declara que a

apresentação dos projectos de lei passa a ser condicionada pelo voto favorável de

uma comissão especial (artigo 97.º e §único).

Também a Câmara Corporativa sofreu algumas mudanças. Passou-lhe a competir:

relatar e dar parecer sobre as propostas ou projectos de lei e também sobre as

convenções ou tratados internacionais que forem presentes à Assembleia, no

entanto, a Câmara Corporativa deve agora dar parecer a estes assuntos antes de

começar a discussão na Assembleia Nacional. Esta opinião deve ser dada num

espaço de trinta dias ou, caso for considerado urgente pelo Governo ou pela

Assembleia, conforme se tratar de proposta ou projecto de lei, no prazo que a

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Assembleia fixar. Acrescenta-se a este artigo um §3.º, onde se afirma que, caso a

Câmara Corporativa, pronunciando-se pela rejeição de um projecto de lei, sugerir a

sua substituição, pode o Governo ou qualquer deputado adaptá-lo e este será

discutido em conjunto com o original, independentemente de nova consulta à

Câmara Corporativa (artigo 103.º, §1.º e §3.º).

Deste modo, esta passa também a poder ser consultada pelo Governo para a

elaboração de decretos-leis ou acerca de propostas de lei, no entanto, esta faculdade

foi um pouco desprezada.234

Na discussão das propostas ou projectos de lei, podem, agora, intervir o Presidente

do Conselho e o Ministro ou Sub-Secretário de Estado das Corporações, quando os

haja, o Ministro ou Ministros competentes, os representantes dos mesmos, e o

deputado que tiver tido iniciativa do projecto (§1.º do artigo 104.º).

Outro órgão da Administração Central que sofre alterações nas suas competências

com esta lei é o Governo. Este passa, para além de elaborar decretos-leis, a aprovar,

com autorização legislativa ou em caso de urgência e necessidade pública, as

convenções e tratados internacionais (nº 2 do artigo 108.º). Quando este publicar

decretos-leis, nos casos de urgência ou necessidade pública, durante o período das

sessões legislativas, deverá, então propô-los à ratificação da Assembleia Nacional,

numa das primeiras cinco sessões após a sua publicação. Se a ratificação for

concedida com emendas, transforma-se o decreto em proposta de lei, que será

enviada à Câmara Corporativa, excepto se esta já tiver sido consultada sobre este

assunto (§ 3.º do artigo 108º). Com esta alteração, quebra-se o princípio de que toda

a legislação tinha de ser reportada em última análise à Assembleia Nacional.235

No § 5.º do artigo 108.º definem-se os assuntos que tomarão forma de decreto,

designadamente, a nomeação, transferência, exoneração, reforma, aposentação,

demissão ou reintegração do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, do

Procurador-Geral da República, dos agentes diplomáticos e consulares e dos

governadores-gerais das colónias. Esta lei também acrescenta um §único ao artigo

234 Caetano, Marcello. 1965. Breve História das Constituições Portuguesas, Lisboa: Editorial Verbo,

p. 105

235 Caetano, Marcello. 1972. Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, Coimbra:

Coimbra Editora, Tomo II, p. 608

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112º, que declara que, tratando-se de assuntos relativos aos interesses nacionais, o

Presidente do Conselho pode comparecer na Assembleia Nacional para sobre eles

assuntar.

Em suma, a Lei nº 1885 de 23 de Março de 1935 reforçou o poder legislativo do

Governo em detrimento da Assembleia Nacional, consequentemente, alargando o

poder do primeiro e reduzindo o poder do segundo órgão de Administração Central

referido. E daqui também é expressiva a preponderância que foi tomando o cargo

de Presidente do Conselho em toda a orgânica do Estado.236

O Decreto-lei n.º 25236, publicado a 11 de Abril de 1935, determina que as

nomeações ou contratos previstos no artigo 26.º do Decreto-lei n.º 24833, de 2 de

Janeiro de 1935 para provimento das vagas existentes na Assembleia Nacional,

sejam válidos, ainda que aos nomeados ou contratados faltem algumas das

condições gerais ou especiais de designação nos respectivos cargos.

O Decreto-lei nº 26115, de 23 de Novembro de 1935, no seu artigo 1.º,

estabeleceu algumas regras gerais relativamente aos serviços de cada Ministério.

Segundo Marcello Caetano, “em primeiro lugar, assume um Gabinete do Ministro,

a cujo cargo está o expediente pessoal do titular da pasta, bem como o desempenho

das funções de informação e documentação, e outras de carácter político ou de

confiança”237. Este organismo é composto por um chefe de gabinete e dois

secretários, juntamente com um secretário exclusivo do Sub-secretário de Estado

para o gabinete deste.238

Estas alterações à Constituição traduziram-se por um alargamento significativo

da função legislativa do Governo e por uma extinção, ainda mais acentuada, do

reduzido papel da Assembleia Nacional. Começando, assim, a evolução da

Assembleia Nacional no sentido de se tornar apenas um órgão consultivo.239

236 Caetano, Marcello. 1972. Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, op. cit., p. 556

237 Caetano, Marcello. 1970. Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, Coimbra:

Coimbra Editora, Tomo I, p. 274

238 Caetano, Marcello. 1970. Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, op. cit. p. 274

239 Campinos, Jorge. 1975. A Ditadura Militar 1926-1933, Lisboa: Publicações Dom Quixote, p.

197-198

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215

Nesta discussão parlamentar, também foi proposta que a negociação de tratados

e convenções deixasse de ser uma atribuição do Chefe de Estado e passasse para as

atribuições do Governo, no entanto, a Câmara Corporativa discordou,

argumentando que a representação geral do Estado perante outros Estados era

atribuída ao Presidente, sendo que todas as negociações deviam então ser feitas em

seu nome e não em nome do Governo, e também que a divisão da representação

pelo Governo e pelo Presidente não traria vantagens, mas poderia, sim, trazer

inconvenientes.240

43.5.2. A lei orgânica de 1938

Ao abrigo da Lei nº 1996, de 23 de Abril de 1938, existem mais alterações na

Constituição Política, nomeadamente nas regalias e imunidades dos membros da

Assembleia Nacional, substituindo a alínea c) do artigo 89.º por uma que consagra

que os mesmos não podem ser detidos nem permanecer presos sem consentimento

da Assembleia, excepto em caso de crime a que corresponda pena maior ou

equivalente na escala penal e, caso isto se verifique, quando se tratar de flagrante

delito ou mandato judicial. Também se retira esta alínea do § 3.º do mesmo artigo,

sendo que esta regalia já não subsiste apenas durante o exercício efectivo das

funções legislativas. Como este aditamento resultou da iniciativa de alguns

deputados durante a discussão, a Câmara Corporativa não teve a oportunidade de

se pronunciar sobre ele e nem foi fundamentado pelos proponentes ou justificado

em debate.241

Em relação à Assembleia Nacional, o artigo 95.º volta a sofrer alterações, passando

agora a Assembleia a funcionar também em sessões de estudo, sendo que estas não

serão públicas (§ 2.º).

À Constituição promulgada em 1933 estava subjacente um espírito visivelmente

antiparlamentarista. Assim, a Assembleia Nacional parecia destinada a uma vida

precária, em benefício do papel dominante que o futuro parecia reservar à Câmara

Corporativa. Esta era o órgão de estudo da Assembleia Nacional para o exercício

240 Caetano, Marcello. 1972. Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, op. cit., p. 559

241 Caetano, Marcello. 1972. Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, op. cit. p. 597

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do seu poder legislativo e substituía, então, as antigas comissões parlamentares. No

ponto de vista de Marcello Caetano, “na prática, notou-se a grande deficiência que

para o trabalho da Assembleia importava a falta de comissões próprias desta”. Isto

porque o direito que os deputados tinham de assistirem às reuniões da Câmara

Corporativa nunca foi regularmente usado, começando os deputados a estudar,

individualmente, projectos e pareceres, o que, consequentemente, prejudicava o

rendimento do trabalho parlamentar e a ordem das discussões. Deste modo,

pequenos grupos de deputados começaram a fazer o estudo dos projectos, de forma

particular, à margem da orgânica da Assembleia. Foi por isto que, na lei nº 1996,

em 1938, se teve de preencher esta falha.242

Previu-se, então, as sessões de estudo da Assembleia Nacional, na qual podiam,

igualmente, participar todos os deputados, e que se destinavam ao estudo dos

projectos e de outras questões sujeitas a debate. Na prática, estas sessões

transformaram-se em comissões eventuais indicadas para apreciar cada assunto a

incluir na ordem do dia das sessões públicas.243

43.6. As Secretarias de Estado

As secretarias de estado têm um longo percurso histórico que decorre dos

primórdios do seculo ….. e que….

Atenta a evolução histórica das secretarias de estado, importa agora, no que à

estrutura político-organizativa diz respeito, sublinhar que a Constituição de 1933

quanto à sua organização, encontrava-se dividida em catorze títulos: I- Nação

Portuguesa; II- Cidadãos; III- Família; IV- Corporações Morais e Económicas; V-

Família, Corporações, e Autarquias Como Elementos Políticos; VI- Opinião

Pública; VII- Ordem Administrativa, Política e Cívil; VIII- Ordem Económica

Social; IX-Educação, Ensino e Cultura Nacional; X- Relações do Estado com a

242 Caetano, Marcello. 1972. Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, op. cit, p. 623 e

624

243 Caetano, Marcello. 1972. Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, op. cit, p. 624

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Igreja Católica e Demais Cultos; XI- Domínio Público e Privado; XII- Defesa

Nacional; XIII- Administrações de Interesse Coletivo; XIV - Finanças do Estado.

A soberania residia na Nação, e a constituição estabelecia como órgãos de

soberania, o Chefe do Estado, a Assembleia Nacional, o Governo e os Tribunais -

art.º 71.-.

E, no âmbito do Governo, enquanto órgão de soberania, sob a dependência do

Presidente do Conselho, que o chefia, surgem as Secretarias de Estado na

dependência dos respectivos Ministros - art.º 107-.

Esta estrutura de governo, é resultado das debilidades governativas esperadas no

contexto da Constituição de 1933, pelo que «perante as debilidades assacadas ao

Estado democrático da 1ª República, a Constituição de 1933 procurou instituir um

mecanismo constitucional capaz de furtar o regime á instabilidade governativa. O

Estado forte traduzia-se, antes de mais, num executivo forte, independente do órgão

legislativo. Traduzia-se, em segundo lugar, num legislativo não partidariamente

dividido, limitado à formulação das bases gerais dos regimes jurídicos e à

ratificação dos decretos-leis do governo. Traduzia-se, em terceiro lugar, na

existência de um Chefe de Estado, eleito directamente pela Nação, que só perante

ela respondia, e ao qual competia nomear ou demitir livremente o Presidente do

Conselho de Ministros. Esta estrutura política, corolário lógico do

antiparlamentarismo e o anti-partidarismo do Estado Novo, tinha elementos

suficientes para evoluir ou para um sistema presidencialista ou para um regime de

Primeiro-Ministro ou de Chanceler. A «praxis política» evoluiu no segundo

sentido, tendo Marcelo Caetano considerado existir entre nós um presidencialismo

do primeiro-ministro. De um modo geral, o executivo tornou-se o fulcro do poder

político e, começando por ter o poder de executar as leis, acaba por ser investido

do poder de emanar normas jurídicas primárias, tal como a Assembleia Nacional

(revisão de 1945). Daqui se conclui que o regime, ao evoluir para um

presidencialismo de primeiro-ministro, concentrou no executivo funções

presidenciais e legislativas (além das tarefas próprias do Governo)

possibilitadoras da estruturação de um poder político autoritário».244

244Canotilho, J. J. Gomes. 1998. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra:

Almedina. 3ª Edição, págs. 175 e 176

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218

Por outro lado, a estrutura de governo reflecte um sistema de representação simples

de chanceler, tal como o entende Jorge Miranda, porquanto a “pluralidade de

órgãos governativos fica encoberta pela concentração de poderes no Chefe do

Estado – considerado o mais directo representante da comunidade nacional e de

quem dependem quer a Assembleia Nacional quer o Governo (que ele nomeia e

demite livremente”. 245

E, bem assim tem a estrutura de chanceler porque “porque o Presidente da

República não governa, está acompanhado de um Governo com competência

própria (pela primeira vez no Direito constitucional português) e não pode agir

sem o Presidente do Conselho de Ministros, que referenda quase todos os seus

actos e perante o qual respondem politicamente todos os Ministros”.246

Quanto ao governo, depende do Presidente do Conselho de Ministros, nomeado e

demitido livremente pelo Presidente da República, sendo os Ministros e

Subsecretários de Estado nomeados pelo Presidente da República, sob proposta do

Presidente do Conselho,247 que referenda as suas nomeações bem como as

exonerações dos Ministros cessantes, enquanto as funções dos Subsecretários de

Estado cessam com a exoneração dos respectivos Ministros - §1.º e 2..

O Presidente do Conselho coordena e dirige a actividade de todos os Ministérios,

que perante ele respondem politicamente pelos seus actos - art.º 108.- respondendo

perante o Presidente da República pela política geral do Governo.

245Cfr. Miranda, Jorge. 2003. Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora. Tomo

I, 7ª edição págs. 315 e 316.

246 Miranda, Jorge. 2003. Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora. Tomo I,

7ª edição págs. 315 e 316

247 Ficava patente a questão da imagem do poder e da diferença entre sede formal e real de exercício,

uma vez que a figura do Chefe de Estado se subalternizava à do Presidente do Conselho, a contrário

do que estava disposto na Constituição. Por conseguinte, era o Presidente da República que

“respondia” perante o Presidente do Conselho. Havia, então, uma espécie “presidencialismo

bicéfalo”, pois na ausência ou impedimento da presença do Presidente da República no Conselho de

Ministros, quem o substituía era o Presidente do Conselho. Salazar enquanto Presidente do

Conselho, conseguiu mobilizar para si, a chefia efectiva do Governo, que transformou o papel do

Presidente da República numa mera representatividade.

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No que se refere aos secretários de estado no decurso do Estado Novo, a

Constituição de 1933, no seu art.º 107 (versão originária), não falava na figura dos

Secretários de Estado, apenas considerava a existência de Subsecretários de Estado.

Motivo pelo qual, era recente a inclusão da categoria de Secretários de Estado na

moderna orgânica governamental portuguesa.248Com efeito, só com o Decreto-Lei

n.º 41 824 de 13 de agosto de 1958, são criados na estrutura organizativa, os

secretários de estado, como decorre do art.º1 “os serviços compreendidos num

Ministério podem ser agrupados em Secretarias de Estado, geridas por Secretários

de Estado, a cuja nomeação são aplicáveis os preceitos que regulam a dos

Subsecretários”.

E neste contexto, os «Secretários de Estado têm competência para praticar todos

os actos de administração que entram nas atribuições legais dos Ministros, aos

quais são equiparados em categoria e prerrogativas, e podem ser convocados a

assistir às reuniões do Conselho de Ministros em que devam ser tratados assuntos

que dependam das respectivas Secretarias de Estado» - art.º 2.

Os secretários de Estado “diferem dos ministros por não possuírem competência

política, distinguem-se dos subsecretários por terem competência administrativa

ministerial própria. Pode assim haver subsecretários de Estado dependentes de

secretários de Estado”249. Sendo certo que, nos termos do §2.º do artigo 107 da

Constituição de 1933, alterado pela Lei n.º 2100, de 29 de agosto de 1959 (Lei de

revisão da Constituição), as funções dos Secretários de Estado e dos Subsecretários

de Estado cessavam com a exoneração do respectivo Ministro.

Em face destas alterações, os Secretários de Estado assumem funções de

verdadeiros ministros, se bem que apenas com competência administrativa e sem

fazerem parte do Conselho de Ministros.

E com o Decreto-Lei n.º 41 825, de 13 de agosto de 1958, criava o Governo várias

secretarias de estado, a saber, a Secretaria de Estado da Saúde, integrada no

Ministério da Saúde e Assistência - art.º 1 - as secretarias Secretaria de Estado da

248 Caetano, Marcello. 1990. Manual de Direito Administrativo. Coimbra: Almedina. Vol. I. 10ª

edição, 4ª reimpressão

249 Caetano, Marcello. 1961. Curso de Ciência Política e Direito Constitucional, Coimbra: Coimbra

Editora. 3ª Edição, Vol. II. pág. 203.

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Agricultura, Secretaria de Estado do Comércio e a Secretaria de Estado da Indústria

no Ministério da Economia - art.º 2.- Os Secretários de Estado que não tivessem

assento permanente em algum dos conselhos especiais poderia ser chamados a neles

participar sempre que os assuntos a tratar interessassem a serviços deles

dependentes - art.º 4 -

Além das três Secretarias de Estado já referidas anteriormente, foi criada em 1961

a Secretaria de Estado da Aeronáutica, existindo desde 1952 o cargo de

Subsecretário de Estado da Aeronáutica.

Já no período compreendido entre 1968 e 1974, na designada “Primavera

Marcelista” foram criadas as Secretarias de Estado, da Informação e Turismo, do

Planeamento, Tesouro e Orçamento, do Exército, das Obras Públicas, Urbanismo e

Habitação, da Comunicação e Transportes, da Administração Ultramarina e do

Fomento Ultramarino, da Instrução e Cultura, Juventude e Desportos, Trabalho e

Previdência e Saúde e Assistência.

43.7. A divisão administrativa. O código administrativo de 1936-40

43.8. A administração local

O período que vai de 1933 a 1974, é marcado por um regime político que entre

outras circunstâncias procura delimitar uma nova relação entre o Estado e a

Sociedade Civil, propondo um quadro ideológico, autoritário, anti-liberal e

interventor do ponto de vista económico.

Também na dimensão local da administração o Estado Novo define uma forma

diferente de intervenção. A sua prioridade é a da centralização da administração

local, sendo que nos termos da Constituição o enquadramento administrativo impõe

a existência de províncias, que passaram a ser onze (Minho, Trás-os-Montes e Alto

Douro, Douro Litoral, Beira Litoral, Beira Alta, Beira Baixa, Ribatejo,

Estremadura, Alto Alentejo, Baixo Alentejo, Algarve).

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No ano de 1936, inicia-se sob o impulso do Prof. Marcello Caetano a elaboração

de um novo Código Administrativo, cujos trabalhos estariam concluídos em 1940,

e que culminariam com a pulicação desse código. Era, entre outras perspectivas,

uma lei da administração autárquica que regulava a organização administrativa, a

divisão do território, o funcionamento das autarquias, as finanças locais e o

contencioso administrativo.

Este código administrativo, acabaria por ser o mais importante no que respeitou à

administração local, dividindo o território em quatro áreas administrativas,

Províncias, Distritos Concelhos e Freguesias, e iniciou um novo período de

centralização do poder local, sobretudo com a nomeação do Presidente de Câmara

e de Freguesia pelo governo, ficando também este com a tutela das finanças locais.

43.9. Autarquias Locais

As autarquias locais eram na concepção do novo código administrativo pessoas

colectivas de “direito público constituído pelo agregado de cidadãos residentes em

certa circunscrição do território nacional cujos interesses comuns são

prosseguidos por órgãos próprios dotados de autonomia dentro dos limites da lei”,

dependendo a sua importância da extensão do território, do número populacional e

do nível social dos seus habitantes.

O concelho era a circunscrição territorial pertencente ao município e era formado

por freguesias. O seu corpo administrativo era a Câmara Municipal e o seu

magistrado administrativo era o Presidente de Câmara. Ficava dividido em duas

classes, o Concelho Urbano e o Concelho Rural sendo cada classe agrupada em três

ordens.

No Concelho Urbano predominavam os interesses do aglomerado populacional em

que tinha sede enquanto no Concelho Rural os interesses dominantes decorriam dos

intereses das populações rurais. Para a realização de interesses comuns e afectos a

mais de um Concelho, admitia-se a associação das respectivas Câmaras Municipais,

a federação de municípios, a qual podia ser obrigatória ou facultativa. Os órgãos do

governo municipal eram o Conselho Municipal, a Câmara Municipal e o Presidente

de Câmara. O Conselho Municipal era uma assembleia que orientava e fiscalizava

a vida administrativa do município. Reunia ordinariamente uma vez por ano,

integrando os presidentes de Junta de Freguesia, os Provedores das Misericórdias,

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os representantes dos Grémios, Sindicatos Nacionais e Casas do Povo. Desta

assembleia partiam as grandes directrizes da administração municipal e a ela ficava

confiada a função moderadora, quer apreciando e votando as deliberações

camarárias que necessitavam da sua aprovação, quer revogando os mandatos aos

vereadores ou requerendo sindicância aos actos do presidente de câmara.

A Câmara Municipal, era o órgão deliberativo normal, ou seja, exercia o maior

número das funções da administração, tomava as iniciativas, ponderava as medidas,

geria o património e a fazenda do concelho. Os vereadores da câmara municipal

eram eleitos pela assembleia, que nos concelhos rurais de primeira ordem eram no

máximo seis. O Presidente de Câmara era o superior dirigente e autoridade

executiva. Era ele quem dirigia e coordenava a câmara municipal e nos concelhos

rurais era também o executor das deliberações camarárias, sendo a sua nomeação

da iniciativa do poder central. O papel do presidente de câmara “era ser o fiel de

balança entre os interesses particulares, a voz do bem comum, o zelador do

interesse geral no concelho, e também o animador das actividades, o disciplinador

das energias e tinha de emanar os planos a realizar e a ele pertencia a tarefa de os

executar.”

A freguesia era a circunscrição territorial mais pequena. Os seus órgãos de

administração eram as famílias sendo estas representadas pelos seus chefes e a junta

de freguesia. O regedor de freguesia, era o representante da autoridade municipal e

dependia directamente do presidente de câmara. Como sucedia com os concelhos,

também as freguesias se podiam unir, com carácter obrigatório ou facultativo.

O Distrito era a divisão administrativa constituída por vários concelhos. Os seus

órgãos de administração eram o Conselho de Distrito e a Junta Distrital. O Conselho

de Distrito era constituído pelos representantes da circunscrição distrital. Era da sua

competência eleger de quatro em quatro anos os membros da junta distrital. A Junta

Distrital era integrada pelo presidente, vice-presidente e três vogais. Em alguns

casos, a deliberação da Junta Distrital precisava da aprovação do Governo, mesmo

após a aprovação do Conselho de Distrito. Os Distritos tinham atribuições de

fomento, cultura e de assistência. Apesar de na lei os distritos terem autonomia

financeira e administrativa, o Governo fiscalizava directa ou indirectamente os seus

corpos administrativos. Os distritos também podiam ser classificados em primeira,

segunda e terceira ordem. Em 1940, os distritos de primeira ordem eram Lisboa e

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Porto, os de segunda ordem eram Beja, Braga, Castelo Branco, Coimbra, Évora,

Faro, Santarém, Vila Real e Viseu, os de terceira ordem eram Aveiro, Bragança,

Guarda, Leiria, Portalegre, Setúbal e Viana do Castelo.

A Província era a associação de concelhos com afinidades geográficas,

económicas e socias. Os órgãos de administração da província eram o Conselho

Provincial e Junta de Província. A função do Conselho Provincial era a de eleger

de três em três anos os vogais da Junta de Província e respectivos substitutos,

discutir e votar o relatório de gerência e o plano anual da Junta de Província, discutir

e votar, sobre a proposta do presidente, as bases do orçamento ordinário da

província e pronunciar-se sobre as deliberações da Junta de Província, que

dependiam da sua aprovação para se tornar executórias. A Junta de Província tinha

atribuições de fomento e coordenação económica, de cultura e de assistência. Em

1959, as províncias em termos administrativos, foram extintas.

Em 1964 Portugal estava dividido em 274 concelhos, 3823 freguesias e 13

distritos. O concelho de Lisboa dividia-se em quatro bairros e o concelho do Porto

em dois. Quanto aos Açores e Madeira e em função da sua localização geográfica,

os arquipélagos eram alvo de excepções, embora, administrativamente, sempre

tenham feito parte do continente.

O território das ilhas dividia-se em concelhos, que se dividiam em freguesias,

agrupando-se em distritos autónomos. As freguesias no arquipélago da Madeira não

eram autarquias locais e a representação das juntas de freguesia, nos conselhos

municipais, fazia-se através de quatro vogais nomeados pelo governador do distrito.

O órgão da administração distrital autónoma era a junta geral, que exercia as suas

atribuições e competências directamente ou por intermédio de uma comissão

executiva composta do presidente da junta geral do distrito e dois dos seus

procuradores.

As atribuições das juntas gerais podiam ser de administração dos bens distritais, de

fomento agrário, florestal e pecuário, de coordenação económica, de obras públicas,

fiscalização industrial e de viação, de saúde pública, de assistência, de educação e

cultura e de polícia. A junta geral do distrito era integrada por sete procuradores,

dos quais três natos e quatro eleitos eleitos de quatro em quatro anos. O presidente

era nomeado, por quatro anos, pelo Governador de distrito, de entre os procuradores

eleitos. O governador civil tinha a designação de governador do distrito autónomo.

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43.10. O Distrito

43.11. A administração colonial.

44. A contemporaneidade da Administração Pública

44.1. A Revolução de 25 de Abril de 1974

44.2. A reforma da administração central

44.3. A reforma da administração local

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Bibliografia Aconselhada

Caetano, Marcello. Estudos de História da Administração Pública Portuguesa,

Coimbra: Coimbra Editora, 1994, pp. 324-337; 360-369; 371-448

Maltez, José Adelino. Princípios Gerais de Direito: Conceitos operacionais. Tomo

II. Lisboa: ISCSP, 1992, pp. 78-136

Maltez, José Adelino. Princípios Gerais de Direito: Direito Positivo. Tomo III.

Lisboa: ISCSP, 1992, pp. 299--316

Manique, António Pedro. Mouzinho da Silveira. Liberalismo e Administração

Pública. Lisboa: Livros Horizonte, 1989, pp.

Pereira, Manuel. Organização política e administrativa de Portugal - desde 1820.

Porto:Livraria Fernando Machado & Cª Lda., pp.1-144

Ramos, Rui (coord.). História de Portugal. 7.ª Edição. Lisboa: Esfera dos Livros,

2009, pp. 458-576