contos

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O outro – Rubem Fonseca Eu chegava todo dia no meu escritório às oito e trinta da manhã. O carro parava na porta do prédio e eu saltava, andava dez ou quinze passos, e entrava. Como todo executivo, eu passava as manhãs dando telefonemas, lendo memorandos, ditando cartas à minha secretária e me exasperando com problemas. Quando chegava a hora do almoço, eu havia trabalhado duramente. Mas sempre tinha a impressão de que não havia feito nada de útil. Almoçava em uma hora, às vezes uma hora e meia, num dos restaurantes das proximidades, e voltava para o escritório. Havia dias em que eu falava mais de cinquenta vezes ao telefone. As cartas eram tantas que a minha secretária, ou um dos assistentes, assinava por mim. E, sempre, no fim do dia, eu tinha a impressão de que não havia feito tudo o que precisava ter feito. Corria contra o tempo. Quando havia um feriado, no meio da semana, eu me irritava, pois era menos tempo que eu tinha. Levava diariamente trabalho para casa, em casa podia produzir melhor, o telefone não me chamava tanto. Um dia comecei a sentir uma forte taquicardia. Aliás, nesse mesmo dia, ao chegar pela manhã ao escritório surgiu ao meu lado, na calçada, um sujeito que me acompanhou até a porta dizendo “doutor, doutor, será que o senhor podia me ajudar?”. Dei uns trocados a ele e entrei. Pouco depois, quando estava falando no telefone para São Paulo, o meu coração disparou. Durante alguns minutos ele bateu num ritmo fortíssimo, me deixando extenuado. Tive que deitar no sofá, até passar. Eu estava tonto, suava muito, quase desmaiei. Nessa mesma tarde fui ao cardiologista. Ele me fez um exame minucioso, inclusive um eletrocardiograma de esforço, e, no final, disse que eu precisava diminuir de peso e mudar de vida. Achei graça. Então, ele recomendou que eu parasse de trabalhar por algum tempo, mas eu disse que isso, também, era impossível. Afinal, me prescreveu um regime alimentar e mandou que eu caminhasse pelo menos duas vezes por dia. No dia seguinte, na hora do almoço, quando fui dar a

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Pai contra maeO outroOvo e a Galinha

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Page 1: Contos

O outro – Rubem Fonseca

  Eu chegava todo dia no meu escritório às oito e trinta da manhã. O carro parava na porta do prédio e eu saltava, andava dez ou quinze passos, e entrava. Como todo executivo, eu passava as manhãs dando telefonemas, lendo memorandos, ditando cartas à minha secretária e me exasperando com problemas. Quando chegava a hora do almoço, eu havia trabalhado duramente. Mas sempre tinha a impressão de que não havia feito nada de útil. Almoçava em uma hora, às vezes uma hora e meia, num dos restaurantes das proximidades, e voltava para o escritório. Havia dias em que eu falava mais de cinquenta vezes ao telefone. As cartas eram tantas que a minha secretária, ou um dos assistentes, assinava por mim. E, sempre, no fim do dia, eu tinha a impressão de que não havia feito tudo o que precisava ter feito. Corria contra o tempo. Quando havia um feriado, no meio da semana, eu me irritava, pois era menos tempo que eu tinha. Levava diariamente trabalho para casa, em casa podia produzir melhor, o telefone não me chamava tanto. Um dia comecei a sentir uma forte taquicardia. Aliás, nesse mesmo dia, ao chegar pela manhã ao escritório surgiu ao meu lado, na calçada, um sujeito que me acompanhou até a porta dizendo “doutor, doutor, será que o senhor podia me ajudar?”. Dei uns trocados a ele e entrei. Pouco depois, quando estava falando no telefone para São Paulo, o meu coração disparou. Durante alguns minutos ele bateu num ritmo fortíssimo, me deixando extenuado. Tive que deitar no sofá, até passar. Eu estava tonto, suava muito, quase desmaiei. Nessa mesma tarde fui ao cardiologista. Ele me fez um exame minucioso, inclusive um eletrocardiograma de esforço, e, no final, disse que eu precisava diminuir de peso e mudar de vida. Achei graça. Então, ele recomendou que eu parasse de trabalhar por algum tempo, mas eu disse que isso, também, era impossível. Afinal, me prescreveu um regime alimentar e mandou que eu caminhasse pelo menos duas vezes por dia. No dia seguinte, na hora do almoço, quando fui dar a caminhada receitada pelo médico, o mesmo sujeito da véspera me fez parar pedindo dinheiro. Era um homem branco, forte, de cabelos castanhos compridos. Dei a ele algum dinheiro e prossegui. O médico havia dito, com franqueza, que se eu não tomasse cuidado poderia a qualquer momento ter um enfarte. Tomei dois tranquilizantes, naquele dia, mas isso não foi suficiente para me deixar totalmente livre da tensão. À noite não levei trabalho para casa. Mas o tempo não passava. Tentei ler um livro, mas a minha atenção estava em outra parte, no escritório. Liguei a televisão mas não consegui aguentar mais de dez minutos. Voltei da minha caminhada, depois do jantar, e fiquei impaciente sentado numa poltrona, lendo os jornais, irritado. Na hora do almoço o mesmo sujeito emparelhou comigo, pedindo dinheiro. “Mas todo dia?”, perguntei. “Doutor”, ele respondeu, “minha mãe está morrendo, precisando de remédio, não conheço ninguém bom no mundo, só o senhor.” Dei a ele cem cruzeiros. Durante alguns dias o sujeito sumiu. Um dia, na hora do almoço, eu estava caminhando quando ele apareceu subitamente ao meu lado. “Doutor, minha mãe morreu.” Sem parar, e apressando o passo, respondi, “sinto muito”. Ele alargou as suas passadas, mantendo-se ao meu lado, e disse “morreu”. Tentei me desvencilhar dele e comecei a andar rapidamente, quase correndo. Mas ele correu atrás de mim, dizendo

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“morreu, morreu, morreu”, estendendo os dois braços contraídos numa expectativa de esforço, como se fossem colocar o caixão da mãe sobre as palmas de suas mãos. Afinal, parei ofegante e perguntei, “quanto é?”. Por cinco mil cruzeiros ele enterrava a mãe. Não sei por quê, tirei um talão de cheques do bolso e fiz ali, em pé na rua, um cheque naquela quantia. Minhas mãos tremiam. “Agora chega!”, eu disse. No dia seguinte eu não saí para dar a minha volta. Almocei no escritório. Foi um dia terrível, em que tudo dava errado: papéis não foram encontrados nos arquivos; uma importante concorrência foi perdida por diferença mínima; um erro no planejamento financeiro exigiu que novos e complexos cálculos orçamentários tivessem que ser elaborados em regime de urgência. À noite, mesmo com os tranquilizantes, mal consegui dormir. De manhã fui para o escritório e, de certa forma, as coisas melhoraram um pouco. Ao meio-dia saí para dar a minha volta. Vi que o sujeito que me pedia dinheiro estava em pé, meio escondido na esquina, me espreitando, esperando eu passar. Dei a volta e caminhei em sentido contrário. Pouco depois ouvi o barulho de saltos de sapatos batendo na calçada como se alguém estivesse correndo atrás de mim. Apressei o passo, sentindo um aperto no coração, era como se eu estivesse sendo perseguido por alguém, um sentimento infantil de medo contra o qual tentei lutar, mas neste instante ele chegou ao meu lado, dizendo, “doutor, doutor”. Sem parar, eu perguntei, “agora o quê?”. Mantendo-se ao meu lado, ele disse, “doutor, o senhor tem que me ajudar, não tenho ninguém no mundo”. Respondi com toda autoridade que pude colocar na voz, “arranje um emprego”. Ele disse, “eu não sei fazer nada, o senhor tem de me ajudar”. Corríamos pela rua. Eu tinha a impressão de que as pessoas nos observavam com estranheza. “Não tenho que ajudá-lo coisa alguma”, respondi. “Tem sim, senão o senhor não sabe o que pode acontecer”, e ele me segurou pelo braço e me olhou, e pela primeira vez vi bem como era o seu rosto, cínico e vingativo. Meu coração batia, de nervoso e de cansaço. “É a última vez”, eu disse, parando e dando dinheiro para ele, não sei quanto. Mas não foi a última vez. Todos os dias ele surgia, repentinamente, súplice e ameaçador, caminhando ao meu lado, arruinando a minha saúde, dizendo é a última vez doutor, mas nunca era. Minha pressão subiu ainda mais, meu coração explodia só de pensar nele. Eu não queria mais ver aquele sujeito, que culpa eu tinha de ele ser pobre? Resolvi parar de trabalhar uns tempos. Falei com os meus colegas de diretoria, que concordaram com a minha ausência por dois meses. A primeira semana foi difícil. Não é simples parar de repente de trabalhar. Eu me sentia perdido, sem saber o que fazer. Mas aos poucos fui me acostumando. Meu apetite aumentou. Passei a dormir melhor e a fumar menos. Via televisão, lia, dormia depois do almoço e andava o dobro do que andava antes, sentindo-me ótimo. Eu estava me tornando um homem tranquilo e pensando seriamente em mudar de vida, parar de trabalhar tanto. Um dia saí para o meu passeio habitual quando ele, o pedinte, surgiu inesperadamente. Inferno, como foi que ele descobriu o meu endereço? “Doutor, não me abandone!” Sua voz era de mágoa e ressentimento. “Só tenho o senhor no mundo, não faça isso de novo comigo, estou precisando de um dinheiro, esta é a última vez, eu juro!” — e ele encostou o seu corpo bem junto ao meu, enquanto caminhávamos, e eu podia sentir o seu hálito azedo e podre de faminto. Ele era mais alto do que eu, forte e ameaçador. Fui na direção da minha casa, ele me acompanhando, o rosto fixo virado para o meu, me vigiando curioso, desconfiado, implacável, até que chegamos na minha casa. Eu disse, “espere aqui”.

Page 3: Contos

Fechei a porta, fui ao meu quarto. Voltei, abri a porta e ele ao me ver disse “não faça isso, doutor, só tenho o senhor no mundo”. Não acabou de falar, ou se falou eu não ouvi, com o barulho do tiro. Ele caiu no chão, então vi que era um menino franzino, de espinhas no rosto, e de uma palidez tão grande que nem mesmo o sangue, que foi cobrindo a sua face, conseguia esconder.

PAI CONTRA MÃE

A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras

instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um

deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-

flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a

boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da

cabeça por um cadeado. Com o vício de beber. perdiam a tentação de furtar, porque

geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí

ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal

máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma

vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não

cuidemos de máscaras.

O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com

a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com

chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim,

onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.

Page 4: Contos

Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos

gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos

gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de

casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da

propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se,

entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas

comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que

seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse

aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando.

Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha

anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico,

se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a

quantia, vinha promessa: "gratificar-se-á generosamente", -- ou "receberá uma boa

gratificação". Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de

preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com

todo o rigor da lei contra quem o acoutasse.

Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser

instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza

implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou

estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o

acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o

impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.

Cândido Neves, -- em família, Candinho,-- é a pessoa a quem se liga a história de uma

fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um

defeito grave esse homem, não agüentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade;

é o que ele chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo

que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o

bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira

boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de

atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas

estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao

Page 5: Contos

Ministério do Império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de

obtidos.

Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas,

porque morava com um primo, entalhador de ofício. Depois de várias tentativas para

obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara algumas lições.

Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal. Não

fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para

cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou

muito.

Contava trinta anos. Clara vinte e dous. Ela era órfã, morava com uma tia, Mônica, e

cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados

apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tardes,

olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a costura. O

que ela notava é que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos.

Talvez nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia

a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe;

algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir a

outras.

O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o

possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi--

para lembrar o primeiro ofício do namorado, -- tal foi a página inicial daquele livro, que

tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e

foi a mais bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que

por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo,

nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em

demasia a patuscadas.

--Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto. --Não, defunto

não; mas é que...

Page 6: Contos

Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre onde eles se

foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um só, embora

viesse agravar a necessidade.

--Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha.

--Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara. Tia Mônica devia ter-lhes feito a

advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela era

amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi.

A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram

objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e

o riso digeria-se sem esforço.

Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma cousa e outra; não tinha emprego

certo.

Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquele desejo

específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia. porém, deu sinal de si a

criança; varão ou fêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada

ventura. Tia Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos.

--Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe.

A notícia correu de vizinha a vizinha. Não houve mais que espreitar a aurora do dia

grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma vez que,

além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. À força

de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção era

escassa, os intervalos longos. Tia Mônica ajudava, é certo, ainda que de má vontade.

--Vocês verão a triste vida, suspirava ela. --Mas as outras crianças não nascem também?

perguntou Clara. --Nascem, e acham sempre alguma cousa certa que comer, ainda que

pouco... --Certa como? --Certa, um emprego, um ofício, uma ocupação, mas em que é

que o pai dessa infeliz criatura que aí vem gasta o tempo?

Page 7: Contos

Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia, não áspero mas

muito menos manso que de costume, e lhe perguntou se já algum dia deixara de comer.

--A senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo quando não quer

jantar comigo. Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau... --Bem sei, mas somos três. --

Seremos quatro. --Não é a mesma cousa. -- Que quer então que eu faça, além do que

faço? -- Alguma cousa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem do

armarinho, o tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo... Não fique

zangado; não digo que você seja vadio, mas a ocupação que escolheu é vaga. Você

passa semanas sem vintém. -- Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até de

sobra. Deus não me abandona, e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase

nenhum resiste, muitos entregam-se logo.

Tinha glória nisto, falava da esperança como de capital seguro. Daí a pouco ria, e fazia

rir à tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada no batizado.

Cândido Neves perdera já o ofício de entalhador, como abrira mão de outros muitos,

melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a

estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e um pedaço

de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e saía às

pesquisas. Tinha boa memória. Fixados os sinais e os costumes de um escravo fugido,

gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força era muita, a

agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de cousas remotas,

via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem era, o

nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do vicioso.

Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificação nas

mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas

geralmente ele os vencia sem o menor arranhão.

Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como

dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o

negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais,

copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um competidor.

Quer dizer que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem aqueles

Page 8: Contos

pagamentos prontos ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura.

Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelo aluguéis.

Clara não tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido, tanta era a necessidade de

coser para fora. Tia Mônica ajudava a sobrinha, naturalmente. Quando ele chegava à

tarde, via-se-lhe pela cara que não trazia vintém. Jantava e saía outra vez, à cata de

algum fugido. Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em escravo

fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez capturou

um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe

deram os parentes do homem.

--É o que lhe faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir narrar

o equívoco e suas conseqüências. Deixe-se disso, Candinho; procure outra vida, outro

emprego.

Cândido quisera efetivamente fazer outra cousa, não pela razão do conselho, mas por

simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O pior

é que não achava à mão negócio que aprendesse depressa.

A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de nascer.

Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos ainda que o nono, cuja

narração dispenso também. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam ser

mais amargos.

--Não, tia Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho que me custa escrever,

quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca!

Foi na última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu ao casal o conselho de

levar a criança que nascesse à Roda dos enjeitados. Em verdade, não podia haver

palavra mais dura de tolerar a dous jovens pais que espreitavam a criança, para beijá-la,

guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular... Enjeitar quê? enjeitar como? Candinho

arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A mesa, que

era velha e desconjuntada, esteve quase a se desfazer inteiramente. Clara interveio. --

Titia não fala por mal, Candinho. --Por mal? replicou tia Mônica. Por mal ou por bem,

Page 9: Contos

seja o que for, digo que é o melhor que vocês podem fazer. Vocês devem tudo; a carne

e o feijão vão faltando. Se não aparecer algum dinheiro, como é que a família há de

aumentar? E depois, há tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura, os

filhos que vierem serão recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior. Este será

bem criado, sem lhe faltar nada. Pois então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá não

se mata ninguém, ninguém morre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se viver à

míngua. Enfim...

Tia Mônica terminou a frase com um gesto de ombros, deu as costas e foi meter-se na

alcova. Tinha já insinuado aquela solução, mas era a primeira vez que o fazia com tal

franqueza e calor,-- crueldade, se preferes. Clara estendeu a mão ao marido, como a

amparar-lhe o ânimo; Cândido Neves fez uma careta, e chamou maluca à tia, em voz

baixa. A ternura dos dous foi interrompida por alguém que batia à porta da rua.

--Quem é? perguntou o marido. --Sou eu.

Era o dono da casa, credor de três meses de aluguel, que vinha em pessoa ameaçar

o inquilino. Este quis que ele entrasse.

--Não é preciso... --Faça favor.

O credor entrou e recusou sentar-se, deitou os olhos à mobília para ver se daria algo à

penhora; achou que pouco. Vinha receber os aluguéis vencidos, não podia esperar mais;

se dentro de cinco dias não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado para

regalo dos outros. Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário; mas a palavra supria o

que faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu calar a retorquir. Fez uma

inclinação de promessa e súplica ao mesmo tempo. O dono da casa não cedeu mais.

--Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta e saindo.

Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao desespero, contava

com algum empréstimo, não sabia como nem onde, mas contava. Demais, recorreu aos

anúncios. Achou vários, alguns já velhos, mas em vão os buscava desde muito. Gastou

algumas horas sem proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias, não achou

Page 10: Contos

recursos; lançou mão de empenhos, foi a pessoas amigas do proprietário, não

alcançando mais que a ordem de mudança.

A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes

emprestasse alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia. Tia Mônica teve arte de

alcançar aposento para os três em casa de uma senhora velha e rica, que lhe prometeu

emprestar os quartos baixos da casa, ao fundo da cocheira, para os lados de um pátio.

Teve ainda a arte maior de não dizer nada aos dous, para que Cândido Neves, no

desespero da crise começasse por enjeitar o filho e acabasse alcançando algum meio

seguro e regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara,

sem as repetir, é certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a deixar a

casa, fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e iriam dormir melhor do que

cuidassem.

Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dous dias depois

nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia Mônica insistiu

em dar a criança à Roda. "Se você não a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à Rua

dos Barbonos." Cândido Neves pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a levaria.

Notai que era um menino, e que ambos os pais desejavam justamente este sexo. Mal lhe

deram algum leite; mas, como chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à Roda na noite

seguinte.

Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos . As gratificações pela maior

parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém, subia a

cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido.

Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio;

imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a vista

nova da quantia e a necessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grande

esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do

Parto e da Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um

farmacêutico da Rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga,

três dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar

como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros

fugidos de gratificação incerta ou barata.

Page 11: Contos

Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si mesma

a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino para ser levado à Roda. O pai, não

obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer o que

tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de

ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que

vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação

do menino; seria maior a miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem

recurso. Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher que desse ao

filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno adormeceu, o pai

pegou dele, e saiu na direção da Rua dos Barbonos.

Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, é certo; não menos certo é

que o agasalhava muito, que o beijava, que cobria o rosto para preservá-lo do sereno.

Ao entrar na Rua da Guarda Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o passo. --Hei

de entregá-lo o mais tarde que puder, murmurou ele. Mas não sendo a rua infinita ou

sequer longa, viria a acabá-la; foi então que lhe ocorreu entrar por um dos becos que

ligavam aquela à Rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar à direita, na

direção do Largo da Ajuda, viu do lado oposto um vulto de mulher; era a mulata

fugida. Não dou aqui a comoção de Cândido Neves por não podê-lo fazer com a

intensidade real. Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher, desceu ele

também; a poucos passos estava a farmácia onde obtivera a informação, que referi

acima. Entrou, achou o farmacêutico, pediu-lhe a fineza de guardar a criança por um

instante; viria buscá-la sem falta.

--Mas...

Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a rua, até ao

ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo da rua, quando ela ia

a descer a de S. José, Cândido Neves aproximou-se dela. Era a mesma, era a mulata

fujona. --Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio.

Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço de

corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir. Era

Page 12: Contos

já impossível. Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que

andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de

costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que

a soltasse pelo amor de Deus.

--Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe

por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me

solte, meu senhor moço! -- Siga! repetiu Cândido Neves. --Me solte! --Não quero

demoras; siga!

Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem passava

ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não acudia.

Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com

açoutes,--cousa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele

lhe mandaria dar açoutes.

--Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? perguntou

Cândido Neves.

Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia, à espera dele.

Também é certo que não costumava dizer grandes cousas. Foi arrastando a escrava pela

Rua dos Ourives, em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Na esquina desta a

luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço, inutilmente. O

que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá chegar do que

devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas

em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor.

--Aqui está a fujona, disse Cândido Neves. -- É ela mesma. --Meu senhor! --Anda,

entra...

Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os

cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinqüenta mil-

réis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia,

levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou.

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O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os

gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia que

horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à Rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem

querer conhecer as conseqüências do desastre.

Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara. Quis

esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá dentro

com a família, e ambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que

pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor.

Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para

a casa de empréstimo com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica, ouvida

a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-réis. Disse, é

verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga.

Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se

lhe dava do aborto.

--Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.

O ovo e a galinha – Clarisse Lispector

De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo.Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver o ovo nunca se mantêm no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto o ovo há três milênios. – No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. – Só vê o ovo quem já o tiver visto. – Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. – Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo. – Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. – O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe.Ver o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há sons supersônicos. Ninguém é capaz de ver o ovo. O cão vê o ovo? Só as máquinas vêem o ovo. O guindaste vê o ovo. – Quando eu era antiga um ovo pousou no meu ombro. – O amor pelo ovo também não se sente. O amor pelo ovo é supersensível. A gente não sabe que ama o ovo. – Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para não entornar o silêncio do ovo. Quando morri, tiraram de mim o ovo com cuidado. Ainda estava vivo. – Só quem visse o mundo veria o ovo. Como o mundo o ovo é óbvio.O ovo não existe mais. Como a luz de uma estrela já morta, o ovo propriamente dito não existe mais. – Você é perfeito, ovo. Você é branco. – A você dedico o começo. A você dedico a primeira vez.Ao ovo dedico a nação chinesa.

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O ovo é uma coisa suspensa. Nunca pousou. Quando pousa, não foi ele quem pousou. Foi uma coisa que ficou embaixo do ovo. – Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo. – Jamais pensar no ovo é um modo de tê-lo visto. – Será que sei do ovo? É quase certo que sei. Assim: existo, logo sei. – O que eu não sei do ovo é o que realmente importa. O que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente dito. – A Lua é habitada por ovos.O ovo é uma exteriorização. Ter uma casca é dar-se.- O ovo desnuda a cozinha. Faz da mesa um plano inclinado. O ovo expõe. – Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa: está com fome.O ovo é a alma da galinha. A galinha desajeitada. O ovo certo. A galinha assustada. O ovo certo. Como um projétil parado. Pois ovo é ovo no espaço. Ovo sobre azul. – Eu te amo, ovo. Eu te amo como uma coisa nem sequer sabe que ama outra coisa. – Não toco nele. A aura de meus dedos é que vê o ovo. Não toco nele – Mas dedicar-me à visão do ovo seria morrer para a vida mundana, e eu preciso da gema e da clara. – O ovo me vê. O ovo me idealiza? O ovo me medita? Não, o ovo apenas me vê. É isento da compreensão que fere. – O ovo nunca lutou. Ele é um dom. – O ovo é invisível a olho nu. De ovo a ovo chega-se a Deus, que é invisível a olho nu. – O ovo terá sido talvez um triângulo que tanto rolou no espaço que foi se ovalando. – O ovo é basicamente um jarro? Terá sido o primeiro jarro moldado pelos etruscos ? Não. O ovo é originário da Macedônia. Lá foi calculado, fruto da mais penosa espontaneidade. Nas areias da Macedônia um homem com uma vara na mão desenhou-o. E depois apagou-o com o pé nu.O ovo é coisa que precisa tomar cuidado. Por isso a galinha é o disfarce do ovo. Para que o ovo atravesse os tempos a galinha existe. Mãe é para isso. – O ovo vive foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época. – O ovo por enquanto será sempre revolucionário. – Ele vive dentro da galinha para que não o chamem de branco. O ovo é branco mesmo. Mas não pode ser chamado de branco. Não porque isso faça mal a ele, mas as pessoas que chamam ovo de branco, essas pessoas morrem para a vida. Chamar de branco aquilo que é branco pode destruir a humanidade. Uma vez um homem foi acusado de ser o que ele era, e foi chamado de Aquele Homem. Não tinham mentido: Ele era. Mas até hoje ainda não nos recuperamos, uns após outros. A lei geral para continuarmos vivos: pode-se dizer “um rosto bonito”, mas quem disser “O rosto”, morre; por ter esgotado o assunto.Com o tempo, o ovo se tornou um ovo de galinha. Não o é. Mas, adotado, usa-lhe o sobrenome. – Deve-se dizer “o ovo da galinha”. Se eu disser apenas “o ovo”, esgota-se o assunto, e o mundo fica nu. – Em relação ao ovo, o perigo é que se descubra o que se poderia chamar de beleza, isto é, sua veracidade. A veracidade do ovo não é verossímil. Se descobrirem, podem querer obrigá-lo a se tornar retangular. O perigo não é para o ovo, ele não se tornaria retangular. (Nossa garantia é que ele não pode: não poder é a grande força do ovo: sua grandiosidade vem da grandeza de não poder, que se irradia como um não querer.) Mas quem lutasse por torná-lo retangular estaria perdendo a própria vida. O ovo nos expõe, portanto, em perigo. Nossa vantagem é que o ovo é invisível. E quanto aos iniciados, os iniciados disfarçam o ovo.Quanto ao corpo da galinha, o corpo da galinha é a maior prova de que o ovo não existe. Basta olhar para a galinha para se tornar óbvio que o ovo é impossível de existir.E a galinha? O ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida. O ovo é o sonho inatingível da galinha. A galinha ama o ovo. Ela não sabe que existe o ovo. Se soubesse que tem em si mesma o ovo, perderia o estado de

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galinha. Ser galinha é a sobrevivência da galinha. Sobreviver é a salvação. Pois parece que viver não existe. Viver leva a morte. Então o que a galinha faz é estar permanentemente sobrevivendo. Sobreviver chama-se manter luta contra a vida que é mortal. Ser galinha é isso. A galinha tem o ar constrangido.É necessário que a galinha não saiba que tem um ovo. Senão ela se salvaria como galinha, o que também não é garantido, mas perderia o ovo. Então ela não sabe. Para que o ovo use a galinha é que a galinha existe. Ela era só para se cumprir, mas gostou. O desarvoramento da galinha vem disso: gostar não fazia parte de nascer. Gostar de estar vivo dói. – Quanto a quem veio antes, foi o ovo que achou a galinha. A galinha não foi sequer chamada. A galinha é diretamente uma escolhida. – A galinha vive como em sonho. Não tem senso de realidade. Todo o susto da galinha é porque estão sempre interrompendo o seu devaneio. A galinha é um grande sono. – A galinha sofre de um mal desconhecido. O mal desconhecido é o ovo. – Ela não sabe se explicar: “ sei que o erro está em mim mesma”, ela chama de erro a vida, “não sei mais o que sinto”, etc.“Etc., etc., etc.,” é o que cacareja o dia inteiro a galinha. A galinha tem muita vida interior. Para falar a verdade a galinha só tem mesmo é vida interior. A nossa visão de sua vida interior é o que chamamos de “galinha”. A vida interior na galinha consiste em agir como se entendesse. Qualquer ameaça e ela grita em escândalo feito uma doida. Tudo isso para que o ovo não se quebre dentro dela. Ovo que se quebra dentro de galinha é como sangue.A galinha olha o horizonte. Como se da linha do horizonte é que viesse vindo um ovo. Fora de ser um meio de transporte para o ovo, a galinha é tonta, desocupada e míope. Como poderia a galinha se entender se ela é a contradição de um ovo? O ovo ainda é o mesmo que se originou na Macedônia. A galinha é sempre tragédia mais moderna. Está sempre inutilmente a par. E continua sendo redesenhada. Ainda não se achou a forma mais adequada para uma galinha. Enquanto meu vizinho atende ao telefone ele redesenha com lápis distraído a galinha. Mas para a galinha não há jeito: está na sua condição não servir a si própria. Sendo, porém, o seu destino mais importante que ela, e sendo o seu destino o ovo, a sua vida pessoal não nos interessa.Dentro de si a galinha não reconhece o ovo, mas fora de si também não o reconhece. Quando a galinha vê o ovo pensa que está lidando com uma coisa impossível. É com o coração batendo, com o coração batendo tanto, ela não o reconhece.De repente olho o ovo na cozinha e vejo nele a comida. Não o reconheço, e meu coração bate. A metamorfose está se fazendo em mim: começo a não poder mais enxergar o ovo. Fora de cada ovo particular, fora de cada ovo que se come, o ovo não existe. Já não consigo mais crer num ovo. Estou cada vez mais sem força de acreditar, estou morrendo, adeus, olhei demais um ovo e ele me foi adormecendo.A galinha não queria sacrificar a sua vida. A que optou por querer ser “feliz”. A que não percebia que, se passasse a vida desenhando dentro de si como numa iluminura o ovo, ela estaria servindo. A que não sabia perder-se a si mesma. A que pensou que tinha penas de galinha para se cobrir por possuir pele preciosa, sem entender que as penas eram exclusivamente para suavizar, a travessia ao carregar o ovo, porque o sofrimento intenso poderia prejudicar o ovo. A que pensou que o prazer lhe era um dom, sem perceber que era para que ela se distraísse totalmente enquanto o ovo se faria. A que não sabia que “eu” é apenas uma das palavras que se desenham enquanto se atende ao telefone, mera tentativa de buscar forma mais adequada. A que pensou que “eu” significa ter um si-mesmo. As galinhas prejudiciais ao ovo são aquelas que são um “eu” sem trégua. Nelas o “eu” é tão constante que elas já não podem mais pronunciar a palavra “ovo”. Mas, quem sabe, era disso mesmo que o ovo precisava. Pois se elas não estivessem tão distraídas, se prestassem atenção à grande vida que se faz dentro delas,

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atrapalhariam o ovo.Comecei a falar da galinha e há muito já não estou falando mais da galinha. Mas ainda estou falando do ovo.E eis que não entendo o ovo. Só entendo o ovo quebrado: quebro-o na frigideira. É deste modo indireto que me ofereço à existência do ovo: meu sacrifício é reduzir-me à minha própria vida pessoal. Fiz do meu prazer e da minha dor o meu destino disfarçado. E ter apenas a própria vida é, para quem viu o ovo, um sacrifício. Como aqueles que, no convento, varrem o chão e lavam a roupa, servindo sem a glória de função maior, meu trabalho é o de viver os meus prazeres e as minhas dores. É necessário que eu tenha a modéstia de viver.Pego mais um ovo na cozinha, quebro-lhe a casca e forma. E a partir deste instante exato nunca existiu um ovo. É absolutamente indispensável que eu seja uma ocupada e uma distraída. Sou indispensavelmente um dos que renegam. Faço parte da maçonaria dos que viram uma vez o ovo e o renegam como forma de protegê-lo. Somos os que se abstêm de destruir, e nisso se consomem. Nós, agentes disfarçados e distribuídos pelas funções menos reveladoras, nós às vezes nos reconhecemos. A um certo modo de olhar, há um jeito de dar a mão, nós nos reconhecemos e a isto chamamos de amor. E então, não é necessário o disfarce: embora não se fale, também não se mente, embora não se diga a verdade, também não é necessário dissimular. Amor é quando é concedido participar um pouco mais. Poucos querem o amor, porque o amor é a grande desilusão de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras ilusões. Há os que voluntariam para o amor, pensando que o amor enriquecerá a vida pessoal. É o contrário: amor é finalmente a pobreza. Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor. E não é prêmio, por isso não envaidece, amor não é prêmio, é uma condição concedida exclusivamente para aqueles que, sem ele, corromperiam o ovo com a dor pessoal. Isso não faz do amor uma exceção honrosa; ele é exatamente concedido aos maus agentes, àqueles que atrapalhariam tudo se não lhes fosse permitido adivinhar vagamente.A todos os agentes são dadas muitas vantagens para que o ovo se faça. Não é o caso de se ter inveja pois, inclusive algumas das condições, piores do que as dos outros, são apenas as condições ideais para o ovo. Quanto ao prazer dos agentes, eles também o recebem sem orgulho. Austeramente vivem todos os prazeres: inclusive é o nosso sacrifício para que o ovo se faça. Já nos foi imposta, inclusive uma natureza adequada a muito prazer. O que facilita. Pelo menos torna menos penoso o prazer.Há casos de agentes que se suicidam: acham insuficientes as pouquíssimas instruções recebidas e se sentem sem apoio. Houve o caso do agente que revelou publicamente ser agente porque lhe foi intolerável não ser compreendido, e ele não suportava mais não ter o respeito alheio: morreu atropelado quando saía de um restaurante. Houve um outro que nem precisou ser eliminado: ele próprio se consumiu lentamente na sua revolta, sua revolta veio quando ele descobriu que as duas ou três instruções recebidas não incluíam nenhuma explicação. Houve outro também eliminado, porque achava que “a verdade deve ser corajosamente dita”, e começou em primeiro lugar a procurá-la; dele se disse que morreu em nome da verdade com sua inocência; sua aparente coragem era tolice, e era ingênuo o seu desejo de lealdade, ele compreendera que ser leal não é coisa limpa, ser leal é ser desleal para com todo o resto. Esses casos extremos de morte não são por crueldade. É que há um trabalho, digamos cósmico, a ser feito, e os casos individuais infelizmente não podem ser levados em consideração. Para os que sucumbem e se tornam individuais é que existem as instituições, a caridade, a compreensão que não discrimina motivos, a nossa vida humana enfim.Os ovos estalam na frigideira, e mergulhada no sonho preparo o café da manhã. Sem

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nenhum senso da realidade, grito pelas crianças que brotam de várias camas, arrastam cadeiras e comem, e o trabalho do dia amanhecido começa, gritado e rido e comido, clara e gema, alegria entre brigas, dia que é o nosso sal e nós somos o sal do dia, viver é extremamente tolerável, viver ocupa e distrai, viver faz rir.E me faz sorrir no meu mistério. O meu mistério é que eu ser apenas um meio, e não um fim, tem-me dado a mais maliciosa das liberdades: não sou boba e aproveito. Inclusive, faço um mal aos outros que, francamente. O falso emprego que me deram para disfarçar a minha verdadeira função, pois aproveito o falso emprego e dele faço o meu verdadeiro; inclusive o dinheiro que me dão como diária para facilitar a minha vida de modo a que o ovo se faça, pois esse dinheiro eu tenho usado para outros fins, desvio de verba, ultimamente comprei ações na Brahma e estou rica. A isso tudo ainda chamo de ter a necessária modéstia de viver. E também o tempo que me deram, e que nos dão apenas para que no ócio honrado o ovo se faça, pois tenho usado esse tempo para prazeres ilícitos e dores ilícitas, inteiramente esquecida do ovo. Esta é a minha simplicidade.Ou é isso mesmo que eles querem que me aconteça, exatamente para que o ovo se cumpra? É liberdade ou estou sendo mandada? Pois venho notando que tudo que é erro meu tem sido aproveitado. Minha revolta é que para eles eu não sou nada, eu sou apenas preciosa: eles cuidam de mim segundo por segundo, com a mais absoluta falta de amor; sou apenas preciosa. Com o dinheiro que me dão, ando ultimamente bebendo. Abuso de confiança? Mas é que ninguém sabe como se sente por dentro aquele cujo emprego consiste em fingir que está traindo, e que termina acreditando na própria traição. Cujo emprego consiste em diariamente esquecer. Aquele de quem é exigida a aparente desonra. Nem meu espelho reflete mais um rosto que seja meu. Ou sou um agente, ou é a traição mesmo.Mas durmo o sono dos justos por saber que minha vida fútil não atrapalha a marcha do grande tempo. Pelo contrário: parece que é exigido de mim que eu seja extremamente fútil, é exigido de mim inclusive que eu durma como justo. Eles me querem preocupada e distraída, e não lhes importa como. Pois, com minha atenção errada e minha tolice grave, eu poderia atrapalhar o que se está fazendo através de mim. É que eu própria, eu propriamente dita, só tenho mesmo servido para atrapalhar. O que me revela que talvez eu seja um agente é a idéia de que meu destino me ultrapassa: pelo menos isso eles tiveram mesmo que me deixar adivinhar, eu era daqueles que fariam mal o trabalho se ao menos não adivinhassem um pouco; fizeram-me esquecer o que me deixaram adivinhar, mas vagamente ficou-me a noção de que meu destino me ultrapassa, e de que sou instrumento do trabalho deles. Mas de qualquer modo era só instrumento que eu poderia ser, pois o trabalho não poderia ser mesmo meu. Já experimentei me estabelecer por conta própria e não deu certo; ficou-me até hoje essa mão trêmula. Tivesse eu insistido um pouco mais e teria perdido para sempre a saúde. Desde então, desde essa malograda experiência, procuro raciocinar desse modo: que já me foi dado muito, que eles já me concederam tudo o que pode ser concedido; e que os outros agentes, muito superiores a mim, também trabalharam apenas para o que não sabiam. E com as mesmas pouquíssimas instruções. Já me foi dado muito; isto, por exemplo: uma vez ou outra, com o coração batendo pelo privilégio, eu pelo menos sei que não estou reconhecendo! Com o coração batendo de emoção, eu pelo menos não compreendo! Com o coração batendo de confiança, eu pelo menos não sei.Mas e o ovo? Este é um dos subterfúgios deles: enquanto eu falava sobre o ovo, eu tinha esquecido do ovo. “Falai, falai”, instruíram-me eles. E o ovo fica inteiramente protegido por tantas palavras. Falai muito, é uma das instruções, estou tão cansada.Por devoção ao ovo, eu o esqueci. Meu necessário esquecimento. Meu interesseiro

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esquecimento. Pois o ovo é um esquivo. Diante de minha adoração possessiva ele poderia retrair-se e nunca mais voltar. Mas se ele for esquecido. Se eu fizer o sacrifício de esquecê-lo. Se o ovo for impossível. Então – livre, delicado, sem mensagem alguma para mim – talvez uma vez ainda ele se locomova do espaço até esta janela que desde sempre deixei aberta. E de madrugada baixe no nosso edifício. Sereno até a cozinha. Iluminando-a de minha palidez.