contributos para a história da alimentação na antiguidade autor(es

107
A navegação consulta e descarregamento dos títulos inseridos nas Bibliotecas Digitais UC Digitalis, UC Pombalina e UC Impactum, pressupõem a aceitação plena e sem reservas dos Termos e Condições de Uso destas Bibliotecas Digitais, disponíveis em https://digitalis.uc.pt/pt-pt/termos. Conforme exposto nos referidos Termos e Condições de Uso, o descarregamento de títulos de acesso restrito requer uma licença válida de autorização devendo o utilizador aceder ao(s) documento(s) a partir de um endereço de IP da instituição detentora da supramencionada licença. Ao utilizador é apenas permitido o descarregamento para uso pessoal, pelo que o emprego do(s) título(s) descarregado(s) para outro fim, designadamente comercial, carece de autorização do respetivo autor ou editor da obra. Na medida em que todas as obras da UC Digitalis se encontram protegidas pelo Código do Direito de Autor e Direitos Conexos e demais legislação aplicável, toda a cópia, parcial ou total, deste documento, nos casos em que é legalmente admitida, deverá conter ou fazer-se acompanhar por este aviso. Contributos para a história da alimentação na antiguidade Autor(es): Soares, Carmen, ed. lit.; Dias, Paula Barata, ed. lit. Publicado por: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra; Imprensa da Universidade de Coimbra URL persistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/5574 DOI: DOI:http://dx.doi.org/10.14195/978-989-721-008-2 Accessed : 15-Mar-2018 02:04:25 digitalis.uc.pt pombalina.uc.pt

Upload: lytuyen

Post on 08-Jan-2017

223 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

  • A navegao consulta e descarregamento dos ttulos inseridos nas Bibliotecas Digitais UC Digitalis,

    UC Pombalina e UC Impactum, pressupem a aceitao plena e sem reservas dos Termos e

    Condies de Uso destas Bibliotecas Digitais, disponveis em https://digitalis.uc.pt/pt-pt/termos.

    Conforme exposto nos referidos Termos e Condies de Uso, o descarregamento de ttulos de

    acesso restrito requer uma licena vlida de autorizao devendo o utilizador aceder ao(s)

    documento(s) a partir de um endereo de IP da instituio detentora da supramencionada licena.

    Ao utilizador apenas permitido o descarregamento para uso pessoal, pelo que o emprego do(s)

    ttulo(s) descarregado(s) para outro fim, designadamente comercial, carece de autorizao do

    respetivo autor ou editor da obra.

    Na medida em que todas as obras da UC Digitalis se encontram protegidas pelo Cdigo do Direito

    de Autor e Direitos Conexos e demais legislao aplicvel, toda a cpia, parcial ou total, deste

    documento, nos casos em que legalmente admitida, dever conter ou fazer-se acompanhar por

    este aviso.

    Contributos para a histria da alimentao na antiguidade

    Autor(es): Soares, Carmen, ed. lit.; Dias, Paula Barata, ed. lit.

    Publicado por: Centro de Estudos Clssicos e Humansticos da Universidade deCoimbra; Imprensa da Universidade de Coimbra

    URLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/5574

    DOI: DOI:http://dx.doi.org/10.14195/978-989-721-008-2

    Accessed : 15-Mar-2018 02:04:25

    digitalis.uc.ptpombalina.uc.pt

  • Contributos para a histria da

    alimentao na antiguidade

    Carmen Soares, Paula Barata Dias (coords.)

    IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRACOIMBRA UNIVERSITY PRESS

  • Contributos para a histria da alimentao na antiguidade

    Carmen Soares, Paula Barata Dias (coords.)

    IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRACOIMBRA UNIVERSITY PRESS

  • CoordenadoresCarmen Soares, Paula Barata Dias

    TtuloContributos para a histria da alimentao na antiguidade

    Editor

    Edio:1/ 2012

    Coordenador Cientfico do Plano de EdioMaria do Cu Fialho

    Conselho editorial Jos Ribeiro Ferreira, Maria de Ftima Silva, Francisco de Oliveira e Nair Castro Soares

    Director Tcnico da Coleco:Delfim F. Leo

    Concepo Grfica e Paginao:Rodolfo Lopes, Nelson Ferreira

    Impresso:

    Simes & Linhares, Lda. Av. Fernando Namora, n. 83 Loja 4. 3000 Coimbra

    ISBN: 978-989-721-007-5ISBN Digital: 978-989-721-008-2

    Depsito Legal: 343419/12

    Classica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensis (http://classicadigitalia.uc.pt)

    Reservados todos os direitos. Nos termos legais fica expressamente proibida a reproduo total ou parcial por qualquer meio, em papel ou em edio eletrnica, sem autorizao expressa dos titulares dos direitos. desde j excecionada a utilizao em circuitos acadmicos fechados para apoio a lecionao ou extenso cultural por via de e-learning.

    POCI/2010

    Todos os volumes desta srie so sujeitos a arbitragem cientfica independente.

    Centro de Estudos Clssicos e Humansticos da Universidade de Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra

    DOI: http://dx.doi.org/10.14195/978-989-721-008-2

    Centro de Estudos Clssicos e Humansticos da Universidade de Coimbra, IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

  • Sumrio

    Prefcio 7

    La presencia de la gastronoma en la literatura griega 9Mara Jos Garca Soler (Universidad del Pas Vasco/Euskal Herriko Unibertsitatea)

    Banquete grego: entre o ritual da philia e o prazer do luxo 25Maria Regina Cndido (Universidade Estadual do Rio de Janeiro)

    Arte Culinria em Xenofonte, Plato e Aristteles 35Carmen Soares (Universidade de Coimbra)

    Preparao e confeco dos alimentos e utenslios de cozinhanos fragmentos de Arqustrato de Gela 49

    Elisabete Cao (Universidade de Coimbra)

    Hbitos alimentares no Imprio Romano: notcias sobre os comportamentos animais e habitats no De alimentorum facultatibus de Galeno 57

    Nelson Henrique S. F. (Universidade de Coimbra)

    Discursos e Rituais na Mesa Romana: luxo, moralismo e equvocos 69Ins de Ornellas e Castro (Universidade Nova de Lisboa)

    Em defesa do vegetarianismo: o lugar de Porfrio de Tiro na fundamentao tica da abstinncia da carne dos animais 81

    Paula Barata dias (Universidade de Coimbra)

    A Propsito das Proibies Alimentares do Levtico 93Lus Lavrador (Escola de Hotelaria e Turismo de Coimbra)

    ndice de autores e obras 103

    ndice de termos alimentares 107

    ndice temtico 111

  • 7

    Introduo

    Prefcio

    Os temas da Alimentao, da produo alimentar e da gastronomia entraram, nos tempos recentes, entre os tpicos de discusso e de reflexo do homem comum, grangeando uma popularidade sem precedentes nos meios de comunicao e de entretenimento actuais.

    Tambm o estudo da Histria da Alimentao, em particular no domnio da Histria da Antiguidade, constitui um ramo de investigao relativamente recente nas universidades portuguesas. A sua pertinncia para um mais completo conhecimento do Homem numa viso que se deseja polifnica, multidisciplinar, na medida do possvel, abrangente explica a ateno progressiva que tem suscitado, no nosso pas e no estrangeiro, entre especialistas de reas complementares e, tantas vezes, de fronteiras difceis de limitar, como so os Estudos Clssicos, a Histria da Antiguidade e a Arqueologia.

    actualmente misso reconhecida da cincia universitria participar no dilogo com a sociedade civil e com os agentes culturais, no que estes apresentam como produtos ou tendncias de cultura inovadores.

    Por isso, entendeu-se ser oportuno contribuir para o conhecimento esclarecido, rigoroso e informado do patrimnio material e imaterial da humanidade que a Alimentao, valorizando a dimenso formativa e pedaggica basilar do Ensino Pblico Universitrio, e assim trazer para o presente aspectos do homem antigo menos divulgados e menos valorizadas at agora pela investigao acadmica.

    Pretende-se, pois, com esta colectnea de estudos, contribuir para o acesso s mais antigas razes do nosso patrimnio alimentar, fundadas nas grandes culturas antigas do Mediterrneo de que o homem ocidental herdeiro. Oferece-se, desta forma, tanto ao pblico em geral como ao acadmico, uma oportunidade

  • 8

    Paulo de Tarso: Grego e Romano, Judeu e Cristo

    de reflexo e de conhecimento sobre a Alimentao na Antiguidade enquanto realidade indelevelmente modeladora do que somos hoje.

    Este volume comporta, assim, contribuies de acadmicos e de investigadores afectos a vrias universidades e centros de investigao: a Universidade do Pas Basco; a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, a Universidade Nova de Lisboa; e a Universidade de Coimbra e o Centro de Estudos Clssicos e Humansticos da sua Faculdade de Letras. As oito colaboraes aqui reunidas foram alvo de uma apresentao preliminar no I Colquio de Histria da Alimentao na Antiguidade, decorrido em Janeiro de 2012, actividade que encerrou o primeiro semestre curricular do curso de 2 ciclo Alimentao: Fontes, Cultura e Sociedade, sedeado na FLUC, sob coordenao da Doutora Maria Helena Cruz Coelho e da Doutora Carmen Soares.

    Deste modo, os temas escolhidos pela coordenao do volume no visam esgotar o tema da alimentao na Antiguidade, mas sim contribuir para a sistematizao de assuntos que tm sido aflorados nas actividades lectivas do mestrado referido, de modo particular nos seminrios de Sabores do Passado: a Cozinha Grega e Romana; Metodologia e Fontes para o Estudo da Histria da Alimentao e Religies e Alimentao. Pretende-se tambm dar oportunidade ao desenvolvimento de caminhos de investigao menos explorados e, sobretudo, fundamentar essa pesquisa sobre temas de manifesta popularidade na sociedade envolvente, numa explorao das fontes historiogrficas pertencentes a trs culturas do mundo mediterrnico antigo - Grcia, Roma, e Jerusalm enquanto centro propagador do judeo-cristianismo verdadeiramente matriciais para a cultura, os valores e as vivncias quotidianas do mundo ocidental contemporneo.

    O mundo antigo era menos categrico no estabelecimento de fronteiras precisas entre as tipologias de saberes e de textos. Assim, este volume convoca uma variedade de documentos antigos que reflecte ela prpria a transversalidade da questo alimentar: textos picos, textos filosficos; autores lricos; tragedigrafos e comedigrafos; historiadores e etngrafos, tratados de gastronomia e de nutrio, livros de receitas e de viagens, livros de leis, como o Levtico e o Deuteronmio, cruzam-se com outras fontes dispersas a partir das quais se pode reconstituir as prticas e os valores do homem antigo acerca da alimentao e da mesa. Considerou-se por isso til a produo de ndices que facilitem o acesso do leitor s fontes referidas.

    As Coordenadoras

    Carmen SoaresPaula Barata Dias

  • 9

    Contributos para a histria da alimentao na antiguidade

  • 11

    La presencia de la gastronoma en la literatura griega

    La presencia de la gastronoma en la literatura griega

    Mara Jos Garca SolerUniversidad del Pas Vasco/Euskal Herriko Unibertsitatea

    El tema de la gastronoma, como en general todo lo que tiene que ver con la comida y la bebida, est presente en la literatura griega desde su comienzo, desde los poemas homricos, donde incluso tiene una funcin de elemento caracterizador de los hroes. Sin embargo la imagen que la posteridad ha tenido de la literatura griega, salvo raras excepciones, tiende a obviar esta faceta. Habitualmente de los textos se estudia el gnero literario, el autor y su estilo, la lengua, el marco cultural e histrico y, de forma secundaria, se permite la entrada a los aspectos conocidos como realia. Por suerte el panorama ha ido cambiando considerablemente en los ltimos quince aos, empujado en cierta forma por las tendencias histricas que han desplazado la atencin de los grandes acontecimientos hacia los aspectos de la vida cotidiana. Al fin y al cabo, las posibilidades de investigacin sobre el mundo antiguo son mucho mayores de lo que se podra pensar en un principio. Los griegos no slo se dedicaban a la poesa o al teatro, a componer bellos versos o a filosofar: tambin vivan en casas, se vestan con ropa, coman, y eso no se refleja slo a travs de los materiales que ofrece la arqueologa, sino tambin en los textos.

    A pesar de la enorme prdida que la literatura griega ha sufrido a lo largo de la historia, con todo sigue siendo un campo enorme de investigacin, por lo que me limitar aqu a analizar la presencia del elemento gastronmico en aquellos gneros que ms ricos resultan en este sentido, dejando de lado las obras especializadas (recetarios y libros de cocina, poemas gastronmicos, etc.), que por s misma merecen un captulo aparte. Hay tres gneros en verso particularmente interesantes, que muestran puntos de vista muy distintos sobre este tema: la pica de Homero, con la dieta de los hroes; la lrica arcaica, asociada al simposio, y la comedia tica, el gnero ms prximo a la realidad cotidiana y el que resulta ms rico en informacin para todo lo relacionado con el modo de comer griego.

    Evidentemente no son los nicos gneros posibles: recordemos los excursos geogrficos de Herdoto, obras de Platn como el Banquete, donde junto a la filosofa el autor describe el marco en el que se mueven sus personajes, o la Repblica, donde llega a establecer la alimentacin de su ciudad ideal; podramos citar incluso pasajes de la tragedia donde no faltan tampoco los elementos gastronmicos, en muchos casos con un valor metafrico y con una presencia muy limitada, y quiz lo ms curioso, hasta glosas en diccionarios que explican trminos culinarios e incluso llegan a describir los ingredientes de algunos de ellos. Como ejemplo de ello podemos presentar la receta de un

  • 12

    Mara Jos Garca Soler

    plato llamado thrion, que recoge el lexicgrafo Plux en su Onomastikon (6. 57-58):

    . , , , , . .1

    Antes de entrar directamente en los testimonios literarios, podra resultar conveniente hacer un breve resumen de las caractersticas de la dieta griega que se reflejan a travs de los textos escritos. Qu es lo que podemos saber gracias a todas estas obras?, qu nos dicen sobre la alimentacin de los griegos? Nos permiten conocer qu tipo de alimentos consuman, en qu circunstancias, cmo los preparaban e incluso si estaban bien o mal considerados, si eran alimentos refinados o propios de gente pobre y miserable.

    Por la literatura sabemos que la dieta griega era esencialmente vegetariana, hasta el punto de que un personaje de Antfanes (fr. 170 K.-A.), quiz un persa, define a los griegos como phyllotroges, comedores de hojas, lo que confirman con generosidad otras fuentes en las que se cita una variedad enorme de verduras, tanto cultivadas como silvestres. Eran en general un alimento barato y poco apreciado, en algunos casos incluso, como sucede con la malva y el asfdelo, signos de extrema pobreza2. Tambin las legumbres constituan junto a los cereales uno de los pilares de la alimentacin antigua. Se consuman principalmente en purs, como el etnos, que, segn Alcmn (fr. 17 PMG), era propio de la comunidad espartana3, o la phake, a base de lentejas, vinagre y algunos condimentos, citada con gran frecuencia por los comedigrafos ticos. El otro pilar lo constituan de los cereales, principalmente la cebada y el trigo, de los que se obtenan diversos tipos de harina con los que se elaboraban papillas, tortas y panes muy variados, con o sin levadura, de los que Ateneo de Nucratis (3. 109b-115a), un autor del siglo II d. C., llega a mencionar ms de cuarenta.

    Como contraste con la dieta casi exclusivamente vegetariana de la mayora de la poblacin, el gran amor de los epicreos griegos eran los alimentos procedentes del mar, los mariscos y los pescados, que inspiraron encendidos

    1 El thrion se hace de esta manera: cogiendo grasa cocida de cerdo con leche, mzclalo con smola gruesa, y tras revolverlo con queso fresco, yemas de huevo, y sesos, envolvindolo en una aromtica hoja de higuera, cucelo en caldo de ave o de cabrito; luego despus de sacarlo y quitarle la hoja, chalo en una cazuela llena de miel chisporroteante. Y al plato el nombre se lo da la hoja.

    2 Hes. Op. 41. Cf. Ar. Pl. 543.3 Antiph. fr. 181 K.-A. Henioch. fr. 4 K.-A.

  • 13

    La presencia de la gastronoma en la literatura griega

    elogios en los comedigrafos. Segn las fuentes antiguas, la variedad de moluscos que consuman era mucho mayor que en la actualidad, aunque tambin entonces se preferan las ostras, las almejas o los mejillones, y, entre los cefalpodos, el pulpo, la sepia y el calamar. Apreciaban adems la langosta, el bogavante y las gambas y coman erizos de mar, actinias (anmonas: n. do ed.) y holoturias (pepinos do mar: n. do ed.). El pescado era capaz de levantar verdaderas pasiones. Las fuentes literarias ofrecen informaciones muy abundantes a este respecto, recogiendo un gran nmero de referencias a las especies consumidas y encendidos elogios hacia las ms apreciadas, que eran el atn, la lubina, el glaukos, el congrio y, reinando por encima de todos ellos, las divinas anguilas del lago Copais, en Beocia, que Arqustrato (fr. 10. 7-8 O.-S.) no duda en calificar como reina de los alimentos y gua del placer. Hasta tal punto eran apreciados los pescados que los comedigrafos hacen burlas sobre los amantes de estos platos, capaces de hacer una incursin por el mercado arrasando con todo como un tornado o de pagar por un congrio tanto como Pramo por el cuerpo de Hctor4.

    En los textos tambin se encuentra la carne, sobre todo la de cerdo, que parece ser la ms comn, aunque no faltan las de buey, cabrito y cordero. Con frecuencia se cita en relacin con el sacrificio y sabemos que una parte importante de la poblacin slo poda acceder a ella con ocasin de las grandes festividades, en las que la carne de la vctima, tras separar las partes correspondientes a los dioses y a los sacerdotes, era distribuida entre los participantes. Por otro lado, la porcin que se asignaba a los oficiales que realizaban el sacrificio poda ser tambin vendida en el mercado, lo que sabemos que suceda corrientemente con el cerdo5. Los animales preferidos eran los jvenes, ms tiernos y jugosos, y las partes ms apreciadas los lomos y las patas, que se coman asados. Las menos nobles se cocan y tenemos constancia de la existencia incluso de un mercado de carnes cocidas, ta hephthopolia, donde morros, orejas, manitas y otras partes se vendan ya preparados6. Los intestinos y otras vsceras (el bazo, la vejiga, el estmago) se utilizaban como fundas en la elaboracin de embutidos de diversos tipos. De vacas, cabras y sobre todo ovejas aprovechaban tambin la leche, que no beban, salvo en casos muy concretos (para nios y ancianos y con fines medicinales), y en cambio consuman preferentemente en forma de queso.

    Para completar las necesidades de protenas contaban adems con las aves de corral que criaban en cautividad (como el ganso, la gallina o la paloma domstica), de las que aprovechaban adems de la carne tambin los huevos.

    4 Antiph. fr. 50 K.-A. Alex. fr. 47 K.-A. Timocl. fr. 4. 8-10 K.-A. Diph. fr. 32 K.-A.5 Antiph. fr. 201 K.-A. Thphr. Char. 6. 9. Poll. 9. 48.6 Ath. 3. 94c.

  • 14

    Mara Jos Garca Soler

    Por otro lado hay que sealar la presencia de la caza, tanto de la caza de pelo, como la de pluma, aunque su presencia en la dieta es ms limitada, al menos en el caso de la caza mayor, que era practicada casi exclusivamente como actividad deportiva. En el caso de la caza de pelo destacaban el jabal y sobre todo la liebre, que incluso era vendida en el mercado y regalada como presente de amor7. En cuanto a la caza de pluma, era muy variada, desde aves como patos, perdices, trtolas, palomas torcaces y los apreciadsimos francolines de Jonia, hasta una larga serie de pajaritos como el gorrin, el papafigo, el pinzn (tentilho: n. do ed.) o el hortelano, para cuya captura se empleaban diversos procedimientos, como los que enumera Aristfanes en las Aves (524-529):

    . , , ,, , , 8

    Las fuentes antiguas no dicen slo qu se coma, sino que hacen referencia igualmente a las formas de elaboracin, que en ocasiones quedan reflejadas en algo que podra identificarse como recetas, trmino que hay que entender en sentido amplio, porque muchas veces no se especifican todos los ingredientes, raramente se indican las cantidades y con frecuencia las referencias a los procedimientos de coccin son bastante vagas. Otras veces se indica el momento en que se consuma el alimento en cuestin, sobre todo cuando se situaba en los aperitivos o en los postres, que los griegos llamaban segundas mesas. Entre los primeros se incluan las aceitunas, el queso, los huevos, los bulbos de nazareno y los mariscos; en los postres se serva fruta, dulces y frutos secos como las nueces, almendras, pistachos o los piones, que sirven de acompaamiento a la bebida, y algunos otros menos nobles como las legumbres tostadas9. Entre las frutas destacan la manzana, de la que incluso encontramos referencias a diversas variedades locales, y los higos, frescos y secos, aparte de las cerezas, las ciruelas (ameixas: n. do ed.), los nsperos, las granadas y las bayas de diversos arbustos.

    Por supuesto, tampoco falta la informacin sobre la bebida, principalmente el vino, que era el rey indiscutible, al que se dedican casi verdaderos poemas de

    7 A. Dalby 1996: 61.8 Como a los locos os tiran piedras. Incluso en los templos cualquier pajarero os tiende

    lazos, varetas, cepos, hilos, redes, pihuelas y trampas; luego os cogen y os venden en montn.9 Anaxandr. fr. 42. 54 K.-A. Ephipp. fr. 13. 5 K.-A. Eub. fr. 2. 4 K.-A. Archestr. fr. 60. 13-15

    O.-S. Matro fr. 534. 112 SHell. Clearch. fr. 87 Wehrli.

  • 15

    La presencia de la gastronoma en la literatura griega

    amor. Se apreciaba sobre todo el vino aejo y dulce, en particular si proceda de las islas de Quos, Lesbos o Tasos. Para gozar de una bebida propia de personas civilizadas deba consumirse de una manera bien precisa, mezclado con agua, prctica sobre la que las fuentes antiguas ofrecen abundantes testimonios. El marco principal para su consumo es el simposio, que tan estrechamente relacionado se encuentra con la lrica, aunque sabemos que no era el nico lugar, como dejan claro, por ejemplo, las alusiones de los comedigrafos a las tabernas y a los taberneros10.

    Hasta aqu hemos descrito lo que podramos considerar la dieta bsica, puesto que evidentemente haba diferencias derivadas de los medios econmicos e incluso hay pequeos indicios de lo que podramos considerar cocinas regionales o al menos variedades gastronmicas segn las zonas de Grecia: platos ms especiados para los jonios y los bizantinos, ms presencia de la carne para los tesalios, platos abundantes para los beocios, mens variados a base de pequeas cantidades para los atenienses, frugalidad en los espartanos, etc.

    Llegados a este punto vamos a abordar ahora los gneros escogidos para este viaje gastronmico por la literatura griega, empezando por el principio, por la pica de Homero. En ella aparece ante nosotros un mundo idealizado, el de un pasado legendario en el que los dioses se movan por la tierra y estaban en estrecho contacto con los grandes hroes, que son a su vez representantes de una raza especial, muy superior a la de los hombres comunes por su fuerza y valor. La alimentacin es uno de los elementos que distinguen a los hroes de los dioses, que toman nctar y ambrosa, pero tambin los separa de los hombres comunes, que difcilmente podran tener acceso a esa abundancia de carne asada y vino que reflejan los poemas. Los hroes son los defensores de la patria, por lo que ocupan una posicin de prestigio en su comunidad, patente, entre otras cosas, en su modo de alimentarse. Su dieta consiste esencialmente en abundante carne asada, pan y el vino ms dulce.

    Las carnes proceden de ovejas, cabras y, sobre todo, de bueyes y cerdos cebados, que son sacrificados, cortados en trozos y asados en espetones, segn un ritual determinado, del que tenemos un ejemplo muy ilustrativo en el pasaje de la Odisea en la que el porquero Eumeo ofrece a Ulises al que an no ha reconocido, un banquete con la carne de un cerdo de cinco aos11. Tienen adems un papel muy importante en las normas de la hospitalidad homrica, donde es fundamental la generosa la acogida del husped, al que se ofrece de

    10 Ar. Th. 347-348, Pl. 436. Theopomp. Com. fr. 66 K.-A. Antiph. fr. 25 K.-A. Cf. J. N. Davidson 1997: 56-61.

    11 Od. 14. 418-450. Cf. Il. 9. 206-217; Od. 3. 456-463.

  • 16

    Mara Jos Garca Soler

    comer y beber antes de preguntarle por el motivo de su visita, como se aprecia en el pasaje en el que Ulises, Fnix y Ayante se dirigen a la tienda de Aquiles con el fin de convencerlo para que vuelva al combate; slo despus de saciar el apetito de bebida y de comida (Il. 9. 222) Ulises aborda el asunto que los ha llevado hasta all. Sucede, sin embargo, que las caractersticas geogrficas de Grecia nos llevan a pensar que estamos ante una fantasa pica, ya que todo parece apuntar a que, tanto en el momento en que se sitan las gestas cantadas (la poca micnica) como en tiempos del propio Homero (hacia el siglo VIII a. C.), la base de la alimentacin deba de ser las mucho menos poticas gachas de harina de cebada, el pur de legumbres y el pan sin levadura. Probablemente la frecuente presencia de carne se puede explicar por su consideracin como smbolo de pertenencia a un elevado status social: cuanto mayor era el consumo de carne, mayor era el prestigio que se derivaba de l. Por el mismo motivo, se reservan a los hroes las partes ms escogidas de los animales y tambin el vino adopta un valor similar, ya que con l de alguna manera se premia al guerrero ms valeroso, que en el banquete tiene siempre su copa llena12.

    Por lo que se refiere a la bebida, tanto en la Ilada como en la Odisea se encuentran numerosas alusiones a lugares donde abundaba la vid (Arne, Istiea, Epidauro) y a algunos vinos concretos, como el pramnio que no deja de aparecer en los textos a lo largo de toda la antigedad, el de Lemnos y el de smaros, regalo del sacerdote Marn, con el que Ulises emborracha al Cclope y consigue as salvar la vida (Od. 9. 196). En Homero se encuentra tambin la descripcin del banquete arcaico, que volveremos a encontrar en la poesa lrica de los siglos VII y VI a. C., pero ah ya perfectamente formalizado y con algunas caractersticas diferentes. Frente a los usos de la poca clsica, los personajes de la Ilada y la Odisea no comen tendidos en lechos, sino sentados en sillas, ante las que se ponen mesas pequeas. La comida se sirve sin plato, directamente sobre el tablero de la mesa, por lo que ste deba ser previamente lavado con esmero. Asimismo, dado que tampoco se usaban cubiertos, se ofreca a los comensales tiles para lavarse las manos. En cuanto al consumo del vino, ya en Homero encontramos lo que es probablemente la primera alusin a la prctica de aadirle agua, cuando utiliza la expresin una mezcla ms fuerte (Il. 9. 203), aunque resulta demasiado vaga como para poder llegar a conclusiones definitivas.

    Un hecho que llama la atencin, en un pueblo abierto al mar como el griego y ms teniendo en cuenta cul va a ser la situacin posterior, es que el pescado es para Homero un alimento indigno de un hroe, slo aceptable

    12 H. Il. 4. 340-348, 8. 161-163, 185-190, 12. 310-321, 17. 243-251, 20. 83-85. Cf. M. J. Garca Soler 2010: 107-108.

  • 17

    La presencia de la gastronoma en la literatura griega

    cuando no hay nada mejor. As, en la Odisea 12. 325-332, despus de varios das sin viento, agotadas las provisiones, los compaeros de Ulises se ven forzados a cazar y a capturar peces con los curvos anzuelos, porque el hambre les roa las entraas. Tampoco forman parte de la dieta homrica los huevos ni la carne procedente de la caza, que aparece ms bien como una actividad para diversin de los hroes, y parece ignorar igualmente el uso del aceite para cocinar, pero los poemas mencionan, en cambio, el queso, los cereales, las legumbres, la cebolla, algunos frutos secos y la miel.

    Ms fructfera resulta la aproximacin a la gastronoma a travs de la poesa lrica, debido, entre otras cosas, a su propio carcter menos heroico y ms humano, que da entrada a algunos aspectos relacionados con la vida diaria. Las alusiones a la comida y sobre todo a la bebida varan de unos autores a otros, tanto en carcter como en nmero, y son especialmente frecuentes en un gnero que tiene unos orgenes y unos temas muy populares, como es el yambo. Abundan en Hiponacte, autor en el que, como era de esperar, adquieren un tono burln, como se ve en el fr. 26 West, sobre un joven que se ha comido su herencia a base de hembra de atn y myssotos. En Arquloco destacan las referencias al vino, pero quiz el autor ms interesante (en parte por poco conocido) sea Ananio, un poeta contemporneo de Hiponacte, del que conservamos muy pocos fragmentos, entre los que uno destaca por su importancia en el terreno de la cocina, el fr. 5 West. Se trata de un calendario gastronmico, el primer ejemplo de un texto de este tipo en la literatura griega, que vuelve a aparecer repetidamente en lugares muy variados, desde la didctica gastronmica de Arqustrato de Gela a las prescripciones de los dietistas antiguos. En l se indica con precisin la estacin del ao en que diversos alimentos se encuentran en su mejor momento y constituye, sin discusin, el primer testimonio de poesa gastronmica en la literatura griega:

    , . , . , , . , , .13

    13 En primavera es ptimo el cromio, en invierno el anthias. Pero de los hermosos manjares el mejor es la gamba en hoja de higuera. Dulce de comer es la carne otoal de la cabra; y de

  • 18

    Mara Jos Garca Soler

    Una parte importante de la lrica arcaica, en particular la elega y la lrica mondica, gira en torno al vino y el banquete. La poesa simposial muestra las diversas facetas y el significado que para los griegos tena el beber en sociedad, el beber juntos. El banquete es un fenmeno muy complejo, en el que intervienen diversos elementos articulados todos ellos en torno al consumo del vino. Uno de los poetas ms famosos por su amor a esta bebida, en el que con frecuencia aparecen la invitacin a beber y el elogio del vino, es Alceo. Ningn otro rbol plantes antes que la vid, afirma en uno de los fragmentos conservados (fr. 342 Voigt); el vino encanta y hace olvidar a los hombres las tristezas cotidianas, convirtindose en la mejor medicina para los males del nimo (Alc. frr. 335, 346 Voigt). Alceo afirma adems que es el espejo del hombre (fr. 333 Voigt), un medio de mostrar la verdadera naturaleza de las personas, lo que resumi con un sencillo oinos kai aletheia, vino y verdad, que tuvo su versin latina en el conocido in vino veritas (fr. 366 Voigt. Cf. Theocr. 29. 1). Tanto Alceo como otros poetas prestan una atencin especial a todo lo relativo a la mezcla del vino con el agua, como ponen de manifiesto los comentarios sobre las proporciones en este autor (fr. 346 Voigt) y Anacreonte (fr. 24, 33 Gentili). Esta prctica se explica porque el consumo del vino no es un fin en s mismo, sino que constituye el instrumento que favorece el desarrollo de la reunin, haciendo ms abierta y cordial la mente, ms dispuesta a hablar, venciendo la timidez y animando el ingenio. El banquete poda prolongarse hasta tarde y por ello es decisiva la importancia de la mezcla del vino, que, al atemperar los efectos del alcohol, ofrece la gran ventaja de evitar o al menos retrasar la embriaguez.

    En el polo opuesto de lo que debe ser un verdadero simposio se sita la juerga desenfrenada, en la que la borrachera se manifiesta en el gritero de los comensales y en el estrpito de los objetos en medio de la confusin general, ms propia de los brbaros que de los civilizados griegos. Por ello, autores como Teognis (211-212, 477-481, 509-510) y Jenfanes (fr. 1. 16-17 West) aconsejan beber vino hasta el lmite en que uno pueda volver a casa por su propio pie y abundan las recomendaciones de moderacin en la bebida. Sin embargo, que esto era lo ideal, pero en muchos casos quedaba lejos de la situacin real, parece claro a partir de numerosas representaciones en cermica que reflejan los efectos de un consumo excesivo de bebida; en la literatura, no podemos olvidar que el famoso Banquete de Platn, que empieza de forma muy civilizada, tras la irrupcin de Alcibades pierde su moderacin, de manera que

    comer la del cochinillo cuando pisan y aplastan la uva, y esta estacin es la de los perros, las liebres y los zorros. Y la oveja, cuando llega el verano y cantan las cigarras; luego del mar no es alimento el atn, sino que sobre todos los peces destaca en myssotos. Pero un buey cebado, yo creo, es grato en medio de la noche y de da.

  • 19

    La presencia de la gastronoma en la literatura griega

    al final todos los comensales terminan dormidos, excepto Scrates, que deba de ser excepcional por su resistencia a la bebida.

    El tercer gnero que vamos a tratar es la comedia, sin duda el que mejor refleja la alimentacin en la antigedad griega por su carcter popular, que hace que sea particularmente explcita en detalles de la vida diaria a los que otras formas ms elevadas no prestan atencin. Hay que comenzar haciendo una precisin: a pesar de la enorme presencia que los temas gastronmicos tienen en ella donde aparentemente constituyen uno de los recursos ms utilizados por los autores teatrales para provocar la risa del espectador, resulta imposible valorar su importancia real, sobre todo porque, salvo las obras conservadas de Aristfanes y de Menandro, slo conocemos la comedia a travs de fragmentos que han llegado por tradicin indirecta, fuertemente mediatizada por los intereses del autor que transmite las citas. En cualquier caso, parece que las alusiones a la comida y a la bebida tuvieron un peso considerable en este gnero, lo que lo convierte sin ninguna duda en la mejor fuente para conocer la alimentacin de la Atenas de la poca clsica.

    En la comedia se encuentran reflejados prcticamente todos los aspectos relacionados con la comida: la visita al mercado para comprar los alimentos, con frecuentes alusiones a su estado o su precio, en particular en relacin con el pescado; la preparacin de los alimentos, con las descripciones y recomendaciones de los cocineros e incluso algunas recetas; escenas de sacrificio y de fiesta, con comentarios que asocian ciertas comidas con celebraciones especficas. Tambin encontramos en la comedia los nombres de los alimentos y de algunos platos, as como numerosos trminos (sustantivos, adjetivos y verbos) derivados de ellos. Son igualmente frecuentes las referencias a los objetos de uso diario, con un abundante vocabulario de los tiles empleados para preparar, servir y consumir los alimentos (hornos, cuchillos, cazuelas y ollas, trpodes, etc.).

    Segn el panorama que muestra la comedia tica, el alimento bsico para los atenienses, como para la mayor parte de los griegos de la poca, era la maza, una especie de torta o de papilla de harina de cebada, preparada de diversas maneras14. Adems se coman una gran cantidad de verduras, habas, lentejas, sobre todo en pur, citado con frecuencia por los comedigrafos15, ajo, queso y cebollas. En cambio, la carne era cara, salvo la de cerdo, y los pobres de la ciudad slo podan tomarla de vez en cuando con ocasin de

    14 Cratin. fr. 176 K.-A. Telecl. fr. 1 K.-A. Ath. 4. 137e, 10. 442b. Cf. M.-C. Amouretti 1986: 122-125; P. Thiercy 1997: 134; M. J. Garca Soler 2001: 95-98.

    15 Epich. fr. 30 K.-A. Sopat. fr. 13 K.-A. Ar. Eq. 1007, V. 811, 814, Pl. 1004, fr. 23 K.-A. Pherecr. fr. 26 K.-A. Stratt. fr. 47 K.-A. Diph. fr. 42 K.-A.

  • 20

    Mara Jos Garca Soler

    alguna fiesta en la que se celebraran sacrificios. El pescado resultaba todava ms inaccesible para una buena parte de la poblacin, por lo que al mismo tiempo acab convirtindose en un buen recurso que daba mucho juego como elemento cmico. As, la figura del pescadero aparece acompaada de toda una larga serie de adjetivos del tipo de malvado, maldito, infame, criminal, y se describe como un individuo poco recomendable, que apenas se digna mirar a los pobres compradores, a los que adems vende una mercanca carsima y no siempre en buen estado16. Pero siempre queda claro su carcter de delicia gastronmica capaz de levantar pasiones.

    No menos importante es el papel del vino en la comedia. Los autores alaban los de Lesbos, Quos, Tasos y no dejan de mencionar vinos histricos como el pramnio o el biblino, citados ya por Homero (Il. 11. 630; Od. 10. 234-235) y Hesodo (Op. 589). Aparecen adems comentarios de todo tipo sobre la mezcla con agua, continuando la lnea trazada por la poesa lrica, pero con una mayor variedad y con una cierta tendencia a bebidas algo ms fuertes, lo que encaja bien con el amor al vino puro del que hacen gala algunos personajes de la comedia. Era general la creencia de que consumirlo de esta manera entraaba ciertos riesgos, adems de ser impropia de un comportamiento civilizado, pero no es extraa en personajes situados en la periferia de la vida ciudadana, excluidos del simposio, como los esclavos y, sobre todo, las mujeres, que beben el vino en la taberna o en casa a escondidas y no se preocupan de fijar la mezcla adecuada con agua.

    En Aristfanes encontramos varios ejemplos de ello: del amor por el vino de los esclavos en Caballeros 85-124 y de la philoinia de las mujeres en numerosos lugares de Asamblestas (14-15, 137, 153-155, 225-228), Tesmoforiantes (393, 418-422, 630-631, 735-737) y Lisstrata. En esta comedia, una de las ms conocidas, se encuentra un pasaje particularmente ilustrativo, porque muestra a las mujeres en el momento de prestar el solemne juramento con el que esperan conseguir la paz, comprometindose a hacer una huelga sexual. La prctica habitual en circunstancias similares era concluir con un sacrificio juratorio, que sellaba el pacto, y las mujeres, siguiendo su naturaleza, eligen como vctima una jarra de vino de Tasos (Lys. 186-208).

    La comida tiene importancia tambin en la metfora y la imaginacin cmica. Por ejemplo, en la Paz 236-254 la Guerra, caracterizada como un cocinero, prepara un myssotos con las ciudades griegas: el puerro viene de Prasia, el ajo de Mgara, el queso de Sicilia y la miel del Atica, ingredientes con los que, machacados en un mortero, se obtena una salsa, una especie de pesto, que se usaba para acompaar el pescado. En este pasaje la guerra va a prepararla triturando las propias ciudades, mostrando a la manera cmica el

    16 Ar. fr. 402. 8-10 K.-A. Antiph. frr. 47, 164 K.-A. Xenarch. fr. 7 K.-A.

  • 21

    La presencia de la gastronoma en la literatura griega

    profundo dramatismo de la situacin real. Otro ejemplo de uso metafrico de la gastronoma se encuentra en Acarnienses 186-202, donde el protagonista valora las treguas que le ofrecen los espartanos a travs de un mensajero como si fueran vinos de distintas aadas, utilizando un vocabulario propio de la cata.

    Un motivo literario particularmente interesante es el del automatos bios, la vida automtica, ms conocido entre los estudiosos como la utopa gastronmica, presente en un grupo de autores del ltimo tercio del siglo V a. C.17 Son los primeros ejemplos del tema folklrico del pas de Cucaa o de la ms literaria Edad de Oro. Los fragmentos insisten en la ausencia del trabajo, porque todo se produce de forma espontnea, y ofrecen descripciones de grandsimas comilonas situadas en tiempos o lugares remotos, proverbiales por su riqueza, como Persia o la Magna Grecia, o incluso en el propio Hades. Los alimentos aparecen en abundancia por todas partes y se dirigen espontneamente a los afortunados comensales: ros de caldo se desbordan por doquier, arrastrando consigo trozos de carne; los panes se amasan y se cuecen por s mismos; hay tordos que revolotean ya asados suplicando ser comidos y trozos de pescado que saltan a la boca de los comensales. Este despliegue distaba mucho de la situacin real de la Atenas contempornea, involucrada en plena guerra del Peloponeso o ya en los aos inmediatamente posteriores, por lo que en estos pasajes se ha podido reconocer una especie de protesta a travs de la stira.

    Muy ligado al mundo de la gastronoma se encuentra un personaje que lleg a alcanzar la categora de tipo cmico en la Comedia Nueva, el cocinero, que interviene en muchas escenas preparando comidas para bodas y banquetes, perfectamente caracterizado como un charlatn, un pedante de lenguaje sentencioso y enrevesado y, sobre todo, un perfecto sinvergenza. El cocinero real, no el cmico, no aparece en el mbito continental hasta la poca de Aristfanes, y est ntimamente relacionado con el auge de las colonias occidentales de Sicilia y la Magna Grecia, donde la aficin al lujo y las nuevas demandas de refinamiento crearon las condiciones para el desarrollo del arte culinario18. La fama de los cocineros de esta zona era muy grande, como indican el hecho de que los encontremos citados ya por Platn (R. 3. 403e; 3. 404e-5; 7. 559a 11 ss.), as como su presencia directa o indirecta en la comedia. Se trata de personajes que presumen de sus grandsimos conocimientos en disciplinas tan variadas como la astronoma, la estrategia o la medicina (Damox. fr. 2 K.-A. Nicomach. fr. 1 K.-A.). Un cocinero de Filemn (fr. 82. 24-26 K.-A.) afirma incluso que ha descubierto el secreto de la inmortalidad, de manera

    17 Cratin. fr. 176 K.-A. Crates fr. 16 K.-A. Telecl. fr. 1 K.-A. Pherecr. fr. 113, 137 K.-A. Nicopho fr. 21 K.-A. Metag. fr. 6 K.-A.

    18 S. Collin-Bouffier 2000.

  • 22

    Mara Jos Garca Soler

    que los muertos podran revivir slo con oler el aroma de sus platos19. Y, por supuesto, no faltan los que se vanaglorian de ser capaces de hacer con su arte que los comensales le hinquen el diente incluso a la cazuela o a la escudilla de puro placer20.

    Este velocsimo repaso por la literatura griega pone de manifiesto la importancia del tema gastronmico, que aflora de formas muy variadas. Unas veces se convierte en motivo literario, y como ejemplo no tenemos ms que recordar el papel del vino en una buena parte de la poesa de poca arcaica, centrada en el simposio. Otras es el elemento distintivo de una poca mtica, como queda de relieve en los banquetes con carne asada y vino con que se regalaban los hroes homricos. En otros casos es la base para la stira, y as se aprecia en muchos pasajes de la comedia en los que se citan alimentos inalcanzables para una buena parte de sus espectadores, como sucede en las descripciones del pas de Jauja. A veces se usa tambin como metfora, de lo que son magnficos ejemplos las treguas de Acarnienses y el pesto de la Paz. En fin, con tantas variantes como se quiera, la comida y la bebida estn muy presentes en la literatura, indicio sin duda de la importancia que tambin en su vida cotidiana debieron de dar a la gastronoma los griegos antiguos.

    19 Cf. Bato fr. 4. 7 K.-A.; Plaut. Ps. 829-830.20 Alex. fr. 24, 115. 19-23, 178. 4-6 K.-A. Aristopho, fr. 9. 8 K.-A. Plaut. Ps. 881-884. Cf. A.

    Giannini 1960; M. J. Garca Soler 2008.

  • 23

    La presencia de la gastronoma en la literatura griega

    Bibliografa

    M.-C. Amouretti (1986), Le pain et l huile dans la Grce antique. Paris.S. Collin-Bouffier (2000), La cuisine des Grecs dOccident, symbole dune

    vie de ?, Pallas 52: 195-208.A. Dalby (1996), Siren Feasts. A History of Food and Gastronomy in Greece.

    London-New York. (2003), Food in the Ancient World from A to Z. London-New York.J. N. Davidson (1997), Courtesans and Fishcakes. The Consuming Passions of

    Classical Athens. London.M. J. Garca Soler (2001), El arte de comer en la antigua Grecia. Madrid. (2002-2003), Hacia los orgenes de la literatura gastronmica: El

    calendario de Ananio (Fr. 5 West), SPhV 6, n. s. 3: 37-57. (2008), El cocinero cmico: maestro de los fogones y de la palabra,

    CFC (egi) 18: 145-158. (2010), Mujer y vino en la comedia griega, in M. J. Garca Soler

    (ed.), Expresiones del humor desde la Antigedad hasta nuestros das. Vitoria-Gasteiz, 75-90.

    (2010), El vino de los hroes homricos, ETF(arqueol) n. s. 3: 107-113.

    A. Giannini (1960), La figura del cuoco nella commedia greca, ACME 13: 135-216.

    M. Lambert-Gcs (1990), The Wines of Greece. London-Boston.E. Minchin (1987), Food Fiction and Food Fact in Homers Iliad, PPC 25:

    42-49.R. Nadeau (2006), La consommation du poisson en Grce ancienne: excs,

    faste et tabou, Food & History 4.2: 59-73.M. Pellegrino (2000), Utopie e immagini gastronomiche nei frammenti

    dell Archaia. Bologna.E. Salza Prina Ricotti (2005), Larte del convito nella Grecia antica.

    Levoluzione del gusto da Achille ad Alessandro Magno. Roma.S. Sherratt (2004), Feasting in Homeric Epic, in J. C. Wright (ed.), The

    Mycenaean Feast. Princeton, 181-217.

  • 24

    Mara Jos Garca Soler

    P. Thiercy (1997), Le palais dAristophane ou les saveurs de la polis, in P. Thiercy, M. Menu (eds.), Aristophane: La langue, la scne, la cit. Actes du colloque de Toulouse, 17-19 mars 1994. Bari, 131-177.

    J. Wilkins (2000), The Boastful Chef: The Discourse of Food in Ancient Greek Comedy. Oxford.

    J. Wilkins, D. Harvey, M. Dobson (eds.) (1995), Food in Antiquity. Exeter.

  • 25

    Banquete grego: entre o ritual da philia e o prazer do luxo

    Banquete grego: entre o ritual da philia e o prazer do luxo

    Maria Regina Cndido Universidade Estadual do Rio de Janeiro

    Os gregos foram uma das primeiras sociedades europeias a produzir textos de receitas culinrias, visando definir o prazer de beber e de degustar iguarias presentes nos banquetes, o que nos permite abordar o tema sob a perspectiva da antropologia histrica. O prazer mesa, entendida na atualidade como gastronomia, detm as suas informaes mais remotas nas pardias picas de Arqustrato de Gela e Mtron de Ptane, cujos fragmentos foram reunidos no livro de Ateneu de Nucrates. No seu Deipnosophistai, Ateneu preservou cerca de 60 fragmentos, que totalizam 334 linhas do poema de Arqustrato. Os seus textos nos apontam o resultado de possveis viagens, realizadas pelo poeta atravs do mundo grego banhado pelo Mediterrneo, no qual o autor destaca os melhores lugares para se deliciar com as iguarias de uma boa mesa, principalmente da culinria a base de peixe, acompanhada de um bom vinho.

    O poeta cosmopolita Arqustrato de Gela, conhecido no sc. IV a. C. como apreciador de uma boa mesa, deixou alguns fragmentos sobre a preparao de receitas no livro intitulado Hedypatheia. Segundo Olson-Sens (1999: 9), o poema se caracteriza pelo estilo didtico na qual o autor se apresenta como um expert no assunto de degustao. Plato menciona, na obra Grgias (518b), Mtaco, que antecede Arqustrato na arte da culinria grega.

    Mtron de Ptane tambm teve a sua poesia preservada por Ateneu em 142 linhas das quais vinte se referem obra Banquete tico (Deipnosophistai 134d-137c), que nos aponta o estilo da boa mesa, relacionado ao expressivo significado de grupo, ao demarcar as relaes sociais dos integrantes da elite de Atenas. Trata-se da narrativa potica da realizao de um suposto banquete, ocorrido em Atenas no sc. IV a. C., cujos hspedes identificados pelo narrador so Eubeu de Paros, contemporneo de Felipe II da Macednia e Xencles, orador ateniense, contemporneo de Licurgo, importante figura envolvida no processo de restaurao da democracia ateniense, assim como Estratocles, filho de Eutidemo de Atenas, proeminente poltico, integrante de uma antiga famlia aristocrata ateniense de prestgio e riqueza.

    Entretanto, nos restaram escassas informaes sobre os autores, sabemos que Arqustrato era um siciliano proveniente da regio de Gela ou Siracusa e que viveu no sc. IV a. C. Mtron pertence a regio de Ptane na Anatlia, mas frequentava os banquetes atenienses, pois a sua poesia expressa os acontecimentos polticos de Atenas no periodo de Demtrio de Falero.

  • 26

    Maria Regina Cndido

    Os primeiros textos sobre culinria e banquete foram escritos em forma de poesia pica, seguindo os estilos de Homero e de Hesodo, ou seja em versos hexmetros dactlicos, que no conjunto formam uma pardia bem humorada. Devemos afirmar que j existia uma longa tradio do gnero de pardia anterior aos escritos de Arqustrato e Mtron, como nos aponta Xenfanes (frag. 18), do scs. VI-V a. C., no qual narrou o uso do receitas realizadas a partir de gro de bico e oferecidas em simpsio.

    Como podemos observar, pouco sabemos sobre a vida de Arqustrato de Gela e Mtron de Ptane, porm seus fragmentos deixam transparecer os espaos geogrficos por onde transitaram como viajantes, assim com os espaos antropolgicos, nos quais se pode constatar as diferentes formas de organizao alimentar e as especificidades de ingredientes das diferentes regies que serviram de escala para o apreciador de uma boa mesa.

    Arqustrato e Mtron eram provenientes da cultura helnica e tinham a noo de que os gregos definiam o mundo da civilidade como parte integrante dos homens comedores de po, os sitophagoi, conceito definido por Homero na Odisseia de Ulisses e reforado por Hesodo nos Trabalhos e os Dias. A sociedade dos helenos vivia do cultivo de gros e de cuidados com o gado na pastagem. Ambas as actividades resultam em produtos considerados ddivas dos deuses, o que permitia aos gregos se alimentar de po produzido a partir dos cereais de Demter e Persfone. A carne seria proveniente de animais domsticos abatidos em sacrifcios aos deuses. Bebiam do vinho fornecido por Dinisos e usavam do cultivo do azeite, cuja techne foi ensinado por Atena. No conjunto, os alimentos que nutrem a vida de civilidade do homem grego provm do suor de seu corpo. Na Teogonia depois do episdio de Prometeu (Teog. vv. 535-541), que levou o castigo ao homem, a sobrevivncia humana passa a ser o resultado do esforo dirio do trabalho humano, que passava pelo cultivo da terra para os cereais e leguminosas, a criao de gado e necessariamente pelo processo do cozimento dos alimentos.

    Esse o modelo de vida dos homens que emergiram na cultura helnica, ou seja, os filhos da Idade do Ferro cujo alimento o resultado de seu trabalho rduo e dirio. No imaginrio social do homem grego, o ser que vive na cultura ocupa um espao definido entre o mundo dos deuses e das bestas selvagens, que se alimentam do que nascia na natureza, como os Ciclopes, Lotfagos e os antropfagos Lestrgones. A civilidade grega determina que a existncia do heleno deva ser organizada em comunidade polade, como espao geogrfico que se define pela existncia de um conjunto de oikoi, onde vive com sua famlia e exerce a sua atividade de cultivo agrrio e pastoril, pratica sacrifcios aos deuses e vive em comunidade cercada por muros.

    Enfim, o homem grego constri um espao antropolgico socializado pela realizao de festas e de banquetes, nas quais realiza o ritual de hospitalidade,

  • 27

    Banquete grego: entre o ritual da philia e o prazer do luxo

    trocas de presentes, trazendo memria o passado dos ancestrais, o que define a sua linhagem e a sua identidade. Atravs das festas e banquetes, o homem grego expressa o seu status social e sua riqueza, por meio dos quais estabelece e ratifica a rede de alianas necessria para a sobrevivncia da vida em coletividade entre os parentes e amigos prximos e os estrangeiros, com o estabelecimento da relao de philia, ratificada pelo processo da xenia sagrada.

    A arte de cozinhar a carne, o pescado e os produtos base de po e bolos alcanou o ponto de sua codificao impressa a partir do sc. IV a. C. na regio do Egeu, em plena hegemonia ateniense e com o Pireu como ncleo comercial do Mediterrneo. O porto do Pireu mantinha contactos com diversos entrepostos comerciais no Mediterrneo, regio atravessada por mercadores que transportavam uma variedade de produtos desde a Siclia, passando pelo Egito e a regio do Ponto. Mercadores transportavam produtos alimentcios e gastronmicos de acentuado prestgio junto aos symposia privados, delegando ao anfitrio elogios e status por servir as iguarias de alto valor pecunirio aos seus convidados.

    O banquete grego, entendido como refeio comum, se distingue das prticas cotidianas de se alimentar: primeiro pelo nmero de convivas, segundo pela qualidade da culinria e terceiro pelo aspecto do ambiente no qual ocorre a comensalidade. A primeira dificuldade de anlise se pauta na definio do termo banquete, diante de sua diversidade de atuao desde o banquete privado, em celebrao ao nascimento, casamento e morte, refeio comunitria dos banquetes e festas pblicas em honra aos deuses, sempre acompanhada de distribuio de carnes provenientes de sacrifcios de sangue. Ambos detm um carter sagrado, esto submetidos a determinadas regras e inserem-se no processo ritual.

    Existem vrios tipos de banquetes como o do tipo eranos, refeies frugais, em que cada conviva leva a sua cota de participao (N.Theml,1995:152) e dividem entre todos os custos da comensalidade. A reunio e comensalidade subsidiada e rateada entre o grupo serve para reforar o fator relacional entre indivduos que integram o mesmo grupo poltico-social e desejam ratificar a relao de philia e ajuda mtua.

    Nos interessa analisar o banquete privado, no qual o ritual de hospitalidade define a relao de xenia sagrada, que segue os preceitos tradicionais presentes nas narrativas picas de Homero, mas que foi alvo de modificaes atravs dos tempos, quando comparada a obra de Plato intitulada Symposion, a poesia de Ateneu de Nucrates e o dilogo de Xenofonte intitulado Symposion.

    De acordo com Ateneu de Nucrates (livro I) Homero deixa transparecer que a xenia sagrada fazia parte do ritual da hospitalidade, que consistia na oferta de refeio a quem chegava de regies distantes e se qualificava com o epteto de xenos (estrangeiro). Na Ilada e Odisseia a refeio servida aos xenoi

  • 28

    Maria Regina Cndido

    tornava-se um dos elementos que distinguia o homem comum dos homens ricos, assim como dos heris e deuses, pois aquele dificilmente teria acesso a fartura de carne e vinho destinada aos considerados seres especiais.

    A pica homrica dedicou acentuada ateno s questes alimentares e ao comportamento diante do prazer de uma boa mesa. Os alimentos utilizados tornaram-se fator identitrio, pois demarcavam o status social do anfitrio, que expressava a sua posio social ao ofertar a fartura de carne grelhada e tornavam-se fator relacional ao determinar o prestgio do convidado diante da poro e qualidade de carne recebida. Junto aos heris homricos, a hierarquia social se materializa atravs do geras que designa os privilgios, o status social que no banquete simboliza o pedao especial de carne, a taa de vinho sempre cheia e o direito de falar, agir e cantar (N.Theml, 1995:150). Diante de tal constatao podemos afirmar que na, sociedade grega, se voc disser com quem anda e come, do que se alimenta e o que bebe, poderei identificar o seu status social e dizer quem .

    No banquete dos heris homricos, a xenia sagrada denota a riqueza, como nos aponta Nestor e Ulisses no palcio de Peleu (Il. 11. 771-779), na refeio ofertada por Nestor a Telmaco (Od. 3. 404-472) e at na hospitalidade do porqueiro Eumeu ao ofertar carne destinada aos escravos a Odisseu (Od. 14. 45-113). A freqncia e fartura de carne detm o papel social de ostentao e define a riqueza do anfitrio. Assim, Odisseu tinha uma riqueza expressiva estimada em doze manadas de bois e de ovelhas, outros tantos porcos e um nmero igual de carneiros e mais onze rebanhos de cabras vigiadas por homens de inteira confiana (Od.14. 100-104).

    A forma de interagir com os alimentos no banquete denota um modo de vida, define que o grego vive no espao da cultura dos homens tementes aos deuses a quem oferece sacrifcio, com quem participa do banquete sacrifical ao comer a carne de animal domstico sacrificado aos deuses, acompanhado de po e vinho.

    A refeio servida no banquete pblico ou privado segue determinadas regras de elaborao e costumes tradicionais, que devem ser seguidos: o nmero de convivas convidados deve variar entre cinco a oito para uma agradvel refeio entre amigos e, pode chegar a cento e vinte em caso de banquete nupcial (J.Willkins, 2006:71). A primeira etapa do banquete era o deipnon seguido do symposion. No deipnon, o anfitrio serve as carnes assadas e/ou grelhadas provenientes de animais de seu rebanho, sempre acompanhados de po.

    No banquete dos heris homricos, predomina a abundncia de carnes de gado como carneiro, cabra e porco. A carne de origem animal possua um teor de gordura que a tornava macia ao assar e/ou grelhar. A geografia fsica da Grcia nos indica que a maioria de seus terrenos mantm irregularidade

  • 29

    Banquete grego: entre o ritual da philia e o prazer do luxo

    e so montanhosos. Esta caracterstica geogrfica inviabiliza a criao de gado bovino para corte que, diante do esforo da subida e descida de terreno ngreme, desenvolvia os msculos no lugar de gordura, resultando em carne pouco macia e saborosa. O gado bovino integra a economia familiar grega como animal de carga e uso no arado, e a documentao textual indica o seu pouco uso na culinria grega.

    Na seqncia, o symposion define-se como uma forma de organizao social no qual um grupo de homens expressa a sua identidade atravs do ritual de beber e de comer (M.Wecowski, 2001:340). O ato refora as relaes de philia e se distingue da primeira etapa (o deipnon), na qual o anfitrio prestou libaes aos deuses e na seqncia do rito serviu-se a refeio.

    No symposion, predomina a ingesto de vinho, seguida de iguarias servidas em pequena poro e com muita variedade. Porm a etapa marcante o ritual de interao entre os convivas. No banquete homrico, cada participante se fazia conhecer atravs do dilogo. Os ingredientes servidos eram compostos de pastis cozidos, po, carnes de ganso e pombo, queijo e mel. Entre as iguarias apresentadas aos participantes do banquete havia tambm a msica, acompanhada por poetas, citaristas e flautistas.

    Nessa etapa, o anfitrio interroga o hspede, que traz aos demais convidados memria de seus ancestrais, demarcando a sua regio de origem, o nome de sua famlia e linhagem, as motivaes de sua viagem e visita e refora a possibilidade de retribuir a boa acolhida. A tradio mantm-se atravs do ritual de identificao, que se torna o fator identitrio dos integrantes da elite aristocrtica no perodo homrico, reafirma a relao de philia e ratifica o ritual da xenia sagrada do mundo helnico.

    Ento, nos questionamos: o que mudou nos banquetes privados a partir do final do periodo clssico e incio do helenstico? Partimos do princpio que a comensalidade dos gregos, identificada como banquete, configura-se como um lugar de fala dos homens da aristocracia e da oligarquia mediterrnea, cujo agon se faz presente atravs da ostentao da riqueza, de prestgio e de disputa poltica, potica e amorosa. A partir do sc. V a. C., percebe-se uma expanso junto ao horizonte gastronmico na Grcia, principalmente em Atenas, de onde provm a maioria das informaes.

    Nos banquetes narrados por Homero na Ilada e na Odisseia, as iguarias predominantes eram as carnes grelhadas acompanhada de po e vinho. A carne, denominada de kreas, um alimento que circulou no imaginrio social do grego do perodo homrico, associada ao ritual de sacrifcio. O carter religioso conservou-se at o perodo clssico: a cozinha e o sacrifcio aos deuses mantiveram uma estreita relao, como nos aponta a presena do mageiros, termo funcional que designa cozinheiro, aquele que escalpela o animal e o sacrifica aos deuses (A. M. Atienza, 2007: 43). Para o grego do perodo clssico

  • 30

    Maria Regina Cndido

    o luxo estava na abundncia de carne, como lebre, porco, javali e pequenas aves.

    Porm, nos primrdios do perodo helenstico, como nos aponta Arqustrato de Gela, o sinal de opulncia estava na presena de peixes exticos, presente no cardpio do banquete. O peixe passa a ser valorizado pelos symposiastai devido ao local de procedncia e ao sabor. O luxo alimentar era determinado pela presena de pores de peixes no banquete, preparados maioritariamente de forma simples, com azeite e sal, visando manter o sabor e o aroma peculiar.

    A ausncia de pescado junto dieta dos heris homricos pode ser atribuda ao fato de o peixe no ser um animal domstico, ser procedente do chaos (abismo) do mundo subterrneo, no fazia parte da caa que forma a metis do guerreiro aristocrtico, assim como no permite estabelecer o geras do heri. Entretanto, o status social da dieta base de alguns peixes considerados nobres mudou atravs do tempo, tornando-se alimento apreciado pelos emergentes enriquecidos com as atividades comerciais e mercantis, segmento social envolvido em atividades eminentemente urbanas. Estes identificados como elementos da oligarquia, frequentam o mesmo ambiente social da aristocracia, embora a sua riqueza provenha das atividades comercial e mercantil.

    De acordo com Wilkins-Hill (2006: 24) o gosto pelo excesso e pelo luxo parece ter sido o resultado da interao cultural com as regies costeiras da Jnia na sia Menor, em constante contato orientalizante com a realeza palaciana persa. Os ingrediente narrados por Arqustrato demarcam ligaes entre metrpoles e emporia e e apoikiai, regies demarcadas pelas relaes de trocas mercantis e comerciais ao longo do Mediterrneo.

    Podemos afirmar que a tendncia ao luxo junto elite ateniense emergiu no perodo da tirania de Pisstrato, que realizava banquetes seguindo o estilo de suntuosidade oriental dos persas e dos macednios (Wilkins-Hill, 2006: 43). O modelo de banquete persa foi apreendido pelo grupo emergente integrante da oligarquia ateniense, no final do perodo clssico. A presena deste segmento social pode ser identificada atravs da imagtica dos vasos ticos, de cuja observao podemos estabelecer uma relao binria de oposio: de um lado temos a aristocracia tradicional agrria (que demarcou a sua posio social junto a polis, mantendo a tradio e os costumes homricos junto aos simpsios e banquetes gregos), do outro lado, temos os emergentes da oligarquia, associada aristocracia citadina ateniense (ambos apoiam os preceitos da democracia, cuja imagtica era demarcada por encomendas de vasos com representaes de atividade manual tipicamente urbana). Entretanto, percebemos, atravs das imagens, que os dois segmentos sociais frequentam o banquete privado, tornando difcil distinguir a diferena visual de status e a provenincia da riqueza.

  • 31

    Banquete grego: entre o ritual da philia e o prazer do luxo

    As ambiguidades entre aristocratas e oligarcas tornam-se visveis atravs das crticas presentes na documentao textual impressa, como o panfleto do Velho Oligarga, na obra Repblica dos Atenienses, do filsofo Demcrito de Abdera. Plato na Repblica recomenda a ingesto de vegetais para a efetivao de uma dieta saudvel, entendida por ns como uma crtica ao luxo e ao prazer da boa mesa. Plato ratifica as suas crticas na obra Banquete, onde coloca, no lugar de iguarias exticas, um banquete de palavras que deixa transparecer um conjunto de advertncias a presena de excesso e de novos costumes introduzidos pelos emergentes das atividades comercial e mercantil.

    O banquete mantm a tradio de ser dividido em etapas distintas e separadas, como nos aponta Pauline Schmitt Pantel (1992: 4): deipnon e o symposion. Na etapa do deipnon os gregos serviam os alimentos slidos como cereais e as carnes sob diversas formas, e a segunta etapa estava destinada a consumao do vinho, previamente preparado. Segundo Ateneu de Nucrates (11. 782a), a preparao de um bom vinho consistia em colocar trs partes de gua cristalina na taa, seguidos de uma quarta parte com vinho. O anfitrio recebia seus hspedes e os escravos lavavam-lhes as mos com gua perfumada para em seguida serem coroados com grinaldas pelo anfitrio. Os convivas reclinavam-se aos pares, pelo lado esquerdo, em almofadas e usavam a mo direita para interagir com os alimentos, colocados em pequenas mesas (trapezai) baixas, localizadas a frente dos convivas. As iguarias eram servidas pelo cozinheiro, pelos escravos e por vezes por jovens efebos aspirantes cidadania.

    Nos chama a ateno o fato de as imagens de banquete privado evocarem os prazeres da vida cotidiana, ao mesmo tempo em que nos apontam a realizao do banquete como uma atividade ritualizada. As imagens demarcam o costume entre os convivas em fazer circular a taa de vinho sempre no mesmo sentido, ou seja, da esquerda para a direita, como citou Ateneu ao trazer a referncia de Crtias na obra Constituio dos Lacedemnios. Crtias mencionou que os gregos bebiam em largas taas, passando-as atravs da mo direira e que os atenienses tambm tm por costume e tradio beber o vinho em pequenas taas, fazendo-as circular pelo lado direito (11. 504 a-b). Ao mesmo tempo brindam o conviva, que est ao seu lado direito, oferecendo um hino, uma poesia ou um desafio, que s poder ser respondido pelo desafiado quando a taa de vinho completar o crculo e chegar novamente em suas mos. Era o tempo necessrio para minimizar e/ou espairecer a erupo de alguma animosidade provocada pelo desafiante.

    Em tempos remotos, no perodo arcaico, durante o simpsio costumava-se fazer circular entre os convivas uma ctara e um ramo de mirra. No perodo clssico e helenstico, junto com a taa de vinho, circulavam tambm elogios, poesia e desafios, que deveriam ser respondidos aps terminar o crculo,

  • 32

    Maria Regina Cndido

    como deixa transparecer Aristfanes nas Vespas (vv.1219-1248). A palavra symposion detem o prefixo syn-, que traz o sentido de coeso de um grupo ou comunidade. Diante de tal conceito, os convivas do banquete, nesta etapa do ritual, sentem-se como integrantes de uma comunidade de iguais, diante da disposio circular do espao e das acomodaes.

    O banquete no perodo clssico e helenstico desponta para um novo tempo, em que o ato de beber e de comer em crculo, seguindo sempre em direo a direita, significava que todos estavam em igualdade de posio, assegurando a coeso do grupo e ratificando o fator relacional entre os convivas. A disposio circular no permitia o destaque na posio de honra ao anfitrio, hspede e demais simposiastas. Ou seja, no havia hierarquia e nem espao para o geras (a parte de honra ofertado pelo anfitrio ao hspede). Nenhum conviva detm destaque ou omisso, o simposiasta responsvel pelos procedimentos programados deve manter o rigor da igualdade entre os convivas, que pertenciam a grupos sociais distintos e provinham de regies estrangeiras. A direo circular da taa de vinho, sempre em direo do lado direito, serve para controlar a participao nas competies, assim como as respostas aos desafios. No podemos esquecer que se tornara comum nos simpsios a precariedade de comportamento aps a ingesto de algumas taas de vinho, fato que resultava na emerso da hybris, do excesso e da descompostura atitudes criticadas por Plato e Xenofontes em suas obras, mas perpetuadas pelos defensores dos prazeres da uma boa mesa, presentes nos escritores que retomam o estilo da pardia pica, no final do perodo clssico e durante o helenstico.

  • 33

    Banquete grego: entre o ritual da philia e o prazer do luxo

    Bibliografia

    D. P. Aquilar, (2006), El panorama literrio tcnico-cientifico em Roma (siglos I-II D.C). Et docere et delectare, Acta Salmanticensia. Estudios Filolgicos 312. Salamanca.

    A. M. Atienza (2007), Comedores de pan y bebedores de vino: la cuestin alimentaria en la Odisea, Circe 11: 41-56.

    A. C. C. Lima (2000), Cultura popular em Atenas no V sec. Rio de Janeiro. S. D. Olson and A. Sens (1999), Matro of Pitane and the Tradition of Epic

    Parody in the Fourth Century BC. Atlanta.P. Schmitt-Pantel (1992), La Cit au Banquet. Histoire des repas publics dans

    les cits grecques. Rome.M. Wecowski (2002), Towards a Definition of the Symposion, in T. Derda,

    J. Urbanik and M. Wecowski, Studies Presented to Benedetto Bravo and Ewa Wipszycka by their Disciples. The Journal of Juristic Papyrology, Supplement 1: 337-361.

    J. M. Wilkins and S. Hill (2006), Food in the Ancient World. Oxford. (2011), Archestratus: Fragments from The Life of Luxury. Totnes.N. Thelm (1995), As realezas em Homero: Gras e Tim, Phonix V. 1: 147-

    155.

  • 35

    Arte Culinria em Xenofonte, Plato e Aristteles

    Arte Culinria em Xenofonte, Plato e Aristteles

    Carmen SoaresUniversidade de Coimbra

    A Histria da Alimentao, na Antiguidade, faz-se com base numa diversa e vasta galeria de fontes escritas. Aquelas em que primeiro pensam os estudantes, sobretudo os no iniciados nesse Mundo Novo das culturas grega e romana, so os hoje to triviais livros de culinria. E, de facto, quando buscamos os mais antigos exemplares do gnero deparamos ns os frequentadores habituais dessa literatura primeva, tantas vezes esquecida numa estante inacessvel ou simplemente desconhecida deparamos, dizia eu, sem grande surpresa (pois outra coisa no espervamos) com diversos ttulos, nomes de autores e receitas vrias. O entusiasmo do professor/investigador legtimo, mas como aconselham os grandes nomes do pensamento grego clssico, deve ser pautado pela moderao! A verdade que, fruto das vicissitudes de uma transmisso multissecular e do papel marginal que no panorama literrio geral, tais obras tinham, o que hoje at ns chegou de uma produo escrita que, a avaliar pelas referncias numerosas, ter sido abundante, so fragmentos, i. e., algumas migalhas que no chegam para saciar a nossa gula bblika expresso que aqui emprego, naturalmente, no seu sentido etimolgico! Importa, no entanto, dar a conhecer, livrando do esquecimento e invertendo uma tendncia (qui inadvertida) para silenciar parte da nossa identidade cultural, ao pblico portugus, na sua lngua materna, esse patrimnio.

    No pretendo, contudo, apresentar essas iguarias arcanas nem falar dos que delas nos deixaram o seu registo em obras designadas tanto pelo ttulo genrico de livros de culinria ( , letra livros para a preparao dos cozinhados), como por textos especializados em determinadas reas gastronmicas (vd.: , glossrios de culinria; , tratados de pastelaria; , livro dos peixes salgados; , livro dos vegetais)1. O meu objectivo reforar a ideia de que, tal como hoje, nos scs. V e IV a. C., a culinria era uma rea que estava na moda, um tema de discusso de tal forma actual e transversal que, a par da j referida proliferao de bibliografia especializada (quem sabe se motidada por esse boom literrio), no deixou alheios dois sectores que marcaram a cultura clssica: um artstico a produo teatral cmica; outro filosfico as elites intelectuais descendentes da filosofia humanista (i. e., orientada para a reflexo/questionamento sobre o

    1 Assunto cuja abordagem iniciei em C. Soares 2010.

  • 36

    Carmen Soares

    homem na sua complexidade tica e poltica) de Scrates. No me debruarei sob o legado riqussimo que os autores de comdia nos deixaram2, mas atentarei no bem menos abundante contributo de dois nomes maiores da filosofia grega antiga, Plato e Aristteles, bem como da figura menos conhecida do pblico contemporneo em geral, Xenofonte, que, tal como o primeiro, ter frequentado os crculos de discpulos do mestre, Scrates, cujos ideias e memria ajuda a reconstruir e a reabilitar nos seus Dilogos Socrticos.

    O meu interesse em proceder a uma anlise das parcas migalhas que estas fontes srias (adjectivo aqui tomado enquanto antnimo de cmicas) nos legaram sobre a culinria foi motivado por uma questo que me tem assaltado e para a qual, numa investigao que ainda considero por fechar, no creio ter j encontrado uma resposta satisfatria, e que a seguinte: em que conta eram tidos na Grcia Clssica, pelos seus contemporneos, o conjunto de saberes (alternativamente denominados de e ) culinrios e, por inerncia, os profissionais e/ou entendidos na matria3? Deveremos limitar-nos apenas imagem de pedantes, charlates e gabarolas, presente na comdia?

    No obstante algum exagero que a pincelada satrica dos comedigrafos tenha imprimido aos retratos desses sbios culinrios (formados em astrologia, medicina, geometria, estratgia e aritmtica como enfatiza, a ttulo de exemplo, o cozinheiro do frg. 1 K-A de Nicmaco), a verdade que, na obra mais completa que possumos do gnero, os cerca de 60 frgs. do mais antigo Guia Gastronmico Hedypatheia (Iguarias do Mundo) de Arqustrato de Gela (sc. IV a. C.), evidente a preocupao do autor em sujeitar a preparao das suas receitas a aspectos que, se seguirmos a sugesto do referido cozinheiro de Nicmaco, se afiguram familiares s cincias atrs enunciadas. A noo de que as estaes do ano influem na qualidade dos peixes poderia fazer pensar na necessidade de possuir conhecimentos bsicos de astrologia4; o nmero de convivas conveniente para um banquete e a disposio, em frente de cada um, de uma fina mesa (frg. 4), poderiam requerer conhecimentos de aritmtica e geometria; no fundo, a obsesso de Arqustrato pela excelncia dos produtos usados, bem como as indicaes do papel decisivo que sobre ela podem exercer os temperos5, fariam pensar, tambm, na conscincia que o cozinheiro e

    2 Vd. M. Garcia Soler 1996, 2008, 2009 e M. F. Silva 2012.3 Refiro-me a duas categorias distintas: os profissionais so indivduos que vivem do salrio

    enquanto cozinheiros; os entendidos correspondem a pessoas que conhecem a arte, no para dela tirarem o seu sustento, mas pelo interesse que sentem em conhec-la e dela fazerem, eventualmente, um uso pessoal. neste ltimo tipo que se incluiria Arqustrato, motivado, ao que podemos supor, para a redaco do seu guia gastronmico pelo desejo de partilhar a sua arte com um ciclo de amigos (e no clientes).

    4 Assunto presente em vrios frgs. de Arqustrato, citados pela edio de Olson-Sens: 27, 31, 33, 34, 35, 36, 37, 42, 45, 50.

    5 Veja-se as observaes do siciliano a propsito da preparao do barbudo e do robalo

  • 37

    Arte Culinria em Xenofonte, Plato e Aristteles

    especialista gastronmico deveriam ter dos benefcios/prejuzos que aqueles podem trazer sade dos comensais. Ou seja, por mais exageradas que sejam as caricaturas dos mestres da arte culinria na comdia, a realidade que a leitura do nico livro que conhecemos, em alguma extenso, da literatura gastronmica grega antiga, deixa perceber o fundo de verdade dessa caricatura. Ou seja, nos scs. V e IV a.C., a arte culinria atingira um patamar de desenvolvimento e sofisticao tal que, numa altura em que a discusso epistemolgica em geral se produzia de forma consistente nos crculos de intelectuais, era natural que esta abrangesse reas emergentes, como parece ser o caso da arte culinria.

    O mtodo que segui para proceder ao presente estudo partiu, antes de mais, do levantamento dos passos em que Xenofonte, Plato e Aristteles empregam ou o substantivo ( letra: o acto de fazer/confeccionar opson), tradicionalmente vertido para portugus por cozinha/culinria ou os adjectivos da mesma famlia, e o primeiro formado do substantivo acabado de referir (cuja raiz comum tambm ao nome , que letra significa aquele que faz/confecciona opson) e o segundo de ( letra: aquele que realiza um sacrifcio e cuja carne cozinha) ambos a qualificar os substantivos (expressos ou subentendidos) e .

    Dos dois pensadores que ainda viveram no sc. V a. C., comecemos por Xenofonte, aquele que desapareceu primeiro e cuja reflexo sobre a questo, at por no ser epistemolgica, mais prxima estar da viso que a populao comum tinha do acto de confeccionar opson, a . Antes, porm, de atentarmos nas suas palavras (Memorveis 3. 14. 5-6), importa lembrar que o termo , que entra na composio do substantivo, designava, genericamente, tudo o que cozinhado e que, numa altura em que se levava os alimentos boca com as mos, vinha sempre acompanhado por po (/). Ou seja, h que distinguir duas componentes essenciais da refeio dos Gregos Antigos, o po, elemento bsico da sua alimentao, e tudo o que o acompanha, o chamado acompanhamento ou, em linguagem popular portuguesa, conduto (formada do particpio passado do verbo latino conducere, remetendo, pois, para essa funo de ser conduzido boca pelo po) categoria em que se incluem, como comemos por afirmar, no s os alimentos cozinhados, mas tambm outros, como os primordiais queijo e mel (de presena constante nos testemunhos escritos da poca Arcaica, indispensvel s mesas dos heris

    (frg. 46): Por serem tenros, grelha-os cuidadosamente, sem os escamares, e serve-os regados com um molho salgado. No deixes que se aproxime de ti nenhum tipo de Siracusa, nem de Itlia, quando estiveres a confeccionar esse prato. A verdade que no sabem preparar peixe de qualidade; antes o estragam por completo, pois tm o mau gosto de acompanhar toda e qualquer comida de queijo e regam-na com um vinagre de vinho e um molho salgado enriquecido com slfio.

  • 38

    Carmen Soares

    picos dos Poemas Homricos6 e dos ambientes descritos por poetas lricos, de que destaco Xenfanes7).

    Que o po e os cozinhados correspondem a dois domnios de conhecimento e aco bem distintos no universo cultural alimentar da antiga Grcia, confirmamo-lo pela perfeita distino que havia entre os profissionais e as artes que lhes correspondem: os padeiros-pasteleiros, por um lado, e os cozinheiros, por outro. Alis, ao nvel de literatura gastronmica, essa distino era bem ntida, pois, alm de autores de livros de culinria( ), Ateneu refere Crisipo de Tiana (scs. II-I a. C., natural da Cilcia, na sia Menor), a quem atribui um livro da padaria ( , cf. 3. 113 a, 7. 326 e, 14. 647 c). No entanto, a distino entre padeiros e pasteleiros, tal como hoje, no seria de regra, como percebemos pelo ttulo de mestre pasteleiro ( , cf. 14. 648 b) pelo qual o enciclopedista designa esse mesmo indivduo8.

    Mas no prprio texto de Xenofonte que deparamos com o esclarecimento inequvoco de que o sentido a dar a esse de acompanhamento do po. No ltimo captulo do livro III dos seus Memorveis, a personagem Scrates discute com os amigos o sentido da palavra , habitualmente traduzida por comilo (A. Pinheiro 2009: 222-223), mas cujo sentido etimolgico me interessa recuperar, na esteira, alis, do que prope o filsofo aos seus convivas. A situao que faz com que Scrates proponha uma definio do nome ver que, entre os convivas, h um que deixa o po e come s o conduto ( , , 3.14. 1-2). Conforme comea por esclarecer o filsofo, tal comportamento s no deve merecer ao seu praticante o rtulo pejorativo de opsofagos, se ditado por razes dietticas, i. e., exigido por um qualquer regime ( , 3. 14. 2). Mas, quando a razo que o leva a consumir exclusivamente o acompanhamento a gula, traduo que damos, no contexto, ao termo (com o sentido geral de prazer, gozo, fruio, cf. ibidem: ) ou quando se verifica uma evidente desproporo entre a quantidade dos dois elementos indissociveis (i. e., como se l no texto: algum que come muito conduto em cima de/com pouco po, , , , 3. 14. 4-5; ou que se serve de conduto com po em vez de po com conduto, , 3. 14. 5-6), nestas duas circunstncias estamos

    6 Cf. e. g., Il. 11. 631, Od. 10. 234.7 Fr. 1, v. 10 Diels.8 Outros autores de livros de pastelaria mencionados so: Egmio, Hegesipo, Metrobo e Feto

    ( , 14. 643 e).

  • 39

    Arte Culinria em Xenofonte, Plato e Aristteles

    perante um opsofagos, termo que prefiro, pois, traduzir por guloso9! A gula, que o cristianismo haveria de condenar de forma implacvel, ao conferir-lhe lugar entre os sete pecados mortais, encerra desde cedo, como acabamos de perceber, uma conotao negativa. No se trata, neste perodo pr-cristo, de uma censura baseada numa moral religiosa, mas sim na transgresso que a mesma representa relativamente a um dos valores norteadores da tica do Homem Grego das pocas arcaica e clssica, a moderao (sophrosyne).

    Toda esta reflexo sobre o sentido de um nome composto da palavra opson, no deriva do mero interesse que as questes filolgicas nos despertam, mas sim do esclarecimento que podem trazer ao propsito da nossa investigao: fazer o retrato da arte culinria (opsopiia), tal qual nos a apresenta Xenofonte. Alis o prprio autor que nos sugere esta aproximao, uma vez que remata o debate entre Scrates e os companheiros sobre o sentido do termo opsofagos, pondo na boca daquele questes que nos elucidam quanto autonomia que, no sc. V a. C., se reconhecia arte culinria e respectivos mestres. A techne de produzir opsa era comumente vista como o saber cujo domnio permitia fazer da alimentao um acto de fruio/prazer. Uma vez mais, o sentido original da fonte em anlise que apoia esta interpretao.

    Atentemos, pois, no passo 3. 14. 5-6 dos Memorveis:

    , , , , 10 ; 11 , , , , . , ;

    Numa outra ocasio, ao ver um dos convivas a comer vrios acompanhamentos com uma nica fatia de po, Scrates perguntou: Haver uma cozinha mais dispendiosa ou que mais arruine os condutos do que a que confecciona um indivduo que os costuma no s comer em grande quantidade, mas tambm provar de todo e qualquer tipo de temperos? De facto encarece-a, quando mistura mais temperos que os cozinheiros! Enquanto estes no os misturam

    9 Termo usado para aquele que s quer comer o que lhe d prazer.10 Subentende-se o substantivo anteriormente referido, com o qual concorda, sintaxe

    que alude ao retrato atrs descrito do opsofagos, como o indivduo que (e aqui a expresso usada no sing.) come muito conduto ( ).

    11 Complemento directo de , a concordar com , que se subentende da orao anterior.

  • 40

    Carmen Soares

    de forma aleatria, o dito fulano, ao fazer a sua mistura no obstante os cozinheiros a saibam fazer correctamente comete erros e acaba por arruinar a arte deles. Pois bem, ento no ridculo que cozinheiros daqueles que conhecem as melhores especialidades se tenham empenhado na preparao de um cozinhado e que o tal tipo altere o que eles fizeram, no respeitando a sua arte?

    A culinria um saber do domnio de entendidos e, como rea de especializao que (i. e., com um objecto e conhecimentos prprios), merece o respeito dos que a desconhecem. E respeito significa, muito concretamente, no interferir no que ela tem de essencial, a saber: mistura/combinar (), de forma correcta ( ) e ajustada (), o que torna agradveis os alimentos (, sentido literal para a palavra grega, regra geral traduzida em portugus por temperos, condimentos). Note-se que a referncia ao consumo indiscriminado de todo e qualquer tipo de temperos ( ), tpica do guloso, denuncia que, ao invs dessa prtica, a arte culinria, que aquele no possui, dota os seus detentores no s de competncias relativas confeco propriamente dita, mas tambm seleco dos ingredientes. Estes domnios de conhecimento so, podemos deduzi-lo das palavras de Xenofonte, o segredo dos profissionais! Todos os esforos de amadores para se aventurarem na culinria so vistos como um capricho caro, uma extravagncia. Na verdade, como se depreende do contexto, os gastos de uma refeio aumentam significativamente quando o consumo do componente mais dispendiosa (os opsa) predomina de tal forma sobre o po que este at pode ser suprimido ou quando se carrega um cozinhado de toda a espcie de condimentos, alguns, devido sua raridade, verdadeiros produtos de luxo. Em suma, podemos retirar da argumentao de Scrates a concluso de que o opsofagos corresponde a um padro gastronmico situado nos antpodas da arte culinria, que, tal qual vem delineada por Xenofonte, pressupe no s o respeito pelo equilbrio que na refeio deve ser dada ingesto de po e dos respectivos acompanhamentos, mas tambm uma utilizao regrada e com regra dos hedusmata.

    Passemos, agora, aos testemunhos que sobre arte culinria at ns chegaram da obra de Plato, o mais clebre filsofo socrtico. Embora, no total da sua produo, os passos dedicados ao assunto confirmem que no passam tambm de migalhas, interessante notar que se dispersam por quatro dilogos, que, se seguirmos a cronologia tradicional de composio, cobrem o conspecto geral da vida literria do autor. A reflexo mais longa regista-se numa obra da primeira fase, o Grgias; ao grupo dos dilogos intermdios pertencem a Repblica e o Banquete; finalmente, do ltimo perodo, temos o Poltico.12. Que o pensador

    12 No obstante a maior ou menor controvrsia que sobre a datao de cada um dos dilogos

  • 41

    Arte Culinria em Xenofonte, Plato e Aristteles

    aborda a questo sob prismas diversos a concluso mais importante que tiramos, como passarei a demonstrar, do confronto entre os testemunhos da obra considerada mais antiga, o Grgias, e a mais recente, o Poltico.

    Antes, porm, dessa tentativa de delinear as perspectivas de Plato (leia-se veiculadas por Plato e, no forosamente da sua autoria), devo insistir que o facto de, ao contrrio do que sucedia em Xenofonte, o seu discurso se revestir de uma preocupao de natureza epistemolgica clara (ou seja, insere-se em contextos de definio da episteme/techne), no significa que ponha de parte a concepo tradicional comum (leia-se no filosfica) de culinria. Muito pelo contrrio. Comeo, pois, por destacar que o autor se filia nessa tradio, ao identificar como seu elemento caracterizador o prazer.

    excepo do Poltico, em todos os outros trs dilogos se enfatiza a importncia da hedone nesse retrato. No Grgias, texto em que o tema mais longamente tratado (462 b-466 a 3; 501 a 7-501 b), a culinria serve de modelo para ajudar Scrates a explicar ao seu jovem interlocutor a natureza no cientfica da retrica. Ou seja, assistimos recusa clara em aceitar a atribuio do estatuto de arte/cincia opsopoiia. Mais ainda, essa excluso tem por argumento validatrio precisamente o elemento geralmente visto como identitrio da mesma, e que Plato refere pela expresso a produo de alguma espcie de satisfao e de prazer ( , 462 c 7). Como aclara Scrates, nesta dimenso hedonista que reside a razo para afirmar que a culinria, tal como a retrica, no uma techne, mas um conhecimento emprico e um acto rotineiro13.

    Comeamos, a partir deste ponto, a levantar a argumentao filosfica usada para retirar culinria o ttulo de arte, que geralmente o vulgo lhe reconhecia. S percebemos (ns e os contemporneos de Plato desconhecedores do pensamento da Academia, i. e. a maioria dos Atenienses) o significado da distino entre techne e empeiria, se atentarmos na explicao apresentada. E esta radica em trs critrios: a natureza (physis), a causa (aitia) e a razo ou princpio lgico (logos). Enquanto a medicina (uma techne, precisamente adjectivada de ) examina a natureza do paciente de que cuida, ocupa-se da(s) causa(s) do tratamento e tem uma explicao racional para todos os seus actos, a culinria (uma empeiria, adjectivada de ), ao invs, apresenta um perfil completamente a-cientfico ( , 501 a 4),

    se tem colocado (e continuar, seguramente, a colocar), decidi considerar os textos de acordo com esta ordem cronolgica, no por considerar irrefutvel a tese de que nesta se percebe uma evoluo no pensamento do autor, mas porque, no que ao mbil concreto da minha presente investigao diz respeito, essa ordem de anlise me conduziu formulao da hiptese de leitura de que Plato no oferece um retrato nico de arte culinria.

    13 Cf. 463 b 3-4: , , .

  • 42

    Carmen Soares

    pois no examina a natureza, nem a causa do seu objecto (o prazer), alm de que no produz um discurso baseado no raciocnio lgico; consiste, sim, em preservar a memria do que costume fazer-se atravs de uma rotina e de um conhecimento emprico, processo pelo qual se criam sensaes agradveis14.

    No esqueamos que precisamente este ltimo aspecto o que permite clarificar uma distino que, como vimos atrs em Xenofonte, para o senso comum ou para apenas alguns praticantes mais pretensiosos da arte no estava definida de forma inequvoca. Estamos a falar da confuso que reinava entre as profisses (, cf. 462 e 6) de mdico e cozinheiro, indefinio que se estendia aos domnios das competncias e saberes respectivos. O desfazer do engano s se atinge se, como prope a personagem Scrates, se analisar o assunto luz de um dos raciocnios nucleares do que costuma designar-se de pensamento de Plato, vulgarmente conhecido por teoria das ideias/formas. Ou seja, quando declara que a retrica um eidos (ideia/forma, 263 d 5) e um eidolon (simulacro, 463 d 2), porque parece, mas no , ou seja, pertence ao mundo das aparncias e no das essncias,15 a personagem subentende a aplicao deste mesmo raciocnio a todas as empeiriai (entre as quais, a culinria16), que anteriormente declarou incluir num mesmo grupo, denominado kolakeia (adulao 463b 1), onde inclui a culinria (alm da sofstica e da esttica). Ou seja, uma empeiria uma adulao de uma techne, faz-se passar (cf. 464 c 7: ) por aquilo que no .

    Este raciocnio, aplicado ao objecto do nosso estudo, e como esclarece o Scrates do Grgias, significa que a culinria um simulacro da medicina (464 d 3-4). Mas h quem no possua este entendimento esclarecido, sujeitos que a personagem do dilogo aventa s poderem ser adultos to insensatos quanto crianas (464 d 6-7), a ponto de atribuirem ao cozinheiro uma competncia que prpria do mdico: o saber distinguir os alimentos benficos ( , 464 d 4-5; , 464 d 7) dos prejudiciais (, 464 e 1) ao corpo. Porque busca os prazeres, sem cuidar das virtudes17 que a culinria (tal como a retrica, a sofstica e a esttica) no pode ser uma arte/cincia.

    Ecos deste retrato disfrico de culinria encontramo-los em outros dois passos da obra do fundador da Academia. Na Repblica (332 c), as personagens repetem a ideia de que medicina e culinria se distinguem claramente. A

    14 Cf. 501 a 7-b1: , .

    15 A propsito do exemplo ilustrativo da sade refere: a que parece, mas no ( , , 464 a 2-3).

    16 As restantes so a esttica e a sofstica.17 Cf. 465 a 1-3: , .

    .

  • 43

    Arte Culinria em Xenofonte, Plato e Aristteles

    omisso de qualquer referncia diferena entre empeiria e techne pode talvez ser interpretada como um indcio de desvalorizao da operatividade do primeiro conceito, uma vez que no volta a ser recuperado em nenhum dos segmentos em que Plato retoma o assunto arte culinria. Aqui, como nos dois passos que nos falta analisar, emprega-se, sem reservas, a denominao arte/cincia culinria (mageirike/opsopoiike techne/episteme). No que o que as personagens de Plato dizem pressuponha, nesta mudana de discurso, o abandono dos princpios subjacentes teoria das ideias/formas. Parece-me, sim, que esta mudana decorre do que julgo ser um dos traos mais fascinantes do seu legado: o compromisso do filsofo com o mundo que o rodeia. Se a culinria chamada uma arte (como se l em Resp. 332 c 12: .), tal como se diz arte mdica (cf. Resp. 332 c 8: .), no por algum reproduzir essa v