contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica · historiografia paulista por maria...

27

Upload: dangque

Post on 08-Dec-2018

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica · historiografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974). Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes
Page 2: Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica · historiografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974). Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes

Contribuição metodológica para a pesquisa historiográficacom os testamentos

Maria Lucília Viveiros Araújo

Nosso artigo tem por objetivo apresentar os métodos e os procedimentos relacionados ao usodos testamentos como documentação serial de forma a subsidiar o aprofundamento dos estudos dafamília.

Os testamentos vêm sendo utilizados como fontes para o conhecimento do passado há muitosanos no Brasil. No entanto, somente nas últimas décadas essa documentação incorporou novos proce-dimentos possibilitados, ao mesmo tempo, pela generalização da informática, pela influência dosestudos quantitativos da demografia histórica e a redescoberta da morte como tema da Nova História.1

Explanaremos sobre os antigos princípios das Ordenações do Reino e o atual Código CivilBrasileiro, que orientam os direitos e deveres da família brasileira. Comentaremos também a comple-xidade dos antigos testamentos, composto por diferentes itens da sociedade, especialmente os aspec-tos religiosos, a vida familiar, a vida material, sugerindo procedimentos para a coleta e a síntese dosdados. Por fim, identificaremos os recentes questionamentos da História da Família e transcrevere-mos a bibliografia mais recente.

A regulamentação dos testamentos

As escrituras testamentárias tiveram início na França nos finais do século XII, seguindo atradição jurídica romana, de forma que o ato de testar havia-se generalizado naquela região nos sécu-los XIV e XV.

Os testamentos portugueses modernos visavam à preparação do funeral e à salvação da almaprincipalmente. No século XVIII, a estrutura dos testamentos atingiu sua máxima complexidade.Surgiu, então, uma série de confrarias especializadas no cerimonial da morte e na salvação da alma.

No século XIX, os testamentos foram perdendo sua finalidade espiritual, de forma que asversões mais recentes abordam exclusivamente os bens materiais.

As Ordenações Filipinas de 1603 orientaram a vida familiar e os direitos de sucessão desde aformação da América Portuguesa. Essa legislação manteve-se no Brasil, com algumas alterações, até1916, quando foi aprovado o primeiro Código Civil Brasileiro. O direito da família sofreu nova alte-ração em 2002.

Segundo as antigas leis do reino, todo homem com 14 anos e mulher com 12 anos podiamdeliberar livremente sobre a distribuição dos seus bens. No entanto, os testadores com herdeiros for-çados ascendentes (pais, avós) e descendentes (filhos, netos) podiam legar apenas um terço de seusbens (terça).

Os cônjuges herdavam de acordo com o contrato de casamento adotado. Geralmente casava-sepelo regime de comunhão de bens chamado “carta de ametade”, de forma que o cônjuge sobreviventeficava com a meia do espólio. Os filhos recebiam a outra metade ou legítima, descontadas as disposi-ções dos testamentos.

Os filhos naturais, caso fossem reconhecidos por escritura pública, podiam herdar.Essa lei garantia a justa partilha dos bens entre os herdeiros dos plebeus, porém, permitia o

direito de primogenitura nas casas nobres, isto é, a desigualdade de condições entre irmãos herdeiros.O novo Código Civil Brasileiro basicamente modificou a situação do cônjuge, dos filhos ado-

tivos, do companheiro e do filho fora do casamento, tornando-os herdeiros necessários. Além disso,

1 CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Org.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio deJaneiro: Campus, 1997; LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Dir.). História: novas abordagens. Trad. Henrique Mesquita.Rio de Janeiro: F. Alves, 1988, 3 vol.

Page 3: Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica · historiografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974). Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes

passou a permitir que a metade dos bens seja legada pelo testador com herdeiros necessários.Enfim, para o estudo dessa documentação, faz-se necessário conhecer essa legislação.

As partes do testamento

Os antigos testamentos eram documentos muito complexos. Eles informavam sobre a vidafamiliar do testador, suas preferências espirituais, os receios e segredos da hora da morte e, algumasvezes, apresentavam um balanço dos bens materiais para direcionar a partilha.

Eles continham uma apresentação ou prólogo, o preâmbulo, as disposições espirituais, a dis-tribuição do legado e as assinaturas das testemunhas. Os documentos paulistas freqüentemente indi-cavam três ou quatro nomes para testamenteiros.

O prólogo incluía a saudação (sinal da cruz) e a identificação do testador (nome, estado conju-gal e residência), seguido do preâmbulo religioso, com a encomendação, a invocação, as considera-ções sobre o estado de saúde, sobre a vida e a morte e, finalmente, a razão do testamento.

Logo após, determinavam-se as disposições espirituais ou bem da alma com a escolha da mor-talha e do lugar da sepultura, indicação do acompanhamento ou constituição do cortejo fúnebre,número dos ofícios e missas com as respectivas intenções, custo de cada uma das cerimônias, legadosde caridade e legados religiosos.

Terminada a parte religiosa, iniciavam-se as disposições materiais ou herança, com a enume-ração dos herdeiros e legatários, a atribuição da terça, a repartição da herança, o pagamento e acobrança de dívidas, a reserva de usufruto, a estipulação de encargos e pensões e a nomeação dotestamenteiro.

Para finalizar indicavam-se as testemunhas, o escrivão, o lugar da redação e a data.

Síntese dos dados

Quanto maior a quantidade de informações coletadas, a síntese para a redação da dissertaçãopoderá ficar mais difícil. Em vista disso, sugerimos o uso de um banco de dados e alguns procedimen-tos para o trabalho historiográfico.

A apresentação do corpo documental deve estar preferencialmente no primeiro capítulo do tra-balho, contendo o número dos testamentos consultados, o recorte temporal selecionado e a regiãogeográfica compreendida.

Conforme a quantidade de documentos disponíveis, pode-se optar pela pesquisa de parte dadocumentação disponível, isto é, uma pesquisa por amostragem.

Os trabalhos com bases quantitativas sempre apresentam um resumo do corpo documental,contendo o número e/ou porcentagem de homens e mulheres testadores, estado conjugal ou civil,naturalidade, cor e idade, quando houver, tipo de testamento e seus respectivos arquivos.

Os dados da pesquisa devem ser tabulados e apresentados preferencialmente em tabelasou gráficos.

Arquivos

Essa documentação pode ser localizada em diferentes arquivos. Eram transcritos nos inventá-rios post-mortem. Entretanto, nem todo testamento era seguido de inventário, essa documentaçãopode estar nos cartórios ou reproduzida nos livros dos cartórios.

Os antigos testamentos de São Paulo estão arquivados no Arquivo do Estado de São Paulo, mas ostestamentos do século XIX e XX continuam arquivados no Arquivo do Judiciário do Estado de São Paulo.A documentação referente à comarca de Campinas está sob guarda do Centro de Memória da UNICAMP.

Até o século XIX, a Igreja considerou-se guardiã dos testamentos, em vista disso, muitos deles foramtrasladados no livro de registro de óbitos. A documentação eclesiástica manteve-se nos arquivos das diver-sas Cúrias do Brasil.

Page 4: Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica · historiografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974). Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes

Historiografia

Os inventários e os testamentos vêm sendo pesquisados há muito tempo para a reconstituiçãoda memória histórica. Por exemplo, o trabalho pioneiro de Alcântara Machado sobre a sociedadepaulista seiscentista (1943). Porém, essa documentação somente recebeu metodologia específica apóso desenvolvimento dos estudos das séries documentais e da demografia histórica especialmente naFrança.

No Brasil, o método quantitativo da demografia histórica foi utilizado primeiramente nahistoriografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974).

Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes teses utilizando as informaçõesdos antigos testamentos. A seguir, apresentaremos algumas obras que possuem ampla bibliografiasobre a família brasileira.

Reexaminando o conceito de família patriarcal extensa, temos as teses de Eni de MesquitaSamara (1980, Doutorado e 2003, Livre-Docência) repensando o papel da família e da mulher em SãoPaulo seiscentista. A organização da família colonial paulista e o papel dos casamentos foram ostemas da tese de Alzira Lobo de Arruda Campos (1986). Maria Beatriz Nizza da Silva discutiu osistema de casamentos (1989) e a questão dos bens vinculados no Brasil setecentista (1990).

Relacionando as estratégias das famílias na concentração ou na distribuição da riqueza, temosas teses de Kátia de Queirós Mattoso (1988) sobre a família baiana do Oitocentos; de Ida Lewkowicz(1989), sobre a sociedade mineira do século XVIII e XIX; de Sheila de Castro Faria (1998), um estudoda família colonial do norte fluminense; e de Maria Lucília Viveiros Araújo (2003), sobre a riquezados paulistanos da primeira metade do Oitocentos.

Discutindo especificamente a terça e o dote como estratégias de favorecimento de parte dosfilhos, temos Alida Metcalf (1992) que abordou a família colonial de Santana do Parnaíba, da Capita-nia de São Paulo. Muriel Nazzari (2001) discorreu sobre a transformação do dote em São Paulo.Carlos de Almeida Prado Bacellar (1987) fala da investigação sobre os filhos que migraram para oOeste Paulista. Dora Isabel Paiva da Costa (1992) tratou do crescimento das legítimas dos filhos(parte da herança) em Campinas, Estado de São Paulo, oitocentista.

Considerações finais

Os testamentos serviram como documento da última vontade do cristão desde a Idade Média,entretanto, no século XIX, eles foram perdendo o caráter místico, tornando-se somente uma indicaçãopessoal para a distribuição de parte dos bens.

Esses documentos eram redigidos de forma a contemplar primeiramente os pedidos espiritu-ais e, a seguir, os pedidos temporais. Como eles abordavam diferentes aspectos da sociedade, oshistoriadores têm preferido analisá-los por partes.

Nosso artigo apresentou preferencialmente as teses que utilizaram os métodos quantitativos.Essas teses criaram novos paradigmas para a história brasileira, e possibilitaram o diálogo das ques-tões nacionais com a problemática internacional.

Palavras-chaves: História e Direito; História do Brasil; métodos e técnicas da pesquisa historiográfica;História da Família; História quantitativa e serial.

Page 5: Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica · historiografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974). Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes

BIBLIOGRAFIA

ARAÚJO, Maria Lucília Viveiros. Os caminhos da riqueza dos paulistanos na primeira metade doOitocentos. São Paulo, 2003. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciênci-as Humanas, Universidade de São Paulo._____. Pesquisa com inventários post-mortem. Revista Histórica, Arquivo do Estado de São Paulo,n.º 4, pp. 54-58, jul. 2001.BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra – Família e sistema sucessório entre ossenhores de engenho do Oeste Paulista, 1765-1855. São Paulo, 1987. Dissertação (Mestrado em His-tória) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.CAMPOS, Alzira Lobo de Arruda. O casamento e a família em São Paulo colonial: caminhos edescaminhos. São Paulo, 1986. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên-cias Humanas, Universidade de São Paulo.CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Org.). Domínios da História: ensaios de teoria emetodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.COSTA, Dora Isabel Paiva da. Herança e ciclo de vida: um estudo sobre família e população emCampinas, São Paulo 1765-1850. Rio de Janeiro, 1992. Tese (Doutorado em História) – Faculdade deCiências Humanas, Lingüística, Letras e Artes da Universidade Federal Fluminense.DAUMARD, Adeline. História Social do Brasil: teoria e metodologia. Curitiba: UFP, 1984.FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento [tese de 1994]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1998.LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Dir.). História: novas abordagens. Trad. Henrique Mesquita. Riode Janeiro: F. Alves, 1988, 3 vol.LEWKOWICZ, Ida. Vida em família: caminhos da igualdade em Minas Gerais (séculos XVIII e XIX).São Paulo, 1992. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,Universidade de São Paulo.MACHADO, José de Alcântara. Vida e morte do bandeirante. São Paulo: Martins, 1943.MARCÍLIO, Maria Luiza. A cidade de São Paulo: povoamento e população, 1750 – 1850. Trad. daautora da tese de 1968. São Paulo: Pioneira/EDUSP, 1974.MATTOSO, Katia de Queirós. Família e sociedade na Bahia do século XIX. Trad. James Amado. SãoPaulo: Corrupio; Brasília: CNPQ, 1988.METCALF, Alida C. Family and frontier in colonial Brazil Santana de Parnaíba, 1580-1822. Berkeley,Oxford: University of California, 1992.NAZZARI, Muriel. Dotes paulistas: composição e transformações (1600-1870). Revista Brasileirade História, São Paulo, v. 9, n.º 17, pp. 87-100, set. 1988/fev. 1989.ORDENAÇÕES FILIPINAS. Livros VI e V. Lisboa: F.C.Gulbenkian, 1985.SAMARA, Eni de Mesquita. A família na sociedade paulista do século XIX (1800-1860). São Paulo:1980. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universi-dade de São Paulo._____. Família, mulheres e povoamento: São Paulo, século XVII. Bauru: EDUSC, 2003._____. História da Família no Brasil. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 9, n.º 17, pp. 07-35,set. 1988/fev. 1989.SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Herança no Brasil colonial: os bens vinculados. Revista de CiênciasHistóricas, Universidade Portucalense, Porto, vol. V, pp. 291-319, 1990._____. O sistema de casamento no Brasil colonial. São Paulo: T. A. Queiroz/USP, 1984.

Anexos da autora:1. Exemplo de tabela com as disposições testamentárias de São Paulo 1800-1850.2. Exemplo de gráfico com disposições testamentárias de São Paulo 1800-1850.3. Exemplo de ficha eletrônica de testamento.

Page 6: Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica · historiografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974). Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes

Figura 1. Tabela das disposições testamentárias de São Paulo, 1800-1850

Figura 2. Gráfico da distribuição dos legados em São Paulo, 1800-1850

Fonte: 68 testamentos dos inventários do Arquivo do Judiciário do Estado de São Paulo.

Page 7: Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica · historiografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974). Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes

Figura 3. Modelo de parte da ficha eletrônica de testamento

Ficha de Testamento

Apresentação da autora:Maria Lucília Viveiros Araújo é mestra em Arte (História da Arte) e doutora em História Econômicapela Universidade de São Paulo. Foi professora e coordenadora do ensino fundamental e médio. Épesquisadora do NEHD – Núcleo de Estudos de História Demográfica e do CEO – Centro de Estudosdo Oitocentos. Publicou diversos artigos em revistas especializadas e em anais de congressos acadê-micos. Ver os resumos em: http://www.brnuede.com/pesquisadores/lucilia/index.htm

Page 8: Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica · historiografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974). Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes

1

Os Refugiados e a Posição do Brasil

Julia Bertino Moreira

A problemática dos refugiados está intrinsecamente relacionada com a ocorrência de guerrascivis no plano internacional, que assumem motivos variados, como religioso, étnico, político ou eco-nômico. Isso porque esses conflitos causam graves violações aos direitos humanos da população civilatingida, à medida que atentam contra a sua vida (incluindo a integridade física), liberdade e seguran-ça. Além disso, as situações de conflito colocam em risco grupos ou indivíduos que apresentem etniasou religiões minoritárias no país ou opiniões políticas diversas das do governo, estando sujeitos, as-sim, a sofrer ameaças ou efetivas perseguições. Em razão disso, são impulsionados a deixar forçosa-mente seus países de origem para procurar refúgio em outros Estados.

O reflexo desse movimento de deslocamento forçado é uma população mundial atual de, apro-ximadamente, 9,7 milhões de refugiados.1 É notável que o crescente contingente de refugiados espa-lhados pelo globo terrestre representa uma problemática que desafia a comunidade internacional hámais de cinqüenta anos.

Esta problemática se desenvolveu acentuadamente a partir da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando foram gerados os maiores deslocamentos humanos observados na História moderna,perfazendo mais de 40 milhões de pessoas desenraizadas provenientes da Europa.2 A situação que seconstatava nesse continente causou grande preocupação à comunidade internacional, principalmenteaos países aliados – Reino Unido, França, URSS e EUA.3

Diante disso, em dezembro de 1949, a ONU – Organização das Nações Unidas – decidiu criarum órgão específico para tratar da questão dos refugiados: o ACNUR – Alto Comissariado das Na-ções Unidas para os Refugiados –, que iniciaria seus trabalhos em 1º de janeiro de 1951.4 Em 28 dejulho do mesmo ano, esta organização elaborou o primeiro instrumento de proteção internacional aosrefugiados: a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, que entrou em vigor no dia 21 de abrilde 1954.5

A Convenção definiu como refugiado toda pessoa “que, em conseqüência de acontecimentosocorridos antes de 1º de Janeiro de 1951, e receando com razão ser perseguida em virtude da sua raça,religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontre forado país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir aproteção daquele país; ou que, se não tiver nacionalidade e estiver fora do país no qual tinha a suaresidência habitual após aqueles acontecimentos, não possa ou, em virtude do dito receio, a ele nãoqueira voltar”.6

Esta definição de refugiado, conhecida como “clássica”, continha duas limitações, uma decunho temporal, o que se nota pela expressão “acontecimentos ocorridos antes de 1º de Janeiro de1951”, e outra de cunho geográfico, posto que, nos termos da Convenção, tais acontecimentos pode-riam ser entendidos como aqueles que ocorreram somente na Europa.7

1 ACNUR, 2003 Global Refugee Trends: overview of refugee populations, new arrivals, durable solutions, asylum-seekers and otherpersons of concern to UNHCR. Genebra, 15/06/2004, 90 p. (disponível em http://www.unhcr.ch, acessado em 04/10/2004), p. 1.2 ACNUR, A Situação dos Refugiados no Mundo – Cinquenta Anos de Acção Humanitária. Almada: A Triunfadora Artes Gráficas,2000, p. 13.3 ACNUR, A Situação dos Refugiados no Mundo – Cinquenta Anos de Acção Humanitária. Almada: A Triunfadora Artes Gráficas,2000, p. 13.4 ACNUR, A Situação dos Refugiados no Mundo – Cinquenta Anos de Acção Humanitária. Almada: A Triunfadora Artes Gráficas,2000, p. 19.5 ACNUR, Manual de Procedimentos e Critérios a Aplicar para Determinar o Estatuto de Refugiado. Lisboa: ACNUR, 1996, p. 3.6 ACNUR, A Situação dos Refugiados no Mundo – Cinquenta Anos de Acção Humanitária. Almada: A Triunfadora Artes Gráficas,2000, p. 61.7 ANDRADE, José Henrique Fischel de. O Refugiado à Luz do Direito Internacional e do Direito Brasileiro. In: Advogado: Desafios ePerspectivas no Contexto das Relações Internacionais. Brasília: Conselho Federal da OAB, 1997, p. 161.

Page 9: Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica · historiografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974). Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes

2

Considerando que a reserva temporal poderia tornar a definição de refugiado inaplicável aoseventos posteriores à elaboração da Convenção, foi celebrado outro instrumento internacional, o Pro-tocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967, com o objetivo de excluir esta limitação.8

Ademais, no âmbito latino-americano, após quase duas décadas sob a repressão decorrente deregimes ditatoriais e conflitos armados, elaborou-se um instrumento regional, a Declaração deCartagena, de 1984, que trouxe uma nova definição de refugiado. Esta, que ficou conhecida como“ampliada”, abarcava pessoas que deixaram seus países porque sua vida, segurança ou liberdadeforam ameaçadas em decorrência da violência generalizada, agressão estrangeira, conflitos internos,violação massiva dos direitos humanos ou outras circunstâncias que perturbaram gravemente a ordempública.9

O Brasil foi o pioneiro, na América do Sul, a regulamentar a proteção aos refugiados.10 Issoporque foi o primeiro país da região a aprovar a Convenção de 1951, o que se deu em 1960; aderiu aoProtocolo de 1967 em 1972;11 e também foi o primeiro a elaborar uma lei nacional específica sobrerefugiados, em 1997 (a Lei Federal n.º 9.474/97). E, embora não tenha assinado a Declaração deCartagena de 1984, passou a aplicar a definição ampliada de refugiado contida nesse instrumentodesde 1989.12

Com relação ao posicionamento brasileiro frente às pessoas que chegavam ao território naci-onal em busca de refúgio, vale registrar que o país, quando aderiu à Convenção, estabeleceu a “reser-va geográfica”, pela qual só reconhecia como refugiados pessoas de origem européia. Em razão disso,no decorrer das décadas de 1970 e 1980 – em que se verificou grande fluxo de refugiados provenien-tes da América Latina –, como o Brasil mantinha a reserva, não podia acolher latino-americanos emseu território, concedendo-lhes apenas o “visto de turista”, que permitia a estadia provisória de noven-ta dias no país.13 Durante esse período, essas pessoas aguardavam para serem reassentadas em umterceiro país.14

A decisão de manter a referida reserva e de conceder estadia provisória aos não-europeus foifruto de um acordo entre o governo brasileiro e o ACNUR, que iniciou sua missão no Brasil em1977.15 No final dos anos de 1970 e início de 1980, foi instalado um Escritório do ACNUR no Rio deJaneiro, que teve como função reassentar cerca de 20 mil sul-americanos (dentre eles, argentinos,uruguaios, chilenos e paraguaios)16 em outros países,17 principalmente da Europa, Estados Unidos,Canadá, Austrália e Nova Zelândia.18

Com o início da década de 1980, ocorreram algumas mudanças significativas no posicionamentobrasileiro em relação à acolhida de refugiados não-europeus. Em 1979, 150 vietnamitas foram abriga-dos em nosso território e, embora o governo não lhes tenha reconhecido a condição de refugiados,

8 ANDRADE, José Henrique Fischel de.O Brasil e a Proteção de Refugiados: a discussão tem início no Congresso Nacional. Pensando o

Brasil, ano V, n.º 16, 09/1996, p. 8.9 ARAÚJO, Nádia de; ALMEIDA, Guilherme Assis de (Coords.). O Direito Internacional dos Refugiados: uma perspec-tiva brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, pp. 425-426.10 ACNUR, 20 de Junio Día Mundial del Refugiado, 2003 (documento obtido na Cáritas Arquidiocesana de São Paulo).11 COMISSÃO Justiça e Paz – Arquidiocese de Brasília. Direitos Humanos no Brasil: 1992-1993. São Paulo: Loyola,1994, p. 46.12 ALMEIDA, Guilherme Assis de. Direitos Humanos e Não-Violência. São Paulo: Atlas, 2001, p. 148.13 ALMEIDA, Guilherme Assis de. Direitos Humanos e Não-Violência. São Paulo: Atlas, 2001, p. 119.14 ANDRADE, José Henrique Fischel de. O Brasil e a Proteção de Refugiados: a discussão tem início no CongressoNacional. Pensando o Brasil, ano V, n.º 16, 09/1996, pp. 9-10; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Direitos Humanos e Não-Violência. São Paulo: Atlas, 2001, 2001, p. 119.15 ALMEIDA, Guilherme Assis de. Direitos Humanos e Não-Violência. São Paulo: Atlas, 2001, p. 115.16 ALMEIDA, Guilherme Assis de. Direitos Humanos e Não-Violência. São Paulo: Atlas, 2001, p. 119.17 COMISSÃO Justiça e Paz – Arquidiocese de Brasília. Direitos Humanos no Brasil: 1992-1993. São Paulo: Loyola,1994, p. 47.18 ALMEIDA, Guilherme Assis de. Direitos Humanos e Não-Violência. São Paulo: Atlas, 2001, p. 119.

Page 10: Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica · historiografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974). Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes

3

concedeu-lhes visto temporário de estadia, o que legalizava sua situação jurídica e permitia que traba-lhassem legalmente no país. Além disso, dezenas de cubanos foram recebidas pelo país, sendo assis-tidos pela Comissão de Justiça e Paz, em São Paulo.19 A partir de 1984, permitiu-se a estadia derefugiados no território nacional por período não limitado, enquanto se aguardava o reassentamentoem outros países.20

No entanto, foi a partir de meados da década de 1980, quando se desenrolou o processo dedemocratização do Brasil, que pôde ser verificado um avanço quanto ao tratamento da problemáticados refugiados pelo governo brasileiro. Diante desse contexto, em 1986, com o auxílio do ACNUR,50 famílias de fé Bahá’i, provenientes do Irã, foram acolhidas pelo Brasil, pela aplicação do estatutode asilados, haja vista que, em razão da “reserva geográfica” sustentada pelo país, não lhes poderia serreconhecida a condição jurídica de refugiados.21 Vale salientar que essa decisão do governo brasileirorepresentou uma inovação jurídica, revelando o comprometimento do país com a questão dos refugi-ados. Em 19 de dezembro de 1989,22 o Brasil finalmente veio a revogar a “reserva geográfica”, pormeio do Decreto n.º 98.602/89.23

Em face disso, embora o governo não tenha assinado a Declaração de Cartagena, passou aaplicar a definição ampliada de refugiado contida nesse instrumento desde 1989,24 quando decidiuacolher refugiados de todos os continentes do mundo.

Um exemplo fático foi verificado entre os anos de 1992 e 1994, quando, aproximadamente1.200 angolanos chegaram no Brasil em busca de refúgio, em razão do período conturbado das elei-ções na Angola. Nesse momento, as autoridades nacionais decidiram aplicar a definição ampliada derefugiado,25 contida na Declaração de Cartagena,26 já que os angolanos não se enquadravam na defini-ção clássica, dada pela Convenção de 1951.27

O Brasil também se destaca no quadro geral de refugiados e solicitantes de refúgio da Américado Sul, visto que abriga 3.193 refugiados em seu território. Trata-se da segunda maior populaçãorefugiada da região, perdendo somente para o Equador, que acolhe 6.381 refugiados.28

É interessante notar que, dos 1.130 refugiados acolhidos apenas em São Paulo, no ano de2003, 73 eram cubanos; 36, peruanos; 30, colombianos; 7, argentinos; 3, paraguaios; 2 salvadorenhos;e 1 haitiano.29 Portanto, observa-se que 13% dos refugiados que se encontram em São Paulo apresen-tam origem latino-americana.

Em seguida, dentre os países da América do Sul, aparece a Argentina, com 2.642 refugiados,ao passo que Bolívia, Chile, Colômbia e Peru apresentam algumas centenas de refugiados em seus

19 ALMEIDA, Guilherme Assis de. Direitos Humanos e Não-Violência. São Paulo: Atlas, 2001, p. 120.20 ANDRADE, José Henrique Fischel de. O Brasil e a Proteção de Refugiados: a discussão tem início no CongressoNacional. Pensando o Brasil, ano V, n.º 16, 09/1996, p. 9.21 ALMEIDA, Guilherme Assis de. Direitos Humanos e Não-Violência. São Paulo: Atlas, 2001, p. 122.22 ANDRADE, José Henrique Fischel de. O Brasil e a Proteção de Refugiados: a discussão tem início no CongressoNacional. Pensando o Brasil, ano V, n.º 16, 09/1996, p. 10; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Direitos Humanos e Não-Violência. São Paulo: Atlas, 2001, p. 124.23 ALMEIDA, Guilherme Assis de. Direitos Humanos e Não-Violência. São Paulo: Atlas, 2001, p. 10; COMISSÃO Justiçae Paz – Arquidiocese de Brasília. Direitos Humanos no Brasil: 1992-1993. São Paulo: Loyola, 1994, p. 47.24 ALMEIDA, Guilherme Assis de. Direitos Humanos e Não-Violência. São Paulo: Atlas, 2001, p. 148.25 ANDRADE, José Henrique Fischel de. O Brasil e a Proteção de Refugiados: a discussão tem início no CongressoNacional. Pensando o Brasil, ano V, n.º 16, 09/1996, p. 10.26 ALMEIDA, Guilherme Assis de. Direitos Humanos e Não-Violência. São Paulo: Atlas, 2001, p. 126.27 ANDRADE, José Henrique Fischel de. O Brasil e a Proteção de Refugiados: a discussão tem início no CongressoNacional. Pensando o Brasil, ano V, n.º 16, 09/1996, p. 10.28 ACNUR, 2003 Global Refugee Trends: overview of refugee populations, new arrivals, durable solutions, asylum-seekers and other persons of concern to UNHCR. Genebra, 15/06/2004, 90 p. (disponível em http://www.unhcr.ch, acessadoem 04/10/2004), p. 9.29 ACNUR, 20 de Junio Día Mundial del Refugiado, 2003 (documento obtido na Cáritas Arquidiocesana de São Paulo).

Page 11: Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica · historiografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974). Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes

4

territórios e, por último, Paraguai e Venezuela, com apenas algumas dezenas deles abrigados em seuspaíses.30

Por fim, pode-se concluir que o Brasil se inseriu no contexto de preocupação internacionalcom a problemática dos refugiados ao aderir aos seus principais instrumentos de proteção, e vematuando no sentido de solucioná-la, o que se constata pela legislação nacional elaborada e pelo acolhi-mento de um contingente expressivo de refugiados.

Autora: Julia Bertino Moreira

Advogada, graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), mestranda em Re-lações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC-SP).

Bibliografia:

ACNUR. A Situação dos Refugiados no Mundo – Cinquenta Anos de Acção Humanitária. Almada: ATriunfadora Artes Gráficas, 2000, 345 p._____. Manual de Procedimentos e Critérios a Aplicar para Determinar o Estatuto de Refugiado.Lisboa: ACNUR, 1996, 95 p._____. 2003 Global Refugee Trends: overview of refugee populations, new arrivals, durable solutions,asylum-seekers and other persons of concern to UNHCR. Genebra, 15/06/2004, 90 p. (disponível emhttp://www.unhcr.ch, acessado em 04/10/2004)._____. 20 de Junio Día Mundial del Refugiado, 2003 (documento obtido na Cáritas Arquidiocesanade São Paulo).ANDRADE, José Henrique Fischel de. O Brasil e a Proteção de Refugiados: a discussão tem início noCongresso Nacional. Pensando o Brasil, ano V, n.º 16, 09/1996, pp. 7-12._____. O Refugiado à Luz do Direito Internacional e do Direito Brasileiro. In: Advogado: Desafios ePerspectivas no Contexto das Relações Internacionais. Brasília: Conselho Federal da OAB, 1997, pp.149-164.ALMEIDA, Guilherme Assis de. Direitos Humanos e Não-Violência. São Paulo: Atlas, 2001, 186 p.ARAÚJO, Nádia de; ALMEIDA, Guilherme Assis de (Coords.). O Direito Internacional dos Refugi-ados: uma perspectiva brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, 445 p.COMISSÃO Justiça e Paz – Arquidiocese de Brasília. Direitos Humanos no Brasil: 1992-1993. SãoPaulo: Loyola, 1994, 87 p.

30 ACNUR, 2003 Global Refugee Trends: overview of refugee populations, new arrivals, durable solutions, asylum-seekers and other persons of concern to UNHCR. Genebra, 15/06/2004, 90 p. (disponível em http://www.unhcr.ch, acessadoem 04/10/2004).

Page 12: Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica · historiografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974). Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes

5

Ziembinski e Rosita Tomáz Lopes em cena do filme “Vivendo em cima da árvore”. ICO – UH –0622.

Exilados dominicanos, setembro de 1960. ICO – UH – 1611.

Page 13: Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica · historiografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974). Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes

6

Exilados dominicanos, setembro de 1960. ICO – UH – 1611.

Page 14: Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica · historiografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974). Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes

7

Esposa de um exilado dominicano, setembro de 1960. ICO – UH – 1611.

Page 15: Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica · historiografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974). Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes

Uma burguesia de pés descalços:a trajetória do empresariado do calçado no interior paulista*

Agnaldo de Sousa Barbosa

Em um texto escrito há quase três décadas, o sociólogo José de Souza Martins demonstravacerto pessimismo com a evolução dos estudos acerca do processo de industrialização no Brasil,expresso nas seguintes palavras: “Apesar de todos os esforços, a história e a análise histórico-concreta da industrialização brasileira ainda estão por ser feitas. De fato, temos hoje, infelizmente,mais interpretação e generalização do que a pesquisa empírica realizada permitiria”.1

Por mais que tenham avançado as discussões acerca do tema, passados quase trinta anos, oconteúdo crítico de tal ponderação não perdeu totalmente a razão de ser. Desde meados da décadade 1970, uma idéia vem sendo bastante difundida na bibliografia que trata do tema da industriali-zação brasileira e de outros assuntos que lhe são adjacentes: a concepção de que o capitalismoindustrial não tenha conhecido no país as fases do artesanato e da manufatura, ingressando já naetapa da grande indústria. Na análise dos que advogam tal interpretação, a característica tardia docapitalismo brasileiro impôs a grande indústria como padrão necessário às exigências do momentohistórico em que emergiu a indústria nacional; ao surgir já na fase monopolista do capitalismomundial, a indústria brasileira teve como imperativo a sua organização em grandes empreendi-mentos, sob pena de sucumbir facilmente à concorrência dos produtos importados, aos gigantescostrusts internacionais. Ainda de acordo com esta interpretação, embora a pequena indústria artesanaltenha sido uma realidade presente até as últimas décadas do século XIX, ela acabou por desapare-cer, pois a competição em condições altamente desvantajosas com os novos conglomerados indus-triais acarretou uma espécie de seleção natural entre as unidades fabris. As interpretações queseguem essa linha2 derivam da tese consagrada por Sérgio Silva, a qual, partindo do exame críticodos censos industriais de 1907 e 1920, procurou demonstrar, por meio de evidências estatísticas, acarência de legitimidade das análises que enfatizavam a predominância das pequenas empresasindustriais voltadas para os pouco significativos mercados locais e regionais no período da hegemoniacafeeira. Conforme Sérgio Silva se esforçou em comprovar, no Brasil, a atividade fabril já nasceutendo na grande indústria o seu principal sustentáculo econômico; tanto no Rio de Janeiro, quantoem São Paulo, as grandes empresas concentravam a maior proporção do capital aplicado na indús-tria e também empregavam a maior parcela dos operários fabris.3

A partir do estudo de Sérgio Silva, a idéia da desvinculação do artesanato da evolução poste-rior da indústria, assim como o enfoque central na prevalência do grande capital, mesmo quandohá fortes indícios de que ele não está presente em alguns contextos, parece ter se tornado requisitobásico para o estudo do processo de desenvolvimento industrial seja qual for a realidade a seranalisada.

* Este artigo é baseado nas considerações desenvolvidas na tese de Doutorado em Sociologia intitulada Empresário Fabril e DesenvolvimentoEconômico: Empreendedores, Ideologia e Capital na Indústria do Calçado (Franca, 1920-1990), defendida em maio de 2004 na UNESP/Araraquarae que contou com o apoio da FAPESP.1 Tal texto, intitulado “O café e a gênese da industrialização em São Paulo”, foi publicado originalmente em: Contexto, n. 3, São Paulo, Hucitec, julho

de 1977. Posteriormente, foi republicado como um dos capítulos do clássico O Cativeiro da Terra (primeira edição, datada de 1979).2 Ver, por exemplo, entre outros: CANO, W. Raízes da Concentração Industrial em São Paulo. Campinas: IE/UNICAMP, 1998, 4a Edição; MELLO,

J. M. C. de. O Capitalismo Tardio – Contribuição à Revisão Crítica da Formação e do Desenvolvimento da Economia Brasileira. São Paulo: Brasiliense,1984, 3a Edição; PERISSINOTTO, R. M. Frações de Classe e Hegemonia na Primeira República em São Paulo. Campinas, 1991. Dissertação(Mestrado em Ciência Política) – IFCH/UNICAMP.3 Cf. SILVA, S. Expansão Cafeeira e Origens da Indústria no Brasil. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976, pp. 86-87. Segundo Silva, em 1907, mais de 11

mil operários trabalhavam em empresas de São Paulo que empregavam, em média, quatrocentos operários e mais de três mil contos de capital. Nacidade do Rio de Janeiro, mais de 13 mil operários trabalhavam em empresas que empregavam, em média, quinhentos e cinqüenta operários e cercade quatro mil contos de capital. Outros 15 mil operários trabalhavam em empresas do Rio e São Paulo com capital igual ou maior que mil contos enúmero de funcionários igual ou maior que uma centena. Em 1920, as grandes empresas (100 ou mais operários) empregavam 63% da mão-de-obraindustrial do Rio de Janeiro e contavam com 73% do capital aplicado na atividade industrial. Em São Paulo, 65% dos operários fabris trabalhava emgrandes empresas.

Page 16: Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica · historiografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974). Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes

Contrariando esta perspectiva, em pesquisa recente na qual procuramos vislumbrar a origemdos empresários fabris em Franca – tradicional centro produtor de calçados no interior paulista –,optamos por não partir de uma explicação estabelecida a priori para o caso em questão, mas pelaconstrução de um intenso diálogo com a documentação disponível. Neste sentido, buscamos nosvaler de um corpus documental tanto farto quanto diversificado, do qual constaram livros de regis-tro comercial, inventários, financiamentos industriais, falências, processos criminais (especial-mente os referentes à usura), hipotecas e habilitações de crédito, além de jornais e revistas locais ede circulação nacional, revistas especializadas do setor e entrevistas com empresários e executivosligados ao segmento. Tendo a teoria como instrumento, não como fundamento, observamos queessa indústria teve como característica marcante a evolução gradativa da fase artesanal, passando àmanufatureira, para depois de quase meio século começar a alcançar o estágio da grande indústria.Encontramos a origem do empresariado do calçado em modestos empreendimentos iniciados porartesãos e pequenos comerciantes.

Em Franca, o grande capital esteve ausente da formação da indústria do calçado, somentese fazendo presente a partir dos anos 1970, quando o setor já se encontrava plenamente consoli-dado no município. Se utilizarmos parâmetros de análise semelhantes aos empregados por Sér-gio Silva para classificar as empresas nos censos de 1907 e 1920, veremos que até mesmo asmédias empresas são pouco expressivas no período inicial de desenvolvimento da estrutura in-dustrial em questão.

Examinando o Censo de 1907, Silva chama de grandes empresas aquelas constituídas comcapital de 1.000 contos de réis (equivalente a 64 mil libras) ou cem ou mais empregados. Em 1920,se considerarmos a equivalência em libras para o valor proposto, o coeficiente de capital exigidopara a classificação na categoria de grande empresa seria de cerca de 1.440 contos.4 Pensamos queo coeficiente de trabalhadores proposto por Sérgio Silva como uma das variáveis para a definiçãode grande empresa seja questionável, pois, em muitos casos, tal número pode não refletir a realida-de da grande indústria, caracterizada pelo alto nível de mecanização, mas a de estabelecimentos denatureza manufatureira, nos quais há emprego intensivo de mão-de-obra.5 Assim, em nosso estudo,optamos por privilegiar o capital aplicado como fator de classificação dos empreendimentos fa-bris, por considerarmos que este seja o elemento que melhor expresse o componente fundamentalda indústria moderna representado pela maquinaria; todavia, não desprezamos o contingente deoperários como fator complementar na demonstração de nossa hipótese de trabalho.

Tomamos como referência o ano de 1920, haja vista ser na década que se segue a tal ano omomento histórico de surgimento de um maior número de empresas, assim como de apareci-mento das fábricas que constituíram a base local da indústria do calçado. Levando em conta ofato de que muitas vezes o capital declarado nos registros não traduz a situação real das empre-sas, e que o setor calçadista tem como característica o emprego menos intensivo de capital secomparado a outras indústrias, utilizamo-nos de valores bastante inferiores aos estipulados porSilva (1976): classificamos como grandes aquelas empresas cujo capital era igual ou maior a500 contos, como médias as que apresentaram capital entre 100 e 500 contos e como pequenasas que tiveram capital inferior a 100 contos.

4 Cf. SILVA, S. Op. cit., p. 83. A equivalência em libras para o capital das empresas do Censo de 1907 é proposta por Sérgio Silva com base na média

de câmbio do ano em questão. Como não há indicação de valores por Silva para o ano de 1920, utilizamos o mesmo procedimento de conversão pelataxa cambial média baseando-nos na tabela encontrada em: IBGE. Estatísticas Históricas do Brasil: Séries Econômicas, Demográficas e Sociais de1550 a 1988. Rio de Janeiro: IBGE, 1990, pp. 570-571, 2a Ed.5 Em seu estudo acerca da estrutura e concentração industrial em São Paulo nos anos 1940/50, José Carlos Pereira sugere parâmetro que nos parecemais adequado para a definição de grande empresa: estabelecimentos que empregavam 500 pessoas ou mais, sendo consideradas médias aquelas comnúmero entre 100 e 499 operários. Ao propor tal limite, Pereira (1967, p. 116) tem consciência de que o mesmo se acha superestimado e até chega aargumentar que “este poderia ser diminuído até 200 pessoas (sem dúvida um grande estabelecimento na maioria dos ramos)”; porém, para o autor, ocoeficiente indicado apresentaria resultados mais confiáveis.

Page 17: Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica · historiografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974). Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes

Note-se no gráfico abaixo a inexistência da grande empresa entre os 33 estabelecimentosfundados em Franca entre 1900 e 1940, embora tenhamos estipulado um valor correspondente aquase um terço do valor definido por Sérgio Silva para esta categoria.6

Gráf ico 1 – Capi ta l in ic ia l das empresas calçadistas registradas entre 1900 e 1940

Fonte: AHMF ** – Livros de Registro de Firmas Comerciais do Cartório do Registro Geral de Hipotecas e Anexos de Franca-SP

Das duas empresas que poderíamos classificar como médias no gráfico acima, uma é a “Cal-çados Jaguar” e a outra, a “Calçados Peixe” (Honório & Cia.). Em valores corrigidos, o capital daprimeira chegava à cerca de 220 contos e o da segunda a pouco mais de 100 contos. Cabe aqui umbreve comentário sobre ambas. A “Calçados Jaguar” teve um tempo de vida bastante curto: funci-onou entre 1921 e 1926. Das empresas pioneiras, que sobreviveram aos anos 1930/40 e se firma-ram como estabelecimentos importantes, a “Calçados Peixe” é seguramente um exemplo singular.Tendo à frente, em seu início, um homem de posses como Claudomiro Honório da Silveira, cincoanos após sua fundação, a Peixe incorporou Hercílio Baptista Avellar, seu gerente de oficina, comosócio de indústria;7 em 1943, com a saída de Silveira da sociedade, Avellar assumiu o comando daempresa juntamente com Abílio Altafim, mudando a razão social da empresa para “Avellar &Cia.”. Tem-se aí, a saída de cena de uma figura certamente de origem burguesa para a entrada, emposição de destaque, de outra de origem operária. Se tivéssemos nos deixado guiar pela lógica dasuperioridade do grande e médio capital a eliminar pela competição desigual os negócios dosempreendedores mais modestos, poderíamos ser levados a pensar que as demais empresas quecompõe o Gráfico 1 não passaram de pequenas fábricas que sucumbiram à concorrência com aJaguar ou a Peixe – ou mesmo com os estabelecimentos mecanizados surgidos nas duas décadasseguintes. Tal conclusão mostrar-se-ia equivocada. As fábricas “Spessoto”, “Palermo”, “Mello” e“Edite” (futura Samello), todas elas constituídas com capitais inferiores a 30 contos não apenas

6 Para fins de atualização dos capitais, em razão dos quarenta anos analisados, optamos pela utilização do índice de preços por setor de atividade

(indústria), tendo em vista o fato de que a constituição do capital das empresas subentende, sobretudo, a propriedade de bens de capital do setorindustrial. Para a correção dos valores, consideramos como ano base 1939 (= 100). Para estes índices, ver: “Deflatores implícitos, por setor deatividade”. In: IBGE. Op. cit., p. 177.** Arquivo Histórico Municipal de Franca.7 Sócio de indústria era geralmente aquele responsável técnico, sem compromisso com os interesses da parte administrativa. Hercílio Baptista de

Avellar havia sido também gerente de oficina da “Calçados Jaguar” e sócio de indústria desta empresa.

Page 18: Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica · historiografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974). Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes

sobreviveram como se tornaram, juntamente com a “Calçados Peixe”, as mais importantes empre-sas locais a partir dos anos 1940/50. Estas cinco empresas formaram a base da indústria calçadistalocal no momento histórico em que ela se firmou como força econômica além do nível local.

Mesmo se considerarmos os setenta anos entre 1900 e 1969 – ou seja, todo o período deorigem, evolução e consolidação da indústria do calçado de Franca –, chegando até a época em quese iniciou a fase exportadora, não encontraremos uma presença significativa de empreendimentosiniciando seus negócios já como médias empresas; pelo contrário, sua presença é insignificante.Analisando o capital inicial das 562 fábricas de calçados registradas em Franca nas sete primeirasdécadas do século XX, constatamos o evidente predomínio das empresas que iniciam suas ativida-des de maneira bastante modesta. Optamos pela conversão em dólar dos capitais em questão, porse tratar de um período muito longo e marcado por várias mudanças da moeda nacional. Tomamospor base para a nossa classificação o valor em dólar do parâmetro anteriormente estabelecido, istoé, a equivalência em moeda norte-americana dos valores em contos de réis. Assim, de acordo como ano de referência – 1920 –, se estabelecemos 500 contos de capital como a definição de umagrande empresa, em dólar tal parâmetro será, segundo a média cambial, de US$ 110 mil; para asmédias, entre US$ 22 mil e US$ 110 mil, e as pequenas abaixo de US$ 22 mil.8

Gráf ico 2 – Capi ta l in ic ia l das empresas calçadistas registradas entre 1900 e 1969

Fonte: AHMF – Livros de Registro de Firmas Comerciais do Cartório do Registro Geral de Hipotecas e Anexos de Franca-SP

Quando comparamos os números das principais fábricas de calçados da capital com as deFranca em 1930, constatamos a grande disparidade existente entre os dois casos. Empresaspaulistanas fundadas no início do século XX, como a “Cia. de Calçados Clark”, que contava com7.800 contos de capital e 430 operários, constituem exemplo nesse sentido; a “Cia. de CalçadosBordallo” empregava 197 operários e um capital de 7 mil contos; a “São Paulo Alpargatas C.o”possuía 123 funcionários e capital de 1.762 mil contos. No interior, a “Cia. de Calçados Flora”, de

8 Os valores de conversão são referentes à média cambial dos anos em questão. Para a conversão da moeda nacional em dólar, utilizamos as tabelas

encontradas em ABREU, Marcelo de Paiva (Org.). A Ordem do Progresso: Cem Anos de Política Econômica Republicana. Rio de Janeiro: Campus,1990, pp. 388-412 e IBGE, Op. cit., pp. 570-571. Os índices de correção constam da tabela de Índices de Preço ao Consumidor (CPI), principalindicador de inflação nos Estados Unidos, elaborado pelo Bureau of Labour Statistics. Todos os valores em dólar aqui mencionado têm essas mesmasreferências, tanto no que diz respeito à conversão monetária, quanto à sua atualização (deflacionamento).

Page 19: Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica · historiografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974). Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes

Rio Claro, com capital de 500 contos e 42 funcionários, parece ter sido a maior no ramo de calça-dos. Estas e outras possuíam requisitos suficientes para serem classificadas como grandes empre-sas. Com efeito, àquela época, a maior fábrica de Franca, a “Honório & Cia” (Calçados Peixe),possuía capital de 80 contos e 16 funcionários. A segunda maior, a “Calçados Maniglia”, contavacom capital de 70 contos e 31 operários; a “Palermo” e a “Spessoto”, importantes na fase deconsolidação, contavam, respectivamente, com 40 e 17 contos de capital e 6 e 15 operários cadauma. Na “Mello”, a terceira maior em meados dos anos 40, o número de operários não chegava aduas dezenas e o capital perfazia apenas 20 contos. Com exceção da fábrica de João Amélio Coe-lho, cujo capital era de 50 contos e possuía 25 funcionários, mas que não alcançou o segundoqüinqüênio da mesma década, em todas as outras, o capital investido não ultrapassava 10 contos eo número de operários não chegava a uma dezena.9 Como se vê, tanto no que diz respeito aocapital, quanto ao número de operários, as fábricas locais apresentavam números bastante modes-tos nos anos que se seguiram ao seu aparecimento.

Diante do quadro acima retratado, parece bastante provável que, com exceção da “CalçadosPeixe”, todas as outras empresas mencionadas tenham iniciado suas atividades nos quadros deuma estrutura ainda artesanal. Quando analisamos o provável poder de aquisição de maquináriopor parte de tais empresas, verificamos que, na maioria dos casos, seus capitais iniciais eram insu-ficientes para a obtenção do equipamento necessário a uma produção minimamente mecanizada.Para a realização deste cálculo, estabelecemos como parâmetro uma estrutura mínima em termosde maquinário10 e nos valemos das importâncias atribuídas ao valor das máquinas arroladas nafalência da “Calçados Jaguar” (1926) para chegar ao quantum médio a ser despendido na suacompra. Desconsideramos o fato de que os valores conferidos ao equipamento da massa falidaestivessem depreciados em razão de se tratar de maquinário usado, pois trabalhamos com a hipóte-se de que também fosse possível adquirir no mercado máquinas usadas, como era comum no se-tor.11 Deste modo, tendo 1926 como ano base, chegamos ao valor de 20 contos de réis como omontante médio necessário à compra do equipamento essencial à mecanização mínima do proces-so de produção de uma empresa de calçados. Para a correção deste valor nos anos anteriores eposteriores, utilizamos o índice de preços por setor de atividade (indústria) elaborado pelo IBGE.12

Considerando que em 1922 fossem necessários 14:480$000 para a aquisição do maquinárioacima descrito, podemos dizer que a “Calçados Palermo”, iniciada naquele ano com capital de5:000$000, estava longe de possuir uma produção minimamente mecanizada. Cinco anos depois,já com capital de 30 contos, é provável que tenha alcançado tal condição. No caso da “CalçadosSpessoto”, os cinco contos de capital com os quais contava quando surgiu em 1924 estava bastantedistante dos 17:920$000 necessários para se equipar. Um qüinqüênio mais tarde, não obstante termais que triplicado seu capital, perfazendo 17 contos, ainda não alcançava os 19:360$000 de queprecisaria para mecanizar minimamente a empresa. Quanto a “Calçados Mello”, fundada em 1929,

9 Cf. Livros de Registro de Firmas Comerciais do Cartório do Registro Geral de Hipotecas e Anexos de Franca-SP e “Relação das Empresas

Fabricantes de Calçados em Franca, Principais Fabricantes da Capital e Interior de S. Paulo: 1930”. In: TOSI, Pedro G.. Capitais no Interior: Francae a História da Indústria Coureiro-Calçadista (1860-1945). Campinas, 1998. Tese (Doutorado em Economia) – IE/UNICAMP, Vol. II, Anexo V. Estaúltima fonte, baseada na Estatística Industrial do Estado de São Paulo, da Secretaria Estadual da Agricultura, Indústria e Comércio, foi utilizada comcerto cuidado de interpretação e sempre cotejada com a primeira e também com outros documentos, como os inventários. Para alguns anos a relaçãoomite empresas registradas há um tempo considerável, de acordo com os livros de Registro de Firmas Comerciais.10 Contando com o auxílio de um técnico do setor, estabelecemos como parâmetro dessa estrutura mínima o seguinte maquinário: máquina para

pesponto (8:557$100), máquina para chanfrar (2:500$000), máquina lixadeira (1:650$000), máquina-prensa para colagem de sola (3:638$000),máquina para prensagem de saltos (800$000), máquina para fresar (2:023$000), máquina para carimbar (762$000) e máquina de furar e pregarilhoses (638$100). Os valores entre parênteses são os atribuídos a cada máquina no arrolamento efetuado na falência da “Calçados Jaguar”. O valortotal corresponde a 20:568$500, o qual arredondamos para baixo para efeito de análise. Agradecemos a Helder da Silva Veríssimo o auxílio técnico noque diz respeito à questão da infra-estrutura necessária à fabricação do calçado.11 Por outro lado, é importante lembrar que o expediente de se alugar máquinas para calçado não havia se tornado um fato entre as empresas de Franca

até meados dos anos 1930, não obstante existir no mercado brasileiro desde o início do século XX, com a instalação da United Shoe MachineryCompany no país. Em Franca, o primeiro registro deste tipo de relação comercial, envolvendo a mesma USMC, data de 1936.12 Cf. IBGE. Op. cit., p. 177 (1939 = 100).

Page 20: Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica · historiografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974). Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes

a menos que tivesse comprometido quase todo o seu capital de 20 contos na compra de maquinário,também podemos deduzir que não foi iniciada com um nível mínimo de mecanização. Em 1934,quando o capital da empresa atingiu a cifra de 100 contos, é certo que tenha ampliado sua meca-nização. No que diz respeito a “Calçados Edite” (futura Samello), sabemos que seu capital de 25contos, quando foi fundada em 1935, seria suficiente para a aquisição de um equipamento orça-do em cerca de 19:260$000. Com efeito, o memorial da empresa relata que àquela época, seuproprietário, Miguel Sábio de Mello, “compra as primeiras máquinas nas quais aprende traba-lhar rapidamente e que são em maior parte operadas por ele mesmo”.13 Como se vê, a separaçãoentre trabalhador e os meios de produção, característica fundamental da superação da faseartesanal, não era uma realidade nos primeiros anos desta que é hoje uma das maiores e maisimportantes empresas do setor calçadista brasileiro; seguramente, não era uma realidade tam-bém nas outras.

A teoria marxista corretamente prevê que a concentração do capital constitui uma “das leisimanentes da própria produção capitalista”, gerando uma situação em que “cada capitalista elimi-na muitos outros capitalistas” uma vez que o desenvolvimento das forças produtivas se torna maisvisível.14 Em Franca, porém, a modernização da indústria do calçado não engendrou efeitos dessaordem que pudessem se evidenciar na seleção dos competidores. Pelo contrário, mesmo após 1945,momento em que, com o fortalecimento das indústrias “pioneiras”, o surgimento das grandes em-presas começou a se esboçar, não observamos um processo significativo de concentração de capi-tais entre os empreendimentos locais. Prova disso é o fato de que, das 497 empresas registradas nosvinte e cinco anos entre 1945 e 1969, apenas cinco (1%) iniciaram suas atividades já como empre-sas de médio porte.

Diante desse quadro peculiar, não acreditamos que seja equivocado pensar que, no contextoda indústria do calçado, que é periférica do ponto de vista do capitalismo industrial, tenha havidoa possibilidade, pelo menos em seus primórdios, de pequenos artesãos e operários se converteremem outro ser social que não o proletário propriamente dito.

Marx e Engels, no Manifesto Comunista, negam a probabilidade de camponeses e artesãossobreviverem como tais no capitalismo moderno, “em parte porque seu capital diminuto nãobasta para a escala na qual a indústria moderna é levada avante (...) e, em parte, porque suasespecializações se tornaram inúteis com os novos métodos de produção”; o resultado disso é que“todos eles se afundam, gradualmente, no proletariado”.15 Todavia, se pensarmos nas franjas dosistema, naqueles setores onde as configurações mais modernas do capital não se fizeram sentirde modo profundo, julgamos ser razoável supor que haja lugar para a manutenção de possibili-dades já extintas no capitalismo avançado como, por exemplo, a ascensão social a partir dashabilidades e do esforço pessoais, tendo em vista o fato de que, nestes casos, a concorrência como capital em suas formas mais avassaladoras não constitui ainda uma realidade imediata. O casoda origem da indústria e do empresariado do calçado em Franca parece se adequar a esse racio-cínio.

Vimos que não é possível conceber o empresariado do calçado como grupo social cujasraízes históricas remontam ao grande capital e, no limite, até mesmo ao médio capital. Como ficaclaro, o processo local se distingue das interpretações correntes acerca da formação da indústria e,por extensão, da burguesia industrial no Brasil.

Nossa constatação de que o núcleo original do empresariado calçadista deriva da ativida-de de artesãos/sapateiros e, em menor grau, do pequeno comércio, confronta a interpretação domi-nante, que vincula o surgimento da burguesia industrial ao grande capital cafeeiro e, por outro

13 Cf. SAMELLO S/A. Memorial Samelo (Franca: 1898-1960). Franca: Samello, 2000.14 Cf. MARX, K. O Capital – Crítica da Economia Política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 881, Livro I, Vol. II.15 MARX, K. & ENGELS, F. O Manifesto Comunista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998, p. 21, 3a. Edição.

Page 21: Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica · historiografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974). Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes

lado, também se choca com a análise crítica dessa visão, que considera a classe média como matrizsocial dos empreendedores fabris paulistas.16

Tampouco podemos dizer que a origem do empresariado local possui ligação com uma“burguesia imigrante”, interpretação que também ganhou força nos anos 1970 após a publicaçãode A Industrialização de São Paulo por Warren Dean.17 Em que pese a pertinência pontual de taisinterpretações, as generalizações por elas apresentadas estão longe de contemplar o caso por nósinvestigado. Entre as dez maiores fábricas de Franca em 1945, oito tinham à sua frente proprietári-os ou sócios de ascendência italiana ou espanhola. Teriam eles origem nos quadro do que podería-mos chamar de uma “burguesia imigrante”? Pelo contrário, conforme veremos a seguir, tanto ositalianos como os de procedência espanhola, segunda comunidade estrangeira mais importante,eram todos homens de origem modesta. Examinemos agora as origens destes homens.

A maior das dez fábricas em 1945, a “Calçados Palermo”, teve origem na oficina de sapatei-ro – com pequeno comércio de calçados anexo – iniciada em 1922 por João Palermo, então com 30anos, italiano de Basilicata, com o exíguo capital de cinco contos de réis, o equivalente à época aUS$ 720. Dez anos mais tarde, em 1932, o capital da empresa havia subido a 40 contos (cerca deUS$ 3,170) e contava apenas com 6 funcionários.18 Como se pode perceber, a evolução do empre-endimento foi lenta e, mesmo uma década depois, João Palermo permanecia como pequeno em-presário.

A “Calçados Spessoto”, quarta maior em 1945, foi iniciada em 1924 pelo oficial de sapateiroPedro Spessoto com cinco contos de réis, o equivalente a apenas US$ 550. Quase dez anos depois,em 1933, o capital da empresa era ainda de 37 contos (cerca de US$ 3,240), saltando para 200contos em 1934 (cerca de US$ 17,500). Subtende-se, dessa surpreendente elevação de capital, quea empresa tenha sido significativamente modernizada, pois o número de operários aumentou de 16para 42.

Em 1928, Spessoto adquiriu um pequeno curtume, o Santa Cruz , e possivelmente a amplia-ção da empresa tenha a ver com o aumento dos lucros, já que expandiu sua área de atuação, assimcomo do fluxo de couros a sua fábrica.

A origem humilde de Pedro Spessoto é notória. Nascido em 1888, na cidade paulista deAraras, em uma família de sete irmãos, ficou órfão de pai aos 9 anos. Era filho do imigranteitaliano Giuseppe Spessoto, natural de Treviso e trabalhador rural na fazenda Boa Vista, em Ribei-rão Preto. O inventário de Giuseppe não apresenta nada além de meros 3:800$000, quantia emdinheiro correspondente a pouco mais de US$ 800 em 1897, quando faleceu.19 A infância difícil deSpessoto pode ser deduzida do fato de que nem mesmo o modesto pecúlio deixado pelo pai pôdeser usufruído pela família.

Em 1916, dezenove anos depois da morte do marido, Giovanna Freganezzi, mãe de PedroSpessoto, reclamava na justiça para reaver o dinheiro do espólio, pois, tendo-o cedido ao filho maisvelho para que montasse uma padaria, declarava: “até o presente o seu referido filho, Antonio

16 Principal nome da vertente que liga a classe média às origens da burguesia industrial brasileira, Luiz Carlos Bresser Pereira assinala, baseado em

significativa pesquisa empírica realizada no início dos anos 1960, “que os empresários industriais do Estado de São Paulo, onde se concentrou aindustrialização brasileira, não tiveram origem nas famílias ligadas ao café. Originaram-se em famílias imigrantes principalmente de classe média”.Cf. BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Empresários, suas origens e as interpretações do Brasil. In: SZMRECSÀNYI, Tamás & MARANHÃO,

Ricardo. História de Empresas e Desenvolvimento Econômico. São Paulo: Hucitec; ABPHE; Edusp; Imprensa Oficial, 2002, pp. 146, 2a Edição.17 Cf. DEAN, W. A Industrialização de São Paulo. São Paulo: DIFEL: EDUSP, 1971. De acordo com Dean, os imigrantes que se envolveram na

atividade comercial e industrial eram de origem burguesa, muitos dos quais chegaram ao Brasil com alguma forma de capital: “economias de algumnegócio realizado na Europa, um estoque de mercadorias, ou a intenção de instalar uma filial de sua firma”. No intuito de destacar esses indivíduos damassa de imigrantes que vieram para Brasil trabalhar nas lavouras de café, Dean os chama de “burgueses imigrantes”, cuja experiência e treinamentoos predispunha a se dedicar à indústria ou ao comércio.18 Todas as referências aos capitais das empresas baseiam-se, salvo outra indicação, nas informações dos livros de Registro de Firmas Comerciais do

Cartório do Registro Geral de Hipotecas e Anexos de Franca e em TOSI, P. G., op. cit., Anexos.19 Cf. AHMF – Inventário de Giuseppe Spessoto. Autos 126, Caixa 156, 1o Ofício Cível, 1897/1916. As informações profissionais acerca do

inventariado foram obtidas em escritos do próprio inventário.

Page 22: Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica · historiografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974). Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes

Spessoto, não tem querido restituir esta importância para ser inventariada entre a suplicante e osmais herdeiros do casal”.

Em face das dificuldades, em 1901 Spessoto começou a trabalhar como ajudante na selaria eoficina de sapateiro de seu cunhado, Donato Ferrari, onde, dez anos mais tarde, foi admitido comosócio. Não há como negar que a atividade de artesão do couro esteja indelevelmente vinculada aosurgimento desta, que foi uma das maiores e mais importantes fábricas de calçados de Franca, tãoexpressiva que despertou a atenção do Grupo Vulcabrás, de capital franco-suíço, para o qual foivendida na década de 1970,20 após a morte precoce do herdeiro da empresa, Yvo Spessoto, em 1971.

A terceira e a quinta maiores fábricas em 1945, respectivamente, a “Calçados Mello” e a“Calçados Samello”, tinham à sua frente dois irmãos filhos de imigrantes espanhóis: Antonio Lopesde Mello e Miguel Sábio de Mello. Apesar de irmãos, Antonio e Miguel tinham pais diferentes: oprimeiro era filho do trabalhador rural Mariano Lopes Della Torre, do qual temos poucas informa-ções, e o segundo de José Sábio Garcia, que veio para o Brasil em 1894, tendo trabalhado emfazendas de café no interior de São Paulo e Minas Gerais e também como limpador de trilhos daCia. Mogiana de Estradas de Ferro.21

Antonio Lopes de Mello, irmão mais velho, foi operário da Jaguar e se estabeleceu comopequeno fabricante de calçados em 1929, em sociedade com o também ex-operário Luiz Ferro,com capital de vinte contos de réis (equivalente a US$ 2,500). Em 1932, com a saída de Ferro, seuirmão Miguel Sábio de Mello passou a fazer parte da empresa.

Os negócios se ampliaram e, em 1934, o capital chegava a 100 contos, momento em que afábrica operava com 48 funcionários. Em 1935, Miguel se afastou da sociedade e montou suaprópria fábrica, pequena, com menos de duas dezenas de operários e um capital de vinte contos(cerca de US$ 2,300).

Miguel Sábio de Mello começou sua vida profissional trabalhando nos cafezais da fazendaSanta Maria, em Conquista-MG, onde permaneceu até os 18 anos. Em 1922, se mudou para Francae empregou-se como aprendiz na oficina do sapateiro Horácio Lima, onde permaneceu por cercade dois anos. Depois disso trabalhou em outras oficinas, utilizando seu tempo livre para fabricarartesanalmente chinelos e sandálias com tiras de couro, em grande parte sobras da “Calçados Ja-guar”. Em 1926, abriu sua própria oficina, com ajuda de um oficial sapateiro e dois aprendizes.22

A origem modesta do fundador do grupo Samello, sapateiro saído do campo e alfabetizadosomente aos 30 anos, em nada lembra à representação de uma “burguesia imigrante”; tampouco,pelo menos nos primeiros quinze anos da idade adulta de Miguel Sábio de Mello, sua trajetóriaprofissional pode ser dissociada de um ofício manual.

Origem distante de uma “burguesia imigrante” tinham também outros três proprietários cujasempresas estavam incluídas entre as dez maiores em 1945.23

Gildo Nalini, sócio da “A. Mota, Nalini & Cia. Ltda.”, a sexta maior, era filho do imigranteitaliano Francesco Nalini. Malgrado não tenhamos encontrado informações específicas sobre o paide Gildo Nalini, sabemos que tratava-se de família pobre, pois no inventário de sua mãe, datado de1937, sete anos antes da fundação da fábrica, o único bem constante era uma casa no valor de 3contos de réis, quantia insuficiente para quitar os 4 contos em dívidas do espólio a ser divididoentre nove filhos.

20 Cf. Revista Lançamentos – Máquinas & Componentes, Novo Hamburgo, Grupo Editorial Sinos, janeiro/1980, n. 19.21 Cf. SAMELLO S/A. Op. cit.22 As informações sobre Miguel Sábio de Mello têm como referência a indicação da nota anterior, a entrevista a nós concedida por seu filho, Oswaldo

Sábio de Mello, em 24/07/2001 e 07/08/2001 e “Samello em sucessão: um legado com muito carisma” [Entrevista com Wilson Sábio de Mello]. In:Revista Lançamentos – Máquinas & Componentes, Novo Hamburgo, Grupo Editorial Sinos, jan/fev. 1990, n. 30, pp. 42-53.23 Não obstante utilizarmos como parâmetro de classificação as “dez maiores empresas”, é importante ressaltar que apenas as cinco primeiras tinham

porte significativo, podendo ser consideradas médias empresas. Da sexta à décima, eram todas pequenas empresas com capital entre Cr$ 30 mil (cercade US$ 1,900) e Cr$ 110 mil (US$ 6,900) e média de duas dezenas de operários.

Page 23: Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica · historiografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974). Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes

Antonio Maniglia, da “Calçados Maniglia”, sétima maior, era filho do italiano José Maniglia,seu sócio juntamente com seu tio Miguel Maniglia no início da empresa em meados dos anos 20 –pai, tio e sobrinho eram todos ex-operários da “Calçados Jaguar”. O contrato de sociedade anexoao inventário de sua esposa demonstra que, no início da fábrica, seus rendimentos não se distingui-am muito do recebido pela maioria dos operários: com pró-labore de 300 mil-réis,24 seu ganhoficava abaixo do auferido por alguns trabalhadores qualificados do setor coureiro-calçadista.25 Nãoobstante as inúmeras dificuldades financeiras que sempre marcaram seu empreendimento, Anto-nio Maniglia manteve sua empresa em atividade até a sua morte, em 1975.26

Luiz Puglia, proprietário da “Calçados São Luiz”, décima maior, não se diferencia dos outrosdois industriais. Era filho do pedreiro Hermenegildo Puglia, italiano de Salerno, dono de patrimôniomodesto e chefe de uma família de 10 filhos. Luiz Puglia iniciou sua empresa em 1942, com oexíguo capital de quatro contos. Sua duração foi curta, pois, em 1946, a fábrica foi vendida para a“Calçados Palermo”.27

Dentre os oito empresários de origem imigrante, apenas Stélio Dante Pucci, sócio da “ThomazLicursi & Cia.”, a oitava entre as dez maiores, pode ser qualificado como de procedência burguesa.Seu pai, Pedro Pucci, natural de Mongrassano, na Itália, era proprietário de mais de uma dezena deimóveis urbanos em Franca e foi o fundador do “Curtume Pucci”, juntamente com seu sobrinhoVicente Pucci, também grande proprietário urbano local. Pelo que se pode deduzir da leitura doinventário de Stélio Dante Pucci, seu investimento na indústria do calçado constituía um negócioocasional em sociedade com seu cunhado Thomaz Licursi. A empresa nunca chegou a ter um porteconsiderável – tinha 20 funcionários em 1945, 75 em 1956 – e não sobreviveu aos anos 1960. Seuprincipal investimento era a “Pucci & Cia.”, indústria fabricante de solados de borracha, que deuorigem a “Amazonas S/A – Produtos para Calçados”, atualmente maior empresa do setor na Amé-rica Latina. O capital de Pucci nesse empreendimento era seis vezes maior que o investido nafábrica de calçados.28

Se não podemos falar de uma “burguesia imigrante” como o grupo social de origem dosindustriais do calçado, tampouco os de ascendência nacional tinham vínculos com os setores maisabastados da sociedade.

Os dois empresários restantes da relação das dez maiores empresas em 1945, Hercílio BaptistaAvellar e Celso Ferreira Nunes, não vieram de famílias de posse ou mesmo da classe média. DeHercílio Baptista Avellar, proprietário da “Calçados Peixe”, a segunda maior e uma das poucasfábricas de calçados a já surgir como empresa de médio porte, seria difícil pensar que tivesseorigem privilegiada. Seu pai, Urias Baptista Avellar, era enfermeiro da Santa Casa de Misericórdialocal, profissão que exerceu até o momento de sua aposentadoria. Do inventário de Urias constaapenas a sua residência, um imóvel de pouco valor, único bem a ser dividido entre seus dez filhos.Nascido em 1888, Hercílio Baptista Avellar iniciou-se no ramo de couro e calçados em 1905, aosquinze anos, trabalhando na selaria mantida por Elias Motta, passando, depois de alguns anos, àempresa “Carlos Pacheco & Cia.”, que produzia selas, botinas e sapatões. Em 1919, Avellar foibeneficiado pelo estágio de alguns meses em fábrica de calçados na cidade do Rio de Janeiro, ondeteve contato com maquinário moderno e se qualificou para exercer o cargo de gerente de oficina da

24 Cf. AHMF – Inventário de Maria Thereza Lopes Maniglia. Autos 1.394, Maço 100, Caixa 131, 2o Ofício Cível, 1951.25 Segundo Pedro G. Tosi, o salário médio dos operários italianos que trabalhavam no “Curtume Progresso” era de cerca de 196 mil-réis. Todavia, os

vencimentos de operários mais qualificados chegavam a 650, 700 e até mais de 800 mil-réis. Cf. TOSI, P. G. Op. cit., p. 182.26 A julgar pelo o que foi manifestado por Antonio Maniglia no inventário de sua esposa (ver nota 48), as dívidas de sua empresa remontam a

princípios dos anos 1930. Em 1951, data do inventário, declarou que vinha “pagando ou acomodando situações” referentes àqueles débitos. No seupróprio inventário, de 1975, em razão de o espólio ser objeto de várias ações de cobrança, foi solicitada a penhora dos bens de herança. Cf. Inventáriode Antonio Maniglia. Autos 254, Caixa 45, 1o Ofício Cível, 1975.27 Cf. Comércio da Franca, 31/03/1946, p. 4.28 Cf. AHMF – Inventário de Stélio Dante Pucci. Autos 65, Caixa 252, 1o Ofício Cível, 1953 e Inventário de Pedro Pucci. Autos 1.405, Caixa 98, 2o

Ofício Cível, 1939. De acordo com o seu inventário, a parte do capital de Stélio Dante Pucci investido na empresa “Thomaz Licursi & Cia.” era de Cr$10 mil (cerca de US$ 500); na “Pucci & Cia.” era de Cr$ 60 mil (equivalente a US$ 3 mil).

Page 24: Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica · historiografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974). Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes

“Calçados Jaguar”, de propriedade dos genros de seu antigo patrão Carlos Pacheco de Macedo.29

Ao que tudo indica, Avellar era um operário especializado e não um homem voltado aos negóciosde ordem administrativa da empresa.

Já Celso Ferreira Nunes era filho de um sitiante local, cuja pequena propriedade rural, avalia-da à época em sete contos, era seu único patrimônio.30 A julgar pelo capital aplicado na fábricaquando iniciou suas atividades em 1944 – 30 contos (cerca de US$ 2 mil) –, podemos concluir quetambém se tratava de pessoa de poucas posses.

Enfim, qual quadro social podemos vislumbrar quando pensamos na parcela mais expressivado empresariado do calçado no momento histórico em que o setor começa a se consolidar emFranca? De acordo com o descrito acima, podemos afirmar com segurança que, dos cinco princi-pais fabricantes, aqueles cujas empresas já havia alcançado a categoria de médias em 1945, todos,sem exceção, exerceram ocupação manual, como operário ou artesão, até no mínimo a idade de 30anos. Destes cinco, três eram filhos de trabalhadores rurais imigrantes, ou seja, homens que exer-ciam profissão braçal.31 Quando consideramos o conjunto dos dez principais empresários, é certoque seis deles exerceram trabalho manual e em seis casos a ocupação do progenitor era braçal. Seponderarmos que os referidos industriais iniciaram-se em seus ofícios por volta dos quinze anos deidade, o que de fato pode ser comprovado, podemos inferir que, em pelo menos um terço de suavida produtiva, exerceram a atividade de artesão ou operário.

Mesmo nos momentos de maior desenvolvimento da indústria do calçado nos anos 1950/60,quando era de esperar uma certa seleção natural dos empreendedores em razão da previsível con-centração de capital, tal dinâmica de mobilidade social continuou se reproduzindo.

A exemplo dos chamados “pioneiros”, indivíduos como Ruy de Mello – que em 1950 iniciouum pequeno negócio de “manipulação e conserto de calçados”, ou seja, uma oficina de sapateiro,cujo capital eram parcos Cr$ 3.000,00 (cerca de 160 dólares) – prosperaram e chegaram a se tornarproprietários de grandes e médias empresas.

Em fins dos anos 1960, o pequeno empreendimento de Ruy de Mello já havia se tornado umasociedade anônima, a “Calçados Ruy de Mello S/A”, contando com capital de NCr$ 356.000,00(em torno de US$ 76 mil) e 165 operários. Em 1968, um ano antes da abertura de seu processo defalência, consumado em 1971, a Ruy de Mello S/A havia sido responsável por um faturamento deNCr$ 2.244.220,00 (equivalente a US$ 660 mil), algo bastante significativo para uma indústria decalçados.32

Da mesma forma, Nelson Martiniano, que em 1959 iniciou uma pequena fábrica com capitalde Cr$ 50.000,00 (cerca de 490 dólares), deu origem a um grupo econômico (Grupo Martiniano)que, tendo se notabilizado pela fabricação de calçados para a multinacional Nike nos anos 1980,em 1992 possuía sua própria marca e contava com 2.200 funcionários e faturamento de US$ 80milhões.33

O percurso percorrido por Eurípedes Nocera é emblemático de uma ascensão gradativa. Em1953, teve sua oficina de sapateiro – “Oficina Nocera” – registrada com capital de Cr$ 5.000,00(cerca de 250 dólares). Em 1962, registrou a fábrica de calçados com capital de Cr$ 300.000,00(cerca de mil dólares). Vinte anos depois, sua empresa, a “Calçados Vogue”, apresentava potencialde mercado para atrair o interesse da franco-suíça Vulcabrás S/A, para a qual foi vendida em 1982.34

A evocação da teoria marxista lança luz ao nosso caso. De acordo com Marx, na manufatura,“complexa ou simples, a operação continua manual, artesanal, dependendo portanto da força, dahabilidade, da rapidez e segurança do trabalhador individual, ao manejar seu instrumento. O ofíciocontinua sendo a base”.35 Se, em muitos aspectos, mesmo em tempos de capitalismo industrial

29 As informações acerca de Hercílio Baptista Avellar e suas origens baseiam-se em: AHMF – Inventário de Urias Baptista Avellar. Autos 13, Caixa

261, 1o Ofício Cível, 1938 e Comércio da Franca – Revista Comemorativa ao 1o Centenário de Franca, Franca, 1956, pp. 66-67.30 Cf. AHMF – Inventário de Quirino Ferreira Nunes. Autos 872, Maço 43, Caixa 58, 2o Ofício Cível, 1914.31 Conforme mencionamos anteriormente, não temos informações sobre a atividade exercida pelo pai de João Palermo.32 As informações sobre o capital da empresa têm como fonte os livros de Registro de Firmas Comerciais do Cartório do Registro Geral de Hipotecase Anexos de Franca, também válida para as demais citações sobre capitais das empresas entre 1900 e 1969, e os dados obtidos no balanço da empresa,documento anexo ao seu processo de falência. Cf. AHMF – Falência: Calçados Ruy de Mello S/A. Autos 125, Caixa 419, 1o Ofício Cível, 1969.33 Cf. Entrevista de Galvão Martiniano a Cida de Paula. In: Lançamentos: Máquinas e Componentes. Novo Hamburgo: Editorial Sinos, set/out. 1993,

n. 50, pp. 35-41.34 Cf. AHMF – Livro de Registro Integral de Títulos, Documentos e Outros Papéis do Cartório de Registro de Imóveis e Anexos de Franca. B-F, reg.15.894, prot. 23.832/82, fls. 327.35 Cf. MARX, K. O Capital., Op. cit., Livro I, Vol. I, p. 389 (Cap. XII: Divisão do Trabalho e Manufatura).

Page 25: Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica · historiografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974). Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes

avançado, a indústria do calçado continuou apresentando – e ainda apresenta – característicasartesanais e manufatureiras,36 entendemos que o ofício, a habilidade manual, possa ser interpreta-do como uma porta de acesso ao “mundo empresarial” e a capacidade criativa como um importan-te fator a explicar o êxito do empresário do setor, já que, conforme amplamente ressaltado pelabibliografia, essa é uma indústria onde o volume de capital não é tão decisivo para o início doempreendimento. De um ponto de vista schumpeteriano, pensamos ainda que a competência emefetivar “novas combinações”37 que pudessem otimizar a capacidade de criação e produção devater sido fundamental para o sucesso das empresas analisadas.

Os casos aqui descritos comprovam nosso argumento de que na indústria do calçado, a pos-sibilidade de ascensão de pequenos empresários, originários de famílias pobres, à condição deempresários não habita apenas o imaginário mítico elaborado pela ideologia burguesa.38

Dentre as centenas de empresas criadas em Franca, considerando as de maior ou menor sorte,grande parte teve no ofício manual de seus fundadores o ponto de partida para o seu estabelecimen-to. Assim, resta-nos concluir que a formação do empresariado do calçado de Franca apresentacaracterísticas bastante diversas do que temos como idéia geral do processo de gestação da burgue-sia industrial brasileira. A tradição interpretativa hegemônica que vincula a origem da indústria noBrasil ao grande capital, especialmente àquele advindo da cafeicultura, pressupõe a emergência deuma burguesia nativa originária da aristocracia rural, dos estratos superiores das elites terratenentes,formada sobretudo por seus membros envolvidos com o “alto comércio”.

Dessa forma, conforme destaca Nelson Werneck Sodré, ao contrário de sua congênere euro-péia, “tributária da classe dominante”, a burguesia brasileira tem raízes na própria classe dominan-te, em uma elite senhorial de estirpe aristocrática. Para esse autor, nossa diferença básica em rela-ção à Europa, no que diz respeito ao processo de gestação da burguesia, estaria no fato de que noBrasil não se verificou um “movimento ascensional” das camadas mais baixas da população a fimde compor esta que seria a classe dominante universal.39 Tal visão é corroborada, por exemplo, porFlorestan Fernandes, que salienta que, nesse processo, é o fazendeiro de café quem “experimentatransformações de personalidade, de mentalidade e de comportamento prático tão radicais”, con-vertendo-se em “homem de negócios”.40

A essência do empresariado que representa a indústria do calçado em Franca assemelha-semuito mais à formação burguesa original, européia, classe que Friedrich Engels definiu como uma“camada oprimida desde as suas origens, tributária da nobreza feudal dominante, recrutada entreservos e vassalos de toda espécie”.41 Talvez por estar associada a uma atividade fabril que por suasespecificidades manteve traços característicos de estágios pretéritos do capitalismo industrial, aburguesia local tenha apresentado uma dinâmica de desenvolvimento congruente à fase primitivada constituição da classe que forjou o moderno sistema mundial produtor de mercadorias denomi-nado capitalista.

Conforme nos lembra Maurice Dobb, o “crescente predomínio de uma classe de mercadores-empregadores saídos das fileiras dos próprios artesãos” era para Marx “o caminho realmente revo-lucionário” dentre as formas de construção do domínio burguês.42

Em Franca, o prosaico quadro de uma fração burguesa vinda dos “de baixo”, uma burguesia“de pés descalços”, encontra sua melhor representação na figura de Miguel Sábio de Mello, funda-

36 Achyles Barcelos da Costa ressalta, por exemplo, que a produção de calçados ainda “caracteriza-se por constituir um processo de trabalho de

natureza intensiva em mão-de-obra, com tecnologia de produção que guarda ainda acentuado conteúdo artesanal. Assim, esta indústria apresentaelevado potencial de emprego, desempenhando importante papel na incorporação de mão-de-obra, inclusive não-especializada”. Cf. COSTA, A. B.da. Competitividade da indústria de calçados: nota técnica setorial do complexo têxtil. In: COUTINHO, L. G. et al. Estudo da Competitividade da

Indústria Brasileira. Campinas: FECAMP; MCT; FINEP; PADCT, 1993, pp. 01-02.37 Segundo Schumpeter as “novas combinações” seriam inovações de ordem tecnológica e/ou organizacional que pudessem desencadear transforma-

ções significativas no desenvolvimento de determinada atividade. De acordo com o economista austríaco, “alguém só é um empreendedor quandorealmente ‘empreende novas combinações’ e perde esta característica logo que estabelece negócios, quando os estabiliza, deixando-os correr, comooutras pessoas”. Cf. SCHUMPETER, J. Teoria do Desenvolvimento Econômico. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961.38 Cf. MARTINS, J. de S. O Cativeiro da Terra. São Paulo: Hucitec, 1986, 3a Edição.39 Cf. SODRÉ, N. W. História da Burguesia Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, 2a Edição (especialmente o primeiro capítulo).40 FERNANDES, F. A Revolução Burguesa no Brasil – Ensaio de Interpretação Sociológica. Rio de Janeiro: Guanabara, p. 113, 3a. Edição.41 Cf. ENGELS, F. Anti-Düring. Lisboa: Dinalivro, 1976, p. 224.42 Cf. DOBB, M. Op. cit., p. 169.

Page 26: Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica · historiografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974). Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes

dor da Samello, exemplo emblemático do empresário local, que “chegou na cidade descalço, comoandava até então na roça”.43

Sobre o autor: Agnaldo de Sousa Barbosa é Mestre em História e Doutor em Sociologia pela UNESP.Atualmente é pesquisador do Programa de Apoio a Jovens Pesquisadores em Centros Emergentesda FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) junto ao IPES/NEIC/UNIFACEF. Foi professor colaborador do Departamento de História da Universidade Federal deUberlândia (UFU) e da Universidade Estadual de Maringá (UEM). É co-autor, entre outros, de DosCoronéis à Metrópole (Ed. Palavra Mágica) e Política e Sociedade no Brasil (Ed. Annablume).

43 Essa informação é dada por seu filho Wilson Sábio de Mello. Cf. “Samello em sucessão...”, op. cit., p. 43.

Page 27: Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica · historiografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974). Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes

Propaganda da “Casa Combate”. Revista “A Cigarra”, nº 60, 1917.

Propaganda dos “Calçados Rocha”. Revista “A Cigarra”, nº 357, 1929.