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contra PELO 1 CADERNO DE ESTUDOS SOBRE ARTE E POLÍTICA

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Caderno de estudos sobre arte e política

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Caderno de estudos sobre arte e polítiCa

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contrapelo – Caderno de estudos sobre arte e política, ano 1, número 1, 2013

editorialtrajetóriaA história do avesso, Kiwi Companhia de Teatro

bibliotecacríticaO Teatro Revolucionário, Amiri Baraka (1964)

Treze questões aos organizadores e participantes

do Festival de Avignon, Comitê de ação (1968)

poemasquejandos

Carta à mãe, Maria Auxiliadora Lara Barcelos (Dorinha)

Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto

Europas Schande (Vergonha da Europa), Günter Grass

El otro (O outro), Roberto Fernández Retamar

Um, nenhum e cem mil, Luigi Pirandello

dossiêkiwi

Nós não estamos em paz, Fernando Kinas

Roteiro nº 5 Morro como um país

A flor e a exceção, Mei Hua Soares

Caderno de fotos

Erre!, Fabio Salvatti

políticaculturalMidas e a política cultural, Fernando Kinas

aquiagora Enquanto isso, no Brasil... as ambiguidades da justiça de transição,

Edson Teles

Triste crônica de um destino anunciado, José Arbex Jr.

Uma breve história do teatro-jornal ou jornal vivo, Eduardo

Campos Lima

No país da verdade de mentira, Angela Mendes de Almeida

O esculacho contra o esquecimento, Frente de Esculacho

Popular

ontem...

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Com o fim da ditadura civil-militar acelerou-se o movimento de reorganização da sociedade brasi-

leira. Sujeito tanto às circunstâncias da vida política – queda do muro de Berlim, ressurgimento das

lutas populares, crises econômicas –, como às constâncias da história nacional – conciliação pelo alto,

dependência internacional, mentalidade escravocrata e brutalidade das elites –, este movimento tam-

bém atingiu a arte e a cultura. Em um contexto contraditório, em que alguns esperavam avanços signi-

ficativos e outros anteviam um destino pouco ou nada glorioso, foram surgindo, também de forma con-

traditória, novas formas de agir e uma consciência política mais aguda por parte do povo do teatro. Uma

expressão concreta desta nova etapa foi a organização em grupos na cidade de São Paulo. Entre as

prioridades destes coletivos, que frequentemente unem arte e política, estão a redefinição do modo e das

relações de produção no trabalho de criação, a investigação estética continuada e o estreitamento das

relações com movimentos sociais.

O caderno de estudos Contrapelo, nome que faz referência à reflexão de Walter Benjamin sobre a

necessidade de “escovar a história a contrapelo”, insere-se neste contexto e expressa parte dessa história

e do seu avesso. Nosso grupo, nascido em 1996, produziu montagens teatrais, leituras dramáticas e um

documentário; organizou debates, seminários, ciclos de filmes e encontros multiartísticos; viajou pelo

país e se apresentou em teatros, praças, galpões, sindicatos, assentamentos, faculdades…, mas ainda não

tinha sistematizado parte do pensamento que orienta sua trajetória. Contrapelo começa a cumprir este

papel, tentando contribuir com a discussão crítica sobre arte e política, no Brasil e no mundo.

Dado este passo, é preciso fazer dois agradecimentos. O primeiro é endereçado aos que participaram

do grupo e tomaram outros rumos. Ele(a)s sabem a importância que tiveram na nossa trajetória. O se-

gundo agradecimento é extensivo aos muitos parceiros e parceiras que tornaram possível o projeto Mor-

ro como um país – A exceção e a regra, que inclui este primeiro número do caderno de estudos Contra-

pelo. Nossa enorme gratidão se mistura com o desejo de novos trabalhos em comum.

Não é fortuito que Contrapelo seja um “caderno de estudos” e não uma “revista”. Há tanta coisa por

fazer – porque há tanta injustiça e desumanidade, mas também tantas possibilidades – que precisamos

estudar, e muito, para mudar o que precisa ser mudado. Ao mesmo tempo, como indica o dossiê incluído

nesta publicação, já estamos com a mão na massa. Porque o mundo, e nós mesmos, não estamos prontos.

Boa leitura!

Kiwi Companhia de TeaTro

editorialtrajetória

A história do avesso

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05

A Kiwi Companhia de Teatro surgiu em 1996. Ela é responsável por montagens teatrais e

leituras dramáticas (a partir de autore(a)s como Heiner Müller, Samuel Beckett, Franz Kafka,

Hilda Hilst, Elfriede Jelinek, Julio Cortázar e Martin Crimp), além de experiências cênicas e

intervenções urbanas; organizou cursos, oficinas, eventos multiartísticos e debates;

recentemente produziu o documentário de longa-metragem Carne – Patriarcado e capitalismo

e o caderno de estudos Contrapelo. O grupo procura elaborar um pensamento sobre o teatro,

contribuir para a compreensão crítica de temas contemporâneos e intervir artística e

politicamente na vida social do país, em geral associado a movimentos sociais e populares.

A formação atual do grupo reúne colaboradores fixos e convidados: Fernanda Azevedo,

Fernando Kinas, Luiz Nunes, Mônica Rodrigues, Daniela Embón, Luciana Rodrigues,

Eduardo Contrera e Maysa Lepique. Vários artistas estão vinculados à trajetória do grupo:

Heloísa Passos, Taty Kanter e Nadja Flügel (iluminadoras), Demian Garcia (músico e

sonoplasta), Camila Lisboa e Paulo Emílio (criadores visuais), Lori Santos, Simone

Spoladore, Marísia Brüning, Chiris Gomes e Clóvis Inocêncio (atores e atrizes),

Júlio Dojcsar e Fernando Marés (cenógrafos), Fabio Salvatti (diretor), Gavin Adams

(pesquisador de imagens), Maitê Chasseraux (figurinista), Marina Willer (direção de arte)

e Marie Ange Bordas (artista plástica e fotógrafa).

A partir de 2007 a Companhia entra em nova fase, neste ano foi selecionada pelo

Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo com o projeto Teatro/

mercadoria – Espetáculo e miséria simbólica, que incluiu apresentações teatrais, oficinas,

debates e a realização de dois eventos multiartísticos. Ainda em 2007 a Companhia

mostrou parte do seu repertório na Mostra Sesc de Artes. Neste mesmo ano participou

do evento Conhecimento e cultura livres com apoio do Ministério da Cultura.

Em 2008 a Companhia representou o Brasil no Seminário Internacional de Performance

e Feminismo Actions of Transfer – Women‘s peformance in the Americas, organizado pela

Universidade da Califórnia (UCLA). O grupo produziu o documentário Actions of Transfer

– O olhar brasileiro, em parceria com as Atuadores e com apoio da Secretaria Nacional

de Políticas para as Mulheres.

Em agosto de 2009 a Kiwi Companhia de Teatro apresentou em Bogotá a performance

Carne – Histórias em pedaços no 7º Encuentro Ciudadanias en Cena, organizado pelo

Instituto Hemisférico de Performance y Política.

Com o projeto Carne – Patriarcado e capitalismo, o grupo foi novamente contemplado

pelo Programa de Fomento ao Teatro. Foram realizadas atividades em todas as regiões

da cidade entre maio de 2010 e agosto de 2011. A parte cênica deste projeto foi

apresentada mais de 120 vezes e integra o repertório da Companhia.

No final de 2011 o projeto Carne recebeu o Prêmio Myriam Muniz (Funarte). Foram

realizadas apresentações, debates, uma mostra de filmes e oficinas teatrais no Estado

do Pará (Belém, Marabá e Parauapebas) e no interior do Estado de São Paulo.

Em 2012 o grupo recebeu pela terceira vez o apoio do Programa de Fomento ao Teatro e

realizou o projeto Morro como um país – A exceção e a regra. Foram discutidos temas como

a violação aos direitos humanos, a violência institucional, o conceito de estado de exceção

e o papel da arte diante das convulsões sociais.

monTagens

• Morro como um país, textos de Dimitris

Dimitriadis, Edward Bond, Mauricio

Rosencof, Alípio Freire e outro-a-s

autore-a-s, 2013.

• Carne, textos de Michelle Perrot, Elfriede

Jelinek e outro-a-s autore-a-s, 2007/2013.

• Teatro/mercadoria #1, textos de Guy

Debord e outro-a-s autore-a-s, 2006/2008.

• Linha, de Israel Horovitz, 2006.

• O bom selvagem, textos de Jean-Jacques

Rousseau e outro-a-s autore-a-s, 2006.

• Casulo, de Fernando Kinas, 2006.

• Titânio, textos de Elizabeth Bishop, Pier

Paolo Pasolini e outro-a-s autore-a-s, 2004.

• Mauser/manifesto, textos de Heiner Müller

e Karl Marx, 2002.

• Fragmento b3, textos de Samuel Beckett e

Edward Bond, 2001.

• Osmo, de Hilda Hilst, 2000.

• Tudo o que você sabe está errado, textos

de René Descartes e outro-a-s autore-a-s,

2000/2001.

• Carta aberta, de Denis Guénoun,

1998/2007.

• Um artista da fome, de Franz Kafka, 1998.

• R, textos de Albert Einstein e outro-a-s

autore-a-s, 1997.

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bibliotecacrítica

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O caderno de estudos Contrapelo apresenta dois textos,

inéditos em publicações no país, como contribuição ao debate

crítico sobre arte, cultura e política. Ambos são testemunhos

das intensas discussões dos anos 1960. A aposta é que eles,

de alguma forma, interpelem a nossa realidade e dialoguem

com aqueles e aquelas que se interessam pelas relações entre

ação estética e intervenção política.

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O Teatro Revolucionário deve forçar a mudança, tem que ser mudança. (Quan-

do as caras deles estiverem viradas para a luz, aí você joga a magia negra do negão

e os limpa da sujeira, fazendo-os ver a feiura, e se os belos virem a si mesmos, eles

se amarão). Nós pregamos a virtude novamente, mas para que isso signifique

AGORA, que parece ser o uso mais construtivo da palavra.

O Teatro Revolucionário deve EXPOR! Exibir o interior desses humanos,

olhar dentro de crânios negros. Os brancos vão sempre se acovardar frente a esse

teatro, pois este os odeia. Porque eles foram treinados para odiar. O Teatro Revo-

lucionário precisa odiá-los por causa de seu ódio. Por presumir que poderiam

com sua tecnologia negar a supremacia do Espírito. Todos morrerão por causa

disso. O Teatro Revolucionário precisa ensiná-los a morrer. Ele precisa quebrar

suas caras e abri-las ao som dos gritos loucos dos pobres. Precisa ensiná-los so-

bre o silêncio e as verdades guardadas dentro dele. Ele precisa matar qualquer

deus que seja louvado por alguém, exceto o senso comum. O Teatro Revolucioná-

rio deve limpar a submissão e os assassinatos do rosto de Lincoln.

Ele deve tropeçar pelo universo, corrigindo, insultando, pregando e cuspindo

loucura... mas uma loucura que nos é ensinada em nossos momentos racionais.

As pessoas precisam ser ensinadas a confiar nos verdadeiros cientistas (sábios,

garimpeiros, excêntricos) e a saber que a sacralidade da vida é a constante possi-

bilidade de expansão da consciência. E eles precisam ser incitados a lutar contra

qualquer agência que impeça essa expansão.

O TeATrO

RevolucionárioEstE Ensaio foi originalmEntE EncomEndado pElo New York Times Em dEzEmbro dE 1964, mas o tExto foi rEcusado com uma nota, ondE os EditorEs diziam não tEr comprEEndido o artigo. o pEriódico Village Voice também rEcusou a publicação. o tExto foi afinal publicado no Black Dialogue.

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bibliotecacrítica

1 Personagens vítimas em três peças de Jones.2 Antonin Artaud, autor de teatro e roteirista (1896-1948), abraçou o “teatro da crueldade”, isto é, visualmente intenso e de fortes estímulos

psicológicos para a audiência, como um modo de revolucionar o teatro; ele escreveu o drama “A conquista do México” em 1933.3 Michael Schwerner. Um dos três militantes dos direitos civis assassinados pela Ku Klux Klan in Mississipi in 1964, Schwerner era a vítima branca.4 Curtis LeMay. General da força aérea americana que defendia políticas militares agressivas durante a Guerra Fria, em 1965, no Vietnã.5 Muitos padres e freiras belgas foram massacrados em 1960 durante a tumultuada transição colônia-independência do Congo Belga.

O Teatro Revolucionário precisa Acusar e Atacar

tudo o que possa ser acusado e atacado. Ele precisa

Acusar e Atacar porque é um teatro das Vítimas. Ele

olha o céu com os olhos das vítimas, e move as víti-

mas a olharem para a força em seus corpos e mentes.

Clay, em Dutchman, Ray, em The Toilet, Walker em

The Slave, todos são vítimas.1 No sentido ocidental

eles poderiam ser heróis. Mas o Teatro Revolucioná-

rio, mesmo que ocidental, precisa ser anti-ocidental.

Ele deve mostrar as terríveis atrações da Queda do

Ocidente. Da mesma maneira que Artaud criou A

Conquista do México2, devemos criar A Conquista do

Olho Branco, onde os missionários e Liberais hesitan-

tes morrem sob o impacto de pedaços de concreto

que caem. Para os efeitos sonoros, gritos alucinantes

de alegria, de todos os povos do mundo.

O Teatro Revolucionário deve roubar os sonhos de-

les e dar a realidade. Ele deve isolar o ritual e os ciclos

históricos da realidade. Mas ele deve ser comida para

aqueles que precisam de comida, e propaganda auda-

ciosa para a beleza da Mente Humana. É um teatro po-

lítico, uma arma a ser usada no massacre daqueles bur-

ros gordos brancos que de alguma forma acreditam que

o resto do mundo existe para que eles babem em cima.

Esse deve ser o Teatro do Espírito do Mundo.

Onde o espírito possa ser demonstrado como a mais

competente força no mundo. Força. Espírito. Senti-

mento. A linguagem será de qualquer um, mas aper-

tada pela espinha dorsal do poeta. E mesmo a lingua-

gem precisa mostrar que são os fatos nesse épico da

consciência, o que está acontecendo. Falaremos sobre

o mundo, e a precisão com que chamamos esse mun-

do será a nossa arte. A arte é método. E a arte, “como

qualquer cinzeiro ou senador”, permanece no mundo.

Wittgenstein disse que ética e estética são uma coisa

só. Eu acredito nisso. Então o teatro da Broadway é um

teatro da reação, cuja ética, assim como a estética, re-

fletem os valores espirituais de uma sociedade profa-

na, que envia seus soldados pelo mundo afora para

estourar as cabeças das pessoas negras. (Em alguns

casos, nessas cidades malucas do sul, eles até atiram

nos Filhos Favoritos dos imigrantes, seja ele Michael

Schwerner3 ou J. F. Kennedy.)

O mundo dá forma ao Teatro Revolucionário, que

se move para dar nova forma ao mundo, usando sua

força natural e vibrações perpétuas da mente no mun-

do. Somos a história e o desejo, somos aquilo que so-

mos e o que qualquer experiência possa fazer de nós.

É um teatro social, mas todo teatro é social. Mas

nós transformaremos os escritórios em lugares em

que coisas reais possam ser ditas sobre o mundo

real, ou então em salas esfumaçadas onde a destrui-

ção de Washington possa ser planejada. O Teatro

Revolucionário precisa funcionar como um lápis in-

cendiário plantado no chapéu de Curtis Lemay4. E

quando a cortina final desce, os cérebros são espa-

lhados sobre os assentos e o chão, e as freiras en-

sanguentadas precisam telegrafar SOS para seus bel-

gas com dente de ouro5.

Nosso teatro mostra as vítimas de modo que seus

irmãos na plateia entendam melhor que eles são os

irmãos e irmãs das vítimas, e que eles próprios tam-

bém são vítimas, se eles forem irmãos de sangue. E o

que mostramos deve fazer com que o seu sangue fer-

va, de modo que os temperamentos pré-revolucioná-

rios sejam banhados nesse sangue, e que suas almas

mais profundas se mexam, até mesmo prontas para

morrer, e que eles se vejam tensionados e trancados,

face a face com aquilo que lhes foi ensinado à alma.

Nós gritaremos e choraremos, assassinaremos, corre-

remos pela rua em agonia, se isso significar que a alma

seja comovida, seja movida para um entendimento

real de vida do que seja o mundo, e do que ele deve

ser. Nós pregaremos a virtude e o sentimento, e um

senso natural de eu no mundo. Todos vivem no mun-

do, e o mundo deve ser um lugar para que eles vivam.

O que é chamado de imaginação (de imagem, má-

gica, mago, mágico etc.) é um vetor prático da alma.

Ela armazena toda a informação, e pode ser chamada

para resolver nossos “problemas”. A imaginação é

uma projeção de nós mesmos para além de nossa

sensação de sermos “coisas”. A imaginação (imagem)

é toda possibilidade, porque a partir da imagem, a

energia inicial circunscrita, qualquer uso (ideia) é

possível. E assim começa o uso daquela imagem no

mundo. Possibilidade é aquilo que nos move.

Page 9: Contrapelo 01

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6 Junior Birdmen of America: um dos muitos clubes de aviação para meninos criados na década de 1930 (esse em particular foi criado pela cadeia de jornais de William Hearst); é usado como termo pejorativo para associações nacionais de jovens que buscam a conformação e a identificação pessoal com os ideais do grupo.7 Burguesia: “classe média” (francês); usado como termo pejorativo para aqueles cujos valores são conformistas e materialistas.8 Crazy Horse: líder da resistência do povo Lakota contra o governo Americano, na segunda metade do séc. XIX. Denmark Ves[s]ey: líder negro livre de uma revolta de escravos na Carolina do Sul, 1822. Patrice Lumumba: líder anti-colonial no Congo Belga e mais tarde primeiro ministro da república Democrática do Congo, no início da década de 1960.

malmente porque elas tratarão a vida humana como se

ela de fato estivesse acontecendo. Os diretores ameri-

canos dirão que as personagens brancas nas peças são

muito abstratas e covardes (“não me interprete mal...

quero dizer, esteticamente”) e eles estarão certos.

A força que queremos é de vinte milhões de as-

sombrações gritando América furiosamente e com ar-

mas invencíveis. Queremos explosões reais e brutali-

dade real. TODA UMA ÉPOCA SE DESPEDAÇA e

devemos dar a ela o espaço e a imensidão de seu real

fim. O Teatro Revolucionário, que agora está povoado

por vítimas, breve será povoado de novos tipos de he-

róis... não os fracos Hamlets debatendo se estão ou não

preparados para morrer por suas ideias, mas homens e

mulheres (e mentes) que estão cavando a partir do fun-

do, bem debaixo de mil anos de “alta arte” e futilidades.

Precisamos realizar uma arte que funcionará como

um chamado, para que desça a ira real do espírito do

mundo. Somos pajés e assassinos, mas abriremos um

lugar para o verdadeiro cientista expandir nossas

consciências. Esse é um teatro de assalto. A peça que

abrirá os céus para nós será chamada de A DESTRUI-

ÇÃO DA AMÉRICA. Os heróis serão Crazy Horse,

Denmark Vessey, Patrice Lumumba8, mas não histó-

ria, não memória, nada de uma busca sentimentalista

tateante que busca aquecer nosso desespero; estes

serão novos homens, novos heróis, e seus inimigos

serão a maioria de vocês que estão lendo este texto.

LeRoi Jones (Amiri Baraka)

Liberator, julho 1965

Tradução de Gavin Adams.

O teatro popular do branco, assim como o roman-

ce popular branco, mostra suas vidas brancas e cansa-

das, e os problemas de comer açúcar branco, ou então

esse teatro arrebanha loiras de bundão e as coloca em

enormes palcos e nos fazem acreditar que elas estão

dançando e cantando. EMPRESÁRIOS BRANCOS DO

MUNDO, VOCÊS REALMENTE QUEREM AS PES-

SOAS DANÇANDO E CANTANDO??? ENTÃO VÃO

TODOS VOCÊS AO HARLEM E SE DEIXEM MA-

TAR. ENTÃO HAVERÁ MUITA DANÇA E CANÇÃO,

DE VERDADE! (Em O Escravo Walker Vessels, o revo-

lucionário negro, veste uma braçadeira, que é a insíg-

nia do inimigo que ataca... um menestrel de grossos

lábios vermelhos, sorrindo como um louco).

A objeção do liberal branco ao teatro da revolução

(se esse liberal for suficientemente in) será feita sob

bases estéticas. A maior parte dos artistas ocidentais

brancos não precisam ser “políticos”, já que normal-

mente, estando eles conscientes disso ou não, estão

em completa empatia com as forças sociais mais re-

pressivas do mundo atual. Existem hoje mais “jovens

birdmen”6 fascistas que percorrem o Ocidente disfar-

çados de Artistas, do que disfarçados de fascistas.

(Mas também essa palavra, Fascista, e com ela, Fascis-

mo, ficaram obsoletas pelas palavras América e Ame-

ricanismo). O Artista Americano normalmente se re-

vela um super-Burguês no final, pois, finalmente, tudo

o que resulta de sua jornada no mundo é um “gosto

melhor” do que o Burguês – e muitas vezes nem isso7.

Os americanos detestarão o Teatro Revolucionário

porque este os destruirá e àquilo que consideram real.

Policiais americanos tentarão fechar os teatros onde tal

nudez do espírito desfilará. Os produtores americanos

dirão que as peças revolucionárias são um lixo, nor-

Precisamos realizar uma arte que funcionará como um chamado, para que desça a ira real do espírito do mundo.

Page 10: Contrapelo 01

radical da própria existência da socie-

dade do espetáculo? Toda contestação

integrada no circuito oficial ou comer-

cial não é a fortiori institucionalizada,

castrada e utilizada pelo Poder? En-

quanto a infraestrutra alienante e re-

pressiva sobre a qual repousa a cultura

não for ANTES DE TUDO globalmen-

te contestada, será que não se trata se-

não de uma contestação ela mesma

alienada, limitada, simbólica?

Os controladores da cultura (oficial e

oficiosa) que exercem seu monopólio so-

bre os meios de criação e de difusão não

reforçam o aparelho repressivo do Estado

policial, da mesma forma que um gover-

no que reocupa a Sorbonne ou o Teatro

do Odéon usando o CRS [tropa de cho-

que] e a Polícia como intermediários?

Em toda perspectiva que não seja con-

servadora e reformista, o papel repre-

sentado pelos intermediários e contro-

ladores (produtores, diretores de

museus, teatros, galerias, editoras, mi-

nistros da cultura etc.) não deve ser pura

Apoiando-se sobre investigações sociológicas, al-

guns deploram que o Festival de Avignon seja bur-

guês: ou seja, que somente uma porcentagem derri-

sória de trabalhadores o frequente. De fato, seu

público é em grande maioria composto por turistas e

membros das camadas médias ou dirigentes, como é

o caso, aliás, das Casas de Cultura. Trata-se, portan-

to, de uma cultura de classe sobre a qual os proble-

mas políticos e econômicos dos trabalhadores ur-

banos ou rurais têm pouca ou nenhuma incidência.

Ao estabelecer uma relação mercantil com seu pú-

blico, os produtores e os proprietários desta cultura

servem automaticamente aos interesses de uma ca-

tegoria social em detrimento de uma outra; mas isto

não é tudo, a cultura industrial, seja ela de “direita”

ou de “esquerda”, age no sentido da contrarrevolução

permanente pois ela transforma necessariamente

sua clientela em uma massa de robôs amorfos pron-

tos para o consumo cultural garantido e para se dei-

xar enganar com os lazeres organizados. A universi-

dade em crise e a cultura em crise são indissociáveis

do capitalismo. Elas desaparecerão com ele. O que se

pode fazer para apressar este desaparecimento?

A contestação efetiva da função coercitiva assumida

pela cultura no marco legal da sociedade de explora-

ção não começaria pelo questionamento direto e

1

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3

o festival de avignon se apresenta este ano como um “festival diferente dos outros”: nele se

convida e se programa a contestação no seio dos encontros do teatro e, ao mesmo tempo que

uma violenta campanha de imprensa toma como alvo o grupo living theater, convidado oficial,

inúmeros jovens são, desde já, abordados e controlados pela polícia nas ruas da cidade. a

ambiguidade reina. nestas condições nos pareceu útil propor para a reflexão dos participantes

e dos organizadores – porque é óbvio que o debate abarca daqui por diante todos aqueles que

se sentem atingidos pelo impacto que os “eventos de maio” tiveram e continuam a ter sobre o

funcionamento “normal” das instituições, sejam elas culturais ou políticas – as seguintes questões:

aos organizadorEs E participantEs do fEstival dE avignon

Treze questões

bibliotecacrítica

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Page 11: Contrapelo 01

ma? Os intelectuais e os artistas (atores, pintores,

escritores etc.) que pegaram o trem em movimento

do “movimento de maio” e que se contentaram em

expressar reivindicações corporativas quantitativas

não exploraram, assim, a dinâmica deste movimen-

to com os mesmos fins que o Estado e os partidos?

As diferentes forças da ordem (da guarda municipal à

Polícia Federal) que desempenharam sobre o teatro,

com as operações de maio, o papel que se sabe, inter-

virão na crise da cultura da mesma forma que na cri-

se universitária, ou seja, com gás asfixiante, bombas,

cassetetes, perseguições, prisões, processos etc.?

Como, agora que em Avignon a indústria do espetá-

culo se integrou à indústria do turismo a ponto de

se submeter completamente, é possível pretender a

uma real liberdade de expressão e de ação? O condi-

cionamento é mais tolerável quando ele usa uma

máscara artística?

Quando, em todo o mundo, uma importante cor-

rente criadora age há vários anos no sentido do tea-

tro de rua, gratuito e livre, preocupado prioritaria-

mente com a ação política, como podemos ao

mesmo tempo lhe proibir as ruas de Avignon e pre-

tender organizar um “Festival da Contestação”?

Quais seriam os problemas colocados pela consti-

tuição, durante o Festival de Avignon, de um duplo

poder face àquele do Estado e das “autoridades”, que

responderia a um desejo coletivo e que não se limi-

tasse às tagarelices entre especialistas da cultura

preocupados em conservar seus privilégios?

Neste período de refluxo e de repressão, a questão

que se coloca para nós não é, ainda e sempre, aquela

do exercício por TODOS do direito humano em dis-

por psiquicamente e socialmente de si próprio?

Comitê de Ação, julho de 1968.

Tradução de Fernando Kinas.

e simplesmente abolido? Toda concep-

ção de cultura enquanto domínio reser-

vado a especialistas remunerados não é,

de fato, repressiva e autoritária?

Todo eventual início de um processo

de criação coletiva e permanente –

não reservado a uma elite – não colo-

caria a priori a necessidade de acabar

com todo divórcio entre “a arte” e “a

vida”, toda distinção entre as ativida-

des artísticas e as atividades políticas

e sociais cotidianas? O ato criador es-

tando enfim livre da censura que o

anula? O inconsciente enfim libertado

do regime policial que o nega?

A cultura industrial, assim como a

universidade burguesa, não constitui

uma cortina de fumaça destinada a

tornar impossível e a interditar toda

tomada de consciência e toda ativida-

de política libertadora? O teatro, seja

convencional ou de vanguarda, não

veicula esta interdição pelo fato de

substituir a ação direta pela represen-

tação? O teatro ideológico, em parti-

cular, não importa quais sejam suas

intenções e seu “conteúdo”, não é res-

ponsável pela situação alienante e

subdesenvolvente (sic) em que coloca

seus espectadores?

O teatro e o cinema de grande consu-

mo não apoiam o aparelho repressivo

da classe dirigente, uma vez que con-

trolam e determinam a imagem que os

consumidores fazem de si próprios?

É possível contestar eficazmente o

sistema capitalista sem colocar pri-

meiro em questão o papel que desem-

penhamos nós mesmos neste siste-

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Fernanda Azevedo na peça Morro como um país, Kiwi Companhia de Teatro, 2013

poemasquejandos

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Page 13: Contrapelo 01

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D. Clélia, minha velha,

Vou te fazer um pedido, minha senhora, que parece bastante louco, mas tem suas razões de ser. Eu

queria receber de você um presente de natal. Se desse prá chegar no Natal, seria tão bom, velha. Eu

quero duas manguinhas, daquelas manguinhas coco, duas manguinhas não pesam muito, você põe

num embrulho bem empacotadas, primeiro a senhora se informa por outras pessoas bem informadas

se se pode mandar frutas por avião prá Alemanha, porque muitas leis de saúde internacional impedem

isso, pela transmissão de doenças, a senhora sabe, nós somos pobres e pobre tem muito bicho. Se for

proibido (o que é bem provável) a senhora despista bem as manguinhas, fantasia elas de outra coisa,

mas eu queria as manguinhas e a senhora sabe como que eu sou quando tou querendo uma coisa, né?

Vou botar a carta expressa hoje, dia 15. Ela deve chegar aí no dia 18. Então a senhora corre e compra

(ou busca) as mangas e vê o jeito melhor de enviar. Se não chega no Natal, chega no Ano Novo, já tá

bom. A senhora pode cobrir elas com pé-de-moleque, é um bom despiste, e pé-de-moleque também é

muito bom. Pensei em te pedir isso porque, como você já mandou as florzinhas, faria por mim uma

loucura assim, nénão?

Mãe, tu me desculpa porque eu não tenho um presente prá você. Também te mandar chucrute alemão

seria de bastante mau gosto. Os kuchen daqui (bolos e tortas) são bons, mas não tanto que se queira

mandar por avião prá você, que conhece o segredo do biscoito de polvilho e do doce de leite.

Mãe, um Natalzão procês.

Dorinha

Maria auxiliadora lara Barcelos (dorinha ou dodora) foi Militante política da Var-palMares e lutou contra a ditadura ciVil-Militar Brasileira. detida e VítiMa de torturas, foi uMa das presas políticas trocadas pelo eMBaixador suíço, sequestrado eM 1970. Banida para o chile, dorinha ViVeu no México e eM Vários países europeus. suicidou-se eM BerliM, eM 1976.

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14

poemasquejandos

Graciliano RamosFalo somente com o que falo:

com as mesmas vinte palavras

girando ao redor do sol

que as limpa do que não é faca:

de toda uma crosta viscosa,

resto de janta abaianada,

que fica na lâmina e cega

seu gosto da cicatriz clara.

Falo somente do que falo:

do seco e de suas paisagens,

Nordestes, debaixo de um sol

ali do mais quente vinagre:

que reduz tudo ao espinhaço,

cresta o simplesmente folhagem,

folha prolixa, folharada,

onde possa esconder-se a fraude.

Falo somente por quem falo:

por quem existe nesses climas

condicionados pelo sol,

pelo gavião e outras rapinas:

e onde estão os solos inertes

de tantas condições caatinga

em que só cabe cultivar

o que é sinônimo da míngua.

Falo somente para quem falo:

quem padece sono de morto

e precisa um despertador

acre, como o sol sobre o olho:

que é quando o sol é estridente,

a contrapelo, imperioso,

e bate nas pálpebras como

se bate numa porta a socos.

João caBral de Melo neto, serial (1959-1961)

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15

Günter Grass tradução de frederico füllGraf, coM alteração do título

Europas Schande

EiN GEdicht voN

GüNtEr Grass (2012)

Vergonha da Europa

Um poEma dE GüNtEr Grass (2012)

À beira do caos, porque não conforme com o mercado,Já não és o país de berço do teu legado.

o que buscado com a alma, como achado te valia,agora pois é depreciado, com valor do entulho mal reputado.

como devedor exposto nu ao pelourinho, padece um paísa quem dever tributos, era o discurso dos brancos colarinhos.

país à pobreza condenado, cuja riquezade modo cultivado os museus decora: o botim por ti vigiado.

os que a terra por ilhas abençoada assaltaram pela violência boçalcom suas suásticas traziam hölderlin no bornal.

mal aturado país, cujos coronéis outrora por ticomo parceiros da aliança foram consentidos.

terra sem lei, a quem o sabe-tudo, o poder,aperta teu cinto, a torcer e torcer.

apesar de ti, antígone se veste de preto, e país aforao povo, cujo hóspede foste tu, traja luto e chora.

Já fora do país, tudo o que reluz como o ouro o séquito de creso acoitou em baús do teu tesouro.

Bebe, afoga-te de uma vez! - berra a claque dos comissários,mas cheio até a borda, sócrates devolve-te o cálice, encolerizado.

amaldiçoar o que te é próprio os deuses irãode cujo olimpo tua vontade pede a desapropriação.

Fenecerás de espírito, da terra destituída por cuja alma tu, Europa, foste concebida

dem chaos nah, weil dem markt nicht gerecht, bist fern du dem Land, das die Wiege dir lieh.

Was mit der seele gesucht, gefunden dir galt, wird abgetan nun, unter schrottwert taxiert.

als schuldner nackt an den pranger gestellt, leidet ein Land, dem dank zu schulden dir redensart war.

Zur armut verurteiltes Land, dessen reichtum gepflegt museen schmückt: von dir gehütete Beute.

die mit der Waffen Gewalt das inselgesegnete Land heimgesucht, trugen zur Uniform hölderlin im tornister.

Kaum noch geduldetes Land, dessen obristen von dir einst als Bündnispartner geduldet wurden.

rechtloses Land, dem der rechthaber macht den Gürtel enger und enger schnallt.

dir trotzend trägt antigone schwarz und landesweit kleidet trauer das volk, dessen Gast du gewesen.

außer Landes jedoch hat dem Krösus verwandtes Gefolge alles, was gülden glänzt gehortet in deinen tresoren.

sauf endlich, sauf! schreien der Kommissare claqueure, doch zornig gibt sokrates dir den Becher randvoll zurück.

verfluchen im chor, was eigen dir ist, werden die Götter, deren olymp zu enteignen dein Wille verlangt.

Geistlos verkümmern wirst du ohne das Land, dessen Geist dich, Europa, erdachte.

Page 16: Contrapelo 01

16

poemasquejandos

Nós, os sobreviventes,

A quem devemos a sobrevida?

Quem morreu por mim na masmorra,

Quem recebeu a minha bala,

A que era para mim em seu coração?

Sobre qual morto eu estou vivo,

Seus ossos jazem nos meus,

Os olhos que lhe arrancaram, vendo

Pelo olhar do meu rosto,

E a mão que não é sua mão,

Que também já não é a minha,

Escrevendo palavras rotas

Onde ele não está, na sobrevida?

Nosotros, los sobrevivientes,

¿A quiénes debemos la sobrevida?

¿Quién se murió por mí en la ergástula,

Quién recibió la bala mía,

La para mí en su corazón?

¿Sobre qué muerto estoy yo vivo,

Sus huesos quedando en los míos,

Los ojos que le arrancaron, viendo

Por la mirada de mi cara,

Y la mano que no es su mano,

Que no es ya tampoco la mía,

Escribiendo palabras rotas

Donde él no está, en la sobrevida?

O outro

El otro

roBerto fernández retaMarVuelta de la antiGua esperanza, 1959 (o poeMa el otro foi escrito eM 1º de Janeiro de 1959, eM cuBa)tradução de alai Garcia diniz e luizete GuiMarães Barros

Page 17: Contrapelo 01

17

Sempre que nos acontece descobrir algo que supostamente os outros nunca viram, não vamos logo correndo chamar alguém para vê-lo conosco?- Oh, meu Deus, o que é?Quando a visão dos outros não nos ajuda a constituir em nós mesmos a realidade daquilo que vemos, nossos olhos não sabem mais aquilo que veem e a nossa consciência se perde, porque isso que consideramos a nossa coisa mais íntima, a consciência, quer apenas dizer os outros em nós, e não podemos nos sentir sozinhos.

Um, nenhum e cem mil

luiGi pirandello uM, nenhuM e ceM Mil, 1926tradução de Maurício santana dias

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Page 19: Contrapelo 01

19

Houve um tempo, no Brasil e em muitos países da América Latina, em que as pessoas eram

tratadas como coisas. Tempo em que homens e mulheres eram torturados, humilhados e feitos

reféns de governos autoritários. Neste tempo houve a prática sistemática, institucional, de rou-

bos, extorsões, censuras, ataques a bomba, cassações, perseguições, estupros, desaparecimentos

forçados e assassinatos. Em alguns países à lista de horrores se acrescentava o rapto de bebês.

Em todos eles o governo aplicava, em nome do Estado, a política do terror.

Costuma-se dizer que esses países viviam regimes de exceção, parêntesis totalitários que

interrompiam e manchavam o fluxo democrático da história. Na verdade, a situação era mais

complexa. Não que ali faltassem ferozes ditaduras, a questão é que não havia interrupções tão

absolutas do chamado “estado democrático de direito”, porque os métodos dessas ditaduras,

planejadas e administradas por civis e militares, escapavam dos períodos históricos estritos em

que elas evoluíam. Ou seja, a violência institucional atual – cujas ações das polícias militar e

civil constituem a face mais visível – comprova a existência contínua de um modelo desigual,

brutal e excludente de sociedade. Não são desconhecidas as humilhações, torturas e mortes,

quase sempre impunes, cometidas contra parte da população pobre, jovem e negra, nas peniten-

ciárias e nas periferias das grandes cidades. Ou os repetidos assassinatos no campo, que relem-

bram tragicamente os massacres de Eldorado dos Carajás, Felisburgo e tantos outros. Os esqua-

drões da morte de ontem são os ninjas de hoje. Os drones atuais, apesar da pretendida assepsia

(não existe “guerra limpa”), lembram os “voos da morte” do passado. O Instituto Millenium re-

pete o IPES. Os aparatos de repressão ainda não foram completamente desmontados. Instru-

mentos ideológicos e jurídicos seguem em vigência. Nossa lei de anistia, aprovada em plena

ditadura, ignora crimes de lesa-humanidade, protegendo agentes do Estado.

Dessa realidade se deduz a existência de um “estado de exceção permanente”, de um regime

“democrático” que só pode funcionar amparado na exceção. Para encurtar, o modelo do capital,

da mercadoria, do lucro e da competição exige a exceção como regra. Descoberta que Marx, na

política e Brecht, no teatro, demonstraram exemplarmente. Daí também se deduz que há uma

Nós não estamos em paz

AnotAções sobre Morro coMo uM pAís

Page 20: Contrapelo 01

dossiêkiwi

20

repetição de estratégias autoritárias e modelos de ex-

ploração. Moderniza-se para conservar. Difunde-se

cada vez mais notícias para informar menos. Prega-

se a paz para que a barbárie continue. E por aí vai.

A figura musical do cânone é uma metáfora des-

tas repetições, desses retornos constantes do mes-

mo, embora com aparência de novo. Outra metáfora

são esses relógios de barbearia, cujos mostradores e

mecanismos invertidos mostram um tempo que

avança recuando. O importante a reter é que a estru-

tura exige a repetição, o modelo funciona pela varia-

ção em torno do mesmo tema. É preciso, sempre, re-

munerar o capital. Privilégios precisam ser mantidos.

Renova-se para que o principal permaneça. Avança-

se para recuar. Este é um dos nossos temas. E nossa

forma. Trata-se de, como em outros trabalhos da

Companhia (O bom selvagem, Tudo o que você sabe

está errado, Teatro/mercadoria, Carne), usar as ferra-

mentas da arte para analisar os mecanismos da fabri-

cação social, para compreender e, de alguma forma,

interferir criticamente nos processos de formação e

transmissão da experiência coletiva.

Nesta tarefa é preciso mirar o pequeno e o grande.

Nosso tema-forma ambiciona lançar alguma luz so-

bre a dor de cada um daqueles que foram tratados

como coisas, que foram obrigados a conversar com as

paredes e beber a própria urina, que perderam seus

empregos e seu país, que foram privados da dignidade

e até das cores, que suprimiram suas vidas diante da

violência extrema; e quer também lançar uma luz so-

bre pressupostos e princípios que regem a brutalidade

escondida sob nomes sedutores (agora estão na moda:

sustentabilidade, economia criativa, governabilidade,

responsabilidade social, capitalismo humanizado…). É

um projeto ambicioso porque reúne o eu e o mundo,

porque alia o privado e o público, o íntimo e o coleti-

vo. Nem sempre é fácil entender a relação entre os

Chicago boys e a missa dominical. Ou entre o neoli-

beralismo e a defesa da civilização cristã ocidental.

Este projeto nos levou até Ruanda, país que sufo-

cou no sangue de quase um milhão de mortos em

1994. Uma das frases ouvidas durante a reconstrução

dessa nação africana foi: “Nós não estamos em paz!”.

Não há paz possível sem reparação e justiça. Não há

paz possível no esquecimento. Os mortos continuam

respirando, ou, como diz Mauricio Rosencof, mili-

tante tupamaro que perdeu os parentes em campos

de concentração e guetos alemães, “eu sou os que fo-

ram”. A separação entre passado, presente e futuro

impede a operação indispensável de historicizar a

história das sociedades. Compreender o genocídio

ruandês ajuda a desfazer fortes preconceitos. Foram a

tecnociência, uma certa racionalidade europeia

transplantada pelos colonizadores belgas e os inte-

resses geopolíticos habituais que permitiram a ma-

tança a golpes de machete. O holocausto nazista e o

massacre ruandês são filhos dos mesmos pais. Um na

Europa desenvolvida, outro na África espoliada.

Fomos também à Grécia dos coronéis. Estes mili-

tares, associados à elite econômica do país, mergu-

lharam o “berço da democracia” em uma brutal dita-

dura que se estendeu entre 1967 e 1974. Foram anos

em que “nenhuma mulher deu à luz, até que uma ge-

ração inteira acabou” (Dimitris Dimitriadis).

O diagnóstico deste enorme conjunto de fatos, in-

teresses políticos e econômicos, variantes históricas e

culturais, implicações filosóficas, é forçosamente in-

completo. O que está em cena em Morro como um

país é incapaz de traduzir a riqueza das pesquisas e do

que tem sido produzido sobre os temas em questão.

Há muito para falar sobre greves operárias (como as

de Contagem e Osasco em 1968), movimento estu-

dantil, solidariedade internacional, organizações po-

pulares. E também sobre a Operação Condor, a ideo-

logia da reconciliação e a teoria dos dois demônios, a

Triple A, o CCC, Guantánamo, a política do medo...

Alguns aspectos estão apenas esboçados. O papel

da religião, especialmente da igreja católica, é um de-

les. Suas cúpulas, no Brasil de Castelo Branco, na Ar-

gentina de Videla ou no Chile de Pinochet, foram pró-

ximas, muito próximas do terrorismo de Estado.

Embora existam diferenças de comportamento políti-

co entre as igrejas católicas do cone sul, suas cúpulas

foram, no mínimo, ambíguas em relação aos regimes

ditatoriais que se instalaram em seus respectivos paí-

ses. Isto não diminui a importância de religiosos e se-

Page 21: Contrapelo 01

21

CNBB de 27 de maio de 1964 é inequívoca: “Agradece-

mos aos militares, que com grave risco de suas vidas

se levantaram em nome dos supremos interesses da

Nação e gratos somos a quantos concorreram para li-

bertar-nos do abismo iminente”. As reuniões secretas

da bipartite (conversas de alto escalão reunindo o go-

verno militar e a igreja católica) e o comportamento

aviltante de Agnelo Rossi, arcebispo de São Paulo até

1970, são reveladores das posições da igreja neste pe-

ríodo. O papel conciliador e amortecedor das contes-

tações sociais desempenhado pela cúpula da igreja se

choca com a rebeldia de religiosos (e leigos) que mos-

traram-se críticos às injustiças sociais e à ditadura. No

entanto, é possível dizer que a atuação crítica e corajo-

sa contra a ditadura destes militantes não tenha sido,

como regra, resultado do pertencimento à igreja, mas

uma tomada de posição apesar da cúpula da igreja da

qual faziam parte.

A hesitação de artistas, ou mesmo a franca ade-

são ao arbítrio, é outro tema relevante. As relações

tores católicos (caso da Teologia da Libertação) que

foram, desde a primeira hora, críticos ao golpe e à di-

tadura no Brasil. Muitos deles desenvolveram ações

efetivas contra a violência do Estado. A Ação Católica,

especialmente através das organizações de jovens (JEC,

JOC, JUC…), mais tarde as CEB’s e a CPT, entre outras,

desempenharam um papel na luta contra a ditadura

que não pode ser ignorado. Nada disso, entretanto,

isenta de responsabilidade a cúpula da igreja católica.

A própria dinâmica da ditadura provocou evoluções no

seio da igreja, como o advento do AI-5 em dezembro

de 1968. O documento dos bispos de maio de 1970 e a

reação (correta, mas evidentemente corporativa) de-

pois do assassinato do padre Antônio Henrique, em

Pernambuco, atestam as tentativas de correção de rota.

Neste tema não se pode ignorar a pressão institucional

exercida pela cúria romana, assim como não se pode

ignorar o caráter globalmente autoritário da igreja, que

historicamente lutou contra o “comunismo ateu” em

nome da “civilização cristã ocidental”. A mensagem da

Material de divulgação da peça Morro como um país, Kiwi Companhia de Teatro, 2013

Page 22: Contrapelo 01

dossiêkiwi

entre a arte e a política mostram a íntima associação

entre indústria cultural, construção de consenso e

controle social. O debate sobre o tropicalismo é um

verbete importante do dicionário crítico que conti-

nua sendo escrito sobre a cultura e o regime ditato-

rial (o texto de Roberto Schwarz, “Verdade tropical:

um percurso de nosso tempo”, é um dos exemplos).

Daí as referências que fi zemos no trabalho cênico à

Carmen Miranda, Rolling Stones e Caetano Veloso, e

também a Taiguara e às conhecidas músicas ufanis-

tas da época do “milagre”.

Também não se pode negligenciar o papel desem-

penhado por banqueiros, latifundiários, empreiteiros e

grandes empresários, inclusive da mídia, que não pou-

param elogios e recursos na sustentação das ditaduras.

Reuniões de arrecadação de fundos, onde se “passava o

quepe”, eram comuns. Antônio Delfi m Netto, que ser-

viu com fi delidade canina aos ditadores, organizou al-

guns destes encontros. Hoje ele desfi la seu vasto co-

nhecimento nas páginas de revistas e jornais de grande

circulação. Estes mesmos industriais e empresários –

seus fi lhos, netos ou herdeiros –, refestelam-se agora

com os megaeventos esportivos que prometem a feli-

cidade e o gozo supremos para aqueles que, pela ótica

da Casa Grande, só precisam de circo e algum pão. São

os sempiternos donos do capital, da terra e da renda

que continuam se empapuçando, garantindo demo-

cracias de baixa intensidade que permitem, entre ou-

tros escândalos, os megalucros das obras superfatura-

das. A copa de 1978 na Argentina foi o laboratório a

não ser esquecido, incluindo a bênção enviada pelo

Papa Paulo VI e os elogios cínicos de Kissinger e Ha-

velange. Embora já a Olimpíada de 1936, em Berlim,

tenha deixado seus ensinamentos. No entanto, a polí-

tica do consenso e do esquecimento opera com efi ci-

ência, pelo menos no Brasil: arquivos continuam se-

cretos e documentos são sonegados; escolas públicas,

praças e viadutos ostentam nomes de ditadores e tor-

turadores; assassinos são promovidos a generais nos

dias 31 de março; a Lei de Anistia não foi revista; cor-

pos não foram restituídos; apoiadores do regime auto-

ritário posam de democratas.

É possível que a arte seja um espaço de lucidez

temperada pela imaginação. Por isso o teatro que rei-

vindicamos, documental e poético, cruzando estética

e política, é também ele tema do trabalho. O “teatro

carcelario” das prisões argentinas, citado em uma das

últimas cenas, mostra, justamente, que a “imaginação

incomoda muita gente” (frase da militante política

Maria Auxiliadora Lara Barcelos, presa e torturada

pela ditadura, que se suicidou em 1976). Provam isso

os fi lmes de Solanas e Costa-Gavras, os textos de

Galeano e Edward Bond, a música de Nono e Violeta

Parra, os murais de Rivera, as montagens de

Meierhold. Todos foram, ou são, antigos combaten-

tes. Aos novos resta arregaçar as mangas porque o

consórcio do poder continua em atividade e, portan-

to, há muito o que fazer. Para que não se esqueça, para

que não se repita, para inventar outros caminhos.

Lembrando Antígona: “Passado abandonado, jamais

se torna passado”.

Fernando Kinas

Disseram que eu voltei americanizada

Passadoabandonadojamais se torna

PassadoC11

H17

N2

O2

S N

a

eu souos queforam

Se não dançam todosnão dança Se não dançanão dança Se não dança

ninguémSe não dança

ninguémSe não dançam todos

ninguémm todos

What can a poor boydo Except to sing for a rock’n’roll band

A justiça é oreversoA justiça é oreversoA justiça é o

de todas as leis

nós não

Ess

e tr

o d

e m

ata

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bar

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ida

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Capa do programa da peça Morro como um país, Kiwi Companhia de Teatro, 2013

Page 23: Contrapelo 01

23

Morro como um país

cânone sobre A MeMóriA, A VerdAde e A JustiçA. contrA A fAbricAção do consenso e A políticA do esqueciMento.

roteiro de fernAndo KinAs, Versão de trAbAlho nº 5 (feVereiro de 2013).

Page 24: Contrapelo 01

24

dossiêkiwi

No espaço cênico há um manequim articulado com 1,80 m, uma bateria (chimbal,

prato de condução, caixa, surdo, tom-tom, bumbo), uma área que funciona como

camarim (espelho, luzes, maquiagem, figurino), uma cadeira, um aquário ou tan-

que com água e um refletor com tripé. No fundo, um relógio de barbearia com

mostrador e mecanismo invertidos. Há também no espaço quatro porta-chapéus,

uma bancada para objetos e uma área demarcada no chão medindo cerca de 1,50 x

1,00. O manequim será usado como figura de poder, autoridade e violência. A

bateria, como espaço da indústria do entretenimento. O tempo avança recuando.

Na entrada do público são projetadas imagens com áudio de ataques norte-ame-

ricanos no Iraque, especialmente as que mostram “danos colaterais”.

Sótão da Escola de Mecânica da Armada, em Buenos Aires, onde cerca de 5 mil militantes políticos foram presos e torturados pela última ditadura argentina (1976-1983), a maior parte deles foi assassinada nos voos da morte

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Page 25: Contrapelo 01

25

Cena 1 • Apresentação

[A atriz está vestida com vinte camisetas sobrepostas,

nelas estão estampadas fotografias de vítimas da di-

tadura civil-militar brasileira (1964-1985) e das

chacinas de maio de 2006, no Estado de São Paulo]

[Termômetro na boca]

Boa noite. Meu nome é Fernanda Azevedo. Eu nasci

em 1973, na cidade do Rio de Janeiro. Há sete anos eu

moro em São Paulo. Eu trabalho, quando possível,

como atriz. Eu tenho uma sobrinha e um sobrinho

pequenos. Eles ainda não sabem o que significa a pa-

lavra ditadura. [Olha para o relógio na parede] São 21

horas e 12 minutos. [Tira o termômetro] A minha

temperatura agora é de 36,7 graus.

Cena 2 • Escorrer

[Música Come Out de Steve Reich (1966). “I had to,

like, open the bruise up and let some of the bruise

blood come out to show them.”]

As imagens que vocês acabaram de assistir são de um

ataque dos Estados Unidos em Nova Bagdá, no Iraque,

em 2007. O saldo deste ataque foi doze civis assassina-

dos – pessoas que estavam desarmadas – e duas crian-

ças feridas. O exército informou inicialmente que todos

eram insurgentes e que foram mortos em combate.

Décadas antes, em 1964 – eu, Fernanda, que nasci

em 1973, tinha menos nove anos – o jovem negro

norte-americano Daniel Hamm foi preso pela polícia

numa rebelião no Harlem. Ele disse o seguinte:

[Música Come Out de Steve Reich (1966). “I had to,

like, open the bruise up and let some of the bruise

blood come out to show them.”]

Eu tive que abrir um ferimento que eles tinham me

causado e deixar o sangue escorrer para eles verem.

Eles eram a lei, a ordem, o Estado, a polícia.

[Música Come Out de Steve Reich. Tira uma a uma

as camisetas]

Cena 3 • Fase e defasagem

[Música Piano Phase de Steve Reich. A atriz se apro-

xima do manequim. Ela faz o exercício dos 12 tempos,

baseado na biomecânica de Meierhold, e modifica al-

gumas vezes a posição dos braços do manequim]

Cena 4 • Nada a fazer. Distopia crítica

[Atriz na bateria]

Nada a fazer.

[Atriz coloca um fone de ouvido e acompanha a mú-

sica Street Fighting Man, versão de Rod Stewart.

Retira o fone e inicia o texto, baseado em The site, de

Edward Bond]

Sem justiça nossa fome cresce até que devoremos a

terra.

Os rios secaram – os mares viraram esgotos onde

ratos nadavam e comiam os peixes

Tempestades varreram montanhas – arrancaram as

raízes das florestas – as árvores agarraram a terra com

suas garras – cidades foram reduzidas a trincheiras

de destroços onde canibais criavam os filhos para os

comer – e a tempestade varreu a poeira humana em

colunas e gemeu com a fome que havia neles

Naquele dia todas as consciências do mundo foram

esvaziadas – apagadas

O vazio durou um segundo ou horas ou sempre

Quem pode dizer quanto durou quando não há pas-

sado – nenhum lugar – nenhuma origem?

Quando o medo prende o pensamento em um mo-

mento e a comida cai da boca aberta e a fome aumenta?

Quanto mais eles comiam mais fome tinham e mais

medo Não havia passado – nenhum futuro – ne-

nhum lugar – nenhuma origem

Os mortos não precisavam do seu esqueleto e no mo-

mento do vazio os vivos não precisavam da sua carne

A humanidade morreu

Então construíram-se as prisões

Então as casas foram derrubadas – não por raiva mas

por serem um impedimento para as prisões

Page 26: Contrapelo 01

26

dossiêkiwi

A administração administrava em lugar nenhum e as

pessoas eram um estorvo para a administração – um

inconveniente para o exército

Os mortos foram encerrados em um vasto mega su-

búrbio sem centro – eles uivavam como forma de

comunicação

Os famintos foram trancados numa grande cidade

-prisão – como castigo eram obrigados a rir

Os ricos se fecharam em um gueto – eles brincavam

com brinquedos que os ensinavam a odiar – eles

eram mandarins da truculência

A imaginação é mais lógica do que a razão

Quando a razão destrói a imaginação nós enlouque-

cemos

A imaginação cria a loucura ou a humanidade

Nós partimos em uma direção e viajamos na outra

É como se passássemos nossa vida de costas [aponta

para o relógio na parede]

Nós escalamos um abismo e sabemos que devemos cair

Nossos filhos são nossa morte

Como podemos viver nesse paradoxo? Como pode-

mos transformar a catástrofe em liberdade? Como

podemos transformar o crime em justiça? Como po-

demos reverter todas as leis? É fácil: o reverso de

todas as leis é a justiça

Um dia a humanidade morreu

Não havia futuro – nenhum lugar – nenhuma origem

Ninguém poderia cruzar consigo mesmo descendo a

rua

A água não tinha reflexo

Todos os que são ou foram ou serão estão no portão

[gateway]

Eles estão em você e você está neles – os nus e que-

brados e inteiros

A fome deles é a sua fome e a sua fome é a deles

Se você não busca a justiça aqueles que virão depois de

você carregarão a sua dor e morrerão pelas suas feridas

E então você precisa carregar a dor deles ou morrer

de fome

A fome de justiça nos faz humanos

A justiça é o reverso de todas as leis

A justiça é o reverso de todas as leis

[Atriz volta a colocar o fone de ouvido. A música re-

toma e a atriz toca a bateria]

[Atriz tira o fone e deixa a bateria, antes, porém, diz

o texto final]

O que pode fazer uma pobre moça a não ser tocar

numa banda de rock?

[Final da cena e da música]

Cena 5 • Morro como um país

[Música Variações sobre Wilhelmus Van Nassou-

wen. Jacob Van Eyck, a partir de Philippa de Marnix,

ca. 1595]

Naquele ano, nenhuma mulher deu à luz. Foi assim

nos anos seguintes, até que uma geração inteira aca-

bou, sem que ao mundo viesse uma nova geração.

(...) À exceção de algumas pouco numerosas reações

violentas a esta calamidade devastadora, que muitos,

mais tarde, designaram por Idade Média da Mátria

[...] todos os outros, habituados à contenção, refrea-

vam o seu desespero e só em privado davam voz às

explosões do seu terror, que os fazia, à noite, despe-

daçar as almofadas a dentadas, escrever cartas furio-

sas e incoerentes a Deus ou ao próprio mal, implo-

rando a ele para se retirar ou ameaçando atacá-lo

frontalmente como São Jorge, ou ficar horas inteiras

imóveis e impassíveis, murmurando antigas canções

nostálgicas, roendo raivosamente as unhas ou golpe-

ando-se profundamente com uma lâmina em pontos

do corpo escondidos e sensíveis, até correr o sangue

necessário para satisfazer a necessidade vital de sa-

crifício humano ou de autopunição.

Porque a guerra que, com breves intervalos, engana-

doras tréguas, durava há mais de mil anos, tinha tido,

nos últimos meses, uma virada decisiva. E parecia

encaminhar-se, aceleradamente, para o seu fatal

desfecho. Como a quase póstuma recuperação, por

um lapso de tempo imprevisível, de uma doença in-

curável, que, no entanto, se declara repentinamente

em todo o território devastado do abusado corpo,

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27

arrancando a carne dos ossos, numa convulsão se-

melhante a uma total demência orgânica das articu-

lações da máquina humana.

Foi dito que de um momento para o outro (embora este

processo tenha durado séculos) uma mudança radical e

irreversível se tinha produzido, o que foi confirmado

pelo discurso do Presidente da República – em tom

grave e supostamente imponente (um ex-imperador

mostrando, piolhento e cheio de arrogância, a sua ca-

bana em ruínas que ele designa como o seu Imperium).

Aqueles que ouviram o discurso presidencial (porque

não foram poucos os que mudaram de canal), lança-

ram os piores insultos ao presidente, ao seu discurso

e ao país, incitando até as próprias crianças a repeti-

rem as injúrias em cadência, batendo palmas todas

juntas. Velhas que tinham vivido, vezes sem conta,

acontecimentos desse gênero, que tinham vivido

massacres, cidades tomadas de assalto, êxodos, inva-

sões de toda a espécie de bárbaros ou de civilizados,

perseguições e sujeições, cidades florescentes, flores-

tas densas e férteis planícies queimando-se como to-

chas, sem que nada do labor de gerações e gerações

fique de pé, moças violadas em casas em ruínas, dez e

vinte vezes numa hora, por soldados enfurecidos e

depois evisceradas à baioneta, bebês decapitados

num instante por espadas ou metralhados à queima

-roupa nos braços das suas mães, famílias expulsas

dos seus lares e dizimadas por rajadas, em série, como

pardais [...] e rapazes com meio centímetro de pelo no

peito, a ira de Zeus em toda a sua força concentrada

nos órgãos que provocam a mais potente exaltação

dos sentidos, que eram alinhados, em grupos de cin-

quenta, frente aos pelotões de fuzilamento, com o

único objetivo de anular a semente da vida dentro de-

les e de as águas se tingirem de sangue como cravos

vermelhos, e homens enlouquecidos por insuportá-

veis desgraças, negros de lágrimas, que corriam, aqui

e ali, uivando como chacais e rasgando as suas faces

na vertigem implacável em que se revela este vazio

escaldante que é a vida, no pesadelo da transgressão

desse limite que a torna tão insuportável como um

punhado de brasas ardentes na boca, velhas que nem

elas mesmas sabiam dizer quantos anos tinham,

transportadas como relíquias de santos muito anti-

gos e anônimos no teto dos carros, em vez de levan-

tarem a mão para fazerem o sinal da cruz, ouvindo os

apelos angustiados do Presidente da República, cos-

pem na palma das mãos e fazem, todas juntas, aba-

nando a cabeça, com ar de conhecedoras, o gesto que

os homens fazem, pequenos ou grandes, com a mão

direita, para designar alguém a quem as punhetas

acabaram com o cérebro.

[Pausa]

(Nesses momentos, nada era mais vago do que a pala-

vra esperança, nada mais obscuro do que o seu signifi-

cado); a súbita sensação de asfixia, de impasse, de ar-

madilha, de contração, de cerco, de sufocação, fez com

que as populações, as que tinham ficado nas cidades,

bem como as que tinham invadido todas as passagens

para as montanhas, rodopiassem interiormente sobre

elas mesmas, até ao momento em que todos sem ex-

ceção se imobilizaram e permaneceram à espera.

Quem não viu as pessoas morrerem nas ruas marte-

ladas por uma mão invisível não pode compreender

o que representa, o que é a morte de um país, tal

como aquele que não sentiu o seu próprio corpo ine-

xistente, desperdiçado, injustificado, insignificante,

indesejável, insaciado, a sua famosa força motora in-

terrompida, quebrada, cortada pelo fogo intestino da

emoção. Mas também o fato de contemplar uma

morte tão vasta como esta, coletiva, da nação, equi-

vale a esgotar toda a vida.

Era nessas horas que se efetuava para sempre a trans-

missão de um ciclo histórico para outro, irremedia-

velmente. Pelo riso.

(...) E naquele ano em que nenhuma mulher deu à luz,

em que os homens iam dois a dois pelas ruas e nos ca-

fés, e escarravam no rosto uns dos outros como se cada

um escarrasse, contudo, no seu próprio rosto e depois

partiam abraçados e acasalavam entre eles, em porões

escuros ou em tépidas lavanderias, onde as mulheres

frenéticas os não podiam encontrar, a epidemia da este-

rilidade bem cravada em suas entranhas. Foi nesse ano

que ocorreu a maior parte das conspirações nas mais

Page 28: Contrapelo 01

28

dossiêkiwi

altas esferas do Estado, vendiam-se maços de deputa-

dos, passavam, pavoneando-se, para o partido diame-

tralmente oposto, com o objetivo de satisfazer ambi-

ções pessoais ou familiares [...] os patriotas e os

nacionalistas fanáticos punham fortunas inteiras em

lugar seguro, no estrangeiro, com ajuda de regimes que

se espelhavam mutuamente e que alguns deles manti-

nham no poder pelo seu dinheiro e suas relações (...) Os

governos mudavam a uma velocidade vertiginosa numa

sucessão de fracassos, de crimes e de inúmeras formas

de impotência que levavam à beira da ruína espiritual,

os partidários exasperados de políticos defuntos, reti-

rando-os dos seus túmulos e erguendo-os nos caixões

enlameados, passeavam-nos pelas ruas, reivindicando,

com slogans extremistas, o seu regresso à vida política,

porque só eles podiam salvar o país do desaparecimento

total, (...) intelectuais fanatizados, do alto de suas varan-

das, incitavam as multidões estupefatas a negar a vida,

a não se alimentar a não ser de raízes, a reproduzirem-

se dormindo com estátuas mutiladas, num desvio sen-

timental e ideológico semelhante ao daquelas pessoas

que se esforçavam por intervir na escaldante realidade.

Os assassinatos atingiram uma frequência, uma cruel-

dade inconcebíveis, as pessoas desapareciam para

sempre, durante a noite, e nunca mais ninguém ouvia

falar delas, valas comuns foram abertas em cemitérios

dos subúrbios das cidades, onde eram lançadas massas

de corpos ceifados. Por todo o lado eram construídos

pelotões de fuzilamento improvisados que disparavam

em nome da integridade nacional, da independência

nacional, da grandeza da raça.

[Pausa]

As leis, suprimindo-se elas próprias, foram revoga-

das. As instituições foram invertidas, o seu exato

oposto entrou em vigor.

Novos crimes de instinto foram criados, enquanto os

antigos, seculares, deixando de suscitar escárnio, fo-

ram reconhecidos como suporte do Estado, tanto na

sua política interna como externa. (...) O crime tor-

nou-se legal, constituindo-se, a partir daí, a pedra

angular de qualquer manifestação pública.

As palavras adquiriram uma intensidade sem prece-

dente, a ponto de todo mundo refletir longamente

antes de as escolher, porque algumas delas podiam

queimar a língua para sempre.

A esterilidade das mulheres e a imaginação febril de

um povo inteiro, a falência definitiva da dignidade e

da integridade nacionais e o número incessantemen-

te crescente de doentes e de desesperados faziam

pensar (...) nestas palavras: “Este mal não se podia

descrever com palavras, porque estas dores ultrapas-

savam as forças humanas”.

Desta vez a ocupação duraria muito mais do que a

resistência empenhada de tempos imemoriais, que

tinha alimentado lendas, contos, canções, epopeias,

romances, bailados, trilogias e tetralogias teatrais... e

agora tudo aquilo estava afundado, para sempre,

numa lama negra.

O mapa das cidades foi redesenhado, tudo foi arrasa-

do e depois reconstruído. A exploração do subsolo

passou para outras mãos. (...) O nome do país mudou.

O novo não lembrava em nada, o antigo (…)

[Pausa. Música Variações sobre Wilhelmus Van

Nassouwen. Jacob Van Eyck, a partir de Philippa de

Marnix, ca. 1595. Atriz olha o relógio na parede que

segue imperturbavelmente recuando]

A ocupação, de fato, durou séculos. O tempo necessá-

rio para que as tradicionais fronteiras do país desapa-

recessem, absorvidas no seio da vasta reorganização

que, daqui para frente, recobriria todo o planeta – por-

que a língua deixou um dia, como se tinha projetado,

de ser falada e pôs-se a existir como uma relíquia. Al-

gumas delas descrevem a esterilidade das mulheres

desse ano. São as páginas de um capítulo onde se po-

dem ler, sob o título “Testemunhos do Tempo da

Grande Derrota”, diversos documentos daquela época

com os seus horrores. Se bem que elas permanecem

totalmente inexploradas, ninguém empreende o seu

estudo científico – aceita-se o fato de que terminou

de um modo bastante convincente para satisfazer to-

talmente, pelo menos segundo os historiadores, as exi-

gências da ciência. E isso basta para aqueles que veem

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29

na humanidade este fenômeno universal que produz

círculos eternamente, ciclos que desde que se fechem

chegam para justificar o seu produtor. Nestes ciclos,

sabemos bem, os gritos individuais não são ouvidos.

Detesto este país. Devorou-me as entranhas. Eu digo

a você, porque desejamos juntos que estas entranhas

fossem fecundas, e este desejo nos uniu durante noi-

tes e noites... e às outras horas do dia, quando um

milagre, de súbito, nos fazia esquecer o terror que

corria nas ruas como nas nossas veias... Os noticiá-

rios de pesadelos que nos impediam até de nos

olharmos.... lidos por apresentadores completamente

loucos... os uivos que se sobrepunham até às sirenes

das ambulâncias... jamais eu teria acreditado que a

voz humana pudesse atingir tais alturas. Agora eu me

apresso para dizer algumas coisas e essas palavras se-

rão as últimas que você receberá de mim.

Detesto este país.

Ele me devorou as entranhas, devorou. Eu o detesto.

Detesto-o, detesto-o. Uma mulher não pode viver

com semelhantes entranhas dentro dela. Quanto mais

eu penso nisto, mais vontade tenho de me vomitar. Eu

me sinto como vomitado. Provavelmente é o que eu

sou. Eu não quero ser um país. Eu não sou um país. Eu

não quero ser este país. Este país é necrófilo, comedor

de merda, gigolô, assassino. Eu quero ser a vida, eu

quero viver, eu queria poder viver, eu seria feliz agora

se eu quisesse viver... Mas este país não me deixa

querer, não me deixa ser a vida, dar a vida. Como um

câncer, devorou os meus seios, o meu cérebro, os

meus intestinos, rolou todas as pedras nos meus rins

e os devastou, conspurcou todas as fontes por onde

devia correr o meu leite, reuniu toda a sua terra nas

minhas veias e me apodreceu o sangue, se pôs inteiro

no meu coração e o devastou a força de enfartes e de

embolias. Os seus costumes demoliram-me os pul-

mões, a sua história me fez tremer, da cabeça aos pés.

Sua forma é de um ancinho que se crava nos meus

olhos, de uma enorme agulha que me perfura o crânio,

de um rochedo pendurado na ponta dos meus cabelos

que me carrega para um mar de lágrimas... e eu sinto

sempre o seu jugo sobre a minha nuca, a minha língua

está sempre atada pelo seu balbuciamento, tenho su-

ores frios só de ver a sua vulgaridade...

seu apego aos fantasmas, seus cadáveres, seus cai-

xões, os seus crimes... Este país é a nossa peste. Ele

nos matará, nos liquidará. Como escapar? Ele bebe o

nosso sangue. Não me deixa mais dormir, me roubou

o sono. Como eu vou viver sem sono?

[Pausa]

Todo o esperma de todos os homens da terra não po-

deria reanimar este oco do meu corpo de onde come-

ça a vida humana... você esvaziou toda a sua vida em

mim, mas você me deixou sem vida. Me insemina,

mas a tua semente não fecundará nunca. A sua se-

mente já não pode fecundar.... Nunca mais a vida sai-

rá de nós... País de merda! Eu só queria uma coisa, tê

-lo aqui à minha frente e estrangulá-lo com as minhas

próprias mãos. Se eu o pudesse matar! Ele fez com

que os assassinos atingissem as nossas matrizes e as

tornassem ocas como túmulos, os porcos, são todos

uns porcos! Por onde começar? Todos assassinos, to-

dos, por causa deles sinto a necessidade do maior dos

crimes, de um massacre sem fim, massacre sem fim...

como é que nós resistimos aqui, como é que ainda não

Detalhe do cenário da peça Morro como um país, 2013

fo

To

Bo

B S

ou

SA

Page 30: Contrapelo 01

30

dossiêkiwi

enlouquecemos com este cão, este garrote, este mata-

douro, esta forca. Com os seus carrascos oficiais que

fazem discursos oficiais nas cerimônias oficiais pe-

rante outros carrascos oficiais. Cada um dos seus po-

ros é um estilete, cada uma das suas extremidades um

punhal, cada milímetro da sua pele uma ratoeira, está

coberto de facas cortantes, este covil de assassinos, de

escroques, de imbecis, esta toca de covardes. Enterra-

nos a cabeça na sua merda, nos dá coices furiosos,

você nos arrebenta, nos estrangula, nos condena, você

nos mata, vendida, estrume, canalha, envenenadora,

ninho de víboras, cadela piolhenta, boêmia incestuosa

que não faz mais que macaquear tudo, que só tagarela,

bruxa, ave agourenta, já não te suporto, já não a su-

porto mais, a assassina infanticida, a pestilenta, a

coxa, a vesga, o estorvo! Já não posso suportar nada

mais dele, nada mais, nada mais, detesto-o, detesto-o,

detesto-o, ah! Detesto, detesto, detesto, vou morrer,

monstro, eu te odiarei sempre, sim, o ódio borbulha

em mim, eu quero escrever hinos contrários aos que

foram escritos até agora sobre ele, fuzilá-lo a cada pa-

lavra, enterrá-lo como um cão com as minhas pró-

prias mãos... já não sou mais mulher... E você, você já

não é homem... Ele nos levou tudo... Mas o que sobra-

rá dele sem nós? A sua terra tomou a minha forma...

O meu corpo tem agora as suas dimensões... Eu tenho

em mim o seu destino... Morro como um país.

[Pausa]

Cena 6 • Refase e redefasagem

[Música Piano Phase de Steve Reich. Interrompida

depois de 15 segundos. Recomeça. A atriz se aproxima

do manequim. Ela faz o exercício dos 12 tempos e mo-

difica uma vez a posição dos braços do manequim.

A música termina num longo fade.]

Cena 7 • Eu sou os que foram “Se não dançam todos, não dança ninguém.”

Meu nome é Mauricio Rosencof, eu tenho 38 anos e

sou um dos fundadores dos Tupamaros, no Uruguai.

Eu fui preso em Montevideo em 1973 – o ano em que

eu, Fernanda, nasci – e fui torturado durante nove

meses. Eu fiquei onze anos em solitárias. Em todos

esses anos eu enxerguei a luz do sol, no máximo, du-

rante oito horas. Oito horas em onze anos. Eu soube

do golpe militar chileno com três anos de atraso. Eu

nunca vi o rosto de outro prisioneiro. Eu vivi em ce-

las de três metros quadrados [vai até o espaço marca-

do no chão] e perdi a noção das cores, muitas vezes

eu tive que matar a sede com a minha própria urina.

Eu resisti sonhando com passeios. Quando eu era le-

vado para as sessões de tortura, eu me lembrava da

minha filha, dos judeus do gueto de Varsóvia, e eu

recitava: “Eu sou os que foram”.

“Eu sou os que foram”.

Cena 8 • Salir corriendo

[Música Salir corriendo (Amaral). A atriz, na verda-

de, é Carmen Miranda!]

CEnA 9 Uniforme: humilhação e despersonalização

[Ver Pedaços de morte no coração, Flávio Koutzii,

p. 36]

O uniforme [aqui a referência é, também, ao “unifor-

me” de Carmen Miranda, da cena anterior, cuja saia

está frouxa e precisa ser constantemente segurada]

tinha duas funções: fazer com que o aspecto externo

igualasse todos os prisioneiros, quebrando mais um

elemento de identidade e torná-los todos desformes,

pelo uso de uma vestimenta grosseiramente costura-

da, como um saco, um tecido ordinário (um mais leve

para o verão, e um segundo mais espesso para o inver-

no). A obrigação de usar os uniformes completava-se

pela proibição de retoques. Em algumas prisões se

podia obter fio e agulha, mas todo ajustamento destes

uniformes ridículos era motivo de punição. A troca de

Page 31: Contrapelo 01

31uniforme de verão pelo de inverno também era deci-

dida pelas autoridades. Uma prática corrente da ad-

ministração penitenciária consistia em deixar um

mês a mais o uniforme da estação passada, levando os

prisioneiros a sofrer de frio com uniforme de verão no

início do inverno, e sofrer de calor com uniforme de

inverno durante o início do verão.

Manual de interrogatório da CIA, 1963 [Ver Manual

Kubark, p. 86]:

Normalmente as roupas do prisioneiro são imedia-

tamente retiradas, porque o vestuário familiar refor-

ça a identidade e, portanto, a capacidade de resistên-

cia. Prisões fazem cortes de cabelo curtos e exigem o

uso de uniformes por este motivo. Se o interrogado

for especialmente orgulhoso ou organizado, pode ser

útil dar a ele um uniforme que seja um ou dois nú-

meros maior e não fornecer cinto, de modo que ele

precise segurar as calças.

[Canta a capela, deixa a saia cair algumas vezes]

Me disseram que eu voltei americanizada

Com o burro do dinheiro

Que estou muito rica

Que não suporto mais o breque do pandeiro

E fico arrepiada ouvindo uma cuíca

Disseram que com as mãos

Estou preocupada

E corre por aí

Que eu sei certo zum zum

Que já não tenho molho, ritmo, nem nada

E dos balangandans já “nem” existe mais nenhum

[Toca a introdução de um samba]

Mas pra cima de mim, pra que tanto veneno

Eu posso lá ficar americanizada

Eu que nasci com o samba e vivo no sereno

Topando a noite inteira a velha batucada

Nas rodas de malandro minhas preferidas

Eu digo mesmo eu te amo, e nunca “I love you”

Enquanto houver Brasil

Na hora das comidas

Eu sou do camarão ensopadinho com chuchu

Selo postal impresso nos EuA em homenagem à Carmen Miranda

Page 32: Contrapelo 01

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Cena 10 • O tempo avança recuando

[A atriz olha para o relógio na parede. Começa a tirar

o “uniforme” de Carmen Miranda]

O tempo avança recuando.

Cena 11 • Mãe

[Ver Alípio Freire, Tiradentes – Um presídio da di-

tadura, p. 19]

A minha mãe sempre foi solidária comigo, e conos-

co, naqueles tempos da nossa passagem pelo presí-

dio Tiradentes. Mais do que solidária até, pois ela

foi uma espécie de pombo-correio, levando e tra-

zendo documentos clandestinos que eram lidos e

discutidos por muitos de nós lá dentro... Uma pes-

soa de inegável grandeza... E ela não era uma mili-

tante política de esquerda... Tinha formação ude-

nista conservadora... Mas desde o meu engajamento

no movimento estudantil, ela foi aos poucos se in-

teressando por aquele processo que nós vivíamos e

que, por fim, me levou à cadeia... A gente conversava

muito durante os períodos em que ela me visitava...

Em duas semanas seguidas de 1972 – eu, que nasci

em 73 tinha “menos um ano” – aconteceram mortes

muito próximas de nós... que nos atingiram muito

pessoalmente... Minha mãe tinha formação religiosa

e depois daquelas mortes ela me disse o seguinte:

“Sabe que vocês têm razão?”... Eu não sabia sobre o

que ela estava falando, pois ela costumava nos dar

razão em tudo... Eu então perguntei no que é que

nós tínhamos razão... Ela respondeu com muita fir-

meza e convicção: “Deus não existe!”... Ri, com algu-

ma surpresa, e ela concluiu: “Mas só que, com a ida-

de que eu tenho, eu não posso assumir isso, senão

minha vida perde todo o sentido até agora... Eu me

desestruturo se eu avaliar toda a minha vida ante-

rior a partir dessa constatação”... Eu respondi para

ela que com Deus ou sem Deus, isso não tinha a

menor importância... Que ela continuasse a fazer o

que estava fazendo, da maneira como vinha fazendo,

que estava tudo ótimo...

Cena 12 • Sabotagem

[Música homônima dos Beastie Boys. Participação

dos Estados Unidos no golpe de 31 de março de 1964.

Imagens de documentos oficiais]

Cena 13 • La libertad

LIBERTAD. LIBERDADE.

O principal presídio durante a ditadura uruguaia se

chamava Libertad.

Próxima cena!

Cena 14 • Quantos incêndios são necessários para se contar uma história?

[Música London, London de Caetano Veloso. UNE

1964, USP Maria Antônia 1968, favelas de São Pau-

lo 2012. Mágica com flash paper]

Quantos incêndios são necessários para se contar

uma história?

Charge do cartunista francês Plantu

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33

Cena 15 • Mães de maio

[Ver Do luto à luta, p. 27, Ednalva Santos, mãe de

Marcos]

Eu nem sei por onde começar, mas eu vou tentar ex-

plicar o inexplicável. A minha vida sem meu filho é o

mais sem sentido dos sentimentos. O vazio é um

verdadeiro poço sem fim. Meu filho era um rapaz

saudável, de pouca conversa, mas muitos amigos.

Até que apareceram os Ninjas, policiais sem escrú-

pulos escondidos atrás de toucas, para tirarem a vida

do meu filho. Estes marginais de farda mataram meu

filho no Dia das Mães, em 2006. Hoje essa celebra-

ção para mim não existe mais. Por causa da luta das

Mães de Maio ao longo desses anos, eu já cheguei a

parar até na cadeia, acusada de tráfico de drogas, en-

quadrada por policiais que forjaram a acusação pois

querem que eu pare de falar que foram eles que ma-

taram meu filho.

Foram eles que mataram meu filho.

Cena 16 • O tempo avança recuando

[A atriz olha para o relógio na parede]

CEnA 17Pentatol sódico – O soro da verdade

“Do lado de lá está a verdade” [aponta para a frase

colocada em um lado da plateia]. “Do lado de lá está a

mentira” [aponta para a frase colocado do outro lado

da plateia]. Se a frase “do lado de lá está a verdade” é

verdadeira, é verdadeira a frase “do lado de lá está a

mentira”. Mas se a frase “do lado de lá está a mentira”

é verdadeira, a frase “do lado de lá está a verdade” é

falsa. Se é falsa a frase “do lado de lá está a verdade”,

do lado de lá está a mentira... [e assim por diante]

Pentatol sódico é uma substância química que pro-

voca efeito de sedação e desorientação. Ela era apli-

cada na veia dos prisioneiros políticos, durante a

ditadura militar, para que eles confessassem seus

supostos crimes.

Cena 18 • 21 anos em preto e branco

[Música Ponteio 45 de Camargo Guarnieri e proje-

ções sobre a violência de Estado e a ditadura militar

brasileira de 64-85]

Cena 19 • Como respirar com um saco na cabeça – a revanche

[Música Eu te amo, meu Brasil. A atriz respira du-

rante o tempo da música com um saco plástico na ca-

beça. Depois ela o retira e sorri]

Cena 20 • Morto-vivo – o jogo

Instruções:

IDADE – A partir dos 4 anos.

MATERIAL – Nenhum.

ATIVIDADE – O condutor irá dispor as crianças enfi-

leiradas na horizontal, cada vez que o condutor falar

MORTO, as crianças devem se agachar e quando ele

falar VIVO elas devem se levantar. O condutor deve ir

falando cada vez mais rápido para que as crianças se

confundam, quem errar sairá da brincadeira até que fi-

que apenas o vencedor. Depois a brincadeira recomeça.

OBJETIVO – Integrar a turma; observação; atenção;

agilidade; percepção auditiva; reflexos rápidos.

Variação das instruções:

Vivo-Morto, Sol-Chuva ou Terra-Mar: os três no-

mes são referentes a uma mesma brincadeira com

algumas mudanças. Ela é muito utilizada por palha-

ços em aniversários de crianças. Não é nada compli-

cada e serve para todas as idades, só precisando de

um “chefe” que vai comandar a brincadeira.

Desenvolvimento:

O chefe passa a falar aleatoriamente: “Vivo” ou “Mor-

to”. No caso de “vivo” ou “sol” (que é uma variação) os

participantes devem manter-se de pé. Quando ele

gritar “morto” ou “chuva” os participantes devem

abaixar-se, ficando acocorados. À medida que o tem-

po for passando, o chefe vai alternando a velocidade

com que dá as ordens, tentando confundir as crian-

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ças, por exemplo: “Morto”, “Morto”, “Morto”, “Vivo”.

Para difi cultar ainda mais, ele também pode começar

a fazer os movimentos de se abaixar e levantar, po-

rém com os comandos invertidos. Por exemplo: vivo,

vivo, morto...

Variante Terra/Mar:

No caso de Terra/Mar, a brincadeira funciona da mes-

ma forma, só que uma linha deve ser traçada no chão

(faz-se isso com um giz ou utilizando uma corda), en-

tão um lado é considerado a Terra e o outro é o Mar,

os participantes começam na terra, então o orador

começa a gritar “Terra” ou “Mar”, e os participantes

fi cam pulando de um lado pro outro da corda! Vale

lembrar que o grito pode ser ‘repetido’, por exemplo:

“Terra, Mar, Mar , Terra, Terra, Terra... MAR.”

Cena 21 • Voos da morte

[Silêncio. Projeção de fotos e do seguinte texto: “Voos

da morte.| Durante a ditadura civil-militar argentina

(1976-1983) centenas de prisioneiras e prisioneiros

políticos foram lançados vivos, de aviões, no rio da

Prata e no Atlântico. | Vários corpos foram encontra-

dos nas costas do Uruguai e da Argentina. | A memó-

ria destas pessoas e das suas lutas, e a busca por jus-

tiça, continuam vivas.”]

Cena 22 • Brasil 64. Ruanda 94

Nós não estamos em paz!

[Músicas Domani partiamo/Acquaragia Drom +

Cavaleiro andante/Abílio Manoel]

Cena 23 • Geisel assassino

Esta é uma cena “lenta, gradual e segura”. Eu vou ler a

transcrição de uma conversa do General-ditador Er-

nesto Geisel com o tenente-coronel Germano Arnol-

di Pedrozo:

“’Pegaram alguns?’, perguntou Geisel. ‘Pegamos. Pega-

mos. Foram pegos quatro argentinos e três chilenos’,

respondeu Pedrozo. Geisel: ‘E não liquidaram, não?’.

Pedrozo: ‘Ah, já, há muito tempo. É o problema, não é?

Tem elemento que não adianta deixar vivo, apron-

tando. Infelizmente, é o tipo da guerra suja em que, se

não se lutar com as mesmas armas dele, se perde.

Eles não têm o mínimo escrúpulo’.

[Lembrar da frase de Jarbas Passarinho na votação do

AI-5: “Às favas todos os escrúpulos de consciência”]

Geisel: ‘É, o que tem que fazer é que nessa hora tem

que agir com muita inteligência, para não fi car vestí-

gio nessa coisa’.”

Com o General Dale Coutinho é esta a conversa, eis a

transcrição:

Geisel: “Eu não abro mão do Ato no 5. O Ato no 5 é

um cajado. Eu sou besta de abrir mão desse negócio?

Eu sei lá o que que vem. Como essa história de aber-

tura e descompressão. Ah, eu sou um sujeito profun-

damente democrático. Toda a minha vida fui. Eu sem-

pre fui um homem muito simples, despido de coisas,

e cansei de ir com minha mulher fazer compra na fei-

ra. Agora, não sou nenhum burro de amanhã fazer

uma vasta abertura, fi ngir aí uma democracia e depois

ter que recuar dois, três, quatro passos. Eu não vou

recuar. Eu só vou caminhar para a frente, devagar, para

não ter que recuar, não é? Seria uma beleza eu chegar:

não há mais censura, e agora o troço é à vontade, e a

Câmara vota como quer, e não sei o quê. E no dia se-

guinte está o estudante fazendo bagunça na rua, está

o padre fazendo comício, sei lá o quê.”

Eu vou ler o último trecho desta conversa:

Geisel: “O Brasil hoje em dia é considerado um oásis.”

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35

Dale Coutinho: “Ah, o negócio melhorou muito. Ago-

ra, melhorou, aqui entre nós, foi quando nós começa-

mos a matar. Começamos a matar.”

Geisel: “Porque antigamente você prendia o sujeito e o

sujeito ia lá para fora. Ó Coutinho, esse troço de ma-

tar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser.”

[Música “O Brasil é Meu”. Grupo de samba de pare-

lha da Mussuca, ex-quilombo de Sergipe. Sangue!]

Cena 24 • As amigas Teresa e Palomita

[Ver Pedaços de morte no coração, Flávio Koutzii, p.

107]

[Teresa e Palomita são os nomes dados a uma técni-

ca de comunicação inventada pelos presos, comuns e

políticos, nas prisões do Brasil e da Argentina. Esta

cena exemplifica o dispositivo de comunicação. Os bi-

lhetes, ou “caramelos”, fazem parte de um contrassis-

tema. Distribui-se ao público o desenho da técnica

utilizada em um presídio argentino durante a última

ditadura (1976-1983)]

Cena 25 • Os mares verdes do Brasil –outra revanche

[Hino da Marinha do Brasil (“Cisne Branco”). A

atriz respira durante todo o tempo da música com a

cabeça dentro de um aquário ou tanque com água.

Depois sorri, talvez assovie]

A música que estava tocando é o Hino da Marinha

do Brasil. Esta é a nossa cena 25 e ela se chama “A

revanche”.

CEnA 26 Passado abandonado jamais se torna passado

[Antígona, segundo Sófocles e Brecht]

Antígona: Passado abandonado jamais se torna pas-

sado.

Creonte: A guerra terminou.

Tirésias, o cego: Será mesmo? Eu estou perguntando!

Eu só vejo o que uma criança vê: que o bronze das

colunas da vitória é bem delgado. E digo: é porque

ainda se fabricam muitas lanças. Costuram-se agora

muitas peles para o exército, e digo: é como se viesse

o outono. E se pusesse o peixe para secar, esperando

uma campanha de guerra de inverno.

[A atriz]

Pode parecer inabitual a linguagem deste poema de mil

anos. Desconhecido é o seu assunto. Permitam que eu o

apresente a vocês. Eu sou Antígona, Princesa da estirpe

de Édipo. Este aqui é Creonte, tirano da cidade de Te-

bas, e tio de Édipo (que não aparece na peça). Este é

Tirésias, o vidente. Aquele ali [aponta Creonte] trava

uma guerra de pilhagem contra a longínqua Argos. Eu

enfrento o desumano, quero enterrar meu irmão, e

ele, Creonte, me aniquila. Mas a sua guerra, escapa ao

seu controle. Eu peço a vocês que procurem na me-

mória ações semelhantes do passado recente, ou en-

tão a falta de ações semelhantes. E então vocês verão

como e porque nós, atores e atrizes, pisamos nesta

pequena arena de jogo, onde antes sob as caveiras dos

Desenho publicado no livro Pedaços de morte no coração, flávio Koutzii, 1984.

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dossiêkiwi

animais sacrificados em cultos bárbaros, nos primór-

dios tempos, a humanidade fazia sua grande aparição.

Cena 27 • Cânone

[Música Piano Phase de Steve Reich. A atriz faz o

exercício dos 12 tempos]

Cena 28 • Pra frente Brasil

[Música-colagem a partir de Pra frente Brasil (Miguel

Gustavo), Público (Taiguara) e spots radiofônicos da

Copa de 1970. Referência aos megaeventos esportivos

como a Copa do Mundo de Futebol e as Olimpíadas]

Cena 29 • Continuo sonhando, 1976

[Ver Memórias do exílio, p. 315]

[A atriz olha para o relógio na parede]

Eu me chamo Maria Auxiliadora Lara Barcellos. Eu te-

nho trinta anos, nasci e me criei no Brasil, pra onde

irei voltar, apesar de você. Meu pai tava sempre de

passagem e minha mãe sempre em sua, sempre em

sua, sempre em sua companhia. E a gente, por que

não? Afinal, a maioria no Brasil está de passagem,

procurando seu posto definitivo, mas as aranhas não

dão chance, não dão sossego. Mandando a gente calar

a boca, e seguir fugindo. Mas a gente faz diferente, só

pra chatear: saí procurando a saída, sem calar a boca.

Foi isso que eu fiz. Os senhores me perdoem, eu era

criança e idealista. Hoje sou adulta e materialista, mas

continuo sonhando. E não tem lei nesse mundo que vai

impedir o boi de voar. Sou um boi marcado, uma velha

“terrorista”. Fui aprendiz de feiticeira. Pisei no calcanhar

do monstro, e ele virou sua pata sobre mim, cego e in-

controlável. Fui uma das vítimas inumeráveis do mons-

tro verde-amarelo de pés imensos de barro. Foram in-

termináveis dias de Sodoma. Me pisaram, cuspiram, me

despedaçaram em mil cacos. Me violentaram nos meus

cantos mais íntimos. Foi um tempo sem sorrisos. Um

tempo de esgares, de gritos sufocados, um grito no

escuro. A apologia da violência. A luta pelo poder ab-

soluto. A destruição do outro. O sacrifício dos bebês.

Eu tinha comido um besouro. Ele zumbia dentro de

mim furioso, pra me lembrar que a imaginação inco-

moda muita gente.

E aqui estamos, senhores.

Ps.: Maria Auxiliadora, Dorinha, se suicidou na Ale-

manha em 1976. Eu, Fernanda, tinha três anos.

[Música Internacional em valse musette. A atriz

tira os sapatos e o casaco, que ficam sobre a cadeira]

Cena 30 • O tempo avança recuando

[Silêncio]

Cena 31 • Teatro

[Ver Martha Gavensky e Gustavo Wagner, Revista El

Porteño, nº 18, Buenos Aires, 1983, p. 8]

Cena trinta e um: teatro.

Quando os presos políticos queriam fazer teatro, eles

o reduziam a uma expressão estática, só falada, sem

gestos. A imaginação dos espectadores fazia o resto.

O narrador fala baixo. Sua voz, apenas mais alta que

um sussurro, desliza e abarca todo o recinto. Baixa,

para evitar que os guardas o escutem. Assim o ho-

mem apoiado na parede vai falando, descrevendo. Os

outros, os homens sentados no chão, têm os olhos

fechados, imaginam um cenário, uma situação. A voz

que fala agora muda. Começa com “eu”, fica mais gra-

ve, é outro. Alguns dos sentados, os que imaginam,

contraem os rostos com emoção. Quando se abre a

porta do fundo do corredor e aparece o guarda da pri-

são, já no mesmo instante, a situação é outra. Os ho-

mens falam banalidades. O carcereiro não poderá sa-

ber nunca que aí, onde quase tudo é proibido, debaixo

do seu nariz, os prisioneiros estavam fazendo uma

obra de teatro. O guarda sai. O narrador volta a falar

e, então, termina sua “fala”. Há uma pausa e depois

Page 37: Contrapelo 01

37

ele diz, já com outra voz: - cortina! As mãos dos ho-

mens sentados se elevam, e começa um aplauso si-

lencioso: aplauso sem juntar as mãos, apenas abrindo

e fechando os dedos das mãos, altas, separadas.”

Cena 32 • Calor

[Termômetro]

São 22 horas e 45 minutos. A minha temperatura

agora é de 37,5 graus.

Duas Definições para Cânone:

Forma musical baseada na imitação, uma melodia é executada em duas ou mais partes diferentes, repetindo-se indefinidamente.

Composição musical que em sua forma mais simples, consiste na imitação do tema inicial a intervalos determinados. Proveniente da Idade Média, os cânones assumiram uma grande complexidade e encontraram sua maior expressão na música contrapontística de J. S. Bach, sobretudo em sua Arte da fuga.

Cena 33 • Coda

[Música I Can See Clearly Now (Johnny Nash). A

atriz veste todas as camisetas que tirou no início da

apresentação]

Eu sou os que foram.

[Último cânone: Sumer is icumen in, século 13. Úl-

timas imagens: criança no balanço, filha de desapare-

cidos políticos]

Cortina!

Page 38: Contrapelo 01

38

Toda essa memória tem que ser usada para a transformação do presente e

do futuro. Senão ela vira nostalgia ou narcisismo. Essa memória tem que

nos fazer lembrar que até hoje o mesmo terror de Estado da época da es-

cravidão, da ditadura Vargas e da civil-militar instalada em 1964 perma-

nece. Está nas chacinas das periferias de São Paulo e nas chacinas contra

o MST no campo. Isso é o terror de Estado, as torturas continuam a existir.

É que o foco agora saiu da repressão maior contra a oposição, e se fixou nos

trabalhadores mais pobres. Nos bairros de periferia, não vigora sequer o

mais singelo direito garantido pela Constituição, que é o direito de ir e vir.

Começa a escurecer e todos se trancam em casa, com medo igualmente da

polícia e do crime organizado, e cada vez temos mais dificuldade de saber

quais os limites entre um e outro. O terror de Estado está aí, vivo.

Alípio Freire, em entrevista ao Brasil de Fato

Uma flor nasceu na rua! (...) / É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o

tédio, o nojo e o ódio.

Carlos Drummond de Andrade, “A flor e a náusea”

A flor e a exceçãosobre Morro CoMo uM país, Da Kiwi CoMpanhia De TeaTro

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fernanda Azevedo na peça Morro como um país, Kiwi Companhia de Teatro, 2013 foTo BoB SouSA

Page 39: Contrapelo 01

39Quem dormiu no chão deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas. Escreverá talvez asperezas, mas é delas que a vida é feita: inútil negá-las, contorná-las, envolvê-las em gaze. GraCiliano raMos, eM MeMórias Do CárCere

Já que as primeiras falas da peça (e o próprio títu-

lo) se iniciam em primeira pessoa, explicando o lugar

de onde fala a atriz, cronológica (“nasci em 1973”) e

biograficamente (“tenho dois sobrinhos”), tomo a li-

berdade de situar onde se ampara a minha recepção

ou qual a realidade com que ponho em diálogo a obra

teatral em questão. O meu principal espaço de inter-

locução é a escola. Nos últimos dias, transcorre, ainda

que à revelia da grande mídia, uma greve de professo-

res da educação pública estadual paulista (e também

municipal paulistana) que revela tensões inerentes a

momentos de insurgência contra o Estado. No entan-

to, maior que a indignação proveniente do discurso

coativo das autoridades e da truculência moral com

que são tratadas as questões envolvidas, o que mais

causa espanto e frustração são a alienação e a incapa-

cidade de parte dos envolvidos em educação de tomar

para si ações que interferem direta ou indiretamente

no espaço público e na formação de jovens. Incapaci-

dade de arcar com as retaliações que, já é de conheci-

mento, virão. Mas o fato que se nega é que elas virão

por conta do mecanismo de Estado. E isso independe

da insurgência. A coerção e a violência são condições

da máquina estatal, a serviço do capital, e estão entra-

nhados em todas as esferas. Talvez o medo provenha

do maior ou menor grau de intensidade com que elas

passarão a operar. E a política do medo, mencionada

no fundamentado texto do programa da peça, perpe-

tua o seu funcionamento. Há tempos.

A peça Morro como um país, da Kiwi Companhia de

Teatro – cujo repertório afiado geralmente propor-

ciona ao público um alento-nada-cômodo, uma saída

(sem volta) da zona de conforto –, estruturada a par-

tir da narrativa de Dimitris Dimitriadis, surge como

potente instrumento de provocação reflexiva e de

ação política, para além da estética (sem, no entanto,

quaisquer prejuízos nesse campo), ao aliar às perse-

guições e mortes individuais, decorrentes do contí-

nuo estado de exceção, o impacto no âmbito nacional

e internacional. Caberia aqui pensar nessas questões

mais próximas em diálogo com a pergunta que a peça,

em sua extensão, constantemente refaz: por que es-

quecemos nossos mortos?

» por Mei Hua SoaresDoutoranda em Educação (USP) e

pesquisadora de teatro de grupo

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1 “Sófocles pressupõe a Ate [destino que os deuses impõem aos homens]. Mas não é de mera passividade a sua posição perante o fato inevitável da dor enviada pelos deuses, que desde a sua origem a velha lírica lamentou. Não partilha as resignadas palavras de Simônides, segundo as quais, o Homem tem de perder necessariamente a Arete, quando o infortúnio inexorável o derruba. A elevação dos seus grandes sofredores a mais alta nobreza é o Sim que Sófocles dá a esta realidade, a esfinge cujo enigma fatal consegue resolver. É o homem trágico de Sófocles o primeiro a elevar-se a uma autêntica grandeza humana, pela completa destruição da sua felicidade terrena ou da sua existência física e social”. (Jaeger, w. paideia – A formação do homem grego. são paulo: Martins fontes, 2010, p.331).2 benjaminianamente toma partido dos vencidos. a contrapelo. 3 Com todas as contradições que ela apresenta, inclusive simbolizadas pelas placas dialéticas “Do lado de lá está a verdade” e “Do lado de lá está a mentira”. ou pelo “vivo-morto” ou “terra-mar”. 4 “(...) cada atual presente não é senão o passado inteiro em seu estado mais contraído. o passado não faz passar um dos presentes sem fazer que outro advenha, mas ele não passa nem advém. eis por que, em vez de ser uma dimensão do tempo, o passado é síntese do tempo inteiro, de que o presente e o futuro são apenas dimensões. não se pode dizer: ele era. ele não existe mais, ele não existe, mas insiste, consiste, é”. (Deleuze, Gilles. Diferença e repetição. são paulo: Graal, 2006, p.126, grifos do autor).

Lucidamente evoca-se Antígone. Fernanda Aze-

vedo, em atuação impecável dirigida por Fernando

Kinas, traz à cena a figura heroica e trágica da perso-

nagem que luta para enterrar seu irmão Polinices em

meio à categórica proibição por parte de Creonte, re-

presentante do Estado. Antígone, mesmo sabendo

das posteriores implicações, enterra o irmão e é

cruelmente punida. Ao analisar a estrutura das tragé-

dias de Sófocles, Werner Jaeger ressalta a “peculiar

ironia trágica” presente em suas peças, cujos perso-

nagens, ainda que submetidos ao destino imposto

pelos deuses, não se mostram passivos ou indiferen-

tes à debilidade e miséria humanas1. A máxima “Pas-

sado abandonado jamais se torna passado” ecoa em

nossas mentes durante e após o término do espetá-

culo assistido. Assim como deve ser o reconheci-

mento e o não-esquecimento dos heróis que a histó-

ria oficial escamoteia, teima em desprestigiar e

esconder. Para que não sejam somente mitificados,

mas honrados com ações que determinem outros ru-

mos históricos. Pode soar prescritivo. E é.

As emblemáticas falas da peça Morro como um país

– criteriosamente selecionadas a partir de textos do-

cumentais e literários – tecem um roteiro dramatúrgi-

co contundente, revelando um cuidadoso (e corajoso)

trabalho de pesquisa que engendra o espetáculo de

cunho performático. Há certa tendência em superesti-

mar o espectador que, por vezes, pode não acompanhar

ipsis literis as metáforas, alegorias e alusões mobiliza-

das ao longo das cenas. Nada que impeça, no entanto, o

acesso e a recepção à forma-conteúdo escolhida como

cerne do projeto (perceptivelmente mais vasto que as

cenas a que pudemos assistir).

Dentro do sótão, a atriz mergulha em fatos e se-

quências históricas incitando-nos a também mergu-

lhar nos porões da(s) ditadura(s) e em seus desdobra-

mentos atuais. A queda é vertiginosa. Dolorosa. O

relógio, o boneco-autômato, a bateria, a armadura, o

elmo, a sacola de feira, a cadeira-grade, a fantasia de

Carmen Miranda, as corrediças trazendo em papel

enrolado as engenhosas soluções de comunicação

dos presos, o líquido vermelho que escorre do livro

que contém o diálogo sangrento proferido por Geisel

e seus comparsas. Na tela documentos secretos, al-

vos, combinações sugestivas ou afirmativas de fi-

gurões políticos. A atriz – mostrando-nos o que

pode uma só mulher – não apenas contracena com

esses elementos como conduz firmemente a ação,

cada olhar, cada movimento-pausa, com maestria

própria de quem está certa do que faz. De quem

aposta suas fichas. De quem toma partido2. De quem

literal e politicamente veste a(s) camisa(s) dos tortu-

rados, desaparecidos e mortos durante a ditadura e

em seu contínuo estado de exceção.

A condução verbal merece destaque. Os textos,

ora disparados (metralhadora verborrágica altamente

regulada), ora cadenciados e envolvidos pela emoção

oriunda de quem faz e de quem assiste, são um capítu-

lo à parte. Insana contadora da História3., a “narratriz”

não perdoa seus ouvintes ao desvelar a maquinação, as

atrocidades e angústias envolvidas nos fatos mais sór-

didos. Ficção e realidade. Perplexidade. Comoção pro-

veniente da seriedade do assunto e da exposição argu-

ta do horror mesclado a impressões líricas. As

repetições retomam o passado presentificando-o.

Mais do que isso. “Eu sou os que foram”, frase do

escritor uruguaio Mauricio Rosencof, delineia a ideia

da impossibilidade de se separar presente e passado

– que poderia ser pensado à luz da perspectiva deleu-

ziana4.– e fornece chave de leitura para a peça.

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5 no debate organizado pela boitempo editorial, ocorrido em 04 de julho de 2012, paulo eduardo arantes, ao explanar sobre então recém-publicada obra de alain badiou – a hipótese comunista –, apresenta a seguinte reflexão: “badiou tem a coragem de dizer muitas coisas. inclusive de dizer que o comunismo não é uma ideia histórica. ela é uma ideia no sentido platônico do termo. uma ideia como platão havia concebido ideia. portanto ela é verdadeira, ela é eterna (...), ela não tem nada a ver com empiria. (...) não se pode viver sem ideia. (...) ele (badiou) apresenta o comunismo como se fosse uma ideia e uma ideia pura da razão. (...) Kant diz: ‘as ideias de platão não são utópicas, são realistas’. elas têm essa particularidade, como toda ideia pura da razão. são ideias racionais puras e a elas não corresponde, nem pode corresponder, nada de verificável e empiricamente tangível na realidade. portanto platão não foi utópico. e ele diz uma coisa mais importante: as ideias têm impulso prático. (...) a imagem que aparece no mundo sensível não corresponde exatamente àquilo que são as formas no mundo das ideias. Mas essas formas existem realmente e sem elas o mundo seria invisível, impensável. portanto, é impossível viver sem ideias”.

Outro ápice da encenação, talvez o mais forte,

consiste na descrição do “teatro carcelario” das pri-

sões argentinas. Explicita-se ali o quão necessária é

a faculdade imaginativa, especialmente diante do

encarceramento dos corpos. Nesse momento, ficam

evidentes as últimas armas de resistência humana,

as que sobreviverão ainda que mediante inúmeras

tentativas de violação. A flor no asfalto. Furando o

tédio, o nojo e o ódio.

Somada à imaginação, poderíamos pensar ainda na

necessidade da preservação da ideia, orientadora de

ações rotineiras ou de impacto mais amplo. Paulo

Arantes, em debate sobre obra de Alain Badiou, desta-

ca a abordagem do autor sobre o comunismo, em que

o filósofo e dramaturgo francês aponta para o seu cará-

ter platônico, pertencente ao reino das ideias, em con-

sonância, talvez, com a concepção kantiana de ideia

pura da razão5. Embora possa emergir desse pensa-

mento uma angústia justificada pela incapacidade de

Uma flor nasceu na rua!(...) Sua cor não se percebe.Suas pétalas não se abrem.Seu nome não está nos livros.É feia. Mas é realmente uma flor.

Cortina.

objetivar, de transformar em ações aquilo que é conce-

bido mental ou imaginariamente, poderíamos tam-

bém depreender dessa reflexão o valor intrínseco da

manutenção tanto da imaginação quanto das ideias.

Nas situações explícitas e veladas de exceção. E esse

espaço para a imaginação e a reflexão sobre as ideias é

permitido, proporcionado, ao longo da encenação.

Ao fundo branco, junto à manipulação dos obje-

tos e à arquitetura de palavras e signos, as imagens

vão surgindo, sugeridas, amplificadas, acionando e

convidando o imaginário (de cada um e o de todos a

um só tempo) a preencher as lacunas. Nesse sentido

a citação da militante Maria Auxiliadora Lara Barce-

los, proferida em cena, é, no mínimo, brilhante: “A

imaginação incomoda muita gente”. De transbordar

os olhos e o coração. E de alimento à alma. Pela cons-

tatação de que a imaginação – e o que dela decorre

– é, por excelência, o lugar privilegiado de onde ain-

da se pode resistir, criar, sonhar e, por que não, agir:

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Caderno de fotosFotos da temporada morro como um país.

Kiwi companhia de teatro, 2013

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debates durante a temporada da peça Morro como um país, kiwi Companhia de teatro, 2013fotoS kiwi CoMPAnHiA dE tEAtro

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1 EINSTEIN, Albert. A teoria da relatividade especial e geral. Rio de Janeiro: contraponto, 1999. p. 28.

Que verdade resiste ao exame? Albert Einstein pa-

rece ter seguido esta dúvida ao desenvolver sua Teoria

da Relatividade, publicada em 1905, que marcou decisi-

vamente os caminhos da Física Moderna. O trajeto per-

corrido por Einstein foi o de sanar a aparente incompa-

tibilidade entre o princípio da relatividade no sentido

estrito (que afi rma que as leis mecânicas de um sistema

K serão as mesmas de um sistema K’, desde que um

sistema esteja em velocidade constante em relação ao

outro), e a lei de propagação da luz no vácuo (que afi rma

que a luz se move com uma velocidade constante de

300 mil km/s, a velocidade-limite). Einstein explicou a

possível contradição com o clássico exemplo do trem.

Se um trem viaja a uma velocidade V e um feixe de luz

é emitido da estrada de ferro no mesmo sentido de

deslocamento do trem, qual a velocidade (w) desse fei-

xe para um observador que se encontre dentro do trem?

A mecânica clássica tenderia a resolver essa questão

pelo teorema da adição das velocidades: o observador

veria o raio com a velocidade da luz (c) menos a veloci-

dade de deslocamento do trem (v), como na equação:

w = c - v

Mas isso seria dizer que a velocidade de propa-

gação da luz em relação ao trem é menor do que em

relação à estrada de ferro. Seríamos forçados a aban-

donar um dos dois princípios (ou o da relatividade

ou o da propagação da luz no vácuo). O projeto de

Einstein eliminou essa aparente incompatibilidade

ao propor uma refl exão sobre o conceito de tempo,

tido como absoluto para a física newtoniana. Eins-

tein provou, pelas transformações de Lorentz, que

“cada corpo de referência (sistema de coordenadas)

possui seu tempo próprio” 1. Ou seja, o tempo deixa-

Erre!

Se os fatos confl itam com a teoria, ou teoria ou fatos tem de ser modifi cados. BARUch ESPINoZA

» por Fabio SalvattiDoutor em Artes Cênicas pela USP, Professor de Direção

Teatral na Universidade Federal de Santa Catarina. Fez parte da Kiwi Companhia de Teatro entre 2001 e 2008.

Cartaz da peça R, Kiwi Companhia de Teatro, 1997

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quilo de chumbo ou um quilo de algodão?”. Também

o caráter de manifesto estava presente: “É preciso en-

forcar o último espectador nas tripas do último ator”,

“Não existe fato, existe versão”, “A velocidade é um

meio onde é preciso aprender a habitar”, “Pra que cé-

rebro se a coluna vertebral já quebra o galho?”.

As obras que serviram de matriz para a composi-

ção do roteiro iam desde textos de cunho científico

das mais variadas épocas: Zenon de Eléia (“Aquiles

pode correr para sempre sem alcançar a tartaruga”),

Demócrito (“Apenas os átomos e o vazio são reais”),

Prigogine e Stengers (“Da mesma forma que a arte e a

filosofia, a ciência é antes de tudo experimentação

criadora de questões e de significações”), Ernst Ham-

burger (“Um objeto em movimento com velocidade

próxima à velocidade da luz fica mais curto e nele o

tempo passa mais devagar”), que dialogavam com o de

Einstein; passando por referências metateatrais, como

Tchecov (“Para mim o teatro contemporâneo é apenas

rotina e preconceitos”), Brecht (“É preciso enforcar o

último espectador nas tripas do último ator”), Heiner

Müller (“O texto deve ter a velocidade do tempo, mas

o teatro não tem a velocidade do tempo: é apenas uma

espécie de solenidade ou de refúgio para sentimentos

e ideias nostálgicas”), Peter Brook (“O teatro será o

domínio onde as pessoas poderão aprender a compre-

ender os mistérios sagrados do universo”); por aforis-

mos como os do coveiro que abriu as valas para sepul-

tar os mortos da então recente chacina de sem terra

em Eldorado dos Carajás (“É melhor sobrar do que

faltar”, após abrir 25 covas para os 19 sem terra assas-

sinados), do presidente da BMW (“Não são os maio-

res que comem os menores, mas os mais rápidos que

va de ser absoluto e passava a ser relativo. De acordo

com Einstein, num veículo em movimento o tempo

passava mais lentamente do que em um corpo em

repouso. O tempo dentro do trem não passava no

mesmo ritmo do que na estrada de ferro. A verdade

do tempo não resistira ao exame.

Aproveitando essa vertente potencialmente re-

volucionária da teoria de Einstein, foi construído o

espetáculo teatral R, da Kiwi Companhia de Teatro,

estreado na cidade de Curitiba em abril de 1997. A

encenação e a dramaturgia de R, ambas assinadas por

Fernando Kinas, foram fruto de uma investigação

sobre os princípios criativos de Vsevolod Meierhold,

Bertolt Brecht e Reza Abdoh, além de uma pesquisa

sobre o binômio teatro-ciência, que lhe rendeu um

título de mestre na Universidade Sorbonne Nouvel-

le, em Paris, entre 1994 e 1996.

A Teoria da Relatividade Especial e Geral consti-

tuía uma “coluna vertebral” do espetáculo. A exposi-

ção desta teoria seguia a sequência e a linha de racio-

cínio da edição “para leigos” que Einstein publicou

em 1916. R utilizava os mesmos exemplos einsteinia-

nos (o vagão de trem, uma caixa sendo puxada por

um cabo pelo espaço sideral). Entrecortando, ou

“atravessando”, a Teoria da Relatividade havia frag-

mentos de autores diversos, com temáticas variadas,

a maioria falando da interação arte-ciência, da misé-

ria do mundo nos dias de hoje, da condição precária

do artista e do teatro. As dúvidas pululavam: “O que

vai ser do teatro nessa história toda? É preciso abolir

o teatro, então?”, “Por que é que a geometria euclidia-

na vem se meter com a nossa vida?”, “O que eu posso

fazer da tristeza do mundo?”, “O que pesa mais: um

Page 54: Contrapelo 01

54

dossiêkiwi

3 KINAS, Fernando. R. Texto dramatúrgico não publicado.

comem os mais lentos”) e de Oswald de Andrade (“A

massa ainda comerá o biscoito fino que eu fabrico”).

Por fim, parte do roteiro era composto por material

escrito por Fernando Kinas, que lançava olhares des-

confiados tanto à teoria einsteiniana quanto à prática

teatral e à situação sócio-política brasileira contem-

porânea. A redação dos fragmentos retirados da Teo-

ria da Relatividade era levemente adaptada para o es-

petáculo, enquanto uma outra voz (nomeada no texto

como “Autor”) comentava, anotava, provocava ou am-

pliava a reflexão einsteiniana.

Einstein:

Agora nós precisamos falar da transformação de Lorentz,

que diz que x’ é igual a x menos a velocidade vezes o

tempo, dividido pela raiz quadrada de um menos a velo-

cidade ao quadrado sobre a velocidade da luz ao quadra-

do. E também que y’ é igual a y, z’ igual a z e t’ igual ao

tempo menos a velocidade sobre a velocidade da luz ao

quadrado vezes x, dividido pela raiz quadrada de um me-

nos a velocidade ao quadrado sobre a velocidade da luz

ao quadrado.

Autor:

E vamos falar ainda da cantiga de espantar males, que diz:

Eu vi um homem lá na grimpa do coqueiro, ai-ai,

Não era um homem, era um coco bem maduro, oi-oi,

Não era um coco, era a creca do macaco, ai-ai,

Não era a creca, era o macaco todo inteiro, oi-oi. 3

Claramente, o “Autor” estava preocupado com um

espectro de relações que ia muito além da descrição

de uma teoria científica. Por isso, as referências arti-

culadas por essa voz (“Autor”) tinham cunho metate-

atral e político. Essa voz do “Autor” estava para a

construção do texto de R como um maestro está para

uma orquestra, fazendo com que cada “naipe” das

fontes selecionadas entrasse com precisão em um

momento determinado. O “Autor” tinha a proprieda-

de de introduzir discussões, estabelecer paralelos,

apartes e distanciamentos.

Na encenação de R, ainda que as influências de

Brecht, de Meierhold e de Reza Abdoh se fizessem

presentes, a linguagem cênica era bastante singular.

A citação de A Gaivota de Tchecov feita no microfo-

ne já no início do espetáculo pelo diretor-ator Fer-

nando Kinas era bastante apropriada: “o teatro con-

temporâneo é apenas rotinas e preconceitos. (...) São

necessárias novas formas, e se elas não existem, o

melhor é não fazer nada”.

Antes, no foyer, os cinco atores conversavam in-

formalmente com o público. Trajavam um macacão

cinza, de operário, e usavam pouca ou nenhuma ma-

quiagem. Os atores gentilmente conduziam o público

até a sala de apresentação, disposta como um corre-

dor, com arquibancadas paralelas, frente a frente. O

cenário era composto por alguns aparelhos eletrodo-

mésticos (uma máquina de lavar roupas, um aspira-

dor de pó, alguns aparelhos de televisão, um ventila-

dor); uma tela ao fundo (sobre a qual eram projetados

ao longo da peça slides, vídeos e retroprojeções); um

microfone com pedestal; uma mesa sobre a qual o

diretor tentava durante toda a peça equilibrar um ovo

em pé; uma grande grade vertical bem no centro da

área de encenação com dimensões aproximadas de

2,5m de largura e 3,5m de altura, presa ao solo por um

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55

pedaço de trilho de trem. Vários elementos eram usa-

dos durante a peça, como um tabuleiro de xadrez, um

bastão de madeira, um punhado de feijão, lanternas,

um pinguim de pelúcia, um pandeiro.

A contraposição entre ideias, sons e imagens era

constante. Embate entre material poético e crítica so-

cial contundente, R podia estar em um momento des-

crevendo a teoria da relatividade, no outro, falando

sobre a relação de uma mãe com seu filho durante a

segunda guerra mundial, e voltar à fala de Einstein.

Uma atriz discorria sobre a velocidade do mundo

contemporâneo, ao mesmo tempo que escolhia fei-

jões, lentamente. A ovelha Dolly, ícone da sofisticação

da tecnologia genética, era contraposta com o toque

do pandeiro, representante da tradição do morro, do

samba. A contraposição funcionava como um jogo,

quando um ator propunha: “Diga rápido qual é a pala-

vra diferente: telefone, fax, computador, rádio, televi-

são, vídeo, Ilha do Mel, internet, celular, TV a cabo”, ao

que outro respondia: “Telefone?”. Outro momento de

oposição era aquele em que uma atriz sugeria que o

público fizesse um chá com suas lágrimas para que se

aquecesse e dormisse tranquilo. Ao fundo, durante

esta fala, fotos de crianças que vivem nas ruas.

O resultado cênico dessas contraposições era um

espetáculo que discutia as interseções e interconexões

entre arte, ciência e cidadania, cujo título, R, dava

margem a inúmeras leituras, três delas de maneira ex-

plícita. “R” de “relatividade”, a teoria que questionou a

estabilidade da ciência newtoniana e ofereceu um

olhar alternativo para o mesmo objeto; “R” de “revolu-

ção”, uma revolução política, estética, científica, que

quer minar estruturas de poder; e “R” como o impera-

tivo do verbo “errar”, ou seja, uma apologia ao exercí-

cio do erro, ao teste de elasticidade das verdades pre-

estabelecidas (como os axiomas da geometria

euclidiana e da física newtoniana). “Será que a verdade

é só o discurso sobre a verdade?”, perguntava Kinas.

Aliás, essa marca de colocar a verdade na berlin-

da, de perguntar sobre a validade dos nossos paradig-

mas, vem sendo característica na obra da Kiwi Com-

panhia de Teatro desde então. As encenações da

Companhia oferecem uma alta carga de exercício crí-

tico, de construção de um pensamento materialista

dialético sobre a arte e o mundo. O artista da fome

(98) e Carta Aberta (98) são exemplos dessa postura

em que o material era a própria metalinguagem. Tudo

o que você sabe está errado (2000), por sua vez, tinha

como tema o exercício da dúvida cartesiana, expressa

no título (o subtítulo do espetáculo era “o exercício

coordenado da dúvida e o abalo sistemático das ver-

dades”). O programa deste último espetáculo reco-

nhecia esse parentesco: “em todos [R, O artista da

fome, Carta Aberta e Tudo o que você sabe está errado]

a atualidade indigente do país e as reflexões sobre a

natureza e a urgência da arte, além da ideia recorren-

te do jogo e da brincadeira como chance para a desco-

berta e a fruição da vida, estavam presentes”4. Esta

marca se manteve em espetáculos posteriores, como

O bom selvagem (2006), Teatro-mercadoria (2006-

2008) e Carne (2007-2012). Nos trabalhos da Kiwi, a

arte tem a necessidade de se auto-pensar: saber qual

a sua necessidade, utilidade ou importância. Saber

qual o estatuto filosófico de sua existência.

Vale à pena sublinhar a pretensão sintética que R

tinha em relação à ciência e à arte, uma articulação

O teatro contemporâneo é apenas rotinas e preconceitos. TchEcov

4 KINAS, Fernando. “o teatro não é a arte das evidências”. Tudo o que você sabe está errado. Programa do espetáculo.

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56

dossiêkiwi

entre dois modos diferentes de organização da expe-

riência humana. A tese de R era a de que as disposi-

ções que presidem a arte e a ciência são comuns.

Ambas conduzem ao espanto e em ambos os casos

esse espanto é motor para a transformação.

o mesmo estado de espírito preside as invenções cientí-

ficas e artísticas. (...) o pesquisador no seu laboratório

assim como o artista escrutam o conhecido para desco-

brir o desconhecido. Um e outro estão buscando aquilo

que se mantém escondido atrás das aparências. Pode-se

dizer também que eles interrogam sobre os enigmas do

mundo. Essa tarefa do espírito refuta a priori o confor-

mismo, tudo aquilo que uma época tem como convenien-

te. Ela é, em essência, subversiva e poética.5

Não à toa, um dos grandes expoentes para o de-

senvolvimento do espetáculo foi Leonardo Da Vinci,

artista e cientista renascentista e emblema no qual

essas duas funções melhor se encontram fundidas

num indivíduo. Como na frase de Kandinsky, apro-

veitada por Kinas, “a grossa parede entre a arte e a

ciência vacila”.

R dialogava com a dimensão científica (vale dizer,

também, tecnológica) da sociedade em uma atitude

ao mesmo tempo analítica e poética. “Uma das pos-

sibilidades para pensar o teatro contemporâneo é

exercitar esse cruzamento entre arte e ciência, ou é

discutir esse tema, ou é incorporar a inquietação

científica na fatura do próprio teatro, no resultado

que ele apresenta. R sofre influência de Brecht quan-

do este propõe um teatro político e social, um teatro

comprometido com a realidade, que fale dela e para

ela, um teatro que provoque transformação”6. Uma

das frases do autor alemão (publicada originalmente

em 1948 no Pequeno Organon para o Teatro, um dos

escritos teóricos mais importantes de Brecht, no qual

ele revê boa parte de suas considerações sobre a arte

teatral) aproveitada pelo texto do espetáculo era: “Em

nosso teatro, diante da natureza e da sociedade, que

atitude podemos tomar para o prazer de todos, nós,

os filhos de uma época científica? Esta atitude é uma

atitude de crítica. (...) Tratando-se da sociedade

[consiste em] fazer a revolução”7.

Kinas, em entrevista, cita a opinião de Heiner

Müller sobre a “decalagem” que o teatro tem em rela-

ção à época em que ele está sendo feito, como se hou-

vesse um desencaixe temporal entre o teatro e seu

tempo 8. Para Kinas isso não é necessariamente ruim,

porque pode oferecer a oportunidade de se posicio-

nar criticamente sobre o avanço da história. O posi-

cionamento crítico em relação à história não está em

contradição com a ideia de “sintonia” brechtiana se

concebermos a atitude de resistência como “sintoni-

zada”, isto é, dialogar com sua época também é ofere-

cer uma postura revolucionária em relação a ela. A

revolução, um dos Rs do espetáculo, era, portanto, a

motivação ideológica do espetáculo, e também o elo

de ligação entre Einstein, Kinas e Brecht.

Esta motivação se manifestava nas opções esté-

ticas da encenação. Além das apropriações, da mul-

tiplicidade de vozes e do aspecto fragmentado, R

não apresentava conflito, enredo dramático ou per-

sonagens. Não havia qualquer espectro de constru-

ção de identidade por parte dos atores, as figuras

em cena eram desprovidas de psicologia. O trabalho

A grossa parede entre a arte e a ciência vacila KANdINSKy

5 KNAPP, Alain e BARBAUd, Jean-christophe. Arte e ciência, olhares cruzados. in KINAS, Fernando. R. Programa do espetáculo6 KINAS, Fernando. Entrevista realizada em 09 de junho de 1998. in MoRAES, Márcia. Aspectos da Pós-modernidade em “R”, de Fernando Kinas. Monografia do curso de Especialização em Fundamentos da Arte-Educação, Faculdade de Artes do Paraná, curitiba, 2000, p. 79.

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57

7 KINAS, Fernando. R. Texto dramatúrgico não publicado.8 Entrevista com Fernando Kinas realizada em 14 de abril de 2003, disponível em SALvATTI, Fabio. A plagiocombinação como estratégia dramatúrgica na cibercultura. dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teatro da UdESc, Florianópolis, 2004.9 KINAS in MoRAES, 2000. p. 81.

de interpretação dos atores se aproximava ao de um

narrador ou ao de um conferencista que expunha

sua teoria sem que, contudo, implicações dramáti-

cas viessem à tona.

Tudo isso estava sempre associado ao humor,

muita música (desde o rock ‘n roll dos Rolling Stones,

passando por Beethoven, Chico Science, Pena Branca

e Xavantinho, Adoniran Barbosa, Penguin Café Or-

chestra, Moreira da Silva, até o hino da Internacional

Socialista) e coreografias graciosas, visivelmente

compostas por e para não-bailarinos. A manipulação

de objetos em cena também contribuíam para o ar

alegre do espetáculo. Um bastão de madeira virava o

trem do exemplo einsteiniano, um aspirador de pó

era o responsável por “criar o vácuo” necessário para

a validade do experimento, uma máquina de lavar

roupa “dançava” quando era comentada a necessidade

de uma dimensão mais humana da tecnologia, um

pinguim de pelúcia era a massa que ficava dentro do

quarto usado como exemplo para a explanação da te-

oria geral da relatividade, uma flor de plástico “dança-

va” ao som da voz dos atores.

Esse tom (relativamente) leve, quase jocoso, que a

encenação conseguia imprimir mesmo tendo como

tema central uma reflexão teórica profunda, estava de

acordo com a intenção de Kinas de não reproduzir a

apatia e a conivência que ele detectava em parte da

produção teatral brasileira. Para ele, “o teatro tem que

ser pretensioso, tem que pretender coisas”9. Híbrido

por natureza, revolucionário por opção, R era um es-

petáculo que fugia à tentativa de enquadramento.

“Espetáculo de teatro, obra multimídia, monstro dis-

forme, aula de física? Quem saberá a resposta? Quem

atira a primeira pedra?”.

Cena da peça R, Kiwi Companhia de Teatro, 1997

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Quando a arte e a cultura se submetem à forma-

mercadoria, produção, gestão e fruição de bens simbó-

licos incorporam-se progressivamente à sociabilidade

do capital. Toma forma, então, um debate que envolve

dois grandes campos. De um lado, discute-se a especi-

ficidade da arte e da cultura, suas características, a re-

lação que estabelecem com o poder político e as suas

eventuais capacidades críticas, ou, ao contrário, o pa-

pel de amortecedoras das insatisfações sociais. De ou-

tro lado, discute-se os sistemas de subvenção, apoio e

financiamento da arte e da cultura, analisando a parte

que caberia à iniciativa privada, à sociedade civil orga-

nizada e ao Estado, avaliando os riscos tanto da coop-

tação e do dirigismo, quanto da omissão.

A reflexão consequente deveria associar estes

dois grandes conjuntos de questões: a dimensão po-

lítica, social, antropológica e filosófica da cultura e a

economia da cultura. Debater esta última não signi-

fica, bem-entendido, confundir arte e cultura com

business. A discussão subjacente supõe, justamente,

refletir criticamente sobre os significados da inte-

gração da arte e da cultura no modelo mercantil, in-

vestigando as funções que lhe caberiam dadas as

determinações habituais do capital, como a busca

do lucro. A cultura, nesta perspectiva crítica, teria

um papel decisivo no processo civilizatório e de

emancipação humana. Civilização compreendida

como desfetichização, desenvolvimento da capaci-

dade simbólica, ampliação das liberdades e criação

Midas e a política cultural

de espaços democráticos. Portanto, é razoável admi-

tir a existência de um movimento dialético entre

produção material da vida e as chamadas obras do

espírito. Em outras palavras, o debate sobre as for-

mas assumidas pela cultura e pela arte se dá em um

ambiente concreto (histórico) e complexo. A abor-

dagem, neste caso, deve ser não idealista (nela não

cabe a arte pela arte, a finalidade sem fim e suas deri-

vações) e não fatalista (refutando, por exemplo, as

armadilhas do pensamento único). A dimensão cul-

tural, sob esta ótica, só pode ser compreendida a

partir das relações de produção e das forças produ-

tivas em jogo de mão dupla, dialético.

No Brasil, em sintonia com movimentações inter-

nacionais, a onda neoliberal dos anos 1980 e 90 pro-

duziu um modelo de apoio à criação artística e cultural

que, em linhas gerais, continua em vigor. Ajudado pela

ressaca do arbítrio civil-militar dos anos da ditadura,

o modelo neoliberal brasileiro estimulou o recuo do

Estado na formulação e implementação de políticas

culturais. Há quem diga, abusando da metáfora fute-

bolística, que o governou “passou a bola” para a socie-

dade. Seria, segundo esta lógica, uma tentativa de evi-

tar o dirigismo autoritário que caracterizou os anos de

chumbo. O argumento é falacioso. Primeiro, porque o

poder decisório no âmbito da arte e da cultura não se

deslocou para a sociedade, mas para uma pequena par-

te dela, isto é, para grandes empresas e seus departa-

mentos de marketing, que passaram a definir muito do

» por Fernando KinasDiretor e pesquisador teatral,

doutor em teatro pela Sorbonne Nouvelle

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60

políticacultural

que é produzido culturalmente no país. Em segundo

lugar, é preciso lembrar que a “mãe” das leis baseadas

em renúncia fiscal, implementada em 1986, é obra do

governo Sarney, personagem em nada hostil ao regi-

me militar. Em resumo, as leis baseadas em renúncia

fiscal representam a continuidade da política cultural

da ditadura e das opções políticas, de classe, tomadas

pelas elites de ontem e de hoje. Esta situação confirma

o processo de modernização conservadora do país,

que renova suas formas mantendo intacto seu caráter.

A chamada Lei Rouanet, aprovada em 1991, é a joia

desta coroa. Batizada com o nome do Secretário de

Cultura do governo Collor, ela expressa não apenas o

sucateamento da estrutura administrativa, mas a pró-

pria extinção do Ministério da Cultura, transformado

então em Secretaria. O mecanismo da Lei, eficiente em

transferir competências e recursos do Estado para a

iniciativa privada, aprimora a política autoritária ante-

rior, adaptando-a ao novo momento da exploração ca-

pitalista e à readequação do consenso em curso, neces-

sária para a manutenção da hegemonia consolidada

manu militari. 1964 é, certamente, o ano que não termi-

nou. No caso da censura houve, é verdade, um desloca-

mento: da proibição política direta e visível, a censura

instalou-se prioritariamene na esfera econômica. Não

se trata mais de mutilar ou proibir a veiculação de tal

peça de teatro, filme ou música, mas de, simplesmente,

impedir a criação pela mais elementar falta de recursos.

Não se pode afirmar, no entanto, que o Estado, a

partir de redemocratização, tenha se omitido comple-

tamente da formulação de políticas culturais. Este

ponto tem se prestado a confusões. A ciência política

crítica ensina que o Estado não foi criado para resolver

conflitos (entre capital e trabalho, interesses particu-

lares e sociais, burguesia industrial e agrária), antes, ele

age para garantir a reprodução do sistema. Por isso, en-

quanto “capitalista coletivo ideal” (definição de Engels

para Estado), o horizonte da ação política de esquerda

deveria ser sua supressão. Isto significa dizer que os

mecanismos de financiamento às artes e à cultura de-

Mesa do seminário A exceção e a regra, projeto Morro como um país, 2012. Participantes: José Arbex Jr., Edson Teles, Paulo Arantes

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conferências e consultas públicas e o aumento relati-

vo da verba do MinC), a orientação da macropolítica

cultural não deixa dúvida: assim como a política ge-

ral, a ação cultural está pautada pelo pragmatismo e

pela realpolitik. O discurso foi parcialmente renova-

do, mas de forma oblíqua ou direta, o ideário liberal

está presente, com seu universalismo de pacotilha,

suas técnicas de management e seu elogio da compe-

tição. Os acordos por cima continuam sendo feitos,

tão caros à tradição brasileira, da independência de

Portugal à Nova República, ou, se preferirmos, das

capitanias hereditárias à Comissão Nacional da Ver-

dade. Assim, é garantido o padrão médio de explora-

ção que fez do Brasil a sexta ou sétima economia do

mundo e uma das mais desiguais do planeta.

Reconhecer este papel desempenhado pelos Esta-

dos nacionais modernos não deve, entretanto, impe-

dir a disputa dos seus rumos. O erro estaria em ali-

mentar demasiadas ilusões sobre o gerenciamento

democrático do Estado. Sob certo ponto de vista, a

máquina estatal sempre foi eficiente, é uma tritura-

dora de projetos alternativos… O tema tem atraído a

atenção de alguns dos nossos melhores analistas po-

líticos, especialmente após a consolidação do lulis-

mo. A “grande política”, aquela que se ocupa das

questões de fundo, induz os que fazem a “política

pequena” a acreditarem que estão fazendo a “grande

política”. Quem atua no varejo não percebe o fato,

imaginando dominar as regras do jogo. Outros perce-

bem o engodo, vislumbrando nas suas próprias práti-

cas um oportunismo indesejável, e, nos melhores ca-

sos, constrangem-se com a defesa hoje daquilo que

vem ser vistos como meios e não como fins. A trans-

formação das lutas por políticas públicas de cultura

em causa última, ou única, equivale a limitar grave-

mente o alcance da intervenção. Não se trata de maxi-

mizar reivindicações com a intenção de criar impas-

ses, desconhecendo o papel do acúmulo de forças ou

da necessária luta pela sobrevivência material, nem,

por outro lado, de circunscrever os objetivos da ação

política à mera gestão do capital e à utopia possível.

Desta análise sumária do Estado, deduz-se que

ele tem um papel definido na esfera da cultura: orga-

nizar e legitimar socialmente a transferência de com-

petências (planejamento estratégico e poder decisó-

rio, por exemplo) e recursos (verbas públicas) da

esfera comum para a esfera privada, preferencialmen-

te para a do grande capital. Rigorosamente falando, é

inexato exigir uma política de Estado para a cultura

argumentando que ela não existe. Tanto a Lei Roua-

net como outras saídas do mesmo molde constituem

uma autêntica política de Estado, e não apenas de go-

verno. Mas uma política de Estado que prevê, e exige,

a subalternidade deste mesmo Estado frente aos in-

teresses privados. É por isso, aliás, que a passagem de

bastão entre tucanos e petistas não provocou altera-

ção estrutural na área. Mudaram os governos, mas a

orientação geral continuou a mesma. Os últimos dez

anos da administração federal não foram capazes de

alterar as regras básicas de funcionamento da política

cultural, apesar de reorientações pontuais e mesmo

da introdução de algumas propostas formuladas fora

da matriz liberal. Uma das razões para este fato talvez

seja a aproximação das concepções de arte e cultura

assumidas pelos principais atores políticos, repre-

sentados pelo bloco PSDB/DEM, de um lado, e pelos

petistas e sua base aliada, por outro. A anulação das

diferenças tem lugar na esfera política mais geral, só

então incidindo no âmbito da política cultural. Se a

contestação desta análise pelo bloco governista atual

faz algum sentido (considerando a criação dos Pontos

de Cultura, as tentativas de desconcentração regional

dos recursos, o reconhecimento de setores margina-

lizados – como quilombolas, indígenas e periféricos

–, uma certa democratização da gestão através de

Leis baseadas em renúncia fiscal representam a continuidade das opções políticas tomadas pelas elites de ontem e de hoje

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políticacultural

negavam ontem. No entanto, em nome da política do

possível, da governabilidade, do senso de responsa-

bilidade, da “correlação de forças” (já nos anos 1970

Augusto Boal ironizava em Murro em ponta de faca

esta desculpa para a moderação e a inação), enfim, em

nome do que consideram razoável, setores antes crí-

ticos questionam a urgência da transformação, de-

pois a viabilidade da transformação, até finalmente

se convencerem de que ela não é mais possível. A

política do consenso, da conciliação de classes, do ar-

ranjo, da administração gerencial, toma o lugar da

crítica sistêmica e radical. O conflito e a contradição,

de motores da história, passam a ser evitados a qual-

quer preço. O vocabulário empregado por estes seto-

res falam por si: fomento ao mercado, empreendedo-

rismo criativo, novos modelos de negócios, ativos

culturais, capitalismo social, nova indústria cultural.

A situação política atual não é exatamente inédita

(basta lembrar da social-democracia alemã de Frie-

drich Ebert em 1918-19), e os exemplos do bloco go-

vernista atual tendem a confirmar a máxima sobre a

repetição da história como farsa: aliança ou conces-

são ao agronegócio, inclusive no episódio de aprova-

ção do novo Código Florestal; abandono da reforma

agrária; manutenção da política econômica liberal

com pitadas de distributivismo; descaso com a edu-

cação e a saúde; cooptação ou tentativa de desmobi-

lização dos movimentos sociais; acomodação diante

do oligopólio das comunicações; recuo na política de

direitos autorais; persistência do fisiologismo e do

patrimonialismo; incremento da política de grandes

eventos; bloqueio da participação popular na formu-

lação, gestão e fiscalização das ações de governo etc.

A degeneração programática deste campo político e a

falência do projeto de sociedade tal como tinha sido

construído na transição democrática, são evidentes.

A política do travestimento (que produziu a frase

“esqueçam o que eu escrevi”, atribuída a Fernando

Henrique Cardoso), também tem lugar no âmbito da

cultura. Por esta ótica, que mistura gestão tecnocráti-

ca, submissão ao capital e discurso falsamente crítico,

é muito melhor agir na superfície, propondo um edital

aqui e um programa acolá, do que construir uma nova

política cultural, capaz de alterar o modelo global (de-

finições, financiamento e gestão). Mesmo o Plano Na-

cional de Cultura (aprovado em 2010), aparentemente

ambicioso, corre o sério risco da insignificância, dada

a penúria de recursos, as metas irreais, a falta de mo-

bilização popular e a omissão em indicar claramente

outro rumo para a política cultural. Estamos neste pé.

Quem faz a “grande política” sabe o que está em jogo,

mas convence os incautos de que não há alternativas.

Enquanto “governos técnicos” tomaram posse no

velho mundo – atestando a falência da política de di-

reita clássica em administrar a barbárie (economistas

do Goldman Sachs se ocuparam diretamente, como

Mario Monti na Itália e Mario Draghi no Banco Cen-

tral Europeu) –, por aqui se passa algo parecido. Quem

decide o orçamento da cultura é o Ministério da Fa-

zenda e o Banco Central. A flagrante incompetência

interna do MinC (amplificada por querelas paroquiais)

só não é mais dramática que a subserviência deste mi-

nistério exangue – cerca de 0,06% do orçamento da

União, segundo dados da Auditoria Cidadã da Dívida

– diante da macropolítica econômica, que inclui supe-

rávits necessários ao pagamento do serviço da dívida.

Faltam recursos para a cultura, certamente (em-

bora o MinC, ironicamente, tenha alguma dificuldade

em executar seu magro orçamento), mas também, e

sobretudo, falta um novo projeto. Com a ausência

surgem os paliativos. O projeto de reforma da Lei

Rouanet, conhecido como Procultura, é um destes

remendos. Apesar de discursos mencionando um

“novo paradigma”, o que se constata é a manutenção

do mecanismo de renúncia fiscal (inclusive com o

percentual de 100% de desconto, previsto não ape-

nas no caso de doações, mas em outras modalidades

A política do consenso e da conciliação de classes toma o lugar da crítica sistêmica e radical

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ação propõem a criação de uma Loteria Cultural e a

destinação de 20% dos recursos destinados à renún-

cia fiscal para o FNC. Com esta vinculação, o governo

foge da responsabilidade com o fomento direto à cul-

tura e busca neutralizar a crítica ao mecanismo obs-

ceno da renúncia fiscal. É mais uma tentativa de com-

prar anuência, mascarando conflitos.

Outro risco a evitar é o jogo diversionista de produ-

tores comerciais que comparam os valores da renúncia

fiscal na indústria e no comércio com os da cultura. É

necessário fazer a crítica do mecanismo da renúncia

(que transfere riqueza criada socialmente para deter-

minados setores privados) e não lamentar ou aplaudir

valores e percentuais específicos. O erro não estaria na

insuficiente renúncia fiscal relativa à cultura, como ale-

gam estes produtores, mas nos valores escandalosos

transferidos através deste mecanismo (como no caso

da indústria automobilística, para mencionar apenas

um exemplo). É pura ficção o argumento de que os re-

cursos envolvidos nas diferentes modalidades de re-

do chamado “mecenato”). E não é tudo. Convive com

a renúncia um fundo de capitalização (Ficart) cuja fi-

nalidade precípua é o lucro e não o fortalecimento da

cultura. Há ainda um incentivo duvidoso ao consumo

de produtos majoritariamente oriundos da indústria

cultural (o Vale-cultura, desmembrado do projeto

original e aprovado em lei própria) e diversos dispo-

sitivos que não garantem a transparência e a demo-

cratização na utilização dos recursos (no Projeto de

Lei é recorrente a expressão “a ser regulamentado”),

como aqueles destinados aos Programas Setoriais e

ao Fundo Nacional de Cultura, que devem funcionar

“preferencialmente” através de editais públicos e, no

caso do Fundo Nacional de Cultura (FNC), admitem

empréstimos e investimentos em fundos privados. “A

cultura é um bom negócio”, já afirmava uma publica-

ção do MinC em 1995, época do ministro Francisco

Weffort, fundador do PT, que na ocasião já havia

pousado no ninho tucano. Em relação à dotação orça-

mentária, o poder executivo e parlamentares da situ-

fachada da funarte, em são Paulo, durante a ocupação organizada pelo Movimento de Trabalhadores da Cultura, 2011

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políticacultural

núncia fi scal são privados, quando é evidente que são

públicos: dinheiro oriundo de imposto devido que é

renunciado pelo governo. O caso é grave, já que as defi -

nições sobre a renúncia fi scal da cultura – quem rece-

be, como e quanto – obedecem atualmente a critérios

privados e comerciais, depois de uma aprovação essen-

cialmente técnica do Ministério da Cultura. A sucessão

de escândalos mostra as insufi ciências e distorções do

mecanismo atual, que serão, na melhor das hipóteses,

disfarçadas com as alterações previstas no Procultura.

As perspectivas são sombrias, uma vez que a discussão

não é mais sequer sobre a economia da cultura, mas,

simplesmente, sobre a cultura como economia.

Teme-se (o sujeito oculto da frase esconde interes-

ses e personagens que preferem a discrição e o anoni-

mato) que a implementação de outro modelo de gestão

permita ao Estado o controle da produção e da gestão

cultural. Mas este mesmo sujeito oculto não mencio-

na o fato óbvio de que a iniciativa privada, desde que

utilize dinheiro próprio, não estaria impedida de in-

vestir ou doar recursos para eventos e ações culturais.

A ausência da renúncia, ou a regulamentação em ba-

ses aceitáveis (com percentuais de 20% de desconto

do imposto devido, por exemplo), não cerceariam, em

hipótese alguma, o investimento privado direto. Se há

dirigismo, hoje ele é do mercado. Um banco e suas em-

presas associadas podem investir, através da Lei Roua-

net, em um centro cultural criado por este mesmo ban-

co. O dinheiro investido no projeto, que deveria ser

integralmente pago na forma de imposto, vai alimen-

tar, graças à renúncia fi scal, o empreendimento cultu-

ral do próprio banco, que lucra em imagem e comuni-

cação sem gastar um tostão. A este absurdo, juntam-se

outros efeitos perversos do mecanismo: do proseli-

tismo à corrupção, passando por ingressos proibiti-

vos, concentração regional dos recursos, participação

de empresas estatais – que usam, por intermédio dos

seus departamentos de marketing e nem sempre atra-

vés de seleções públicas, dinheiro de imposto devido

ao Estado para o fi nanciamento estatal de atividades

Manifestação do Movimento de Trabalhadores da Cultura em frente à funarte, são Paulo, 2011

políticacultural

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culturais, função que caberia ao MinC –, invenção do

“captador de recursos” etc. Não é estranho, portanto,

que consultores e diretores de marketing de grandes

instituições fi nanceiras defendam uma política cultu-

ral baseada em mais verbas para o MinC; aumento de

recursos para o Fundo Nacional de Cultura e, sobretu-

do, não diminuição dos valores do mecenato (leia-se:

renúncia fi scal). Mantido o mecanismo do mecenato

(sic), estes profi ssionais das fi nanças e da especulação

não se furtam em posar como defensores da função

social da cultura, da arte pública e da democratização

do acesso. A dissimulação, uma das componentes

desta “hegemonia às avessas” discutida pelo sociólogo

Chico de Oliveira, nunca foi tão escancarada.

O rei Midas, como se sabe, transformava em ouro

tudo o que tocava, o que o impedia de se alimentar. A

generalização da mercantilização atualiza este antigo

mito. Mesmo projetos aparentemente afastados da

mão pesada do capital, como o dos Centros de Artes

e Esportes Unifi cados (contorção para manter a sigla

CEU, marca registrada da administração Marta Supli-

cy em São Paulo), proposto pelo Ministério da Cultu-

ra, submete-se às regras da economia criativa e da

geração de renda, transformando-se em subprodutos

dos novos modelos de negócios, tão caros ao business

cultural em tempos de entretenimento globalizado.

As iniciativas do MinC não conseguem escapar a este

Consenso de Washington em versão cultural. O im-

perativo da viabilidade comercial e da sustentabilida-

de no mercado, dentro ou fora do eixo, são a regra de

ouro. Empacota-se tudo em boas intenções (que lo-

tam o inferno), alguma maquiagem, distribuição de

migalhas e uma boa dose de realismo, evitando atra-

palhar a rentabilidade do capital, como se constata

nas parcerias público-privadas e nas privatizações

diretas, indiretas ou disfarçadas (organizações so-

ciais, oscip’s, fundações e terceirizações).

O capitalismo cultural que determinados setores

sociais aparentemente queriam criar com a Lei Roua-

net é, portanto, um duplo engano. À imensa maioria

das empresas só interessa um capitalismo sem risco.

A elas interessa o capitalismo garantido pelo Estado e

turbinado com dinheiro público, legal e/ou ilegal. E se

eventualmente o modelo funcionasse para estimular

um mercado cultural embrionário, ele seria funcional

à expropriação da produção cultural e dos seus resulta-

dos pelos donos habituais do poder, reforçando o cami-

nho de mão única, orientado pelas necessidades e pela

lógica da indústria cultural e da organização corporativa

da cultura. A Lei Rouanet não pretendeu, seriamente,

criar um mercado de arte e cultura no país. Nosso atá-

vico patrimonialismo falou mais alto. Evidentemente,

não seria este mercado que resolveria a situação de

quase indigência a qual o setor cultural está submeti-

do. O que fez a “Lady Rouanet” (personagem criada

pelo movimento de teatro de grupo paulistano), foi

transferir riqueza e poder decisório sobre os rumos

de parte signifi cativa da produção simbólica para o se-

tor privado, além de precarizar até o insuportável o

exercício das práticas artísticas e culturais no país,

submetendo-as sem apelo às injunções e inconstân-

cias típicas deste modelo de fi nanciamento e gestão.

Uma nova e consequente política cultural não pode

se apoiar em uma ou outra formulação legal, por mais

criteriosa e socialmente justa que seja. Ela não pode se

resumir ao debate sobre leis, embora não se possa ne-

gligenciá-lo. É preciso um conjunto amplo de iniciati-

vas, amparado por defi nições políticas claras (dinheiro

público gerido de forma pública é uma delas) e recursos

à altura dos problemas e das necessidades atuais (a Pro-

posta de Emenda Constitucional 150, que prevê a apli-

cação de 2% do orçamento federal, 1,5% dos estados

e 1% dos municípios em cultura, é uma medida neste

sentido). As ações governamentais atuais, e o Procul-

tura em particular, não apenas são incapazes de forne-

cer as bases desta outra política, como podem compro-

meter a sua construção durante os próximos anos.

Uma nova e consequente política cultural não pode se resumir ao debate sobre leis

P.S.: Uma versão anterior deste texto foi publicada no sítio passapalavra.info, em maio de 2012.

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aquiagora

Grafite no Centro Clandestino de Detenção El Olimpo, Buenos Aires, 2012

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67

» por Edson TelesProfessor de Filosofia Política na Universidade

Federal de São Paulo (Unifesp)

As democracias nascidas ou reconstruídas a par-

tir da segunda metade do século XX foram herdeiras

de regimes autoritários ou totalitários. Tanto na Eu-

ropa após a Segunda Guerra e a experiência dos cam-

pos de concentração, quanto na América Latina em

seguida às ditaduras militares, passando pelas tenta-

tivas de elaboração de regimes democráticos na Áfri-

ca e na Ásia, é marcante a presença de um discurso1

preocupado com o passado e cuja promessa é a de

desfazer as injustiças sofridas anteriormente.

As experiências de regimes violentos e represso-

res deu lugar, em princípio, a uma “justiça dos vence-

dores”, saída que caracterizou os processos judiciais e

administrativos do pós Guerra na Europa, frente aos

atos de ocupação e aos governos colaboracionistas,

bem como, em certa medida, no Leste Europeu du-

rante os anos 90. Nestes últimos, a severidade inicial

dos processos e expurgos foram logo substituídos

por atos de anistia e clemência, ocultando e silen-

ciando as novas democracias sobre o alcance e a es-

trutura da escala repressiva instituída. Na África, se

destacou a criação da Comissão Verdade e Reconci-

liação, sob coordenação do bispo Desmond Tutu, a

qual apostou nas narrativas abertas e publicizadas

das vítimas e dos criminosos para estabelecer um

Enquanto isso, no Brasil...

as ambiguidades da justiça de transição

1 Há uma determinada força no uso público dos discursos que se relaciona direta-mente com a ordem das leis e das instituições, na medida em que os sujeitos que os pronunciam não têm necessariamente domínio sobre suas realidades ou dura-ções, nem mesmo podem dizer que lhes pertencem. Assim, a normatização exerce a função de conduzir os usos que se fazem deste mecanismo presente nas relações de poder. Pressupomos que a produção do discurso sofre o controle e a seleção de procedimentos que visam assegurar as implicações de seus usos e prevalecer sobre sua possível ocorrência contingencial. Mais do que denotar uma tradução das rela-ções sociais de dominação e resistência, os discursos são eles mesmos aquilo “pelo que se luta, o poder pelo qual queremos nos apoderar” (Foucault: 1971, 10).

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aquiagora

novo pacto social fundante do regime democrático.

Em troca, os perpetradores de crimes do apartheid

que confessaram seus delitos foram anistiados2. Na

América Latina, a lógica na transição para os novos

governos democráticos foi a da aplicação das leis de

anistia fundamentadas na ideia de que houve nesses

países o conflito entre “dois demônios”: por um lado,

a violência dos militares e seus aliados via aparato de

repressão estatal, do outro lado, a ação “terrorista”

dos grupos revolucionários e de resistência. Diante

desta leitura, os processos de transição neste conti-

nente adotaram o caminho da impunidade dos crimi-

nosos dos regimes ditatoriais, sob a legitimação sim-

bólica de que se anistiou os dois lados, promovendo,

com isto, a reconciliação de todos os envolvidos.

A escolha mais comum dos novos governos de-

mocráticos sucessores de regimes autoritários foi a

de não incentivar os atos de justiça com relação aos

seus predecessores. Na maioria dos países, como vi-

mos, adotou-se leis de anistia ou alguma graça presi-

dencial, em geral reforçadas pelas instituições do

novo regime. Outros preferiram mecanismos mais

específicos como as reparações pecuniárias ou sim-

bólicas, reconhecendo a condição das vítimas; ou a

criação das comissões de verdade e reconciliação, en-

carregadas de produzirem relatórios sobre a “verda-

de” acerca dos crimes ocorridos.

No hemisfério sul do planeta ocorreram as prin-

cipais inovações nos processos de transição. Chile,

Argentina, Uruguai e África do Sul, de modos distin-

tos, se debruçaram sobre seus passados de violência.

Algumas experiências de políticas de justiça foram

praticadas, especialmente nos países sul americanos.

Destaque para o caso argentino que, após a invalida-

ção das leis de anistia – a Lei do Punto Final e a da

Obediencia Debida – durante o governo de Nestor

Kirchner em meados da década passada, vem reali-

zando um volume considerável de procedimentos ju-

rídicos em relação aos criminosos da ditadura. Ainda

assim, podemos dizer que nenhum desses países tes-

temunhou uma prática sistemática de julgamento

dos crimes do passado; as iniciativas em curso limi-

taram-se a uma pequena parcela dos responsáveis.

Por vezes, as leis de anistia impediram os atos de jus-

tiça, por outras, a ideia de que as democracias ainda

não estavam consolidadas e de que haveria a possibi-

lidade de um novo golpe de estado em caso de apura-

ção dos crimes rondaram como fantasmas.

O fim das ditaduras na América do Sul e a desin-

tegração do apartheid na África do Sul, nos anos 80 e

90, juntamente com o nascimento de suas novas de-

mocracias, resultaram num dos mais notáveis investi-

mentos em direitos humanos desde a Declaração

Universal dos Direitos dos Homens (1948) e suas

consequências. Nestes lugares foi experimentada a

criação das comissões da verdade ou de reconciliação,

instituições do Estado, mas com certa autonomia, que

não se configuram nem como ordenamento jurídico,

nem meramente um órgão do governo. No Chile e na

África do Sul, entre outros casos, tiveram grande des-

taque a atuação de suas comissões de verdade3, as

quais promoveram, segundo alguns analistas, uma ca-

tarse coletiva nas novas formas de relações políticas4.

Tais políticas de justiça ou de memória tiveram

como característica maior, ao mesmo passo em que

centram seu discurso no direito e na dignidade das

vítimas, o fato de não realizarem plenamente o aces-

so ao sistema penal dos novos estados de direito e a

negociação, em condições pouco favoráveis, das re-

formas nas instituições herdadas dos regimes ante-

riores. Neste cenário, emerge um conceito que se

convencionou designar por “justiça de transição”.

Refere-se, em síntese, aos desafios da recuperação

de direitos e da instauração de regimes democráticos

em momentos de excepcionalidade política nos

quais as instituições e procedimentos do novo regi-

me ainda não foram consolidados.

Com o discurso e as políticas relacionadas à jus-

tiça de transição duas características ganham rele-

vância: os direitos das vítimas tomam um lugar de

destaque e aparecem como imperativo de limitação

dos passos das transições; e, no processo de transi-

ção permanecem presentes e atuantes as forças que

no regime anterior promoviam o conflito. Estas duas

medidas visam, segundo o discurso abordado, dimi-

nuir o grau de violência e hostilidades e facilitam as

2 Cf. minha tese de doutorado: Brasil e África do Sul: memória política em democracias com herança autoritária. São Paulo: Filosofia / USP, 2007. Dispo-nível em: www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-10102007-150946/pt-br.php, acessado em abril de 2013.3 Cf. Priscila Hayner. Unspeakable truths.4 “Do lado das vítimas, o benefício é inegável em termos indivisamente terapêuticos, morais e políticos. Famílias que lutaram durante anos para saber

puderam dizer sua dor, exalar seu ódio perante os ofensores e diante de testemunhas. À custa de longas sessões, puderam narrar as sevícias e nomear os criminosos. Nesse sentido, as audiências permitiram verdadeiramente um exercício público do trabalho de memória e de luto, guiado por um proce-

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69

saídas negociadas para as novas democracias. O que

se encontra sob a superfície desta espécie de discur-

so pacifista é a estrutura de um estado de exceção

constante, seja pelo fato da não aplicação do direito

ordinário, demandando, devido às condições especí-

ficas das negociações de transição, um acesso restri-

to ou emergencial para as vítimas, seja pela aceitação

da manutenção no jogo democrático das mesmas

forças que atuaram na construção da estrutura da re-

pressão no antigo regime.

O Brasil é um caso evidente da presença de esta-

dos de exceção no processo de transição, o que viria a

marcar de modo determinante a democracia. O parti-

do do governo militar se dividiu e criou um partido

palatável para entrar na composição do novo governo

civil e até hoje mantém-se presente nos vários go-

vernos constituídos em Brasília. Por outro lado, as

vítimas tiveram acesso aos processos reparatórios,

por meio das leis de indenização dos familiares de

mortos e desaparecidos e a da anistia, com algumas

poucas medidas de reconhecimento de sua condição

(lugares de memória, publicações, discursos etc.),

dimento contraditório apropriado. Ao oferecer um espaço público à queixa e à narrativa dos sofrimentos, a comissão certamente suscitou uma kathar-sis compartilhada” (Ricoeur 2007: 490). Paul Ricoeur chega a esta conclusão a partir da análise do caso sul africano e de sua Comissão Verdade e Reconciliação. Também as experiências similares da América Latina têm sido analisadas sob este ponto de vista e vem ganhando destaque a ideia de produção de um ganho individual e coletivo, sob a forma da experiência de uma compaixão das dores das vítimas em instituições especiais criadas com este fim. Em cada país, houve um grau diferente desta prática, mas os discursos que acompanharam estes eventos compartilham de certo consenso sobre os efeitos de memória e luto desta política.

Os processos de transição na América Latina adotaram o caminho da impunidade dos criminosos dos regimes ditatoriais, sob a legitimação simbólica de que se anistiou os dois lados

Intervenção da Kiwi Companhia de Teatro no ato organizado pela Frente de Esculacho Popular contra Homero César Machado, 2012

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mas não possuem o direito constitucional e dos tra-

tados internacionais de abrir um processo penal ou

de terem garantidos seus direitos à informação sobre

a repressão constante dos arquivos militares.

Como, nas novas democracias, é possível construir

uma narrativa separando os responsáveis pelas viola-

ções aos direitos humanos dos sujeitos engajados na

luta contra as ditaduras se as comissões da verdade

têm sido montadas sob o discurso da reconciliação

entre os dois lados que estiveram em conflito? Em que

momento histórico surgiu o saber, supostamente ver-

dadeiro, sobre o que é uma transição política e como

fazer justiça durante este período? O que significa in-

cluir ao termo “justiça” a qualidade “de transição”?

Estas são algumas questões suscitadas pelo modo

como os novos regimes, na passagem entre os sécu-

los, lidaram com seu legado de violência e autorita-

rismo, controlando, legitimados sob este contexto e

os saberes sobre ele produzidos, as estratégias e táti-

cas da ação política democrática.

justiça de transição

O termo “justiça de transição” é uma referência

discursiva às práticas políticas que delimitam uma

experiência histórica na qual a justiça e as ações de

transformação social adequam-se ao período de ex-

ceção no qual não se está mais nos regimes autoritá-

rios, mas, contudo, ainda não estão consolidadas as

instituições democráticas. Depois de momentos de

violência e terrorismo de Estado, ou de guerra civil,

aceita-se a necessidade de adotar uma série de medi-

das voltadas à retomada do respeito à legalidade e às

relações democráticas, aceitando em caráter emer-

gencial a negociação da plena efetivação destas medi-

das. São as chamadas “transições políticas”, períodos

históricos e contingentes aos quais se procura adap-

tar os ideais de justiça e apuração das violações de

direitos, bem como a reforma das instituições.

A pesquisadora Ruti Teitel montou o conceito de

justiça de transição com base em três momentos his-

tóricos5: o primeiro refere-se ao período posterior à

5 A observação sobre o caráter excepcional desses momentos históricos, bem como a possibilidade de reunir em uma mesma formação discursiva as demandas das vítimas e os bloqueios à justiça nos novos regimes, levou a pesquisadora argentina Ruti Teitel a se utilizar da formulação “justice in times of transition”, em um evento ocorrido em 1992. As primeiras formulações do termo foram publicados em Neil Kritz, Transitional Justice: How Emerging Democracies Reckon with Former Regimes, em 1995.

Instalação com fotos de desaparecidos políticos argentinos, Escola de Mecânica da Armada, Buenos Aires, 2012F

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fere-se ao direito à reparação, seja pecuniária ou sim-

bólica, podendo ser individual ou coletiva. A segunda,

nomeada como direito à memória, configura-se nas

políticas de esclarecimentos dos fatos e de homena-

gem aos perseguidos; além de apurar o funcionamen-

to da estrutura repressiva, há o elogio dos atos de re-

sistência. Nestes dois primeiros aspectos são incluídas

medidas como construção ou definição de lugares de

memória. O terceiro aspecto das medidas da justiça de

transição seria o direito à verdade, efetuado por meio

do acesso às informações dos arquivos da repressão,

das comissões de auxílio do Estado, tais como as co-

missões da verdade. Um quarto aspecto inclui o direi-

to à justiça e consiste na investigação dos fatos e na

responsabilização jurídica dos responsáveis pelas vio-

lações aos direitos humanos. Tal discurso teria de ser

amplo o suficiente para incluir as exigências das víti-

mas e dos familiares de mortos e desaparecidos, bem

como os limites e os bloqueios aos avanços possibili-

tados pelas regras do estado de direito.

Ressalte-se que tais demandas nada mais são do

que um clamor pela igualdade perante a lei do estado

de direito e a aplicação do direito penal, assim como o

reconhecimento da importância de sua luta para a

instalação da democracia. Com o intuito de lidar com

o reclamo das vítimas por justiça e verdade e de evitar,

por outro lado, a ação desestabilizadora de represen-

tantes dos antigos governantes, configurou-se a de-

manda pela elaboração de um discurso que autorizas-

se práticas de governo a gerir este período de exceção

com o objetivo de garantir a legitimidade do novo re-

Segunda Guerra Mundial e à instalação do Tribunal de

Nuremberg, no qual os julgamentos se estruturaram

de modo excepcional e com características internacio-

nais; no segundo momento, o das transições após re-

gimes autoritários na América Latina, África, Ásia e

Leste Europeu, no qual as negociações e tentativas de

atos de justiça são marcados, além de seu aspecto de

exceção, pelas soluções locais e nacionais, sempre

com negociações entre os antigos e os novos atores

políticos; e, no terceiro período, na última década do

século XX, as práticas que levaram ao conceito de jus-

tiça de transição começam a se configurar enquanto

discurso verdadeiro6 acerca do melhor modo de lidar

com as negociações e limites impostos pelo momento

histórico. Nesta última fase, a maior característica é a

consideração de que a exceção contida em seus atos é

normatizada e institucionalizada tornando-se regra

aceita pelo direito internacional e pelos novos gover-

nos democráticos, justamente por levar em conta os

limites impostos pelas negociações das transições.

Os novos regimes democráticos se estabelece-

ram, de modo geral, a partir de negociações e acordos

realizados em condições privadas e sem o consenti-

mento dos novos atores políticos que se organiza-

riam nas condições de liberdade política das demo-

cracias liberais em construção. As transições

sofreram a autorização dos antigos ditadores em

pactos com os novos líderes democráticos para ini-

ciarem os processos de transferência de governos e

de reforma das instituições. Na contingência política

destes períodos, as antigas forças dos regimes auto-

ritários mantinham certo controle da economia, o

monopólio da violência por parte das forças arma-

das, a ameaça no imaginário social de uma perma-

nente possibilidade de golpe de Estado e a conse-

quente desestabilização do novo regime. A escolha

pela estabilização e consolidação da democracia se

impõe em detrimento das exigências das vítimas

pelos seus direitos à verdade e à justiça.

Com poucas variações, o discurso da justiça de

transição inclui quatro ideias centrais. A primeira re-

6 Há uma predisposição, na sociedade moderna, de validar as ações por meio de um discurso considerado verdadeiro. E, para se encontrar de posse do discurso, é preciso se submeter às regras e controles que o determinam, o que limita ou anula o acesso à sua produção e seu uso. Dessa forma, para utilizar um discurso é preciso estar preparado, condicionado, qualificar-se para pronunciá-lo, de modo que se determina um conjunto reduzido dos es-pecialistas autorizados a esta fala. Se, por um lado, os discursos são construções sujeitas a mecanismos de controle, sua difusão e partilha também condicionam aqueles que o escutam, na medida em que se reconhecer em um destes discursos pode definir sua pertença a um determinado coletivo. Mais do que isto, pode ainda legitimar ações que corroborem os valores mobilizados pelo discurso, concedendo certa soberania ao sujeito que dele participa. Para Michel Foucault, a análise do discurso demanda três passos metodológicos: “questionar nossa vontade de verdade; restituir ao discurso seu caráter de acontecimento; suspender, enfim, a soberania do significante”. (Foucault: 1971, 51).

O que significa incluir ao termo “justiça” a qualidade “de transição”?

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72gime, o que incluía o reconhecimento dos compromis-

sos assumidos durante as negociações da transição.

A ação de governo da justiça de transição visa

transformar o que se apresentava como excepcional e

arriscado em algo normal e institucionalizado, de

modos distintos nas várias situações e locais onde se

apresentou, mas com a autorização do ordenamento

jurídico para o acionamento da exceção como norma.

As relações entre o estado de direito e a violência in-

clusa nas ações de exceção ao direito, nas várias expe-

riências das democracias contemporâneas e em espe-

cial no discurso da justiça de transição, parecem

confirmar a tese de Giorgio Agamben de que o estado

de exceção tem se tornado um paradigma de governo.

Quanto mais se consolidam as formas de ação políti-

ca destes regimes, mais ganha relevância determina-

do cálculo de governo no qual a suspensão do orde-

namento é realizada com base na necessidade urgente

de proteção da vida e de promoção da justiça7.

Salientamos que considerar o discurso da justiça

de transição somente como uma plataforma estraté-

gica a partir da qual se lançam as políticas do possí-

vel, de acordo com os graus de estabilização política

ou das relações de forças existentes, não nos permite

compreender a amplitude e o alcance de sua ação. Em

especial, não nos permite diagnosticar a razão pela

qual tanto os movimentos de direitos humanos e de

vítimas, quanto os governos formados pelos novos e

antigos atores (incluindo os aliados da hora oriundos

dos regimes autoritários) empregam tal discurso, ou

parte dele, a depender de qual lugar o proferem.

o caso brasileiro

Passados cerca de 30 anos do fim do regime auto-

ritário poderíamos dizer que a transição para a demo-

cracia continua em andamento? Quando assistimos a

ocorrência de violência institucional, desrespeito aos

direitos do cidadão ou aos direitos humanos, forte

desigualdade social, pouca participação popular nas

decisões, teríamos um sinal de que estruturas herda-

das do período ditatorial permanecem? Ou um mode-

lo de democracia no qual o povo, elemento funda-

mental para as decisões políticas, encontra-se com

presença reduzida nas instâncias de governo?

A ditadura brasileira imprimiu nas relações insti-

tucionais e políticas nacionais uma indefinição entre

o democrático e o autoritário, nas quais o legal e o

ilícito, o legítimo e o injusto, o justo e o abuso de

poder, a segurança e a violência são lançados em uma

zona cinzenta de indistinção. A promessa democráti-

ca de se desfazer das injustiças do passado e de pro-

duzir os remédios necessários para o tratamento do

sofrimento social autorizam tanto as ações sociais de

diminuição da precariedade da vida social, quanto le-

gitimam o acionamento de medidas emergenciais ou

violentas, sem respeito a um modo partilhado de li-

dar com a vida social e política. Há no país um modo

de conjugar lei e anomia que fica mais evidente

quando analisamos como foi encaminhada a transi-

ção entre o regime ditatorial e a democracia.

Uma lógica política que se evidencia neste pro-

cesso, e caracteriza-se como algo comum às demo-

políticacultural

7 Inaugurou-se uma democracia cuja herança das injustiças e carências do passado justifica a adoção de medidas necessárias e terapêuticas. Sob a pro-messa de desfazer os erros cometidos (sempre em outro governo, outro Estado, outra história) e diminuir o sofrimento social autoriza-se o acionamento de medidas emergenciais que dispensam os procedimentos democráticos. Tais medidas, de modo geral, não são ilegais e se encontram dentro do orde-namento. Contudo, deveriam ser autorizadas somente em situações especiais e de alta necessidade. Como se utiliza na atualidade é uma espécie de ato ilícito autorizado pelo lícito. Seguindo a um cálculo de governo sobre o que o estado pode ou autoriza se estabelece a suspensão do ordenamento em favor da construção da governabilidade. Cito Giorgio Agamben sobre o lugar da exceção no contexto democrático: “(…) a partir do momento em que ‘o estado de exceção tornou-se regra’ (Benjamin 1994), ele não só sempre se apresenta muito mais como uma técnica de governo do que como uma me-dida excepcional, mas também deixa aparecer sua natureza de paradigma constitutivo da ordem jurídica” (Agamben: 2004, 18). Trabalhei inicialmente a ideia de uma biopolítica fundamentada no discurso dos direitos humanos, a qual autoriza nas novas democracias o acionamento de estados de exceção. Cf. El discurso de los derechos humanos y la gobernanza del sufrimiento social (2012).

A ditadura brasileira imprimiu nas relações institucionais e políticas nacionais uma indefinição entre o democrático e o autoritário

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73

8 A Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011, que cria a Comissão Nacional da Verdade. “Artigo 1o.: É criada, no âmbito da Casa Civil da Presidência da Re-pública, a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fi-xado no art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.htm, acessado em: abril de 2013.

cracias contemporâneas, são os cálculos de governo.

Segundo esta lógica, há toda uma série de relações de

forças em conflito que não podem ser reguladas pelo

direito. O ordenamento jurídico inclui em suas letras

o que pode ser observado em sua regularidade e repe-

tição. Mas há algo que escapa às séries regulares: a

ação política singular e inovadora. Não podemos pre-

ver o resultado das relações de forças, mobilizações

de opinião pública, vulneráveis aos acontecimentos

aleatórios e modificáveis pelas constantes alterações

na capacidade de luta dos envolvidos. E, justamente, o

modo com que o estado de direito lida com o não re-

gular é através de um cálculo de governo.

Na lógica da governabilidade democrática realiza-

se a conta do que é provável, compondo com as forças

mais poderosas e fixando uma média considerada

possível, além da qual praticamente nada será permi-

tido. No cálculo da política de estado os restos são

computados, mas possuem um valor diferenciado,

ora sendo importante para dar vazão às ações reivin-

dicatórias, mas, por outras vezes, sendo manipulados

para autorizar a medida autoritária com a qual o go-

verno imporá suas decisões. A política do possível

cria um consenso cujo resultado é o bloqueio dos

restos resultantes do cálculo, notadamente os movi-

mentos de resistência às políticas de estado.

A ideia de reconciliação, por vezes rejeitada e em

outras adotada pelos atores políticos, tem lugar junto

ao discurso da justiça de transição. Enquanto parte do

esforço para o esclarecimento dos crimes ocorridos,

os movimentos de vítimas aceitam o uso do termo

reconciliação se colocado a uma prática de apuração

dos fatos. Contudo, na mesma iniciativa, é possível

identificar no discurso da justiça de transição um uso

abusivo da ideia de reconciliação, como uma astúcia

para que as ações de determinada iniciativa ganhem

maior legitimidade. Na lei de criação da atual Comis-

são Nacional da Verdade está escrito que a Comissão

irá “examinar e esclarecer as graves violações de di-

reitos humanos (...) a fim de efetivar o direito à me-

mória e à verdade histórica e promover a reconciliação

nacional” (grifo nosso)8. Ao remeter os trabalhos da

Comissão da Verdade a um processo de reconciliação

não nos parece haver a indicação de que experimen-

Page 74: Contrapelo 01

Cena sobre os “voos da morte”, peça Morro como um país, Kiwi Companhia de Teatro, 2013

tamos um momento histórico de instabilidade para

as instituições democráticas ou o perigo de um golpe

de estado por parte dos militares. A inclusão do ter-

mo “reconciliação” indica uma retórica que alude ao

conflito violento vivido na ditadura, mas que funcio-

na hoje, quase 30 após os fatos, como um bloqueio

visando limitar a possibilidade de a Comissão atuar

em conjunto com os atos de justiça e de esclareci-

mento da responsabilidade penal e política das graves

violações da dignidade humana.

Por que a retórica ligada a uma justiça de transi-

ção, como a dos termos reconciliação e perdão, con-

tinuam a ser utilizadas com mais de 25 anos de esta-

do de direito? Falamos, por exemplo, da Lei de Anistia

de 1979, a qual é lida desde então como ato de não

punição dos envolvidos com a violência do estado di-

tatorial. No ano de sua criação ainda vivíamos sob o

regime militar, com um Congresso cassado pouco

tempo antes, senadores biônicos - que eram indica-

dos pelos generais, sem participarem das eleições - e

com bombas explodindo em bancas que vendiam jor-

nais de oposição. Apesar da leitura de impunidade da

lei advir deste contexto repressivo, o Supremo Tri-

bunal Federal, em 2010, instado a se pronunciar sobre

a validade da lei para torturadores, manteve a leitura

da não punição aos responsáveis por torturas e mor-

tes sob o argumento de que a lei de 1979 seria o pro-

duto de um grande acordo nacional.

Vemos, neste caso emblemático, que aquilo que

permaneceu da ditadura não é mais, ou somente, uma

herança e agora se configura como o produto de um

processo ruminado pelo estado de direito e com deci-

são final do órgão máximo do ordenamento jurídico.

Se visitarmos outros aspectos da herança ditatorial,

veremos como parte deste legado vem se renovando

nas estruturas da atual democracia. A tortura, institu-

cionalizada na ditadura, é praticada largamente no atu-

al sistema penitenciário, nas febens e nas delegacias. A

violência policial vem crescendo sistematicamente,

ampliando seu alvo que, no presente, não é somente o

aquiagora

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Page 75: Contrapelo 01

75

9 Há na ação humana a marca da singularidade do sujeito, a expressão de discursos e de escolhas próprias que impedem a absoluta previsão de seu agir, ou ainda, faz com que não seja possível enquadrá-la por completo em uma regularidade. O aspecto de imprevisibilidade da política é justamente o que não poderá ser incluído no ordenamento. Seria como se houvesse algo do estado de natureza incluído no contrato social que se encontra, ao mesmo tempo, excluído das normas. E a forma como os ordenamentos do estado moderno trataram esse problema lógico-jurídico foi através da autorização ao soberano para que ele decidisse sobre a necessidade de acionar, sempre que algo não previsto nas leis ocorresse, medidas de exceção. A ação é também imprevisível, pois resulta da relação social entre sujeitos singulares e discursos dissonantes e, por mais que se criem modos de estabilizar as profundas diferenças – como, por exemplo, as leis –, não podemos predizer o ato. Será justamente o caráter contingencial da ação humana que não poderá ser in-cluído no ordenamento. Cf. Arendt, A condição humana (1997).

militante, mas também o jovem de periferia, o favela-

do, o negro etc. Não se trata aqui de estabelecer uma

indistinção entre democracia e ditadura. Ao contrário,

sob a superfície do discurso da justiça de transição e

de uma democracia consolidada e exemplar, encon-

tramos formas de agir cuja astúcia é combinarem

meios autoritários, mas parecendo democráticos.

Por que fazer uso do discurso da justiça de transi-

ção se não estamos mais em um período histórico de

exceção, de incerteza entre a opção democrática e uma

ditadura? Primeiro, porque a demanda por justiça, ape-

sar de passados quatro ou cinco décadas dos crimes,

ainda existe. Enquanto houver alguma vítima ou pa-

rente direto das vítimas vivo, certamente haverá pres-

são para que se inicie procedimentos de responsabili-

zação penal e as ações inclusas na justiça de transição

serão mobilizadas pelos movimentos de direitos hu-

manos. De fato, quanto mais adentramos em uma cul-

tura de estado de direito, mais caminhos se abrem para

esta reclamação. Segundo, porque esta formação dis-

cursiva, ao alegar a continuidade do período excepcio-

nal da transição, autoriza a negociação, ou em alguns

casos a negação, da aplicação das leis da Constituição

de 1988 e dos acordos internacionais assinados pelo

Estado brasileiro, os quais afirmam a imprescriptibili-

dade dos crimes de graves violações dos direitos hu-

manos, como a tortura e o desaparecimento forçado. O

caráter excepcional permite práticas de governo de

controle dos processos políticos relacionados às de-

mandas não só das vítimas dos crimes da ditadura,

mas também sobre representações contra práticas au-

toritárias adotadas sob o discurso da necessidade de

proteção da vida e do desenvolvimento do país. Este

mesmo aspecto de exceção participa da legitimação das

ações de criação das comissões da verdade (a nacional

e as tantas outras que vêm sendo criadas em todo o

território nacional e em variadas instituições). O uso

do discurso da justiça de transição participa da caracte-

rística imprevisível da ação política9, imprimindo um

papel importante na invenção de saídas inéditas ou não

permitidas em um contexto de suposta normalidade.

BiBliografia

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do em abril de 2013.

Page 76: Contrapelo 01

Norte, de Natal. Durante longas horas, milhares de

famílias que dependem do dinheiro distribuído pelo

governo federal sentiram na pele, impotentes, uma

situação de extrema angústia, até obterem a compro-

vação de que tudo não passava de um boato.

Num primeiro momento, o governo federal acu-

sou a oposição pela disseminação das informações

falsas. A ministra Maria do Rosário, da Secretaria

Nacional dos Direitos Humanos, atribuiu responsa-

bilidade à “central de notícias da oposição”. Em se-

guida, a presidente Dilma Rousseff afirmou: Ӄ algo

absurdamente desumano, o autor desse boato. Por

isso, além de desumano, ele é criminoso. Por isso,

nós colocamos a Polícia Federal para descobrir a ori-

gem de um boato que tinha por objetivo levar a in-

tranquilidade aos milhões de brasileiros que nos úl-

timos dez anos estão saindo da pobreza extrema”. E

o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, deter-

Se algum evento isolado for capaz de, por si só,

revelar o significado social e político do lulismo, o

“pânico da Bolsa Família” é um forte candidato.

Aconteceu em 18 de maio, no Rio de Janeiro, nas ca-

pitais e em grandes cidades de Alagoas, Bahia, Per-

nambuco, Paraíba, Piauí, Maranhão, Sergipe, Rio

Grande do Norte, Amazonas e Pará: dezenas de mi-

lhares de pessoas, alarmadas por notícias de que o

programa seria extinto, fizeram filas imensas diante

de 110 agências da Caixa Econômica Federal, para sa-

car tudo o que pudessem. Havia muita ansiedade e

desespero por parte daqueles que acreditavam que o

benefício seria extinto. “Valdeniria Ferreira dos San-

tos, que esperava na fila, conta que no domingo (dia

19) a irmã saiu de Parnamirim e percorreu, em vão, as

agências de Emaús, Nova Parnamirim, Via Direta e

Midway. ‘Não tinha dinheiro (no caixa), então ela ia

pra outra tentar sacar’“, relata o jornal Tribuna do

76

aquiagora

Triste crônica DE UM DEsTInO AnUnCIADO

Se eu ganhasse a presidência para fazer o mesmo que o Fernan-

do Henrique Cardoso está fazendo, preferiria que Deus me tirasse a

vida antes. Para não passar vergonha. Porque sabe o que acontece?

Tem muita gente que tem o direito de mentir, o direito de enganar.

Eu não tenho. Há uma coisa que tenho como sagrada:

é não perder o direito de olhar nos olhos de meus companheiros e

de dormir com a consciência tranquila de que a gente é capaz de

cumprir cada palavra que a gente assume. E, quando não as cum-

prir, ter coragem de discutir por que não cumpriu.

(Luiz Inácio Lula da Silva, novembro de 2000,

em entrevista à revista Caros Amigos)

» por José Arbex Jr.Jornalista e professor da PUC-SP

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77

minou à Polícia Federal a investigação da origem do

boato. No final das contas, apurou-se que tudo foi

provocado por um mal entendido gerado pela admi-

nistração da própria Caixa.

A oposição aproveitou o episódio para ganhar o

máximo de pontos possíveis. O líder do PSDB na Câ-

mara, deputado Carlos Sampaio (SP), exigiu à minis-

tra explicações sobre a frase. O senador Aécio Neves

(MG), presidente do PSDB e provável candidato tuca-

no à presidência do Brasil, declarou que ambas, Dil-

ma e Maria, deveriam se retratar publicamente. “Pe-

dir desculpas ao país não é humilhação, é um gesto de

grandeza e responsabilidade. Como seria também

repreender publicamente os membros do governo

que, de forma leviana, atacaram a oposição e os que

mentiram - e mantiveram a mentira - ao país sobre o

episódio”, afirmou o senador, em nota à imprensa.

O “pânico da Bolsa Família”, em resumo, anun-

ciou-se como tragédia e terminou como farsa. A

principal vítima, mais uma vez, foram as famílias de

trabalhadores e pobres brasileiros expostas ao jogo de

poder entre lídimos representantes do poder público.

Como consequência de um equívoco administrativo,

o episódio revelou a natureza do programa Bolsa Fa-

mília aos olhos de toda a nação como aquilo que ela

realmente é: uma mera concessão do governo, que

pode ser retirada a qualquer momento, bastando para

isso a canetada de um burocrata. E também um pode-

rosíssimo artifício eleitoral cobiçado por uma oposi-

ção espúria, cujo porta-voz fala em “grandeza” e “res-

ponsabilidade” com a mesma candura com que

Lucrécia Bórgia recebia seus amantes na alcova.

A isso se reduz, portanto, a principal medida de

justiça social arquitetada pelo lulismo, de quem a pre-

sidente Dilma Rousseff é legítima porta-voz. A situa-

ção de perplexidade e impotência que marcou a reação

das famílias supostamente afetadas demonstra a que

ponto chegou o grau de rebaixamento das consciências.

Não houve protestos generalizados pelo suposto ataque

a um direito social adquirido; não foram exibidos faixas

e cartazes contra o governo federal, nem foram gritadas

palavras de ordem para denunciar o abuso. Houve quei-

xas e lamentos, raiva e frustração, mas nada mais do

que isso. A explicação para tamanha anomia não é nada

complicada. Ao contrário: é bastante óbvia. O rebaixa-

mento da consciência, a passividade face aos desman-

dos do poder público e a desarticulação política não são

apenas um resultado do lulismo, mas são acima de

tudo o seu pressuposto, condição sine qua non para o

seu desenvolvimento e sucesso político e eleitoral.

A essência do que seria o lulismo, cujo programa

está contido na “Carta aos Brasileiros” de junho de

2002, foi claramente explicitada já no discurso de

posse do presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva,

proferido em 1º de janeiro de 2003 no Congresso Na-

cional: de um total de 3.824 palavras, “trabalhadores”

aparece apenas três vezes. Não se trata, aqui, de pre-

ciosismo nem de “firulas” linguísticas. Ao contrário: a

questão é dar o devido peso a um discurso histórico,

feito em momento solene, de grande expectativa na-

cional, pela primeira vez pronunciado por alguém não

oriundo das elites. Em momentos como esses, de sig-

nificado político e simbólico concentrado, cada pala-

vra – e, portanto, cada silêncio e omissão - tem peso

específico, funciona como uma espécie de chave para

a compreensão e ação sobre determinada conjuntura.

Em vivo contraste com o discurso de Lula, a festa

da posse vista nas ruas de Brasília foi majoritaria-

mente protagonizada pelos trabalhadores. Famílias

inteiras viajaram de muito longe para tentar cumpri-

mentar o presidente eleito. Muitos choravam de

emoção, falava-se no “renascimento” do Brasil. Havia

a percepção de que pela primeira vez, em cinco sécu-

los de história, algo realmente novo surgia no hori-

zonte. Apesar disso tudo, e contra as expectativas da

maioria daqueles que o elegeram, Lula fez um discur-

so endereçado às elites. O recado subjacente era: não

haverá ruptura da ordem nem dos contratos (referên-

cia, em particular, aos acordos financeiros impostos

pelo sistema financeiro internacional). Uma das três

vezes em que os trabalhadores deram o ar de sua gra-

ça no pronunciamento do senhor presidente foi

quando ele fez uma breve menção ao partido cons-

truído pelas heróicas greves do ABC, nos final dos

anos 70. Nas outras duas, foi para anunciar a propos-

ta de governo de conciliação nacional:

Page 78: Contrapelo 01

78

aquiagora

citados depois de “empresários”, e na segunda ficam

em último lugar de uma longa lista (empresariado,

partidos políticos, Forças Armadas). Significativa-

mente, não aparece no discurso um único chamado à

mobilização popular para que, naquele contexto vito-

rioso, os movimentos sociais e a base petista se sen-

tissem revitalizados e tomassem as ruas para expor

suas reivindicações. A perspectiva de mobilização é

substituída pela ideia de “colaboração”, “generosidade

do povo”, “fé no amanhã”, “alegria de viver”, “paciên-

cia”, “perseverança” etc. Os trabalhadores e o povo são

assim encorajados a manter uma postura passiva e

resignada, em pleno momento de uma extraordinária

vitória política. No máximo, Lula convocou o povo a

um “mutirão cívico contra a fome” (o então festejado

programa Fome Zero). O discurso inteiro constituiu,

fundamentalmente, um apelo para que as iniciativas

da vida política fossem depositadas integralmente

nas mãos dos chefes de Brasília. Se os trabalhadores

aparecem apenas três vezes (e “povo” dezesseis), “eu”

e “meu governo” repetem-se quase que a cada pará-

grafo. Paciência bovina foi, precisamente, o que se viu

nas filas do Bolsa Família de 18 de maio.

De fato, o governo presidido por Luiz Inácio Lula

da Silva jamais guardou qualquer relação com as as-

pirações daqueles que, com sacrifícios imensos,

construíram o Partido dos Trabalhadores e a Central

Única dos Trabalhadores, ao longo de quase três dé-

cadas de luta. Nenhuma, absolutamente nenhuma

relação. Ao contrário, constituiu uma administração

feita para as elites, com a grande vantagem de não

contar com uma oposição partidária de esquerda. Em

resumo, Lula chefiou um governo que bem poderia

ser o de Fernando Henrique Cardoso, mas sem o en-

trave representado pelo PT e pela CUT.

É claro que ninguém, nem o mais alucinado mili-

tante de esquerda, esperava que Lula iniciasse o seu

mandato com uma conclamação à construção do so-

cialismo. Mas há uma distância imensa entre o ex-

tremo configurado por uma postura esquerdista ir-

responsável e outro, assumido por Lula, de fazer um

discurso essencialmente tão conservador quanto o

de qualquer outro político tradicional. Não há nada

O pacto social será, igualmente, decisivo para via-

bilizar as reformas que a sociedade brasileira reclama

e que eu me comprometi a fazer: a reforma da Previ-

dência, reforma tributária, reforma política e da legis-

lação trabalhista, além da própria reforma agrária.

Esse conjunto de reformas vai impulsionar um novo

ciclo do desenvolvimento nacional.

Instrumento fundamental desse pacto pela mu-

dança será o Conselho Nacional de Desenvolvimento

Econômico e Social que pretendo instalar já a partir de

janeiro, reunindo empresários, trabalhadores e lideran-

ças dos diferentes segmentos da sociedade civil.

Estamos em um momento particularmente propí-

cio para isso. Um momento raro da vida de um povo.

Um momento em que o Presidente da República tem

consigo, ao seu lado, a vontade nacional. O empresa-

riado, os partidos políticos, as Forças Armadas e os

trabalhadores estão unidos. Os homens, as mulheres,

os mais velhos, os mais jovens, estão irmanados em um

mesmo propósito de contribuir para que o país cum-

pra o seu destino histórico de prosperidade e justiça.

Mesmo deixando de lado a discussão sobre o con-

teúdo do pacto proposto – uma aliança de classes de

amplíssimo espectro, simbolizado pela presença de

um empresário na vice-presidência e de um banquei-

ro na presidência do Banco Central -, nota-se que na

primeira vez em que aparecem, os trabalhadores são

Não há como discordar da avaliação genérica de que a falta de unidade das esquerdas sempre contribuiu para as derrotas sofridas pelos trabalhadores

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no seu pronunciamento inaugural que não pudesse

ser dito, por exemplo, por FHC, exceto as referências

ao passado pessoal. Lula só se refere à vontade de

mudança manifestada nas urnas – por ele qualifica-

da como “ansiedades sociais” - ao vestir o uniforme

de bombeiro da luta de classes. Pede, então, que se-

jam mantidas “sob controle”:

Teremos que manter sob controle as nossas mui-

tas e legítimas ansiedades sociais, para que elas pos-

sam ser atendidas no ritmo adequado e no momento

justo; teremos que pisar na estrada com os olhos

abertos e caminhar com os passos pensados, preci-

sos e sólidos, pelo simples motivo de que ninguém

pode colher os frutos antes de plantar as árvores.

Em incontáveis ocasiões subsequentes, o presi-

dente e os seus seguidores do segundo, terceiro, quar-

to e quinto escalão falaram do longo processo de

“aprendizado” e “amadurecimento” graças ao qual

abandonaram o “esquerdismo romântico” da juventu-

de. Não perderam nenhuma oportunidade de de-

monstrar, na prática, que aprenderam bem como fun-

ciona o “mundo de verdade”. Uma dessas ocasiões foi

oferecida em 6 de agosto de 2003 com a morte de

Roberto Marinho – ninguém menos do que o czar do

monopólio da comunicação no Brasil, o chefão da rede

Globo. Lula decretou três de dias de luto, e declarou:

O Brasil perde um homem que passou a vida acre-

ditando no Brasil. Como dizia nosso amigo Carlito

Maia: “Tem gente que vem ao mundo a passeio e tem

gente que vem ao mundo a serviço”. Roberto Marinho

foi um homem que veio ao mundo a serviço. Quase

um século de vida de serviços prestados à comunica-

ção, à educação e ao futuro do Brasil. À família, aos

amigos e aos funcionários das Organizações Globo

rendo as minhas homenagens póstumas.

Um dos pronunciamentos mais importantes de

Lula, do ponto de vista da explicitação ideológica,

aconteceu durante a abertura do 22º Congresso da

Internacional Socialista (IS), realizado em 27 de no-

vembro de 2003, em São Paulo. Na ocasião, Lula ata-

cou o “sectarismo” da esquerda e defendeu o respei-

to à diferença. “Nas derrotas do socialismo, sempre a

desunião ocupou um lugar importante. Nas vitórias,

a unidade foi fundamental”, afirmou diante de 500

pessoas, incluindo 50 chefes de governo e de Estado

e representantes de 150 partidos socialistas, social-

democratas e trabalhistas.

Não há como discordar da avaliação genérica de que

o sectarismo e a falta de unidade das esquerdas sempre

contribuíram para as derrotas sofridas pelos trabalha-

dores. Mas isso não significa que qualquer “união” seja

desejável. E impõe-se saber a que “vitórias do socialis-

mo” Lula se referia, ainda mais no âmbito de uma con-

ferência mundial que reuniu alguns dos principais res-

ponsáveis pela implantação do neoliberalismo na

Europa, como é o caso dos partidos socialistas e traba-

lhistas da Grã-Bretanha (liderado por ninguém menos

que o mentiroso e fanfarrão primeiro-ministro Tony

Blair), França (François Mitterrand, Lionel Jospin), Es-

panha (Felipe González) e Portugal (Mário Soares).

Em nome de uma suposta guerra às “visões ultra-

passadas pela história”, especialmente após a queda do

Muro de Berlim, a IS adotou a perspectiva neoliberal,

com alguns resquícios envergonhados de preocupa-

ções sociais. O “pragmatismo político” – uma espécie

de “socialismo de resultados” – tornou-se o norte da

organização, totalmente divorciada da Internacional

Socialista criada em 14 de julho de 1889, em Paris, du-

rante as celebrações do primeiro centenário da Queda

da Bastilha. Não por acaso, em absoluta sintonia com

o espírito da “terceira via” (embuste ideológico formu-

lado por Blair, uma espécie de “capitalismo com face

humana”), Lula apresentou-se aos delegados da IS

como um advogado do livre comércio... “civilizado”:

Para atingir as metas do milênio, que sintetizam

os ideais de um mundo socialmente mais equilibrado,

necessitamos novas relações internacionais, econô-

micas, comerciais e culturais.

Há economias que pregam o livre comércio, mas

praticam intensamente o protecionismo. Querem tari-

fa zero nas relações comerciais, mas não abrem mão

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aquiagora

de subsídios que hoje alcançam um bilhão de dólares

por dia. Querem liberalizar serviços, investimentos,

propriedade intelectual e compras governamentais,

mas utilizam cotas e medidas antidumping para pro-

teger setores ineficientes de suas economias.

Nas negociações em curso na Organização Mun-

dial do Comércio e naquelas para a formação de uma

Área de Livre Comércio das Américas, temos procu-

rado desenvolver uma agenda positiva. O G-22 for-

mou-se em Cancún para tentar uma saída para os

impasses na Organização Mundial do Comércio.

Em todos esses encontros, defendemos apenas o

interesse nacional, as políticas acordadas no âmbito

do Mercosul e em outros fóruns criados pelos países

em desenvolvimento. Que fique claro, no entanto, que

o Brasil tem governo e quer, junto com outros países,

uma ordem econômica mundial mais justa e equili-

brada, com igualdade de oportunidades para todos.

A completa rendição de Lula ao capitalismo foi,

em certo sentido, muito pior do que a praticada pela

social-democracia europeia. Os dirigentes da IS, pelo

menos, negociaram os termos da rendição, no senti-

do de assegurar algumas conquistas para a sua base

social, especialmente os trabalhadores sindicaliza-

dos, que mantiveram determinados direitos. Lula, ao

contrário, entregou-se sem nada pedir em troca. Não

proferiu uma palavra, uma vírgula sequer contra a fa-

lácia do “livre comércio” em si, mas atacou com vee-

mência o protecionismo, isto é, aqueles que não são

sinceramente liberais. Lula, os economistas do PT e a

ilustre assembleia de socialistas reunida em São Pau-

lo sabiam perfeitamente bem que é uma piada e um

contra-senso sequer imaginar a possibilidade de li-

vre comércio quando os desejos de 7 bilhões de seres

humanos são subordinados aos interesses de qui-

nhentas ou seiscentas corporações.

Os maduros dirigentes socialistas curvaram-se

aos parâmetros do Consenso de Washington, eis

tudo. Da Internacional de 1889 – aquela que insti-

tuiu o 1º de maio como Dia do Trabalhador e dirigiu

grandes jornadas internacionais de luta - mal restava,

um século depois, um palavreado oco, sem qualquer

substância de esquerda. Não por acaso, os socialistas

maduros resolveram fazer o seu congresso no Brasil.

O seu objetivo era cooptar organicamente o PT, que,

segundo o seu então presidente, José Genoíno, havia

sido formalmente convidado e estudava a proposta

(no Brasil, o PDT, então liderado por Leonel Brizola,

era o único integrante da IS).

Os dirigentes da IS sabiam que a adesão do PT,

pelo menos até aquele momento de auge, anterior à

crise de 2005, teria um grande impacto sobre o con-

junto dos movimentos de esquerda da América Lati-

na. Sinalizaria que o partido havia, finalmente, atado

ao seu próprio pescoço as rédeas de uma organização

domesticada, disciplinada e devidamente enquadrada

nos limites do jogo neoliberal. Não poderia haver pior

notícia para os movimentos sociais e organizações

guerrilheiras de toda a América Latina.

O discurso e a prática governista de Lula, adapta-

dos ao mundo globalizado neoliberal, foram transfor-

mados em teoria por professores e intelectuais vin-

culados à ala lulista do PT. Alguns explicaram, mais

ou menos da seguinte forma, o seu agradável conví-

vio com a mesma elite que até o dia anterior comba-

tiam: os tempos mudaram, o muro caiu, o socialismo

real fracassou, o neoliberalismo triunfou. Nesse qua-

dro, “que não fomos nós que escolhemos”, é preciso

assegurar a governabilidade. Não podemos sair por

aí, enfrentando o imperialismo sozinhos, ainda por

cima correndo o risco de fazer o país mergulhar na

guerra civil. Temos que governar com o cérebro, não

com as vísceras. Não podemos ser rancorosos. É pre-

ciso lembrar que Lula conquistou o governo, não o

poder. Alegavam, sobretudo, que era preciso “dar um

tempo” até que a “governabilidade” finalmente alcan-

çada permitisse ao governo implementar programas

sociais e realizar a reforma agrária.

Deixando de lado a semelhança com a argumenta-

ção de FHC quanto ao fato de que “o mundo mudou”,

se é verdade que houve tal mudança, foi para pior.

Não é preciso ser nenhum especialista em política

externa para saber o que significou a presença da gan-

gue de malfeitores liderada por George Bush na Casa

Branca, na primeira década do século, com o ataque ao

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Afeganistão (2001), a invasão do Iraque (2003) e a ar-

ticulação da “guerra ao terror”. Além disso, a queda do

Muro de Berlim não impediu as contínuas rebeliões

na Bolívia, o fortalecimento da república bolivariana

da Venezuela, a continuidade da resistência na Co-

lômbia e em Cuba, a revolta na Argentina, a deposição

de um presidente neoliberal no Equador. E por aí vai,

só para citar os eventos registrados entre 2002 e

2005, no início do primeiro governo Lula.

Claro, ninguém queria a eclosão de uma guerra

civil no Brasil. Mas há quanto tempo o extermínio de

jovens e trabalhadores existe de fato? Dados admiti-

dos pela ONU indicam que morrem, por ano, cerca de

50 mil brasileiros como resultado direto da violência.

Apenas nos onze primeiros meses do governo Lula,

foram assassinados 71 trabalhadores rurais, segundo

a Comissão Pastoral da Terra (aliás, quase o dobro do

que o registrado no mesmo período do ano anterior e

o mais elevado desde 1991, quando ocorreram 54

mortes). Os fazendeiros armam milícias, as elites ur-

banas andam em carros blindados e montam serviços

paramilitares, os pobres se organizam em gangues. A

violência está aí, por todos os lados, e jamais pediu

licença a Lula para existir. O discurso mantido por

“Lulinha paz e amor” em nada contribuiu para dimi-

nuir a violência. O contrário é mais provável: ao frus-

trar as esperanças daqueles que acreditavam que tudo

ia mudar com a chegada de Lula ao Planalto, o gover-

no Lula contribuiu para agravar as tensões sociais.

Para explicar o inexplicável – a capitulação sem

combate frente ao neoliberalismo -, os lulistas passa-

ram a esgrimir o inefável argumento da “governabili-

dade”, em cujo altar todos os princípios deveriam ser

sacrificados. Pergunta básica: “governabilidade” para

quem? Em nome de que interesses e princípios? É

incrível: bastaram alguns meses de poder presiden-

cial para tornar-se necessário e urgente lembrar que

o PT foi formado para combater a elite que há cinco

séculos escraviza o país, não para governar em seu

nome. Ao aceitar o princípio da governabilidade

como um fim em si mesmo, Lula e o seu estado

-maior abriram todas as comportas para a composi-

ção de alianças espúrias, destinadas a conformar a

maioria no Congresso Nacional. Governar o país tor-

nou-se um fim em si mesmo, não importa que tipo

de barreiras teriam que ser transpostas (e todas fo-

ram, aparentemente) para se chegar a esse fim. Com

isso, a direção petista aceitou as regras do jogo de

favores e clientelismo de sempre. A diferença é que

não constituíam uma oligarquia, eram simples arri-

vistas que, como reza o ditado popular, se lambuza-

ram por não saber como comer. O “mensalão” é só

um triste retrato disso.

Mas o argumento mais pernicioso articulado pe-

los intelectuais lulistas tem como um de seus porta-

vozes mais importantes a professora e filósofa Mari-

lena Chauí. No Brasil, diz Marilena, a adoção do

neoliberalismo implicou o fortalecimento, a radicali-

zação das características mais brutais das práticas

sociais, políticas e culturais construídas por séculos

de escravismo e desigualdade econômica. Esse pro-

cesso – continua - permitiu a ascensão de uma clas-

se média reacionária, “protofascista”, brutal, rude,

consumista. Até aí, tudo bem. Não há como discordar

da professora, que expõe os argumentos com o tradi-

cional brilho. O problema vem agora: essa classe mé-

dia sente-se ameaçada pelas conquistas alcançadas

pelos trabalhadores na era Lula (que se estende, ob-

viamente, ao governo Dilma, porta-voz do ex-meta-

lúrgico). Marilena argumenta que, ao contrário do

que normalmente se diz, a era Lula não permitiu o

surgimento de uma nova classe média (a suposta

Pergunta básica: “governabilidade” para quem? Em nome de que interesses e princípios?

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aquiagora

panha pela prefeitura de São Paulo, quando Lula sus-

tentou a candidatura (vitoriosa) de Fernando Haddad.

A era Lula, nesse sentido, no máximo ampliou a ca-

pacidade de consumo dos trabalhadores e acentuou o

conservadorismo entre eles, o que, aliás, deixou mui-

to contentes o patronato e o setor financeiro, que lu-

cra “como nunca antes na história deste país”.

Mas se o lulismo significou o rebaixamento da

consciência dos trabalhadores, isso não significa um

ponto final em coisa alguma. Claro que, momentane-

amente, a esquerda brasileira – ou, mais precisamen-

te, os setores da esquerda que não foram engolidos

pelo lulismo - está enfraquecida. Só um lunático in-

curável não notaria isso. Isso não significa, porém,

que a direita tenha assumido uma nova legitimidade.

Quem, entre os representantes da direita, tem hoje

carisma, capacidade de liderança, poder de mobiliza-

ção de massas? O já mencionado Aécio Neves? O go-

vernador paulista Geraldo Alckmin? FHC? José Ser-

ra? A direita é medíocre, e é só por isso que ela jamais

tomou a iniciativa de tentar impedir Lula, apesar do

“mensalão”, e é por isso que ela não consegue fazer

oposição real ao governo Dilma.

Os militantes de esquerda não devem cometer o

erro muito comum e muitíssimo perigoso de confun-

dir o seu próprio estado de ânimo e de perplexidade

com aquilo que se passa no movimento de massas. É

verdade que “as massas não estão na rua”, é verdade

que impera o conformismo e, no melhor dos casos, a

perplexidade. Mas também é verdade que há movi-

mentações, greves e paralisações que chegam a atingir

dimensões nacionais importantes, como foi o caso do

movimento das universidades federais, em 2012. São

frequentes episódios de pequenas explosões popula-

res em várias partes do país, embora sem um norte

político claro - também como resultado do lulismo

que predomina no PT e na CUT. As periferias das

grandes metrópoles são panelas de pressão, agravadas

pela selvageria policial, que tem contornos racistas.

Quando todos esses “sintomas” criarão uma situ-

ação qualitativamente nova na conjuntura? Até quan-

do o lulismo conseguirá cumprir com o seu papel de

bombeiro da luta de classes? Ninguém sabe. A única

“classe C”), mas sim o desenvolvimento econômico,

social e cultural do proletariado. É isso que, segundo

Marilena, provoca desespero e pânico nos “protofas-

cistas”. Mas esse argumento, embora parcialmente

verdadeiro, do ponto de vista empírico, é politica-

mente insustentável.

Primeiro, porque não há uma identidade entre a

classe entendida como uma categoria sociológica (cuja

existência pode ser detectada por dados estatísticos) e

a classe entendida como um setor da sociedade em

luta. É surpreendente que a professora tenha confun-

dido as duas coisas. Se é possível afirmar que houve

um certo ganho de renda por parte dos trabalhadores

– até por obra e graça do Bolsa Família - que “agora até

viajam de avião”, como destaca Marilena, não há como

sustentar a ideia de que, nos últimos anos, os traba-

lhadores se reconheceram como classe social sujeita

de seu próprio destino. Ao contrário, a era Lula pro-

moveu a conciliação de classes, o apagamento da

consciência de que há uma luta inconciliável entre tra-

balhadores e patrões, e a já mencionada anomia do

“pânico do Bolsa Família” é uma demonstração disso.

Um grande símbolo desse apagamento, indiscuti-

velmente, foi o abraço fraterno, sorridente e festivo

que Luís Inácio Lula da Silva deu em Paulo Salim Ma-

luf, em 18 de junho de 2012, nos jardins da mansão de

Paulinho Malvadeza, em troca de um minuto a mais

de propaganda eleitoral na televisão, durante a cam-

É verdade que “as massas não estão na rua”, que impera o conformismo, mas também é verdade que há movimentações, greves e paralisações

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certeza é: as mudanças vão acontecer, inevitavelmen-

te, pois a crise da economia brasileira é cada vez mais

grave, num quadro internacional que não apresenta

perspectivas realistas de recuperação no curto ou

médio prazo (como admitem até mesmo os mais en-

tusiastas entre os comentaristas neoliberais). O arse-

nal de medidas destinadas a atrair capitais para o

Brasil – incluindo a privatização das ferrovias, aero-

portos e portos, anunciada por Dilma -, o incentivo

ao consumo doméstico por meio do endividamento

das famílias e a remuneração do capital com uma das

mais altas taxas de juros do mundo, assim como o

frenesi especulativo possibilitados pela Copa do

Mundo de 2014 e pelos Jogos Olímpicos de 2016,

tudo isso já mostra sinais de esgotamento com o

crescimento pífi o do PIB, cuja contrapartida é a ele-

vada inadimplência das famílias brasileiras.

O afundamento do lulismo vai acelerar o processo

de crise, pois o próprio lulismo é, hoje, um pilar de

manutenção da ordem. Não se trata, novamente, de

estipular prazos e datas para que isso ocorra, nem de

tentar prever as suas formas, mas sim de compreender

a inevitabilidade desse processo. Como sintetiza, com

grande brilho, a revolucionária Rosa Luxemburgo, em

carta a Mathilde Wurm, em 16 de dezembro de 1917:

“A psique das massas contém sempre em si, como

Thalatta, o mar eterno, todas as possibilidades laten-

tes: mortal calmaria e enfurecida tempestade, baixa

covardia e selvagem heroísmo. A massa é sempre

aquilo que precisa ser, de acordo com as circunstân-

cias, e está sempre pronta a tornar-se outra do que

aquilo que parece. Belo capitão aquele que orientasse o

seu curso pelo aspecto momentâneo da superfície das

águas e não quisesse concluir, a partir dos sinais do

céu e das profundezas, que a tempestade se aproxima!

Minha pequena, a “decepção com as massas” é sempre

o mais vergonhoso testemunho para um dirigente po-

lítico. Um grande dirigente não orienta sua tática pelo

humor momentâneo das massas, mas pelas leis de

bronze do desenvolvimento, apega-se à sua tática ape-

sar de todas as decepções e, no resto, deixa tranquila-

mente a história levar sua obra à maturidade.”

Participação da Kiwi Companhia de Teatro no Cordão da Mentira, são Paulo, 2011

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1 FO, Dario. Le commedie di Dario Fo. Torino: Einaudi, 1977. O trecho é citado por COSTA, Iná Camargo. Panorama do rio Vermelho - Ensaios sobre o teatro americano moderno. São Paulo: Nankin, 2001.2 PRIOLEAU, E. Histoire Du Vaudeville: résumé Des Conférences Faites à L’Athénée de Bordeaux, 1890, p. 5.3 PISCATOR, Erwin. Teatro Político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 142.

Se o socialismo recuperou a potência de formas

pré-modernas de sociabilidade, acabou permitindo

também o ressurgimento daqueles gêneros teatrais

populares, agora em chave explícita e radicalmente

política. Com a Revolução Russa, o movimento atin-

giu significação máxima.

Nos anos que se seguiram à Revolução de Outubro,

o teatro cumpria com destaque a função de figurar ar-

tisticamente o debate político na nova ordem, aprovei-

tando o espetáculo de feira e as marionetes, o cabaré e

o circo. O despacho noticioso, o informe sindical e o

comunicado do Exército Vermelho eram assuntos re-

correntes desse teatro da urgência. Com a criação de

um gênero completamente novo, o jornal vivo, a notí-

cia passou do plano temático à estrutura formal.

o momento do jornal vivo

O jornal vivo surgiu por volta de 1920, como tea-

tro de encenação de notícias. As principais causas de

sua criação foram a escassez de papel-jornal e a insu-

ficiência de meios de comunicação de massa - uma

Desde os primórdios do Cristianismo - ou ainda

antes -, o teatro cômico popular teve, entre outros, o

papel de apresentar, criticar e promover o debate de

dados circunstanciais da realidade social. É por isso

que Dario Fo - como lembra Iná Camargo Costa -

abre seu Mistero Buffo afirmando que “para o povo, o

teatro, especialmente o grotesco, sempre foi o meio

primordial de comunicação, de expressão, de provo-

cação e agitação das ideias”, desempenhando o papel

de “jornal falado e dramatizado do povo”1.

A atualidade surgiu como elemento estruturante

do teatro no vaudeville, gênero que irrompeu nos

prelúdios do capitalismo e baseou-se inteiramente

em canções que satirizavam os homens no poder2.

A modernidade relegou a tradição cômica popular

à esfera extra-artística. O teatro sedimentava-se

como um redivivo “templo das musas”, no qual as-

suntos como “salários, horas de trabalho, dividendos

e lucros” não entravam. “Essas são coisas de jornal” -

diagnosticava o encenador alemão Erwin Piscator,

abordando a cultura do século 193.

Teatro-jornal ou jornal vivo*

» por Eduardo Luís Campos Limajornalista e pesquisador

uma breve história do

*Esse texto baseia-se na pesquisa que resultou na dissertação de mestrado Procedimentos formais do jornal vivo Injunction Granted (1936), do Federal Theatre Project, e de Teatro Jornal: Primeira Edição (1970), do Teatro de Arena de São Paulo. Dissertação de mestrado. Universidade de São Paulo, 2013.

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4 AMIARD-CHEVREL, Claudine. La Blouse Bleu. In: BABLET, Denis (Org.). Le Théâtre D’Agitprop de 1917 à 1932. Lausanne: L’Age D’Homme, 1977, p. 103.5 Id., ibid.6 DÍAZ, Luis Miguel Gómez. Teatro para una guerra (1936-1939) – Textos y Documentos. Madrid: Centro de Documentación Teatral, 2006, p. 113.

vez que o rádio ainda trilhava seus primeiros passos.

Esse teatro informativo, crítico e radicalmente peda-

gógico cumpria, portanto, função política de caráter

eminentemente prático. Era preciso atualizar o povo

quanto aos avanços da Revolução - povo esse que era

em larga medida analfabeto e distribuía-se por ex-

tensas porções do território russo.

Daí decorre que o jornal vivo tenha nascido como

simples leitura, em voz alta, de informes políticos, e

que tenha se desenvolvido e disseminado principal-

mente no âmbito de coletivos auto-ativos, trupes

ambulantes e semiprofissionais que viajavam aos

mais distantes rincões para se apresentar.

A história de desenvolvimento do jornal vivo ins-

creve-se na história do modernismo. Ao lado de ou-

tras formas recriadas e praticadas pela primeira gera-

ção de artistas soviéticos, o jornal vivo surge da

percepção de que o teatro do passado não é capaz de

responder às necessidades do novo tempo. Nasce da

livre experimentação formal e é favorecido pela cria-

ção de artistas como Ossip Brik, Sergei Tretiakov e

Vladimir Maiakovski - cujo programa estético, por

outro lado, não deixa de trazer formulações muito

próximas às propostas do jornal vivo.

A Blusa Azul, coletivo criado em 1923 no Institu-

to de Jornalismo de Moscou, era sinônimo de jornal

vivo, já que se devotou unicamente a essa forma.

Suas apresentações tinham uma sequência única: co-

meçavam com uma parada musical em que os temas

eram anunciados; a seguir, um editorial tratava do

assunto principal; outros temas eram abordados de

maneira rápida e chocante, sucedendo-se crônicas,

telegramas, panorama político, quadros humorísti-

cos, seção científica; por fim, outro cortejo apontava

o término da apresentação4.

Em cena, uma linguagem clara e precisa, por vezes

com aspecto recitativo, e uma gestualidade anti-na-

turalista, permeada por elementos circenses, mate-

rializavam as contradições nacionais e internacionais

que tensionavam o processo revolucionário. De um

lado eram expostos criticamente os inimigos da Re-

volução, como os políticos burgueses, os capitalistas,

os religiosos, a burguesia internacional. Chocavam-

se com eles os revolucionários, como os soldados

vermelhos, os operários russos e alemães, os jovens

comunistas. Por vezes, eram figuradas abstrações,

como ideias, moedas e países5.

Os blusas azuis tinham como método o estímulo

à multiplicação. Por onde passaram, deixaram coleti-

vos que praticavam o jornal vivo. Até 1930, sete mil

trupes que seguiam seu modelo apareceram na União

Soviética, além de outras oitenta na Alemanha, Tche-

coslováquia, Inglaterra, França, Letônia e China.

Na segunda metade da década de 1920, as pressões

sobre a Blusa Azul avolumaram-se. Alguns apontavam

na necessidade de desenvolver formas mais elaboradas

que permitissem a discussão crítica dos problemas do

desenvolvimento soviético. Outros clamavam pela

volta às grandes formas do passado. Com o fortaleci-

mento de Stálin e seu grupo, os sindicatos passaram a

perseguir duramente os grupos como os blusas azuis.

No começo da década de 1930, todos se dispersaram.

o jornal vivo tardio

Quando o jornal vivo soviético dava seus últimos

suspiros, ainda surgiam na Alemanha coletivos que

tinham como finalidade principal a sua prática -

como os Trommler Gruppen, que faziam propaganda

comunista nas escolas, praças e mercados - e na

Romênia. O fascismo e o stalinismo puseram um

ponto final em todas essas manifestações até 1934.

Mas houve florações tardias. Se a História avança

de modo desigual e não uniforme, também as exi-

gências - e oportunidades - históricas apresentam-

se de maneiras distintas nos diversos países. Na Es-

panha, os avanços sociais conquistados no começo da

década de 1930 permitiram que o teatro desenvolvido

na União Soviética na década anterior passasse a ser

objeto de interesse de artistas e divulgadores. Duran-

te a Guerra Civil espanhola, entre 1936 e 1939, foram

criadas as Guerrillas del Teatro del Ejército Centro,

com o fito de fazer agitação e propaganda. Essas

Guerrillas produziram e apresentaram o periodico vi-

viente Despedida de Reclutas6.

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7 LIMA, Eduardo Luís Campos. Procedimentos formais do jornal vivo Injunction Granted (1936), do Federal Theatre Project, e de Teatro Jornal: Primeira Edição (1970), do Teatro de Arena de São Paulo. Dissertação de mestrado. Universidade de São Paulo, 2013.

imprensa, pela oposição ao New Deal e pelo empre-

sariado, o Projeto Federal de Teatro seria encerrado

em 1939 - e junto com ele a experiência do jornal

vivo nos Estados Unidos.

augusto boal e o jornal vivo brasileiro

O momento brasileiro do jornal vivo ocorre em

1970, com cinco décadas de distância de seu nasci-

mento na Revolução Russa - mas igualmente desen-

cadeado em um imbricamento de experimentações

artísticas, necessidades políticas e motivações práti-

cas. Essas últimas referem-se ao contexto de forte

repressão instalado no país com o AI-5, em 1968.

Com a dificuldade de liberar textos junto ao departa-

mento de censura, o teatrólogo Augusto Boal, que

conhecera os living newspapers quando estudou nos

EUA, na década de 1950, concebeu um tipo de ence-

nação inteiramente fundamentado em notícias já

aprovadas para publicação.

Anos antes, no começo da década de 1960, ele já

havia planejado, com Oduvaldo Vianna Filho, uma es-

pécie de revista noticiosa semanal7. A ideia pôde ser

retomada quando um coletivo de jovens atores, egres-

sos de um curso oferecido por Heleny Guariba e Cecí-

lia Thumim Boal no Teatro de Arena, procuraram o

diretor com o intuito de continuarem ligados ao grupo.

Os atores - Denise Del Vecchio, Celso Frateschi,

Dulce Muniz, Hélio Muniz, Elísio Brandão e Edson

Santana - criaram diversos episódios a partir de arti-

gos de jornal, que depois foram sistematizados por

Boal na peça Teatro Jornal - Primeira Edição.

A organização promovida por Boal dividia a ence-

nação em nove técnicas seguidas por exemplificações

práticas. Todas elas - leitura simples, dramatização,

leitura com ritmo, ação paralela, reforço, noticiário

cruzado, histórico, entrevista de campo e concreção

da abstração - facilitavam o choque entre os elemen-

tos de encenação, de forma a possibilitar a crítica.

Não tinha importância apenas o que as notícias de-

nunciavam, mas sobretudo o método crítico suscita-

do pela autonomização e pelo conflito entre os com-

ponentes da montagem.

A principal manifestação do jornal vivo fora da

esfera soviética foi estadunidense. Lá, os living news-

papers surgiram como parte das atividades do Federal

Theatre Project (Projeto Federal de Teatro), iniciativa

do governo Roosevelt que empregou mais de 12.000

profissionais do teatro que haviam ficado sem traba-

lho por causa da crise econômica da década de 1930.

A cultura radical que se desenvolveu nos anos

que se seguiram à quebra da bolsa de Nova York era

em grande parte marcada pelo documentarismo. Tal

impulso provinha do desejo de uma jovem geração

de artistas de produzir uma arte que integrasse ex-

perimentação estética e luta política. No teatro, o

jornal vivo praticado na União Soviética, que havia

chegado ao conhecimento de intelectuais estaduni-

denses radicais anos antes, apareceu como interes-

sante possibilidade formal.

Mas nos EUA o jornal vivo ganhou características

próprias. Embora a unidade de Jornais Vivos do Pro-

jeto Federal de Teatro fosse administrada por artistas

pioneiros do teatro de agitação e propaganda estadu-

nidense, sua perspectiva de atuação era limitada pelo

fato de se tratar de uma iniciativa governamental.

Esses limites trouxeram consequências políticas aos

living newspapers que não podiam fazer propaganda

diretamente revolucionária, como sempre fora o caso

no contexto europeu. Produzidos em conjunto com

uma equipe de jornalistas (ligados ao combativo sin-

dicato de profissionais da imprensa), os living news-

papers eram baseados em profundo trabalho de pes-

quisa e reportagem - como proteção adicional, todos

os discursos e informações contundentes mereciam

citação em notas de rodapé.

Apesar de todas as restrições, os jornais vivos

estadunidenses apresentaram para centenas de mi-

lhares de pessoas as causas históricas do problema

da moradia nas grandes cidades, os motivos e as

consequências da crise econômica para a agricultu-

ra, o papel repressivo do Poder Judiciário na luta

trabalhista - tudo isso em montagens grandemente

ancoradas em procedimentos formais soviéticos,

com verbas do Governo Federal. Perseguido pela

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A sistematização em técnicas e sua apresentação

radicalmente didática tinha ainda o fito de estimular

a multiplicação de coletivos de teatro-jornal. De fato,

mais de setenta grupos surgiram no Brasil e em ou-

tros países - sendo 20 deles apenas na Universidade

de São Paulo. Na USP, conforme relata Adriano Diogo

(hoje deputado estadual e presidente da Comissão da

Verdade do Estado de São Paulo), foram encenadas

peças de teatro-jornal sobre a Transamazônica, sobre

a tortura e morte do militante Olavo Hanssen e sobre

a rebelião do presídio de Attica, nos Estados Unidos.

O recrudescimento da repressão levou à prisão e

ao exílio de Augusto Boal e a dificuldades crescentes

de manutenção do grupo.

A experiência do teatro-jornal, que durou apenas

alguns meses no Arena, teria sobrevida até os dias de

hoje por duas vias. De um lado, Boal aprofundou a

sistematização das técnicas, criando e experimen-

tando diversas outras que reuniria nas formulações

do Teatro do Oprimido. De fato, as nove técnicas do

teatro-jornal (com algumas mudanças de nomencla-

tura e acrescidas de uma adicional, chamada “texto

fora do contexto”) são praticadas no mundo inteiro.

Outra via foi a disseminação do teatro-jornal pe-

los remanescentes do movimento original. Diversos

coletivos de teatro, no começo dos anos 1970, tive-

ram intercâmbio com os artistas egressos do Arena,

muitos deles adotando o teatro-jornal como método

de trabalho. É o caso do núcleo teatral Arlequins,

cujos membros participaram de uma oficina com o

Teatro Núcleo Independente (constituído por Celso

Frateschi e Denise Del Vecchio, entre outros), em

Guarulhos, e criaram em 1976 (quando ainda se cha-

mavam Grupo Perspectiva de Teatro Amador) o tea-

tro-jornal Marotinho, sobre o despejo violento de

uma comunidade em Salvador.

Assim, com diferentes trajetórias e conforma-

ções, o jornal vivo surgido na União Soviética e de-

senvolvido em diferentes países, ao longo do século

20, permanece realmente vivo, no Brasil e no mundo.

Detalhe do cenário da peça Morro como um país, 2013

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1 Dimitris Dimitriadis, “Nous vivons dans la lumière d’une étoile morte”, entrevista dada a Fabienne Darge, Le Monde, 17/06/2012 http://www.presseurop.eu/fr/content/article/2178791-nous-vivons-dans-la-lumiere-d-une-etoile-morte

Estas são algumas das frases do texto de Dimitris

Dimitriadis, “Morro como um país,” escrito em 1978

no momento em que a Grécia saía da ditadura dos

coronéis, e utilizado no início da peça de mesmo

nome encenada pela Kiwi Companhia de Teatro.

Com todo o seu pessimismo e negativismo, o texto

foi no entanto escrito em “um período cheio de espe-

rança, de promessas e de prosperidade”, segundo de-

clarou seu autor em uma entrevista de 20121. A “pa-

rábola” fala não apenas dos anos da ditadura, mas de

toda a história do país, marcado “por uma espécie de

estagnação, de imobilidade mental: fica-se colado em

hábitos tanto psicológicos quanto sociais, vive-se de

verdade de mentira

» por Angela Mendes de AlmeidaHistoriadora integrante do Coletivo Merlino

e coordenadora do Observatório das Violências Policiais-CEHAL/PUC-SP.

no país da

“Detesto este país. Devorou-me as entranhas. Eu digo a você, porque desejamos juntos que

estas entranhas fossem fecundas, e este desejo nos uniu durante noites e noites... e as outras

horas do dia, quando um milagre, de súbito, nos fazia esquecer o terror que corria nas ruas como

nas nossas veias... Os noticiários de pesadelos que nos impediam até de nos olharmos.... lidos por

apresentadores completamente loucos... os uivos que se sobrepunham até às sirenes das ambu-

lâncias... (...) Detesto este país. Ele me devorou as entranhas, devorou. Eu o detesto. Detesto-o,

detesto-o. (...) Mas este país não me deixa querer, não me deixa ser a vida, dar a vida. Como um

câncer, devorou os meus seios, o meu cérebro, os meus intestinos, rolou todas as pedras nos

meus rins e os devastou, conspurcou todas as fontes por onde devia correr o meu leite, reuniu

toda a sua terra nas minhas veias e me apodreceu o sangue, se pôs inteiro no meu coração e o

devastou à força de enfartes e de embolias. Os seus costumes demoliram-me os pulmões, a sua

história me fez tremer, da cabeça aos pés (...) e eu sinto sempre o seu jugo sobre a minha nuca, a

minha língua está sempre atada pelo seu balbuciamento, tenho suores frios só de ver a sua vul-

garidade... (...) Este país é a nossa peste. Ele nos matará, nos liquidará. Como escapar? Ele bebe

o nosso sangue. Não me deixa mais dormir, me roubou o sono. Como eu vou viver sem sono?”

Dimitris Dimitriadis

uma tradição morta que não se pensa em renovar”.

Comentando a crise atual da Grécia, a “ovelha negra”

da União Europeia, ele continua: “o que eu sentia há

35 anos ficou mais agudo hoje: a ‘crise’ só se resolverá

com uma verdadeira tomada de consciência histórica,

que passa pelo reconhecimento de que alguma coisa

morreu para que um novo nascimento possa ocorrer”.

Uma avaliação radicalmente trágica e uma esperança

sem limites na metamorfose completa do país.

A tragédia é definitiva, feita de gestos secos, sem

prosopopeia, palavras que dizem tudo claramente.

Seria possível dizer do Brasil e de sua ditadura: eu

detesto este país?

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2 Flávio Tavares, O dia em que Getúlio matou Allende. Rio de Janeiro, Editora Record, 2004.3 Angela Mendes de Almeida, Família e modernidade – O pensamento jurídico brasileiro no século XIX. São Paulo, Porto Calendário, 1999, p. 103.

Quando penso no Brasil, vejo-o a todo momento

como uma enorme Casa Grande e Senzala. Não se en-

ganem aqueles que pensam que estou falando de con-

tradições entre negros e brancos. Estou falando de

contradições entre classes sociais, aquelas que servem

e as que são servidas, das raízes históricas do Brasil,

jamais renegadas ou desmentidas, presentes no nosso

dia a dia, nos gestos, nas palavras soltas ao léu, na for-

ma estética das nossas cidades etc. Coisas que chocam

qualquer estrangeiro mas que nos parecem naturais,

idiossincrasias nacionais normais, porque são da natu-

reza da nossa mentalidade forjada na história da em-

presa agroexportadora, trabalhada por escravos e co-

mandada pelo chefe da família patriarcal rural. Estão aí

os comentários, ainda fresquinhos, sobre a lei que es-

tende às empregadas domésticas os direitos de todos

os trabalhadores: na argumentação o recurso à particu-

laridade, à exceção. Ainda não aconteceu pujança eco-

nômica nenhuma que alterasse esta mentalidade.

Mas quando penso no Brasil vem-me ainda à

mente a palavra malemolência. Dos diversos sentidos

recorrentes constantes do Dicionário Houaiss, mui-

tas definem para mim o Brasil: ausência de disposi-

ção, moleza, pachorra, molejo, ardil para evitar algo,

jogo de atitudes, gestos, jeito de falar que denota

qualidades consideradas positivas como manha, des-

treza (qualquer semelhança com política de alianças e

governança é mera coincidência).

No Brasil a palavra radical, que tem tudo a ver com

a tragédia, é considerada uma ofensa. Os radicais “não

têm jogo de cintura”, qualidade por excelência neste

país. O grande gesto radical de Getúlio Vargas ao se

suicidar para paralisar o processo de denúncias contra

o seu governo mas, sem o saber, paralisar o golpe de

1964 que vinha vindo desde então2 , não é devidamen-

te valorizado. Foi até objeto de pilhéria por ocasião da

crise do Mensalão durante o primeiro governo Lula:

ninguém ia se suicidar, imagine! Aqui tudo se resolve

na chamada “tradição brasileira da reconciliação” por-

que afinal as classes são amigas, da mesma família,

como no espaço privado da Casa Grande e Senzala.

Deste “caráter conciliador e ordeiro da sociedade

brasileira”, avesso a radicalismos e a ângulos pontia-

gudos, decorre o hábito de utilizar certas palavras

com um sentido codificado, subentendido, comple-

tamente diferente do que consta nos dicionários,

como uma espécie de senha, um engano e autoenga-

no compartilhado cinicamente por quase todos. Isso

aparece na imprensa escrita, mas é reproduzido na

imprensa oral, rádios, TVs etc. E serve para confundir

os ingênuos que ainda não penetraram nos códigos

do mundo da mistificação, da verdade de mentira.

Talvez a primeira verdade de mentira da nossa

história esteja na Constituição de 1824 que em seu

artigo 179 dizia que todos os homens eram iguais pe-

rante a lei e garantia a todos o direito de proprieda-

de3. Como se sabe, a escravidão só veio a ser abolida

em 1888. Porém no entretempo se andou até discu-

tindo se os escravos eram humanos.

Um exemplo mais atual do uso codificado de uma

palavra é “conexo”. Inscrita da Lei 6683/79 que anis-

tiava “os crimes políticos e conexos”, ela se tornou

uma espécie de senha: conexos queria dizer tortura-

dores. Ficavam todos anistiados - menos os resisten-

tes que cometeram crimes de sangue - e não se falava

mais nisso. Quando a Comissão de Direitos Humanos

da OAB questionou o STF e pediu uma interpretação

técnico-jurídica do termo “conexo”, os nobres minis-

tros, em sua maioria, olharam para outro lado e res-

ponderam outra coisa. Nada de interpretar a palavra

conexo, que quer dizer ação feita em referência ao cri-

me político em questão. Responderam em 2010 o que

não tinha sido perguntado. Incentivados pelo minis-

tro relator, que teve direito no início da votação a um

jantar com o então presidente Lula, encararam, não a

pergunta, mas a lei em bloco, como um acordo que lá

nos idos de 1979 teria havido entre pares: de um lado

um congresso cheio de biônicos, votando sob a bota

do último governo militar, e de outro o governo mili-

tar brasileiro. E assim mesmo, com todas estas vanta-

gens para um dos lados “equivalentes”, a votação foi

apertada: 206 a favor contra 201. Aliás, quem validou

os votos dos parlamentares que aprovaram a lei? Da

parte de ex-presos e de familiares de mortos e desa-

parecidos, bem como dos que participaram das lutas

pela Anistia, ninguém. Com quem acordaram então?

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aquiagora

4 Citado por Gilberto Maringoni, “Lula, ser e não ser”, Carta Maior, 15/05/2013 - http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=6092

Ao pressionar diretamente pelo resultado obtido,

os titulares do governo do PT atuaram em contradi-

ção com o que tinham defendido vagamente lá no

passado. E os conselheiros da Comissão de Direitos

Humanos da OAB ainda tiveram direito a receberem,

às vezes de seus próprios pares, o julgamento de que

“a iniciativa fora precipitada”, muito radical por usar

as palavras com o seu verdadeiro sentido e fazer ape-

lo à racionalidade. É preciso estratégias e meandros

para se obter avanços de década em década.

A interpretação cifrada das palavras acontece a

toda hora. Convencionou-se, entre os adeptos de es-

querda e de direita, da interpretação codificada da pa-

lavra conexo da Lei da Anistia, que aqueles que pedem

justiça, investigação, julgamento para os torturadores

estão sendo “revanchistas”. Até a presidente Dilma

afirmou mais de uma vez, e inclusive na posse da Co-

missão Nacional da Verdade, que não queria revan-

chismo. O que queria ela dizer? Na minha interpreta-

ção, radical, diga-se de passagem, sem afirmar, ela

enviava uma mensagem cifrada: não era hora de con-

vulsionar a sociedade com o julgamento de membros

de uma instituição importante como o Exército, não

era hora de atrapalhar os PACs e o crescimento da

“nova classe média” com a ideia de justiça para os tor-

turados, mortos e desaparecidos. É impressionante ver

uma pessoa, digna da maior admiração por sua resis-

tência aos torturadores, atuar na mesma linha de in-

terpretação de algumas intervenções de Lula, exaltan-

do a criação da Embrapa e da Itaipu. Um governo como

o de Médici, disse ele, apesar de ser “o momento mais

crítico da história do país”, permitiu “que o Brasil en-

contrasse o seu rumo”4. Pois é, o rumo é esse: desen-

volvimento a qualquer custo e os atropelados que

saiam do caminho. Que o digam as comunidades indí-

genas que estão atrapalhando o crescimento do agro-

negócio com essa ideia de “terras demarcadas”.

Ora, o uso da palavra revanchismo, muito usado

às vezes até por vítimas de tortura e familiares de

mortos e desaparecidos, pretendendo demonstrar

moderação, encerra um enorme equívoco. Revanche

se faz entre dois times iguais, onze jogadores de fute-

bol de cada lado, dois jogadores de xadrez etc. Usada

para substituir o anseio de ver torturadores serem

investigados e julgados, ela coloca como pares de

equivalência idêntica resistentes à ditadura de um

lado, e de outro, o Estado brasileiro pela mão dos as-

seclas que torturavam para manter o regime civil mi-

litar. É a tese de que houve uma “guerra”, muita usada

na ditadura argentina defendida, entre outros, pelo

coronel Ustra para justificar as atrocidades, mas tam-

bém por alguns resistentes ao rememorar seu passa-

do. Em entrevista há pouco tempo, um famoso guer-

rilheiro narrava um episódio desconhecido de um

entrevero entre ele e um general, elogiando o seu es-

pírito de lealdade militar: “guerra é guerra”. Existe

isso, gente que acha ainda hoje que se tratava de uma

guerra entre partes equivalentes, guerra perdida.

O que o uso da palavra revanchismo esconde é

que de um lado estão o Estado e duas de suas insti-

tuições mais malfazejas, o Exército e a Polícia, em

qualquer regime que seja, socialista ou capitalista,

democrático ou ditatorial. De outro lado podem es-

tar resistentes, militantes ou simplesmente os gru-

pos populacionais perseguidos, judeus e ciganos du-

rante a Segunda Guerra Mundial, hoje “mulçumanos”,

“terroristas”, ciganos, imigrantes ilegais, e no Brasil,

os pobres, negros em sua maioria, porém também

indígenas e brancos. Ou seja, civis.

Ao omitir que uma das partes é o Estado, a própria

noção de violação de direitos humanos é vulgarizada.

Não se distingue a diferença entre a ação do Estado que

Convencionou-se que aqueles que pedem justiça, investigação, julgamento para os torturadores estão sendo “revanchistas”.

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viola, produzindo crimes de lesa-humanidade, tortu-

ras, execuções sumárias, ocultamento de cadáveres, e a

ação de particulares que podem, em diversas circuns-

tâncias, cometer ações violentas e cruéis, sendo no

caso uma ação criminosa de um civil contra outro civil.

Veja-se o caso da Lei contra a Tortura brasileira. A

marca da sociedade brasileira, a invasão do espaço pú-

blico pelo privado, derivada da sua história e da figura

emblemática da Casa Grande e Senzala, imiscuiu-se

na formulação da Lei 9455, de 07/04/1997, que está

em contradição flagrante com a legislação internacio-

nal. A tortura é a violação praticada pelo Estado, por

seus agentes em nome dele, dentro de suas depen-

dências, sob a sua guarda. Mas a formulação brasileira

da Lei contra a Tortura não faz a ressalva e mistura

todas as ações cruéis e violentas. O resultado é que a

maior parte das pessoas condenadas por tortura no

Brasil são babás e cuidadores que maltratam crianças

e idosos, ou seja, gente humilde e pobre, em todo

caso, civis. E parece que a tortura não existe no Brasil.

Os policiais e agentes carcerários, autores da tortura,

valem-se do fato de que os torturados que querem

denunciar continuam sob sua custódia. Além disso,

para o Poder Judiciário de que vale a palavra de um

pobre, ainda mais um fora da lei que está preso?

A permanência da mentalidade da Casa Grande e

Senzala, que não distingue o que pertence ao espaço

público, ao domínio da política e do Estado, de um

lado, e de outro, o espaço privado, onde prevalecem os

valores da nossa família patriarcal rural, pode ser vis-

ta ainda em uma ideia sui generis manifestada por

mais de um membro da Comissão Nacional da Verda-

de. Segundo eles, a convocação para depoimentos de

torturadores e agentes do aparelho repressivo da dita-

dura deve ser feita para oitivas sigilosas. O segredo,

aparentado ao do confessionário, os incentivaria a

colaborar, contando o que sabem e o que fizeram. Para

além da ingenuidade, esse respeito para com a priva-

cidade dos torturadores espelha a noção que uma co-

missão da verdade pode ser um parlatório entre pou-

cos escolhidos, e não uma atividade pública que tem

que ser acompanhada por todos os que queiram. Os

torturadores, em privado, no silêncio de um arremedo

de confessionário, não vão contar nada a mais do que

Ato da Frente de Esculacho Popular contra Harry shibata, 2012

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5 L. Capriglione, “Chama o ladrão!”, Folha de S. Paulo, 17/01/2013.6 “Mudança nos registros de B.O.”, Rede Brasil Atual, 10/01/2013. O ouvidor é Luiz Gonzaga Dantas.

já disseram: que tudo é mentira e que eles simples-

mente serviram à pátria. É no jogo do contraditório,

que se dá no espaço público, que tais audiências têm

que acontecer. Alguns auxiliares ou pessoas que se

arrependeram procurarão falar o que sabem tanto em

público como em privado, pois elas querem falar.

Outro caso recente e escandaloso das palavras ci-

fradas, das verdades de mentira, é o da portaria di-

vulgada pela Secretaria de Segurança Pública do Esta-

do de São Paulo no início do ano de 2013. Segundo os

jornais os policiais ficavam, a partir daquela data,

proibidos de socorrer as vítimas de casos de homicí-

dio, tentativa de homicídio, lesão corporal grave etc.,

sendo obrigados a preservar a cena do crime e cha-

mar a equipe de emergência médica mais próxima.

Nas justificativas, indicava-se que o objetivo era que

o atendimento às vítimas fosse feito por profissio-

nais habilitados, como médicos e socorristas.

Proibir de socorrer? Que estranho... Para os desa-

visados que ainda não penetraram nos códigos do

mundo da verdade de mentira essa medida parecia

incongruente com a meta de salvar vidas humanas.

Uma jornalista5 que em princípio está dentro do

mundo das palavras codificadas, indignada, chamou a

portaria de “apavorante”. Dizia ela: “Apenas os poli-

ciais estão proibidos de socorrer. Eu posso. Você, lei-

tor, pode. (...) A mensagem que o governo dá é clara: a

tropa está sob suspeita”. Eureca! É isso mesmo, estava

sob suspeita. Mas a verdade não pode ser dita, o ob-

jetivo tem que ser coberto pela fantasia da inocuida-

de. É preciso dizer uma coisa – o objetivo era dar

melhor atendimento médico às vítimas – querendo

dizer outra, que os “bons entendedores” compreen-

derão. Sobretudo a corporação policial, que sabia tudo

que era feito nas viaturas, a caminho dos hospitais.

De fato, a ideia da paradoxal portaria parece ter

sido defendida inicialmente pelo Ouvidor de Polícia

do Estado de São Paulo. No momento em que ela foi

publicada no Diário Oficial ele se manifestava oti-

mista, considerando que o índice de letalidade da po-

lícia iria cair. E contou ao repórter para justificar suas

esperanças: em junho de 2012 dois rapazes de 20

anos, César Dias de Oliveira e Ricardo Tavares da Sil-

va, voltavam para casa à noite quando dois homens

atiraram contra eles. Em seguida apareceram – eles

sempre aparecem logo em seguida – policiais milita-

res fardados que levaram os dois rapazes para socor-

rê-los. Embora estivessem a um quilômetro do Hos-

pital da USP, foram levados para outro, distante doze

quilômetros. Entre o primeiro tiro e a chegada ao

hospital passaram-se 48 minutos. Mas o “pai cora-

gem” de um dos rapazes, Daniel Eustáquio de Olivei-

ra, conseguiu provar que os “homens” que atiraram

eram policiais militares, que a viatura oficial da PM

parou em um beco por 10 minutos, depois rodou a

esmo por 28 minutos. Durante esse tempo César

sangrou até a morte, pois além disso, os PMs deram

ainda mais três tiros, um no peito do rapaz. A morte

foi registrada como “resistência seguida de morte”6.

Foi o que aconteceu também com o vendedor

ambulante Marcelo Marinho de Paula em 9 de feve-

reiro de 2006. Ferido por guardas-civis e por um in-

vestigador da polícia civil, na Rua Vinte e Cinco de

Março, chutado e agredido, foi colocado em uma via-

tura da Guarda Civil Metropolitana que o levou, len-

tamente, para a Santa-Casa. Sangrando, chegou lá

morto. Estes casos são comuns e objeto de denún-

cias na Ouvidoria. Os que ficam publicamente co-

nhecidos são apenas a ponta do iceberg.

Pois justamente esta portaria coincidiu com ou-

tro caso semelhante. Durante o segundo semestre de

2012, policiais militares e outros agentes do Estado

mataram cerca de três centenas de pessoas na Grande

São Paulo. Além das execuções sumárias e extrajudi-

ciais comuns, que aparecem na imprensa como “tiro-

teios” nos quais só morrem os do lado dos “bandi-

dos”, e nos Boletins de Ocorrência como “resistência

seguida de morte”, verdadeiros “comboios” da morte

foram formados por grupos de extermínio formados

por policiais militares que saíam por uma rua, um

bairro, nas periferias das cidades, atirando a esmo.

Os jornais e TVs falavam de “onda de violência”

que pairava sobre a cidade sem dizer de onde ela vi-

nha. Tratava-se de outra palavra codificada, pois a

imprensa sabia quem estava matando. Falavam de

“dois homens em uma moto” ou de “quatro homens

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7 “SP tem a 1ª chacina do ano com 7 mortos”, O Estado de S. Paulo, 06/01/2013.8 “Secretário promete tolerância zero após ato contra chacinas em SP”, Folha de S. Paulo, 15.05.2013.

em um carro escuro”, sem dizer que esses homens

eram policiais militares. Mas jornalistas e todos os

ameaçados vivendo fora do perímetro da sociedade

de consumo estabelecida sabiam que esses “homens”

– outra palavra codificada – eram policiais.

Porém uma das execuções sumárias de uma pes-

soa presa e já rendida, o servente Paulo Batista do

Nascimento, em Campo Limpo, na Zona Sul de São

Paulo, em novembro, foi filmada e exibida no Fantás-

tico da TV Globo. Afinal uma prova material visual de

que os que estavam matando eram policiais militares!

Essa vitória da verdade filmada não podia ficar

sem troco. Por isso, logo no início do ano de 2013,

depois dos feriados de natal, os “homens” voltaram

em força. Em local distante apenas 10 minutos do

crime filmado, eles chegaram em três carros. 14 “ho-

mens” dispararam mais de 50 tiros matando 7 pesso-

as e ferindo mais duas. Entre os mortos o DJ Lah,

muito querido em várias periferias 7.

Mas houve ainda outro morto desta chacina de PMs

que teve relação direta com a portaria. Bruno Cassiano

de Souza, de 17 anos, recebeu um tiro no pé, mas conse-

guiu refugiar-se na casa de uma vizinha. Depois, “so-

corrido” por PMs do 37º Batalhão, chegou ao Hospital

Municipal de Campo Limpo com oito tiros e morreu.8

Assim, quando em maio o Secretário de Segurança

Pública, defendendo a sua portaria, afirma que cinco

meses depois “o número de mortos decorrentes de in-

tervenções policiais caiu quase 40%”, caso se possa

confiar nesta estatística, este fato apenas comprova que

os PMs matavam quase 40% dentro das viaturas, a ca-

minho dos hospitais. E agora já não podem mais fazê-lo.

Todas estas verdades de mentira, todas estas pala-

vras cifradas continuam a ser empregadas cinicamente

pela imprensa e por aqueles que estão interessados

que nenhuma verdade clara e cristalina, áspera, pon-

tiaguda, venha turvar a felicidade geral da nação, o

progresso, o desenvolvimento, o Brasil emergente que

já emergiu. Elas complementam o silêncio sobre a ver-

dade, o olhar para o lado feliz e cor-de-rosa das coisas,

o excluir o tema da violência do Estado, ontem e hoje.

Afinal, a ditadura civil-militar, este “momento

mais crítico da história do país ” no dizer de Lula,

existiu mesmo de verdade?

Cena da peça Morro como um país, Kiwi Companhia de Teatro, 2013

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aquiagora

1964: extra, extra, extra! “Terrorista é morto ao rea-

gir à voz de prisão”. 2013: jovens negros, pobres e da

periferia são mortos com a mesma desculpa, resis-

tência seguida de morte. Poderia ser o Brasil da dita-

dura civil-militar, mas é o Brasil de hoje, “livre e de-

mocrático”. O Esquadrão da Morte do Delegado

Sérgio Paranhos Fleury, um dos mais terríveis tortu-

radores daquele período, podia matar qualquer um

desde que fosse terrorista ou subversivo. Sem julga-

mento, sem prisão, sem direito à defesa. Hoje basta a

classe social ou a cor da pele. Procurando sempre fa-

zer essa ponte com o Brasil de hoje e mostrando

como a impunidade do passado é uma carta branca à

impunidade do presente, nasce a Frente de Esculacho

Popular. Mais conhecida como FEP, realizou sua pri-

meira ação no dia 7 de abril de 2012, um escracho ou

esculacho contra Harry Shibata. Os “Escraches Popu-

lares”, da Argentina e as “Funas” chilenas foram nossa

inspiração. Nesses dois países foi necessária uma

forte pressão popular para que houvesse o julgamen-

to e a punição dos militares genocidas. Cansados de

tanto sermos esculachados impunemente, sentimos

a necessidade de construir o Esculacho Popular,

como uma forma de expor, lembrar e acusar os res-

ponsáveis pelos crimes da ditadura, homenageando

nossos mortos e desaparecidos políticos, refletindo

sobre o esquecimento e pressionando a sociedade e o

Estado por justiça e pelo fim da impunidade.

Nos reapropriamos do termo esculacho, utilizado

na maior parte das vezes para se referir às ações de

brutalidade cotidiana policial sobretudo contra a po-

pulação pobre do país. Se não aprendemos na escola

as atrocidades que esses agentes do Estado comete-

ram, se não temos o direito de conhecer os seus ros-

tos e se a história de seus crimes não é colocada

como crime nos livros didáticos e na imprensa, va-

mos às ruas publicizar, educar e informar, vamos fa-

zer o esculacho popular. Vamos expor aos seus vizi-

nhos quem é esse sujeito de cabelos brancos que

parece um bom velhinho. Vamos espalhar cartazes

dizendo onde mora um assassino, vamos contar a to-

dos que pudermos os crimes que cometeu e vamos

lembrar e homenagear os militantes que de uma for-

ma ou de outra passaram por suas mãos. Vamos gri-

tar, sobretudo, contra a impunidade: enquanto não

houver justiça haverá esculacho popular.

A FEP é composta por “jovens”, muitos dos quais

tiveram familiares mortos e desaparecidos. Somos

um grupo que de alguma forma se indigna com o

tema da ditadura e suas heranças, e que resolveu se

juntar para fazer ações que nossos vizinhos sul-ame-

ricanos já faziam há algum tempo. Desde a criação da

» por Frente de Esculacho Popularesculachoesquecimento0

contra o

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95

FEP, foram feitos três esculachos: um contra o Harry

Shibata (médico legista da Ditadura), outro contra

Homero César Machado (torturador) e outro contra

Carlos Alberto Augusto (torturador da equipe de

Fleury no DOPS que virou delegado em Itatiba, inte-

rior de São Paulo, no início de 2013). Shibata assinava

atestados de óbito falsos, escondia sinais de tortura

nos laudos dos militantes assassinados e atestava

como causa mortis a versão oficial dada pelo delega-

do de plantão: morte em tiroteio, suicídio ou atrope-

lamento. Era um médico que escolhia sempre o lado

da morte. Homero era chefe das equipes de interro-

gatório do DOI-Codi, um dos maiores centros de re-

pressão e tortura contra os opositores ao regime.

Aplicava choques elétricos e espancava os militantes

para conseguir informações, entre algumas outras

técnicas macabras. Carlos Alberto Augusto era o bra-

ço direito de Fleury, um dos mais cruéis torturadores

daquele período. Augusto organizou, entre outras

“ações”, o Massacre da Chácara São Bento, em Per-

nambuco, onde foram mortos seis militantes da Van-

guarda Popular Revolucionária (VPR). Seus crimes

não parecem ter sido crimes a partir do momento em

que é mantido em um cargo público na mesma polí-

cia. Ele tem a garantia da impunidade.

A não reforma das instituições que foram consti-

tuídas em uma época em que tortura e morte de opo-

sitores não eram exceção, mas política de estado, é

inadmissível. Além disso, todos os agentes que co-

meteram crimes de lesa-humanidade têm a proteção

de uma lei que colocou em um mesmo patamar agen-

tes de um estado tirano e terrorista; e militantes que

lutavam por um país melhor e pela volta da democra-

cia que, teoricamente, tinham o direito à revolta con-

tra a tirania e a opressão, prevista na Declaração Uni-

versal de Direitos Humanos.

A Lei da Anistia, de 1979, na realidade uma auto

-anistia, garante a impunidade dessas pessoas e o

esquecimento das graves violações de direitos huma-

nos cometidas durante mais de vinte anos. Por isso,

em um país onde a Comissão Nacional da Verdade

surge tímida, engessada, fraca e atrasada – quase

trinta anos depois do fim da ditadura – ousamos lu-

tar pelo não esquecimento. Somos militantes da vida.

Acreditamos que assim podemos nos interrogar e

disputar o significado de juventude que queremos.

Uma identidade combativa de juventude que repre-

sentou aquela geração. Esta identidade oculta de uma

geração que tinha, muito além de uma democracia

burguesa, uma perspectiva revolucionária e anticapi-

talista. Lembramos como viveram e morreram para

continuar lutando para que acabe a roda viva da desi-

gualdade e da opressão contra os mais pobres.

Lutamos porque há polícia por toda parte e justi-

ça em lugar nenhum. Os mesmos métodos da dita-

dura foram utilizados nos crimes de maio de 2006,

nas tantas desocupações de reitorias da USP e de ou-

tras universidades país afora – com tropa de choque

e bombas de gás –, na chamada Cracolândia, no Pi-

nheirinho, no Quilombo dos Macacos, contra os

Guarani Kaiowá, em Sonho Real, em Eldorado dos

Carajás, no Carandiru, nos assassinatos dos Sem

Terra e em tantas outras situações.

2013: tempo de Comissões da Verdade pelo país. A

Nacional, construída no pacto do possível, no acordo de

“nós vamos até onde eles nos deixarem ir”, vem tentar

botar uma pedra em cima da história, contra a memória

e pelo esquecimento. E depois quem ousar questionar

ainda pode correr o risco de ouvir “mas a Comissão da

Verdade já foi feita, o que mais vocês querem?”.

2013: jovens de 18 a 30 anos, que não viveram aque-

la época, que não têm necessariamente parentes

mortos ou desaparecidos se indignam, se revoltam,

se perguntam como e porquê? Como esses assassi-

nos malditos estão soltos, livres e impunes. Como

quem os rodeia não conhece seus crimes? Como se-

guimos vivendo, quase 50 anos depois do Golpe, em

um país sem memória? Em um país do pacto do pos-

sível, em um país onde a polícia mata, tortura, some

com corpos? Em um país teoricamente livre e demo-

crático, mas onde a polícia de nossa cidade, e de nos-

so estado mata mais do que naquela época e ainda

usa a mesma desculpa: foi morto ao reagir, atirando, à

voz de prisão. 2013, mas poderia ser 1964. Do mesmo

jeito que aqueles que morreram lutando por um país

mais justo, continuamos ousando lutar.

Page 96: Contrapelo 01

aquiagora

“senhor presidente, senhores membros do Conselho. Eu creio que

a revolução veio não apenas para restabelecer a moralidade admi-

nistrativa neste país, mas, principalmente, para criar as condições

que permitissem uma modificação de estruturas que facilitassem

o desenvolvimento econômico. Este é realmente o objetivo básico.

Creio que a revolução, muito cedo, meteu-se numa camisa-de-for-

ça que a impede, realmente, de realizar esses objetivos. Mais do

que isso, creio que, institucionalizando-se tão cedo, possibilitou

toda a sorte de contestação que terminou agora com este episó-

dio que acabamos de assistir. realmente, esse episódio é simples-

mente o sinal mais marcante da contestação global do processo

revolucionário. É por isso, senhor presidente, que eu estou plena-

mente de acordo com a proposição que está sendo analisada no

Conselho. E, se Vossa Excelência me permitisse, direi mesmo que

creio que ela não é suficiente. Eu acredito que deveríamos atentar

e deveríamos dar a Vossa Excelência, ao presidente da república,

a possibilidade de realizar certas mudanças constitucionais, que

são absolutamente necessárias para que este país possa realizar o

seu desenvolvimento com maior rapidez. Eram essas as considera-

ções que eu gostaria de fazer.”

Íntegra do voto de Antônio Delfim Netto na reu-

nião em que foi discutido e aprovado o Ato Institu-

cional nº 5, em 13 de dezembro de 1968. Delfim

Netto foi ministro da Fazenda, Planejamento e

Agricultura, além de embaixador na França, duran-

te a ditadura civil-militar (1964-1985). Foi conse-

lheiro informal do Presidente Lula e apoia o gover-

no de Dilma Rousseff. É colaborador da revista

Carta Capital e do jornal Folha de São Paulo.

ontem...

Page 97: Contrapelo 01

... hoje

As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.

SENTENçA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, CASO DA GUERRILHA DO ARAGUAIA, 2010.

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ficha técnica morro como um paÍS

Roteiro e direção geral: FErnAnDO KInAs

Elenco: FErnAnDA AzEVEDO

Cenário: JULIO DOJCsAr

Iluminação: HELOísA PAssOs

Figurino: MAITê CHAssErAUx

Pesquisa e música original: EDUArDO COnTrErA e FErnAnDO KInAs

Pesquisa e tratamento de imagens: MAysA LEPIqUE

Assessoria e treinamento musical: LUCIAnA FErnAnDEs e ArMAnDO TIBÉrIO

Direção de produção: LUIz nUnEs

Assistência de produção: DAnI EMBón

Programação visual: PAULO EMíLIO BUArqUE FErrEIrA e CAMILA LIsBOA

Assessoria de imprensa: ELIAnE VErBEnA

Operação de luz: TATy KAnTEr

Operação de som e vídeo: LUIs HEnrIqUE sOArEs

parceiroS do projeto:

Coletivo Merlino; Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos; Articulação e Coletivo pela Memória,

Verdade e Justiça; Comissão Estadual da Verdade de São Paulo; Frente de Esculacho Popular; Cordão da Mentira;

Movimento Mães de Maio; Coletivo Quem; Companhia Estável; Companhia Antropofágica; Coletivo Dolores.

MOrrO COMO UM PAís EsTrEOU nO DIA 1º DE MArçO DE 2013,

nO sóTãO DO TEATrO GrAnDE OTELO, sãO PAULO.

expediente da reviSta

COnTrAPELO – Caderno de estudos sobre arte e política, ano 1, número 1, junho de 2013

Coordenação editorial: FErnAnDO KInAs

Jornalista responsável: TATIAnA MErLInO MTB 64853 sP

Conselho editorial: FErnAnDA AzEVEDO, FErnAnDO KInAs e LUIz nUnEs

Colaboradores desta edição: AnGELA MEnDEs DE ALMEIDA, EDsOn TELEs, EDUArDO CAMPOs LIMA,

FABIO sALVATTI, FErnAnDO KInAs, FrEnTE DE EsCULACHO POPULAr, JOsÉ ArBEx Jr., MEI HUA sOArEs

Revisão: MAysA LEPIqUE

Projeto gráfico: CAMILA LIsBOA

Capa: FOTO DE FErnAnDO KInAs (FUnArTE, sãO PAULO, 2011)

2ª e 3ª capas: FOTO DE FErnAnDA AzEVEDO (EsCOLA DE MECânICA DA ArMADA, BUEnOs AIrEs, 2012)

Produção: LUIz nUnEs

Assistência de produção: DAnIELA EMBón

Responsável pela publicação: KIwI COMPAnHIA DE TEATrO

www.kiwiciadeteatro.com.br | [email protected]

Comentários, sugestões e críticas são bem-vindos

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TIRAGEM: 1.000 exemplares | IMPRESSÃO: Atrativa Gráfica e Editora | DISTRIBUIçÃO GRATUITA

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Page 100: Contrapelo 01

Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie. E, assim como ele não está livre da barbárie, assim também não o está o processo de sua transmissão, transmissão na qual ele passou de um vencedor a outro. Por isso, o materialista histórico, na medida do possível, se afasta dessa transmissão. Ele considera como sua tarefa escovar a história a contrapelo.

WALTER BENJAMIN, AS TESES SOBRE O CONCEITO DE HISTÓRIA (1940).

PROJETO APOIADO PELO PROGRAMA DE FOMENTO AO TEATRO PARA A CIDADE DE SÃO PAULO 2012/2013

REALIZAÇÃO: