contribuiÇÕes À descolonizaÇÃo da economia polÍtica

15
0 CONTRIBUIÇÕES À DESCOLONIZAÇÃO DA ECONOMIA POLÍTICA INTERNACIONAL EM DIÁLOGO COM AS DIÁSPORAS NEGRAS LATINO- AMERICANAS Lúcia de Toledo França Bueno 1 Pedro Henrique de Moraes Cícero 2 RESUMO As epistemologias centradas no restrito grupo dos povos colonizadores têm orientado a concepção sobre a edificação do sistema capitalista em direção a uma produção de conhecimento com propósito universalista. Nesse sentido, este trabalho integra um movimento de resistência que busca alocar as diferentes economias na divisão internacional do trabalho de forma a explicitar as hierarquias com base em critérios dicotômicos criadas pelas sociedades europeias com a intenção de subjugar as comunidades indígena e africana. Compreendendo que o pensamento decolonial precisa ser tratado com dialética, este artigo propõe um diálogo entre a invenção da categoria “raça” como pilar da reprodução da lógica de acumulação do capital no âmbito do sistema-mundo e o projeto epistemológico racial-patriarcal baseado em paradigmas norte-cêntricos. Tal proposta embasa-se na ressignificação do pensamento a partir de lugares étnico-raciais subalternos à luz de Ramón Grosfoguel, no conceito de “colonialidade do poder” de Aníbal Quijano bem como nos apontamentos realizados por Lélia Gonzalez no que tange às especificidades do racismo latino-americano. Dessa forma, pretende-se explorar a complexidade da construção de hierarquias político-econômico-culturais no contexto das diásporas negras que levaram à subalternização dos povos colonizados, enfatizando as relações de poder estruturalmente construídas na América Latina. Palavras-chave: Epistemologias do Sul. Economia Política Internacional. Diásporas Negras. Racismo epistêmico. 1 Graduanda em Relações Internacionais pelo Instituto de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (IERI-UFU). Pesquisadora bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) sob orientação do Profº Drº Pedro Henrique de Moraes Cícero, integrando o Grupo de Pesquisa “Anticapitalismos e Sociabilidades Emergentes” e o Grupo de Estudos em Gênero e Relações Internacionais (GENERI), coordenado pela Profª Drª Débora Figueiredo Mendonça do Prado. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0988847636189100. 2 Professor Doutor no Instituto de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia, bem como do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da mesma Universidade. Atua em Projeto de Colaboração Técnica junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados sobre as Américas no Departamento de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Brasília (ELA/ICS/UnB). Lattes: http://lattes.cnpq.br/8859880397472253.

Upload: others

Post on 17-Jul-2022

3 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: CONTRIBUIÇÕES À DESCOLONIZAÇÃO DA ECONOMIA POLÍTICA

0

CONTRIBUIÇÕES À DESCOLONIZAÇÃO DA ECONOMIA POLÍTICA

INTERNACIONAL EM DIÁLOGO COM AS DIÁSPORAS NEGRAS LATINO-

AMERICANAS

Lúcia de Toledo França Bueno1

Pedro Henrique de Moraes Cícero2

RESUMO

As epistemologias centradas no restrito grupo dos povos colonizadores têm orientado a

concepção sobre a edificação do sistema capitalista em direção a uma produção de conhecimento com propósito universalista. Nesse sentido, este trabalho integra um movimento

de resistência que busca alocar as diferentes economias na divisão internacional do trabalho de forma a explicitar as hierarquias com base em critérios dicotômicos criadas pelas sociedades europeias com a intenção de subjugar as comunidades indígena e africana. Compreendendo que

o pensamento decolonial precisa ser tratado com dialética, este artigo propõe um diálogo entre a invenção da categoria “raça” como pilar da reprodução da lógica de acumulação do capital no âmbito do sistema-mundo e o projeto epistemológico racial-patriarcal baseado em

paradigmas norte-cêntricos. Tal proposta embasa-se na ressignificação do pensamento a partir de lugares étnico-raciais subalternos à luz de Ramón Grosfoguel, no conceito de “colonialidade

do poder” de Aníbal Quijano bem como nos apontamentos realizados por Lélia Gonzalez no que tange às especificidades do racismo latino-americano. Dessa forma, pretende-se explorar a complexidade da construção de hierarquias político-econômico-culturais no contexto das

diásporas negras que levaram à subalternização dos povos colonizados, enfatizando as relações de poder estruturalmente construídas na América Latina.

Palavras-chave: Epistemologias do Sul. Economia Política Internacional. Diásporas Negras.

Racismo epistêmico.

1 Graduanda em Relações Internacionais pelo Instituto de Economia e Relações Internacionais da Universidade

Federal de Uberlândia (IERI-UFU). Pesquisadora bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas

Gerais (FAPEMIG) sob orientação do Profº Drº Pedro Henrique de Moraes Cícero, integrando o Grupo de Pesquisa

“Anticapitalismos e Sociabilidades Emergentes” e o Grupo de Estudos em Gênero e Relações Internacionais

(GENERI), coordenado pela Profª Drª Débora Figueiredo Mendonça do Prado.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/0988847636189100. 2 Professor Doutor no Instituto de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia,

bem como do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da mesma Universidade. Atua em Projeto

de Colaboração Técnica junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados sobre as Américas no

Departamento de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Brasília (ELA/ICS/UnB). Lattes:

http://lattes.cnpq.br/8859880397472253.

Page 2: CONTRIBUIÇÕES À DESCOLONIZAÇÃO DA ECONOMIA POLÍTICA

1

1 INTRODUÇÃO

Compreende-se que as diásporas realizadas compulsoriamente pela população

escravizada possuem impactos significativos na atualidade. Há de se salientar, todavia, que o

foco deste trabalho não está em descrever o impacto do colonialismo na realidade dos países

periféricos, mas sim - e principalmente - propor um diálogo em relação às bases

epistemológicas comumente utilizadas em Economia Política Internacional nos dias de hoje,

campo interdisciplinar que se propõe a ser um espaço de congregação das contribuições

oferecidas por variadas áreas de estudos. As distintas formas de se produzir conhecimento e a

quem interessa a (re)produção de determinadas estruturas de pensamento são tópicos que

evidenciam a interconexão entre poder e conhecimento, componentes fortemente entrelaçados.

Parte-se da recusa à neutralidade axiológica a fim de enfatizar que a evasão formal das

estruturas de poder coloniais em função de um processo de descolonização, a saber, incompleto,

não corresponde à autonomia epistemológica dos povos marginalizados na ordem cultural-

político-econômica mundial.

É defendido que a forma como conceitualizamos a noção de “sistema-mundo” e o

caminhar do capitalismo global, elementos atravessados não apenas por questões político-

econômicas como também por aspectos culturais, embasa-se - predominantemente - em uma

linguagem eurocêntrica, mesmo quando os empenhos são direcionados ao entendimento das

margens desse sistema. Grosfoguel (2008) versa sobre a formulação histórica dessa concepção

ocidentalizada no que tange aos empreendimentos expansionistas europeus a partir do século

XV. O deslocamento do eixo central das rotas comerciais entre europeus e orientais,

anteriormente concentrado na região do Mediterrâneo, volta-se para o Oceano Atlântico.

Segundo Prado Júnior (1963), essa busca por novas rotas viáveis ocorre sob o contexto de

concorrência intraeuropeia por mercados e resulta na secundarização de esferas de poder que,

atualmente, conhecemos como os Estados-nação Alemanha e Itália em favor de pioneiros como

Espanha e Portugal, seguidas de ingleses, franceses e holandeses majoritariamente.

Observando estritamente a finalidade de expansão mercadológica, que constituía o

propósito europeu e - portanto - a leitura que seus representantes (descendentes) realizam, o

viés econômico da dominação e exploração europeias sobressai-se. A partir desta perspectiva,

o sistema-mundo que foi sendo construído e consolidado desde então coloca como questões

essenciais: captar a lógica econômica da obtenção de lucro, da extração de excedentes e da

acumulação de capital em escala global, aspectos que não seriam paralelos ou cruzados em

relação às relações sociais internacionais; não haveria uma rede de vieses, mas sim uma

hierarquia. Contudo, o caráter das estruturas de poder colonial é multifacetado e lidar com as

Page 3: CONTRIBUIÇÕES À DESCOLONIZAÇÃO DA ECONOMIA POLÍTICA

2

instituições derivadas das mesmas apenas a partir de uma lente econômica parece reducionista

frente à complexa classificação, hierarquização e subjugação de populações inteiras a nível

mundial.

Nesse sentido, este artigo visa à análise das contribuições oferecidas pelo pensamento

decolonial para uma compreensão dos constrangimentos estruturais impostos à comunidade

colonizada nas Diásporas. Faz-se necessário, então, averiguar o sentido da invenção da ideia de

“raça” (entendida aqui como uma categoria social, não como diferenciação biológica), os

aspectos herdados do sistema colonial explanados com o conceito de “colonialidade do poder”

e as dimensões remotas e hodiernas do projeto racial-patriarcal o qual denomina-se -

preponderantemente neste campo de estudos - como o “sistema-mundo” capitalista. Também

parece relevante apontar que, neste artigo, não se avalia o surgimento de regimes de escravidão

ou servidão existentes ao redor do globo nos mais diversos períodos históricos, mas sim a

aplicação da invenção de raça em variadas relações sociais de produção como implementação

de uma hierarquia racial a nível mundial.

Tal instrumental teórico nos permite apontar - tanto no plano discursivo e ideológico

quanto no plano político-econômico e admitindo que ambos se interconectam – os percursos da

naturalização de valores impostos aos povos das Diásporas, focalizando (pontualmente) nas

experiências do caso brasileiro.

2 O PÓS-COLONIAL E O DECOLONIAL

Alguns eventos internacionais impulsionaram o surgimento do movimento literário,

teórico, político vislumbrado pelas visões pós-coloniais. Com a descolonização do continente

africano, o fim da Segunda Guerra Mundial e a intensificação no curso da globalização, os

desdobramentos históricos da segunda metade do século XX fizeram emergir muitas autoras e

autores, diaspóricos ou não, em busca de uma compreensão da realidade de povos à margem

do sistema. Em uma genealogia sucinta, Ballestrin indica uma bifurcação do pós-colonialismo:

Depreendem-se do termo “pós-colonialismo” basicamente dois entendimentos. O

primeiro diz respeito ao tempo histórico posterior aos processos de descolonização do

chamado “terceiro mundo”, a partir da metade do século XX. Temporalmente, tal

ideia refere-se, portanto, à independência, libertação e emancipação das sociedades

exploradas pelo imperialismo e neocolonialismo – especialmente nos continentes

asiático e africano. A outra utilização do termo se refere a um conjunto de

contribuições teóricas oriundas principalmente dos estudos literários e culturais, que

a partir dos anos 1980 ganharam evidência em algumas universidades dos Estados

Unidos e da Inglaterra. (BALLESTRIN, 2013, p. 90)

Page 4: CONTRIBUIÇÕES À DESCOLONIZAÇÃO DA ECONOMIA POLÍTICA

3

Atenção especial deve ser dada às categorias basilares no âmbito do estudo sobre a

diferença. Tanto a vertente pós-colonial quanto a decolonial indicam um esforço zeloso visando

a uma percepção positiva quanto à diferença, tendo em vista que a colonização em si constituiu-

se como um encontro radical com o diferente. A experiência histórica traz consigo episódios e

processos nos quais se utilizou da diferença para projetar a desigualdade.

Uma cisão realizada por um conjunto heterogêneo de teóricos que lidam com a temática

colonial refere-se à prática acadêmica paradoxal do Grupo Latino-americano de Estudos

Subalternos. Embora tratassem da subalternidade sob um viés crítico, utilizavam como aparato

conceitual - preferivelmente - a literatura formulada por homens brancos que se situam no

cânone ocidental, perpetuando o uso da linguagem eurocêntrica em detrimento do uso de

importantes contribuições locais, julgando-as inferiores, acessórias ou insuficientes no

exercício de compreensão da realidade periférica. “Ao preferirem pensadores ocidentais como

principal instrumento teórico, traíram o seu objetivo de produzir estudos subalternos.”

(GROSFOGUEL, 2008, p. 116).

Levando em consideração esse “paradoxal risco de colonização intelectual da teoria

pós-colonial”, a teoria e prática decoloniais rompem epistemologicamente com o nacionalismo,

o colonialismo e os fundamentalismos tanto de regiões geograficamente inseridas no continente

europeu quanto nas margens. Por meio desta perspectiva, objetiva-se construir a

pluriversalidade em desfavor de conceitos que se propõem universalistas, neutros e objetivos

alicerçados nos paradigmas eurocêntricos (BERNARDINO-COSTA; GROSFOGUEL, 2016).

O decolonialismo, em vista disso, não corresponderia exatamente a uma ramificação do

pós-colonialismo ao passo em que nega sua eficácia e esquiva-se das implicações que o prefixo

“pós” pode trazer ao entendimento de que as estruturas político-econômicas culturais de poder

permanecem até os dias de hoje, podendo vir a sugerir a superação dos elementos imperialistas.

Não obstante uma suposta “descolonização” do mundo marginalizado, que apenas ocorreu na

dimensão jurídico-política concretizada pela mudança no regime político-econômico mundial

com os processos de independência na periferia, a esfera cultural-ideológica ainda traz gritantes

“feridas coloniais”. Para Luciana Ballestrin, o decolonialismo consiste em uma:

(...) radicalização do argumento pós-colonial no continente por meio da noção de ‘giro

decolonial’. (...) Defende a “opção decolonial” – epistêmica, teórica e política – para

compreender e atuar no mundo, marcado pela permanência da colonialidade global

nos diferentes níveis da vida pessoal e coletiva. (BALLESTRIN, 2013)

Em relação ao estudo ocidentalizado das experiências econômico-político-culturais

subalternas, Santiago Castro-Gomez (2003) - filósofo colombiano - cunhou o termo “ponto

Page 5: CONTRIBUIÇÕES À DESCOLONIZAÇÃO DA ECONOMIA POLÍTICA

4

zero” como “o ponto de vista que se representa como não tendo um ponto de vista”, ou seja,

qualificando-se e colocando-se no palco como não situado temporal nem geograficamente.

Dessa forma, a tal conhecimento seria permitida a articulação dos termos de análise referentes

às esferas que compõem o sistema mundo moderno/colonial. Integram na construção do mito

da superioridade branco-europeia, por meio da figura do homem cartesiano, a supervalorização

da racionalidade como um dom concedido ao homem ocidental e que o condecoraria com

acesso e habilidade de análise universalistas, que alcançassem uma consciência universal e

explicativa de toda a realidade humana. Assim, a visão eurocêntrica é discutível quanto ao modo

de conceitualização do “sistema-mundo” capitalista, seja uma visão elaborada - formalmente -

a partir do Norte ou do Sul Global, tendo em vista que o enfoque recai sobre o locus da

enunciação e não sobre uma região geográfica de forma determinista (GROSFOGUEL, 2008).

Para tal autor, o locus de enunciação (ou o lugar geopolítico e corpo-político) de uma

perspectiva decolonial deve ser levado a sério especialmente ao se tratar das visões e

cosmologias que partem de lugares étnico-raciais e feministas subalternizados na busca por

novas propostas para a conceitualização do que é conhecido como sistema-mundo. Ao

distinguir “lugar epistêmico” de “lugar social”, coloca que “o fato de alguém se situar

socialmente no lado oprimido das relações de poder não significa automaticamente que pense

epistemicamente a partir de um lugar epistêmico subalterno”. Nesse sentido, alude ao já

referenciado Grupo latino-americano e a outras saliências intelectuais de esquerda periférica

que, ao se proporem universalistas, em busca de uma versão única de verdade, demonstram-se

epistemologicamente subservientes à lógica eurocêntrica de conhecimento. Recusando-se,

consequentemente, um determinismo concernente à localização geopolítica do enunciador, “o

que é decisivo para se pensar a partir da perspectiva subalterna é o compromisso ético-político

em elaborar um conhecimento contra-hegemônico” (GROSFOGUEL, 2008).

A partir dessa linha de pensamento, é possível projetar, estruturalmente e via de regra,

quais corpos-políticos (em termos de Fanon - 1967 - e Anzaldúa - 1987 -, emprestados por

Grosfoguel) terão suas enunciações projetadas e quais não em função do enredamento ou da

interseccionalidade político-econômico-cultural do sistema mundo patriarcal-capitalista-

colonial-moderno, organizado hierarquicamente a depender de recortes como raça,

identificação de gênero, classe, orientação sexual, linguísticos, espirituais. Ao não colocarmos

as interseccionalidades como ponto de discussão, a escusa ao destacamento do lugar epistêmico

e do corpo-político que enuncia, sendo assim, perpetua o modo subalternizante de produção de

conhecimento ocidentalizante “legítimo”.

Page 6: CONTRIBUIÇÕES À DESCOLONIZAÇÃO DA ECONOMIA POLÍTICA

5

Em síntese, contrapondo-se ao pensamento colonialista, que pode ser expressado tanto

por visões de direita e imperialistas (explicitamente colonialistas) quanto por uma esquerda que

reproduz o pensamento norte-cêntrico, o decolonialismo emerge como um projeto alternativo

a partir da esquerda, anticolonial, antiimperialista, antipatriarcal que acata a diversidade

epistemológica intrínseca ao mundo como largada em direção ao desmantelando das

instituições coloniais de poder. Embora seja essencial, a dimensão econômica não pode ser

colocada como fundamentalmente superior às outras mencionadas. Em paralelo, é interessante

perceber que uma visão economicista das estruturas de poder sustentam o comportamento da

esquerda latino-americana, a qual se eximiu do debate racial e de gênero, priorizando a

emancipação classista em detrimento de um entendimento interseccional de tais demandas.

3 A INVENÇÃO DO CONCEITO DE RAÇA COMO PILAR DA REPRODUÇÃO

CAPITALISTA E IMPLICAÇÕES DA EPISTEMOLOGIA EUROCÊNTRICA

Esta seção intenta realizar um balanço teórico sobre a invenção do conceito de raça no

contexto das diásporas amefricanas a partir de uma leitura decolonial, buscando compreender

como e com quais propósitos surge o conceito de raça e se é possível delimitar um marco

temporal relativo ao surgimento de tal concepção, além de versar sobre as implicações, no nível

epistêmico, de tal construção eurocêntrica e das contribuições da professora e ativista negra

Lélia Gonzalez, brasileira, no que tange à categoria da Amefricanidade.

Os desafios epistemológicos à compreensão da lógica capitalista a partir de um lugar

epistêmico subalternizado remontam aos princípios da modernidade, sendo estes não referentes

ao período da Reforma, da Ilustração ou da Revolução Industrial, mas sim às tomadas

territoriais estratégias por parte da cristandade ibérica durante o longo século XVI (entre cerca

de 1450 e 1650) sobre porção significativa de um mundo sob domínio muçulmano.

Diferenciando mouros, judeus e cristãos mediante a invenção do critério de “pureza de sangue”,

a vitória significou muito mais do que êxito militar, correspondendo ao rompimento brusco

com as relações sociais de produção e os modos de produção anteriores a 1492

(BERNARDINO-COSTA; GROSFOGUEL, 2016). Tal movimento promoveu uma ruptura

estrutural na estrutura de dominação concebida com a introdução do sistema colonialista.

Para Quijano (2000), a ideia de raça consiste em uma criação estruturada mentalmente

por dominadores europeus, um instrumento de classificação básica da população. Apesar de

possuir origem e caráter colonial, o conceito da diferença racial atravessa séculos em função de

sua adaptabilidade aos diferentes ordenamentos econômico-político-culturais a nível global. De

acordo com o autor, a finalidade dessa invenção era a naturalização das relações coloniais de

Page 7: CONTRIBUIÇÕES À DESCOLONIZAÇÃO DA ECONOMIA POLÍTICA

6

dominação. O objetivo último da hierarquia racial, portanto, seria atuar como um princípio

organizador da economia política e das diversas formas de poder referentes às relações sociais

e aos modos de produção diversos existentes.

A economia capitalista-racista-patriarcal que vinha se expandindo desde o século XV,

portanto, seria a “nova estrutura de controle do trabalho”, assentada sobre a divisão racial do

trabalho disposta estruturalmente. Nessa acepção, o cruzamento entre a inferiorização racial a

e divisão do trabalho amplifica, em escala global, o padrão “colonial/moderno, capitalista e

eurocentrado” de controle dos modos de produção, correlacionando os elementos mencionados

em função da reprodução do capital. A noção do cruzamento entre os elementos da

colonialidade do poder será pormenorizada na etapa seguinte deste artigo. (GROSFOGUEL,

2008; QUIJANO, 2000)

Mediante a “justificativa peculiar” do etnocentrismo colonial, Quijano (2000, p. 210)

aborda a criação do mito da supremacia europeia, mito este baseado em um ponto de vista no

qual os europeus não seriam apenas superiores, porém e - sobretudo - naturalmente superiores

aos povos não-europeus, descartando a tese de uma dominação e exploração sobre culturas

igualmente, ou mais, complexas do que as europeias no mesmo espaço temporal. Tal

perspectiva produziu um mito fundacional da versão eurocêntrica de modernidade em que os

europeus eram os “modernos da humanidade e de sua história, isto é, como o novo e ao mesmo

tempo o mais avançado da espécie” (QUIJANO, 2000, p. 212), colocando-se como criadores

exclusivos e protagonistas da modernidade. O autor ainda indica (em tradução disponibilizada

pelo Conselho Latino-americano de Ciências Sociais - CLACSO):

O notável disso não é que os europeus se imaginaram e pensaram a si mesmos e ao

restante da espécie desse modo – isso não é um privilégio dos europeus– mas o fato

de que foram capazes de difundir e de estabelecer essa perspectiva histórica como

hegemônica dentro do novo universo intersubjetivo do padrão mundial do poder.

(QUIJANO, 2000, p. 212)

Outra problemática da questão do mito fundacional eurocêntrico consiste no fato de os

europeus terem recorrido - e, em certa medida, continuarem recorrendo no campo

epistemológico - à patente da modernidade. De acordo com o mito fundacional mencionado, o

caminho para o desenvolvimento e modernização das sociedades estrearia por um estado de

natureza primitivo que seria interferido pelo processo civilizatório em direção a um modelo de

organização de Estado-nação nos paradigmas eurocêntricos; a civilização europeia/ocidental

seria o ápice do desenvolvimento em termos de modernização e racionalidade coletivas. Desta

forma, conforme pontua Grosfoguel (2008, p. 136), “a exploração e a dominação por parte das

metrópoles tornaram-se justificáveis em nome da ‘missão civilizadora’”, aspecto que também

Page 8: CONTRIBUIÇÕES À DESCOLONIZAÇÃO DA ECONOMIA POLÍTICA

7

pode ser identificado pelo ângulo do “fardo do homem branco”, comumente associado ao

neocolonialismo e neolimperialismo dos séculos XVIII e XIX, já em diálogo com as teorias

evolucionistas positivistas. No que se refere ao dito momento histórico, Lélia Gonzalez

descreve a reformulação do mito fundacional como uma:

(...) tarefa de explicação racional dos (a partir de então) ‘costumes primitivos’, numa

questão de racionalidade administrativa de suas colônias. Agora, em face da

resistência dos colonizados, a violência assumirá novos contornos, mais sofisticados;

chegando, às vezes, a não parecer violência, mas verdadeira superioridade.

(GONZALEZ, 1988, p. 71)

O que Quijano irá demonstrar é que a modernização não é um fenômeno que possa ser

apanhado e patenteado pelos europeus, questionando o conceito de “modernidade” per se, dado

que técnicas de desenvolvimento científico-tecnológico podem ser elaboradas e implementadas

em quaisquer espaços temporais e geográficos, como foi o caso de inúmeras sociedades “alta

cultura” como nos países atualmente conhecidos como China, Índia, Egito e Grécia, bem como

as comunidades Maia-Asteca, bantu e congo, por exemplo. Apenas uma análise muito pouco

cuidadosa poderia nos levar a desvincular as noções de inovação, avanço, racionalidade-

científica, secularidade, dentre outras às significativas heranças deixadas por tais corpos sociais.

Há de se entender que o que foi elaborado não passou de uma ressignificação do termo

“modernidade”, ao passo em que o mesmo passou a designar diretamente a ocidentalização de

sociedades e culturas não europeias (QUIJANO, 2000)

O fato de a Europa haver atuado como “sede do processo de mercantilização da força

de trabalho”, ou seja, onde se desenvolveram a relação capital-salário como aspecto constitutivo

das novas relações sociais de produção e as novas identidades raciais dos colonizados, a partir

de onde se orquestrou a classificação racial, postularam que “a inferioridade racial dos

colonizados implicava que não eram dignos do pagamento salarial. Estavam naturalmente

obrigados a trabalhar em benefício de seus proprietários.” (QUIJANO, 2000, p. 207). Em

verdade, a escravidão baseada na discriminação racial foi estabelecida e organizada como

mercadoria propícia às necessidades da reprodução capitalista. Isso demonstra a

controversidade exposta ao equipararmos o mito fundacional eurocêntrico ao fato de o capital

sempre ter se articulado com múltiplas formas de trabalho.

O controle do trabalho no novo padrão de poder mundial constituiu -se, assim,

articulando todas as formas históricas de controle do trabalho em torno da relação

capital-trabalho assalariado, e desse modo sob o domínio desta. Mas tal articulação

foi constitutivamente colonial, pois se baseou, primeiro, na adscrição de todas as

formas de trabalho não remunerado às raças colonizadas, originalmente índios, negros

e de modo mais complexo, os mestiços, na América e mais tarde às demais raças

Page 9: CONTRIBUIÇÕES À DESCOLONIZAÇÃO DA ECONOMIA POLÍTICA

8

colonizadas no resto do mundo, oliváceos e amarelos. E, segundo, na adscrição do

trabalho pago, assalariado, à raça colonizadora, os brancos. (QUIJANO, 2000, p. 208)

Realizar tal apontamento é indispensável na exposição da não-linearidade no que diz

respeito aos modos produção já existentes e que estão por vir. Além disso, nos permite

vislumbrar as múltiplas e mutáveis possibilidades de harmonização do capital tanto com formas

de trabalho assalariado quanto com formas coercitivas, pouco ou não-remuneradas, sendo que

ambas as métodos coexistiam simultaneamente nas mesmas regiões. Consoante Grosfoguel

(2008, p. 134), entende-se “capitalismo histórico” como um “sistema heterárquico” ou uma

“estrutura heterogênea”. Aqui, nosso interesse não recai sobre quantias referentes ao montante

salarial dos setores sociais remunerados, mas - exclusivamente - sobre o fato de que a invenção

da categoria “raça” serviu para a subjugação de comunidades inteiras a partir da hierarquia

racial.

Essa temática nos reaproxima da visão de Grosfoguel (2008) quando o mesmo menciona

que a “hierarquia étnico-racial global de europeus/não-europeus é parte integrante do

desenvolvimento da complexa divisão internacional do trabalho no sistema-mundo capitalista”,

não sendo a categoria “raça” um item adjacente, mas sim “constitutivo e indissociável da

divisão internacional do trabalho e da acumulação capitalista à escala mundial”. A perspectiva

trazida por este autor compreende uma contribuição substancial para a discussão da economia

política, especialmente em referência à geopolítica-econômica experienciada pelos Estados-

nações cuja composição étnico-racial estampa as Diásporas triangulares (África, América e

Europa).

Como implicações do surgimento de tal conceito, foram produzidas identidades sociais

novas para a experiência histórico-econômica. Definições identitárias que antes apresentariam

uma conotação quase que exclusivamente geográfica (em relação à origem do sujeito ou

coletivo) passaram a trazer em si mesmas associações com determinadas hierarquias, lugares

de enunciação e papeis sociais específicos destinados ao atendimento e reprodução do padrão

de dominação colonial apesar do passar dos séculos. A transmutação, regeneração e

reestruturação da inferiorização com base nos aspectos raciais tem sido tão bem sucedida em

sua penetração nas camadas sociais a ponto de tal instrumento ter atravessado séculos e deixado

para trás o próprio sistema colonialista dentro do qual a ideia de raça foi inventada. Sua

reprodução, contudo, não se caracteriza pelos mesmos elementos constituintes do conceito de

raça em seus primórdios: desenvolveram-se novas características e configurações histórico-

estruturais

Page 10: CONTRIBUIÇÕES À DESCOLONIZAÇÃO DA ECONOMIA POLÍTICA

9

4 COLONIALIDADE DO PODER, PENSAMENTO DE FRONTEIRA E

TRANSMODERNIDADE: PROJETOS TRANSATLÂNTICOS ALTERNATIVOS

O Sul Global foi e continua sendo alvo de dominação epistemológica, ponto que não foi

desfeito com os processos de independência nas Américas. A estrutura de produção de

conhecimento da atualidade latino-americana - composta pelo conhecimento tido como

“legítimo” e seus destinatários - segue a tendência de reprodução dos modelos de produções

científicas e culturais trazidos pelos colonizadores. Ao longo desta etapa busca-se compreender

o conceito de “colonialidade do poder” colocado por Quijano e adscrever ao diálogo

formulações alternativas decoloniais no nível epistêmico, a saber, a noção de “pensamento

crítico de fronteira”, de Walter Mignolo.

Considerando analisar, teoricamente, as continuidades e rupturas das características da

modernidade e do colonialismo, a ideia de “colonialidade do poder” apreende a forma como se

repercute o colonialismo nas instituições temporalmente posteriores ao sistema colonial. A

colonialidade seria, justamente, constituída pelas estruturas de poder global existentes -

inclusive - com o fim do colonialismo. A diferenciação entre colonialismo e colonialidade é

possível a partir do momento em que compreendemos que, embora tenha ocorrido

descolonização latino-americana - expressa nos processos de independência e, assim, na

conformação dos Estados-nação marginalizados -, a mesma não passou da esfera jurídico-

política. Conforme interpretação realizada por Grosfoguel (2008, p. 126), a “colonialidade

permite-nos compreender a continuidade das formas coloniais de dominação após o fim das

administrações coloniais e pelas estruturas do sistema-mundo capitalista moderno/colonial.”

Em outros termos, ainda que tenha sido efetivada a retirada das instituições administrativas

coloniais sobre os territórios periféricos compreendidos pela dinâmica centro-periferia, a

persistência de elementos inventados com e a partir da modernidade exprime a incompletude

desse processo descolonizatório. (QUIJANO, 2000)

Caso fossemos utilizar as considerações de Giovanni Arrighi (1937-2009), podemos

dizer que sua herança gramsciana (Antonio Gramsci, 1891-1937), cuja escrita pauta-se não pela

manipulação de ideias, mas sim pela construção de consensos e-ou consentimentos, também

nos permite compreender a construção de uma falsa ideia de harmonia em função das mudanças

formais nos termos coloniais.

Para Quijano (2002), quatro são as dimensões da colonialidade do poder: o sexo, o

trabalho, a autoridade coletiva (ou pública) e a subjetividade-intersubjetividade e seus

respectivos recursos e produtos. A apresentação do termo em 1989 pelo referido autor já

Page 11: CONTRIBUIÇÕES À DESCOLONIZAÇÃO DA ECONOMIA POLÍTICA

10

retratava a complexidade que um entendimento intelectualmente mais condizente com a

realidade periférica demandava.

Esta heterogeneidade não é simplesmente estrutural, baseada nas relações entre

elementos das mesmas época e idade. Já que histórias diversas e heterogêneas deste

tipo foram articuladas numa única estrutura de poder, é pertinente admitir o caráter

histórico-estrutural dessa heterogeneidade. Consequentemente, o processo de

mudança dessa totalidade capitalista não pode, de nenhum modo, ser uma

transformação homogênea e contínua do sistema inteiro, nem tampouco de cada um

de seus componentes maiores. Tampouco poderia essa totalidade desvanecer-se

completa e homogeneamente da cena histórica e ser substituída por outra equivalente.

A mudança histórica não pode ser unilinear, unidirecional, sequencial ou total. O

sistema, ou o padrão específico de articulação estrutural, poderia ser desmantelado.

Mas mesmo assim cada um ou alguns de seus elementos pode e haverá de rearticular-

se em algum outro padrão estrutural, como ocorreu, obviamente, com os componentes

do padrão de poder pré-colonial, digamos, no Tauantinsuiu. (QUIJANO, 2000, p. 223)

Grosfoguel (2008, p. 123) utiliza-se de contribuições de feministas negras

estadunidenses para analisar de forma minuciosa a colonialidade do poder: o termo

corresponderia a um enredamento ou interseccionalidade “de múltiplas e heterogêneas

hierarquias global (‘heterarquias’)”. Nesse sentido, os aspectos econômicos não deveriam ser

tidos como predominantes sobre os demais (raça, orientação sexual, identidade de gênero,

espiritualidade, epistemologia) uma vez que, a abordagem economicista aplicada à temática em

questão perpetua a lógica eurocentrada puramente mercadológica acerca das estruturas do

sistema, revelando-se insuficiente em sua capacidade explicativa de seu objeto de estudo.

Segundo Quijano (2000, p. 225), apenas “as necessidades do capital como tal, não esgotam,

não poderiam esgotar, a explicação do caráter e da trajetória dessa perspectiva de

conhecimento.”

As fronteiras disciplinares, aparentemente, dificultam que análises provenientes de áreas

tradicionalmente opostas dialoguem no que concerne a uma área cinzenta interseccional entre

ambas.

A crítica pós-colonial caracteriza o sistema capitalista enquanto sistema cultural. Estes

teóricos acreditam que a cultura é o fator constitutivo que determina as relações

econômicas e políticas no capitalismo global (Said, 1979). Por outro lado, a maioria

dos acadêmicos do sistema-mundo salienta a importância das relações econômicas à

escala mundial como fator constitutivo do sistema-mundo capitalista. (...) O fato é que

os teóricos do sistema-mundo sentem dificuldades em teorizar a cultura, enquanto os

teóricos pós-coloniais têm dificuldade em conceptualizar os process os político-

econômicos. (...) Assim, a bibliografia produzida de uma e outra banda oscila entre o

perigo do reducionismo econômico e o perigo do culturalismo. (GROSFOGUEL,

2008, p. 129-30)

O autor mencionado neste momento coloca, ainda, que ambas as “estratégias

ideológico-simbólicas” e “formas eurocêntricas de conhecimento” compõem a leitura do

Page 12: CONTRIBUIÇÕES À DESCOLONIZAÇÃO DA ECONOMIA POLÍTICA

11

denominado, pela visão predominante no mundo da economia política, como o sistema-mundo

capitalista. Sugere-se, então, a adoção de uma saída a partir da margem, no sentido do loci

epistêmico anteriormente abordado. Dada a base decolonial de recusa aos fundamentalismos e

às propostas universalistas, a noção de “pensamento crítico de fronteira” pode ser sintetizada

em uma palavra: ressignificação. A busca pela descolonização do poder, do saber e do ser

estariam atreladas, na visão de Walter Mignolo, a uma terceira saída às respostas anteriores

(soluções explicitamente eurocêntricas e fundamentalismos terceiro-mundistas, sendo estes

essencialmente eurocêntricos, reprodutores de colonialidade de poder). A proposta de Mignolo

não se equipara a uma modernidade antimoderna, constituindo-se – por outro lado – como a

“resposta epistêmica do subalterno ao projeto eurocêntrico da modernidade”, redefinindo e

transcendendo a “retórica emancipatória da modernidade a partir das cosmologias e

epistemologias do subalterno, localizadas no lado oprimido e explorado da diferença colonial”.

Em alinhamento com a colocação realizada por Mignolo, Enrique D. Dussel traz a noção de

“transmodernidade” em “Filosofia da Libertação na América Latina”. Corroborando o

propósito de radicalização (no sentido de busca por e aproximação com as raízes ontológicas

das descolonizações), “a transmodernidade de Dussel visa concretizar o inacabado e incompleto

projeto novecentista da descolonização”. A fim de concretizar tal mecanismo ou estratégia, o

diálogo teórico-intelectual e articulação prática entre os pensadores críticos de diversas nações,

culturas e países devem ser realizados considerando a pluri-versalidade de concepções

referentes ao ordenamento econômico-político-cultural. Essa “multiplicidade de respostas”

existentes em função das atividades de lugares epistêmicos subalternizados promoveriam a

“diversidade enquanto projeto universal” tendo em vista o rompimento com elementos

ideológico-culturais do heterogêneo sistema capitalista. Esse empenho não corresponde a uma

contraposição direta em relação às estruturas de poder fruto da colonialidade do poder.

Distintamente, significa uma compreensão pragmática das instituições existentes simultânea à

aplicação da perspectiva decolonial sobre a mesma. (GROSFOGUEL, 2008)

Epistemologicamente, a ideia de colonialidade evidencia que a sociedade atual vive

sobre o peculiar legado de parte da estrutura de conhecimento do mundo moderno colonial

capitalista, com fundamentação no cânone de pensamento europeu e estadunidense. Para além

de uma concentração eurocêntrica de formulação e embasamento teórico, o ordenamento

mundial existente desde o período conhecido como os “30 Gloriosos”, na expressão de Eric

Hobsbawm, estágio de coexistência com a ascensão dos movimentos intelectuais pós e

decoloniais, nos permite falar em um padrão norte-cêntrico de dominação. É possível afirmar

que o cânone ocidental proveniente do Norte Global não buscou analisar a história da periferia

Page 13: CONTRIBUIÇÕES À DESCOLONIZAÇÃO DA ECONOMIA POLÍTICA

12

do sistema global (retomando que esta análise refere-se, especificamente, ao caso latino-

americano).

Em analogia ao debate realizado no que diz respeito ao eurocentrismo, a importação

mecânica de estruturações de pensamento advindas do lugar epistêmico norte-cêntrico - como

se fossem suficientemente explicativas dos problemas locais em função de sua suposta

universalidade, neutralidade e objetividade - equivale a uma generalização das realidades

periféricas, tratando a periferia global como algo não-específico. O processo histórico de

formação econômico-político-cultural desses países é saqueado à medida em que suas próprias

referências de pensamento crítico são invisibilizadas dada a supremacia dos discursos

hegemônicos relativos a como se entender o sistema-mundo

patriarcal/capitalista/colonial/moderno. O uso dos três elementos supracitados distorce a

realidade latino-americana, além de desqualificar a forma de produção de conhecimento

assumidamente situada geopoliticamente, bem como os produtores de tais perspectivas.

5 CONCLUSÃO

Retoma-se o objetivo central empreendido ao longo do artigo, ou seja, buscar

compreender o curso de elaboração e implementação das estruturas político-econômico-

culturais tipicamente capitalistas em diálogo com as experiências diaspóricas dos povos

colonizados afro-latino-americanos, em especial nos eventos ocorridos na narrativa histórica

brasileira.

Certamente, a mobilização de recursos teórico-políticos da autora e dos autores que

constam no referencial bibliográfico congregam uma miríade de conceitos, concepções e

abordagens interdependentes que se articulam na formulação de uma crítica radical em

discordância diametral às teorizações e implicações da modernidade, pautada de maneira

eurocentrada.

Dois dos autores analisados, Quijano e Grosfoguel, apresentam um debate congruente

e, ao mesmo tempo, positivamente rico no que se refere às raízes da invenção da modernidade.

O primeiro recorre ao cruzamento relativo às relações dualísticas entre capital e trabalho

(hierarquia econômica) e entre a suposta superioridade europeia em detrimento dos não-

europeus, inferiorizados (hierarquia racial), destacando a noção de “colonialidade do poder”.

Assim, enfatiza-se o aspecto colonial intrínseco à modernidade, portanto demarcando

temporalmente o longo século XVI como o princípio de tal mecanismo do sistema colonialista,

embora seu marco histórico seja associado, comumente, aos séculos XVII e/ou XVIII.

Page 14: CONTRIBUIÇÕES À DESCOLONIZAÇÃO DA ECONOMIA POLÍTICA

13

Além disso, o presente artigo objetivou enfatizar a continuidade de aspectos coloniais

na realidade pós-sistema colonialista. Tendo isso em vista, foi possível sustentar tal argumento

mediante análise sistêmica dos componentes econômicos, políticos e culturais coexistentes no

sistema capitalista por meio do conceito de colonialidade do poder. Foi possível visualizar que

a ausência da estrutura da administração colonial não implicou na supressão de diversas

instituições com base colonial, tal qual o racismo. De fato, sem a expansão colonial ibérica e,

posteriormente, de outras nações do continente europeu, provavelmente não haveria sistema

colonial e, portanto, não haveria a colonialidade encontrada nos dias de hoje. As estruturas

coloniais de poder global não desapareceram com o encerramento estritamente formal do

colonialismo, baseado nas instituições jurídico-políticas de regiões que não mais configuravam-

se como metrópoles, mas que haviam passado pelos processos de independência, adequando-

se às novas demandas estruturais do sistema em desenvolvimento. Ao contrário, as atuais

estruturas emergiram e se cristalizaram com o fim do mesmo próprio colonialismo.

Grosfoguel distancia-se de Quijano, contudo, pois este realiza uma leitura universalista

da decolonialidade, enquanto aquele busca um olhar pluri-versalista. Defende-se a existência

de uma diversidade epistêmica sobre a qual não seria adequado compelir aos outros que há uma

forma única e específica de se pensar a colonialidade, já que tal medida figura-se como uma

esquiva ao princípio de conhecimento situado temporal e geograficamente.

A possibilidade de realizar um balanço referente à descolonização da economia,

enfatizando – sincronicamente – aspectos geopolíticos e culturais, parece contemplar uma

lacuna em termos de debates na própria Academia, mesmo em determinados setores na

esquerda. O caráter heterogêneo dos conceitos de “enredamento” e “interseccionalidade”,

porém, compatibilizam-se com a complexidade relativa à compreensão, a nível epistêmico, do

sistema-mundo capitalista patriarcal/capitalista/colonial/moderno.

A partir do momento em que os acontecimentos na margem do sistema passam a ser

entendidos, em regra, como reverberações diretas ou indiretas dos marcos históricos centrais, a

diversidade de pensamento crítico existente na periferia é tomada pela dominação

epistemológica ou, em termos mais específicos, ao racismo epistemológico. As teorias próprias

da margem da ordem mundial, embora existam, não aparecem nas ementas das universidades

dessas mesmas regiões em favor de formulações a partir do Norte Global. Assim, inferioriza-

se o pensamento crítico de outra autora e autor de partes periféricas do mundo.

Page 15: CONTRIBUIÇÕES À DESCOLONIZAÇÃO DA ECONOMIA POLÍTICA

14

REFERÊNCIAS

BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência

Política, nº11. Brasília, maio - agosto de 2013, pp. 89-117. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0103-33522013000200004> Acesso em: 02 out. 2017.

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade . In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, Nº. 92/93 (jan./jun.). 1988b, p. 69-82.

GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos

pós‐ coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista

Crítica de Ciências Sociais, n. 80, p. 115-147, 2008. ____________________; BERNARDINO-COSTA, Joaze. Decolonialidade e perspectiva

negra. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69922016000100002> Acesso em: 18. Abr. 2018.

PRADO JÚNIOR, Caio. A formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1963.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade, poder, globalização e democracia. Disponível em: < http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/novosrumos/article/view/2192/1812> Acesso em 02 out. 2017.

________________. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. Disponível

em: <http://www.decolonialtranslation.com/espanol/quijano-colonialidad-del-poder.pdf> Acesso em 18 abr. 2018.