contributos para a construção de um roteiro sobre a ... · após o estudo do plano, e tendo em...
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Contributos para a construo de um Roteiro sobre a
Violncia Domstica para o Municpio do Porto:
Uma experincia de estgio curricular numa Autarquia
Maria Joo Parreira do Rosrio
Relatrio de Estgio apresentado na Faculdade de Psicologia e de Cincias da
Educao da Universidade do Porto, para obteno do grau de mestre em Cincias da
Educao sob a orientao da Professora Doutora Cristina e Rocha e co-orientao da
Professora Doutora Maria Jos Magalhes
Outubro de 2017
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Resumo
A violncia domstica um flagelo que tem bastante impacto na nossa sociedade.
Construda social, cultural e individualmente, numa sociedade machista e patriarcal,
constitui um problema transversal a toda a sociedade e apresenta impactos devastadores,
no apenas na(s) vtima(s), mas em todos/as ns. Torna-se, por isso, essencial, a
preveno, combate e interveno para a sua erradicao, nos diferentes nveis: quer na
implementao de medidas de poltica social e legislativa, quer numa interveno
especfica com vtimas e reeducao de agressores, quer, ainda, ao nvel da preveno
primria, junto das faixas etrias mais jovens, visto serem consideradas um forte elo de
mudana e rutura com as vises estereotipadas da atualidade.
A Cmara Municipal do Porto, atravs da Diviso de Ao Social, onde tive
oportunidade de desenvolver o estgio curricular, apresenta, nos seus diversos projetos,
uma preocupao com este problema social to complexo. Neste sentido, foi
desenvolvido o V Plano Municipal contra a Violncia Domstica (2013-2015),
constituindo-se como o pilar orientador da minha ao na CMP. Aps o estudo do Plano,
e tendo em conta as necessidades manifestadas pela Diviso, foi-me proposta a construo
de um Roteiro sobre a Violncia Domstica, para a cidade do Porto. O tempo disponvel
para o estgio (seis meses) no permitiu a construo de um Roteiro exaustivo, mas a
construo de um guio orientador, com vrios contributos.
Salienta-se que, nestes contributos, constam vrias informaes, como por
exemplo, um amplo quadro terico sobre a violncia domstica, a legislao, os projetos
em vigor em algumas das instituies que atuam nesta rea. Salienta-se, ainda, o contacto
e a realizao de entrevistas com instituies especializadas e com Juntas de Freguesia,
para captar as percees das/os profissionais em relao violncia domstica.
A importncia do documento elaborado revela-se pela sua utilidade como
ferramenta de trabalho, no apenas para a CMP, mas tambm para todas as pessoas e
instituies interessadas em intervir neste campo. Acreditamos que a interveno de
um(a) especialista em educao e, neste caso, no desenvolvimento deste tipo de pesquisa,
se revelou fundamental, pela abrangncia terica e tica da sua formao, assim como
pelo trabalho metodolgico desenvolvido, nomeadamente, ao nvel dos procedimentos de
recolha de dados documentais e presenciais acionados.
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Abstract
Domestic violence is a scourge affecting our community to a great extent. Being
socially, culturally and individually built in a chauvinist society, this is a problem that
affects the entire society and it carries devastating effects, not only on the victims but as
well on all of us. Therefore, it is essential to prevent it, to fight it and to intervene in
multiple levels to eradicate it, such as: in implementing social and legislative policies, in
leading specific approaches to the victims and in the re-education of the abusers, and at
the level of primary prevention, addressing youngsters, taking into account that this is an
age group that is able to bring a change dissolving stereotypical misconceptions.
The City Council of Porto, through the Division of Social Action, where I had the
opportunity to complete my curricular internship, raises its concern regarding this
complex social problem in many of its projects. In this regard, the V Municipal Plan
against Domestic Violence (2013-2015) was developed, which was the main guidance of
my work in the City Council of Porto. After studying the Plan, and after taking into
account the needs that the Division expressed, I was offered the proposal of making a
Guide on Domestic Violence in Porto. The internship time I had (six months) did not
allow me to the produce a thorough Guide, but it allowed me the conception of a guide,
with many different contributions.
It is important to stress that these contributions include several information,
namely a theoretical framework on domestic violence, the current legislation, and the
ongoing projects in some of the specialist institutions working in this field. It it important
to emphasize as well the approach and the interviews held with the institutions and with
the town councils, by which it was possible to apprehend the perceptions of the
professionals in the matter of domestic violence.
The importance of this document is highlighted by the utility it has as a working
tool, not only for the City Council of Porto, but also for all the people and institutions
willing to work in this field. We have concluded that the intervention of an educational
expert, particularly in regard with the development of this type of research is essential,
due to its ethical and theoretical grounding, and also due to the methodological work that
was made, in particular, the procedures that were developed in collecting documentary
and data collected in person.
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Rsum
La violence domestique est un flau impactant toute notre socit. En tant
construite au niveau social, culturel et individuel, dans une socit machiste et patriarcale,
la violence domestique est un problme transversal lensemble de la socit, ayant des
impacts dvastateurs, non seulement sur la victime, mais aussi sur nous tous. La
prvention, le combat et lintervention sont donc essentielles pour radiquer la violence,
et ceci diffrents niveaux: soit dans la mise en uvre de mesures de politique sociale et
lgislative, soit dans une intervention spcifique auprs des victimes et la rducation des
agresseurs, et aussi au niveau de la prvention primaire, parmi les groupes d'ge les plus
jeunes, puisqu'ils sont considrs comme un lien fort de changement et de rupture avec
les visions strotypes de lactualit.
La Chambre Municipal de la Ville de Porto, travers sa Division d'Action Sociale,
o j'ai eu l'occasion de dvelopper le stage curriculaire, prsente, dans ses diffrents
projets, un souci avec ce problme social si complexe. Dans cette optique, il a t
dvelopp le V Plan Municipal contre la Violence Domestique (2013-2015), constituant
lui-mme le pilier qui a orient mon action au sein du CMP. Suite une analyse critique
de ce mme Plan et, en tenant compte des besoins manifests par la Division, il ma t
confi la construction d'une Feuille de Route de La Violence Domestique, pour la ville
de Porto. Le temps disponible pour le stage (six mois) n'a pas permis la construction d'une
Feuille de Route exhaustive, nanmoins un guide dorientation avec plusieurs
contributions a t produit.
Il convient de noter que ces contributions contiennent diverses informations, telle
quun large cadre thorique sur la violence domestique, la lgislation et les projets en
vigueur dans certaines institutions qui interviennent dans ce domaine. Il est galement
important de noter lexistence de contact et la ralisation d'entretiens avec des institutions
spcialises, ainsi que les Htels de Ville, afin de saisir les perceptions des professionnels
en matire de violence domestique.
L'importance de ce document est rvle par son utilit en tant qu'outil de travail,
non seulement pour le CMP, mais aussi pour toutes les personnes et institutions
intresses intervenir dans ce domaine. Nous croyons que l'intervention d'un spcialiste
en ducation et, en l'occurrence, dans le dveloppement de ce type de recherche, s'est
avre fondamentale, en raison de la porte thorique et thique de sa formation, ainsi
que du travail mthodologique dvelopp, notamment au niveau des procdures des
collectes de donnes documentaires et prsentielles actionns.
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Agradecimentos
minha orientadora, Professora Doutora Cristina Rocha, pela ajuda, empenho,
preocupao e apoio ao longo de todo este processo. Tambm quero agradecer minha
co-orientadora, Professora Doutora Maria Jos Magalhes, que com o seu vasto
conhecimento na rea, se tornou fundamental ao longo deste trabalho. Obrigada, tambm,
pelas suas minuciosas correes, que tornaram este relatrio bastante completo.
Quero tambm agradecer minha supervisora local, Dra. Otlia Oliveira, que,
apesar de estar constantemente numa correria, arranjava tempo para me orientar e
esclarecer vrias dvidas ao longo de todo o processo. Aproveito, ainda, para agradecer
a toda a equipa tcnica da Diviso de Ao Social, por me ter auxiliado quando precisei.
Aos meus pais, Ftima e Joo, por todo o apoio constante, porque mesmo apesar
da enorme distncia, como se estivessem sempre aqui. Apesar de todos os obstculos e
dificuldades, foram e sero sempre os meus pilares, o meu grande suporte. Sem dvida
que, sem vocs, todo este caminho percorrido no teria sido possvel. Tambm aos meus
irmos (e ao Z, que mesmo no sendo irmo, como se fosse!), pela preocupao sempre
demonstrada, e minha querida sobrinha Brbara, a criana mais dcil e meiga que uma
alguma vez conheci, obrigada por, mesmo sem teres noo disso, me fazeres os dias to
felizes e despreocupados.
Aos meus amigos Cludio e Lus, o melhor que o Alentejo me deu a nvel de
amizades, obrigada por me demonstrarem que o longe se torna perto, e que mesmo
estando imenso tempo sem falar convosco, a vossa reao ser sempre a mesma quando
falam comigo. Obrigada pelo vosso interesse, nesta minha caminhada, obrigada por poder
desabafar convosco, e pelo apoio.
Andreia, Bruna, Glasielle e Tnia. Andreia, com essa tua personalidade
to caracterstica, obrigada por me fazeres sorrir tantas vezes, e um grande obrigada pela
tua preocupao. Bruna, talvez a pessoa mais parecida comigo que alguma vez conheci,
obrigada por seres uma pessoa to presente, por depositares tanta confiana em mim, e
por me ouvires, sempre. Os meus dias tornam-se, definitivamente, melhores quando falo
contigo. Obrigada por toda a pacincia e pelos bons momentos passados! Glasielle, a
melhor conselheira do mundo! A pessoa mais prestvel e extrovertida que conheo.
Obrigada por, tambm, estares sempre l, e me aconselhares. Sempre que precisei, l
estavas tu, pronta e disponvel para me ouvir. Obrigada por toda a preocupao, e por me
motivares, e puxares para cima, quando me viste em baixo. Tnia, pela boa
disposio, responsabilidade e frontalidade que sempre te caracterizaram. Obrigada pela
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preocupao e apoio que me deste ao longo destes cinco anos. Graas a vocs, tudo se
tornou mais fcil, obrigada pelo companheirismo sempre presente, pelos desabafos, pelo
apoio, pelos risos, e at mesmo pelos choros. Longe ou perto de vocs, prometo que vos
levarei sempre no meu corao. caso para dizer, no de sempre, mas para sempre.
Por ltimo, um grande obrigada a toda a comunidade da FPCEUP por me ter
acolhido to bem ao longo deste cinco anos. Um bem-haja para todos vs.
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ndice de Abreviaturas
CE Cincias da Educao
CEDAW - Convention on the Elimination of all forms of Discrimination Against Women
CIG Comisso para a Cidadania e Igualdade de Gnero
CMP Cmara Municipal do Porto
CP Cdigo Penal
DAS Diviso de Ao Social
EIE Entrevista s Instituies Especializadas
EJF Entrevistas s Juntas de Freguesia
GNR Guarda Nacional Republicana
IE Instituies Especializadas
JF Juntas de Freguesia
MP Ministrio Pblico
OMS Organizao Mundial de Sade
ONU Organizao das Naes Unidas
PSP Polcia de Segurana Pblica
TAV Tcnico(a) de Apoio Vtima
UMAR Unio de Mulheres Alternativa e Resposta
VD Violncia Domstica
ndice de Tabelas
Tabela n.1 - Remunerao base mdia e ganho mdio de homens e mulheres em
Portugal37
Tabela n. 2 Categorias e subcategorias das anlises de contedo efetuadas...61
ndice de Figuras
Figura n.1 O ciclo da violncia...26
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ndice
Introduo...11-13
Captulo I Caracterizao do local de estgio14
1.1 Diviso de Ao Social: Objetivos e Competncias..14-15
1.2 Diviso de Ao Social: Projetos...15-16
1.3 O projeto de estgio17
Captulo II Enquadramento Terico..18
2.1 Violncia domstica e violncia de gnero os conceitos centrais deste
trabalho...18-20
2.1.1 Violncia de Gnero: Um problema individual, social e
cultural..20
2.1.2 Gnero e Sexo: Que diferenas?.................................................21-23
2.2 Violncia Domstica: Um Crime Pblico23-26
2.3 O ciclo da violncia...26-27
2.4 Os custos da violncia domstica.27-29
2.5 Os danos da violncia domstica nas crianas e jovens...29-31
2.6 A importncia das Cincias da Educao na problemtica da violncia
domstica e de gnero31-34
2.7 A educao e a ao das Cincias da Educao numa autarquia.34-35
Captulo III - Enquadramento Jurdico-Legal Internacional da Violncia Domstica.36
3.1 Conveno sobre a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao contra
a Mulher CEDAW (1979)36-37
3.2 Declarao e Programa de Ao de Viena (1993).38
3.3 Conveno Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violncia Contra
a Mulher (1994)..38-39
3.4 Declarao e Plataforma de Ao da IV Conferncia Mundial Sobre a Mulher
(Declarao e Plataforma de Ao de Pequim, 1995).40
3.5 Conveno do Conselho da Europa para a Preveno e o Combate Violncia
contra as Mulheres e Violncia Domstica (Conveno de Istambul, 2011)..41
3.6 Diretiva Europeia para as Vtimas (2012).41-42
Captulo IV - O estgio curricular...43
4.1 A escolha e a pertinncia do contexto de estgio..43
4.2 O percurso no estgio....43
4.2.1 A entrada no terreno e os primeiros contactos com a DAS...43-45
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4.2.2 Objetivos e organizao do contributo para a DAS...45-46
4.2.3 Aes inerentes produo do contributo para a DAS.47
4.2.4 O contacto com as instituies e os constrangimentos
encontrados.48-49
4.3 Outras atividades desenvolvidas no contexto de estgio...49
4.3.1 Participao na Conferncia Crescer Ser49
4.3.2 Participao na Children Street Store.50
4.3.3 Participao na organizao da apresentao dos projetos
Aconchego e Cidades Amigas das Pessoas Idosas..50-51
4.3.4 Participao na Cerimnia de Entrega dos Instrumentos no mbito
do projeto Msica para Todos..51
4.3.5 Participao na Ronda aos Sem Abrigo.51-52
4.3.6 Participao na Conferncia Violncia Domstica.52
Captulo V - Fundamentao Metodolgica e tica53
5.1 Enquadramento Epistemolgico e tico53
5.2 Opes metodolgicas55
5.2.1 Anlise Documental...55-56
5.2.2 Entrevista Semi-Estruturada..56-57
5.2.3 Observao Participante..57
5.2.4 Notas de Terreno..58
5.2.5 Anlise de Contedo58
5.3 Questes ticas.58-59
Captulo VI - Apresentao e Discusso dos Resultados60-62
6.1 A violncia domstica enquanto construo social e problema
cultural62-63
6.2 Danos provocados pela violncia domstica..63
6.2.1 Danos da violncia domstica em crianas e jovens...63-64
6.2.2 Danos da VD em vtimas adultas64-65
6.2.3 Impactos da VD na sociedade65-66
6.3 Valncias das Instituies.66-67
6.4 Principais dificuldades manifestadas pelas instituies..67
6.4.1 Dificuldades percecionadas pelos tcnicos/as relacionadas com o
apoio vtima..67-70
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6.5 Falhas Identificadas pelas instituies no que diz respeito s estruturas que
atuam no mbito da violncia domstica.70-71
6.6 Preocupaes no atendimento, encaminhamento e interveno das
vtimas72-75
6.7 A importncia da preveno para a desconstruo dos papis de
gnero.75-76
6.7.1 Estratgias de preveno76-79
6.8 Projetos em curso na rea da violncia domstica nas IE.79
6.9 Importncia da Formao dos/as tcnicos/as na rea da violncia
domstica79-80
Captulo VII - Reflexo Crtica...81-82
Consideraes Finais..83-84
Referncias Bibliogrficas..85-89
Documentos Oficiais e Legislao Consultada89
Apndices90
Apndice I - Guio de Entrevista (Juntas de Freguesia)..91
Apndice II Guio de Entrevista (Instituies Especializadas).92
Apndice III - Documento enviado para as juntas de freguesia e instituies com
o objetivo de dar a conhecer o estudo realizado.93-94
Apndice IV Transcrio das Entrevistas (JF)95-126
Apndice V Transcrio das Entrevistas (IE)..127-189
Apndice VI Anlise de Contedo (Entrevistas JF).190-212
Apndice VII Anlise de Contedo (Entrevistas IE)213-252
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Introduo
O presente relatrio surge no mbito do Mestrado em Cincias da Educao,
promovido pela Faculdade de Psicologia e de Cincias da Educao, da Universidade do
Porto e constitui o produto final do estgio frequentado. Este estgio decorreu de Outubro
de 2016 a Junho de 2017, na Diviso de Ao Social da Cmara Municipal do Porto. De
entre os inmeros projetos e reas que me foram apresentados, decidi enveredar por uma
rea que ainda no tinha tido oportunidade de explorar: a violncia domstica. Como tal,
e visto no existir um projeto slido que pudesse integrar neste mbito, o que acabou por
ser o meu pilar orientador, e que proporcionou a minha ao na CMP, foi o V Plano
Municipal contra a Violncia Domstica (2013-2015). Tendo por base este Plano, foi
construdo um documento que constitui o produto final do estgio. Esse documento
consiste num conjunto de informaes sobre a violncia domstica, contributos e que
serviro para a construo de um Roteiro sobre a Violncia Domstica para a cidade do
Porto.
Este Roteiro pode definir-se como guio orientador, e que serve de base CMP,
para a elaborao, por parte da CMP, de um Roteiro completo sobre a violncia domstica
para a Cidade do Porto. Tendo em conta o tempo de permanncia no local de estgio e o
processo burocrtico associado recolha de informao junto das vrias instituies,
frisamos que, essencialmente, devido a esses dois fatores, no foi possvel a construo
de um Roteiro completo, j com todas as informaes que seriam desejveis.
Importa ainda mencionar que este relatrio enquadra todo o produto final que
acabou de ser referenciado - e que se encontra impresso autonomamente deste relatrio -
dando, tambm, conta de como todo o processo se desenvolveu, e aprofundando-o,
sobretudo no que diz respeito teoria sobre a violncia domstica, e anlise dos
resultados, visto que se pretendia que o documento para a CMP fosse mais sintetizado e
demonstrasse os resultados que, efetivamente, a CMP necessita, ou seja, aqueles que
foram delineados como imperativos. As questes trabalhadas foram as seguintes: i) as
principais necessidades das instituies; ii) as preocupaes durante o atendimento,
encaminhamento e interveno com a vtima; iii) os projetos que se encontram, neste
momento, em vigor nas instituies que atuam na rea da violncia domstica; e o
trabalho que realizado no que diz respeito preveno deste problema social, incluindo
quais as principais estratgias. Neste relatrio, consta toda a anlise e discusso dos
resultados, de uma forma aprofundada, recorrendo s falas dos(as) entrevistados(as) e a
autores(as) fundamentais para a compreenso do tema.
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Salienta-se, ainda, a complementaridade entre o Relatrio e os contributos para o
Roteiro, constituindo-se o primeiro, o relatrio, como enquadramento e aprofundamento
do Roteiro realizado para a CMP.
No que diz respeito estrutura deste relatrio, no primeiro captulo consta a
caracterizao do local de estgio, a DAS, os seus objetivos e competncias, mbitos e
focos de ao, e, ainda, a descrio do meu projeto de estgio. O segundo captulo diz
respeito ao enquadramento terico e aborda as principais questes associadas ao
problema social violncia domstica, nomeadamente, a delimitao terica do termo,
tomando em considerao o facto de ser tambm uma construo social, complementada
com o enunciar dos seus impactos/danos e custos, da explanao do ciclo da violncia
domstica nas relaes de intimidade, e, para terminar este captulo terico, salientada
a importncia das cincias da educao na problemtica da VD. Para a elaborao deste
captulo, recorremos a autores como Isabel Dias (2004), Sofia Almeida (2001), Sara
Cerejo (2014), Manuel Lisboa (1997 e 2001), entre outros. O terceiro captulo foca-se no
enquadramento jurdico-legal da violncia domstica, tendo sido selecionados vrios
marcos importantes no que diz respeito luta pelo reconhecimento dos direitos das
mulheres e eliminao da violncia domstica contra as mulheres. Para este captulo,
mobilizaram-se vrios documentos oficiais e legais, como por exemplo, a Conveno do
Conselho da Europa para a Preveno e o Combate Violncia Contra as Mulheres e a
Violncia Domstica, Conveno Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violncia Contra a Mulher, o artigo 152. do Cdigo Penal Portugus, a lei n. 112/2009,
entre outros.
No quarto captulo, est descrita a pertinncia e a escolha do local de estgio e
todo o processo desenvolvido, ou seja, as atividades realizadas e os principais
constrangimentos/dificuldades.
No quinto captulo, consta a fundamentao metodolgica e tica do trabalho
realizado, incluindo o posicionamento epistemolgico do processo de investigao e
interveno. Sero, ainda, apresentadas as tcnicas de recolha de dados e as questes
ticas que estiveram subjacentes realizao da pesquisa. Para a fundamentao deste
captulo foram utilizados autores(as) como Bogdan & Biklen (1994), Isabel Dias (1998),
William Foddy (1996), entre outros(as).
No sexto captulo, consta a apresentao e discusso dos resultados, tendo por
base as anlises de contedo realizadas e a interpretao das respetivas categorias.
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No captulo sete, encontra-se uma reflexo crtica sobre todo o trabalho realizado
e a ao desenvolvida no local de estgio e a sua estreita ligao com a profissionalidade
em cincias da educao.
Por fim, esto presentes as consideraes finais, abordando a relao das cincias
da educao com o trabalho desenvolvido, e, ainda, as principais concluses no que diz
respeito aos resultados obtidos, sobretudo no que refere comparao entre as respostas
das Juntas de Freguesia e das Instituies Especializadas.
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Captulo I - Caracterizao do local de Estgio
Cmara Municipal do Porto: Diviso de Ao Social
Inicio este relatrio com a caracterizao do local de estgio, de modo a que se
possa compreender o contexto, e, posteriormente, a ao desenvolvida na Diviso de
Ao Social (DAS) da CMP. De seguida, sero apresentados os objetivos, competncias
e projetos da DAS. Importa salientar que as informaes aqui colocadas foram retiradas
do website*1 da entidade e de um dos documentos internos da mesma.
1.1 Diviso de Ao Social: Objetivos e Competncias
A DAS encontra-se inserida no Departamento Municipal de Desenvolvimento
Social, da Cmara Municipal do Porto. Antes de ter essa denominao, designava-se de
Fundao para o Desenvolvimento Social do Porto, sendo que, em 2014 se verificou
O processo de dissoluo e respetiva extino da Fundao para o Desenvolvimento
Social do Porto FP, () a qual pressupe para o desenvolvimento das suas atividades os
recursos humanos que, atualmente, se encontram em exerccio de funes na Cmara
Municipal do Porto () fruto da internalizao nos servios deste Municpio das
atividades levadas a cabo por aquela Fundao, conduziu criao de uma nova unidade
orgnica nuclear e quatro unidades orgnicas flexveis. (Despacho n. 11101/2015: 1)
Para alm do Departamento Municipal de Desenvolvimento Social, a CMP dispe
ainda de mais trs unidades orgnicas: a Diviso Municipal de Interveno
Interinstituicional, Diviso Municipal de Promoo da Sade, Diviso Municipal de
Promoo da Empregabilidade.
As competncias e os objetivos da DAS so os seguintes:
a) Desenvolver e gerir instrumentos de avaliao e de monitorizao das dinmicas
sociais, para apoio tomada de deciso.
b) Implementar e desenvolver programas e projetos integrados de ao social, de
iniciativa municipal ou em parceria com outras organizaes e agentes sociais, visando
grupos especialmente vulnerveis ou em risco.
c) Intervir de forma direta em grupos especficos da populao especialmente vulnerveis
ou em risco, com vista promoo da sua incluso social.
____________________________________________
*1 O website da entidade pode ser consultado em: http://www.cm-porto.pt/
http://www.cm-porto.pt/
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d)Sinalizar e articular com os servios competentes a obteno de respostas para
muncipes em situao ou em risco de pobreza e excluso social.
e) Assegurar a realizao da poltica e dos objetivos municipais de interveno scio
territorial, pela dinamizao, promoo e execuo de iniciativas e projetos de
interveno social em territrios socialmente mais desfavorecidos e com problemas
sociais mais complexos.
f) Promover uma interveno integrada de base territorial em zonas especialmente
carenciadas ou vulnerveis do municpio.
g) Dinamizar o Plano Municipal contra a Violncia Domstica, garantindo a articulao
entre os diversos instrumentos nacionais e locais nestas reas e com as restantes
organizaes sociais do Municpio.
h) Assegurar a implementao de programas que promovam o envelhecimento ativo e
que promovam a qualidade de vida da populao idosa.
i) Promover e dinamizar a interveno municipal no mbito da Rede Mundial de Cidades
Amigas das Pessoas Idosas.
j) Implementar e desenvolver programas e projetos que promovam a igualdade de
gnero. (Departamento Municipal de Desenvolvimento Social Atividade, Documento
Interno, s/data: 5)
1.2 Diviso de Ao Social: Projetos
A DAS conta, atualmente, com alguns projetos, dirigidos a diversos pblicos.
Abaixo, sero apresentados os projetos j organizados segundo a populao para a qual
se dirigem:
Populao Snior:
Programa Aconchego, sendo o mesmo um programa de alojamento para
jovens universitrios, em habitaes de sniores. Assim, este programa
visa combater a solido dos idosos;
Projeto Porto Amigo, que tem como objetivo () a realizao de obras
de adaptao e de melhorias dos nveis de mobilidade e de salubridade da
populao snior dependente do Concelho do Porto, em situao de
comprovada pobreza. (Documento Interno Pelouro da Habitao e
Ao Social, s/data: 8);
Rede Mundial das Cidades Amigas das Pessoas Idosas: O Municpio do
Porto aderiu Rede Mundial de Cidades Amigas das Pessoas Idosas em
2010. Esta adeso envolve o estabelecimento de uma linha-de-base de
avaliao diagnstica, o desenvolvimento de um plano de ao a trs anos
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e a identificao de indicadores de monitorizao do progresso do plano
de ao. (Idem: 9)
Crianas e Jovens em Perigo:
Projeto Msica Para Todos, que funciona atravs da articulao entre ()
a Escola de Msica Curso de Msica Silva Monteiro e os agrupamentos
de escolas da cidade do Porto (Cerco e Viso) e que consiste na promoo
de aulas tericas e prticas do ensino articulado da msica, dirigidas a
alunos do 2 e 3 ciclos de Territrios Educativos de Interveno Prioritria
(TEIP) da Cidade. (Idem: 11)
Orquestra Juvenil da Bonjia: Este projeto, de certa forma, deriva do
projeto anteriormente mencionado, visto que esta orquestra conta, no
apenas com 120 crianas provenientes do projeto Msica Para Todos mas
tambm de outras escolas da cidade do Porto. O principal objetivo da
Orquestra () enquadrar e promover o trabalho desenvolvido por todos
os alunos participantes no projeto, dando visibilidade ao processo de
aprendizagem e projetando os seus resultados. (Idem: 11)
Cidados com Necessidades Especficas de Funcionalidade e/ou
Incapacidade:
Projeto Golf Adaptado: Este projeto tem em vista a promoo, nos
cidados acima referenciados, competncias de incluso, atravs de
sesses regulares de ensino e treino da atividade desportiva de Golf.
Vtimas de violncia domstica:
A DAS integra, nesta matria, as competncias atribudas aos municpios.
Neste sentido, a VD constitui uma das preocupaes da DAS, razo pela
qual foi elaborado o Plano Municipal contra a Violncia Domstica. A
elaborao e implementao deste Plano tem a coordenao da CMP,
sendo que a mesma responsvel pelo diagnstico do problema, recolha
de informao e o tratamento dos dados.
A DAS no desenvolve um projeto especfico para a rea da VD, pois a
interveno nesse problema est a cargo de diversas instituies
especializadas. A DAS realiza um trabalho em rede com outras
instituies. As competncias dos municpios no campo da VD esto
regulamentadas, pelo que compete a esta Diviso coordenar o trabalho a
nvel municipal e garantir o apoio para a supresso das lacunas existentes.
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1.3 O projeto de estgio
O projeto de estgio consistiu na produo de um documento, um guio
orientador, para a DAS, acerca da violncia domstica. Saliento que, no captulo IV,
acerca de todo o estgio, se encontrar mais aprofundado todo o processo que levou a este
projeto de estgio, e ao produto final concebido.
O documento realizado os contributos para a construo de um Roteiro sobre a
violncia domstica para a cidade do Porto pretende constituir-se numa ferramenta til,
quer para a CMP, quer para todas as instituies e profissionais, assim como para toda a
comunidade. A construo deste documento partiu da necessidade manifestada pela DAS
em possuir um instrumento atualizado, com as informaes relevantes sobre a VD. Para
a sua redao, e seguindo a lgica do Plano, foi necessrio realizar entrevistas s
instituies especializadas no mbito da VD e, tambm, s juntas de freguesia da cidade
do Porto, no sentido de perceber o seu papel nesta rea e as dificuldades com que se
deparam. A estrutura do documento foi dividida em duas grandes partes: na primeira, que
constitui uma parte mais terica, constam as seguintes informaes: os dados tericos
sobre o tema, tendo sempre por base a documentao oficial e legal; as diferentes
manifestaes de violncia domstica; a identificao dos principais estudos acadmicos
e institucionais nacionais, e, ainda, estudos de referncia internacionais sobre a VD; as
fontes estatsticas que podem ser consultadas no intuito de recolher informao detalhada,
bem como alguns indicadores estatsticos j construdos para uma melhor perceo do
seu impacto. Para alm disso, e ainda nesta primeira parte, encontram-se os
procedimentos a seguir pela vtima, e pelos/as cidados/s, no caso de uma situao de
VD. Para concluir a primeira parte, esto presentes todas as instituies de referncia
nacionais no mbito da VD, bem como a resposta institucional da cidade do Porto. Na
segunda parte do documento a parte dedicada apresentao dos resultados das
entrevistas est expressa a identificao e caracterizao das entidades entrevistadas e
a viso, quer das autarquias, quer das instituies especializadas, de uma forma
sintetizada, visto que, e tal como j referimos, este relatrio enquadra e aprofunda o
Roteiro.
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Captulo II - Enquadramento Terico
2.1 Violncia domstica e violncia de gnero os conceitos centrais deste trabalho
O flagelo social que a violncia domstica tem vindo, nos ltimos anos, a ser
alvo de grande preocupao, levando crescente implementao polticas pblicas com
o principal objetivo de dar cumprimento aos direitos e proteo das vtimas. Para alm
disso, tambm se verifica uma preocupao em desmistificar este conceito junto de toda
a comunidade atravs, sobretudo, da preveno.
Como forma de iniciar este enquadramento, considero pertinente apresentar uma
definio geral sobre o que se pode entender por violncia, para, posteriormente, passar
a explicitar as concees de violncia domstica e de violncia de gnero. Neste
seguimento, a Organizao Mundial de Sade define violncia como:
O uso intencional da fora fsica ou do poder, real ou em ameaa, contra si prprio,
contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande
possibilidade de resultar em leso, morte, dano psicolgico, deficincia de
desenvolvimento ou privao. (Relatrio Mundial de Violncia e Sade, Organizao
Mundial de Sade, 2002: 5)
possvel, aps a leitura da citao supramencionada, salientar a palavra poder,
que nos remete, de imediato, para uma relao de dominao-submisso entre os
indivduos, ou seja, uma relao desigual e hierrquica. Relao que ser, posteriormente,
abordada, em que se compreender quem se encontra enquadrado no papel de
dominador/a e no papel de submisso/a.
Ao passar para o conceito de violncia domstica, posso afirmar a sua
complexidade, pelo que diferentes autores/as apresentam diversas definies. Deste
modo, selecionei uma definio que explicita exatamente esta especificidade da palavra
domstica, e o que mesma significa:
A violncia domstica corresponde a um comportamento violento continuado ou um
padro de controlo coercivo exercido, directa ou indirectamente, sobre qualquer pessoa
que habite no mesmo agregado familiar (e.g., cnjuge, companheiro/a, filho/a, pai, me,
av, av), ou que, mesmo no co-habitando, seja companheiro, ex-companheiro ou
familiar (Manita, Ribeiro & Peixoto 2009: 10)
Torna-se relevante apresentar este conceito, no apenas por ser o cerne deste
relatrio, mas, tambm, porque, no raras as vezes, confundido ou at equiparado ao
conceito de violncia de gnero (que ser, mais adiante, mencionado). Assim, e atravs
da citao transcrita, denota-se que a principal caracterstica da violncia domstica ,
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19
precisamente, salientar que pode ser perpetrada sobre os vrios membros de uma famlia,
ainda que possam no residir no mesmo espao domstico, no estando, ento, confinada
s relaes de intimidade. , possvel, sim, afirmar que a violncia conjugal e a violncia
nas relaes de intimidade constituem dimenses da violncia domstica, contudo, e tal
como foi frisado, h que no menosprezar a violncia perpetrada entre outros membros
da famlia, que mantm outras relaes de parentesco que no a conjugalidade e a
intimidade.
Aps a realizao desta primeira introduo ao conceito de violncia e violncia
domstica, e tendo presente a ideia de que a VD pode ser infligida contra adultos,
crianas, idosos/as e indivduos com necessidades especiais e com especial
vulnerabilidade, de ambos os sexos, importa salientar que, atravs dos dados recolhidos
ao longo do estudo realizado (que ser explicitado no captulo 4), se constata que a VD
ocorre, sobretudo, contra a mulher, e nas relaes de intimidade. No apenas os dados
nos demonstram isso, como tambm grande parte da literatura reporta esse problema, tal
como se pode notar na seguinte citao:
Em Portugal, como na maioria dos pases, a violncia contra a mulher ocorre
principalmente no interior do espao domstico, particularmente a violncia fsica e
psicolgica, tendo como agressor mais frequente o parceiro conjugal. Dito de outro modo,
embora no se situando exclusivamente no espao domstico, os resultados dos mais
diversos estudos realizados por todo o mundo confirmam que a violncia contra a mulher
universalmente muito marcada pela natureza domstica e conjugal. (Loureno &
Carvalho, 2001: 108)
Tambm a autora Lusa Ferreira da Silva (2001) salienta que as mulheres e
crianas so as principais vtimas da VD, referindo, tambm que a violncia fsica
perpetrada, maioritariamente, contra as mulheres e crianas, e, no caso dos/as idosos/as,
infligida, sobretudo, a violncia psicolgica, resultando em isolamento, desrespeito e
falta de dignidade para com o/a idoso/a. No entanto, h que ter em conta o ano em que
foi publicada a obra desta autora 2001 16 anos findados desde ento e, na atualidade,
e como se ver mais adiante, a violncia que silenciosa, neste caso, a violncia
psicolgica, afeta muitas mulheres todos os dias, no sendo a violncia fsica o nico
enfoque deste fenmeno to complexo.
Ao proferir a noo de violncia infligida contra a mulher, a mesma reporta, de
imediato, e tal como anteriormente j tinha referenciado, para a violncia de gnero,
sendo a mesma esclarecida pela ONU, como:
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() qualquer acto de violncia baseado no gnero do qual resulte, ou possa resultar,
dano ou sofrimento fsico, sexual ou psicolgico para as mulheres, incluindo as ameaas
de tais actos, a coaco ou a privao arbitrria de liberdade, que ocorra, quer na vida
pblica, quer na vida privada. (Art. 1., Declarao sobre a Eliminao da Violncia
contra as mulheres, 1993)
2.1.1 Violncia de Gnero: Um problema individual, social e cultural
Dada a citao transcrita acima, torna-se, ento, imprescindvel compreender a
que conceitos e/ou elementos esto associados violncia de gnero, e, ainda,
compreender porque motivos a mesma ocorre. Em primeiro lugar, importante frisar que
esta violncia transversal a qualquer estrato social, religio, cultura, idade e sociedade,
portanto, podendo ocorrer em qualquer meio um fenmeno () global [e que] refora
a sua natureza de subordinao e dominao das mulheres enquanto processo histrico
secular ainda hoje imbricado nas mais diversas estruturas sociais. (Cerejo, 2014: 14).
Esta relao de subordinao e dominao, e tal como aparece descrito na citao acima,
ainda se encontra bastante enraizada no nosso quotidiano. Significa que estamos perante
um problema social e de mentalidades. Sendo social, tambm, () cultural () [e]
corresponde a conceb-la [ violncia] como um objeto social que suscita representaes
diversas, que intervm na construo de uma dada realidade social (Diniz, Santos &
Lopes, 2007: 2).
Este problema tem na sua base padres, esteretipos, normas e valores sociais que
a sociedade foi estabelecendo ao longo de sculos, constituindo uma herana social do
passado, onde () a masculinidade era exigida como forma de afirmao do eu ()
constituindo[-se], [a violncia], como um modo de exerccio do poder () (Loureno,
Lisboa & Pais, 1997: 111). Estes esteretipos tm vindo a remeter as mulheres para uma
posio de inferioridade em relao ao grupo social dos homens, e, como tal, na
atualidade, ainda conseguem ser observadas diversas desigualdades entre sexos,
nomeadamente em setores como a educao, sade, indstria, entre outros, como a
diferena salarial. As diferenas entre homens e mulheres, tal como as diferenas entre
culturas, e como nos demonstra, Costa (2013), deviam ser encaradas como um elemento
enriquecedor pela sua diversidade, e no, um instrumento para a manifestao da
supremacia masculina em relao s mulheres.
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2.1.2 Gnero e Sexo: Que diferenas?
Tenho vindo a realar o conceito de violncia de gnero, no entanto, como posso
definir gnero? Que diferena reside entre gnero e sexo? Tal como j foi mencionado,
a violncia um problema social, e, como tal, uma construo social, o gnero, tambm
ele, uma construo social. Assim, o sexo definido biologicamente, enquanto o gnero
uma () produo social alicerada na diferena biolgica entre homens e mulheres,
uma representao socialmente partilhada em que a natureza d a diferena, e a leitura
dessa diferena produz esse alfabeto simblico universal que o par masculino/feminino
(Hritier, in, Cerejo, 2014: 32). , ento, possvel afirmar que ao conceito de gnero esto
associados determinadas posturas, atitudes, e expetativas relativas a cada um dos sexos,
e que foram determinados, e tal como j foi referenciado, pela herana social e cultural
de uma sociedade machista e patriarcal, na qual os conceitos de dominao, virilidade e
fora surgem relacionados com o grupo social masculino, enquanto fragilidade,
dependncia, sensibilidade, entre outros, aparecem associadas ao grupo social feminino.
De forma a mostrar que herana foi esta, e as principais ideias e tradies dos
papis de gnero, segui de perto um estudo realizado no Brasil, por Diniz, Santos & Lopes
(2007), sobre as representaes sociais da famlia e da violncia. As autoras entrevistaram
alguns homens que mantinham uma relao conjugal violenta, e, segundo as concluses
do estudo, a violncia representa uma () tentativa de restabelecer o poder masculino
dentro da famlia. Para eles, as brigas familiares eram exclusivamente do mbito privado
e visavam restabelecer as relaes normais dentro da famlia. (Diniz, Santos & Lopes,
2007: 4). Para os entrevistados, fazia todo o sentido o () homem decidir sobre as
relaes de amizade, as roupas e o tipo de trabalho que a sua mulher pode ter (Idem:
Ibidem). Seguindo de perto as ideias de Cerejo (2014), o agressor apresenta uma
necessidade de controlar a vtima, a quem considera como sua propriedade. Desta
forma, exerce controlo e regulao sobre todos os domnios da vida privada e pblica da
mulher, o que remete para o que anteriormente foi mencionado o homem decidir sobre
as relaes de amizade, trabalho, entre outros elementos que a mulher pode ter. Associado
a este controlo, encontram-se emoes e sentimentos de posse e de cime por parte do
agressor.
Ao recuar no tempo, e segundo Isabel Dias (2004), e ao observarmos o modelo
familiar das sociedades tradicionais do Antigo Regime, e do papel que a mulher
desempenhava, constata-se que existem alguns pontos em comum com o que ainda se
verifica nos dias de hoje, o que, mais uma vez, remete para a ideia da construo social
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do fenmeno da violncia e para o facto de que as relaes de gnero, com os respetivos
esteretipos esto, ainda, enraizadas na sociedade. Como exemplo do que acabei de
mencionar, transcrevo a seguinte citao:
Com o casamento, a mulher passava da tutela do pai para a do marido, ficando sem
qualquer possibilidade de autonomizao () era ntida a segregao dos papis sexuais
e a subordinao da mulher e dos filhos autoridade do homem chefe de famlia ()
(Dias, 2004: 34)
Atravs da citao, e tal como tenho vindo a realar, o domnio que o homem tem
sobre a mulher perdura h vrios sculos, e o resultado disso so as vises machistas e
retrgradas tambm observadas no estudo de Diniz, Santos & Lopes (2007).
No posso deixar de mencionar o facto de Portugal ter enfrentado uma ditadura
durante vrias dcadas, sendo que, nesse mesmo regime, eram defendidas perspetivas
desiguais para as mulheres: uma educao sexista e uma diviso de tarefas, na famlia,
altamente estandardizada, em que o homem era considerado o chefe de famlia, alis,
previsto por lei, e a mulher, sem horizontes profissionais, deveria dedicar-se ao mbito
domstico e educao dos/as filhos/as, carecendo da autorizao do pai ou do conjugue
para exercer atividade remunerada fora de casa.
Posteriormente a esta ditadura, ocorreram, na sociedade portuguesa, com a
instaurao da democracia em 1974 vrias mudanas, e que alteraram radicalmente a
condio legal da mulher, nomeadamente no casamento. Esta mudana da condio social
das mulheres, em curso na Europa a nvel educativo, econmico e social, potenciou a
transformao do estatuto da mulher na sociedade. Refiro-me, sobretudo, e segundo Costa
(2013), chamada segunda vaga de movimentos feministas entre os anos 1960 e 90 que
difundiram as vrias discriminaes contra as mulheres, bem como as desigualdades que
se faziam sentir entre homens e mulheres, e que, como j foi possvel constatar, ainda
persistem na atualidade. Para alm disso, foram tambm reclamados vrios direitos, como
por exemplo no que diz respeito violncia e discriminao. Foram lutas que se
iniciaram h algumas dcadas mas que ainda permanecem na atualidade, pois ainda existe
muito a fazer no que diz respeito igualde de oportunidades entre homens e mulheres, e
desmistificao dos papis de gnero. Por esta razo, se revela importante abordar desde
cedo, junto das crianas e jovens os valores da igualdade e da cidadania.
Na atualidade em que vivemos, verifica-se que so vrios os desafios e obstculos,
sobretudo sociais, culturais e econmicos colocados igualdade entre homens e
mulheres. A globalizao, este grande e complexo fenmeno, veio desafiar o modo de
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vida das sociedades: se, por um lado, a globalizao () insere todas as pessoas numa
categoria unitria e em que todos/as esquecem o seu eu, tambm faz emergir a voz dos
grupos oprimidos e descriminalizados (.) (Teixeira, 2015: 13). As pessoas esquecem
o seu eu, pois, apesar de a globalizao ter colocado o nosso mundo mais em rede,
como menciona Dale (2004), representa um progresso no sentido da homogeneidade
cultural. Ora, com esta homogeneidade cultural, estamos, de certa forma, a cingir-nos s
culturas maioritrias e dominantes, fazendo com que os grupos de culturas minoritrias e
que so descriminados queiram ver reconhecidos os seus direitos, lutando, ento, por uma
poltica de justia e de reconhecimento. Neste sentido, um destes grandes grupos que
ainda sofre discriminao, e que luta pela igualdade e reconhecimento representado,
justamente, pelas mulheres, pois escala global, e nos vrios continentes, continuam a
ser, juntamente com as crianas, vulnerveis e vtimas de culturas e prticas opressivas e
violentas, de que exemplo a guerra e o seu cortejo de consequncias. As teorias
feministas, e como nos refere Teixeira (2015), revelam uma forte crtica aos sistemas
tradicionais de conhecimento do Ocidente, visto que produzem hierarquias acerca do
valor social dos diferentes tipos de saber, no existindo abertura para a diferena. Neste
seguimento, estas teorias () validam a diferena, desafiam as pretenses de verdade
universal e procuram criar a transformao social num mundo de significados incertos e
em mudana (Weiler, 2003: 91).
2.2 Violncia Domstica: Um Crime Pblico
A violncia domstica, que constitui uma violao grave dos direitos humanos,
encontra-se consagrada no Cdigo Penal Portugus como um crime pblico, e, como tal,
punvel por lei. Este crime foi alvo de vrias reformas e alteraes ao longo dos anos,
sendo que, a primeira vez que surgiu no Cdigo Penal foi em 1982, no artigo 153., no
denominado de violncia domstica, mas sim de Maus tratos ou sobrecarga de menores
e de subordinados ou entre cnjuges,
1 O pai, me ou tutor de menos de 16 anos ou todo aquele que o tenha a seu cuidado
ou sua guarda ou a quem caiba a responsabilidade da sua direo ou educao ser
punido com priso de 6 meses a 3 anos e multa at 100 dias quando, devido a malvadez
ou egosmo:
a) Lhe infligir maus tratos fsicos, o tratar cruelmente ou no lhe prestar os cuidados ou
assistncia sade que os deveres decorrentes das suas funes lhe impem; ou
b) O empregar em atividades perigosas, proibidas ou desumanas, ou sobrecarregar,
fsica ou intelectualmente, com trabalhos excessivos ou inadequados de forma a
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ofender a sua sade, ou o seu desenvolvimento intelectual, ou a exp-lo a grave
perigo.
2 Da mesma forma ser punido quem tiver como seu subordinado, por relao de
trabalho, mulher grvida, pessoa fraca de sade ou menor, se se verificarem os restantes
pressupostos do n. 1.
3 Da mesma forma ser ainda punido quem infligir ao seu cnjuge o tratamento descrito
na alnea a) do n.1 deste artigo. (Cdigo Penal, artigo 153., Decreto Lei n, 400/82)
As crianas e as/os jovens, constituam o grande cerne do artigo 153.. Contudo,
na alnea 3 do mesmo, possvel constatar a existncia de um crime de maus tratos
conjugais, reportando, diretamente, aos maus tratos fsicos. Segundo Simes (2015), este
artigo tinha como principal objetivo () delimitar situaes que, por aco ou omisso,
resultassem numa inflio de maus tratos a vtimas especficas, encontrando o seu
principal fundamento na existncia de uma relao de proximidade entre o autor do crime
e a vtima do mesmo (.) (Simes, 2015: 5). Isto porque, atentando uma vez mais ao
artigo, possvel enfatizar, de facto, as relaes de proximidade, na medida em que o
mesmo aborda as relaes conjugais, de pais e mes para filhos/as, e de encarregados de
educao, o que nos reporta, para as relaes de intimidade e de proximidade, tal como
defende a autora.
Na atualidade, no Cdigo Penal, na sua 23 alterao de 2007 (Lei 59/2007, de 4
de Setembro) esta matria encontra-se dividida em trs artigos Artigo 152. como Crime
de Violncia Domstica, Artigo 152- A relativo ao Crime de Maus Tratos, e o Artigo
152 - sobre o Crime de Violao das Regras de Segurana. Contudo, e para este relatrio,
importa apresentar o artigo que especificamente dirigido para o crime de violncia
domstica, ao qual foi acrescentada, em 2013, a violncia nas relaes de namoro:
1 Quem, de modo reiterado ou no, infligir maus tratos fsicos ou psquicos, incluindo
castigos corporais, privaes da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cnjuge ou ex -cnjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido
uma relao de namoro ou uma relao anloga dos cnjuges, ainda que sem coabitao;
c) A progenitor de descendente comum em 1. grau;
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razo da idade, deficincia,
doena, gravidez ou dependncia econmica, que com ele coabite;
2 - No caso previsto no nmero anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na
presena de menor, no domiclio comum ou no domiclio da vtima punido com pena
de priso de dois a cinco anos.
3 Se dos factos previstos no n. 1 resultar:
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a) Ofensa integridade fsica grave, o agente punido com pena de priso de dois a
oito anos;
b) A morte, o agente punido com pena de priso de trs a dez anos.
4 - Nos casos previstos nos nmeros anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas
acessrias de proibio de contacto com a vtima e de proibio de uso e porte de armas,
pelo perodo de seis meses a cinco anos, e de obrigao de frequncia de programas
especficos de preveno da violncia domstica.
5 - A pena acessria de proibio de contacto com a vtima deve incluir o afastamento da
residncia ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por
meios tcnicos de controlo distncia.
6 - Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade
do facto e a sua conexo com a funo exercida pelo agente, ser inibido do exerccio do
poder paternal, da tutela ou da curatela por um perodo de 1 a 10 anos. (Alterao ao
Artigo 152. do Cdigo Penal, introduzida pela Lei n. 19/20013, de 21 de Fevereiro)
Assim, e tendo como termo de comparao a anterior redao do artigo 152.,
repara-se, na nova redao deste artigo, uma maior abrangncia no que diz respeito ao
crime de violncia domstica. Passaram a ser considerados no s os maus tratos fsicos,
mas tambm os psquicos, e, ainda, as ofensas sexuais. Para alm de que, no primeiro
artigo, ao contrrio desta alterao, no fazia referncia aos ex-cnjuges, nem ao facto de
poder no existir co-habitao, passando a redao atual a incluir as formas de violncia
entre pessoas que mantenham ou tenham mantido relaes de intimidade, como
namorados, ex-cnjuges, ex-parceiros ou ex-namorados. Outra das grandes modificaes,
e tal como foi indicado antes da transcrio da redao atual do Artigo 152. do CP,
tambm considerado crime de violncia domstica quando perpetrada nas relaes de
namoro.
Considero, ainda, essencial explicitar o que um crime pblico, neste caso, que
diferena existe entre um crime de natureza privada e um crime pblico. Assim, e na
tica de Manita, Ribeiro & Peixoto (2009), um crime pblico prende-se diretamente com
a ao do Ministrio Pblico, ou seja, assim que o mesmo tenha conhecimento da
ocorrncia desse crime tem, necessariamente, a obrigao de abrir inqurito e apurar os
factos atravs da investigao. De forma distinta, os crimes de natureza privada ou
semi-pblica dependem da apresentao de denncia e prestao de declaraes em
sede do processo, por parte da vtima. O crime de violncia domstica tem natureza
pblica, isto , a instaurao do processo e subsequente investigao pelo MP no
carece da vontade da vtima. O Ministrio Pblico pode ter conhecimento da situao
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quer atravs da vtima que denuncia a situao, das foras de seguranas, denncias
annimas, quer de outros elementos, como por exemplo, uma notcia.
Aproveitando o facto de ter acabado de referenciar um artigo do Cdigo Penal que
to relevante em todo o processo da VD, realo, agora, a Lei n. 112/2009, igualmente
importante para este mesmo processo. Esta Lei estabelece o regime jurdico aplicvel
preveno da violncia domstica, proteo e assistncia das vtimas. extremamente
completa, apresentando vrios elementos fundamentais e pertinentes para as vtimas,
nomeadamente, todos os seus direitos e apoios (por exemplo: direito informao,
proteo; apoio financeiro, entre outros); Esta lei conta, tambm, com uma seo dedicada
proteo policial e tutela judicial, onde mencionado o acesso da vtima ao direito,
abordando, ainda, a denncia, a deteno, as medidas de coao urgentes, entre outros
elementos que dizem respeito ao processo judicial.
ainda possvel encontrar na Lei n. 112/2009, vrios artigos dedicados ao
esclarecimento do que so as casas de abrigo, os centros de atendimento, os ncleos de
atendimento e os grupos de ajuda mtua. Para alm disso so referenciados os objetivos,
o modo de funcionamento das casas de abrigo, como se processa o acolhimento e, ainda,
a equipa tcnica e qual a formao que a mesma deve ter. Por fim, nesta lei, consta a
educao para a cidadania, onde so apresentados vrios elementos que dizem respeito
educao para a cidadania e que so assegurados pelo Estado, como por exemplo, a
promoo de polticas de preveno da violncia domstica.
2.3 O ciclo da violncia
Fase do aumento da
Tenso
Fase da Violncia
Fase da Lua de Mel
Fig. 1 O ciclo da Violncia contra as Mulheres nas Relaes de Intimidade
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Foi a enfermeira-antroploga estadounidense Lenore Walker que, em 1979,
desenvolveu uma teoria sobre o ciclo da violncia contra as mulheres nas relaes de
intimidade, contendo trs fases como se pode observar pela figura acima.
Na primeira fase, a fase do aumento de tenso, e segundo Almeida (2001)
quando qualquer atitude por parte da mulher, como por exemplo, ter ou no cozinhado,
serve para espoletar comportamentos agressivos da parte de quem perpetra a violncia.
Assim, a mesma facilmente desencadeada, gerando-se um ambiente de perigo para a
vtima. Na segunda fase, () a violncia fsica ocorre normalmente de forma repentina.
O agressor maltrata fsica e psicologicamente a mulher () ficando, por vezes, a mulher
em estado grave, necessitando de tratamento mdico () (Almeida, 2001: 261). Os
agressores culpam a vtima pela violncia exercida. tambm nesta fase que,
habitualmente, as vtimas procuram ajuda junto das instituies competentes, famlia e/ou
amigos e na polcia. Na ltima fase, ocorre () um perodo de desculpabilizao por
parte do agressor. O medo de perder a companheira leva-o a minimizar as agresses ()
frequentemente mostra-se arrependido e faz promessas de no voltar a fazer o mesmo
() (Idem: Ibidem) , tambm, nesta fase que a vtima passa a ter esperana no
companheiro, acreditando que o mesmo vai mudar o seu comportamento, o que a pode
levar a desistir de procurar ajuda ou at mesmo a querer cessar o processo judicial.
De seguida, neste captulo de enquadramento terico, estaro presentes os custos
associados violncia domstica.
2.4 Os custos da violncia domstica
A violncia domstica enquanto um grave problema social e uma violao aos
direitos humanos, gera vrios tipos de custos, humanos, sociais e econmicos, e em vrios
sectores da nossa sociedade. Custos esses que afetam no apenas a vtima, mas tambm
as/os que lhe esto prximos/as e sociedade em geral, visto que so custos pagos por
toda a sociedade, atravs dos impostos casas de abrigo, polcia, magistrados, tcnicos
de apoio social, entre outros.
Inicio, ento, com os custos/impactos da VD, no que diz respeito sade fsica e
psicolgica das vtimas. Seguindo o estudo efetuado por Lisboa, Barros & Cerejo (2008),
acerca dos custos sociais e econmicos da violncia exercida contra as mulheres,
possvel compreender que, ao nvel da sade fsica, as vtimas tm uma maior
probabilidade de desenvolver alguns problemas, sendo alguns exemplos as
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equimoses/hematomas, feridas, coma, hemorragias, leses genitais, queimaduras,
obesidade, asma, cefaleias, entre outros. No que diz respeito sade psicolgica, e uma
vez mais, as vtimas, em comparao com as no vtimas tm uma maior probabilidade
de sentir desnimo, sentimento de culpa, tristeza, auto-desvalorizao/baixa auto-estima,
solido, tentativa de suicdio, entre outros. Neste seguimento, posso mencionar que os
custos da violncia domstica, relativos sade, esto relacionados com os vrios gastos
em hospitais e centros de sade, nomeadamente em consultas, internamentos e
medicamentos. De salientar que, e de acordo com Lisboa, Barros & Cerejo, cerca de 68%
dos custos econmicos relacionados com a sade suportada pelas vtimas. Este valor
apenas diz respeito ao consumo de medicamentos.
Para alm custos relacionados com a sade, existem, tambm, os custos ao nvel
das relaes interpessoais. No seguimento do estudo salientado acima, () um dos
espaos sociais mais afectados so os ncleos afectivamente mais prximos das vtimas,
como sejam o da famlia e o dos amigos. (Idem: 5), e que, portanto, dizem respeito s
relaes interpessoais. A perceo das mulheres inquiridas no estudo estabelece uma
relao de causalidade entre a violncia e os efeitos negativos junto da famlia e dos
amigos, sendo que o grau de parentesco que mais afectado o de me-filho/a, o que
quer dizer que os(as) filhos(as) das vtimas sofrem os efeitos negativos da violncia
exercida contra as mes, e os mesmos(as) acabam por ser, a seguir s mulheres, as maiores
vtimas da violncia contra as mulheres. A seguir a um episdio de agresso, a vtima fica
afetada pelo medo e pelo impacto na sua sade fsica e/ou psicolgica, pelo que necessita
de tempo para se cuidar, e, por vezes, precisa de obter cuidado por parte de profissionais
de sade. Mais ainda, segundo Sani (2008), o papel de me fica comprometido, uma vez
que:
Durante um episdio violento a vtima direcciona grande parte da sua ateno e energia
para a monitorizao e avaliao do estado afectivo do companheiro e a tendncia para
ser violento. Neste ambiente provvel que a vtima se preocupe com questes como a
sua segurana e a dos filhos e possa descuidar a satisfao das necessidades das suas
crianas. (Sani, 2008: 125)
Ainda segundo a mesma autora, Sani (2008), em algumas situaes, as
progenitoras adotam condutas coercivas como estratgia parental para lidar com os/as
filhos/as, ou como forma de reduzir e at evitar atitudes mais severas por parte do
agressor. Estas prticas coercivas exercero uma influncia negativa sobre as crianas e
jovens, no entanto, no se pode descurar o facto de que mais negativa a violncia
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perpetrada pelo agressor contra a vtima, e precisamente nesta violncia que existe uma
relao direta entre a mesma e a probabilidade da sua reproduo geracional. No tpico
seguinte ir ser mais aprofundada esta questo das crianas e jovens, e os danos da
violncia nesta faixa etria.
Existem, ainda, os gastos, indiretos, da VD, que dizem respeito rea social,
nomeadamente das instituies que fazem encaminhamento, atendimento e interveno
com as vtimas, ou que, de alguma forma as apoiam, como a segurana social, os centros
de atendimento a vtimas, casas de abrigo, entre outros. Os estudos apontam para o facto
de que os custos econmicos indiretos continuam inferiores aos custos diretos da VD.
Os custos econmicos e os que se verificam nas atividades profissionais
constituem outro dos tipos de custos da VD. Assim, os custos econmicos da VD
expressam-se por:
faltas ao trabalho, perdas salariais, tempo e dinheiro gastos com divrcios (...) mdicos,
medicamentos (...) idas aos hospitais e centros de sade, internamentos (...) igualmente
so de assinalar outros custos relativos a gastos oramentais de organizaes pblicas e
privadas e de instituies do Estado (...)(Lisboa, Barros & Cerejo, 2008: 4)
Atravs do pequeno excerto transcrito acima, torna-se visvel que os custos
econmicos se encontram relacionados a vrios setores: o profissional, onde se verificam
os despedimentos, a no progresso na carreira, o absentismo, os acidentes no trabalho,
entre outros elementos. No que diz respeito aos custos nas atividades profissionais, e uma
vez mais recorrendo ao estudo referido acima de Lisboa, Barros & Cerejo (2008), as
vtimas tm duas vezes mais probabilidade de serem despedidas do que as no vtimas.
J na rea acadmica, os custos dizem respeito ao absentismo e insucesso escolar. Assim,
() a perceo de insucesso escolar bastante mais significativa nas mulheres vtimas
de violncia [e] a probabilidade das mulheres vtimas faltarem cerca de 72% ()
quando comparadas com as no vtimas (Idem: 5).
2.5 Os danos da violncia domstica nas crianas e jovens
Se anteriormente foram referenciados os custos da violncia domstica, quer para
as vtimas, quer para a sociedade em geral, torna-se de extrema importncia referir
tambm os principais impactos nas crianas e jovens, nomeadamente, os/as filhos/as das
vtimas. E de extrema importncia, no apenas por ser uma questo que, efetivamente,
faz parte do tema abordado neste relatrio, mas tambm pelo domnio de mestrado que
frequento Infncia, Famlia e Sociedade: Temas e Problemas em Educao domnio
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esse que se encontra diretamente relacionado com a investigao e interveno em
questes de natureza educativa acerca da infncia, da famlia e da sociedade. Ora, sendo
o fenmeno de violncia domstica altamente complexo, constitui tambm, um problema
que , tambm, um problema cultural e de mentalidades, portanto, um problema
educativo. Mais adiante, apresenta-se um captulo apenas dedicado ao tema deste
relatrio e a sua relao com a profissionalidade em Cincias da Educao e com o
domnio acima mencionado.
Segundo Sani (2006), a criana ou jovem acaba por ser tambm uma vtima da
violncia quando assiste s ofensas, agresses, queixas e lamentaes entre os cnjuges.
Este conjunto de fatores produz na criana sentimentos de insegurana, medo e culpa,
dada a incapacidade do perpetrador lhe proporcionar um ambiente familiar estvel e
seguro. Para alm de que, e na tica da mesma autora, e tambm de Isabel Dias (2004) o
facto de as crianas e jovens serem vtimas, aumenta o risco de, na idade adulta, virem a
ser perpetradores/as ou vtimas, tal como j tinha sido mencionado anteriormente.
Segundo a mesma autora, e tendo em conta um dos seus estudos realizados com
um grupo restrito de crianas, que viviam com as suas mes numa casa de abrigo,
possvel a apresentao de algumas concluses no que diz respeito aos danos que a
violncia pode provocar nas crianas e jovens, como por exemplo, o facto de estes/as
poderem apresentar mais problemas comportamentais, e desenvolverem relacionamentos
mais ambivalentes com os/as seus/suascuidadores/as do que as crianas que no so
vtimas. Para alm disso, a autora, tambm refere que algumas crianas apresentam
() quer problemas de internalizao, quer de externalizao. Estes parecem estar
relacionados com a competncia social, dificuldade da criana em interpretar situaes
sociais e relaes interpessoais, resoluo de problemas, agressividade () capacidade
de empatia debilitada, baixos nveis de realizao acadmica, entre outros. (Sani, 2011:
43)
Torna-se, tambm, relevante mencionar que existem diferenas na forma como
crianas e jovens percecionam e interpretam a violncia. As variveis como o sexo, a
idade e at mesmo, as caractersticas pessoais, o ambiente escolar, entre outros, fazem
com que as crianas e jovens reajam de maneira diferente a este problema social.
A autora supramencionada refere, ainda, que as crianas e jovens que convivem
com a violncia podem experienciar outras adversidades, nomeadamente: a pobreza,
desnutrio, falta de cuidados mdicos adequados, o desemprego parental, entre outros.
Estes problemas, no diretamente associados VD, exigem dos servios e das/os
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profissionais ateno acrescida na interveno, e por parte do Estado, recursos acrescidos
para combater a VD em grupos sociais atravessados de outras desvantagens e
vulnerabilidades sociais e econmicas.
Finalizo este tpico, ressalvando, uma vez mais que as informaes mencionadas
nestes ltimos pargrafos dizem respeito s principais concluses da autora, Ana Sani, no
estudo realizado, querendo com isto dizer que, no deve ser feita uma generalizao.
2.6 A importncia das Cincias da Educao na problemtica da violncia domstica
e de gnero
Tal como j mencionei anteriormente, a violncia domstica e as desigualdades
de gnero so, tambm, um problema cultural, e constituem graves problemas da
sociedade. Ora, sendo um problema de mentalidades e de comportamentos, possvel que
o mesmo seja trabalhado junto dos indivduos, atravs de uma interveno socio-
educativa e pedaggica. Educar para uma cidadania livre de esteretipos e preconceitos
constitui um dos princpios fundamentais de uma educao democrtica. Uma cidadania
ativa que reconhece os direitos de todas as pessoas e tambm os seus deveres. neste
sentido que as cincias da educao tm um papel fundamental, pois problematizam a
realidade, analisam-na criticamente e colocam a educao no cerne da ao no mbito da
sua preveno. De salientar que as pessoas e os contextos e/ou dinmica envolventes
(sociais, culturais e econmicos), e todos os processos de interao que da decorrem
formam o principal foco das questes educativas.
E, em questes prticas, como se desenvolve a ao das cincias da educao no
que refere problemtica em estudo? Em primeiro lugar, e tal como foi vagamente
abordado anteriormente, deve existir um trabalho de sensibilizao acerca da violncia
domstica junto da comunidade. Um(a) especialista em educao possui competncias
para desenvolver esse tipo de trabalho, nomeadamente, porque, nos ltimos anos, no
nosso pas, se ter verificado uma crescente investigao e interveno na rea. So vrias
as aes de sensibilizao e consciencializao que se desenvolvem, tanto nas escolas
como junto de entidades da sociedade civil. A interveno em contexto escolar, e tal como
veremos adiante, constitui-se como ao chave para a educao de crianas e jovens.
Alguns estudos mostram alguns resultados que indicam estarmos a educar para uma
cidadania ativa, e para a promoo da igualdade de gnero. Nestas aes de
sensibilizao, diretamente focadas para a preveno da violncia domstica e de gnero,
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tratam temas como a educao para a cidadania, a igualdade e esteretipos de gnero, os
direitos e deveres do ser humano, entre outros.
As escolas assumem-se como instncias primordiais no trabalho de preveno
primria, pois constituem-se como:
(.) um importante espao de socializao, [que] pode ser olhada como contexto
promissor para a anlise de construo de identidades, pois que, nas condies actuais, a
construo das identidades (subjectivas e colectivas) um processo reflexivo e
contextualmente estruturado (Stoer et al., 2001: 241).
Podemos tambm acrescentar, e tal como foi mencionado acima, que a escola,
sendo um importante espao de socializao, consiste no espao onde as crianas e jovens
passam a maior parte do seu tempo.
A ao de um/a profissional em Cincias da Educao, neste campo, deve ser uma
ao de mediao socioeducativa com um propsito transformador () uma vez que um
dos [seus] objetivos primordiais proporcionar uma aprendizagem mtua, de troca de
experincias, partilhas, onde os/as participantes adoptem uma postura reflexiva ()
(Gomes, 2016: 31). Assim, a mediao () promove o crescimento moral ao ajud-las
[s pessoas] a lidarem com as circunstncias difceis e a ultrapassarem as diferenas humanas
() (Bush & Folger, in, Torremorell, 2008: 17). A mediao socioeducativa, em mbito
escolar e atravs projetos de preveno primria, possibilita que crianas e jovens partilhem
as suas experincias e opinies para com os/as demais sobre o tema. Experincias e opinies
essas que so (ou podem ser) divergentes entre si, o que propicia o debate e a formulao de
questes sobre o tema, sendo este ambiente favorvel, precisamente, para a troca de
experincias, e posicionamento no lugar/perspetiva do/a outro/a. Para alm deste aspeto,
podemos referir que este trabalho de preveno primria, e tal como o prprio nome indica,
para alm de sensibilizar crianas e jovens para o problema social, permite, ainda, que sejam
criadas condies para que situaes de violncia no ocorram, ou que, caso ocorram, se
proceda de forma correta, assegurando, em primeiro lugar a proteo da vtima, e, em segundo
a responsabilidade do agressor.
Depois de abordar a importncia da ao dos/as tcnicos/as superiores de educao
na preveno primria, em contexto escolar e/ou na comunidade, considero pertinente
referenciar o seu papel na preveno secundria e terciria. Contudo, saliento, desde j, que
para a ao nestes dois tipos de preveno necessrio que o(a) tcnico(a) possua uma
formao especializada, neste caso, de tcnico(a) de apoio vtima (TAV), visto que nenhum
curso superior prepara ou d competncias suficientes e necessrias ao() profissional para
trabalhar esta problemtica em especfico.
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Segundo Teixeira (2015), e no que se refere preveno secundria, um/a profissional
de cincias da educao pode realizar o primeiro atendimento vtima, quando a mesma
chega ao centro de atendimento. Neste primeiro atendimento, encaminha-se a vtima para o
tipo de apoio necessrio (social, psicolgico e jurdico), esclarecem-se algumas
dvidas/questes colocadas por parte da vtima, e informa-se a mesma sobre os direitos
consignados pela lei. Sendo, ainda, necessrio, e segundo Almeida (2001), assegurar vtima
proteo e segurana, que s possvel atravs da elaborao de um plano de segurana e da
avaliao do risco. Para tais aes, o/a profissional, () deve ter uma atitude de empatia, ou
seja, colocar-se no ponto de vista da vtima, () deixar o seu prprio ngulo de viso e ver
as coisas pelo ngulo da vtima (Almeida, 2001: 273). Para alm disso, torna-se, ainda,
crucial que o(a) tcnico(a), e segundo a mesma autora, no se identifique em excesso com a
situao da vtima, pois isso representa uma emotividade por parte do/a profissional que pode
conduzir retirada do sentimento de segurana por parte da vtima. Neste seguimento,
considero pertinente citar Ardoino (1997), no que diz respeito ao seu conceito de implicao:
As nossas implicaes so aquilo por que mais nos prendemos existncia; os nossos
enraizamentos, os nossos laos. De um ponto de vista principalmente psicolgico, estas
implicaes libidinais sero geradas pelos avatares marcantes no decurso da nossa pr-
histria. (Ardoino, 1997: 4), ou seja, a implicao encontra-se diretamente relacionada
com a nossa classe social, etnia, gnero, e ao lugar que ocupamos na sociedade, tendo
a si atracada toda a nossa histria. precisamente neste sentido que o/a tcnico/a se pode
identificar com a vtima, no entanto, e tal como foi mencionado, essencial que no exista
um excesso desta identificao, mas sim, uma implicao conjugada ao seu antagnico,
a distanciao.
Na preveno terciria, em contexto de casa de abrigo, e na tica de Teixeira (2015),
o papel de um/a especialista em educao passa pelo desenvolvimento de estratgias no
sentido de auxiliar as vtimas a se reintegrarem na sociedade, construindo um novo projeto
de vida e fomentando a sua autonomia. Costa (2013) alerta-nos, ainda, para as tenses que se
podem gerar entre utentes da casa de abrigo, sendo, tambm, necessria a ao de um/a
profissional em educao, de modo a exercer uma mediao de conflitos, em que se pretende
demonstrar que o conflito deve ser encarado como uma oportunidade de construo de novas
solues e de aprendizagem, e no, apenas, como algo negativo e perturbador.
Assim, e aps a exposio destas duas grandes vertentes de ao do/a especialista em
educao desenvolvimento de projetos educativos de preveno primria em mbito escolar
e/ou na comunidade e atuao nos centros de atendimento vtima e em casas de abrigo
constata-se que a educao possui um papel preponderante na formao de uma sociedade
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consciente, sensibilizada e responsvel, para todos/as, e que esta formao pode ser a origem
da mudana social. Acrescento, ainda, que o/a mediador/a, ou especialista em educao
possui uma () polivalncia de funes, que permite a melhoria do acesso aos recursos
humanos e materiais, o apoio e articulao com outros profissionais e a criao de redes
comunitrias () [proporcionando, ainda] que os participantes adotem uma postura
reflexiva () (Silva et al., 2010: 120). Sendo que esta postura reflexiva, torna-se
fundamental nas duas vertentes de interveno apresentadas, visto que a reflexo ser o
primeiro passo para a mudana e consciencializao.
2.7 A educao e a ao das Cincias da Educao numa autarquia
Se anteriormente foi referenciada a importncia das CE para a problemtica da
VD e violncia de gnero, considero, agora, pertinente, salientar o papel da educao e
importncia da ao das cincias da educao numa autarquia, e o possvel modo de
construo da profissionalidade nesta mesma instncia.
Neste sentido, e falando especificamente da educao, devido a todas as alteraes
ocorridas ao longo dos ltimos anos, como por exemplo, a transferncia de competncias
do poder central para as autarquias, e a descentralizao de competncias do Ministrio
da Educao para as autarquias a estabelecimentos de ensino, fez com que as autarquias
passassem a ter domnios de interveno que at ento no eram da sua competncia.
De acordo com Duarte (2014) ocorreu esta maior responsabilizao autrquica ao
nvel da educao, que, igualmente, () implicou a interao das Autarquias com
diferentes parceiros e o desenvolvimento de papis diversificados, nomeadamente o de
facilitador, dinamizador, organizador e parceiro de iniciativas, projetos e instituies
locais. (Duarte, 2014: 40) Este ltimo facto foi facilmente observvel no estgio
realizado, sobretudo no que diz respeito s atividades em que tive a oportunidade de
participar, e aquelas que foram ocorrendo, mas que no pude participar, onde se verificava
que a DAS tinha um papel de organizador, dinamizador e parceiro de algumas iniciativas.
At mesmo no que diz respeito ao contacto realizado com as instituies especializadas,
se verificou, em alguns casos, uma estreita ligao entre a DAS CMP e as diversas
instituies. O mesmo sucede em relao s juntas de freguesia entrevistadas, onde um/a
dos/as entrevistados/as salientou que a essa JF estava envolvida em vrios projetos
enquanto parceira.
Ao nvel da educao, as autarquias possuem vrias competncias, como por
exemplo: a monitorizao e avaliao da qualidade do ensino do municpio, a gesto de
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algumas escolas, o desenvolvimento de programas destinados a todos os ciclos de ensino,
entre outras. O conjunto de todas as competncias das autarquias tem promovido, cada
vez mais, e segundo Duarte (2014: 41) () aes mais significativas para os contextos
e atores, favorecendo, mais eficazmente, o desenvolvimento de respostas aos problemas
sociais. Pode, ainda, salientar-se que, e, segundo Fonseca (s/data), as autarquias
constituem-se enquanto elemento aglutinador dos cidados, e que representa a sociedade
civil. Portanto, () a rede autrquica tem um papel fundamental a desempenhar na ()
mobilizao, entendida como uma efetiva participao dos cidados. (Fonseca, s/data:
252)
No que diz respeito rea debatida neste relatrio a violncia domstica uma
autarquia tem competncias, por exemplo, ao nvel do diagnstico, monitorizao e
avaliao das estruturas que fazem atendimento de vtimas.
Ora, de entre alguns dos exemplos que poderia dar em relao ao de um/a
especialista em educao numa autarquia, dou o seguinte: na formao em cincias da
educao so desenvolvidos e aprofundados conhecimentos e ferramentas que se
relacionam diretamente com a conceo de projetos. Esta conceo envolve vrias etapas,
e que, segundo Capucha (2008), se podem resumir nas seguintes: o diagnstico de partida;
o desenho do projeto que engloba as suas orientaes gerais/finalidades, o oramento, os
recursos e o plano de ao e a sua organizao. Posteriormente, encontra-se, ento, a
execuo do projeto e a sua avaliao. Assim, nesta ordem de ideias, constata-se que um/a
especialista em educao possui as competncias necessrias para desenvolver uma ao
que envolva o diagnstico, monitorizao e avaliao, quer seja de projetos, programas
ou aes promovidos por determinada autarquia. Saliento a importncia da
monitorizao, visto que uma ferramenta que permite acompanhar todo o processo, e
caso necessrio, realizar alteraes tendo em conta o pblico ao qual o
projeto/programa/ao dirigido, e as suas reais necessidades. O mesmo se aplica
avaliao que, no campo das cincias da educao, deve ser privilegiada a avaliao
contnua, isto , ao longo de todo o processo, uma avaliao formativa.
Em suma, a ao de um/a tcnico/a superior de educao numa autarquia pode
revelar-se bastante til, na medida em que o/a mesmo/a possui competncias e
ferramentas que possibilitam, at mesmo, uma melhoria nas respostas sociais para a
comunidade, respostas essas que, muitas vezes, dizem respeito, justamente aos projetos.
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Captulo III - Enquadramento Jurdico-Legal Internacional da Violncia Domstica
Neste captulo sero apresentados alguns marcos legais e polticos internacionais
que fizeram toda a diferena para as mulheres, nesta luta pelo reconhecimento dos seus
direitos e, tambm, pela eliminao da violncia contra mulheres e meninas. Aproveito
para mencionar que os anos 1970, 80 e 90 do sculo XX, a nvel transnacional, se
mostraram preponderantes para a alterao do estatuto da mulher e reconhecimento dos
seus direitos, e, precisamente por esse fator, indico, por ordem cronolgica os principais
marcos. Em Portugal, () s a partir da dcada de oitenta que a violncia domstica
foi identificada como um problema social. () na dcada de noventa [foi criada]
legislao especificamente voltada para as vtimas de violncia domstica ()
(Coimbra, 2007: 30).
3.1 Conveno sobre a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao contra a
Mulher CEDAW (1979)
Para a presente pesquisa, torna-se relevante compreender que avanos se fizeram
no que diz respeito ao combate contra a violncia domstica e discriminao baseada no
gnero. Para efeitos deste relatrio, e tendo em conta a sua atual vigncia, situamos a
nossa pesquisa a partir do ltimo quartel do sc. XX. Assim, como primeiro elemento
encontra-se a Conveno sobre a Eliminao de Todas as Formas de Violncia contra a
Mulher (CEDAW em ingls), adotada em 1979, que representa o primeiro tratado que
busca a promoo dos direitos da mulher, baseando-se na igualdade de gnero tendo,
ainda, como objetivo a proibio e sano de qualquer forma de discriminao contra a
mulher. Um dos artigos desta Conveno, o 11, demonstra, precisamente, esta luta
contra toda e qualquer forma de discriminao contra a mulher.
1. Os Estados-parte adotaro todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminao
contra a mulher na esfera do emprego a fim de assegurar, em condies de igualdade entre
homens e mulheres, os mesmos direitos, em particular:
a) O direito ao trabalho como direito inalienvel de todo ser humano;
b) O direito s mesmas oportunidades de emprego, inclusive a aplicao dos mesmos
critrios de seleo em questes de emprego;
c) O direito de escolher livremente profisso e emprego, o direito promoo e
estabilidade no emprego e a todos os benefcios e outras condies de servio, e o direito
ao acesso formao e atualizao profissionais, incluindo aprendizagem, formao
profissional superior e treinamento peridico;
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d) O direito a igual remunerao, inclusive benefcios, e igualdade de tratamento relativa
a um trabalho de igual valor, assim como igualdade de tratamento com respeito
avaliao da qualidade do trabalho;
e) O direito seguridade social, em particular em casos de aposentadoria, desemprego,
doenas, invalidez, velhice ou outra incapacidade para trabalhar, bem como o direito a
frias pagas;
f) O direito proteo da sade e segurana nas condies de trabalho, inclusive a
salvaguarda da funo de reproduo. (Art. 11., CEDAW: 1979)
O artigo mencionado acima, tal como possvel observar, refere os acessos s
mesmas oportunidades de emprego, entre homens e mulheres, salientando todos os
direitos que se encontram diretamente relacionados com o setor profissional, como por
exemplo, o direito segurana social, segurana nas condies de trabalho, igualdade
no que diz respeito remunerao, entre outros. Contudo, e passadas quase quatro
dcadas desde a adoo desta Conveno, ainda muitas so as lutas que se realizam no
que diz respeito igualdade entre homens e mulheres no acesso s oportunidades de
emprego, bem como s remuneraes que dele resultam, ou aos cargos ocupados, quer
em Portugal, quer a nvel internacional. De forma a fundamentar o que foi mencionado,
apresento uma tabela onde se pode observar as diferenas, ainda significativas, entre a
remunerao base mdia e ganho de homens e mulheres, em Portugal, no ano de 2000,
2005, 2010 e 2015.
_________________________________________
*2Retirado de:
http://www.pordata.pt/Portugal/Sal%C3%A1rio+m%C3%A9dio+mensal+dos+trabalhadores+por+conta+
de+outrem+remunera%C3%A7%C3%A3o+base+e+ganho+por+sexo-894
Tabela 1: Remunerao base mdia e ganho mdio de homens e
mulheres em Portugal. Fonte: PORDATA.*2
http://www.pordata.pt/Portugal/Sal%C3%A1rio+m%C3%A9dio+mensal+dos+trabalhadores+por+conta+de+outrem+remunera%C3%A7%C3%A3o+base+e+ganho+por+sexo-894http://www.pordata.pt/Portugal/Sal%C3%A1rio+m%C3%A9dio+mensal+dos+trabalhadores+por+conta+de+outrem+remunera%C3%A7%C3%A3o+base+e+ganho+por+sexo-894
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3.2 Declarao e Programa de Ao de Viena (1993)
Aps a Conveno sobre a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao
contra a Mulher (CEDAW), de 1979, surge, em 1993, a Declarao de Viena e o respetivo
Programa de Ao. Esta Declarao tem como principal intuito a promoo e proteo
dos direitos humanos, o que significa que no seu cerne tambm se encontram
preocupaes relacionadas com as formas de violncia e discriminao contra as
mulheres que passam a ser consideradas violaes dos direitos do ser humano. Esta
declarao, tambm, representa um marco importante no que refere igualdade entre
homens e mulheres e ao respeito pelos seus direitos fundamentais. Transcrevo, da
Declarao, um dos artigos que aborda a importncia da considerao dos direitos das
mulheres como parte integrante e fundamental dos direitos humanos, bem como a
importncia da erradicao de todas as formas de discriminao com base no gnero:
Os Direitos Humanos das mulheres e das crianas do sexo feminino constituem uma
parte inalienvel, integral e indivisvel dos Direitos Humanos universais. A participao
plena das mulheres, em condies de igualdade, na vida poltica, civil, econmica, social
e cultural, aos nveis nacional, regional e internacional, bem como a erradicao de todas
as formas de discriminao com base no sexo, constituem objetivos prioritrios da
comunidade internacional. A violncia baseada no sexo da pessoa e todas as formas de
assdio e explorao sexual, nomeadamente as que resultam de preconceitos culturais e
do trfico internacional, so incompatveis com a dignidade e o valor da pessoa humana
e devem ser eliminadas. Isto pode ser alcanado atravs de medidas de carter legislativo
e da ao nacional e