contributos para uma análise cognitiva da política de avaliação de professores

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Análise cognitiva

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  • s s i f o / r e v i s t a d e c i n c i a s d a e d u c a o n . 4 o u t / d e z 0 7 i s s n 1 6 4 6 4 9 9 0

    Contributos para uma anlise cognitivada poltica de avaliao de professores

    Estela [email protected]

    Doutoranda em Cincias da Educao, rea de especializao

    em Administrao Educacional (FPCEUL)

    Resumo:A definio de novas regras para a avaliao dos professores do ensino no superior acontece, em Portugal, com a publicao do DecretoLei n. 15/2007, de 19 de Janeiro. A avaliao assenta agora em mecanismos competitivos, de prestao de contas, influncia qui das instncias de regulao supranacional na elaborao das polticas nacionais. Desta cultura do desempenho irrompem instrumentos que complexificam a natureza e o formato do conhecimento recolhido e apelam recomposio das relaes entre o Estado e as grandes organizaes internacionais. Perspectivase o conhecimento com uma centralidade que lhe advm do seu crescimento e difuso escala mundial.

    A avaliao, na forma de regulao instrumental, intervm na construo da agenda e da deciso poltica, podendo ser vista como processo poltico. O conhecimento, enquanto instrumento de regulao, implica que se apure o tipo de conhecimento mobilizado atravs dos instrumentos de regulao e a forma como se processa a sua recepo.

    Consequentemente, importa fazer a genealogia desta nova poltica e analisar as mudanas dos modos de regulao a partir do seu estudo, vendo os instrumentos como produtos das decises polticas e os referenciais como produtores dessas decises.

    Palavraschave:Avaliao de professores, Conhecimento, Regulao, Instrumentos da aco pblica.

    Costa, Estela (2007). Contributos para uma anlise cognitiva da poltica de avaliao de profes

    sores. Ssifo. Revista de Cincias da Educao, 04, pp. 4958.

    Consultado em [ms, ano] em http://sisifo.fpce.ul.

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  • A publicao, pelo XVI Governo Constitucional Portugus da Lei n10/2004, de 22 de Maro, institui o Sistema Integrado de Avaliao do Desempenho da Administrao Pblica (SIADAP) o recmcriado modelo de avaliao de desempenho dos funcionrios pblicos antecipando o novo modelo das carreiras especiais, onde se incluem os professores. Posteriormente, o XVII Governo Constitucional Portugus pe em curso a Reforma da Administrao Pblica, advogando uma cultura de gesto por objectivos com avaliao do desempenho dos trabalhadores e dos resultados obtidos, na linha alis do seu Programa para a Educao, onde defende uma avaliao dos professores em funo dos resultados obtidos e das boas prticas reconhecidas pelos seus pares (p. 44). A definio de novas regras para a avaliao, assente em mecanismos que premeiam o mrito e contemplam a competitividade, permitindo diferenciar os professores pelos seus nveis de desempenho, consubstanciase com a entrada em vigor do DecretoLei n. 15/20071, de 19 de Janeiro.

    Caracterizando um movimento de desregulamentao escala mundial, a normalizao pela qualidade apoiase em instrumentos fortes que, sob a aparncia de neutralidade poltica, consagram a ingerncia de regras privadas no domnio das polticas pblicas da educao. Assistimos, assim, introduo de novas formas de regulao e a um processo de contaminao cujos efeitos se fazem sentir na nova linguagem da prestao de contas presente nos discursos polticos e nos normativos (e.g. aco orientada para os resultados/publici

    tao dos resultados, diferenciao pelo mrito/quotas de mrito; paradigma da excelncia) b. Dimanando das implicaes que as instncias de regulao supranacional, no quadro da globalizao, acabam por ter na elaborao das polticas nacionais, este novo Estado avaliador (Neave, 1988) que se alinha por novos padres de qualidade visveis na extenso dos procedimentos de normalizao ISO s empresas reflectese nas polticas educativas em fase de execuo em Portugal, indiciando alguma influncia da dicotomia Estado mercado (Barroso, 2003a, 2003b).

    neste contexto que pretendemos analisar o processo de construo da nova poltica de avaliao dos professores portugueses do ensino no superior. A avaliao aparece como processo de regulao e o conceito de regulao utilizado como um dos eixos da anlise. Tal permitenos apurar as formas de regulao que ocorrero entre o Estado e os actores e o comportamento dos dispositivos utilizados para materializar tal poltica. Atendemos, por isso, no s genealogia das medidas e dos processos de avaliao dos professores como ainda influncia que o conhecimento tem no seu desenvolvimento.

    DAS RELAES ENTRE O CONhECIMENTO E A POLTICA EDUCATIvA

    O interesse pela forma como a agenda poltica e a investigao se cruzam vai no sentido de se compre

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  • ender se a transformao dos referentes dos decisores polticos consequncia do seu contacto com o conhecimento. Nesta medida, importa estudar como ocorreu o processo de deciso e que tipo de dinmica se cria entre o conhecimento e a poltica, que dilogos estabelecem o conhecimento e a poltica, qual a relao que ambos constroem, se h lugar importao de conhecimento para a poltica e se o reverso tambm sucede. Interrogaes que implicam que se proceda a uma anlise da relao entre o conhecimento e a deciso poltica.

    Esta entrada interessanos especialmente, dado estarmos perante uma arquitectura poltica, escala mundial, em que a performatividade (Ball, 2004, p. 1116), com um papel central nas culturas e prticas do sector pblico, facilita o papel de monitoramento do Estado, que governa distncia governando sem governo. Sem o parecer, a performatividade permite ao Estado interferir nas culturas e prticas dos trabalhadores, mercantilizandoo, e o trabalho com conhecimento (knowledgework) das instituies educativas transformase em resultados, nveis de desempenho, formas de qualidade (idem, ibidem). Esta cultura do desempenho, consonante com o poder econmico, associase ao incremento internacional das comparaes de resultados, das construes de padres e dos indicadores de qualidade. So os novos instrumentos a complexificar a natureza e o formato do conhecimento recolhido, apelando a uma recomposio das relaes entre o Estado e as grandes organizaes internacionais. Perspectivase o conhecimento com uma centralidade que lhe advm do aumento substancial da quantidade produzida e da sua grande propagao escala mundial.

    Conhecimento cuja disseminao se d de forma diversa e surge simultaneamente como objecto das polticas e veculo das mesmas, o que impe aos polticos uma nova maneira de fazer poltica e uma maior capacidade para se relacionarem com a esfera do conhecimento. Falamos da importao de conhecimentos para legitimar o discurso construdo pelo Estado e pelas suas polticas, mas tambm do condicionamento da produo desse conhecimento por influncia da prpria esfera poltica (Mangez, 2001; Whitty, 2002). O quadro analtico da relao que se estabelece entre o conhecimento, a deciso poltica e a aco pblica complexificase,

    porquanto a legitimao vai para alm do momento da deciso poltica, interferindo no decurso do processo de reconstruo e apropriao da deciso pelos vrios actores envolvidos (Lascoumes & Le Gals, 2004). Tal implica a existncia, ao longo do trajecto, de vrias influncias que geram efeitos mltiplos, amide divergentes dos esperados (Derouet, 2000). um olhar sobre a avaliao dos professores, aquele que aqui propomos, que parte do conceito de regulao, numa postura analtica que visa descobrir e analisar em que medida que h mudanas dos modos de regulao a partir de uma poltica (Mangez, 2001).

    AvALIAO DE PROFESSORES: ENTRE AS CONvENES DE UM ESTADO EDUCADOR/AvALIADOR

    No dealbar do sc. XXI, os trabalhos de carcter estatstico mobilizam ao nvel internacional peritos e instituies em redes cruzadas, unindose na produo de novos formatos de recolha da informao. Em ruptura com as convenes do Estadoeducador, estes instrumentos de avaliao concorrem para uma recomposio da articulao entre o Estado e os territrios e acompanham os processos de desconcentrao e de descentralizao da aco pblica. Estas configuraes mltiplas elaboramse sobre diferentes formas de compromisso e geram tenses na definio dos objectivos e na especificao dos procedimentos ligados avaliao.

    De facto, com o fenmeno da mundializao, a produo dos quadros globais de interpretao do mundo tende a escapar ao Estado nacional, s fronteiras e imposies dos governos: a especificidade histrica do Estado educador esbatese (Dutercq & van Zanten, 2001, p. 3), O Estado parece perder o seu monoplio, ele menos o centro dos processos polticos, de regulao dos conflitos (Lascoumes & Le Gals, 2004, p. 23). O papel centralizador do Estado questionado pela interveno de outros actores no campo da educao, e o seu domnio acometido por novas formas de governao e de regulao. Podemos mesmo falar de regulao transnacional, constituindo a regulao nacional uma globalizao de baixa intensidade (Barroso, 2003a, 2003b; Teodoro, 2001). Barroso

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  • (2003a, 2003b, 2005) fala em hibridismo dos modos de regulao institucional3 e na crise do Estadoeducador, preterido pela dicotomia Estadomercado, visvel na proliferao de dispositivos de avaliao e na transferncia de um controlo baseado nas normas para um controlo assente nos resultados.

    Efectivamente, assistese, hoje, avaliao da aco pblica enquanto elemento de convergncia dos sistemas europeus, numa retrica comum de modernizao dos sistemas. No mbito da educao, Estrela e Nvoa (1993, p. 9) avanam com dois tipos de justificao para o ressurgimento das preocupaes com a avaliao: (a) a situao de crise que afecta a quase totalidade dos sistemas educativos e, consequentemente, a questo da eficcia e rentabilizao dos recursos e (b) a vaga reformadora dos anos 80, que concedeu avaliao um lugar charneira na regulao interna e no controlo externo dos processos de mudana. E os motivos avanados para justificar os novos instrumentos so de vria ordem: eficcia, transparncia, flexibilidade, empregabilidade, competitividade, mobilidade, boas prticas. Correspondem a mudanas profundas das polticas nacionais, a que no so alheios os fenmenos mimticos e/ou de cooperao transversais aos Estados que, ultrapassando as fronteiras nacionais, contribuem para fazer circular os instrumentos e produzir referenciais comuns.

    Pese assim a descoberto um Estadoavaliador4, que se expressa pela promoo de um ethos competitivo manifestado nomeadamente na avaliao externa e no predomnio de uma racionalidade instrumental que sobrevaloriza o quantificvel e o mensurvel (Afonso, 2001). Dutercq e van Zanten (2001, p. 3) confirmam esta metamorfose do papel do Estado, refutando, porm, a designao de Estado avaliador em detrimento da de Estadonegociador, integrador de diferentes dimenses, doseadas de acordo com os pases e os campos de aco. Ocorre uma natural redefinio de papis, de novos actores chamados a intervir no processo de deciso poltica, para alm de novas dinmicas de aprendizagem poltica. Esta reestruturao e as transformaes so reveladas pelos instrumentos (Lascoumes & Le Gals, 2004, p. 368), atravs dos quais o Estado, compondo as suas polticas com escalas diferentes de poder, orienta as problemticas e, de facto, governa distncia.

    A POLTICA DE AvALIAO DE PROFESSORES LUZ DA ANLISE COGNITIvA DAS POLTICAS PBLICAS

    Centramonos, portanto, no processo de deciso poltica, numa lgica de compreenso do impacto do conhecimento na definio da agenda poltica, o que implica uma anlise dos referenciais e do tipo de conhecimento que os legitima. A abordagem pelo referencial remetenos para a dimenso da produo do sentido, quer na fase de deciso, quer na fase de implementao de uma poltica, o que nos afasta desde logo de um tipo de abordagem sequencial, esquema cannico da anlise das polticas pblicas. Uma tal abordagem das polticas pblicas, transpe o texto, na assuno de que as polticas se movem e agem nos diversos contextos, fruto de negociaes entre diferentes actores. O processo de deciso e concretizao de uma poltica poltica em aco. o carcter multidimensional da poltica (Taylor et al., 1997, p. 15), na ptica de se saber quem intervm na deciso poltica, como se organiza, com que estatuto e para fazer o qu.

    O nosso ponto de partida pois o papel do conhecimento na deciso poltica e no o conhecimento enquanto construtor da poltica. Assumindo assim o conhecimento como fundamental na regulao do projecto social da educao (Mangez, 2001; Whitty, 2002), pretendemos articular o conhecimento e a deciso poltica, centrandonos na anlise das relaes entre ambos. Entramos pela construo de uma poltica concreta, a da avaliao dos professores, envolvendo tambm os actores, pelo que a relao com o conhecimento pode ser lida na relao conjunta com os dois nveis Deciso Poltica e Aco Pblica. Deste ponto de vista, a produo de uma poltica envolve a construo de uma representao, uma imagem da realidade sobre a qual queremos intervir: o referencial. Como refere Muller (2004, p. 62): em referncia a esta imagem cognitiva que os actores organizam a sua percepo do problema, confrontam as suas solues e definem as suas propostas de aco: chamarse a esta viso do mundo o referencial de uma poltica. Cada poltica assim portadora de uma ideia do problema, de uma representao do grupo social ou do sector em causa, contribuindo para a sua existncia, e de uma teoria da mudana social (Muller, 2005, pp. 152153).

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  • O termo referencial apresentase como um espao de sentidos que d a ver o mundo e permite pensar a mudana em diferentes dimenses (Muller, 1985, 2004, 2005). Perspectivase o carcter cognitivo e normativo da aco pblica, num processo complexo de dar sentido ao real, de construo de quadros de interpretao, ou seja, de estabelecer os referenciais (Muller, 2003). Recolocamse questes fulcrais como a busca de sentido das polticas (que geralmente no traduzem os referenciais tomados pelos actores como verdadeiros) e a relao difcil (que se move entre a imposio, a aceitao ou a rejeio) que os actores estabelecem com os referenciais. Mas, para l da deciso poltica, o conhecimento ainda perspectivado como instrumento de regulao atravs de instrumentos concretos, nomeadamente as medidas/dispositivos decorrentes do novo modelo da avaliao do desempenho dos professores do ensino no superior.

    Em sntese, a regulao poltica passa pela institucionalizao das polticas pblicas e tem origem na constante confrontao entre fontes difusas e multiformes de poder ou governo com os centros, eles prprios conjuntos de contra poderes, resistncias, revoltas e contestaes ordem estabelecida (Pollet, 1987, p. 38). De onde, o interesse de atender multiplicidade das instncias de regulao e de produo da governamentalidade, assim como aos fruns e s prticas que envolvem os momentos de debate.

    O ESTUDO DOS INSTRUMENTOS E A POLTICA DE AvALIAO DE PROFESSORES

    Desde os finais do sculo XX que a avaliao se converteu, escala internacional, numa obrigao institucional na maior parte dos pases desenvolvidos. Os pases anglosaxnicos foram os primeiros a aplicar instrumentos de medida da eficcia e da qualidade, tendo sido depressa acompanhados pelas grandes organizaes internacionais. Naturalmente, a avaliao enquanto forma de regulao instrumental, intervm na construo da agenda e da deciso poltica, na fixao dos objectivos, sendo perspectivada enquanto processo poltico, uma arte de governar () que no se pode reduzir aos instrumentos ou

    tcnicas, a uma viso funcionalista ou epistmica, a uma espcie de caixa preta inacessvel aos profanos (Normand, 2005, s.p.).

    Conforme enunciado anteriormente, o Estado hoje interpelado na sua funo tradicional, perante a emergncia da accountability anglosaxnica. A cultura do desempenho surge aliada a uma concepo da educao cada vez mais como extenso do clculo econmico, vindoselhe associar o desenvolvimento das comparaes internacionais de resultados, a construo de padres e indicadores de qualidade no ensino, a emergncia de estatsticas e de quadros de controlo a nvel local e regional. Ora, as abordagens clssicas em cincia poltica vem os instrumentos como escolhas puramente tcnicas, sendo estudados pela sua eficcia, numa perspectiva funcionalista, que tende geralmente a reduzir a anlise da gnese e do desenvolvimento das polticas pblicas a uma simples histria das intenes, das vontades e das aces racionais dos responsveis (Pollet, 1987, p. 28). Tal viso esquece questes primordiais como sejam as razes que levam escolha de um instrumento em detrimento do outro, e principalmente omitem os efeitos induzidos pela escolha dos instrumentos. , portanto, em nosso entender, uma anlise redutora, razo pela qual procuraremos superar as vises positivistas dos instrumentos e o carcter prescritivo que os estudos racionais encerram. Da a nossa incurso pela abordagem da instrumentao da aco pblica (Lascoumes & Le Gals, 2004, p. 12), que enfatiza a importncia da escolha e do uso dos instrumentos na materializao da aco, bem como os efeitos polticos da decorrentes. Na verdade, tal abordagem no s nos permite constatar que as escolhas dos instrumentos so significativas das escolhas das polticas pblicas e das caractersticas destas ltimas, como nos alerta para os efeitos prprios induzidos pelos instrumentos de aco pblica (IAP).

    O estudo dos instrumentos e das suas transformaes permite iluminar as transformaes que se operam entre governantes e governados e os fenmenos de recomposio do Estado, em especial atravs de mecanismos de regulao e de recentralizao. Assim, Lascoumes e Le Gals (2004, pp. 26 e 29) baseiamse em dois princpios: a) Que a instrumentao da aco pblica reveladora de

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  • uma teorizao da relao governante/governado e b). Que os instrumentos no so dispositivos neutros, produzem efeitos especficos independentes dos objectivos prosseguidos e que estruturam, de acordo com a sua lgica especfica, a aco pblica. Ademais, Lascoumes e Le Gals (2004, pp. 2829) tornam claro que esta anlise dos IAP no constitui a introduo de um novo paradigma no campo da cincia poltica, nem to pouco tem um alcance normativo. Tratase, para os autores, de um complemento s abordagens clssicas que so a anlise estratgica, o neocorporativismo, e a anlise cognitiva, em especial no que diz respeito ao estudo da mudana nas polticas pblicas.

    Falamos dos IAP como tecnologia de governo, enquanto dispositivos axiolgicos que difundem uma determinada teorizao poltica e produzem efeitos especficos, autnomos em relao aos objectivos traados inicialmente. A funo puramente administrativa dos instrumentos acompanhada pela emerso das funes simblicas de legitimao da autoridade e de transmisso de valores, o que envolve opes polticas, sendo revelador das mais profundas transformaes da aco pblica. h como que uma despolitizao do Estado atravs dos dispositivos, os quais se desligam dos objectivos delineados a priori, tomando o lugar de acontecimentos que se legitimam a si mesmos. Esta perspectiva encerra um alcance heurstico de flego que permite anatomizar a presena do conhecimento nas decises e na aco pblica. Alm de que a abordagem pela instrumentao da aco pblica possibilita a concretizao de uma anlise profcua das polticas pblicas, articulandose com o conceito de referencial revelado pela instrumentao (Lascoumes & Le Gals, 2004).

    Neste sentido, a compreenso das polticas como construo da ordem social atravs da problematizao da questo da recomposio do Estado e do controlo da aco alcanada pela articulao de dois modelos de anlise: um, que olha os instrumentos como produtos das decises polticas (Lascoumes & Le Gals, 2004); o outro, que encara os referenciais como produtores dessas mesmas decises (Muller, 2003). Procurase, desta forma, sentir o modo como a nova poltica de avaliao dos professores recebida pelos actores directamente envolvidos e por ela afectados. O conhecimento, aqui

    entendido como instrumento de regulao, implica que se apure o tipo de conhecimento mobilizado e difundido atravs dos instrumentos de regulao, bem como a forma como se processa a sua recepo.

    PARA UMA GENEALOGIA DA POLTICA DE AvALIAO DOS PROFESSORES

    O nosso quadro metodolgico assume um carcter hbrido, de abertura aos vrios modelos de anlise das polticas pblicas, onde se incluem as contribuies neopluralistas, recorrendo aos conceitos de redes de interesses e redes de polticas pblicas (Pollet, 1987). uma linha de investigao que faz convergir paradigmas estatais e pluralistas e que se desenvolveu a partir da noo de rede, possibilitando a anlise do carcter ideolgico dos conflitos, dos compromissos e das negociaes entre grupos de interesses, os quais se constituem como actores autnomos do campo poltico. Falarse em racionalidade e consenso na produo poltica uma falcia (Gale, 2003), as polticas pblicas so muito mais do que apenas processos de deciso nos quais participam um certo nmero de actores. Constituem o lugar onde uma sociedade constri a sua relao com o mundo (Muller, 2004). Tratase de determinar o quem da produo poltica e os aspectos da sua interaco, onde se incluem as estratgias de licenciar alguns (grupos de) actores em detrimento de outros.

    Fazer a genealogia da nova poltica de avaliao dos professores dos ensinos bsico e secundrio implica mapear o processo e reconstruir a histria da deciso poltica, questionando: atravs de que processos sociais, polticos ou administrativos so tomadas as decises que constituem as polticas? Dito de outra forma, como nascem e se transformam as polticas pblicas? (Muller, 2004, pp. 8788). O estudo dos instrumentos de aco pblica supe a adopo de uma postura diacrnica e a historicizao do instrumento: Cada instrumento tem uma histria, e as suas propriedades so indissociveis das finalidades que lhe so atribudas (Lascoumes & Le Gals, 2004, p. 15). Esta anlise dever, outrossim, ser atravessada por um sentido de cronologia das agendas e dos acontecimentos, de forma a compreender as estratgias empregues para o avano de umas agendas sobre as outras. E o

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  • que nos interessa no o historial da medida legislativa, mas os aspectos que contriburam para que ela acontecesse, ou seja, saber como se construiu e conhecer qual o processo de elaborao que lhe esteve subjacente.

    Em suma, propomonos determinar a definio da nova poltica de avaliao dos professores do ponto de vista sincrnico, das redes, e da reconstituio diacrnica dos processos, elegendo os seguintes objectivos operativos: (1) Identificar a rede

    de actores envolvida na elaborao e no desenvolvimento da poltica de avaliao dos professores dos ensinos bsico e secundrio; (2) Descrever e analisar como que estes actores concorreram para a elaborao desta poltica; (3) Identificar o referencial da poltica de avaliao de professores, reconhecendo quais os conhecimentos que participaram na sua elaborao; (4) Analisar o modo como se processa a recepo dos conhecimentos/ instrumentos de regulao da poltica de avaliao dos professores.

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  • Notas

    1. Altera o Estatuto da Carreira dos Educadores de Infncia e dos Professores dos Ensinos Bsico e Secundrio (E.C.D.).

    2. Este novo referencial explicitado no Programa do XVII Governo Constitucional Portugus, situandose na ambio estabelecida pelo Governo de Enraizar em todas as dimenses do sistema de educao e formao a cultura e a prtica da avaliao e da prestao de contas atravs de um modelo de avaliao dos educadores e professores que se reja por critrios de resultados, eficincia e equidade, das escolas e dos servios tcnicos que as apoiam (p. 43).

    3. Regulao institucional aqui entendida como o conjunto de aces decididas e executadas por uma instncia (governo, hierarquia de uma organizao) para orientar as aces e as interaces dos actores sobre os quais detm uma certa autoridade (Maroy & Dupriez, 2000, in Barroso, 2003a, p. 64).

    4. Cf. Joo Barroso (2003a, 2003b, 2005) e Afonso (1999, 2001). Ball (2004, p. 1105) fala em acordo poltico [global] do PsEstado da Providncia do sculo XXI.

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    Legislao referenciada

    Lei n10/2004, de 22 de Maro, cria o Sistema Integrado de Avaliao do Desempenho da Administrao Pblica (SIADAP).

    DecretoLei n. 15/2007, de 19 de Janeiro altera o Estatuto da Carreira dos Educadores de Infncia e dos Professores dos Ensinos Bsico e Secundrio (E.C.D.), aprovado pelo DecretoLei n 139A/90, de 28 de Abril, alterado pelos DecretosLei ns 105/97, de 29 de Abril, 1/98, de 2 de Janeiro, 35/2003, de 17 de Fevereiro, 121/2005, de 26 de Julho, 229/2005, de 29 de Dezembro, e 224/2006, de 13 de Novembro, bem como o regime jurdico da formao contnua de professores, aprovado pelo DecretoLei n 249/92, de 9 de Novembro, alterado e republicado pelo DecretoLei n 207/96, de 2 de Novembro, modificando algumas regras de enquadramento funcional e estatutrio da funo docente.

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