conto unhas de fora

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  • 8/16/2019 Conto Unhas de Fora

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     As unhas de fora

     Astrid Cabral

    Dona Dadá, nossa nova vizinha, chegou àcidade acompanhada de muitas malas emóveis, um cachorrão preto e um jabuti.Parecia uma pessoa séria. Logo descobrimosque não. Ela era mesmo era severa, o que é

     bem diferente. Berrava com as meninotas quetrabalhavam pra ela e, coitadas, andavam

    sempre assustadas.Cara amarrada, dona Dadá não sorria

    nunca. A gente desconfiava que ela não tivesseum só dente na boca, porque sua fala era todaembrulhada. Mal dava pra entender. — Cambada, caba já quessa agunça. Ulhaqui num si pude nem sistiá. Bico calado,quiançada.

     Tinha cara redonda de pires e olhar durode prego.E pose era o que não lhe faltava, por

    conta das trunfas que usava, uma de cadalado da cabeça. Além de antipática erapreguiçosa. Passava horas e horas aboletadana janela, fiscalizando a rua, os braços molese redondos apoiados numa almofada vermelhade cetim. Fazia questão de exibir a coleção deanéis. Só que ao mostrar tantas pedras e ouro,mostrava também as unhas encardidas onde o

    sujo punha uma risca preta. Aos poucos foi também botando outrasunhas de fora.Primeiro foram as mangas e goiabas que

    começaram a sumir de nosso quintal. Eu e asmanas ficávamos assuntando as frutasmadurarem para desaparecerem de repente,num passe de mágica, justo quando estavamficando no ponto. Nenhuma chuva asderrubara e a gente não dava a menor notícia

    de moleque invasor, bando de curica bicando,ou macaco pulando nos galhos. Pensávamos

    que podia ser arte de algum morcegofaminto

    que aparecia de noite enquanto a gente dor-mia. Mas nunca se achou caroço pelo chão.

     Atéque numa noite de luar vimos por cima

    dacerca uma vara com paneiro na ponta, a

    forquilha, torcendo o galho onde estava a

    manga espada madurinha. Ficamos

    assustadascom aquela visão ao longe. Seria

    coisa de fantasma? A gente guardou silêncio eficou à espreita até que tudo se aquietouimóvel e a vara se encostou na parede da casade dona Dadá.

    Um dia a cozinheira lá de casa veio avisar à vovó que não podia deixar pronta a galinha prodomingo porque ela fugira. Já tinha revistadotudo. Vovó só disse: — Qu’é qu’é isso, Luzia?Galinha não voa. Já compro de asa cortada.

    Só que as galinhas começaram a sumir.Hoje era a carijó ruiva, daí a dias as de pena

     branca; compradas na feira já gordinhas. Aconteceu que, certa manhã bem cedo,ainda meio escuro, Luzia viu um vulto jogandomilho num cantinho da cerca. Mais tarde, ao

     varrer o quintal, deu com o arame da cercalevantado e fora do lugar. Então, logo pensou,é por aqui que elas escapam. Pôs-se aobservar o quintal alheio e viu que na criação

    de dona Dadá havia muitas galinhas depescoço pelado. Tirando duas galinhas da

     Angola, as outras todas eram pirocas. Olhandomelhor acabou por reconhecer quatro, uma

     branca e três ruivas que haviam desaparecidodo lado de cá e agora estavam todas depescoço depenado.Luzia nos contou a descoberta. Achamos

    aquilo um desaforo. Para nós ladrão era umser sem cara, alguém difícil de se botar os

    olhos em cima. E agora ali estava aquela dona bem nas nossas ventas. Com certeza ela davaordens àquelas pobres meninas para agiremdaquele jeito.

     Armamosum plano. A primeira vez que

     víssemos dona Dadá,saindo com o marido,

    toda empiponada paraa missa de domingo,

    íamos para apanhar nossas galinhas que

    havia fugido por baixo da cerca.Dito e feito.

    Bancamos as inocentes falamos: Bom dia,

    doutor Nicolau, o senhor dá licençapragente

    ir pegar nossas galinhas que passaram pro

    seuquintal?

    Era um homem afável, respeitado de todos.Ele apenas disse: — Peçam às empregadas praprender o cachorro. Dona Dadá, de braço dadocom o marido, olhou-nos com uma cara deódio fuzilante, mas não abriu a boca. Trouxemos de volta três das nossas

    galinhas, as  que a gente conseguiu

    reconhecer, porque muitas delas já estavam há

    muito tempo no bucho dos vizinhos.

     Tempos depois um compadre de vovôem

     visita lá em casa e perguntou: — Então,

  • 8/16/2019 Conto Unhas de Fora

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    compadre, tava gostosa a tartaruga que lhe

    mandeide aniversário? Vovô ficou surpreso,

    quetartaruga,compadre foi atrás do caboclo

    encarregado de levar opresente. E ele contou

    que quando ia chegando com a encomenda,uma senhora gorda na janela da casa ao ladodisse: — É aqui mesmo, moço, estou à espera

    dessa bichinha.Nossa raiva foi geral. Lidar com gente

    safada é coisa por demais difícil. Ainda maisque doutor Nicolau era gente boa. Fazia festapra meninada e, além disso, era juiz de direito,um homem importante, mas sem orgulho

     besta. Uma vítima daquela mulher falsa,daquela megera. A questão agora era saber que lição a gentepodia dar àquela bruxa de vassoura

    escondida. Era difícil pegá-la com a boca na botija. Quem podia entender que uma donaque nem ela, com tanta posição e tantos anéis,cobiçasse e avançasse no alheio?O avô sempre dizia que não se podia nunca

    fazer do mesmo que se censurava aos outros.

    Questão de coerência. Mas a mãe sempreachou que a tolerância excessiva só serviapara alimentar o erro e que não se perdia nadapor tomar as providências de uma correção. Assim, o bendito dia em que o jabuti deestimação de dona Dadá, depois de bancartatu cavando um túnel com os costados lá em

    casa, perto do pé de graviola, mamãe nãotitubeou. Deu ordem à Luzia para prepará-locom todos os temperos, sem esquecer coentro,chicória, pimenta murupi e cheiro verde, comose fosse uma tartaruga de verdade. Comemossem remorso e com bastante gosto, porque a

     justiça feita sempre alegra. Nem vovôreclamou.Seria uma ocasião para dona Dadá vir

    tornar satisfação e a gente botar tudo em

    pratos limpos, criando uma boa vizinhança eacabando de vez com ressentimentos. Mas ela

    nem piou. Dessa vez quem ficou de bico calado

    foi ela, pois a gente continuou fazendo

     bagunça na hora da sesta.

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     Amazonense, ASTRID CABRAL é poeta e contista. Adolescente saiu de sua terra para estudar línguas e

    literatura no de Janeiro, onde se fixou. Neste conto, afloram recordações de sua infância decorrida na

    Manaus dos anos 40, pequena ainda bem próxima da natureza.