contos de hans christian andersen

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Contos de Hans Christian Andersen

"Quis ser actor, cantor, e bailarino. Acabou por criar contos infantis que se tornaramficespara leitores de todas as idades.

Autor dos clebresO Soldadinho de Chumbo,O Patinho FeioouO Fato Novo do Imperador, Hans Christian Andersen, cujo bicentenrio do nascimento este ano se celebra*, nasceu a 2 de Abril de 1805, em Odense, na Dinamarca, no seio de uma famlia humilde.

Depois da morte do pai, que lhe costumava contar histrias com a ajuda de um teatro de fantoches, mudou-se para Copenhaga. Nunca casou nem teve filhos e, em 1835, publicou os dois primeiros dos 156 contos que haveria de escrever, inspirado no mundo de fadas e duendes e na tradio popular dinamarquesa.

Para comemorar aefemride, em Portugal, pas que o escritor visitou em 1866, aGailivrolana todos os seus contos, aBiblioteca Nacional promove uma exposiobibliogrficade 3 de Maro a 14 de Maio de 2005 e a Comuna apresentaO Homem sem Sombra, uma pea de Antnio Torrado baseada emA Sombra,Claus Grande e Claus PequenoeO Duende em Casa do Merceeiro".

A Princesa e a Ervilha

Era uma vez um prncipe que queria casar com uma princesa mas tinha de ser uma princesa verdadeira. Por isso, foi viajar pelo mundo fora para encontrar uma, mas havia sempre qualquer coisa que no estava certa. Viu muitas princesas, mas nunca tinha a certeza de serem genunashavia sempre qualquer coisa, isto ou aquilo, que no parecia estar como devia ser. Por fim, regressou a casa, muito abatido, porque queria uma princesa verdadeira.

Uma noite houve uma terrvel tempestade; os troves ribombavam, os raios rasgavam o cu e a chuva caa em torrentes era apavorante. No meio disso tudo, algum bateu porta e o velho rei foi abrir.

Deparou com uma princesa. Mas, meu Deus!, o estado em que ela estava! A gua escorria-lhe pelos cabelos e pela roupa e saa pelas biqueiras e pela parte de trs dos sapatos. No entanto, ela afirmou que era uma princesa de verdade.

Bem, j vamos ver isso pensou a velha rainha. No disse uma palavra, mas foi ao quarto de hspedes, desmanchou a cama toda e ps uma pequena ervilha no colcho. Depois empilhou mais vinte colches e vinte cobertores por cima. A princesa iria dormir nessa cama.

De manh, perguntaram-lhe se tinha dormido bem.

Oh, pessimamente! No preguei olho em toda a noite! S Deus sabe o que havia na cama, mas senti uma coisa dura que me encheu de ndoas negras. Foi horrvel.

Ento ficaram com a certeza de terem encontrado uma princesa verdadeira, pois ela tinha sentido a ervilha atravs de vinte edredes e vinte colches. S uma princesa verdadeira podia ser to sensvel.

Ento o prncipe casou com ela; no precisava de procurar mais. A ervilha foi para o museu; podem ir l v-la, se que ningum a tirou.

Aqui tm uma bela histria!

A Polegarzinha

Era uma vez uma mulher que queria ter um filho muito pequenino, mas no sabia como havia de fazer para encontrar um. Ento, foi ter com uma velha bruxa e disse-lhe:

Gostava tanto de ter um filho pequenino! No sabes dizer-me onde posso arranjar um?

Oh, isso no difcil disse a bruxa. Aqui tens um gro de cevada, e olha que no da que cresce nos campos dos lavradores nem daquela que as galinhas comem. Planta este gro num vaso e vers o que acontece!

Oh, obrigada! disse a mulher, dando uma moeda de prata bruxa.

Depois foi para casa e semeou o gro. No foi preciso esperar muito tempo para que nascesse uma bela flor; parecia uma tlipa, mas as ptalas estavam muito fechadas como se fosse ainda um boto.

Que linda flor! disse a mulher, dando um beijo nas ptalas vermelhas e amarelas.

Nesse preciso momento, a flor abriu-se com um forte estalido. Era realmente uma tlipa agora via-se bem , mas mesmo no centro da flor, no centro verde, estava sentada uma menina minscula, graciosa e delicada como uma fada.

No era maior que metade de um polegar, e por isso ficou a chamar-se Polegarzinha.

A cama em que dormia era uma casca de noz muito bem polida; tinha um colcho de ptalas de violeta azuis-escuras e o seu cobertor era uma ptala de rosa. Dormia ali noite, mas durante o dia brincava em cima da mesa, onde a mulher tinha posto um prato de sopa cheio de gua com um crculo de flores volta, com os caules virados para o meio. Dentro do prato, a flutuar, estava uma grande ptala de tlipa em que a Polegarzinha se podia sentar e remar de um lado para o outro usando dois plos brancos de cavalo como remos. Era lindo de se ver! Ela tambm sabia cantar, e tinha a vozinha mais frgil e mais doce que jamais se ouviu.

Uma noite, quando estava deitada na sua linda cama, um sapo entrou no quarto atravs de um vidro partido da janela. O sapo parecia muito grande e estava molhado quando saltou para cima da mesa onde a Polegarzinha dormia profundamente debaixo da sua ptala de rosa.

Ora aqui est uma bela esposa para o meu filho! disse o sapo.

E pegou na cama de casca de noz em que a Polegarzinha estava a dormir e saltou com ela atravs da janela para o jardim. No fim do jardim corria um largo regato, de margens pantanosas e lamacentas; era a que o sapo vivia com o seu filho.

Este no era nada bonito; na realidade, era igualzinho ao pai.

Croc! Croc! Brec-rec-rec! foi tudo quanto disse quando viu a linda menina na casca de noz.

No fales to alto, se no ela acorda disse-lhe o pai. Olha que pode fugir, porque leve como uma pena de cisne. J sei, vamos p-la no meio do rio, em cima de uma daquelas grandes folhas de nenfar! Assim, ela vai pensar que est numa ilha, porque uma criaturinha minscula. Entretanto, ns podemos comear a preparar o melhor quarto debaixo da lama, para vocs os dois l viverem.

No regato, havia muitos nenfares com grandes folhas verdes que pareciam flutuar soltas na gua. A folha que estava mais longe era tambm a maior de todas, e foi nela que o velho sapo poisou a casca de noz com a Polegarzinha. A pobre menina acordou muito cedo e, quando viu onde estava, comeou a chorar amargamente, porque havia gua a toda a volta da grande folha e era impossvel voltar para terra.

Entretanto, o velho sapo andava metido na lama, decorando atarefadamente o quarto com juncos e flores aquticas amarelas, para ficar bonito e alegre para a sua futura nora. Depois, acompanhado pelo filho, nadou at folha onde estava a Polegarzinha. Iam buscar a linda cama de casca de noz para a colocarem no quarto antes de a noivazinha ir para l. O velho sapo, ainda dentro de gua, fez uma profunda vnia e disse Polegarzinha:

Este o meu filho. Vai ser o teu marido, e vocs os dois vo viver muito felizes numa bela casa debaixo da lama.

Croc! Croc! Brec-rec-rec! foi tudo o que o filho disse.

Ento, pegaram na bonita caminha e l foram a nadar com ela, enquanto a Polegarzinha ficava sozinha na folha verde, a chorar, porque no lhe apetecia nada viver com o velho sapo nem casar com o filho dele. Ora os peixinhos que nadavam ali por baixo tinham visto o sapo e ouvido o que ele dissera, de maneira que deitaram as cabeas de fora para verem a menina. Mas, assim que o fizeram, viram como era bonita e ficaram cheios de pena por ela ter de ir viver na lama com o sapo. No, isso no podia acontecer! Juntaram-se em redor do p verde da folha em que ela estava e puseram-se a ro-lo sem parar.

L foi a folha, flutuando pelo regato, levando a Polegarzinha para longe, cada vez para mais longe, para onde o sapo no podia ir.

Quando ela passava, os passarinhos nas rvores cantavam "Que linda criaturinha!" assim que a viam. E a folha l ia a deslizar, cada vez para mais longe - e foi assim que a Polegarzinha chegou a outro pas.

Uma linda borboleta branca esvoaava por cima dela e acabou por poisar na folha, porque tinha comeado a gostar da menina. Como ela estava feliz agora! O sapo j no podia apanh-la e era tudo maravilhoso sua volta, para onde quer que olhasse. A gua, onde o sol brilhava, parecia ouro a cintilar. A Polegarzinha tirou o seu cinto e deu uma ponta borboleta amiga e atou a outra folha. Agora que ia mesmo depressa!

Nesse momento, um grande escaravelho apareceu a voar por cima dela. Assim que viu a menininha, agarrou-a num pice pela cintura e voou com ela para o cimo de uma rvore. A folha verde continuou a flutuar rio abaixo com a borboleta.

Meu Deus!, como a Polegarzinha ficou assustada quando o escaravelho a levou para cima da rvore! E como teve pena da sua amiga, a borboleta branca! Mas o escaravelho no queria saber disso. Poisou na maior folha verde da rvore e largou-a a. Deu-lhe plen para comer e disse-lhe que ela era muito bonita, embora no tanto como um escaravelho.

Em breve, todos os outros escaravelhos que viviam na rvore foram visit-la. Olhavam para ela, e as jovens escaravelhas encolhiam as antenas, dizendo: "Mas s tem duas pernas, este insecto miservel! No tem antenas! Tem uma cintura to fina! Parece mesmo humana! Que feia que !", e por a fora, apesar de a Polegarzinha ser realmente uma criatura linda.

O escaravelho que a tinha levado tambm era desta opinio, mas quando todas as escaravelhas disseram que ela era horrvel, ele comeou a pensar o mesmo e acabou por no querer saber dela; podia ir para onde quisesse. Vrias escaravelhas pegaram nela e voaram at ao solo, deixando-a em cima de uma margarida. L ficou ela a chorar, por ser to feia que os escaravelhos no a queriam e, no entanto, era a criaturinha mais bonita que se podia imaginar, mais bela que a mais perfeita ptala de rosa.

Durante todo o Vero, a pobre Polegarzinha viveu completamente sozinha na grande floresta. Teceu uma cama com ervas e pendurou-a como se fosse uma rede por baixo de uma grande folha de azeda, para ficar abrigada da chuva. Para comer apanhava mel e plen das flores e bebia as gotas de orvalho que encontrava todas as manhs nas folhas. E assim passou o Vero e o Outono, mas depois chegou o Inverno, o longo e frio Inverno. Os passarinhos, que to docemente tinham cantado, voavam agora para longe, as rvores perdiam as folhas, as flores murchavam. Depois, a grande folha de azeda que lhe fazia de telhado comeou a enrolar-se e murchou, at que ficou apenas uma haste seca e amarela. A Polegarzinha tinha imenso frio, porque o seu vestido estava todo roto e ela era muito frgil e pequenina. Em breve morreria de frio. A neve comeou a cair, e cada floco que caa sobre ela era to pesado como uma pazada atirada a um de ns. Afinal, ela s tinha dois centmetros e meio de altura. Embrulhou-se numa folha murcha, mas no conseguiu aquecer-se, e tremia cada vez mais.

Por essa altura, j tinha alcanado a orla da floresta. Mesmo ao lado havia um grande campo de trigo, mas este tinha sido ceifado h muito tempo e s se via o restolho seco na terra gelada. Para ela, aquilo era o mesmo que uma floresta para atravessar e oh!, como ela tremia de frio! Finalmente, chegou porta de um rato do campo, que vivia numa casinha por baixo do restolho. Era aconchegada e confortvel, com um armazm cheio de trigo, uma cozinha quente e uma sala de jantar. A pobre Polegarzinha parou porta da casa do rato como se fosse uma mendiga e pediu se ele lhe dava um bocadinho de um gro, porque j h dois dias que no comia nada.

Pobrezinha! disse o rato do campo, que tinha muito bom corao. Vem para a cozinha, que est quente, e comes comigo.

Gostou tanto da companhia da Polegarzinha que acabou por lhe dizer:

Podes ficar comigo durante o Inverno, mas tens de limpar e arrumar a casa e contar-me histrias. Gosto muito de histrias.

A Polegarzinha fez o que o velho rato do campo lhe disse; e o tempo foi passando agradavelmente.

Em breve teremos uma visita disse o rato do campo. O meu vizinho vem visitar-me todas as semanas. A casa dele ainda melhor do que a minha, com grandes e belos quartos, e ele usa um lindo casaco de veludo preto! Se conseguisses que ele casasse contigo, nunca mais te faltaria nada. Mas ele quase cego, de maneira que tens de te preparar para lhe contar as melhores histrias que souberes.

A Polegarzinha no gostou muito da ideia. No lhe apetecia nada casar com o vizinho rico; era um toupeiro, e veio fazer a sua visita com o casaco de veludo preto. O rato do campo lembrou Polegarzinha como ele era rico e culto; disse-lhe que a casa dele era vinte vezes maior do que a sua.

Que ele sabia muitas, muitas coisas, embora no gostasse do sol e das lindas flores, porque nunca os tinha visto. A Polegarzinha teve de cantar para ele, e cantouTive uma nogueirazinhaeJoaninha voa, voa. O toupeiro apaixonou-se pela sua linda voz, mas no disse nada, porque era muito cauteloso.

Ele tinha escavado recentemente uma passagem muito longa, que ia da sua casa do vizinho, e disse ao rato do campo e Polegarzinha que podiam ir visit-lo quando quisessem. Mas pediu-lhes que no tivessem medo da ave morta que estava na passagem. Contou-lhes que a ave no tinha qualquer marca nem ferida, no lhe faltavam penas, e o bico estava intacto; devia ter morrido h muito pouco tempo, com a chegada do Inverno, e, de alguma maneira, tinha cado na sua passagem subterrnea.

Ento, o toupeiro agarrou num pedao de madeira podre com a boca (porque a madeira podre brilha como fogo no escuro) e foi frente para iluminar a longa passagem para os seus convidados. Depressa chegaram ao stio onde estava a ave, e o toupeiro empurrou o tecto com o focinho largo, levantando a terra para fazer um buraco que deixou entrar a luz do dia. E l estava uma andorinha, com as lindas asas encostadas ao corpo, as pernitas e a cabea escondidas nas penas; a pobre ave de certeza que tinha morrido de frio. A Polegarzinha teve muita pena dela, porque amava todas as avezinhas, que tinham cantado e chilreado para ela de uma maneira to encantadora durante todo o Vero. Mas o toupeiro empurrou a andorinha para o lado com as suas pernitas curtas e disse:

Esta j no assobia mais! Que pouca sorte nascer ave! Felizmente que nenhum dos meus filhos ser como elas. Uma ave no sabe fazer nada a no ser dizer tuit-tuit e depois morrer de fome no Inverno!

Sim, l nisso tens razo disse o rato do campo. Com todo o seu tuit-tuit, que que elas fazem quando chega o Inverno? Morrem de fome e de frio. E, no entanto, toda a gente as acha muito importantes.

A Polegarzinha no disse uma palavra, mas, quando os outros recomearam a andar, baixou-se, afastou meigamente as penas da cabea da andorinha e beijou-lhe os olhos fechados.

Talvez esta seja a que cantou to suavemente para mim durante o Vero pensou. Que felicidade me deu esta pobre avezinha da floresta!

Ento, o toupeiro tapou o buraco que tinha feito para deixar entrar a luz do dia e acompanhou as visitas a casa. Mas nessa noite a Polegarzinha no conseguia dormir, de maneira que levantou-se e teceu uma cobertazinha de feno. Quando acabou, foi p-la em cima da ave. Ao lado, deixou um pouco de lanugem de cardo que tinha encontrado na sala de estar do rato do campo, para que a ave pudesse repousar quentinha sobre a terra fria.

Adeus, linda andorinha! disse ela. Adeus e obrigada pelas tuas belas canes no Vero, quando as rvores estavam verdes e o Sol brilhava to alegremente sobre ns todos!

Depois encostou a cabea ao corao da andorinha mas ficou logo muito espantada, porque parecia que alguma coisa batia l dentro. Era o corao da andorinha a bater. No estava morta, apenas entorpecida pelo frio, e, como tinha sido aquecida, comeava a voltar a si.

No Outono, as andorinhas voam todas para terras mais quentes, mas, se uma delas se atrasa, o frio pode faz-la gelar; ento cai no cho e depressa fica coberta de neve.

A Polegarzinha tremia, assustada; a ave era muito maior do que ela, que s tinha dois centmetros e meio de altura. Mas encheu-se de coragem e aconchegou a lanugem de cardo ao corpo da pobre andorinha. Depois, foi a correr buscar a sua coberta, uma folha de hortel, para lhe tapar a cabea.Na noite seguinte, esgueirou-se outra vez para visitar a andorinha ela estava realmente viva, mas to fraca que mal pde abrir os olhos para olhar para a Polegarzinha. Ali estava ela, com um pedacinho de madeira podre na mo, porque no tinha outra lanterna.

Obrigada, obrigada, linda menina disse a andorinha doente. Aqueceste-me to bem que depressa estarei suficientemente forte para voar ao sol brilhante.

Oh! exclamou a Polegarzinha , ainda est muito frio l fora! H neve e gelo por todo o lado. Fica a na tua caminha quente que eu trato de ti.

Depois levou-lhe gua numa folha, e a andorinha bebeu e contou-lhe como tinha magoado uma asa numas silvas e, por isso, no tinha conseguido voar to depressa como as outras andorinhas quando partiram para terras mais quentes. Por fim, acabara por cair, e no se lembrava de mais nada. No fazia a menor ideia de como tinha ido parar ali.

Durante todo o Inverno, a andorinha ficou na passagem subterrnea. A Polegarzinha tratou dela e tornou-se muito sua amiga. Mas no disse nada ao toupeiro nem ao rato do campo, porque eles no gostavam de avezinhas. Por fim, chegou a Primavera e os raios de Sol comearam a atravessar a terra. A andorinha disse adeus Polegarzinha e reabriu o buraco que o toupeiro tinha feito no tecto da passagem. A luz do Sol encheu ambas de alegria, e a andorinha pediu Polegarzinha que fosse com ela; podia subir para as suas costas e voariam para a floresta cheia de verdura. Mas a Polegarzinha sabia que o velho rato do campo ficaria triste se ela se fosse embora assim sem mais nem menos.

No, no posso ir disse ela.

Ento adeus, adeus, linda menina bondosa! respondeu a andorinha, voando em direco ao Sol.

A Polegarzinha viu-a subir no cu, e os seus olhos encheram-se de lgrimas, porque se tinha tornado muito amiga da pobre andorinha.

Tuit, tuit! cantou a avezinha, voando em direco floresta verde.

A Polegarzinha estava agora muito triste. No a deixavam sair para a claridade do Sol, e, nos campos onde vivia, o trigo era to alto que, para ela, era como uma floresta que se erguia muito acima da sua cabea.

Tens de ter o teu enxoval pronto este Vero disse o rato do campo, porque, entretanto, o vizinho toupeiro do casaco de veludo tinha proposto casamento Polegarzinha. Precisas de roupas de linho e l e de muitos cobertores e lenis quando fores casada com o toupeiro.

A Polegarzinha teve de trabalhar arduamente com a roca, e o toupeiro contratou quatro aranhas para tecerem para ela de dia e de noite. Todas as tardes lhe fazia uma vista e dizia sempre que, quando o Vero acabasse e o Sol no estivesse to terrivelmente quente e deixasse de queimar a terra at a deixar dura com uma pedra, ento casariam. Mas a Polegarzinha no estava nada satisfeita, porque no gostava daquele velho toupeiro to pomposo. Todas as manhs, quando o Sol se erguia, e todas as noites, quando se punha, ela esgueirava-se l para fora; quando o vento fazia ondular as espigas de trigo, conseguia ver o cu azul e pensava sempre como era bom e belo viver ao ar livre. Desejava imenso ver de novo a sua amiga andorinha, mas ela no voltou a aparecer; tinha voado para o bosque verde coberto de folhas.

Quando o Outono chegou, o enxoval da Polegarzinha estava pronto.

Casas daqui a quatro semanas disse o rato do campo.

Mas a Polegarzinha comeou a chorar e disse que no queria casar com o toupeiro.

Que disparate! respondeu o rato do campo. No te ponhas com problemas. Arranjaste um marido esplndido, pois nem a rainha tem um casaco de veludo preto to bom como o dele! E pensa naquela cozinha e cave to bem fornecidas! Deves agradecer a tua boa sorte.

E, assim, chegou o dia do casamento. O toupeiro j tinha ido buscar a Polegarzinha, pois ela ia viver com ele bem debaixo do solo; nunca mais poderia apanhar a luz radiante do Sol, porque o toupeiro no a suportava. Cheia de tristeza, foi dizer o ltimo adeus ao Sol brilhante; enquanto vivera com o rato do campo, sempre a tinham deixado ir pelo menos at porta.

Adeus, Sol brilhante! disse ela, erguendo os braos em direco a ele e dando alguns passos no campo imenso, pois o trigo tinha sido ceifado e s ficara o restolho. Adeus, adeus disse ela outra vez, abraando uma florzinha vermelha que crescia por entre os caules. Se alguma vez tornares a ver a andorinha, diz-lhe que lhe mando saudades!

Nesse preciso momento ouviu um som tuit, tuit mesmo por cima de si. Era a andorinha.

Como estava, contente por ver a sua amiga Polegarzinha! Ento esta contou-lhe que tinha de casar nesse mesmo dia com o toupeiro e ir viver com ele debaixo da terra, onde o Sol nunca brilhava. E as lgrimas saltaram-lhe dos olhos s de pensar nisso.

Vem a o frio Inverno disse a andorinha. Vou voar para longe, para os pases quentes. Por que no vens comigo? Podes subir para as minhas costas e atares-te a mim com o teu cinto. Deixamos o toupeiro e a sua casa escura e voamos para muito, muito longe, por cima das montanhas, para um pas onde o Sol brilha ainda mais do que aqui, onde sempre Vero e onde as matas e as florestas esto cobertas das mais belas flores. Ah, vem comigo, querida Polegarzinha, tu que me salvaste a vida quando eu estava gelada na escura passagem debaixo da terra!

Sim, vou contigo acabou por dizer a Polegarzinha.

Sentou-se nas costas da ave e atou o cinto a uma das suas penas mais fortes. Ento, a andorinha ergueu-se muito alto no cu e voou por cima de florestas, lagos e montanhas onde h sempre neve. O ar gelado fazia a Polegarzinha tremer, mas ela enfiava-se debaixo das penas quentes da ave e s espreitava para olhar, assombrada, para as belas coisas l em baixo.

Por fim, chegaram aos pases quentes. A, o Sol brilhava com muito mais intensidade do que a Polegarzinha supunha ser possvel; o cu parecia duas vezes mais alto. Ao longo das estradas, havia deliciosas uvas brancas e roxas; limes e laranjas pendiam das rvores; o ar estava perfumado de mirto e de muitas outras plantas aromticas; e, pelos caminhos, corriam muitas crianas lindas, a brincar por entre coloridas borboletas. Mas a andorinha voou ainda para mais longe, para onde a paisagem era tambm ainda mais bonita. E ento, sombra de enormes rvores verdes, na margem de um lago azul-safira, viram um palcio muito antigo construdo em mrmore branco, com videiras enroladas nas suas altas colunas. Mesmo no cimo das colunas havia muitos ninhos de andorinhas, e num deles vivia a amiga da Polegarzinha.

A minha casa esta disse ela. Mas, se quiseres escolher uma daquelas lindas flores ali em baixo, eu ponho-te l, e podes viver feliz tua vontade.

Ah, como vou gostar! gritou a Polegarzinha, batendo as mozinhas.

Uma grande coluna branca estava cada por terra, partida em trs bocados, e entre eles cresciam altas e belas flores brancas. A andorinha voou at l abaixo com a Polegarzinha e poisou-a numa ptala. Ento, a Polegarzinha teve uma grande surpresa. Ali, no centro da flor, estava um principezinho, to belo e delicado que parecia feito de vidro. Tinha na cabea a coroa de ouro mais bonita que pode imaginar-se e nos ombros um par de asas coloridas e brilhantes, e no era maior do que a prpria Polegarzinha. Era o esprito que guardava a flor. Em cada flor havia uma criaturinha igual, mas ele era o rei de todas.

Que bonito que ele ! sussurrou a Polegarzinha andorinha.

O principezinho ao princpio ficou muito assustado com a ave, que lhe parecia gigantesca, mas quando viu a Polegarzinha ficou cheio de alegria. Achou que ela era a mais bela de todas as criaturas que jamais tinha visto, mesmo entre as fadas das flores. Tirou a coroa de ouro da sua cabea e colocou-a na dela e perguntou-lhe como se chamava e se queria ser sua mulher e rainha de todas as flores.

Bem, este marido podia ela amar de verdade era muito diferente do filho do sapo ou do velho toupeiro com o seu casaco de veludo. E por isso disse que sim ao belo prncipe. Ento, ergueu-se de cada flor uma criaturinha, rapaz ou rapariga, homem ou mulher, to pequeninas e to bonitas que era emocionante v-las. Todas deram uma prenda Polegarzinha, mas a melhor de todas foi um lindo par de asas. Prenderam-nas aos ombros da Polegarzinha, e agora tambm ela podia voar de flor em flor. Toda a gente estava cheia de alegria: era como uma maravilhosa festa de Vero. A andorinha, l em cima no seu ninho, cantou-lhes a cano mais bonita que sabia, mas no fundo estava triste, porque gostava tanto da Polegarzinha que no queria separar-se dela.

Nunca mais te chamars Polegarzinha declarou o prncipe das flores. No um nome suficientemente bonito para uma criatura to bela como tu. A partir de agora, vamos chamar-te Maia!

Adeus, adeus disse a andorinha, quando chegou a altura de voar de novo dos pases quentes para a Dinamarca.

A, ela tinha um pequeno ninho ao lado da janela do homem que escreve contos de fadas.

Ouve, ouve trinou a andorinha para o escritor de contos de fadas...

E foi assim que soubemos esta histria.

O Fato Novo do Imperador

Era uma vez um imperador que viveu h muitos anos. Gostava tanto de roupas novas e bonitas que gastava todo o seu tempo e dinheiro a vestir-se. No ligava importncia ao exrcito, no ia ao teatro, no andava de carruagem por entre o povo a no ser quando queria exibir uma fatiota nova. Tinha um casaco diferente para cada hora do dia; e, tal como se ouve dizer de outros soberanos: "Est em Conselho!", no seu caso a resposta seria: "O imperador est no quarto de vestir!"

A vida era bastante alegre na cidade em que ele vivia. Estavam sempre a chegar forasteiros, e um dia apareceram dois indivduos com um ar suspeito que diziam ser teceles. Mas, segundo eles, o tecido que fabricavam no s era extraordinariamente belo como tinha ainda propriedades mgicas: mesmo quando transformado em peas de vesturio, era invisvel para todas as pessoas que no desempenhassem bem as suas tarefas ou que fossem particularmente estpidas. Excelente! pensou o imperador. "Que bela oportunidade para descobrir quais os homens do meu reino que no devem estar nos lugares que ocupam e quais so os espertos e os estpidos! Pois , aquele material tem de ser tecido e transformado em roupa imediatamente!"

E deu aos dois malandros uma grande quantia de dinheiro para comearem a trabalhar.

Assim, os dois patifes montaram dois teares e agiram como se estivessem a trabalhar afanosamente, mas a verdade que no havia nada nos teares. Pouco depois, estavam a pedir o melhor fio de seda e de ouro, que meteram nos seus prprios bolsos, continuando a mover os braos diante dos teares vazios pela noite dentro.

Ao fim de algum tempo, o imperador pensou: "Gostava realmente de saber como vai aquilo!"

Mas, quando se lembrou de que o tecido no podia ser visto pelas pessoas estpidas ou incompetentes no seu trabalho, sentiu-se um tanto embaraado em ir ele prprio. No que tivesse quaisquer dvidas quanto s suas capacidades, claro, mas achou que talvez fosse melhor mandar algum primeiro, Afinal de contas, toda a gente na cidade sabia dos poderes especiais do tecido; toda a gente estava ansiosa por descobrir at que ponto o vizinho era estpido ou incompetente.

J sei! Vou l mandar o meu velho e honesto ministro! decidiu. o homem indicado, o mais sensato possvel, e ningum pode queixar-se da maneira como desempenha as suas funes.

Ento, o bom velho ministro foi sala onde os dois malandros estavam a fingir que trabalhavam nos teares.

"Que Deus me ajude!" pensou ele, abrindo os olhos cada vez mais. "No consigo ver nada."

Mas guardou o pensamento s para si.

Os dois vigaristas pediram-lhe que se aproximasse; no achava ele que os padres eram lindos e as cores deliciosas? E gesticulavam diante dos teares vazios. Mas, embora o pobre velho ministro espreitasse e olhasse fixamente, continuava a no ver nada, pela simples razo de que no havia l nada para ver.

"Cus!", pensou. "Serei mesmo estpido? Nunca pensei que fosse, e o melhor que ningum o pense! Serei mesmo incompetente a desempenhar as minhas funes? No, no posso dizer que no vejo o tecido."

Ento, no o acha admirvel? perguntou um dos falsos teceles, continuando a mexer as mos. Ainda no disse nada!

Oh, encantador, perfeitamente maravilhoso disse o pobre velho ministro, olhando atentamente atravs dos culos. O padro, as cores... sim, tenho de dizer ao imperador que os acho notveis.

Bem, isso muito animador disseram os dois teceles, apontando-lhe os pormenores do padro e as diferentes cores utilizadas.

O velho ministro ouviu atentamente, de modo a poder repetir tudo ao imperador. E foi o que fez.

Os dois impostores ento pediram mais dinheiro e mais fio de sede e de ouro; disseram que precisavam disso para acabarem o tecido. Mas tudo que lhes deram foi direitinho para os seus bolsos e nem um ponto apareceu nos teares.Apesar disso, continuaram a agitar afanosamente os braos diante das mquinas vazias.

Mais tarde, o imperador mandou outro honesto funcionrio para ver o andamento do trabalho e saber se o tecido estaria pronto em breve. Aconteceu-lhe a mesma coisa que ao ministro; olhou e tornou a olhar, mas, como no havia nada para ver seno os teares vazios, nada foi tudo o que ele viu.

No um belo tecido? perguntaram os aldrabes.

E ergueram o tecido imaginrio diante dele, apontando para o padro que no existia.

"Eu acho que no sou estpido", pensou o funcionrio. "Se calhar no sou a pessoa indicada para o cargo que desempenho. Bem, nunca pensaria tal coisa! E o melhor que ningum o pense!"

Por isso, emitiu rudos de apreciao sobre o tecido que no conseguia ver e disse aos homens que gostava muito das cores e do desenho.

Sim afirmou ao imperador , magnfico.

As notcias sobre aquele tecido fantstico depressa se espalharam pela cidade. E ento o imperador decidiu ir v-lo ainda nos teares. Assim, com alguns servidores cuidadosamente escolhidos entre os quais os dois honestos funcionrios que j l tinham estado , foi sala de tecelagem, onde os malandros faziam as suas palhaadas, to activos como sempre.

Que tecido esplndido! exclamou o velho ministro.

Veja o padro, majestade! Observe as cores! disse o outro funcionrio.

E apontavam para os teares vazios, porque estavam certos de que as outras pessoas viam o tecido.

"Isto terrvel!", pensou o imperador. "No vejo nada! Serei estpido? Serei incompetente como imperador? assustador pensar uma coisa dessas." Ento, disse em voz alta:

Oh, encantador, encantador! Tem toda a nossa aprovao!

Acenou com ar satisfeito para os teares vazios; nunca iria admitir que no via l absolutamente nada.

E os cortesos que o acompanhavam tambm olhavam fixamente, todos eles secretamente alarmados por no serem capazes de ver um nico fio. Mas, em voz alta, fizeram eco com o imperador:

Encantador, encantador!

E aconselharam-no a utilizar o esplndido tecido para o novo fato real que teria de vestir num grande cortejo a realizar dentro em pouco.

magnfico e to fora do vulgar... era o que se ouvia de todos os lados.

E o imperador condecorou os dois impostores com uma roseta para porem nas botoeiras dos casacos e o ttulo de Funcionrio Imperial do Tear.

Durante toda a noite anterior ao dia do cortejo, os dois aldrabes fingiram trabalhar, com dezasseis velas sua volta. Toda a gente podia ver como eles estavam atarefados, tentando acabar a tempo o fato novo do imperador. Fingiam tirar o tecido dos teares, cortavam o ar com grandes tesouras de alfaiate, cosiam e tornavam a coser com agulhas sem linha. Por fim, anunciaram:

A roupa est pronta!

O imperador foi v-la com os seus cortesos mais nobres, e os dois aldrabes ergueram os braos como se estivessem a levantar alguma coisa.

Aqui esto as calas disseram eles. Aqui est o casaco e aqui est a cauda... e por a fora. So leves como espuma; pelo toque, dir-se-ia que no se tem nada vestido, mas a beleza est precisamente a.

Sim, claro... disseram os acompanhantes do imperador, embora continuassem sem ver nada, porque no havia nada para ver.

Se Vossa Majestade Imperial quiser fazer o favor de tirar a roupa que tem vestida, teremos a honra de o ajudar a vestir esta diante do espelho grande.

O imperador despiu-se e os dois aldrabes fingiram entregar-lhe as roupas novas, uma pea de cada vez. Depois, com os braos volta da sua cintura, fingiram ajustar a cauda, num toque final.

O imperador virou-se e deu uma volta em frente do espelho.

Que elegante! Que bem que assenta! murmuravam os cortesos. Que tecido to rico! Que cores magnficas! J alguma vez tinham visto uma coisa to magnfica?

Majestade disse o mestre-de-cerimnias , o dossel j est l fora.

O dossel cobriria o imperador durante o cortejo.

Bem exclamou o imperador , estou pronto. Assenta realmente muito bem, no acham?

E tornou a dar umas voltas em frente do espelho, como quem se admira pela ltima vez. Os cortesos que tinham de pegar na ponta da cauda baixaram-se, como se erguessem alguma coisa do cho, e levantaram as mos diante de si.

No iam deixar o povo pensar que eles no viam nada.

E assim o imperador foi caminhando no imponente cortejo, sob o esplndido dossel, e toda a gente nas ruas ou nas janelas exclamava:

Que ar magnfico tem o imperador! E as roupas novas... no so maravilhosas? Olhem s para a cauda! Que elegante!

O facto que ningum queria admitir que no via roupas nenhumas, porque isso significaria que eram estpidos ou ento incompetentes no seu trabalho. Nenhum dos belos fatos do imperador tinha sido to admirado at ento.

Foi quando se ouviu claramente uma voz espantada de criana:

O imperador no leva nada vestido!

Estes inocentes! As coisas ridculas que dizem! exclamou o pai da criana.

Mas um murmrio comeou a crescer no meio da multido: Aquela criana diz que o imperador no leva nada vestido... o imperador no leva nada vestido! E da a pouco toda a gente repetia: O imperador no leva nada vestido!

Por fim, at o prprio imperador achou que eles deviam ter razo, mas pensou para si prprio:

"No posso parar, seno estrago o cortejo."

E l foi andando com um ar cada vez mais orgulhoso, enquanto os cortesos continuavam a segurar uma cauda que no existia.

O Firme Soldado de Chumbo

Era uma vez vinte e cinco soldados de chumbo, todos irmos, porque tinham sido todos feitos da mesma colher de cozinha. Tinham armas aos ombros e olhavam em frente, muito elegantes nos seus uniformes encarnados e azuis. Soldados de chumbo! foi a primeira coisa que ouviram neste mundo, quando levantaram a tampa da caixa onde estavam.

Um rapazinho tinha dado esse grito e batido as palmas; tinham-lhos dado como prenda de anos, e ele colocou-os em cima de uma mesa. Os soldados eram todos iguais uns aos outros excepto um, que s tinha uma perna; fora o ltimo a ser moldado e j no havia chumbo que chegasse. No entanto, mantinha-se de p to bem como os outros que tinham duas pernas, e ele o heri desta histria.

Na mesa onde os colocaram havia muitos outros brinquedos, mas aquele em que se reparava logo era um castelo de papel. Pelas suas janelinhas via-se o interior das salas. frente havia pequenas rvores volta de um pedao de espelho, a fingir que era um lago. Cisnes de cera pareciam flutuar na sua superfcie e olhavam para o seu reflexo. Toda a cena era um encanto, mas o mais bonito de tudo era uma menina que estava porta; tambm ela era feita de papel, mas tinha uma fina saia de musselina, uma estreita fita azul cruzada nos ombros, como se fosse um xaile, presa por uma brilhante lantejoula quase do tamanho da cara. A encantadora criaturinha tinha os braos estendidos, porque era uma bailarina; tinha mesmo uma perna to levantada que o soldado de chumbo nem conseguia v-la; ento ele pensou que ela s tinha uma perna, tal como ele.

"Ora a est a mulher que me convm", pensou ele. "Mas to importante; ela vive num castelo, e eu tenho uma caixa... e estamos vinte e cinco l dentro! No h espao para ela, com certeza. Mas posso tentar conhec-la."

Ento, deitou-se ao comprido atrs de uma caixa de rap que estava em cima da mesa; da podia ver bem a danarina de papel, que continuava de p numa s perna sem perder o equilbrio.

Quando anoiteceu, todos os outros soldados de chumbo foram guardados na caixa e as crianas foram para a cama. Nessa altura, os brinquedos comearam a brincar; jogaram s visitas, s escolas, s batalhas e s festas. Os soldados de chumbo chocalhavam na caixa, porque tambm queriam brincar, mas no conseguiam levantara tampa. Os quebra-nozes davam cambalhotas e a pena da ardsia rangia a escrever; o barulho era tanto que o canrio acordou e se meteu na conversa melhor ainda, f-lo em verso. Os dois nicos que no se mexeram foram o soldado de chumbo e a pequena bailarina; ela continuava apoiada na ponta do p, com os braos estendidos; ele parado firmemente na sua nica perna, sem nunca tirar os olhos dela.

O relgio bateu a meia-noite. Crac! a tampa da caixa de rap abriu-se e saltou de l de dentro um duendezinho negro. No havia rap dentro da caixa afinal era um truque, um boneco que saltava de uma caixa.

Soldado de chumbo! guinchou o duende. Deixa de olhar para ela!

Mas o soldado de chumbo fingiu no ouvir.

Muito bem, ento amanh vais ver! disse o duende.

Quando amanheceu e as crianas se levantaram outra vez, puseram o soldado de chumbo no parapeito da janela. Pode ter sido culpa do duende, ou talvez de uma corrente de ar seja como for, a janela abriu-se de repente, e o soldado de chumbo caiu da altura de trs andares para a rua. Foi uma queda terrvel! A perna apontava para cima, tinha a cabea para baixo, e acabou por ficar com a baioneta espetada entre as pedras da calada.A criada e o rapazinho foram para a rua procura dele, mas, embora quase o pisassem, no conseguiram v-lo. Se ele tivesse gritado: "Estou aqui!", t-lo-iam encontrado facilmente, mas ele achou que no era um comportamento correcto comear a gritar estando fardado.

Depois, comeou a chover; caam grossas pingas era um valente aguaceiro. Quando acabou, passaram por ali dois rapazitos da rua.

Olha! Disse um deles. Est aqui um soldado de chumbo. Vamos met-lo num barco.

Fizeram um barco de papel de jornal, puseram o soldado de chumbo no meio e fizeram-no deslizar pela valeta cheia de gua. L foi ele a toda a velocidade e os dois rapazitos corriam a seu lado a bater palmas. Meu Deus, que grandes ondas havia naquela valeta, que mars! Tinha sido uma grande chuvada. O barco de papel balanava para baixo e para cima, por vezes andando s voltas, at o soldado de chumbo ficar completamente tonto. Mas manteve-se firme como sempre, sem mexer um msculo, sempre a olhar em frente e com a arma ao ombro.

De repente, o barco entrou num tnel. Oh, como estava escuro, to escuro como na caixa l em casa!

"Para onde irei agora?", pensou o soldado de chumbo. "Sim, isto deve ser obra do duende. Ah! Se ao menos a jovem estivesse aqui no barco comigo, no me importava que a escurido fosse duas vezes maior."

Subitamente, da sua casa no tnel, saiu uma grande ratazana da gua.

Tens passaporte? perguntou. No podes entrar sem passaporte!

Mas o soldado de chumbo no disse uma palavra; limitou-se a segurar a arma ainda com mais fora. O barco seguiu em frente, e, atrs dele, a ratazana, a persegui-lo. Ai! Como ela rangia os dentes e gritava para os paus e palhas que boiavam na gua:

Obriguem-no a parar! Agarrem-no! No pagou a portagem! No mostrou o passaporte!

Mas nada conseguia fazer parar o barco, porque a corrente era cada vez mais forte. O soldado de chumbo avistou a luz do dia no fim do tnel, mas, ao mesmo tempo, ouviu um rugido que bem podia ter assustado o homem mais valente. Imaginem! Mesmo no fim do tnel, a corrente desembocava num grande canal. Era to terrvel para ele como seria para ns um mergulho numa gigantesca queda de gua.

Mas como podia ele parar? J estava perto da beira. O barco continuou a sua corrida, e o pobre soldado de chumbo aguentou-se o mais firme possvel ningum podia dizer que tivesse piscado um olho.

De repente, o pequeno barco rodopiou trs ou quatro vezes e encheu-se de gua at acima; que podia acontecer seno afundar-se?! O soldado de chumbo ficou de p, com gua at ao pescoo; o barco afundava-se cada vez mais, com o papel a ficar todo mole, at que, por fim, a gua cobriu a cabea do soldado de chumbo. Ele pensou na linda bailarina que nunca mais veria e lembrou-se da letra de uma cano:

Em frente, em frente, soldado do imprio!

No receies o perigo nem o cemitrio!

Depois, o barco de papel desfez-se completamente.

O soldado de chumbo caiu e foi logo engolido por um peixe.

Oh, como estava escuro na barriga do peixe! Ainda era pior do que o tnel e muito mais apertado. Mas a coragem do soldado de chumbo manteve-se inaltervel; l ficou, firme como sempre, ainda de arma ao ombro. O peixe nadava que nem um louco, virava-se e revirava-se, e depois ficou absolutamente quieto. Qualquer coisa luziu como um relmpago e ento tudo sua volta ficou claro como o dia e uma voz gritou:

O soldado de chumbo!

O peixe tinha sido pescado, levado para a praa, vendido e levado para a cozinha, onde a cozinheira o cortara com uma grande faca. Pegou no soldado, segurando-o pela cintura com o polegar e o indicador, e levou-o para a sala, para que toda a famlia visse a extraordinria perso-nagem que tinha viajado dentro do peixe. Mas o soldado de chumbo no se sentia nada orgulhoso. Puseram-no de p em cima da mesa e ento bem, o mundo assim mesmo! ele viu que estava na mesma sala onde as suas aventuras tinham comeado; l estavam as mesmas crianas; l estavam os mesmos brinquedos; l estava o belo castelo de papel com a graciosa bailarina porta. Continuava apoiada num perna, com a outra bem levantada no ar. Ah! Ela tambm era firme! O soldado de chumbo estava profundamente comovido; gostaria de ter chorado lgrimas de chumbo, mas isso no era comportamento de um soldado. Olhou para ela, e ela olhou para ele, mas no trocaram uma palavra.

E ento aconteceu uma coisa estranha. Um dos rapazinhos pegou no soldado de chumbo e atirou-o para a lareira. No tinha qualquer motivo para fazer isto; deve ter sido outra vez culpa do duende da caixa de rap.

O soldado de chumbo ficou emoldurado pelas chamas. O calor era intenso, mas se vinha do lume ou do seu amor ardente ele no sabia. As suas cores brilhantes j tinham desaparecido mas se tinham sido lavadas pela gua durante a viagem ou pelo seu desgosto ningum sabia. Olhou para a linda bailarina, e ela olhou para ele; sentiu que estava a derreter-se, mas continuou firme, de arma ao ombro. Subitamente, a porta abriu-se; uma aragem apanhou a bailarina de papel, que voo como uma slfide direitinha lareira e ao soldado de chumbo, que a esperava; a se transformou numa chama e desapareceu.

O soldado tambm derreteu rapidamente, ficando reduzido a um montinho de chumbo; e no dia seguinte, quando a criada limpou a lareira, encontrou-o entre as cinzas do feitio de um coraozinho de chumbo. E a bailarina? Dela s encontraram a lantejoula, preta como a fuligem.

O Rouxinol

Sabem com certeza que na China o imperador chins e que todas as outras pessoas so chinesas tambm. Esta histria aconteceu h muitos anos, mas precisamente por isso que devem ouvi-la agora, antes que seja esquecida.

O palcio do imperador era o melhor do Mundo, todo ele construdo da mais rara porcelana no tinha preo, mas era to frgil e delicado que era preciso tomar todo o cuidado quando se andava l dentro. O jardim do palcio estava coberto de flores maravilhosas, nunca vistas em outro lado; as mais bonitas de todas tinham sininhos de prata, que tocavam para se saber sempre que passava algum.

Sim, tudo no jardim do imperador tinha sido muito bem planeado, e ele estendia-se at to longe que nem o jardineiro fazia a menor ideia onde acabava. Se se fosse sempre andando chegava-se a uma bela floresta com rvores muito altas e lagos muito fundos. A floresta ia at ao mar, que era azul e tambm muito fundo; grandes navios podiam navegar mesmo por baixo dos ramos das rvores. Nesses ramos vivia um rouxinol que cantava to bem que at o pobre pescador, com todas as suas dificuldades, parava de deitar as redes todas as noites para o ouvir.

Ah, que maravilha! dizia ele.

Mas depois tinha de continuar a trabalhar e esquecia-se da ave. Contudo, na noite seguinte, assim que o rouxinol tornava a cantar, o pescador erguia os olhos das redes e dizia mais uma vez:

Ah, que maravilha!

Vinham viajantes de todos os pases do Mundo para admirar a cidade, o palcio e os jardins do imperador. Mas, assim que ouviam o rouxinol, todos diziam:

Isto o melhor de tudo!

E, quando voltavam aos seus pases, continuavam a falar da ave. Sbios escreveram livros sobre a cidade e o palcio, mas o rouxinol era elogiado mais do que todas as outras maravilhas, e poetas escreveram emocionantes poemas sobre a ave da floresta perto do mar.

Estes livros eram lidos em todo o mundo, e, um dia, alguns deles chegaram s mos do imperador. L ficou ele, sentado na sua cadeira dourada, a ler sem parar; de vez em quando acenava com a cabea. Estava contente com as esplndidas descries do seu reino. Ento, chegou frase: "Mas, apesar de todas estas maravilhas, nada se compara ao rouxinol."

Que isto?! exclamou o imperador. O rouxinol? Nunca ouvi falar dele. Imaginem! As coisas que aprendemos nos livros!

Ento mandou chamar o camareiro.

Vi aqui neste livro que temos uma ave admirvel chamada rouxinol disse o imperador. Parece que a melhor coisa do meu vasto imprio. Por que que ningum me falou dele?

Bem respondeu o camareiro , nunca ouvi ningum falar nessa criatura. De certeza que nunca foi apresentada na corte.

Quero que venha aqui esta noite cantar para mim disse o imperador. uma vergonha que toda a gente saiba o que possuo e eu no!

Nunca ouvi falar nele repetiu o camareiro , mas vou procur-lo e hei-de encontr-lo!

Sim, mas onde? O camareiro subiu e desceu todas as escadas, andou por todos os sales e corredores, mas, de todas as pessoas que encontrou, nenhuma tinha ouvido falar do rouxinol. Voltou apressado presena do imperador e disse-lhe que aquilo devia ser uma histria inventada pelos escritores.

Vossa Majestade Imperial no deve acreditar em tudo o que aparece escrito. As coisas que os autores inventam! mesmo magia negra!

Mas o livro onde eu soube da ave afirmou o imperador foi-me enviado pelo poderoso imperador do Japo, portanto no pode ser mentira! Quero ouvir o rouxinol! Quero ouvi-lo esta noite.

Tsing-pe! respondeu o camareiro.

E l foi ele outra vez escada abaixo e escada acima, por todos os sales e corredores; metade da corte andava a correr atrs dele. Por fim, encontraram uma pobre rapariguinha na cozinha.

O rouxinol? perguntou ela. Meu Deus! Claro que sei! Que bem que ele canta! A maior parte das noites deixam-me levar para casa alguns restos de comida para a minha me, que est doente. Vivemos perto do lago, do outro lado da floresta. E quando volto para o palcio, cansada, sento-me um bocadinho e fico a ouvi-lo cantar.

Rapariguinha! exclamou o camareiro , ofereo-te um lugar permanente na cozinha e dou-te licena para veres o imperador a jantar se nos levares at ao rouxinol. A sua presena exigida esta noite na corte.

Ento, partiram em direco floresta onde o rouxinol costumava cantar; mais de metade da corte foi com eles.

Enquanto iam andando, uma vaca mugiu.

Oh! exclamou um pajem. J estou a ouvi-lo! Para um animalzinho to pequeno faz um barulho extraordinrio. Mas, sabem, tenho a certeza de j o ter ouvido.

No, no, aquilo uma vaca a mugir! exclamou a rapariguinha. Ainda temos de andar muito.

As rs comearam a coaxar num charco.

Maravilhoso! exclamou o capelo do imperador. J estou a ouvir a cano! Parecem mesmo sininhos de igreja!

No, no, isso so rs disse a rapariguinha da cozinha. Mas devemos estar quase a ouvi-lo.

Ento, o rouxinol comeou a cantar. L est ele! disse a rapariguinha. Oiam! Olhem! Est ali! e apontou para um passarinho cinzento por entre os ramos.

Ser possvel? exclamou o camareiro. Nunca pensei que fosse assim. Parece to vulgar! To simples! Talvez tenha perdido a cor quando viu todas estas visitas importantes.

Rouxinolzinho! chamou a rapariguinha. O nosso gracioso imperador gostaria muito que cantasses para ele.

Com o maior prazer disse o rouxinol, continuando a cantar to bem que era um encanto ouvi-lo.

Parecem mesmo sinos de vidro disse o camareiro. No percebo como que nunca o tnhamos ouvido. Vai ser um xito na corte!

Querem que torne a cantar para o imperador? perguntou o rouxinol, que pensava que uma das visitas era o imperador.

Excelentssimo rouxinol disse o camareiro , tenho a honra e o prazer de o convidar para um concerto no palcio esta noite, onde encantar Sua Majestade Imperial com as suas lindas cantigas.

Soam melhor na floresta afirmou o rouxinol.

Apesar disso, foi com eles de boa vontade quando ouviu dizer que era desejo do imperador.

Entretanto, que limpezas iam pelo palcio! As paredes e o soalho de porcelana brilhavam, lustrosos, luz de milhares de luzes douradas. Mesmo no meio do grande salo, junto do trono do imperador, estava um poleiro dourado para o rouxinol. Toda a corte estava presente, e a pequena criadinha da cozinha teve autorizao para ficar atrs da porta, porque j tinha o ttulo oficial de Verdadeira Criada de Cozinha. Todos os olhos estavam postos no passarinho cinzento quando o imperador lhe fez sinal que comeasse.

Ento, o rouxinol cantou to bem que o imperador ficou com os olhos cheios de lgrimas, que lhe escorreram pelas faces; e o rouxinol continuou a cantar ainda melhor, de modo que cada nota foi direitinha ao corao do imperador. Este ficou muito satisfeito; o rouxinol, declarou ele, iria receber o seu sapato dourado para usar ao pescoo. Mas este agradeceu e recusou, porque j se sentia recompensado.

Vi lgrimas nos olhos do imperador. Pode l haver alguma ddiva maior do que essa? As lgrimas de um imperador tm um poder estranho. J fui suficientemente recompensado.

E cantou mais uma cano com a sua voz maviosa.

Muito espirituoso, muito divertido; a criatura namoradeira diziam as damas da corte, enchendo as bocas de gua para fazerem um rudo de gargarejo.

Por que que no haviam de ser tambm rouxinis? At os lacaios e as criadas de quarto acenavam, com ar de aprovao, o que significa muito, porque estes so sempre os mais difceis de contentar. No havia dvida: o rouxinol era um xito.

Ficaria na corte e teria uma gaiola s para si, com autorizao para ir apanhar ar duas vezes durante o dia e uma vez noite. Seria acompanhado, em cada excurso, por doze criados, cada um a segurar firmemente uma fita de seda atada a uma patinha da ave. No, essas sadas no eram muito divertidas.

Um dia, chegou um grande embrulho para o imperador. Trazia uma palavra escrita por fora: ROUXINOL.

Olha! Outro livro sobre a nossa famosa ave! exclamou o imperador.

Mas no era um livro; era um pequeno brinquedo mecnico dentro de una caixa, um rouxinol de corda. Tinha o feitio de um verdadeiro, mas estava coberto de diamantes, rubis e safiras. Quando se lhe dava corda, cantava uma das canes que o verdadeiro passarinho costumava cantar, e a sua cauda andava para baixo e para cima, brilhando em prata e ouro. A volta do pescoo trazia uma fita, onde estava escrito: "O rouxinol do imperador do Japo nada vale comparado com o rouxinol do imperador da China." Que maravilha! disseram todos.

E o mensageiro que tinha trazido o presente recebeu o ttulo de Principal Portador Imperial de Rouxinis.

Agora tm de cantar juntos. Que dueto que vai ser!

Ento os dois passarinhos tiveram de cantar juntos, mas no foi um xito. O problema era que o verdadeiro rouxinol cantava sua maneira e a cano do outro saa de uma mquina.

Isto no vergonha nenhuma afirmou o Mestre da Msica Imperial. Est perfeitamente afinado: na realidade, ele at podia ser um dos meus alunos.

Ento, o pssaro de corda foi posto a cantar sozinho. Agradou quase tanto corte como o verdadeiro, e evidentemente que era muito mais bonito vista, todo brilhante, como uma pulseira ou um alfinete de peito. Cantou a mesma cano trinta e trs vezes sem se cansar. Os cortesos no se importariam de a ouvir mais umas vezes, mas o imperador achou que era a vez do verdadeiro.

Mas ondeestavao rouxinol? Tinha voado pela janela, para a sua floresta verdejante, sem ningum dar por isso.

Tch, tch, tch! fez o imperador, aborrecido. Que significa isto?

E os cortesos resmungavam e franziam as testas.

Mas temos aqui o melhor! disseram.

E o rouxinol de corda teve de cantar outra vez.

Era a trigsima quarta vez que o ouviam, mas ainda no sabiam bem a cano. Era difcil de aprender. E o Mestre da Msica Imperial teceu ave os mais altos elogios: era superior ao rouxinol vivo, no apenas na aparncia exterior, mas tambm no que tinha l dentro.

Sabem, senhores e senhoras e, acima de todos, Vossa Majestade Imperial, com o verdadeiro rouxinol nunca se sabe o que vai acontecer, mas com a ave de corda tem-se a certeza; tudo fcil: podemos abri-la e ver como pensa, como cada nota segue a outra com preciso!

Era isso mesmo o que eu estava a pensar ouviu-se aqui e ali.

E, na segunda-feira seguinte, o Mestre da Msica Imperial foi autorizado a mostrar publicamente o pssaro ao povo. Tambm ele devia ouvi-lo cantar, tinha declarado o imperador. E assim foi. E ficaram todos to entusiasmados como se estivessem tontos de beberem muito ch, um antigo costume chins. Disseram todos:

Ah!

E levantaram os indicadores e acenaram com as cabeas.

Mas o pobre pescador, que tinha ouvido o verdadeiro rouxinol, afirmou:

L bonito ... e at parece o rouxinol... Mas parece que falta qualquer coisa, no sei bem...

O verdadeiro rouxinol foi banido do reino do imperador.

O pssaro artificial recebeu um lugar especial numa almofada de seda junto da cama do imperador; empilhados volta estavam todos os presentes que lhe tinham dado, todo o ouro e jias. Foi distinguido com o ttulo de Principal Trovador Imperial da Mesa-de-Cabeceira, Primeira Classe Esquerda, porque at os imperadores tm o corao do lado esquerdo.

O Mestre da Msica Imperial escreveu um solene trabalho em vinte e cinco volumes sobre o pssaro mecnico. Era muito extenso e erudito, cheio das mais difceis palavras chinesas. Mas toda a gente fingiu que o tinha lido e compreendido. Ningum queria passar por estpido!Tudo isto continuou durante um ano, at que o imperador, a corte e o resto do povo chins sabiam de cor cada notazinha da cano do passarinho de corda; mas, por isso mesmo, cada vez gostavam mais dela. Podiam cant-la em coro e faziam-no.

Os rapazitos da rua andavam por todo o lado a cantar:rrr, trrr, piu, piu, piu,e o imperador tambm cantava um som maravilhoso, no havia dvida.

Mas, uma noite, precisamente quando o pssaro de corda estava a cantar e o imperador, deitado na cama, o ouvia, qualquer coisa fez "crac!" dentro do pssaro. Brrrr! O mecanismo continuou a rodar, e a msica parou. O imperador saltou da cama e mandou chamar o seu mdico. Mas de que servia o mdico? Ento foram buscar o relojoeiro, e este, depois de muitas resmungadelas e mexidelas no pssaro, conseguiu arranj-lo mais ou menos. Mas preveniu toda a gente de que tinha de ser usado muito poucas vezes; as peas estavam quase gastas por completo e no era possvel substitu-las sem estragar o som.

Que golpe horrvel! No se atreviam a pr o pssaro a cantar mais do que uma vez por ano, e mesmo isso j era um risco. Contudo, nessas ocasies anuais, o Mestre da Msica Imperial fazia sempre um discurso cheio de palavras difceis, dizendo que o pssaro estava to bom como sempre e, claro, uma vez que ele dizia que sim, era porque ele estava to bom como sempre...

Passaram cinco anos, e uma grande tristeza abateu-se sobre o pas. O povo era muito amigo do imperador, mas ele estava gravemente doente e no se esperava que sobrevivesse. J tinha sido escolhido novo imperador, e a multido esperava nas ruas que o camareiro lhe desse notcias. Como estava o imperador? O camareiro abanava a cabea.

Frio e plido, o imperador jazia no seu leito real. Na verdade, a corte achava que j tinha morrido e foi a correr saudar o seu sucessor. Os criados de quarto foram a correr coscuvilhar uns com os outros e as criadas juntaram-se todas para beberem caf,. Tinham sido estendidos panos pretos em todos os sales e corredores para amortecer o som dos passos, de maneira que o palcio parecia muito, muito sossegado.

Mas o imperador ainda no tinha morrido. Plido e imvel, jazia na sua magnfica cama com longos cortinados de veludo e pesados cordes dourados. Atravs de uma janela aberta l no alto, a Lua brilhava sobre o imperador e o pssaro artificial.

O pobre imperador mal podia respirar; sentia como se tivesse qualquer coisa a pesar-lhe sobre o corao. Abriu os olhos e viu a Morte sentada sobre ele. A Morte tinha a coroa de ouro do imperador na cabea, numa das mos segurava a espada imperial de ouro e na outra a esplndida bandeira imperial. E, por entre os cortinados de veludo, espreitavam estranhos rostos: alguns horrveis e outros belos e bondosos. Eram as boas e as ms aces do imperador, que olhavam para ele, enquanto a Morte se sentava sobre o seu corao.

Lembras-te?... Lembras-te?... diziam os rostos baixinho, um a seguir ao outro.

E contaram e lembraram tantas coisas que a testa do imperador acabou por ficar coberta de suor.

Nunca soube... nunca percebi... gritou ele. Msica, msica! Toquem o grande tambor da China! Salvem-me destas vozes!

Mas as vozes no se calavam. Continuavam sempre, enquanto a Morte acenava com a cabea, como um mandarim, a tudo o que diziam.

Msica! Dem-me msica! pedia o imperador. Belo passarinho dourado, canta, peo-te que cantes! Dei-te ouro e coisas preciosas; pendurei o meu sapato dourado ao teu pescoo com as minhas prprias mos. Canta, peo-te, canta!

Mas o pssaro estava silencioso; no havia ningum para lhe dar corda, e sem corda no tinha voz. E a Morte continuava a olhar fixamente para o imperador com as grandes rbitas vazias. Tudo estava calado, terrivelmente calado.

Ento de repente, perto da janela, soou a mais bela cano. Era o verdadeiro rouxinol, que se tinha empoleirado num ramo l fora. Sabendo do mal do imperador, o passarinho tinha voltado para o confortar e trazer-lhe esperana.

medida que cantava, as firmas fantasmagricas foram desaparecendo, at se desvanecerem. O sangue comeou a correr mais depressa pelo corpo do imperador. A prpria Morte ficou presa cano. Canta mais, canta mais, pequeno rouxinol! pediu a Morte.

Canto, se me deres a grande espada de ouro... sim, e a bandeira imperial... e a coroa do imperador...

E a Morte devolveu cada um dos tesouros em troca de uma cano e o rouxinol continuou a cantar. Cantou sobre o calmo adro da igreja onde cresciam as rosas brancas, onde as flores do sabugueiro cheiravam to bem, onde a erva fresca est sempre verde por causa das lgrimas dos que ali choram os seus mortos. Ento, a Morte encheu-se de saudades do seu jardim e saiu pela janela, flutuando como um nevoeiro gelado.

Obrigado, obrigado! disse o imperador. Passarinho celestial, sei quem s! Eu bani-te do meu reino e, no entanto, s tu vieste ajudar-me, e afastaste os horrveis fantasmas da minha cama e libertaste o meu corao da Morte. Como hei-de recompensar-te?

J me recompensaste respondeu o rouxinol. Quando cantei para ti da primeira vez caram-te lgrimas dos olhos e essa ddiva no posso esquecer. Essas so as jias que no se compram nem se vendem. Mas agora tens de dormir para ficares bom e forte. Olha, vou cantar para ti.

E cantou e o imperador caiu num sono calmo e reparador.

O Sol brilhava sobre ele atravs da janela quando acordou, restaurado, desaparecidas a fraqueza e a doena. Nenhum dos criados tinha l entrado ainda, porque todos pensavam que ele estava morto.

Tens de ficar sempre comigo disse o imperador. Mas s cantas quando quiseres. E, quanto ao pssaro de corda, vou parti-lo em mil bocados.

No faas isso respondeu o rouxinol. Fez o que pde por ti. Guarda-o. Eu no posso morar num palcio, mas deixa-me ir e vir minha vontade, e noite empoleiro-me neste ramo, junto da tua janela, e canto para ti. Hei-de trazer-te felicidade, mas tambm pensamentos srios. Hei-de cantar sobre as pessoas felizes do teu reino, mas tambm sobre os que se sentem tristes. Cantarei sobre o bem e o mal, que tm estado sempre nossa volta, mas que tm sempre escondido de ti. Os passarinhos voam em todas as direces, at ao pescador, casinha do trabalhador, at junto de tantos que esto longe de ti e da tua corte magnfica. Amo o teu corao mais do que a tua coroa, apesar de a coroa ter algo de mgico. Sim, hei-de voltar, mas tens de me prometer uma coisa.

O que quiseres! exclamou o imperador.

Tinha-se levantado e vestido as suas roupas imperiais e segurava a espada dourada junto do corao.

A nica coisa que te peo isto: no digas a ningum que tens um amigo passarinho que te conta tudo. melhor guardar segredo.

E, com estas palavras, o rouxinol voou para longe. Os criados vieram ver o amo morto, mas ficaram ali especados!

Bom dia! disse o imperador.

A Pastora e o Limpa-chamins

Alguma vez viram um armrio muito velho, enegrecido pela idade, todo esculpido com caules e folhas de trepadeiras?

Havia numa sala de estar um armrio deste gnero que tinha pertencido trisav da famlia. Estava coberto, de cima a baixo, com rosas e tlipas esculpidas na madeira, rodeadas por grinaldas arredondadas; e, por entre tudo isso, apareciam umas cabecinhas de veados com as suas hastes.

Mas, no meio, havia uma figura de um homem de um tipo bem estranho. Era bastante cmico, porque tinha pernas de bode, pequenos cornos na testa, uma barba comprida e um esgar peculiar, que mal podia chamar-se sorriso. As crianas da casa chamavam-lhe Brigadeiro-General-de-Brigada-Capito-Sargento-Cabo-Pernas-de-Bode. O nome ficava-lhe bem, achavam elas, por ser difcil de dizer. Alm disso, quem mais, vivo ou esculpido, teria alguma vez merecido tal ttulo?Seja como for, l estava ele, com os olhos sempre voltados para a mesa por baixo do espelho, porque em cima da mesa estava uma linda pastorinha de loia. Tinha uns sapatos dourados e um vestido enfeitado com uma rosa de loia; tinha ainda um chapu dourado e segurava um cajado de pastora. Oh, era realmente linda!

Mesmo a seu lado, estava um pequeno limpa-chamins, tambm de loia. Era todo preto, excepto a cara, que era cor-de-rosa e branca como a de uma rapariga; na verdade, estava to limpo e bem arranjado como outra pessoa qualquer, porque era apenas um limpa-chamins a fingir. O artista tambm podia ter feito dele um prncipe. E l estava ele, com o seu escadote e o seu belo rosto, que no tinha uma nica partcula de fuligem. E como o limpa-chamins e a pastora tinham estado sempre junto um do outro, em cima da mesa, tinham ficado noivos, o que era a coisa mais natural do mundo. Estavam realmente muito bem um para o outro. Ambos eram jovens, ambos eram feitos do mesmo material, e cada um era to frgil como o outro.

No longe dali havia uma figura muito diferente, cerca de trs vezes maior do que eles. Era um velho chins, um mandarim, que abanava a cabea. Tambm era de loia, e dizia sempre que era av da pastora. No podia prov-lo, mas insistia em que era o seu protector, de maneira que o Brigadeiro-General-de-Brigada-Capito-Sargento-Cabo-Pernas-de-Bode lhe pediu a mo dela em casamento, e ele consentiu, acenando.

A est um belo marido para ti disse ele pastora. de mogno, tenho quase a certeza, e vais ser a Senhora Brigadeira-Generala-de-Brigada-Capitoa-Sargenta-Caba-Pernas-de-Bode. Ele dono de um armrio cheio de pratas e de outras coisas que l tem escondidas.

No quero viver naquele armrio escuro disse a pastorinha. Ouvi dizer que ele j l tem onze mulheres de loia.

E tu sers a dcima segunda! retorquiu o mandarim Esta noite, assim que o armrio comear a estalar, vocs vo casar, to certo como eu ser chins!

E, com isto, acenou com a cabea e adormeceu.

Mas a pastorinha comeou a chorar e olhou para o seu bem-amado limpa-chamins.

Acho que tenho de te pedir que partas aventura comigo disse ela , porque no podemos ficar aqui.

Fao o que tu quiseres respondeu o pequeno limpa-chamins. Vamos j; tenho a certeza de ser capaz de ganhar o suficiente para te manter com a minha profisso.

Ai, se ao menos pudssemos descer da mesa!... exclamou ela. S serei feliz quando partir aventura!

Ento ele confortou-a e mostrou-lhe como devia colocar os pezinhos nos entalhes da perna da mesa. Levou o escadote para a ajudar e, por fim, encontraram-se no cho. Mas, quando olharam para o velho armrio escuro, que agitao! Todos os veados esculpidos deitavam as cabeas ainda mais de fora, espetando os galhos e voltando os pescoos de um lado para o outro. E o Brigadeiro-General-de-Brigada-Capito-Sargento-Cabo-Pernas-de-Bode estava aos pulos e a gritar, todo zangado, para o chins:

Esto a fugir! Esto a fugir!

Aquilo assustou os namorados, que se esconderam rapidamente na gaveta do banco da janela. Encontraram trs ou quatro baralhos de cartas nenhum deles completo e um pequeno teatro de brincar. Estava em cena uma pea, e todas as rainhas das cartas ouro, copas, paus e espadas ocupavam a primeira fila, a abanar-se com as suas tlipas. Por detrs delas estavam todos os valetes com as suas cabeas, uma em cima e outra em baixo (todas as cartas de jogar so assim). A pea que estavam a ver era sobre um par de namorados a quem no deixavam casar. E a pastora comeou outra vez a chorar, porque era tal e qual a histria dela.

No suporto isto dizia ela. Tenho de sair desta gaveta.

Mas, quando chegaram ao cho e olharam para cima da mesa, o velho chins tinha acordado e estava a abanar o corpo para trs e para a frente; tinha de andar assim, porque, excepo da cabea, era todo feito de uma s pea.

Vem a o velho chins! gritou a pastorinha.

E estava to aterrorizada que caiu nos seus joelhos de loia.

Tenho uma ideia disse o limpa-chamins. Vamos meter-nos ali dentro da grande jarra do canto; podemos esconder-nos entre as rosas e a alfazema e atirar-lhe sal aos olhos se ele se aproximar.

Isso no ajuda nada respondeu ela. Alm disso, sei que o velho chins e a jarra j estiveram noivos; e fica sempre algum sentimento quando as pessoas foram ntimas. No, a nica coisa a fazer partir aventura.

Tens realmente coragem para isso? perguntou o limpa-chamins. Fazes ideia de como o Mundo? E j pensaste que no podemos voltar para aqui?

Sim, j pensei nisso respondeu ela.O limpa-chamins deitou-lhe um olhar srio e penetrante e depois disse:

O nico caminho que conheo pela chamin. Tens a certeza que possuis a coragem suficiente para ires atrs de mim pelo fogo e pelo tnel escuro? por a que se vai para a chamin, e depois j sei o que fazer. Trepamos to alto que ningum nos apanha; e, l mesmo no cimo, h uma abertura por onde podemos sair para a nossa aventura.

E conduziu-a pela porta do fogo.

Est muito escuro exclamou ela.

Mas, apesar disso, foi com ele, atravs dos tijolos refractrios e do cano da chamin, onde estava escuro como a noite.

J chegmos chamin exclamou ele. Olha! Que linda estrela ali por cima de ns!

Realmente havia uma verdadeira estrela no cu por cima deles, a ilumin-los com o seu brilho, como se quisesse indicar-lhes o caminho. L continuaram a trepar e a rastejar, para cima, cada vez mais para cima; foi uma viagem horrvel. Mas o pequeno limpa-chamins ajudava-a sempre, mostrando-lhe os melhores stios para ela colocar os seus pezinhos de loia, at que por fim chegaram ao cimo da chamin, onde se sentaram, porque estavam cansados, o que no admira.

L no alto estava o cu cheio de estrelas; em baixo, ficava a cidade com todos os seus telhados. Eles podiam ver at bem longe sua volta, por esse mundo fora. A pobre pastora nunca tinha imaginado nada como aquilo; deitou a sua cabecinha no ombro do limpa-chamins e chorou to amargamente que o ouro da faixa da cintura desbotou.

Isto de mais chorava ela. No aguento. O Mundo demasiado grande. Oh, quem me dera estar outra vez na mesa debaixo do espelho! S serei feliz outra vez quando voltar para l. Vim contigo, mas, se realmente gostas de mim, leva-me para casa.

O limpa-chamins falou calmamente com ela; recordou-lhe o chins e o Brigadeiro-General-de-Brigada-Capito-Sargento-Cabo-Pernas-de-Bode, mas ela continuava a chorar, desesperada, e beijava-o e agarrava-se a ele, at que este acabou por ceder, apesar de ser uma patetice.

Ento, tornaram a rastejar pela chamin, desta vez para baixo uma tarefa dura e perigosa; esgueiraram-se pelo cano (uma das piores partes da viagem) e, por fim, chegaram caverna escura do fogo. Ficaram encostados porta durante um bocadinho, para ouvirem o que se passava na sala. Tudo parecia bastante calmo, de maneira que espreitaram mas, oh!, mesmo no meio do cho estava o chins! Ao tentar correr atrs deles, tinha cado da mesa, e agora estava feito em trs pedaos a parte de trs, a parte da frente e a cabea, que tinha rebolado para um canto. O Brigadeiro-General-de-Brigada-Capito-Sargento-Cabo-Pernas-de-Bode estava no seu lugar de sempre, absorto em pensamentos.

Que horror! exclamou a pastorinha. O meu pobre av est todo partido e a culpa nossa. Nunca hei-de esquecer isto!

E torcia as mozinhas.

Pode muito bem ser consertado afirmou o limpa-chamins. fcil. V, no fiques to preocupada. Depois de ser colado e de lhe porem um gato no pescoo, fica como novo, e ainda vai dizer-te muitas coisas aborrecidas.

Achas que sim? perguntou ela.

E treparam para a mesa onde sempre tinham estado.

Bem, fartmo-nos de andar suspirou o limpa-chamins , e c estamos de novo no mesmo stio. Podamos ter poupado a viagem.

Ai, quem me dera que o meu av j estivesse consertado! disse a pastora. Achas que vai ser muito caro?

O chinsfoiconsertado. A famlia mandou colar os pedaos e pr um gato no pescoo; ficou como novo, mas j no abanava a cabea.

Ests muito importante desde que te partiste! disse-lhe o Brigadeiro-General-de-BrigadaCapito-Sargento-Cabo-Pernas-de-Bode. Mas por que que ests to orgulhoso? Responde-me! Posso ou no ficar com a pastora?

O limpa-chamins e a pastora olharam ansiosamente para o velho chins, com medo que ele acenasse com a cabea.

Mas ele no conseguia e tambm no queria admitir que lhe tinham posto um gato no pescoo. E assim os namoradinhos de loia ficaram juntos e continuaram a amar-se, na maior felicidade, at se partirem.

O Patinho Feio

Estava muito agradvel no campo. O ar rescendia a Vero; o milho estava amarelo; a aveia estava pronta a ser ceifada; as medas de feno nos prados pareciam pequenas colinas de erva e a cegonha passeava por cima delas com as suas longas pernas vermelhas. A toda a volta dos campos havia bosques e florestas com fundos lagos de gua fresca. Sim, estava mesmo muito agradvel no campo. E, brilhando ao sol, podia ver-se uma velha manso rodeada por um fosso. Grandes folhas de azedas cresciam nas paredes at gua; algumas eram to grandes que uma criana podia ficar de p debaixo delas. sombra podia-se at pensar que se estava numa florestazinha secreta e primitiva.

Era a que uma pata chocava os seus ovos no ninho. Porm, j estava a ficar bastante farta, porque os patinhos nunca mais apareciam; quanto a visitas, quase no as tinha; os outros patos preferiam nadar no fosso a ir ter com ela debaixo das grandes folhas para conversar.

Por fim, os ovos comearam a estalar, um a seguir ao outro.

Pip, pip!

O ninho ficou cheio de avezinhas que deitavam as cabeas fora das cascas.

Quac, quac! disse a me. Depressa, depressa! E as criaturinhas saram o mais depressa que puderam e olharam sua volta, no abrigo de folhas verdes; e a me deixou-as olhar vontade, porque o verde faz bem aos olhos.

Como o mundo grande! disseram os pequenos.

claro que agora tinham muito mais espao do que dentro dos ovos.

Pensam que o mundo s isto, seus patetas? perguntou a me. Ora! O mundo estende-se muito para alm do outro lado do jardim, mesmo at ao campo do vigrio. Embora, verdade seja dita, eu nunca tenha l estado. J cestotodos, no esto? Levantou-se do ninho. No, tu ainda no. Ainda falta o ovo maior. Quanto tempo demorar ainda? Estou mesmo farta disto, se querem saber.

E l tornou a deitar-se.

Bem, que tal vo as coisas? perguntou uma velha pata que veio visit-la.

Este ovo est a demorar um tempo horrvel disse a me pata. No h meio de estalar! Mas olhe para os outros! So os patinhos mais bonitos que j vi, tal e qual o pai, aquela peste, que nunca vem visitar-me! Deixe l ver o ovo disse a velha pata. Ah! Acredite no que lhe digo, isso um ovo de peru. Uma vez aconteceu-me a mesma coisa e nem calcula o trabalho que tive com os midos! Como eram perus, tinham medo da gua, eno conseguimet-los l. Deixe ver. , um ovo de peru. Deixe-o ficar e v ensinar os outros a nadar.

Bem, vou aguentar um pouco mais respondeu a pata. J aqui estou h tanto tempo que mais vale acabar o trabalho.

Est bem, faa como quiser respondeu a velha pata, e foi-se embora.

Por fim, o grande ovo estalou.

Pip, pip! disse o jovem, saindo c para fora.

Mas que grande e que feio que ele era! A me olhou para ele.

Que grande patinho! pensou. Ser mesmo um peru? Bem, j vamos ver; h-de ir para a gua, nem que eu tenha de o empurrar.

No dia seguinte, o tempo estava lindo, e a me pata saiu com todos os filhos e desceu at ao fosso, onde mergulhou.

Quac, quac! chamou ela.

E, um atrs do outro, os patinhos saltaram para a gua. Ficaram com as cabeas debaixo de gua, mas vieram logo tona, e em breve nadavam afanosamente. As suas patinhas mexiam-se naturalmente, e l estavam todos at o feio cinzento nadava com os outros.

No, isto no um peru! exclamou a me. Que bem que ele usa as patas e que direito que nada. meu filho, isso no h dvida. Realmente, bem bonito, se virmos bem. Quac, quac! Venham comigo, meninos; venham conhecer o mundo e as outras aves da quinta; mas fiquem perto de mim, para ningum os pisar. E cuidado com o gato!

E l foram para o ptio da quinta. A havia um barulho horrvel e grande agitao, porque duas famlias discutiam por causa da cabea de uma enguia e afinal quem a apanhou foi o gato.

O mundo assim disse a me pata.

Ficou com gua no bico, porque tambm ela teria gostado de apanhar a cabea da enguia.

V, usem as pernas; despachem-se e faam uma vnia velha pata que est ali! E a pessoa mais importante da quinta; os antepassados dela vieram da Espanha e, como vem, tem um pedacinho de pano vermelho atado a uma pata. Isso uma coisa muito especial: significa que ningum a pode matar e que tanto os homens como os animais tm de a tratar com respeito. Venham! No metam os ps para dentro! Um patinho bem educado anda com os ps bem afastados, como o pai e a me. V! Faam uma vnia e digam: Quac!.

Os patinhos fizeram o que ela lhes disse, mas os outros patos do ptio olharam para eles e disseram em voz alta:

L vamos ter de aturar estes, como se j no fssemos bastantes! E, meu Deus!, que patinho to esquisito aquele!

No o queremos com certeza por aqui.

E um pato esvoaou em direco ao patinho cinzento e deu-lhe uma bicada no pescoo.

Deixa-o em paz disse a me. Ele no est a incomodar ningum.

Pois no, mas muito grande e tem um ar esquisito respondeu o pato que o tinha bicado. Tem de ser metido na ordem.

Bela famlia comentou a velha pata com o paninho vermelho volta da perna. Os patinhos so todos bonitos, exceptoaquele, no pode ser. Se ao menos a me pudesse tornar a faz-lo! Isso impossvel, Vossa Senhoria disse a me pata. verdade que no bonito, mas tem bom feitio e nada to bem como os outros. Atrevo-me at a dizer que, quando for crescido, capaz de vir a ser mais bonito e talvez, com o tempo, um pouco mais pequeno. Ficou tempo de mais dentro do ovo e foi isso que lhe estragou o aspecto. Ajeitou-lhe a penugem do pescoo e alisou-lhe uma penita ou outra. Alm disso acrescentou , um pato, por isso no tem muita importncia se bonito ou feio. saudvel, tenho a certeza, e h-de vingar neste mundo.

Seja como for, os outros patinhos so encantadores retorquiu a velha pata. Bom, estejam vontade, e se encontrarem uma cabea de enguia podem trazer-ma.

Isto foi o primeiro dia; depois, a sina do patinho cinzento piorou. Que infeliz se sentia por ser to feio! Era perseguido por todos. Os patos tentavam dar-lhe bicadas; as galinhas tambm; e a rapariga que dava de comer aos animais empurrava-o com o p. At os irmos e as irms estavam contra ele e diziam:

Feio! Era bem feito que o gato te apanhasse!

A me tambm dizia em voz baixa:

Quem me dera que estivesses longe...

E ento ele foi-se embora. Primeiro, voou por cima da sebe e os passarinhos nos arbustos voaram alarmados.

por eu ser to feio, pensou o patinho, fechando os olhos.

Mas continuou o seu caminho. Por fim, chegou aos charcos onde vivem os patos bravos e ficou l deitado toda a noite, porque estava muito cansado e triste.

De manh, os patos bravos apareceram e observaram o seu novo companheiro.

Que espcie de criatura s tu? perguntaram.

O patinho virou-se para cada um e cumprimentou-os o mais amavelmente que pde.

s mesmo feio, l isso s! disse um pato bravo. Mas isso pouco importa, desde que no cases com nenhuma das nossas filhas.

Pobrezinho do patinho. A ideia de casar nem sequer lhe tinha vindo cabea. Tudo o que queria era deitar-se e descansar nos juncos e beber um pouco da gua do charco.

Ali ficou durante dois dias, at que apareceram dois gansos selvagens dois jovens machos. Tambm tinham nascido h pouco, mas eram muito vivos e descarados.

Ol, amigo disseram. s to feio que gostamos de ti. Que tal vires connosco quando voarmos para mais longe?

Num charco perto daqui h umas lindas gansas, belas raparigas, com um quac! que vale a pena ouvir. Com o teu aspecto esquisito pode ser que tenhas sorte com elas.

Nesse momento ouviu-se bang!, bang! e ambos os alegres gansos caram mortos nos juncos. A gua ficou vermelha de sangue. Outra vez bang!, bang! e um bando de gansos selvagens levantou voo dos juncos. Era uma grande caada. Os desportistas estavam a toda a volta do charco; alguns estavam mesmo empoleirados nas rvores. Fumo azul subia como nuvens dentro e fora dos ramos escuros e ficava a pairar sobre a gua. Os ces faziam tchac!, tchac!, pela lama, esmagando os juncos. O pobre patinho estava aterrorizado; quando tentava precisamente esconder a cabea debaixo da asa um co enorme e assustador parou em frente dele com a lngua de fora e os olhos a brilharem de uma maneira horrvel. Encostou o focinho ao patinho, arreganhou os dentes aguados e depois tchac!, foi-se embora sem lhe tocar.

Oh, graas a Deus! suspirou o patinho. Sou to feio que at o co pensa duas vezes antes de me morder. E ficou muito quieto enquanto ouvia os tiros, um aps outro, guincharem e troarem pelos juncos. O dia j ia longo quando o barulho parou; mas a pobre criatura nem ento se atreveu a mexer-se. Por fim, levantou a cabea, espreitou cautelosamente em redor e apressou-se a fugir do charco to depressa quanto pde. Correu por campos e prados, mas o vento soprava to forte contra ele que era difcil avanar.

Perto da noite, chegou a um casinhoto miservel; estava em tal estado que nem sabia para que lado havia de cair, de modo que continuava de p. O vento soprava com tanta fora que o patinho teve de se sentar para no ser levado por ele, mas o vento parecia ficar cada vez mais forte. Ento notou que a porta j no tinha uma dobradia e estava pendurada de tal modo que ele conseguia esgueirar-se l para dentro, e foi isso mesmo que fez.

No casinhoto vivia uma velhota com um gato e uma galinha. O gato, a quem ela chamavaFilhinho, sabia arquear as costas e fazer ronrom; tambm fazia fascas, mas s quando lhe faziam festas ao contrrio. A galinha tinha umas pernitas curtas e por isso chamava-sePinta-Pernas-Curtas. Punha muitos ovos, e a velhota gostava dela como se fosse sua filha.

Quando amanheceu, repararam logo no estranho pequeno visitante. O gato comeou a fazer ronrom, e a galinha a cacarejar.

O que que aconteceu? perguntou a velhota, olhando a toda a volta.

Mas j no via muito bem, de modo que tomou o pequeno recm-chegado por uma pata adulta.

Ora isto que sorte! exclamou ela. Agora vou ter ovos de pata... desde que no seja um pato. Bem, veremos...

E o patinho ficou experincia durante trs semanas, mas no apareceram ovos.

O gato era o senhor da casa, e a galinha a senhora. Passavam a vida a dizer Ns e o mundo..., porque pensavam que eram metade do mundo e, claro, a metade melhor. O patinho achava que podia haver outras opinies sobre o assunto, mas a galinha no queria ouvir falar nisso.

Sabes pr ovos? perguntou. No? Ento, faz o favor de guardar as tuas opinies para ti prprio!

O gato perguntou:

Sabes arquear as costas e fazer ronrom ou soltar fascas? No? Ento o melhor que tens a fazer ficares calado quando as pessoas sensatas esto a falar.

De maneira que o patinho se sentava a um canto e aborrecia-se. Vinham-lhe ideia pensamentos sobre o ar livre e o sol, e depois uma saudade extraordinria de flutuar na gua. Por fim, no pde deixar de falar nisso galinha.

Que ideia to disparatada! exclamou ela. O teu mal no teres nada que fazer; por isso que tens essas fantasias. Pe mas uns ovos ou tenta fazer ronrom que isso passa-te.

Mas to delicioso flutuar na gua disse o patinho. to bom baixar a cabea e mergulhar at ao fundo!

Deveser ptimo! disse a galinha sarcasticamente. No deves estar bom da cabea! Pergunta ao gato, que a pessoa mais inteligente que conheo, seelegosta de flutuar na gua ou de mergulhar at ao fundo. No faas caso da minha opinio; pergunta nossa dona, a velhota: no h ningum mais sbio no mundo inteiro. Achas que ela quer flutuar ou meter a cabea dentro de gua?

No compreendes... disse o patinho tristemente.

Bem, se ns no te compreendemos, ningum compreender. Nunca sabers tanto como o gato ou a velhota, para j no falar de mim. No tenhas peneiras, mido, e agradece as coisas boas que te tm acontecido. No encontraste um quarto quente e companheiros elegantes, com quem podes aprender muito se prestares ateno? Mas tu s dizes disparates; nem sequer s uma companhia alegre. Acredita que o que te digo para teu bem. V, faz um esforo e pe uns ovos ou, pelo menos, aprende a fazer ronrom e a deitar fascas.

Acho que o melhor ir por esse mundo fora respondeu o patinho.

Ento vai exclamou a galinha.

E o patinho l foi. Boiou na gua e mergulhou; mas parecia-lhe que os outros patos no faziam caso dele por ele ser feio.

At que chegou o Outono: as folhas do bosque ficaram castanhas e amarelas; o vento apanhava-as e fazia-as rodopiar como loucas; at o cu parecia gelado; as nuvens pairavam, pesadas com granizo e neve, e o corvo, empoleirado numa sebe, gritava cr, cr por causa do frio. S de olhar para aquilo ficava-se logo a tremer. Foi um tempo difcil tambm para o patinho.

Uma tarde, com o cu avermelhado pelo pr do Sol, um bando de grandes aves maravilhosas ergueu-se dos juncos. O patinho nunca tinha visto aves to belas. Eram de um branco brilhante, com longos pescoos graciosos na verdade, eram cisnes. Emitindo um estranho som, abriram as esplndidas asas e voaram para longe, para terras mais quentes e lagos que no gelavam. Voaram at bem alto e o patinho feio ficou muito excitado; andava roda, roda, na gua, e chamou-os com uma voz to alta e estranha que at ele prprio se assustou. Oh, nunca esqueceria aquelas aves maravilhosas, aquelas aves felizes! Assim que a ltima desapareceu, mergulhou mesmo at ao fundo e, quando voltou de novo superfcie, estava excitadssimo. No sabia como se chamavam as aves; no sabia de onde tinham vindo nem para onde voavam mas sentia-se mais atrado por elas do que por qualquer outra coisa.

No Inverno ficou ainda mais frio. O patinho tinha de nadar s voltas na gua para esta no gelar, mas cada noite a parte sem gelo se tornava mais pequena. Depois, tinha de bater com os ps a toda a hora, para quebrar a superfcie; por fim, acabou por ficar estafado. Parou e depressa gelou completamente.

De manh cedo apareceu um campons. Vendo a ave, foi at l, partiu o gelo com os socos de madeira e levou-a para casa, para a mulher. Pouco tempo depois, o patinho reanimou-se. As crianas queriam brincar com ele, mas ele julgava que queriam fazer-lhe mal e, assustado, voou para dentro da selha do leite. O leite salpicou a sala toda; a mulher deu um grito e deitou as mos cabea; depois, o patinho voou para dentro da cuba da manteiga, depois para o barril da farinha, e depois saiu. Meu Deus, que espectculo! A mulher, ainda aos gritos, atirou-lhe o atiador da lareira; as crianas, rindo e guinchando, caam umas por cima das outras, tentando apanhar o patinho. Felizmente, a porta estava aberta; l foi ele a correr para os arbustos e para a neve recm-cada e a ficou meio entontecido.

Mas seria demasiado triste contar-vos todas as dificuldades e infelicidades por que ele teve de passar durante aquele Inverno cruel. Um dia, estava a tentar aconchegar-se entre os juncos do charco quando o Sol comeou a enviar novamente raios quentes; as cotovias cantavam; que maravilha! Tinha chegado a Primavera. O patinho ergueu as asas. Pareciam mais fortes do que antes, e levaram-no velozmente para longe; antes de perceber o que estava a acontecer, encontrou-se num lindo jardim cheio de macieiras em flor, com lilases perfumados que pendiam dos seus longos ramos mesmo at um riacho sinuoso. E ento, mesmo em frente dele, saindo das sombras das folhas, apareceram trs magnficos cisnes brancos, agitando as penas enquanto deslizavam pela gua. O patinho reconheceu as maravilhosas aves e sentiu uma estranha tristeza.

Vou voar at quelas nobres aves, mesmo que me matem bicada por me atrever a aproximar-me, feio como sou. Mas no me importo... melhor ser morto por umas criaturas to esplndidas do que apanhar bicadas de patos e galinhas e pontaps da rapariga da quinta ou ter de aguentar outro Inverno como o ltimo.

Voou para a gua e nadou em direco aos magnficos cisnes. Estes viram-no e vieram ter com ele a toda a velocidade, agitando a plumagem.

V, matem-me disse o pobre patinho curvando a cabea mesmo at gua enquanto esperava pelo fim.

Mas o que que viu ele reflectido em baixo? Observou-se bem j no era uma desajeitada ave feia e cinzenta. Era igual s orgulhosas aves brancas ali ao p: era um cisne!

No interessa nascer num terreiro de patos quando se sai de um ovo de cisne.

Sentiu-se feliz por ter sofrido tantas dificuldades, porque agora dava valor sua boa sorte e ao lar que finalmente tinha encontrado. Os majestosos cisnes nadaram sua volta e acariciaram-no com admirao com os bicos. Umas criancinhas apareceram no jardim e atiraram po para a gua e a mais pequenina gritou alegremente:

H mais um!E as outras disseram, encantadas:

E verdade, apareceu mais um cisne!

Bateram palmas e danaram de contentamento; depois foram a correr contar aos pais. Deitaram mais po e bolo para a gua e todos disseram:

O novo o mais bonito de todos. Olhem que belo que , aquele novo!

E os cisnes mais velhos curvaram as cabeas diante dele.

Ele sentia-se muito envergonhado e escondeu a cabea debaixo de uma asa; no sabia o que fazer. Estava quase feliz de mais, porque um bom corao nunca orgulhoso nem vaidoso. Lembrava-se dos tempos em que tinha sido perseguido e desprezado, e agora ouvia toda a gente dizer que era a mais bela de todas aquelas maravilhosas aves brancas. Os lilases curvaram os ramos at gua para o saudarem; o Sol enviou o seu calor amigo, e a jovem ave, com o corao cheio de alegria, agitou as penas, ergueu o pescoo esguio e exclamou:

Nunca pensei que alguma vez pudesse sentir tamanha felicidade quando era o patinho feio!

A Famlia Feliz

A maior folha verde que temos neste pas com certeza a folha da bardana. Uma menina podia us-la como avental; se a pusesse na cabea quando chovia, faria de guarda-chuva to grande como isso. Nenhuma bardana cresce sozinha; no, onde h uma, h sempre muitas outras. So um lindo espectculo e todo esse esplendor costumava ser a comida dos caracis. H um gnero especial de caracis que vive nas folhas, uma espcie de caracol que os ricos costumavam cozinhar e comer. Murmuravam Delicioso! quando os comiam. E foi por isso que se comeou a plantar bardanas.

Ora, havia uma velha manso onde h muito tempo que se tinha deixado de comer caracis. Os caracis estavam mesmo quase extintos, mas no as bardanas,