conto: a pequena sereia original e completo!

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5/16/2018 Conto:APequenaSereiaORIGINALECOMPLETO!-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/conto-a-pequena-sereia-original-e-completo 1/39  V OLUME I 5ª EDIÇÃO AMPLIADA E COM NOVAS ILUSTRAÇÕES Vej cupo co descont últim págin :)

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Conto A Pequena Sereia completo, versão original de Hans Christian Andersen. Editora Wish, 2013 http://www.editorawish.com.brBem no fundo do mar a água é azul como as pétalas das mais bonitas centáureas e pura como o cristal mais transparente. Mas é tão profundo, mais tão profundo do que qualquer âncora pode alcançar. Seria preciso empilhar uma quantidade de torres de igreja, umas sobre as outras, a fim de verificar a distância que vai do fundo à superfície. Lá é a morada do povo do mar.

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V O L U M E I

5 ordf E D I Ccedil Atilde O A M P L I A D A

E C O M N O V A S I L U S T R A Ccedil Otilde E S

Vej cupo codescont uacuteltim paacutegin )

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APequen Seeia D E N L I L L E H A V F R U E

H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

D I N A M A R C A 1 8 4 8

ldquo() Muitas vezes agrave noite a Pequena Sereiao via sair ao mar em seu esplecircndido barco

com bandeiras hasteadas ao som de muacutesica

harmoniosa Espiava do meio dos juncos

verdes e quando o vento levantava o longo veacuteu

branco e prateado do seu cabelo e pessoas a

viam imaginavam apenas que era um cisne

estendendo as asasrdquo

I L U S T R A Ccedil Atilde O E D M U N D D U L A C

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peacutetalas das mais bonitas centaacuteureas e pura como o cristalmais transparente Mas eacute profundo mais profundo doque qualquer acircncora pode alcanccedilar Seria preciso empi-

lhar uma quantidade de torres de igreja umas sobre as outras a fimde verificar a distacircncia que vai do fundo agrave superfiacutecie Laacute eacute a moradado povo do mar

Agora natildeo pense nem por um instante que natildeo haacute nada laacute aleacutemde areia nua e branca Oacute natildeo As mais maravilhosas aacutervores e plantas

crescem no fundo do mar Seus talos e folhas satildeo tatildeo leves que omenor movimento da aacutegua faz com eles se agitem como se estivessemvivos Todos os peixes grandes e pequenos deslizam por entre seus

galhos assim como os paacutessaros o fazem no ar No lugar mais pro-fundo estaacute o castelo do rei do mar cujos muros satildeo feitos de coral

e as janelas compridas e pontudas satildeo feitas do mais claro acircmbar Oteto eacute formado de conchas que se abrem e fecham com a corrente Eacuteuma visatildeo linda Cada concha encerra uma peacuterola deslumbrante e amenor delas honraria a mais bela coroa de qualquer rainha

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Haacute muitos anos que o rei do mar estava viuacutevo e sua velha matildeemantinha a casa Era uma mulher inteligente mas orgulhosa de sua

linhagem Era por isso que usava doze ostras em sua cauda enquantotodos os outros de alta posiccedilatildeo tinham de se contentar com seis Sobreoutros aspectos ela merecia elogios pelos cuidados que tinha para comas suas netas bem-amadas as princesinhas do mar Eram seis lindascrianccedilas e a mais moccedila era a mais encantadora Sua pele era clara edelicada como uma peacutetala de rosa Seus olhos eram azuis como umlago profundo Todavia como todas as outras natildeo tinha peacutes e seucorpo terminava numa longa cauda de peixe

Durante o dia inteiro as princesas do mar brincavam nos grandessalotildees do castelo onde flores viccedilosas cresciam direto das paredes Asgrandes janelas de acircmbar ficavam abertas e os peixes entravam por elasnadando assim como as andorinhas entram voando em nossas casasquando abrimos as janelas Os peixes deslizavam ateacute as princesinhas

comiam em suas matildeos e aguardavam um afagoFora do castelo havia um belo jardim com aacutervores de um azulpenetrante e de um vermelho flamejante Seus frutos cintilavamcomo ouro e suas flores agitando sem cessar seus talos e suas folhasassemelhavam-se a labaredas O proacuteprio solo era da mais fina areiaporeacutem azul como uma chama de enxofre Um singular fulgor azu-lado envolvia tudo que estava agrave vista Se vocecirc estivesse laacute embaixo natildeo

saberia que estava no fundo do mar sem nada aleacutem do ceacuteu acima eabaixo de vocecirc Quando havia calmaria era possiacutevel vislumbrar o solque parecia uma flor puacuterpura de cujo caacutelice jorrava luz

Cada uma das princesinhas tinha seu proacuteprio terreno no jardim no qual podia cavar e plantar a seu bel-prazer Uma arrumouseu canteiro de flores na forma de uma baleia outra achou mais in-teressante moldar o seu como uma sereiazinha mas a caccedilula fez o

seu bem redondo como o sol e soacute quis flores rubras como o brilhodele Era uma crianccedila curiosa sossegada e pensativa Enquanto asirmatildes adornavam seus jardins com as coisas maravilhosas que ob-tinham de navios naufragados ela natildeo admitia nada aleacutem de flores

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rosa-avermelhadas que eram como o sol laacute no alto e uma estaacutetuade maacutermore A estaacutetua era de um encantador rapaz esculpida em

pura pedra branca que havia descido ao fundo do mar depois de umnaufraacutegio Perto dela a princesinha havia plantado um salgueiro cor--de-rosa que cresceu esplendidamente e deixava sua fresca folhagemcobrir a estaacutetua ateacute o solo azul arenoso do oceano Sua sombra ga-nhava um matiz violeta e como os ramos nunca ficava parada Asraiacutezes e a copa da aacutervore pareciam estar sempre brincando tentandobeijar uma agrave outra

Natildeo havia nada de que as princesas gostassem mais do que ouvirsobre o mundo dos seres humanos acima do mar Sua vovozinha lhescontava tudo o que sabia sobre os navios e as cidades as pessoas e osanimais Uma coisa em especial as impressionava com sua belezasaber que as flores exalavam uma fragracircncia ndash natildeo havia nenhumano fundo do mar ndash e tambeacutem que as aacutervores na floresta eram verdes

e que os peixes que voavam nas aacutervores sabiam cantar tatildeo docementeque era um prazer ouvi-los A avoacute chamava os passarinhos de peixesDe outro modo as princesinhas do mar que nunca tinham visto umpaacutessaro natildeo a teriam compreendido

mdash Quando vocecircs completarem quinze anos ndash disse a avoacute ndashvamos deixaacute-las subir ateacute a superfiacutecie e se sentar nos rochedos agraveluz do luar para ver os grandes navios passarem Veratildeo florestas e

tambeacutem cidadesNo ano seguinte uma das irmatildes completaria quinze anos mas

as outras ndash bem cada uma era um ano mais nova que a outra demodo que a mais nova teria de esperar nada menos que cincos anospara subir das profundezas do mar para a superfiacutecie e ver como satildeoas coisas por aqui mas cada uma prometia contar agraves outras tudo quevisse e o que lhe parecia mais interessante naquela primeira visita

pois nunca estavam satisfeitas com o que a avoacute contava Havia umainfinidade de coisas sobre as quais ansiavam ouvir

Nenhuma das sereias era mais curiosa do que a caccedilula e eratambeacutem ela tatildeo quieta e pensativa a que tinha de suportar a mais

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longa espera Em muitas noites ela se postava agrave janela aberta e fitavaatraveacutes das aacuteguas azul-escuras os peixes sacudirem suas nadadeiras ecaudas Olhava bem para o alto e podia ver a lua e as estrelas emborasua luz fosse muito paacutelida ndash atraveacutes da aacutegua pareciam muito maioresque aos nossos olhos Se uma nuvem escura passava acima dela sabiaque era uma baleia que nadava sobre a sua cabeccedila ou um navio cheiode passageiros Aquelas pessoas nem sonhavam que uma sereiazinha

estendia suas matildeos brancas para o casco do navio que fendia as aacuteguas Assim que fez quinze anos a mais velha das princesas foi auto-

rizada a subir agrave superfiacutecie do oceano Quando voltou tinha dezenasde coisas para contar

mdash O mais delicioso ndash ela disse ndash foi ficar deitada em um bancode areia perto da praia numa noite de lua com o mar calmo Foipossiacutevel contemplar a grande cidade onde as luzes brilhavam como

milhares de estrelas Podia ouvir muacutesicas harmoniosas e o ruiacutedo decarros e pessoas Podia ver todas as torres das igrejas e ouvir os sinostocando ndash e exatamente por natildeo ter chegado perto de todas essas ma-ravilhas ansiava ainda mais por todas elas

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Oacute como a irmatilde caccedilulabebia aquelas palavras E mais

tarde agrave noite ficou junto agrave janelaaberta fitando atraveacutes das aacuteguasazul-escuras pensando na cidadegrande com seus ruiacutedos e luzes eateacute imaginou ouvir os sinos dasigrejas tocando para ela

No ano seguinte a segundairmatilde teve permissatildeo para subirmar acima e nadar aonde quisesseChegou agrave superfiacutecie bem na horado pocircr do sol

mdash Foi a visatildeo mais bela detodas ndash ela contou mdash Todo o

ceacuteu parecia ouro e as nuvensndash bem ela simplesmente natildeoconseguia descrever como eramlindas ao passar em tons de car-mesim e violeta sobre sua cabeccedila

Mais veloz ainda que as nu-

vens um bando de cisnes selvagensvoou como um longo e branco veacuteusobre a aacutegua rumo ao sol poenteEla nadou nessa direccedilatildeo mas o solse pocircs e sua luz roacutesea foi engolidapelo mar e pela nuvem

Depois chegou a vez da terceira irmatilde Era a mais ousada de todas

e nadou ateacute um largo rio que desaguava no mar Avistou admiraacuteveis co-linas verdes cobertas com videiras castelos e fazendas situados no meiode florestas soberbas e imensas ouviu o canto dos paacutessaros e o sol eratatildeo quente que teve de mergulhar muitas vezes na aacutegua para refrescar o

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rosto ardente Numa pequena enseada topou com um bando de crian-cinhas humanas divertindo-se completamente nuas na aacutegua

Quis brincar com elas mas ficaram aterrorizadas e fugiram De-pois um animalzinho preto foi ateacute a aacutegua Era um cachorro mas nuncatinha visto um O animal latiu tanto que ela ficou assustada e nadoupara o mar aberto Poreacutem disse que jamais esqueceria a magniacutefica flo-resta as colinas verdes e as lindas criancinhas que sabiam nadar emboranatildeo possuiacutessem caudas

A quarta irmatilde natildeo foi tatildeo ousada Preferiu ficar no meio do marselvagem onde a vista se perdia ao longe todavia foi exatamente issoela lhes contou que tornou sua visita tatildeo maravilhosa Podia ver pormilhas e milhas ao seu redor e o ceacuteu se arredondava em volta da aacuteguacomo um grande sino de vidro Vira navios mas a uma distacircncia tatildeogrande que pareciam gaivotas Os golfinhos brincavam nas ondas eas baleias esguichavam aacutegua tatildeo poderosamente de suas narinas que

pareciam estar cercadas por uma centena de chafarizesE agora era a vez da quinta irmatilde Como seu aniversaacuterio caiacutea no

inverno ela viu coisas que as outras natildeo tinham visto da primeira vezO mar perdera sua cor azul e adquirira um tom esverdeado e sobreele flutuavam enormes icebergs

mdash Cada um parecia uma peacuterola ndash ela disse ndash mas eram mais

altos que as torres de igrejas construiacutedas pelos seres humanos Apareciam nas formas mais fantaacutesticas e brilhavam como dia-mantes Ela se sentara num dos maiores icebergs e todos os naviospareciam ter medo dele pois passavam navegando rapidamente emuito distante do lugar onde ela estava sentada com o vento grace- jando seus longos cabelos

Mais tarde naquela noite uma tempestade cobriu o ceacuteu de nu-

vens Trovotildees estrondeavam relacircmpagos chispavam e as ondas es-curas elevavam os enormes blocos de gelo tatildeo alto que os tiravam daaacutegua fazendo-os reluzir na intensa luz vermelha Todos os naviosrecolheram as velas e em meio ao horror e ao alarme geral a sereia

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permaneceu sentada tranquilamente no iceberg flutuante vendo osrelacircmpagos azuis ziguezaguearem no mar resplandecente

Na primeira vez que as irmatildes subiram agrave superfiacutecie ficaram en-cantadas de ver tantas coisas novas e bonitas Poreacutem quando ficarammais velhas e podiam emergir sempre que queriam mostravam-semenos entusiasmadas Sentiam saudade do fundo do mar E depoisde um mecircs diziam que afinal de contas era muito mais agradaacutevel laacuteembaixo ndash era tatildeo reconfortante estar em casa No entanto muitasvezes ao entardecer as cinco irmatildes davam-se os braccedilos e flutuavam juntas Suas vozes eram encantadoras como nenhuma criatura hu-mana poderia possuir

Antes da aproximaccedilatildeo de uma tempestade quando esperavam onaufraacutegio de um navio as irmatildes costumavam nadar diante do barcoe cantar docemente as deliacutecias das profundezas do mar Diziam aosmarinheiros para natildeo terem medo de mergulhar ateacute o fundo mas eles

nunca entendiam suas canccedilotildees Pensavam estar ouvindo os uivos datempestade e nunca viam as maravilhas que as sereias prometiam Eassim que o navio afundava os homens se afogavam e somente seuscadaacuteveres chegavam ateacute o palaacutecio do rei do mar

Quando as irmatildes subiam pela aacutegua de braccedilos dados a caccedilulasempre ficava para traacutes sozinha acompanhando-as com os olhos Teriachorado mas as sereias natildeo tecircm laacutegrimas e sofrem muito mais que noacutes

mdash Oacute Se pelo menos eu tivesse quinze anos ndash ela dizia mdash Seique vou gostar muito do mundo laacute de cima e de todas as pessoas quevivem nele

Entatildeo finalmente ela fez quinze anosmdash Bem agora vocecirc logo escaparaacute das nossas matildeos ndash disse a velha

rainha sua avoacute mdash Venha deixe-me vesti-la como suas outras irmatildesE pocircs no seu cabelo uma coroa de liacuterios brancos em que cada

peacutetala de flor era metade de uma peacuterola Depois a velha senhoramandou trazer oito grandes ostras para prender firmemente na caudada princesa e mostrar sua alta posiccedilatildeo

mdash Ai Isso doacutei ndash disse a Pequena Sereia

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mdash Sim a beleza tem seu preccedilo ndash respondeu a avoacuteComo a Pequena Sereia teria gostado de se livrar de todos

aqueles adornos e pocircr de lado aquela pesada coroa As flores verme-lhas de seu jardim assentavam-lhe muito melhor mas natildeo ousoufazer nenhuma alteraccedilatildeo

mdash Adeus ndash disse ao subir pela aacutegua tatildeo leve e liacutempida quantoas bolhas se elevam agrave superfiacutecie

O sol acabara de se pocircr quando ela ergueu a cabeccedila sobre as

ondas mas as nuvens ainda estavam tingidas de carmesim e ouroNo alto do ceacuteu paacutelido e rosado a estrela vespertina iluminava clarae viacutevida O ar estava ameno e fresco e o mar apraziacutevel Um grandenavio de trecircs mastros estava agrave deriva na aacutegua com apenas uma velaiccedilada porque o vento estava brando Os marinheiros estavam refes-telados no cordame ou nas jardas Havia muacutesica e canto a bordo equando escureceu uma centena de lanternas foi acesa Com suas

muitas cores tinha-se a impressatildeo de que as bandeiras de todas asnaccedilotildees flutuavam no ar

A Pequena Sereia nadou ateacute a escotilha da cabine e cada vez queuma onda a levantava podia ver atraveacutes do vidro transparente umaquantidade de homens magnificamente trajados O mais belo delesera um jovem priacutencipe com grandes olhos escuros Natildeo tinha mais

de dezesseis anos Era seu aniversaacuterio e era por isso que havia tantoalvoroccedilo Quando o jovem priacutencipe saiu para o conveacutes onde os mari-nheiros estavam danccedilando mais de uma centena de foguetes zuniramrumo ao ceacuteu num esplendor tornando o ceacuteu tatildeo brilhante quanto odia A Pequena Sereia ficou tatildeo assustada que mergulhou escondendo--se sob a aacutegua mas rapidamente pocircs a cabeccedila para fora de novo Eveja Parecia que as estrelas laacute do ceacuteu estavam caindo sobre ela Nunca

vira fogos de artifiacutecios Grandes soacuteis rodopiavam ao seu redor lindospeixes de fogo refulgentes lanccedilavam-se no ar azul e todo esse brilhose refletia nas aacuteguas claras e calmas embaixo O proacuteprio navio estavatatildeo deslumbrantemente iluminado que se podiam ver natildeo soacute todas as

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pessoas que laacute estavam como tambeacutem a corda mais fina Que eleganteparecia o jovem priacutencipe quando apertava as matildeos dos marinheiros

Ele ria e sorria enquanto a muacutesica soava pelo ar da noite agradaacutevel Jaacute era muito tarde mas a Pequena Sereia natildeo conseguia tirar os

olhos do navio ou do belo priacutencipe As lanternas coloridas se apagaramos foguetes natildeo mais subiam no ar e o canhatildeo cessara de dar tirosContudo o mar estava inquieto e era possiacutevel ouvir um som queixososob as ondas Ainda assim a Pequena Sereia continuou na aacutegua balan-ccedilando-se para cima e para baixo para olhar a cabine O navio ganhouvelocidade e uma apoacutes outra as suas velas foram desferidas As ondascresciam nuvens negras se agrupavam no ceacuteu e relacircmpagos faiscavamagrave distacircncia Uma terriacutevel tempestade estava se formando Por isso osmarinheiros recolheram as velas enquanto o vento sacudia o grandenavio e o arrastava pelo mar impetuoso As ondas subiam mais e maisaltas ateacute se assemelharem a enormes montanhas ameaccedilando derrubar

o mastro Ainda assim o navio mergulhava como um cisne entre elase voltava a subir em cristas sublimes e espumosas A Pequena Sereiapensou que devia ser divertido para um navio navegar daquele jeitomas a tripulaccedilatildeo pensava diferente O barco gemia e rangia suas pran-chas soacutelidas rompiam-se sob as violentas pancadas do mar o mastropartiu-se ruidosamente em dois como um junco O navio inclinouquando a aacutegua se precipitou no poratildeo

De repente a Pequena Sereia percebeu que o navio estava emperigo Ela mesma tinha de ter cuidado com as vigas e os destroccedilosagrave deriva Em certos momentos ficava tatildeo escuro que natildeo conseguiaenxergar nada mas entatildeo o claratildeo de um relacircmpago iluminou todosa bordo Agora era cada por um si Ela estava agrave procura do jovem priacuten-cipe e no momento em que o navio se partia viu-o desaparecer nasprofundezas do mar Por um instante ficou bastante entusiasmada

pois pensou que agora ele poderia viver no seu mundo Mas logo selembrou que os seres humanos natildeo vivem debaixo drsquoaacutegua e que ele soacutechegaria morto ao palaacutecio de seu pai Natildeo natildeo ele natildeo podia morrer Assim ela nadou entre os destroccedilos que o mar arrastava indiferente

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ao perigo de ser esmagada Mergulhava profundamente e emergia dasondas e finalmente encontrou o jovem priacutencipe Ele mal conseguianadar no mar tempestuoso Seus membros fraquejavam seus belosolhos estavam fechados e certamente teria se afogado se a PequenaSereia natildeo tivesse ido a seu socorro Ela segurou-lhe a cabeccedila acimada aacutegua e abandonou-se com ele aos caprichos das ondas

Quando amanheceu a tempestade cessara e natildeo havia rastro donavio O sol despontou da aacutegua vermelho e resplandecente e pareceudevolver a cor agraves faces do priacutencipe mas os olhos dele permaneciam fe-chados A sereia beijou-lhe a fronte e ajeitou-lhe para traacutes o cabelo mo-lhado Aos seus olhos ele parecia a estaacutetua de maacutermore que tinha em seu jardinzinho Beijou-o de novo e fez um pedido para que ele pudesse viver

Logo a sereia viu diante de si terra firme com suas majestosas

montanhas azuis no alto das quais brilhava a branca neve parecendocisnes aninhados Perto da costa havia adoraacuteveis florestas verdes e junto a uma delas erguia-se um preacutedio alto se era uma igreja ou umconvento ela natildeo sabia dizer Limoeiros e laranjeiras cresciam no

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jardim e ao lado da porta havia trecircs altas palmeiras A pequena baiacutease formava nesse ponto e a aacutegua era plenamente calma embora muito

profunda A sereia nadou com o belo priacutencipe ateacute a praia coberta defina areia branca Ali colocou-o sob o sol quente fazendo um traves-seiro de areia para sua cabeccedila

Sinos soaram do preacutedio branco e vaacuterias moccedilas apareceram no jardim A Pequena Sereia afastou-se nadando para bem longe dapraia e escondeu-se atraacutes de uma pedra grande que se elevava acimada aacutegua Cobriu o cabelo e o peito com espuma do mar para que nin-gueacutem pudesse vecirc-la Depois ficou espiando para ver quem ajudaria opobre priacutencipe

Natildeo demorou muito e surgiu uma jovem Pareceu muito assus-tada mas soacute por um instante e correu para buscar ajuda A sereia viuo priacutencipe voltar a si e ele sorriu para todos ao seu redor Poreacutem natildeohavia nenhum sorriso para ela pois ele natildeo tinha ideia de quem o sal-

vara Depois que foi levado para o preacutedio a Pequena Sereia se sentiatatildeo infeliz que mergulhou de volta para o palaacutecio do paiEla sempre fora silenciosa e pensativa mas agora estava mais do

que nunca Suas irmatildes lhe perguntaram o que vira durante sua pri-meira visita agrave superfiacutecie mas ela natildeo lhes contava nada Em muitasmanhatildes e entardeceres subia ateacute o local onde deixara o priacutencipe Viuas frutas do jardim amadurecerem e observou-as serem colhidas Viu

a neve derreter nos picos Contudo nunca via o priacutencipe e por issosempre voltava para casa ainda mais cheia de tristeza do que antesSeu uacutenico consolo era ficar em seu jardinzinho com os braccedilos emtorno da estaacutetua de maacutermore tatildeo parecida com o priacutencipe Nuncamais cuidou das suas flores que se espalhavam selvagemente ao longodos caminhos entrelaccedilando seus longos galhos nos ramos das aacutervoresateacute obscurecer tudo

Por fim ela natildeo conseguiu mais guardar aquilo consigo e contoutudo a uma de suas irmatildes Logo as outras ficaram sabendo mas nin-gueacutem mais exceto algumas outras sereias que natildeo diriam nada a nin-gueacutem a natildeo ser agraves suas melhores amigas Uma delas foi capaz de lhe

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dar notiacutecias sobre o priacutencipe Ela tambeacutem vira os festejos realizados abordo e disse mais sobre o priacutencipe e a localizaccedilatildeo de seu reino

mdash Venha irmatildezinha ndash disseram as outras princesas E com osbraccedilos nos ombros uma das outras subiram em uma longa fila ateacute asuperfiacutecie bem diante do lugar onde se erguia o castelo do priacutencipe

O castelo construiacutedo de uma pedra amarela e luzidia tinhalongas escadarias de maacutermore sendo que um dos degraus levava di-reto para o mar Esplecircndidas cuacutepulas douradas elevavam-se do teto eentre as colunas que cercavam toda a construccedilatildeo havia esculturas demaacutermore que pareciam vivas Atraveacutes do vidro transparente das altas janelas era possiacutevel ver magniacuteficos aposentos ornados com suntuosascortinas de seda e tapeccedilarias As paredes eram cobertas com enormespinturas e era um prazer contemplaacute-las No centro do maior salatildeohavia uma fonte que lanccedilava seus jorros espumantes ateacute a cuacutepula devidro do teto atraveacutes do qual o sol brilhava na aacutegua e nas belas plantas

que cresciam ali Agora que sabia onde o priacutencipe vivia passava muitos pores dosol e muitas noites naquele lugar Nadava ateacute muito mais perto dacosta do que as outras ousavam Chegou a avanccedilar pelo estreito canalpara ir ateacute a varanda de maacutermore que projetava uma longa sombrasobre a aacutegua Ali ela se sentava e observava o jovem priacutencipe que pen-sava estar completamente soacute ao claratildeo da lua

Muitas vezes agrave noite a Pequena Sereia o via sair ao mar em seuesplecircndido barco com bandeiras hasteadas ao som de muacutesica harmo-niosa Espiava do meio dos juncos verdes e quando o vento levantavao longo veacuteu branco e prateado do seu cabelo e pessoas a viam ima-ginavam apenas que era um cisne estendendo as asas

Em muitas noites quando os pescadores saiam em alto mar comsuas tochas ela os ouvia elogiar o jovem priacutencipe e suas palavras a dei-

xavam ainda mais feliz por lhe ter salvado a vida E ela recordava comoaninhara a cabeccedila dele em seu peito e com que carinho o beijara Masele natildeo sabia nada disso e nunca sequer sonhara que ela existia

A Pequena Sereia foi se afeiccediloando mais e mais aos seres

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41A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

humanos e ansiava profundamente pela companhia deles Omundo em que viviam parecia tatildeo mais vasto que o seu proacuteprio

Veja eles podiam navegar o oceano em navios e escalar montanhasiacutengremes bem acima das nuvens E as terras que possuiacuteam suasflorestas e seus campos se estendiam muito aleacutem de onde sua vistaalcanccedilava Havia uma porccedilatildeo de outras coisas que ela teria gos-tado de saber e suas irmatildes natildeo eram capazes de responder a todasas suas curiosidades Por isso foi visitar sua velha avoacute que sabia

tudo sobre o mundo superior como chamava tatildeo apropriadamenteos paiacuteses acima do marmdash Quando natildeo se afogam ndash perguntou a Pequena Sereia ndash os

seres humanos podem continuar vivendo para sempre Natildeo morremcomo noacutes aqui embaixo no mar

mdash Sim sim ndash respondeu a velha senhora mdash Eles tambeacutem teratildeoque morrer e seu tempo de vida eacute mais curto que o nosso Noacutes por

vezes alcanccedilamos a idade de trezentos anos mas quando nossa vidaaqui chega ao fim simplesmente nos transformamos em espuma naaacutegua Aqui natildeo temos tuacutemulos daqueles que amamos Natildeo temosuma alma imortal e nunca teremos outra vida Noacutes somos como o junco verde Uma vez cortado cessa de crescer Jaacute os seres humanostecircm almas que vivem para sempre mesmo depois que seus corpos se

transformam em poacute Elas voam atraveacutes do ar puro ateacute chegarem agraves es-trelas brilhantes Assim como subimos agrave flor da aacutegua e contemplamosas terras dos seres humanos eles atingem belos reinos desconhecidosndash regiotildees que nunca conheceremos

mdash Por que natildeo podemos ter uma alma imortal ndash a PequenaSereia perguntou angustiada mdash Eu daria de boa vontade todos ostrezentos anos que tenho para viver se pudesse me tornar uma humana

por apenas um dia e participar do mundo celestialmdash Vocecirc natildeo deveria se preocupar com isso Somos muito mais

felizes e vivemos melhor aqui do que os seres humanos laacute em cimamdash Entatildeo estou condenada a morrer e flutuar como espuma do

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42 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mar a nunca mais ouvir a muacutesica das ondas ou ver as lindas flores eo sol vermelho Natildeo haacute nada que eu possa fazer para conquistar umaalma imortal

mdash Natildeo ndash disse a velha senhora mdash Soacute se um ser humano aamasse tanto que vocecirc importasse mais para ele que pai e matildee Se elea amasse de todo o coraccedilatildeo e deixasse o padre pocircr a matildeo direita sobre a

sua como uma promessa de ser fiel e verdadeiro por toda a eternidadeNesse caso a alma dele deslizaria para dentro do seu corpo e vocecirctambeacutem obteria uma parcela da felicidade humana Ele lhe daria umaalma e no entanto conservaria a dele proacuteprio Mas isso jamais acon-teceraacute Sua cauda de peixe que achamos tatildeo bonita parece repulsivaagrave gente da terra Sabem tatildeo pouco sobre isso que acreditam realmenteque as duas desajeitadas escoras que chamam de pernas satildeo belas

A Pequena Sereia suspirou e olhou melancolicamente para suacauda de peixe

mdash Devemos ficar satisfeitas com o que temos ndash disse a velhasenhora mdash Vamos danccedilar e nos alegrar durante os trezentos anos

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43A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

de nossa existecircncia isso eacute realmente muito tempo Depois da mortepoderemos descansar e pocircr o sono em dia Hoje teremos um baile

na corteNatildeo se pode fazer ideia na terra de tal magnificecircncia As paredes

e o teto do grande salatildeo do baile eram feitos de cristal espesso mastransparente Centenas de conchas enormes rosa-vermelho e verde--relva dispostas de cada lado cada uma com uma chama azul queiluminava todo o salatildeo e luzindo atraveacutes das paredes iluminavamtambeacutem o mar Inuacutemeros peixes grandes e pequenos podiam servistos nadando em direccedilatildeo agraves paredes de cristal As escamas de algunsfulgiam com um brilho puacuterpura-avermelhado e as de outros comoprata e ouro No meio do salatildeo corria um grande rio nos quais mo-luscos e sereias danccedilavam ao seu proacuteprio som melodioso

Nenhum ser humano tem voz tatildeo encantadora Ningueacutem can-tava mais docemente que a Pequena Sereia e todos a aplaudiram

Por um instante houve alegria em seu coraccedilatildeo pois ela sabia quetinha a voz mais bela em terra ou no mar Mas em seguida seuspensamentos se voltaram para o mundo acima dela Natildeo conseguiaesquecer o belo priacutencipe e a grande dor de natildeo ter a alma imortalque ele possuiacutea Assim se arrastou para fora do palaacutecio do pai eenquanto todos laacute dentro cantavam e se divertiam foi se sentar emseu jardinzinho desolada

De repente ela ouviu o som de uma buzina ecoando atraveacutes daaacutegua e pensou

mdash Ah laacute vai ele navegando laacute em cima Aquele a quem amomais do que meu pai ou minha matildee ele que estaacute sempre em meuspensamentos e em cujas matildeos eu confiaria alegremente minha fe-licidade Arriscaria qualquer coisa para conquistaacute-lo e a uma almaimortal Enquanto minhas irmatildes danccedilam no castelo de meu pai vou

agrave procura da feiticeira do mar Sempre tive um terriacutevel medo delamas talvez possa me ajudar e me dizer o que fazer

E assim a Pequena Sereia deixou seu jardim e partiu paraonde a feiticeira morava no lado mais distante dos redemoinhos

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44 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

espumantes Nunca estivera laacute antes Naquele lugar natildeo cresciamflores nem relva do mar Natildeo havia nada aleacutem do fundo arenoso ecinzento que se estendia ateacute os turbilhotildees onde a aacutegua rodopiavacom o estrondo da roda de moinho e sugava para as profundezastudo que podia Tinha de passar pelo meio desses furiosos torveli-nhos para chegar ateacute a feiticeira do mar Por um longo trecho natildeo

havia outro caminho senatildeo pela lama quente e borbulhante ndash que afeiticeira chamava de seu charco

A casa da feiticeira ficava atraacutes do charco no meio de uma flo-resta quimeacuterica Todas as aacutervores e arbustos eram verdadeiros poacuteliposmetade animal e metade vegetal Pareciam serpentes de cem cabeccedilascrescendo do solo Tinham galhos que pareciam braccedilos longos e vis-cosos com dedos tatildeo flexiacuteveis que se assemelhavam a vermes Noacute por

noacute da raiz ateacute a ponta estavam constantemente em movimento eagarravam hermeticamente qualquer coisa que pudessem aproveitardo mar e natildeo soltavam mais A Pequena Sereia ficou apavorada e sedeteve agrave beira da mata Seu coraccedilatildeo palpitava de medo e ela esteve

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45A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

prestes a desistir Mas entatildeo lembrou-se do priacutencipe e da alma hu-mana e retomou sua coragem Ela prendeu em torno da cabeccedila seu

longo e esvoaccedilante cabelo para que os poacutelipos natildeo a pudessem agarrarDepois cruzou os braccedilos sobre o peito e disparou adiante como umpeixe lanccedilado na aacutegua no meio dos soacuterdidos poacutelipos que estendiamem sua direccedilatildeo seus braccedilos e dedos buliccedilosos Ela notou como cadaum deles havia agarrado algo e imobilizava firmemente com umacentena de pequenos braccedilos que pareciam aros de ferro Esqueletosbrancos de seres humanos que haviam perecido no mar e afundadonas aacuteguas profundas olhavam dos braccedilos dos poacutelipos Lemes e arcasde navios estavam fortemente agarrados em seus braccedilos juntamentecom esqueletos de animais terrestres e ndash o mais terriacutevel de tudo ndash umasereiazinha que eles haviam capturado e estrangulado

Chegou entatildeo a um grande charco lodoso onde enormes e cor-pulentas cobras-drsquoaacutegua ondeavam-se no lamaccedilal mostrando seus

horrendos ventres amarelo-esbranquiccedilado No meio do charco haviauma casa construiacuteda com os ossos de humanos naufragados Laacute es-tava a feiticeira do mar deixando um sapo se alimentar na sua bocaassim como as pessoas nutrem agraves vezes um canaacuterio com um torratildeo deaccediluacutecar Ela chamava as asquerosas cobras-drsquoaacutegua de seus pintinhos edeixava-as rastejar sobre seu peito

mdash Eu sei exatamente o que vocecirc deseja ndash disse a feiticeira do

mar mdash Como vocecirc eacute estuacutepida Mas vocecirc deve seguir seu caminhoque vai lhe trazer infortuacutenio minha linda princesa Vocecirc quer se li-vrar de sua cauda de peixe e no lugar ter um par de tocos para andarcomo um ser humano a fim de que o jovem priacutencipe se apaixone porvocecirc e lhe decirc uma alma imortal

E com isso a feiticeira soltou uma gargalhada tatildeo alta e maleacuteficaque o sapo e as cobras caiacuteram estatelados no chatildeo

mdash Vocecirc veio na hora certa ndash disse a feiticeira mdash Amanhatildequando o sol se levantar eu natildeo serei mais capaz de ajudaacute-la Voupreparar um elixir para vocecirc Teraacute de nadar ateacute a costa com ele antesdo nascer do sol sentar-se na praia e tomaacute-lo Sua cauda entatildeo se

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H A R R Y C L A R K E

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47 A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

dividiraacute em duas e encolheraacute para se transformar naquilo que os sereshumanos chamam de ldquobelas pernasrdquo Mas vai doer Vocecirc sentiraacute como

se uma espada afiada a cortasse Todos que a virem diratildeo que vocecirc eacutea mais bela humana que jaacute encontraram Manteraacute seus movimentosgraciosos nenhuma danccedilarina jamais deslizaraacute tatildeo suavemente mascada passo que der a faraacute sentir como se estivesse pisando em umafaca afiada o bastante para fazer sangrar seus peacutes Se estiver dispostaa suportar tudo isso posso ajudaacute-la

mdash Sim ndash disse a Pequena Sereia com voz hesitante mas voltouseus pensamentos para o priacutencipe e ao precircmio de uma alma imortal

mdash Pense nisso com cuidado ndash alertou a feiticeira mdash Uma vez to-mada a forma de um ser humano nunca mais voltaraacute a ser uma sereiaVocecirc natildeo seraacute capaz de descer nadando ao encontro do palaacutecio de seupai e de suas irmatildes A uacutenica maneira de conseguir uma alma imortaleacute conquistando o amor do priacutencipe e fazer com que ele esqueccedila o pai

e a matildee por amor a vocecirc Ele deve tecirc-la sempre em seus pensamentose permitir que o padre una suas matildeos para que se tornem marido emulher Se o priacutencipe se casar com outra pessoa na manhatilde seguinteseu coraccedilatildeo se quebraraacute e vocecirc se tornaraacute espuma na crista das ondas

mdash Estou pronta ndash declarou a Pequena Sereia paacutelida comouma morta

mdash Mas teraacute que me recompensar ndash disse a feiticeira mdash Vocecirc natildeo

receberaacute minha ajuda sem nada em troca Vocecirc tem a mais formidaacutevelvoz entre todos que aqui habitam no fundo do mar Provavelmentepensa que encantaraacute o priacutencipe com ela mas teraacute que daacute-la para mimVou lhe exigir o que possui de melhor como pagamento por minhapoccedilatildeo Vocecirc entende tenho de misturar nela um pouco do meu proacutepriosangue para que o elixir seja afiado como uma espada de dois gumes

mdash Mas se tirar a minha voz o que me restaraacute ndash perguntou a

Pequena Sereiamdash Sua encantadora figura ndash disse a feiticeira ndash seus movimentos

graciosos e seus olhos expressivos Com eles pode simplesmente fas-cinar um coraccedilatildeo humano Bem onde estaacute sua coragem Estire a

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liacutengua e deixe-me cortaacute-la fora como pagamento Depois receberaacutesua poderosa poccedilatildeo

mdash Assim seja ndash concordou a Pequena Sereia e a feiticeira pocircsseu caldeiratildeo no fogo para destilar a poccedilatildeo maacutegica

mdash Limpeza antes de tudo ndash ela disse enquanto esfregava o re-cipiente com um feixe de viacuteboras que tinha atado num grande noacute

Em seguida deu um talho no proacuteprio seio e deixou gotejar onegro sangue no caldeiratildeo O vapor que subiu criava formas estranhasassustadoras de se ver A feiticeira continuava a juntar coisas novas

dentro do caldeiratildeo e quando o elixir comeccedilou a ferver parecia umchoro de crocodilo Finalmente a poccedilatildeo maacutegica ficou pronta e eraexatamente cristalina como aacutegua

mdash Aiacute estaacute vocecirc ndash disse a feiticeira ao cortar a liacutengua da PequenaSereia que agora estava muda e natildeo conseguia falar e cantar

mdash Se os poacutelipos a apanharem quando vocecirc retornar pela mata

ndash orientou a feiticeira ndash basta jogar sobre eles uma uacutenica gota destapoccedilatildeo e os braccedilos e dedos deles seratildeo dilacerados em mil pedaccedilosPoreacutem a Pequena Sereia natildeo precisou disso Os poacutelipos se enco-

lheram aterrorizados quando avistaram a luzente poccedilatildeo em sua matildeocomo uma estrela cintilante E assim passou rapidamente pela matapelo charco e pelos atroadores redemoinhos

A Pequena Sereia pocircde contemplar o palaacutecio do pai As luzes do

salatildeo de baile estavam apagadas Certamente laacute estavam todos dor-mindo a essa altura Mas natildeo se atreveu ir vecirc-los pois agora estavamuda e prestes a deixaacute-los para sempre Ela sentiu como se seu coraccedilatildeofosse partir de tanta dor Entrou secretamente no jardim pegou umaflor dos leitos de cada uma das irmatildes soprou mil beijos em direccedilatildeodo palaacutecio e depois subiu agrave superfiacutecie atraveacutes das aacuteguas azul-escuras

O sol ainda natildeo despontara no horizonte quando ela avistou o

palaacutecio do priacutencipe e subiu os degraus de maacutermore A lua esplendialiacutempida e viacutevida A Pequena Sereia bebeu a acre poccedilatildeo e parecia queuma faca de dois gumes trespassava seu corpo delicado Ela desmaioue caiu morta

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49A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

E D M U N D D U L A C

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O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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52 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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54 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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55A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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60 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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61A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

V

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APequen Seeia D E N L I L L E H A V F R U E

H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

D I N A M A R C A 1 8 4 8

ldquo() Muitas vezes agrave noite a Pequena Sereiao via sair ao mar em seu esplecircndido barco

com bandeiras hasteadas ao som de muacutesica

harmoniosa Espiava do meio dos juncos

verdes e quando o vento levantava o longo veacuteu

branco e prateado do seu cabelo e pessoas a

viam imaginavam apenas que era um cisne

estendendo as asasrdquo

I L U S T R A Ccedil Atilde O E D M U N D D U L A C

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B 983141983149 983150983151 983142983157983150983140983151 983140983151 983149983137983154 983137 983265983143983157983137 983273 983137983162983157983148 983139983151983149983151 983137983155

peacutetalas das mais bonitas centaacuteureas e pura como o cristalmais transparente Mas eacute profundo mais profundo doque qualquer acircncora pode alcanccedilar Seria preciso empi-

lhar uma quantidade de torres de igreja umas sobre as outras a fimde verificar a distacircncia que vai do fundo agrave superfiacutecie Laacute eacute a moradado povo do mar

Agora natildeo pense nem por um instante que natildeo haacute nada laacute aleacutemde areia nua e branca Oacute natildeo As mais maravilhosas aacutervores e plantas

crescem no fundo do mar Seus talos e folhas satildeo tatildeo leves que omenor movimento da aacutegua faz com eles se agitem como se estivessemvivos Todos os peixes grandes e pequenos deslizam por entre seus

galhos assim como os paacutessaros o fazem no ar No lugar mais pro-fundo estaacute o castelo do rei do mar cujos muros satildeo feitos de coral

e as janelas compridas e pontudas satildeo feitas do mais claro acircmbar Oteto eacute formado de conchas que se abrem e fecham com a corrente Eacuteuma visatildeo linda Cada concha encerra uma peacuterola deslumbrante e amenor delas honraria a mais bela coroa de qualquer rainha

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26 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

Haacute muitos anos que o rei do mar estava viuacutevo e sua velha matildeemantinha a casa Era uma mulher inteligente mas orgulhosa de sua

linhagem Era por isso que usava doze ostras em sua cauda enquantotodos os outros de alta posiccedilatildeo tinham de se contentar com seis Sobreoutros aspectos ela merecia elogios pelos cuidados que tinha para comas suas netas bem-amadas as princesinhas do mar Eram seis lindascrianccedilas e a mais moccedila era a mais encantadora Sua pele era clara edelicada como uma peacutetala de rosa Seus olhos eram azuis como umlago profundo Todavia como todas as outras natildeo tinha peacutes e seucorpo terminava numa longa cauda de peixe

Durante o dia inteiro as princesas do mar brincavam nos grandessalotildees do castelo onde flores viccedilosas cresciam direto das paredes Asgrandes janelas de acircmbar ficavam abertas e os peixes entravam por elasnadando assim como as andorinhas entram voando em nossas casasquando abrimos as janelas Os peixes deslizavam ateacute as princesinhas

comiam em suas matildeos e aguardavam um afagoFora do castelo havia um belo jardim com aacutervores de um azulpenetrante e de um vermelho flamejante Seus frutos cintilavamcomo ouro e suas flores agitando sem cessar seus talos e suas folhasassemelhavam-se a labaredas O proacuteprio solo era da mais fina areiaporeacutem azul como uma chama de enxofre Um singular fulgor azu-lado envolvia tudo que estava agrave vista Se vocecirc estivesse laacute embaixo natildeo

saberia que estava no fundo do mar sem nada aleacutem do ceacuteu acima eabaixo de vocecirc Quando havia calmaria era possiacutevel vislumbrar o solque parecia uma flor puacuterpura de cujo caacutelice jorrava luz

Cada uma das princesinhas tinha seu proacuteprio terreno no jardim no qual podia cavar e plantar a seu bel-prazer Uma arrumouseu canteiro de flores na forma de uma baleia outra achou mais in-teressante moldar o seu como uma sereiazinha mas a caccedilula fez o

seu bem redondo como o sol e soacute quis flores rubras como o brilhodele Era uma crianccedila curiosa sossegada e pensativa Enquanto asirmatildes adornavam seus jardins com as coisas maravilhosas que ob-tinham de navios naufragados ela natildeo admitia nada aleacutem de flores

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E D M U N D D U L A C

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28 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

rosa-avermelhadas que eram como o sol laacute no alto e uma estaacutetuade maacutermore A estaacutetua era de um encantador rapaz esculpida em

pura pedra branca que havia descido ao fundo do mar depois de umnaufraacutegio Perto dela a princesinha havia plantado um salgueiro cor--de-rosa que cresceu esplendidamente e deixava sua fresca folhagemcobrir a estaacutetua ateacute o solo azul arenoso do oceano Sua sombra ga-nhava um matiz violeta e como os ramos nunca ficava parada Asraiacutezes e a copa da aacutervore pareciam estar sempre brincando tentandobeijar uma agrave outra

Natildeo havia nada de que as princesas gostassem mais do que ouvirsobre o mundo dos seres humanos acima do mar Sua vovozinha lhescontava tudo o que sabia sobre os navios e as cidades as pessoas e osanimais Uma coisa em especial as impressionava com sua belezasaber que as flores exalavam uma fragracircncia ndash natildeo havia nenhumano fundo do mar ndash e tambeacutem que as aacutervores na floresta eram verdes

e que os peixes que voavam nas aacutervores sabiam cantar tatildeo docementeque era um prazer ouvi-los A avoacute chamava os passarinhos de peixesDe outro modo as princesinhas do mar que nunca tinham visto umpaacutessaro natildeo a teriam compreendido

mdash Quando vocecircs completarem quinze anos ndash disse a avoacute ndashvamos deixaacute-las subir ateacute a superfiacutecie e se sentar nos rochedos agraveluz do luar para ver os grandes navios passarem Veratildeo florestas e

tambeacutem cidadesNo ano seguinte uma das irmatildes completaria quinze anos mas

as outras ndash bem cada uma era um ano mais nova que a outra demodo que a mais nova teria de esperar nada menos que cincos anospara subir das profundezas do mar para a superfiacutecie e ver como satildeoas coisas por aqui mas cada uma prometia contar agraves outras tudo quevisse e o que lhe parecia mais interessante naquela primeira visita

pois nunca estavam satisfeitas com o que a avoacute contava Havia umainfinidade de coisas sobre as quais ansiavam ouvir

Nenhuma das sereias era mais curiosa do que a caccedilula e eratambeacutem ela tatildeo quieta e pensativa a que tinha de suportar a mais

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W H E A T H R O B I N S O N

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30 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

longa espera Em muitas noites ela se postava agrave janela aberta e fitavaatraveacutes das aacuteguas azul-escuras os peixes sacudirem suas nadadeiras ecaudas Olhava bem para o alto e podia ver a lua e as estrelas emborasua luz fosse muito paacutelida ndash atraveacutes da aacutegua pareciam muito maioresque aos nossos olhos Se uma nuvem escura passava acima dela sabiaque era uma baleia que nadava sobre a sua cabeccedila ou um navio cheiode passageiros Aquelas pessoas nem sonhavam que uma sereiazinha

estendia suas matildeos brancas para o casco do navio que fendia as aacuteguas Assim que fez quinze anos a mais velha das princesas foi auto-

rizada a subir agrave superfiacutecie do oceano Quando voltou tinha dezenasde coisas para contar

mdash O mais delicioso ndash ela disse ndash foi ficar deitada em um bancode areia perto da praia numa noite de lua com o mar calmo Foipossiacutevel contemplar a grande cidade onde as luzes brilhavam como

milhares de estrelas Podia ouvir muacutesicas harmoniosas e o ruiacutedo decarros e pessoas Podia ver todas as torres das igrejas e ouvir os sinostocando ndash e exatamente por natildeo ter chegado perto de todas essas ma-ravilhas ansiava ainda mais por todas elas

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Oacute como a irmatilde caccedilulabebia aquelas palavras E mais

tarde agrave noite ficou junto agrave janelaaberta fitando atraveacutes das aacuteguasazul-escuras pensando na cidadegrande com seus ruiacutedos e luzes eateacute imaginou ouvir os sinos dasigrejas tocando para ela

No ano seguinte a segundairmatilde teve permissatildeo para subirmar acima e nadar aonde quisesseChegou agrave superfiacutecie bem na horado pocircr do sol

mdash Foi a visatildeo mais bela detodas ndash ela contou mdash Todo o

ceacuteu parecia ouro e as nuvensndash bem ela simplesmente natildeoconseguia descrever como eramlindas ao passar em tons de car-mesim e violeta sobre sua cabeccedila

Mais veloz ainda que as nu-

vens um bando de cisnes selvagensvoou como um longo e branco veacuteusobre a aacutegua rumo ao sol poenteEla nadou nessa direccedilatildeo mas o solse pocircs e sua luz roacutesea foi engolidapelo mar e pela nuvem

Depois chegou a vez da terceira irmatilde Era a mais ousada de todas

e nadou ateacute um largo rio que desaguava no mar Avistou admiraacuteveis co-linas verdes cobertas com videiras castelos e fazendas situados no meiode florestas soberbas e imensas ouviu o canto dos paacutessaros e o sol eratatildeo quente que teve de mergulhar muitas vezes na aacutegua para refrescar o

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rosto ardente Numa pequena enseada topou com um bando de crian-cinhas humanas divertindo-se completamente nuas na aacutegua

Quis brincar com elas mas ficaram aterrorizadas e fugiram De-pois um animalzinho preto foi ateacute a aacutegua Era um cachorro mas nuncatinha visto um O animal latiu tanto que ela ficou assustada e nadoupara o mar aberto Poreacutem disse que jamais esqueceria a magniacutefica flo-resta as colinas verdes e as lindas criancinhas que sabiam nadar emboranatildeo possuiacutessem caudas

A quarta irmatilde natildeo foi tatildeo ousada Preferiu ficar no meio do marselvagem onde a vista se perdia ao longe todavia foi exatamente issoela lhes contou que tornou sua visita tatildeo maravilhosa Podia ver pormilhas e milhas ao seu redor e o ceacuteu se arredondava em volta da aacuteguacomo um grande sino de vidro Vira navios mas a uma distacircncia tatildeogrande que pareciam gaivotas Os golfinhos brincavam nas ondas eas baleias esguichavam aacutegua tatildeo poderosamente de suas narinas que

pareciam estar cercadas por uma centena de chafarizesE agora era a vez da quinta irmatilde Como seu aniversaacuterio caiacutea no

inverno ela viu coisas que as outras natildeo tinham visto da primeira vezO mar perdera sua cor azul e adquirira um tom esverdeado e sobreele flutuavam enormes icebergs

mdash Cada um parecia uma peacuterola ndash ela disse ndash mas eram mais

altos que as torres de igrejas construiacutedas pelos seres humanos Apareciam nas formas mais fantaacutesticas e brilhavam como dia-mantes Ela se sentara num dos maiores icebergs e todos os naviospareciam ter medo dele pois passavam navegando rapidamente emuito distante do lugar onde ela estava sentada com o vento grace- jando seus longos cabelos

Mais tarde naquela noite uma tempestade cobriu o ceacuteu de nu-

vens Trovotildees estrondeavam relacircmpagos chispavam e as ondas es-curas elevavam os enormes blocos de gelo tatildeo alto que os tiravam daaacutegua fazendo-os reluzir na intensa luz vermelha Todos os naviosrecolheram as velas e em meio ao horror e ao alarme geral a sereia

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permaneceu sentada tranquilamente no iceberg flutuante vendo osrelacircmpagos azuis ziguezaguearem no mar resplandecente

Na primeira vez que as irmatildes subiram agrave superfiacutecie ficaram en-cantadas de ver tantas coisas novas e bonitas Poreacutem quando ficarammais velhas e podiam emergir sempre que queriam mostravam-semenos entusiasmadas Sentiam saudade do fundo do mar E depoisde um mecircs diziam que afinal de contas era muito mais agradaacutevel laacuteembaixo ndash era tatildeo reconfortante estar em casa No entanto muitasvezes ao entardecer as cinco irmatildes davam-se os braccedilos e flutuavam juntas Suas vozes eram encantadoras como nenhuma criatura hu-mana poderia possuir

Antes da aproximaccedilatildeo de uma tempestade quando esperavam onaufraacutegio de um navio as irmatildes costumavam nadar diante do barcoe cantar docemente as deliacutecias das profundezas do mar Diziam aosmarinheiros para natildeo terem medo de mergulhar ateacute o fundo mas eles

nunca entendiam suas canccedilotildees Pensavam estar ouvindo os uivos datempestade e nunca viam as maravilhas que as sereias prometiam Eassim que o navio afundava os homens se afogavam e somente seuscadaacuteveres chegavam ateacute o palaacutecio do rei do mar

Quando as irmatildes subiam pela aacutegua de braccedilos dados a caccedilulasempre ficava para traacutes sozinha acompanhando-as com os olhos Teriachorado mas as sereias natildeo tecircm laacutegrimas e sofrem muito mais que noacutes

mdash Oacute Se pelo menos eu tivesse quinze anos ndash ela dizia mdash Seique vou gostar muito do mundo laacute de cima e de todas as pessoas quevivem nele

Entatildeo finalmente ela fez quinze anosmdash Bem agora vocecirc logo escaparaacute das nossas matildeos ndash disse a velha

rainha sua avoacute mdash Venha deixe-me vesti-la como suas outras irmatildesE pocircs no seu cabelo uma coroa de liacuterios brancos em que cada

peacutetala de flor era metade de uma peacuterola Depois a velha senhoramandou trazer oito grandes ostras para prender firmemente na caudada princesa e mostrar sua alta posiccedilatildeo

mdash Ai Isso doacutei ndash disse a Pequena Sereia

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mdash Sim a beleza tem seu preccedilo ndash respondeu a avoacuteComo a Pequena Sereia teria gostado de se livrar de todos

aqueles adornos e pocircr de lado aquela pesada coroa As flores verme-lhas de seu jardim assentavam-lhe muito melhor mas natildeo ousoufazer nenhuma alteraccedilatildeo

mdash Adeus ndash disse ao subir pela aacutegua tatildeo leve e liacutempida quantoas bolhas se elevam agrave superfiacutecie

O sol acabara de se pocircr quando ela ergueu a cabeccedila sobre as

ondas mas as nuvens ainda estavam tingidas de carmesim e ouroNo alto do ceacuteu paacutelido e rosado a estrela vespertina iluminava clarae viacutevida O ar estava ameno e fresco e o mar apraziacutevel Um grandenavio de trecircs mastros estava agrave deriva na aacutegua com apenas uma velaiccedilada porque o vento estava brando Os marinheiros estavam refes-telados no cordame ou nas jardas Havia muacutesica e canto a bordo equando escureceu uma centena de lanternas foi acesa Com suas

muitas cores tinha-se a impressatildeo de que as bandeiras de todas asnaccedilotildees flutuavam no ar

A Pequena Sereia nadou ateacute a escotilha da cabine e cada vez queuma onda a levantava podia ver atraveacutes do vidro transparente umaquantidade de homens magnificamente trajados O mais belo delesera um jovem priacutencipe com grandes olhos escuros Natildeo tinha mais

de dezesseis anos Era seu aniversaacuterio e era por isso que havia tantoalvoroccedilo Quando o jovem priacutencipe saiu para o conveacutes onde os mari-nheiros estavam danccedilando mais de uma centena de foguetes zuniramrumo ao ceacuteu num esplendor tornando o ceacuteu tatildeo brilhante quanto odia A Pequena Sereia ficou tatildeo assustada que mergulhou escondendo--se sob a aacutegua mas rapidamente pocircs a cabeccedila para fora de novo Eveja Parecia que as estrelas laacute do ceacuteu estavam caindo sobre ela Nunca

vira fogos de artifiacutecios Grandes soacuteis rodopiavam ao seu redor lindospeixes de fogo refulgentes lanccedilavam-se no ar azul e todo esse brilhose refletia nas aacuteguas claras e calmas embaixo O proacuteprio navio estavatatildeo deslumbrantemente iluminado que se podiam ver natildeo soacute todas as

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pessoas que laacute estavam como tambeacutem a corda mais fina Que eleganteparecia o jovem priacutencipe quando apertava as matildeos dos marinheiros

Ele ria e sorria enquanto a muacutesica soava pelo ar da noite agradaacutevel Jaacute era muito tarde mas a Pequena Sereia natildeo conseguia tirar os

olhos do navio ou do belo priacutencipe As lanternas coloridas se apagaramos foguetes natildeo mais subiam no ar e o canhatildeo cessara de dar tirosContudo o mar estava inquieto e era possiacutevel ouvir um som queixososob as ondas Ainda assim a Pequena Sereia continuou na aacutegua balan-ccedilando-se para cima e para baixo para olhar a cabine O navio ganhouvelocidade e uma apoacutes outra as suas velas foram desferidas As ondascresciam nuvens negras se agrupavam no ceacuteu e relacircmpagos faiscavamagrave distacircncia Uma terriacutevel tempestade estava se formando Por isso osmarinheiros recolheram as velas enquanto o vento sacudia o grandenavio e o arrastava pelo mar impetuoso As ondas subiam mais e maisaltas ateacute se assemelharem a enormes montanhas ameaccedilando derrubar

o mastro Ainda assim o navio mergulhava como um cisne entre elase voltava a subir em cristas sublimes e espumosas A Pequena Sereiapensou que devia ser divertido para um navio navegar daquele jeitomas a tripulaccedilatildeo pensava diferente O barco gemia e rangia suas pran-chas soacutelidas rompiam-se sob as violentas pancadas do mar o mastropartiu-se ruidosamente em dois como um junco O navio inclinouquando a aacutegua se precipitou no poratildeo

De repente a Pequena Sereia percebeu que o navio estava emperigo Ela mesma tinha de ter cuidado com as vigas e os destroccedilosagrave deriva Em certos momentos ficava tatildeo escuro que natildeo conseguiaenxergar nada mas entatildeo o claratildeo de um relacircmpago iluminou todosa bordo Agora era cada por um si Ela estava agrave procura do jovem priacuten-cipe e no momento em que o navio se partia viu-o desaparecer nasprofundezas do mar Por um instante ficou bastante entusiasmada

pois pensou que agora ele poderia viver no seu mundo Mas logo selembrou que os seres humanos natildeo vivem debaixo drsquoaacutegua e que ele soacutechegaria morto ao palaacutecio de seu pai Natildeo natildeo ele natildeo podia morrer Assim ela nadou entre os destroccedilos que o mar arrastava indiferente

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37 A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

ao perigo de ser esmagada Mergulhava profundamente e emergia dasondas e finalmente encontrou o jovem priacutencipe Ele mal conseguianadar no mar tempestuoso Seus membros fraquejavam seus belosolhos estavam fechados e certamente teria se afogado se a PequenaSereia natildeo tivesse ido a seu socorro Ela segurou-lhe a cabeccedila acimada aacutegua e abandonou-se com ele aos caprichos das ondas

Quando amanheceu a tempestade cessara e natildeo havia rastro donavio O sol despontou da aacutegua vermelho e resplandecente e pareceudevolver a cor agraves faces do priacutencipe mas os olhos dele permaneciam fe-chados A sereia beijou-lhe a fronte e ajeitou-lhe para traacutes o cabelo mo-lhado Aos seus olhos ele parecia a estaacutetua de maacutermore que tinha em seu jardinzinho Beijou-o de novo e fez um pedido para que ele pudesse viver

Logo a sereia viu diante de si terra firme com suas majestosas

montanhas azuis no alto das quais brilhava a branca neve parecendocisnes aninhados Perto da costa havia adoraacuteveis florestas verdes e junto a uma delas erguia-se um preacutedio alto se era uma igreja ou umconvento ela natildeo sabia dizer Limoeiros e laranjeiras cresciam no

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38 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

D U G A L D S T E W A R T WA L K E R 1 9 1 4

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39A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

jardim e ao lado da porta havia trecircs altas palmeiras A pequena baiacutease formava nesse ponto e a aacutegua era plenamente calma embora muito

profunda A sereia nadou com o belo priacutencipe ateacute a praia coberta defina areia branca Ali colocou-o sob o sol quente fazendo um traves-seiro de areia para sua cabeccedila

Sinos soaram do preacutedio branco e vaacuterias moccedilas apareceram no jardim A Pequena Sereia afastou-se nadando para bem longe dapraia e escondeu-se atraacutes de uma pedra grande que se elevava acimada aacutegua Cobriu o cabelo e o peito com espuma do mar para que nin-gueacutem pudesse vecirc-la Depois ficou espiando para ver quem ajudaria opobre priacutencipe

Natildeo demorou muito e surgiu uma jovem Pareceu muito assus-tada mas soacute por um instante e correu para buscar ajuda A sereia viuo priacutencipe voltar a si e ele sorriu para todos ao seu redor Poreacutem natildeohavia nenhum sorriso para ela pois ele natildeo tinha ideia de quem o sal-

vara Depois que foi levado para o preacutedio a Pequena Sereia se sentiatatildeo infeliz que mergulhou de volta para o palaacutecio do paiEla sempre fora silenciosa e pensativa mas agora estava mais do

que nunca Suas irmatildes lhe perguntaram o que vira durante sua pri-meira visita agrave superfiacutecie mas ela natildeo lhes contava nada Em muitasmanhatildes e entardeceres subia ateacute o local onde deixara o priacutencipe Viuas frutas do jardim amadurecerem e observou-as serem colhidas Viu

a neve derreter nos picos Contudo nunca via o priacutencipe e por issosempre voltava para casa ainda mais cheia de tristeza do que antesSeu uacutenico consolo era ficar em seu jardinzinho com os braccedilos emtorno da estaacutetua de maacutermore tatildeo parecida com o priacutencipe Nuncamais cuidou das suas flores que se espalhavam selvagemente ao longodos caminhos entrelaccedilando seus longos galhos nos ramos das aacutervoresateacute obscurecer tudo

Por fim ela natildeo conseguiu mais guardar aquilo consigo e contoutudo a uma de suas irmatildes Logo as outras ficaram sabendo mas nin-gueacutem mais exceto algumas outras sereias que natildeo diriam nada a nin-gueacutem a natildeo ser agraves suas melhores amigas Uma delas foi capaz de lhe

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40 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

dar notiacutecias sobre o priacutencipe Ela tambeacutem vira os festejos realizados abordo e disse mais sobre o priacutencipe e a localizaccedilatildeo de seu reino

mdash Venha irmatildezinha ndash disseram as outras princesas E com osbraccedilos nos ombros uma das outras subiram em uma longa fila ateacute asuperfiacutecie bem diante do lugar onde se erguia o castelo do priacutencipe

O castelo construiacutedo de uma pedra amarela e luzidia tinhalongas escadarias de maacutermore sendo que um dos degraus levava di-reto para o mar Esplecircndidas cuacutepulas douradas elevavam-se do teto eentre as colunas que cercavam toda a construccedilatildeo havia esculturas demaacutermore que pareciam vivas Atraveacutes do vidro transparente das altas janelas era possiacutevel ver magniacuteficos aposentos ornados com suntuosascortinas de seda e tapeccedilarias As paredes eram cobertas com enormespinturas e era um prazer contemplaacute-las No centro do maior salatildeohavia uma fonte que lanccedilava seus jorros espumantes ateacute a cuacutepula devidro do teto atraveacutes do qual o sol brilhava na aacutegua e nas belas plantas

que cresciam ali Agora que sabia onde o priacutencipe vivia passava muitos pores dosol e muitas noites naquele lugar Nadava ateacute muito mais perto dacosta do que as outras ousavam Chegou a avanccedilar pelo estreito canalpara ir ateacute a varanda de maacutermore que projetava uma longa sombrasobre a aacutegua Ali ela se sentava e observava o jovem priacutencipe que pen-sava estar completamente soacute ao claratildeo da lua

Muitas vezes agrave noite a Pequena Sereia o via sair ao mar em seuesplecircndido barco com bandeiras hasteadas ao som de muacutesica harmo-niosa Espiava do meio dos juncos verdes e quando o vento levantavao longo veacuteu branco e prateado do seu cabelo e pessoas a viam ima-ginavam apenas que era um cisne estendendo as asas

Em muitas noites quando os pescadores saiam em alto mar comsuas tochas ela os ouvia elogiar o jovem priacutencipe e suas palavras a dei-

xavam ainda mais feliz por lhe ter salvado a vida E ela recordava comoaninhara a cabeccedila dele em seu peito e com que carinho o beijara Masele natildeo sabia nada disso e nunca sequer sonhara que ela existia

A Pequena Sereia foi se afeiccediloando mais e mais aos seres

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41A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

humanos e ansiava profundamente pela companhia deles Omundo em que viviam parecia tatildeo mais vasto que o seu proacuteprio

Veja eles podiam navegar o oceano em navios e escalar montanhasiacutengremes bem acima das nuvens E as terras que possuiacuteam suasflorestas e seus campos se estendiam muito aleacutem de onde sua vistaalcanccedilava Havia uma porccedilatildeo de outras coisas que ela teria gos-tado de saber e suas irmatildes natildeo eram capazes de responder a todasas suas curiosidades Por isso foi visitar sua velha avoacute que sabia

tudo sobre o mundo superior como chamava tatildeo apropriadamenteos paiacuteses acima do marmdash Quando natildeo se afogam ndash perguntou a Pequena Sereia ndash os

seres humanos podem continuar vivendo para sempre Natildeo morremcomo noacutes aqui embaixo no mar

mdash Sim sim ndash respondeu a velha senhora mdash Eles tambeacutem teratildeoque morrer e seu tempo de vida eacute mais curto que o nosso Noacutes por

vezes alcanccedilamos a idade de trezentos anos mas quando nossa vidaaqui chega ao fim simplesmente nos transformamos em espuma naaacutegua Aqui natildeo temos tuacutemulos daqueles que amamos Natildeo temosuma alma imortal e nunca teremos outra vida Noacutes somos como o junco verde Uma vez cortado cessa de crescer Jaacute os seres humanostecircm almas que vivem para sempre mesmo depois que seus corpos se

transformam em poacute Elas voam atraveacutes do ar puro ateacute chegarem agraves es-trelas brilhantes Assim como subimos agrave flor da aacutegua e contemplamosas terras dos seres humanos eles atingem belos reinos desconhecidosndash regiotildees que nunca conheceremos

mdash Por que natildeo podemos ter uma alma imortal ndash a PequenaSereia perguntou angustiada mdash Eu daria de boa vontade todos ostrezentos anos que tenho para viver se pudesse me tornar uma humana

por apenas um dia e participar do mundo celestialmdash Vocecirc natildeo deveria se preocupar com isso Somos muito mais

felizes e vivemos melhor aqui do que os seres humanos laacute em cimamdash Entatildeo estou condenada a morrer e flutuar como espuma do

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42 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mar a nunca mais ouvir a muacutesica das ondas ou ver as lindas flores eo sol vermelho Natildeo haacute nada que eu possa fazer para conquistar umaalma imortal

mdash Natildeo ndash disse a velha senhora mdash Soacute se um ser humano aamasse tanto que vocecirc importasse mais para ele que pai e matildee Se elea amasse de todo o coraccedilatildeo e deixasse o padre pocircr a matildeo direita sobre a

sua como uma promessa de ser fiel e verdadeiro por toda a eternidadeNesse caso a alma dele deslizaria para dentro do seu corpo e vocecirctambeacutem obteria uma parcela da felicidade humana Ele lhe daria umaalma e no entanto conservaria a dele proacuteprio Mas isso jamais acon-teceraacute Sua cauda de peixe que achamos tatildeo bonita parece repulsivaagrave gente da terra Sabem tatildeo pouco sobre isso que acreditam realmenteque as duas desajeitadas escoras que chamam de pernas satildeo belas

A Pequena Sereia suspirou e olhou melancolicamente para suacauda de peixe

mdash Devemos ficar satisfeitas com o que temos ndash disse a velhasenhora mdash Vamos danccedilar e nos alegrar durante os trezentos anos

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43A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

de nossa existecircncia isso eacute realmente muito tempo Depois da mortepoderemos descansar e pocircr o sono em dia Hoje teremos um baile

na corteNatildeo se pode fazer ideia na terra de tal magnificecircncia As paredes

e o teto do grande salatildeo do baile eram feitos de cristal espesso mastransparente Centenas de conchas enormes rosa-vermelho e verde--relva dispostas de cada lado cada uma com uma chama azul queiluminava todo o salatildeo e luzindo atraveacutes das paredes iluminavamtambeacutem o mar Inuacutemeros peixes grandes e pequenos podiam servistos nadando em direccedilatildeo agraves paredes de cristal As escamas de algunsfulgiam com um brilho puacuterpura-avermelhado e as de outros comoprata e ouro No meio do salatildeo corria um grande rio nos quais mo-luscos e sereias danccedilavam ao seu proacuteprio som melodioso

Nenhum ser humano tem voz tatildeo encantadora Ningueacutem can-tava mais docemente que a Pequena Sereia e todos a aplaudiram

Por um instante houve alegria em seu coraccedilatildeo pois ela sabia quetinha a voz mais bela em terra ou no mar Mas em seguida seuspensamentos se voltaram para o mundo acima dela Natildeo conseguiaesquecer o belo priacutencipe e a grande dor de natildeo ter a alma imortalque ele possuiacutea Assim se arrastou para fora do palaacutecio do pai eenquanto todos laacute dentro cantavam e se divertiam foi se sentar emseu jardinzinho desolada

De repente ela ouviu o som de uma buzina ecoando atraveacutes daaacutegua e pensou

mdash Ah laacute vai ele navegando laacute em cima Aquele a quem amomais do que meu pai ou minha matildee ele que estaacute sempre em meuspensamentos e em cujas matildeos eu confiaria alegremente minha fe-licidade Arriscaria qualquer coisa para conquistaacute-lo e a uma almaimortal Enquanto minhas irmatildes danccedilam no castelo de meu pai vou

agrave procura da feiticeira do mar Sempre tive um terriacutevel medo delamas talvez possa me ajudar e me dizer o que fazer

E assim a Pequena Sereia deixou seu jardim e partiu paraonde a feiticeira morava no lado mais distante dos redemoinhos

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44 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

espumantes Nunca estivera laacute antes Naquele lugar natildeo cresciamflores nem relva do mar Natildeo havia nada aleacutem do fundo arenoso ecinzento que se estendia ateacute os turbilhotildees onde a aacutegua rodopiavacom o estrondo da roda de moinho e sugava para as profundezastudo que podia Tinha de passar pelo meio desses furiosos torveli-nhos para chegar ateacute a feiticeira do mar Por um longo trecho natildeo

havia outro caminho senatildeo pela lama quente e borbulhante ndash que afeiticeira chamava de seu charco

A casa da feiticeira ficava atraacutes do charco no meio de uma flo-resta quimeacuterica Todas as aacutervores e arbustos eram verdadeiros poacuteliposmetade animal e metade vegetal Pareciam serpentes de cem cabeccedilascrescendo do solo Tinham galhos que pareciam braccedilos longos e vis-cosos com dedos tatildeo flexiacuteveis que se assemelhavam a vermes Noacute por

noacute da raiz ateacute a ponta estavam constantemente em movimento eagarravam hermeticamente qualquer coisa que pudessem aproveitardo mar e natildeo soltavam mais A Pequena Sereia ficou apavorada e sedeteve agrave beira da mata Seu coraccedilatildeo palpitava de medo e ela esteve

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45A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

prestes a desistir Mas entatildeo lembrou-se do priacutencipe e da alma hu-mana e retomou sua coragem Ela prendeu em torno da cabeccedila seu

longo e esvoaccedilante cabelo para que os poacutelipos natildeo a pudessem agarrarDepois cruzou os braccedilos sobre o peito e disparou adiante como umpeixe lanccedilado na aacutegua no meio dos soacuterdidos poacutelipos que estendiamem sua direccedilatildeo seus braccedilos e dedos buliccedilosos Ela notou como cadaum deles havia agarrado algo e imobilizava firmemente com umacentena de pequenos braccedilos que pareciam aros de ferro Esqueletosbrancos de seres humanos que haviam perecido no mar e afundadonas aacuteguas profundas olhavam dos braccedilos dos poacutelipos Lemes e arcasde navios estavam fortemente agarrados em seus braccedilos juntamentecom esqueletos de animais terrestres e ndash o mais terriacutevel de tudo ndash umasereiazinha que eles haviam capturado e estrangulado

Chegou entatildeo a um grande charco lodoso onde enormes e cor-pulentas cobras-drsquoaacutegua ondeavam-se no lamaccedilal mostrando seus

horrendos ventres amarelo-esbranquiccedilado No meio do charco haviauma casa construiacuteda com os ossos de humanos naufragados Laacute es-tava a feiticeira do mar deixando um sapo se alimentar na sua bocaassim como as pessoas nutrem agraves vezes um canaacuterio com um torratildeo deaccediluacutecar Ela chamava as asquerosas cobras-drsquoaacutegua de seus pintinhos edeixava-as rastejar sobre seu peito

mdash Eu sei exatamente o que vocecirc deseja ndash disse a feiticeira do

mar mdash Como vocecirc eacute estuacutepida Mas vocecirc deve seguir seu caminhoque vai lhe trazer infortuacutenio minha linda princesa Vocecirc quer se li-vrar de sua cauda de peixe e no lugar ter um par de tocos para andarcomo um ser humano a fim de que o jovem priacutencipe se apaixone porvocecirc e lhe decirc uma alma imortal

E com isso a feiticeira soltou uma gargalhada tatildeo alta e maleacuteficaque o sapo e as cobras caiacuteram estatelados no chatildeo

mdash Vocecirc veio na hora certa ndash disse a feiticeira mdash Amanhatildequando o sol se levantar eu natildeo serei mais capaz de ajudaacute-la Voupreparar um elixir para vocecirc Teraacute de nadar ateacute a costa com ele antesdo nascer do sol sentar-se na praia e tomaacute-lo Sua cauda entatildeo se

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H A R R Y C L A R K E

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47 A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

dividiraacute em duas e encolheraacute para se transformar naquilo que os sereshumanos chamam de ldquobelas pernasrdquo Mas vai doer Vocecirc sentiraacute como

se uma espada afiada a cortasse Todos que a virem diratildeo que vocecirc eacutea mais bela humana que jaacute encontraram Manteraacute seus movimentosgraciosos nenhuma danccedilarina jamais deslizaraacute tatildeo suavemente mascada passo que der a faraacute sentir como se estivesse pisando em umafaca afiada o bastante para fazer sangrar seus peacutes Se estiver dispostaa suportar tudo isso posso ajudaacute-la

mdash Sim ndash disse a Pequena Sereia com voz hesitante mas voltouseus pensamentos para o priacutencipe e ao precircmio de uma alma imortal

mdash Pense nisso com cuidado ndash alertou a feiticeira mdash Uma vez to-mada a forma de um ser humano nunca mais voltaraacute a ser uma sereiaVocecirc natildeo seraacute capaz de descer nadando ao encontro do palaacutecio de seupai e de suas irmatildes A uacutenica maneira de conseguir uma alma imortaleacute conquistando o amor do priacutencipe e fazer com que ele esqueccedila o pai

e a matildee por amor a vocecirc Ele deve tecirc-la sempre em seus pensamentose permitir que o padre una suas matildeos para que se tornem marido emulher Se o priacutencipe se casar com outra pessoa na manhatilde seguinteseu coraccedilatildeo se quebraraacute e vocecirc se tornaraacute espuma na crista das ondas

mdash Estou pronta ndash declarou a Pequena Sereia paacutelida comouma morta

mdash Mas teraacute que me recompensar ndash disse a feiticeira mdash Vocecirc natildeo

receberaacute minha ajuda sem nada em troca Vocecirc tem a mais formidaacutevelvoz entre todos que aqui habitam no fundo do mar Provavelmentepensa que encantaraacute o priacutencipe com ela mas teraacute que daacute-la para mimVou lhe exigir o que possui de melhor como pagamento por minhapoccedilatildeo Vocecirc entende tenho de misturar nela um pouco do meu proacutepriosangue para que o elixir seja afiado como uma espada de dois gumes

mdash Mas se tirar a minha voz o que me restaraacute ndash perguntou a

Pequena Sereiamdash Sua encantadora figura ndash disse a feiticeira ndash seus movimentos

graciosos e seus olhos expressivos Com eles pode simplesmente fas-cinar um coraccedilatildeo humano Bem onde estaacute sua coragem Estire a

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liacutengua e deixe-me cortaacute-la fora como pagamento Depois receberaacutesua poderosa poccedilatildeo

mdash Assim seja ndash concordou a Pequena Sereia e a feiticeira pocircsseu caldeiratildeo no fogo para destilar a poccedilatildeo maacutegica

mdash Limpeza antes de tudo ndash ela disse enquanto esfregava o re-cipiente com um feixe de viacuteboras que tinha atado num grande noacute

Em seguida deu um talho no proacuteprio seio e deixou gotejar onegro sangue no caldeiratildeo O vapor que subiu criava formas estranhasassustadoras de se ver A feiticeira continuava a juntar coisas novas

dentro do caldeiratildeo e quando o elixir comeccedilou a ferver parecia umchoro de crocodilo Finalmente a poccedilatildeo maacutegica ficou pronta e eraexatamente cristalina como aacutegua

mdash Aiacute estaacute vocecirc ndash disse a feiticeira ao cortar a liacutengua da PequenaSereia que agora estava muda e natildeo conseguia falar e cantar

mdash Se os poacutelipos a apanharem quando vocecirc retornar pela mata

ndash orientou a feiticeira ndash basta jogar sobre eles uma uacutenica gota destapoccedilatildeo e os braccedilos e dedos deles seratildeo dilacerados em mil pedaccedilosPoreacutem a Pequena Sereia natildeo precisou disso Os poacutelipos se enco-

lheram aterrorizados quando avistaram a luzente poccedilatildeo em sua matildeocomo uma estrela cintilante E assim passou rapidamente pela matapelo charco e pelos atroadores redemoinhos

A Pequena Sereia pocircde contemplar o palaacutecio do pai As luzes do

salatildeo de baile estavam apagadas Certamente laacute estavam todos dor-mindo a essa altura Mas natildeo se atreveu ir vecirc-los pois agora estavamuda e prestes a deixaacute-los para sempre Ela sentiu como se seu coraccedilatildeofosse partir de tanta dor Entrou secretamente no jardim pegou umaflor dos leitos de cada uma das irmatildes soprou mil beijos em direccedilatildeodo palaacutecio e depois subiu agrave superfiacutecie atraveacutes das aacuteguas azul-escuras

O sol ainda natildeo despontara no horizonte quando ela avistou o

palaacutecio do priacutencipe e subiu os degraus de maacutermore A lua esplendialiacutempida e viacutevida A Pequena Sereia bebeu a acre poccedilatildeo e parecia queuma faca de dois gumes trespassava seu corpo delicado Ela desmaioue caiu morta

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E D M U N D D U L A C

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51A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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52 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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D U G A L D S T E W A R T WA L K E R 1 9 1 4

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seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

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peacutetalas das mais bonitas centaacuteureas e pura como o cristalmais transparente Mas eacute profundo mais profundo doque qualquer acircncora pode alcanccedilar Seria preciso empi-

lhar uma quantidade de torres de igreja umas sobre as outras a fimde verificar a distacircncia que vai do fundo agrave superfiacutecie Laacute eacute a moradado povo do mar

Agora natildeo pense nem por um instante que natildeo haacute nada laacute aleacutemde areia nua e branca Oacute natildeo As mais maravilhosas aacutervores e plantas

crescem no fundo do mar Seus talos e folhas satildeo tatildeo leves que omenor movimento da aacutegua faz com eles se agitem como se estivessemvivos Todos os peixes grandes e pequenos deslizam por entre seus

galhos assim como os paacutessaros o fazem no ar No lugar mais pro-fundo estaacute o castelo do rei do mar cujos muros satildeo feitos de coral

e as janelas compridas e pontudas satildeo feitas do mais claro acircmbar Oteto eacute formado de conchas que se abrem e fecham com a corrente Eacuteuma visatildeo linda Cada concha encerra uma peacuterola deslumbrante e amenor delas honraria a mais bela coroa de qualquer rainha

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26 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

Haacute muitos anos que o rei do mar estava viuacutevo e sua velha matildeemantinha a casa Era uma mulher inteligente mas orgulhosa de sua

linhagem Era por isso que usava doze ostras em sua cauda enquantotodos os outros de alta posiccedilatildeo tinham de se contentar com seis Sobreoutros aspectos ela merecia elogios pelos cuidados que tinha para comas suas netas bem-amadas as princesinhas do mar Eram seis lindascrianccedilas e a mais moccedila era a mais encantadora Sua pele era clara edelicada como uma peacutetala de rosa Seus olhos eram azuis como umlago profundo Todavia como todas as outras natildeo tinha peacutes e seucorpo terminava numa longa cauda de peixe

Durante o dia inteiro as princesas do mar brincavam nos grandessalotildees do castelo onde flores viccedilosas cresciam direto das paredes Asgrandes janelas de acircmbar ficavam abertas e os peixes entravam por elasnadando assim como as andorinhas entram voando em nossas casasquando abrimos as janelas Os peixes deslizavam ateacute as princesinhas

comiam em suas matildeos e aguardavam um afagoFora do castelo havia um belo jardim com aacutervores de um azulpenetrante e de um vermelho flamejante Seus frutos cintilavamcomo ouro e suas flores agitando sem cessar seus talos e suas folhasassemelhavam-se a labaredas O proacuteprio solo era da mais fina areiaporeacutem azul como uma chama de enxofre Um singular fulgor azu-lado envolvia tudo que estava agrave vista Se vocecirc estivesse laacute embaixo natildeo

saberia que estava no fundo do mar sem nada aleacutem do ceacuteu acima eabaixo de vocecirc Quando havia calmaria era possiacutevel vislumbrar o solque parecia uma flor puacuterpura de cujo caacutelice jorrava luz

Cada uma das princesinhas tinha seu proacuteprio terreno no jardim no qual podia cavar e plantar a seu bel-prazer Uma arrumouseu canteiro de flores na forma de uma baleia outra achou mais in-teressante moldar o seu como uma sereiazinha mas a caccedilula fez o

seu bem redondo como o sol e soacute quis flores rubras como o brilhodele Era uma crianccedila curiosa sossegada e pensativa Enquanto asirmatildes adornavam seus jardins com as coisas maravilhosas que ob-tinham de navios naufragados ela natildeo admitia nada aleacutem de flores

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27 A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

E D M U N D D U L A C

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28 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

rosa-avermelhadas que eram como o sol laacute no alto e uma estaacutetuade maacutermore A estaacutetua era de um encantador rapaz esculpida em

pura pedra branca que havia descido ao fundo do mar depois de umnaufraacutegio Perto dela a princesinha havia plantado um salgueiro cor--de-rosa que cresceu esplendidamente e deixava sua fresca folhagemcobrir a estaacutetua ateacute o solo azul arenoso do oceano Sua sombra ga-nhava um matiz violeta e como os ramos nunca ficava parada Asraiacutezes e a copa da aacutervore pareciam estar sempre brincando tentandobeijar uma agrave outra

Natildeo havia nada de que as princesas gostassem mais do que ouvirsobre o mundo dos seres humanos acima do mar Sua vovozinha lhescontava tudo o que sabia sobre os navios e as cidades as pessoas e osanimais Uma coisa em especial as impressionava com sua belezasaber que as flores exalavam uma fragracircncia ndash natildeo havia nenhumano fundo do mar ndash e tambeacutem que as aacutervores na floresta eram verdes

e que os peixes que voavam nas aacutervores sabiam cantar tatildeo docementeque era um prazer ouvi-los A avoacute chamava os passarinhos de peixesDe outro modo as princesinhas do mar que nunca tinham visto umpaacutessaro natildeo a teriam compreendido

mdash Quando vocecircs completarem quinze anos ndash disse a avoacute ndashvamos deixaacute-las subir ateacute a superfiacutecie e se sentar nos rochedos agraveluz do luar para ver os grandes navios passarem Veratildeo florestas e

tambeacutem cidadesNo ano seguinte uma das irmatildes completaria quinze anos mas

as outras ndash bem cada uma era um ano mais nova que a outra demodo que a mais nova teria de esperar nada menos que cincos anospara subir das profundezas do mar para a superfiacutecie e ver como satildeoas coisas por aqui mas cada uma prometia contar agraves outras tudo quevisse e o que lhe parecia mais interessante naquela primeira visita

pois nunca estavam satisfeitas com o que a avoacute contava Havia umainfinidade de coisas sobre as quais ansiavam ouvir

Nenhuma das sereias era mais curiosa do que a caccedilula e eratambeacutem ela tatildeo quieta e pensativa a que tinha de suportar a mais

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30 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

longa espera Em muitas noites ela se postava agrave janela aberta e fitavaatraveacutes das aacuteguas azul-escuras os peixes sacudirem suas nadadeiras ecaudas Olhava bem para o alto e podia ver a lua e as estrelas emborasua luz fosse muito paacutelida ndash atraveacutes da aacutegua pareciam muito maioresque aos nossos olhos Se uma nuvem escura passava acima dela sabiaque era uma baleia que nadava sobre a sua cabeccedila ou um navio cheiode passageiros Aquelas pessoas nem sonhavam que uma sereiazinha

estendia suas matildeos brancas para o casco do navio que fendia as aacuteguas Assim que fez quinze anos a mais velha das princesas foi auto-

rizada a subir agrave superfiacutecie do oceano Quando voltou tinha dezenasde coisas para contar

mdash O mais delicioso ndash ela disse ndash foi ficar deitada em um bancode areia perto da praia numa noite de lua com o mar calmo Foipossiacutevel contemplar a grande cidade onde as luzes brilhavam como

milhares de estrelas Podia ouvir muacutesicas harmoniosas e o ruiacutedo decarros e pessoas Podia ver todas as torres das igrejas e ouvir os sinostocando ndash e exatamente por natildeo ter chegado perto de todas essas ma-ravilhas ansiava ainda mais por todas elas

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Oacute como a irmatilde caccedilulabebia aquelas palavras E mais

tarde agrave noite ficou junto agrave janelaaberta fitando atraveacutes das aacuteguasazul-escuras pensando na cidadegrande com seus ruiacutedos e luzes eateacute imaginou ouvir os sinos dasigrejas tocando para ela

No ano seguinte a segundairmatilde teve permissatildeo para subirmar acima e nadar aonde quisesseChegou agrave superfiacutecie bem na horado pocircr do sol

mdash Foi a visatildeo mais bela detodas ndash ela contou mdash Todo o

ceacuteu parecia ouro e as nuvensndash bem ela simplesmente natildeoconseguia descrever como eramlindas ao passar em tons de car-mesim e violeta sobre sua cabeccedila

Mais veloz ainda que as nu-

vens um bando de cisnes selvagensvoou como um longo e branco veacuteusobre a aacutegua rumo ao sol poenteEla nadou nessa direccedilatildeo mas o solse pocircs e sua luz roacutesea foi engolidapelo mar e pela nuvem

Depois chegou a vez da terceira irmatilde Era a mais ousada de todas

e nadou ateacute um largo rio que desaguava no mar Avistou admiraacuteveis co-linas verdes cobertas com videiras castelos e fazendas situados no meiode florestas soberbas e imensas ouviu o canto dos paacutessaros e o sol eratatildeo quente que teve de mergulhar muitas vezes na aacutegua para refrescar o

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32 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

rosto ardente Numa pequena enseada topou com um bando de crian-cinhas humanas divertindo-se completamente nuas na aacutegua

Quis brincar com elas mas ficaram aterrorizadas e fugiram De-pois um animalzinho preto foi ateacute a aacutegua Era um cachorro mas nuncatinha visto um O animal latiu tanto que ela ficou assustada e nadoupara o mar aberto Poreacutem disse que jamais esqueceria a magniacutefica flo-resta as colinas verdes e as lindas criancinhas que sabiam nadar emboranatildeo possuiacutessem caudas

A quarta irmatilde natildeo foi tatildeo ousada Preferiu ficar no meio do marselvagem onde a vista se perdia ao longe todavia foi exatamente issoela lhes contou que tornou sua visita tatildeo maravilhosa Podia ver pormilhas e milhas ao seu redor e o ceacuteu se arredondava em volta da aacuteguacomo um grande sino de vidro Vira navios mas a uma distacircncia tatildeogrande que pareciam gaivotas Os golfinhos brincavam nas ondas eas baleias esguichavam aacutegua tatildeo poderosamente de suas narinas que

pareciam estar cercadas por uma centena de chafarizesE agora era a vez da quinta irmatilde Como seu aniversaacuterio caiacutea no

inverno ela viu coisas que as outras natildeo tinham visto da primeira vezO mar perdera sua cor azul e adquirira um tom esverdeado e sobreele flutuavam enormes icebergs

mdash Cada um parecia uma peacuterola ndash ela disse ndash mas eram mais

altos que as torres de igrejas construiacutedas pelos seres humanos Apareciam nas formas mais fantaacutesticas e brilhavam como dia-mantes Ela se sentara num dos maiores icebergs e todos os naviospareciam ter medo dele pois passavam navegando rapidamente emuito distante do lugar onde ela estava sentada com o vento grace- jando seus longos cabelos

Mais tarde naquela noite uma tempestade cobriu o ceacuteu de nu-

vens Trovotildees estrondeavam relacircmpagos chispavam e as ondas es-curas elevavam os enormes blocos de gelo tatildeo alto que os tiravam daaacutegua fazendo-os reluzir na intensa luz vermelha Todos os naviosrecolheram as velas e em meio ao horror e ao alarme geral a sereia

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33A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

E D M U N D D U L A C 1 9 11

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34 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

permaneceu sentada tranquilamente no iceberg flutuante vendo osrelacircmpagos azuis ziguezaguearem no mar resplandecente

Na primeira vez que as irmatildes subiram agrave superfiacutecie ficaram en-cantadas de ver tantas coisas novas e bonitas Poreacutem quando ficarammais velhas e podiam emergir sempre que queriam mostravam-semenos entusiasmadas Sentiam saudade do fundo do mar E depoisde um mecircs diziam que afinal de contas era muito mais agradaacutevel laacuteembaixo ndash era tatildeo reconfortante estar em casa No entanto muitasvezes ao entardecer as cinco irmatildes davam-se os braccedilos e flutuavam juntas Suas vozes eram encantadoras como nenhuma criatura hu-mana poderia possuir

Antes da aproximaccedilatildeo de uma tempestade quando esperavam onaufraacutegio de um navio as irmatildes costumavam nadar diante do barcoe cantar docemente as deliacutecias das profundezas do mar Diziam aosmarinheiros para natildeo terem medo de mergulhar ateacute o fundo mas eles

nunca entendiam suas canccedilotildees Pensavam estar ouvindo os uivos datempestade e nunca viam as maravilhas que as sereias prometiam Eassim que o navio afundava os homens se afogavam e somente seuscadaacuteveres chegavam ateacute o palaacutecio do rei do mar

Quando as irmatildes subiam pela aacutegua de braccedilos dados a caccedilulasempre ficava para traacutes sozinha acompanhando-as com os olhos Teriachorado mas as sereias natildeo tecircm laacutegrimas e sofrem muito mais que noacutes

mdash Oacute Se pelo menos eu tivesse quinze anos ndash ela dizia mdash Seique vou gostar muito do mundo laacute de cima e de todas as pessoas quevivem nele

Entatildeo finalmente ela fez quinze anosmdash Bem agora vocecirc logo escaparaacute das nossas matildeos ndash disse a velha

rainha sua avoacute mdash Venha deixe-me vesti-la como suas outras irmatildesE pocircs no seu cabelo uma coroa de liacuterios brancos em que cada

peacutetala de flor era metade de uma peacuterola Depois a velha senhoramandou trazer oito grandes ostras para prender firmemente na caudada princesa e mostrar sua alta posiccedilatildeo

mdash Ai Isso doacutei ndash disse a Pequena Sereia

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mdash Sim a beleza tem seu preccedilo ndash respondeu a avoacuteComo a Pequena Sereia teria gostado de se livrar de todos

aqueles adornos e pocircr de lado aquela pesada coroa As flores verme-lhas de seu jardim assentavam-lhe muito melhor mas natildeo ousoufazer nenhuma alteraccedilatildeo

mdash Adeus ndash disse ao subir pela aacutegua tatildeo leve e liacutempida quantoas bolhas se elevam agrave superfiacutecie

O sol acabara de se pocircr quando ela ergueu a cabeccedila sobre as

ondas mas as nuvens ainda estavam tingidas de carmesim e ouroNo alto do ceacuteu paacutelido e rosado a estrela vespertina iluminava clarae viacutevida O ar estava ameno e fresco e o mar apraziacutevel Um grandenavio de trecircs mastros estava agrave deriva na aacutegua com apenas uma velaiccedilada porque o vento estava brando Os marinheiros estavam refes-telados no cordame ou nas jardas Havia muacutesica e canto a bordo equando escureceu uma centena de lanternas foi acesa Com suas

muitas cores tinha-se a impressatildeo de que as bandeiras de todas asnaccedilotildees flutuavam no ar

A Pequena Sereia nadou ateacute a escotilha da cabine e cada vez queuma onda a levantava podia ver atraveacutes do vidro transparente umaquantidade de homens magnificamente trajados O mais belo delesera um jovem priacutencipe com grandes olhos escuros Natildeo tinha mais

de dezesseis anos Era seu aniversaacuterio e era por isso que havia tantoalvoroccedilo Quando o jovem priacutencipe saiu para o conveacutes onde os mari-nheiros estavam danccedilando mais de uma centena de foguetes zuniramrumo ao ceacuteu num esplendor tornando o ceacuteu tatildeo brilhante quanto odia A Pequena Sereia ficou tatildeo assustada que mergulhou escondendo--se sob a aacutegua mas rapidamente pocircs a cabeccedila para fora de novo Eveja Parecia que as estrelas laacute do ceacuteu estavam caindo sobre ela Nunca

vira fogos de artifiacutecios Grandes soacuteis rodopiavam ao seu redor lindospeixes de fogo refulgentes lanccedilavam-se no ar azul e todo esse brilhose refletia nas aacuteguas claras e calmas embaixo O proacuteprio navio estavatatildeo deslumbrantemente iluminado que se podiam ver natildeo soacute todas as

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36 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

pessoas que laacute estavam como tambeacutem a corda mais fina Que eleganteparecia o jovem priacutencipe quando apertava as matildeos dos marinheiros

Ele ria e sorria enquanto a muacutesica soava pelo ar da noite agradaacutevel Jaacute era muito tarde mas a Pequena Sereia natildeo conseguia tirar os

olhos do navio ou do belo priacutencipe As lanternas coloridas se apagaramos foguetes natildeo mais subiam no ar e o canhatildeo cessara de dar tirosContudo o mar estava inquieto e era possiacutevel ouvir um som queixososob as ondas Ainda assim a Pequena Sereia continuou na aacutegua balan-ccedilando-se para cima e para baixo para olhar a cabine O navio ganhouvelocidade e uma apoacutes outra as suas velas foram desferidas As ondascresciam nuvens negras se agrupavam no ceacuteu e relacircmpagos faiscavamagrave distacircncia Uma terriacutevel tempestade estava se formando Por isso osmarinheiros recolheram as velas enquanto o vento sacudia o grandenavio e o arrastava pelo mar impetuoso As ondas subiam mais e maisaltas ateacute se assemelharem a enormes montanhas ameaccedilando derrubar

o mastro Ainda assim o navio mergulhava como um cisne entre elase voltava a subir em cristas sublimes e espumosas A Pequena Sereiapensou que devia ser divertido para um navio navegar daquele jeitomas a tripulaccedilatildeo pensava diferente O barco gemia e rangia suas pran-chas soacutelidas rompiam-se sob as violentas pancadas do mar o mastropartiu-se ruidosamente em dois como um junco O navio inclinouquando a aacutegua se precipitou no poratildeo

De repente a Pequena Sereia percebeu que o navio estava emperigo Ela mesma tinha de ter cuidado com as vigas e os destroccedilosagrave deriva Em certos momentos ficava tatildeo escuro que natildeo conseguiaenxergar nada mas entatildeo o claratildeo de um relacircmpago iluminou todosa bordo Agora era cada por um si Ela estava agrave procura do jovem priacuten-cipe e no momento em que o navio se partia viu-o desaparecer nasprofundezas do mar Por um instante ficou bastante entusiasmada

pois pensou que agora ele poderia viver no seu mundo Mas logo selembrou que os seres humanos natildeo vivem debaixo drsquoaacutegua e que ele soacutechegaria morto ao palaacutecio de seu pai Natildeo natildeo ele natildeo podia morrer Assim ela nadou entre os destroccedilos que o mar arrastava indiferente

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37 A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

ao perigo de ser esmagada Mergulhava profundamente e emergia dasondas e finalmente encontrou o jovem priacutencipe Ele mal conseguianadar no mar tempestuoso Seus membros fraquejavam seus belosolhos estavam fechados e certamente teria se afogado se a PequenaSereia natildeo tivesse ido a seu socorro Ela segurou-lhe a cabeccedila acimada aacutegua e abandonou-se com ele aos caprichos das ondas

Quando amanheceu a tempestade cessara e natildeo havia rastro donavio O sol despontou da aacutegua vermelho e resplandecente e pareceudevolver a cor agraves faces do priacutencipe mas os olhos dele permaneciam fe-chados A sereia beijou-lhe a fronte e ajeitou-lhe para traacutes o cabelo mo-lhado Aos seus olhos ele parecia a estaacutetua de maacutermore que tinha em seu jardinzinho Beijou-o de novo e fez um pedido para que ele pudesse viver

Logo a sereia viu diante de si terra firme com suas majestosas

montanhas azuis no alto das quais brilhava a branca neve parecendocisnes aninhados Perto da costa havia adoraacuteveis florestas verdes e junto a uma delas erguia-se um preacutedio alto se era uma igreja ou umconvento ela natildeo sabia dizer Limoeiros e laranjeiras cresciam no

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39A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

jardim e ao lado da porta havia trecircs altas palmeiras A pequena baiacutease formava nesse ponto e a aacutegua era plenamente calma embora muito

profunda A sereia nadou com o belo priacutencipe ateacute a praia coberta defina areia branca Ali colocou-o sob o sol quente fazendo um traves-seiro de areia para sua cabeccedila

Sinos soaram do preacutedio branco e vaacuterias moccedilas apareceram no jardim A Pequena Sereia afastou-se nadando para bem longe dapraia e escondeu-se atraacutes de uma pedra grande que se elevava acimada aacutegua Cobriu o cabelo e o peito com espuma do mar para que nin-gueacutem pudesse vecirc-la Depois ficou espiando para ver quem ajudaria opobre priacutencipe

Natildeo demorou muito e surgiu uma jovem Pareceu muito assus-tada mas soacute por um instante e correu para buscar ajuda A sereia viuo priacutencipe voltar a si e ele sorriu para todos ao seu redor Poreacutem natildeohavia nenhum sorriso para ela pois ele natildeo tinha ideia de quem o sal-

vara Depois que foi levado para o preacutedio a Pequena Sereia se sentiatatildeo infeliz que mergulhou de volta para o palaacutecio do paiEla sempre fora silenciosa e pensativa mas agora estava mais do

que nunca Suas irmatildes lhe perguntaram o que vira durante sua pri-meira visita agrave superfiacutecie mas ela natildeo lhes contava nada Em muitasmanhatildes e entardeceres subia ateacute o local onde deixara o priacutencipe Viuas frutas do jardim amadurecerem e observou-as serem colhidas Viu

a neve derreter nos picos Contudo nunca via o priacutencipe e por issosempre voltava para casa ainda mais cheia de tristeza do que antesSeu uacutenico consolo era ficar em seu jardinzinho com os braccedilos emtorno da estaacutetua de maacutermore tatildeo parecida com o priacutencipe Nuncamais cuidou das suas flores que se espalhavam selvagemente ao longodos caminhos entrelaccedilando seus longos galhos nos ramos das aacutervoresateacute obscurecer tudo

Por fim ela natildeo conseguiu mais guardar aquilo consigo e contoutudo a uma de suas irmatildes Logo as outras ficaram sabendo mas nin-gueacutem mais exceto algumas outras sereias que natildeo diriam nada a nin-gueacutem a natildeo ser agraves suas melhores amigas Uma delas foi capaz de lhe

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dar notiacutecias sobre o priacutencipe Ela tambeacutem vira os festejos realizados abordo e disse mais sobre o priacutencipe e a localizaccedilatildeo de seu reino

mdash Venha irmatildezinha ndash disseram as outras princesas E com osbraccedilos nos ombros uma das outras subiram em uma longa fila ateacute asuperfiacutecie bem diante do lugar onde se erguia o castelo do priacutencipe

O castelo construiacutedo de uma pedra amarela e luzidia tinhalongas escadarias de maacutermore sendo que um dos degraus levava di-reto para o mar Esplecircndidas cuacutepulas douradas elevavam-se do teto eentre as colunas que cercavam toda a construccedilatildeo havia esculturas demaacutermore que pareciam vivas Atraveacutes do vidro transparente das altas janelas era possiacutevel ver magniacuteficos aposentos ornados com suntuosascortinas de seda e tapeccedilarias As paredes eram cobertas com enormespinturas e era um prazer contemplaacute-las No centro do maior salatildeohavia uma fonte que lanccedilava seus jorros espumantes ateacute a cuacutepula devidro do teto atraveacutes do qual o sol brilhava na aacutegua e nas belas plantas

que cresciam ali Agora que sabia onde o priacutencipe vivia passava muitos pores dosol e muitas noites naquele lugar Nadava ateacute muito mais perto dacosta do que as outras ousavam Chegou a avanccedilar pelo estreito canalpara ir ateacute a varanda de maacutermore que projetava uma longa sombrasobre a aacutegua Ali ela se sentava e observava o jovem priacutencipe que pen-sava estar completamente soacute ao claratildeo da lua

Muitas vezes agrave noite a Pequena Sereia o via sair ao mar em seuesplecircndido barco com bandeiras hasteadas ao som de muacutesica harmo-niosa Espiava do meio dos juncos verdes e quando o vento levantavao longo veacuteu branco e prateado do seu cabelo e pessoas a viam ima-ginavam apenas que era um cisne estendendo as asas

Em muitas noites quando os pescadores saiam em alto mar comsuas tochas ela os ouvia elogiar o jovem priacutencipe e suas palavras a dei-

xavam ainda mais feliz por lhe ter salvado a vida E ela recordava comoaninhara a cabeccedila dele em seu peito e com que carinho o beijara Masele natildeo sabia nada disso e nunca sequer sonhara que ela existia

A Pequena Sereia foi se afeiccediloando mais e mais aos seres

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humanos e ansiava profundamente pela companhia deles Omundo em que viviam parecia tatildeo mais vasto que o seu proacuteprio

Veja eles podiam navegar o oceano em navios e escalar montanhasiacutengremes bem acima das nuvens E as terras que possuiacuteam suasflorestas e seus campos se estendiam muito aleacutem de onde sua vistaalcanccedilava Havia uma porccedilatildeo de outras coisas que ela teria gos-tado de saber e suas irmatildes natildeo eram capazes de responder a todasas suas curiosidades Por isso foi visitar sua velha avoacute que sabia

tudo sobre o mundo superior como chamava tatildeo apropriadamenteos paiacuteses acima do marmdash Quando natildeo se afogam ndash perguntou a Pequena Sereia ndash os

seres humanos podem continuar vivendo para sempre Natildeo morremcomo noacutes aqui embaixo no mar

mdash Sim sim ndash respondeu a velha senhora mdash Eles tambeacutem teratildeoque morrer e seu tempo de vida eacute mais curto que o nosso Noacutes por

vezes alcanccedilamos a idade de trezentos anos mas quando nossa vidaaqui chega ao fim simplesmente nos transformamos em espuma naaacutegua Aqui natildeo temos tuacutemulos daqueles que amamos Natildeo temosuma alma imortal e nunca teremos outra vida Noacutes somos como o junco verde Uma vez cortado cessa de crescer Jaacute os seres humanostecircm almas que vivem para sempre mesmo depois que seus corpos se

transformam em poacute Elas voam atraveacutes do ar puro ateacute chegarem agraves es-trelas brilhantes Assim como subimos agrave flor da aacutegua e contemplamosas terras dos seres humanos eles atingem belos reinos desconhecidosndash regiotildees que nunca conheceremos

mdash Por que natildeo podemos ter uma alma imortal ndash a PequenaSereia perguntou angustiada mdash Eu daria de boa vontade todos ostrezentos anos que tenho para viver se pudesse me tornar uma humana

por apenas um dia e participar do mundo celestialmdash Vocecirc natildeo deveria se preocupar com isso Somos muito mais

felizes e vivemos melhor aqui do que os seres humanos laacute em cimamdash Entatildeo estou condenada a morrer e flutuar como espuma do

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42 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mar a nunca mais ouvir a muacutesica das ondas ou ver as lindas flores eo sol vermelho Natildeo haacute nada que eu possa fazer para conquistar umaalma imortal

mdash Natildeo ndash disse a velha senhora mdash Soacute se um ser humano aamasse tanto que vocecirc importasse mais para ele que pai e matildee Se elea amasse de todo o coraccedilatildeo e deixasse o padre pocircr a matildeo direita sobre a

sua como uma promessa de ser fiel e verdadeiro por toda a eternidadeNesse caso a alma dele deslizaria para dentro do seu corpo e vocecirctambeacutem obteria uma parcela da felicidade humana Ele lhe daria umaalma e no entanto conservaria a dele proacuteprio Mas isso jamais acon-teceraacute Sua cauda de peixe que achamos tatildeo bonita parece repulsivaagrave gente da terra Sabem tatildeo pouco sobre isso que acreditam realmenteque as duas desajeitadas escoras que chamam de pernas satildeo belas

A Pequena Sereia suspirou e olhou melancolicamente para suacauda de peixe

mdash Devemos ficar satisfeitas com o que temos ndash disse a velhasenhora mdash Vamos danccedilar e nos alegrar durante os trezentos anos

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de nossa existecircncia isso eacute realmente muito tempo Depois da mortepoderemos descansar e pocircr o sono em dia Hoje teremos um baile

na corteNatildeo se pode fazer ideia na terra de tal magnificecircncia As paredes

e o teto do grande salatildeo do baile eram feitos de cristal espesso mastransparente Centenas de conchas enormes rosa-vermelho e verde--relva dispostas de cada lado cada uma com uma chama azul queiluminava todo o salatildeo e luzindo atraveacutes das paredes iluminavamtambeacutem o mar Inuacutemeros peixes grandes e pequenos podiam servistos nadando em direccedilatildeo agraves paredes de cristal As escamas de algunsfulgiam com um brilho puacuterpura-avermelhado e as de outros comoprata e ouro No meio do salatildeo corria um grande rio nos quais mo-luscos e sereias danccedilavam ao seu proacuteprio som melodioso

Nenhum ser humano tem voz tatildeo encantadora Ningueacutem can-tava mais docemente que a Pequena Sereia e todos a aplaudiram

Por um instante houve alegria em seu coraccedilatildeo pois ela sabia quetinha a voz mais bela em terra ou no mar Mas em seguida seuspensamentos se voltaram para o mundo acima dela Natildeo conseguiaesquecer o belo priacutencipe e a grande dor de natildeo ter a alma imortalque ele possuiacutea Assim se arrastou para fora do palaacutecio do pai eenquanto todos laacute dentro cantavam e se divertiam foi se sentar emseu jardinzinho desolada

De repente ela ouviu o som de uma buzina ecoando atraveacutes daaacutegua e pensou

mdash Ah laacute vai ele navegando laacute em cima Aquele a quem amomais do que meu pai ou minha matildee ele que estaacute sempre em meuspensamentos e em cujas matildeos eu confiaria alegremente minha fe-licidade Arriscaria qualquer coisa para conquistaacute-lo e a uma almaimortal Enquanto minhas irmatildes danccedilam no castelo de meu pai vou

agrave procura da feiticeira do mar Sempre tive um terriacutevel medo delamas talvez possa me ajudar e me dizer o que fazer

E assim a Pequena Sereia deixou seu jardim e partiu paraonde a feiticeira morava no lado mais distante dos redemoinhos

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espumantes Nunca estivera laacute antes Naquele lugar natildeo cresciamflores nem relva do mar Natildeo havia nada aleacutem do fundo arenoso ecinzento que se estendia ateacute os turbilhotildees onde a aacutegua rodopiavacom o estrondo da roda de moinho e sugava para as profundezastudo que podia Tinha de passar pelo meio desses furiosos torveli-nhos para chegar ateacute a feiticeira do mar Por um longo trecho natildeo

havia outro caminho senatildeo pela lama quente e borbulhante ndash que afeiticeira chamava de seu charco

A casa da feiticeira ficava atraacutes do charco no meio de uma flo-resta quimeacuterica Todas as aacutervores e arbustos eram verdadeiros poacuteliposmetade animal e metade vegetal Pareciam serpentes de cem cabeccedilascrescendo do solo Tinham galhos que pareciam braccedilos longos e vis-cosos com dedos tatildeo flexiacuteveis que se assemelhavam a vermes Noacute por

noacute da raiz ateacute a ponta estavam constantemente em movimento eagarravam hermeticamente qualquer coisa que pudessem aproveitardo mar e natildeo soltavam mais A Pequena Sereia ficou apavorada e sedeteve agrave beira da mata Seu coraccedilatildeo palpitava de medo e ela esteve

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prestes a desistir Mas entatildeo lembrou-se do priacutencipe e da alma hu-mana e retomou sua coragem Ela prendeu em torno da cabeccedila seu

longo e esvoaccedilante cabelo para que os poacutelipos natildeo a pudessem agarrarDepois cruzou os braccedilos sobre o peito e disparou adiante como umpeixe lanccedilado na aacutegua no meio dos soacuterdidos poacutelipos que estendiamem sua direccedilatildeo seus braccedilos e dedos buliccedilosos Ela notou como cadaum deles havia agarrado algo e imobilizava firmemente com umacentena de pequenos braccedilos que pareciam aros de ferro Esqueletosbrancos de seres humanos que haviam perecido no mar e afundadonas aacuteguas profundas olhavam dos braccedilos dos poacutelipos Lemes e arcasde navios estavam fortemente agarrados em seus braccedilos juntamentecom esqueletos de animais terrestres e ndash o mais terriacutevel de tudo ndash umasereiazinha que eles haviam capturado e estrangulado

Chegou entatildeo a um grande charco lodoso onde enormes e cor-pulentas cobras-drsquoaacutegua ondeavam-se no lamaccedilal mostrando seus

horrendos ventres amarelo-esbranquiccedilado No meio do charco haviauma casa construiacuteda com os ossos de humanos naufragados Laacute es-tava a feiticeira do mar deixando um sapo se alimentar na sua bocaassim como as pessoas nutrem agraves vezes um canaacuterio com um torratildeo deaccediluacutecar Ela chamava as asquerosas cobras-drsquoaacutegua de seus pintinhos edeixava-as rastejar sobre seu peito

mdash Eu sei exatamente o que vocecirc deseja ndash disse a feiticeira do

mar mdash Como vocecirc eacute estuacutepida Mas vocecirc deve seguir seu caminhoque vai lhe trazer infortuacutenio minha linda princesa Vocecirc quer se li-vrar de sua cauda de peixe e no lugar ter um par de tocos para andarcomo um ser humano a fim de que o jovem priacutencipe se apaixone porvocecirc e lhe decirc uma alma imortal

E com isso a feiticeira soltou uma gargalhada tatildeo alta e maleacuteficaque o sapo e as cobras caiacuteram estatelados no chatildeo

mdash Vocecirc veio na hora certa ndash disse a feiticeira mdash Amanhatildequando o sol se levantar eu natildeo serei mais capaz de ajudaacute-la Voupreparar um elixir para vocecirc Teraacute de nadar ateacute a costa com ele antesdo nascer do sol sentar-se na praia e tomaacute-lo Sua cauda entatildeo se

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H A R R Y C L A R K E

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47 A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

dividiraacute em duas e encolheraacute para se transformar naquilo que os sereshumanos chamam de ldquobelas pernasrdquo Mas vai doer Vocecirc sentiraacute como

se uma espada afiada a cortasse Todos que a virem diratildeo que vocecirc eacutea mais bela humana que jaacute encontraram Manteraacute seus movimentosgraciosos nenhuma danccedilarina jamais deslizaraacute tatildeo suavemente mascada passo que der a faraacute sentir como se estivesse pisando em umafaca afiada o bastante para fazer sangrar seus peacutes Se estiver dispostaa suportar tudo isso posso ajudaacute-la

mdash Sim ndash disse a Pequena Sereia com voz hesitante mas voltouseus pensamentos para o priacutencipe e ao precircmio de uma alma imortal

mdash Pense nisso com cuidado ndash alertou a feiticeira mdash Uma vez to-mada a forma de um ser humano nunca mais voltaraacute a ser uma sereiaVocecirc natildeo seraacute capaz de descer nadando ao encontro do palaacutecio de seupai e de suas irmatildes A uacutenica maneira de conseguir uma alma imortaleacute conquistando o amor do priacutencipe e fazer com que ele esqueccedila o pai

e a matildee por amor a vocecirc Ele deve tecirc-la sempre em seus pensamentose permitir que o padre una suas matildeos para que se tornem marido emulher Se o priacutencipe se casar com outra pessoa na manhatilde seguinteseu coraccedilatildeo se quebraraacute e vocecirc se tornaraacute espuma na crista das ondas

mdash Estou pronta ndash declarou a Pequena Sereia paacutelida comouma morta

mdash Mas teraacute que me recompensar ndash disse a feiticeira mdash Vocecirc natildeo

receberaacute minha ajuda sem nada em troca Vocecirc tem a mais formidaacutevelvoz entre todos que aqui habitam no fundo do mar Provavelmentepensa que encantaraacute o priacutencipe com ela mas teraacute que daacute-la para mimVou lhe exigir o que possui de melhor como pagamento por minhapoccedilatildeo Vocecirc entende tenho de misturar nela um pouco do meu proacutepriosangue para que o elixir seja afiado como uma espada de dois gumes

mdash Mas se tirar a minha voz o que me restaraacute ndash perguntou a

Pequena Sereiamdash Sua encantadora figura ndash disse a feiticeira ndash seus movimentos

graciosos e seus olhos expressivos Com eles pode simplesmente fas-cinar um coraccedilatildeo humano Bem onde estaacute sua coragem Estire a

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48 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

liacutengua e deixe-me cortaacute-la fora como pagamento Depois receberaacutesua poderosa poccedilatildeo

mdash Assim seja ndash concordou a Pequena Sereia e a feiticeira pocircsseu caldeiratildeo no fogo para destilar a poccedilatildeo maacutegica

mdash Limpeza antes de tudo ndash ela disse enquanto esfregava o re-cipiente com um feixe de viacuteboras que tinha atado num grande noacute

Em seguida deu um talho no proacuteprio seio e deixou gotejar onegro sangue no caldeiratildeo O vapor que subiu criava formas estranhasassustadoras de se ver A feiticeira continuava a juntar coisas novas

dentro do caldeiratildeo e quando o elixir comeccedilou a ferver parecia umchoro de crocodilo Finalmente a poccedilatildeo maacutegica ficou pronta e eraexatamente cristalina como aacutegua

mdash Aiacute estaacute vocecirc ndash disse a feiticeira ao cortar a liacutengua da PequenaSereia que agora estava muda e natildeo conseguia falar e cantar

mdash Se os poacutelipos a apanharem quando vocecirc retornar pela mata

ndash orientou a feiticeira ndash basta jogar sobre eles uma uacutenica gota destapoccedilatildeo e os braccedilos e dedos deles seratildeo dilacerados em mil pedaccedilosPoreacutem a Pequena Sereia natildeo precisou disso Os poacutelipos se enco-

lheram aterrorizados quando avistaram a luzente poccedilatildeo em sua matildeocomo uma estrela cintilante E assim passou rapidamente pela matapelo charco e pelos atroadores redemoinhos

A Pequena Sereia pocircde contemplar o palaacutecio do pai As luzes do

salatildeo de baile estavam apagadas Certamente laacute estavam todos dor-mindo a essa altura Mas natildeo se atreveu ir vecirc-los pois agora estavamuda e prestes a deixaacute-los para sempre Ela sentiu como se seu coraccedilatildeofosse partir de tanta dor Entrou secretamente no jardim pegou umaflor dos leitos de cada uma das irmatildes soprou mil beijos em direccedilatildeodo palaacutecio e depois subiu agrave superfiacutecie atraveacutes das aacuteguas azul-escuras

O sol ainda natildeo despontara no horizonte quando ela avistou o

palaacutecio do priacutencipe e subiu os degraus de maacutermore A lua esplendialiacutempida e viacutevida A Pequena Sereia bebeu a acre poccedilatildeo e parecia queuma faca de dois gumes trespassava seu corpo delicado Ela desmaioue caiu morta

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49A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

E D M U N D D U L A C

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O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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52 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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60 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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61A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

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Haacute muitos anos que o rei do mar estava viuacutevo e sua velha matildeemantinha a casa Era uma mulher inteligente mas orgulhosa de sua

linhagem Era por isso que usava doze ostras em sua cauda enquantotodos os outros de alta posiccedilatildeo tinham de se contentar com seis Sobreoutros aspectos ela merecia elogios pelos cuidados que tinha para comas suas netas bem-amadas as princesinhas do mar Eram seis lindascrianccedilas e a mais moccedila era a mais encantadora Sua pele era clara edelicada como uma peacutetala de rosa Seus olhos eram azuis como umlago profundo Todavia como todas as outras natildeo tinha peacutes e seucorpo terminava numa longa cauda de peixe

Durante o dia inteiro as princesas do mar brincavam nos grandessalotildees do castelo onde flores viccedilosas cresciam direto das paredes Asgrandes janelas de acircmbar ficavam abertas e os peixes entravam por elasnadando assim como as andorinhas entram voando em nossas casasquando abrimos as janelas Os peixes deslizavam ateacute as princesinhas

comiam em suas matildeos e aguardavam um afagoFora do castelo havia um belo jardim com aacutervores de um azulpenetrante e de um vermelho flamejante Seus frutos cintilavamcomo ouro e suas flores agitando sem cessar seus talos e suas folhasassemelhavam-se a labaredas O proacuteprio solo era da mais fina areiaporeacutem azul como uma chama de enxofre Um singular fulgor azu-lado envolvia tudo que estava agrave vista Se vocecirc estivesse laacute embaixo natildeo

saberia que estava no fundo do mar sem nada aleacutem do ceacuteu acima eabaixo de vocecirc Quando havia calmaria era possiacutevel vislumbrar o solque parecia uma flor puacuterpura de cujo caacutelice jorrava luz

Cada uma das princesinhas tinha seu proacuteprio terreno no jardim no qual podia cavar e plantar a seu bel-prazer Uma arrumouseu canteiro de flores na forma de uma baleia outra achou mais in-teressante moldar o seu como uma sereiazinha mas a caccedilula fez o

seu bem redondo como o sol e soacute quis flores rubras como o brilhodele Era uma crianccedila curiosa sossegada e pensativa Enquanto asirmatildes adornavam seus jardins com as coisas maravilhosas que ob-tinham de navios naufragados ela natildeo admitia nada aleacutem de flores

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rosa-avermelhadas que eram como o sol laacute no alto e uma estaacutetuade maacutermore A estaacutetua era de um encantador rapaz esculpida em

pura pedra branca que havia descido ao fundo do mar depois de umnaufraacutegio Perto dela a princesinha havia plantado um salgueiro cor--de-rosa que cresceu esplendidamente e deixava sua fresca folhagemcobrir a estaacutetua ateacute o solo azul arenoso do oceano Sua sombra ga-nhava um matiz violeta e como os ramos nunca ficava parada Asraiacutezes e a copa da aacutervore pareciam estar sempre brincando tentandobeijar uma agrave outra

Natildeo havia nada de que as princesas gostassem mais do que ouvirsobre o mundo dos seres humanos acima do mar Sua vovozinha lhescontava tudo o que sabia sobre os navios e as cidades as pessoas e osanimais Uma coisa em especial as impressionava com sua belezasaber que as flores exalavam uma fragracircncia ndash natildeo havia nenhumano fundo do mar ndash e tambeacutem que as aacutervores na floresta eram verdes

e que os peixes que voavam nas aacutervores sabiam cantar tatildeo docementeque era um prazer ouvi-los A avoacute chamava os passarinhos de peixesDe outro modo as princesinhas do mar que nunca tinham visto umpaacutessaro natildeo a teriam compreendido

mdash Quando vocecircs completarem quinze anos ndash disse a avoacute ndashvamos deixaacute-las subir ateacute a superfiacutecie e se sentar nos rochedos agraveluz do luar para ver os grandes navios passarem Veratildeo florestas e

tambeacutem cidadesNo ano seguinte uma das irmatildes completaria quinze anos mas

as outras ndash bem cada uma era um ano mais nova que a outra demodo que a mais nova teria de esperar nada menos que cincos anospara subir das profundezas do mar para a superfiacutecie e ver como satildeoas coisas por aqui mas cada uma prometia contar agraves outras tudo quevisse e o que lhe parecia mais interessante naquela primeira visita

pois nunca estavam satisfeitas com o que a avoacute contava Havia umainfinidade de coisas sobre as quais ansiavam ouvir

Nenhuma das sereias era mais curiosa do que a caccedilula e eratambeacutem ela tatildeo quieta e pensativa a que tinha de suportar a mais

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longa espera Em muitas noites ela se postava agrave janela aberta e fitavaatraveacutes das aacuteguas azul-escuras os peixes sacudirem suas nadadeiras ecaudas Olhava bem para o alto e podia ver a lua e as estrelas emborasua luz fosse muito paacutelida ndash atraveacutes da aacutegua pareciam muito maioresque aos nossos olhos Se uma nuvem escura passava acima dela sabiaque era uma baleia que nadava sobre a sua cabeccedila ou um navio cheiode passageiros Aquelas pessoas nem sonhavam que uma sereiazinha

estendia suas matildeos brancas para o casco do navio que fendia as aacuteguas Assim que fez quinze anos a mais velha das princesas foi auto-

rizada a subir agrave superfiacutecie do oceano Quando voltou tinha dezenasde coisas para contar

mdash O mais delicioso ndash ela disse ndash foi ficar deitada em um bancode areia perto da praia numa noite de lua com o mar calmo Foipossiacutevel contemplar a grande cidade onde as luzes brilhavam como

milhares de estrelas Podia ouvir muacutesicas harmoniosas e o ruiacutedo decarros e pessoas Podia ver todas as torres das igrejas e ouvir os sinostocando ndash e exatamente por natildeo ter chegado perto de todas essas ma-ravilhas ansiava ainda mais por todas elas

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31A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

Oacute como a irmatilde caccedilulabebia aquelas palavras E mais

tarde agrave noite ficou junto agrave janelaaberta fitando atraveacutes das aacuteguasazul-escuras pensando na cidadegrande com seus ruiacutedos e luzes eateacute imaginou ouvir os sinos dasigrejas tocando para ela

No ano seguinte a segundairmatilde teve permissatildeo para subirmar acima e nadar aonde quisesseChegou agrave superfiacutecie bem na horado pocircr do sol

mdash Foi a visatildeo mais bela detodas ndash ela contou mdash Todo o

ceacuteu parecia ouro e as nuvensndash bem ela simplesmente natildeoconseguia descrever como eramlindas ao passar em tons de car-mesim e violeta sobre sua cabeccedila

Mais veloz ainda que as nu-

vens um bando de cisnes selvagensvoou como um longo e branco veacuteusobre a aacutegua rumo ao sol poenteEla nadou nessa direccedilatildeo mas o solse pocircs e sua luz roacutesea foi engolidapelo mar e pela nuvem

Depois chegou a vez da terceira irmatilde Era a mais ousada de todas

e nadou ateacute um largo rio que desaguava no mar Avistou admiraacuteveis co-linas verdes cobertas com videiras castelos e fazendas situados no meiode florestas soberbas e imensas ouviu o canto dos paacutessaros e o sol eratatildeo quente que teve de mergulhar muitas vezes na aacutegua para refrescar o

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32 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

rosto ardente Numa pequena enseada topou com um bando de crian-cinhas humanas divertindo-se completamente nuas na aacutegua

Quis brincar com elas mas ficaram aterrorizadas e fugiram De-pois um animalzinho preto foi ateacute a aacutegua Era um cachorro mas nuncatinha visto um O animal latiu tanto que ela ficou assustada e nadoupara o mar aberto Poreacutem disse que jamais esqueceria a magniacutefica flo-resta as colinas verdes e as lindas criancinhas que sabiam nadar emboranatildeo possuiacutessem caudas

A quarta irmatilde natildeo foi tatildeo ousada Preferiu ficar no meio do marselvagem onde a vista se perdia ao longe todavia foi exatamente issoela lhes contou que tornou sua visita tatildeo maravilhosa Podia ver pormilhas e milhas ao seu redor e o ceacuteu se arredondava em volta da aacuteguacomo um grande sino de vidro Vira navios mas a uma distacircncia tatildeogrande que pareciam gaivotas Os golfinhos brincavam nas ondas eas baleias esguichavam aacutegua tatildeo poderosamente de suas narinas que

pareciam estar cercadas por uma centena de chafarizesE agora era a vez da quinta irmatilde Como seu aniversaacuterio caiacutea no

inverno ela viu coisas que as outras natildeo tinham visto da primeira vezO mar perdera sua cor azul e adquirira um tom esverdeado e sobreele flutuavam enormes icebergs

mdash Cada um parecia uma peacuterola ndash ela disse ndash mas eram mais

altos que as torres de igrejas construiacutedas pelos seres humanos Apareciam nas formas mais fantaacutesticas e brilhavam como dia-mantes Ela se sentara num dos maiores icebergs e todos os naviospareciam ter medo dele pois passavam navegando rapidamente emuito distante do lugar onde ela estava sentada com o vento grace- jando seus longos cabelos

Mais tarde naquela noite uma tempestade cobriu o ceacuteu de nu-

vens Trovotildees estrondeavam relacircmpagos chispavam e as ondas es-curas elevavam os enormes blocos de gelo tatildeo alto que os tiravam daaacutegua fazendo-os reluzir na intensa luz vermelha Todos os naviosrecolheram as velas e em meio ao horror e ao alarme geral a sereia

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permaneceu sentada tranquilamente no iceberg flutuante vendo osrelacircmpagos azuis ziguezaguearem no mar resplandecente

Na primeira vez que as irmatildes subiram agrave superfiacutecie ficaram en-cantadas de ver tantas coisas novas e bonitas Poreacutem quando ficarammais velhas e podiam emergir sempre que queriam mostravam-semenos entusiasmadas Sentiam saudade do fundo do mar E depoisde um mecircs diziam que afinal de contas era muito mais agradaacutevel laacuteembaixo ndash era tatildeo reconfortante estar em casa No entanto muitasvezes ao entardecer as cinco irmatildes davam-se os braccedilos e flutuavam juntas Suas vozes eram encantadoras como nenhuma criatura hu-mana poderia possuir

Antes da aproximaccedilatildeo de uma tempestade quando esperavam onaufraacutegio de um navio as irmatildes costumavam nadar diante do barcoe cantar docemente as deliacutecias das profundezas do mar Diziam aosmarinheiros para natildeo terem medo de mergulhar ateacute o fundo mas eles

nunca entendiam suas canccedilotildees Pensavam estar ouvindo os uivos datempestade e nunca viam as maravilhas que as sereias prometiam Eassim que o navio afundava os homens se afogavam e somente seuscadaacuteveres chegavam ateacute o palaacutecio do rei do mar

Quando as irmatildes subiam pela aacutegua de braccedilos dados a caccedilulasempre ficava para traacutes sozinha acompanhando-as com os olhos Teriachorado mas as sereias natildeo tecircm laacutegrimas e sofrem muito mais que noacutes

mdash Oacute Se pelo menos eu tivesse quinze anos ndash ela dizia mdash Seique vou gostar muito do mundo laacute de cima e de todas as pessoas quevivem nele

Entatildeo finalmente ela fez quinze anosmdash Bem agora vocecirc logo escaparaacute das nossas matildeos ndash disse a velha

rainha sua avoacute mdash Venha deixe-me vesti-la como suas outras irmatildesE pocircs no seu cabelo uma coroa de liacuterios brancos em que cada

peacutetala de flor era metade de uma peacuterola Depois a velha senhoramandou trazer oito grandes ostras para prender firmemente na caudada princesa e mostrar sua alta posiccedilatildeo

mdash Ai Isso doacutei ndash disse a Pequena Sereia

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mdash Sim a beleza tem seu preccedilo ndash respondeu a avoacuteComo a Pequena Sereia teria gostado de se livrar de todos

aqueles adornos e pocircr de lado aquela pesada coroa As flores verme-lhas de seu jardim assentavam-lhe muito melhor mas natildeo ousoufazer nenhuma alteraccedilatildeo

mdash Adeus ndash disse ao subir pela aacutegua tatildeo leve e liacutempida quantoas bolhas se elevam agrave superfiacutecie

O sol acabara de se pocircr quando ela ergueu a cabeccedila sobre as

ondas mas as nuvens ainda estavam tingidas de carmesim e ouroNo alto do ceacuteu paacutelido e rosado a estrela vespertina iluminava clarae viacutevida O ar estava ameno e fresco e o mar apraziacutevel Um grandenavio de trecircs mastros estava agrave deriva na aacutegua com apenas uma velaiccedilada porque o vento estava brando Os marinheiros estavam refes-telados no cordame ou nas jardas Havia muacutesica e canto a bordo equando escureceu uma centena de lanternas foi acesa Com suas

muitas cores tinha-se a impressatildeo de que as bandeiras de todas asnaccedilotildees flutuavam no ar

A Pequena Sereia nadou ateacute a escotilha da cabine e cada vez queuma onda a levantava podia ver atraveacutes do vidro transparente umaquantidade de homens magnificamente trajados O mais belo delesera um jovem priacutencipe com grandes olhos escuros Natildeo tinha mais

de dezesseis anos Era seu aniversaacuterio e era por isso que havia tantoalvoroccedilo Quando o jovem priacutencipe saiu para o conveacutes onde os mari-nheiros estavam danccedilando mais de uma centena de foguetes zuniramrumo ao ceacuteu num esplendor tornando o ceacuteu tatildeo brilhante quanto odia A Pequena Sereia ficou tatildeo assustada que mergulhou escondendo--se sob a aacutegua mas rapidamente pocircs a cabeccedila para fora de novo Eveja Parecia que as estrelas laacute do ceacuteu estavam caindo sobre ela Nunca

vira fogos de artifiacutecios Grandes soacuteis rodopiavam ao seu redor lindospeixes de fogo refulgentes lanccedilavam-se no ar azul e todo esse brilhose refletia nas aacuteguas claras e calmas embaixo O proacuteprio navio estavatatildeo deslumbrantemente iluminado que se podiam ver natildeo soacute todas as

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36 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

pessoas que laacute estavam como tambeacutem a corda mais fina Que eleganteparecia o jovem priacutencipe quando apertava as matildeos dos marinheiros

Ele ria e sorria enquanto a muacutesica soava pelo ar da noite agradaacutevel Jaacute era muito tarde mas a Pequena Sereia natildeo conseguia tirar os

olhos do navio ou do belo priacutencipe As lanternas coloridas se apagaramos foguetes natildeo mais subiam no ar e o canhatildeo cessara de dar tirosContudo o mar estava inquieto e era possiacutevel ouvir um som queixososob as ondas Ainda assim a Pequena Sereia continuou na aacutegua balan-ccedilando-se para cima e para baixo para olhar a cabine O navio ganhouvelocidade e uma apoacutes outra as suas velas foram desferidas As ondascresciam nuvens negras se agrupavam no ceacuteu e relacircmpagos faiscavamagrave distacircncia Uma terriacutevel tempestade estava se formando Por isso osmarinheiros recolheram as velas enquanto o vento sacudia o grandenavio e o arrastava pelo mar impetuoso As ondas subiam mais e maisaltas ateacute se assemelharem a enormes montanhas ameaccedilando derrubar

o mastro Ainda assim o navio mergulhava como um cisne entre elase voltava a subir em cristas sublimes e espumosas A Pequena Sereiapensou que devia ser divertido para um navio navegar daquele jeitomas a tripulaccedilatildeo pensava diferente O barco gemia e rangia suas pran-chas soacutelidas rompiam-se sob as violentas pancadas do mar o mastropartiu-se ruidosamente em dois como um junco O navio inclinouquando a aacutegua se precipitou no poratildeo

De repente a Pequena Sereia percebeu que o navio estava emperigo Ela mesma tinha de ter cuidado com as vigas e os destroccedilosagrave deriva Em certos momentos ficava tatildeo escuro que natildeo conseguiaenxergar nada mas entatildeo o claratildeo de um relacircmpago iluminou todosa bordo Agora era cada por um si Ela estava agrave procura do jovem priacuten-cipe e no momento em que o navio se partia viu-o desaparecer nasprofundezas do mar Por um instante ficou bastante entusiasmada

pois pensou que agora ele poderia viver no seu mundo Mas logo selembrou que os seres humanos natildeo vivem debaixo drsquoaacutegua e que ele soacutechegaria morto ao palaacutecio de seu pai Natildeo natildeo ele natildeo podia morrer Assim ela nadou entre os destroccedilos que o mar arrastava indiferente

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37 A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

ao perigo de ser esmagada Mergulhava profundamente e emergia dasondas e finalmente encontrou o jovem priacutencipe Ele mal conseguianadar no mar tempestuoso Seus membros fraquejavam seus belosolhos estavam fechados e certamente teria se afogado se a PequenaSereia natildeo tivesse ido a seu socorro Ela segurou-lhe a cabeccedila acimada aacutegua e abandonou-se com ele aos caprichos das ondas

Quando amanheceu a tempestade cessara e natildeo havia rastro donavio O sol despontou da aacutegua vermelho e resplandecente e pareceudevolver a cor agraves faces do priacutencipe mas os olhos dele permaneciam fe-chados A sereia beijou-lhe a fronte e ajeitou-lhe para traacutes o cabelo mo-lhado Aos seus olhos ele parecia a estaacutetua de maacutermore que tinha em seu jardinzinho Beijou-o de novo e fez um pedido para que ele pudesse viver

Logo a sereia viu diante de si terra firme com suas majestosas

montanhas azuis no alto das quais brilhava a branca neve parecendocisnes aninhados Perto da costa havia adoraacuteveis florestas verdes e junto a uma delas erguia-se um preacutedio alto se era uma igreja ou umconvento ela natildeo sabia dizer Limoeiros e laranjeiras cresciam no

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39A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

jardim e ao lado da porta havia trecircs altas palmeiras A pequena baiacutease formava nesse ponto e a aacutegua era plenamente calma embora muito

profunda A sereia nadou com o belo priacutencipe ateacute a praia coberta defina areia branca Ali colocou-o sob o sol quente fazendo um traves-seiro de areia para sua cabeccedila

Sinos soaram do preacutedio branco e vaacuterias moccedilas apareceram no jardim A Pequena Sereia afastou-se nadando para bem longe dapraia e escondeu-se atraacutes de uma pedra grande que se elevava acimada aacutegua Cobriu o cabelo e o peito com espuma do mar para que nin-gueacutem pudesse vecirc-la Depois ficou espiando para ver quem ajudaria opobre priacutencipe

Natildeo demorou muito e surgiu uma jovem Pareceu muito assus-tada mas soacute por um instante e correu para buscar ajuda A sereia viuo priacutencipe voltar a si e ele sorriu para todos ao seu redor Poreacutem natildeohavia nenhum sorriso para ela pois ele natildeo tinha ideia de quem o sal-

vara Depois que foi levado para o preacutedio a Pequena Sereia se sentiatatildeo infeliz que mergulhou de volta para o palaacutecio do paiEla sempre fora silenciosa e pensativa mas agora estava mais do

que nunca Suas irmatildes lhe perguntaram o que vira durante sua pri-meira visita agrave superfiacutecie mas ela natildeo lhes contava nada Em muitasmanhatildes e entardeceres subia ateacute o local onde deixara o priacutencipe Viuas frutas do jardim amadurecerem e observou-as serem colhidas Viu

a neve derreter nos picos Contudo nunca via o priacutencipe e por issosempre voltava para casa ainda mais cheia de tristeza do que antesSeu uacutenico consolo era ficar em seu jardinzinho com os braccedilos emtorno da estaacutetua de maacutermore tatildeo parecida com o priacutencipe Nuncamais cuidou das suas flores que se espalhavam selvagemente ao longodos caminhos entrelaccedilando seus longos galhos nos ramos das aacutervoresateacute obscurecer tudo

Por fim ela natildeo conseguiu mais guardar aquilo consigo e contoutudo a uma de suas irmatildes Logo as outras ficaram sabendo mas nin-gueacutem mais exceto algumas outras sereias que natildeo diriam nada a nin-gueacutem a natildeo ser agraves suas melhores amigas Uma delas foi capaz de lhe

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dar notiacutecias sobre o priacutencipe Ela tambeacutem vira os festejos realizados abordo e disse mais sobre o priacutencipe e a localizaccedilatildeo de seu reino

mdash Venha irmatildezinha ndash disseram as outras princesas E com osbraccedilos nos ombros uma das outras subiram em uma longa fila ateacute asuperfiacutecie bem diante do lugar onde se erguia o castelo do priacutencipe

O castelo construiacutedo de uma pedra amarela e luzidia tinhalongas escadarias de maacutermore sendo que um dos degraus levava di-reto para o mar Esplecircndidas cuacutepulas douradas elevavam-se do teto eentre as colunas que cercavam toda a construccedilatildeo havia esculturas demaacutermore que pareciam vivas Atraveacutes do vidro transparente das altas janelas era possiacutevel ver magniacuteficos aposentos ornados com suntuosascortinas de seda e tapeccedilarias As paredes eram cobertas com enormespinturas e era um prazer contemplaacute-las No centro do maior salatildeohavia uma fonte que lanccedilava seus jorros espumantes ateacute a cuacutepula devidro do teto atraveacutes do qual o sol brilhava na aacutegua e nas belas plantas

que cresciam ali Agora que sabia onde o priacutencipe vivia passava muitos pores dosol e muitas noites naquele lugar Nadava ateacute muito mais perto dacosta do que as outras ousavam Chegou a avanccedilar pelo estreito canalpara ir ateacute a varanda de maacutermore que projetava uma longa sombrasobre a aacutegua Ali ela se sentava e observava o jovem priacutencipe que pen-sava estar completamente soacute ao claratildeo da lua

Muitas vezes agrave noite a Pequena Sereia o via sair ao mar em seuesplecircndido barco com bandeiras hasteadas ao som de muacutesica harmo-niosa Espiava do meio dos juncos verdes e quando o vento levantavao longo veacuteu branco e prateado do seu cabelo e pessoas a viam ima-ginavam apenas que era um cisne estendendo as asas

Em muitas noites quando os pescadores saiam em alto mar comsuas tochas ela os ouvia elogiar o jovem priacutencipe e suas palavras a dei-

xavam ainda mais feliz por lhe ter salvado a vida E ela recordava comoaninhara a cabeccedila dele em seu peito e com que carinho o beijara Masele natildeo sabia nada disso e nunca sequer sonhara que ela existia

A Pequena Sereia foi se afeiccediloando mais e mais aos seres

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41A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

humanos e ansiava profundamente pela companhia deles Omundo em que viviam parecia tatildeo mais vasto que o seu proacuteprio

Veja eles podiam navegar o oceano em navios e escalar montanhasiacutengremes bem acima das nuvens E as terras que possuiacuteam suasflorestas e seus campos se estendiam muito aleacutem de onde sua vistaalcanccedilava Havia uma porccedilatildeo de outras coisas que ela teria gos-tado de saber e suas irmatildes natildeo eram capazes de responder a todasas suas curiosidades Por isso foi visitar sua velha avoacute que sabia

tudo sobre o mundo superior como chamava tatildeo apropriadamenteos paiacuteses acima do marmdash Quando natildeo se afogam ndash perguntou a Pequena Sereia ndash os

seres humanos podem continuar vivendo para sempre Natildeo morremcomo noacutes aqui embaixo no mar

mdash Sim sim ndash respondeu a velha senhora mdash Eles tambeacutem teratildeoque morrer e seu tempo de vida eacute mais curto que o nosso Noacutes por

vezes alcanccedilamos a idade de trezentos anos mas quando nossa vidaaqui chega ao fim simplesmente nos transformamos em espuma naaacutegua Aqui natildeo temos tuacutemulos daqueles que amamos Natildeo temosuma alma imortal e nunca teremos outra vida Noacutes somos como o junco verde Uma vez cortado cessa de crescer Jaacute os seres humanostecircm almas que vivem para sempre mesmo depois que seus corpos se

transformam em poacute Elas voam atraveacutes do ar puro ateacute chegarem agraves es-trelas brilhantes Assim como subimos agrave flor da aacutegua e contemplamosas terras dos seres humanos eles atingem belos reinos desconhecidosndash regiotildees que nunca conheceremos

mdash Por que natildeo podemos ter uma alma imortal ndash a PequenaSereia perguntou angustiada mdash Eu daria de boa vontade todos ostrezentos anos que tenho para viver se pudesse me tornar uma humana

por apenas um dia e participar do mundo celestialmdash Vocecirc natildeo deveria se preocupar com isso Somos muito mais

felizes e vivemos melhor aqui do que os seres humanos laacute em cimamdash Entatildeo estou condenada a morrer e flutuar como espuma do

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42 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mar a nunca mais ouvir a muacutesica das ondas ou ver as lindas flores eo sol vermelho Natildeo haacute nada que eu possa fazer para conquistar umaalma imortal

mdash Natildeo ndash disse a velha senhora mdash Soacute se um ser humano aamasse tanto que vocecirc importasse mais para ele que pai e matildee Se elea amasse de todo o coraccedilatildeo e deixasse o padre pocircr a matildeo direita sobre a

sua como uma promessa de ser fiel e verdadeiro por toda a eternidadeNesse caso a alma dele deslizaria para dentro do seu corpo e vocecirctambeacutem obteria uma parcela da felicidade humana Ele lhe daria umaalma e no entanto conservaria a dele proacuteprio Mas isso jamais acon-teceraacute Sua cauda de peixe que achamos tatildeo bonita parece repulsivaagrave gente da terra Sabem tatildeo pouco sobre isso que acreditam realmenteque as duas desajeitadas escoras que chamam de pernas satildeo belas

A Pequena Sereia suspirou e olhou melancolicamente para suacauda de peixe

mdash Devemos ficar satisfeitas com o que temos ndash disse a velhasenhora mdash Vamos danccedilar e nos alegrar durante os trezentos anos

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43A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

de nossa existecircncia isso eacute realmente muito tempo Depois da mortepoderemos descansar e pocircr o sono em dia Hoje teremos um baile

na corteNatildeo se pode fazer ideia na terra de tal magnificecircncia As paredes

e o teto do grande salatildeo do baile eram feitos de cristal espesso mastransparente Centenas de conchas enormes rosa-vermelho e verde--relva dispostas de cada lado cada uma com uma chama azul queiluminava todo o salatildeo e luzindo atraveacutes das paredes iluminavamtambeacutem o mar Inuacutemeros peixes grandes e pequenos podiam servistos nadando em direccedilatildeo agraves paredes de cristal As escamas de algunsfulgiam com um brilho puacuterpura-avermelhado e as de outros comoprata e ouro No meio do salatildeo corria um grande rio nos quais mo-luscos e sereias danccedilavam ao seu proacuteprio som melodioso

Nenhum ser humano tem voz tatildeo encantadora Ningueacutem can-tava mais docemente que a Pequena Sereia e todos a aplaudiram

Por um instante houve alegria em seu coraccedilatildeo pois ela sabia quetinha a voz mais bela em terra ou no mar Mas em seguida seuspensamentos se voltaram para o mundo acima dela Natildeo conseguiaesquecer o belo priacutencipe e a grande dor de natildeo ter a alma imortalque ele possuiacutea Assim se arrastou para fora do palaacutecio do pai eenquanto todos laacute dentro cantavam e se divertiam foi se sentar emseu jardinzinho desolada

De repente ela ouviu o som de uma buzina ecoando atraveacutes daaacutegua e pensou

mdash Ah laacute vai ele navegando laacute em cima Aquele a quem amomais do que meu pai ou minha matildee ele que estaacute sempre em meuspensamentos e em cujas matildeos eu confiaria alegremente minha fe-licidade Arriscaria qualquer coisa para conquistaacute-lo e a uma almaimortal Enquanto minhas irmatildes danccedilam no castelo de meu pai vou

agrave procura da feiticeira do mar Sempre tive um terriacutevel medo delamas talvez possa me ajudar e me dizer o que fazer

E assim a Pequena Sereia deixou seu jardim e partiu paraonde a feiticeira morava no lado mais distante dos redemoinhos

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44 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

espumantes Nunca estivera laacute antes Naquele lugar natildeo cresciamflores nem relva do mar Natildeo havia nada aleacutem do fundo arenoso ecinzento que se estendia ateacute os turbilhotildees onde a aacutegua rodopiavacom o estrondo da roda de moinho e sugava para as profundezastudo que podia Tinha de passar pelo meio desses furiosos torveli-nhos para chegar ateacute a feiticeira do mar Por um longo trecho natildeo

havia outro caminho senatildeo pela lama quente e borbulhante ndash que afeiticeira chamava de seu charco

A casa da feiticeira ficava atraacutes do charco no meio de uma flo-resta quimeacuterica Todas as aacutervores e arbustos eram verdadeiros poacuteliposmetade animal e metade vegetal Pareciam serpentes de cem cabeccedilascrescendo do solo Tinham galhos que pareciam braccedilos longos e vis-cosos com dedos tatildeo flexiacuteveis que se assemelhavam a vermes Noacute por

noacute da raiz ateacute a ponta estavam constantemente em movimento eagarravam hermeticamente qualquer coisa que pudessem aproveitardo mar e natildeo soltavam mais A Pequena Sereia ficou apavorada e sedeteve agrave beira da mata Seu coraccedilatildeo palpitava de medo e ela esteve

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prestes a desistir Mas entatildeo lembrou-se do priacutencipe e da alma hu-mana e retomou sua coragem Ela prendeu em torno da cabeccedila seu

longo e esvoaccedilante cabelo para que os poacutelipos natildeo a pudessem agarrarDepois cruzou os braccedilos sobre o peito e disparou adiante como umpeixe lanccedilado na aacutegua no meio dos soacuterdidos poacutelipos que estendiamem sua direccedilatildeo seus braccedilos e dedos buliccedilosos Ela notou como cadaum deles havia agarrado algo e imobilizava firmemente com umacentena de pequenos braccedilos que pareciam aros de ferro Esqueletosbrancos de seres humanos que haviam perecido no mar e afundadonas aacuteguas profundas olhavam dos braccedilos dos poacutelipos Lemes e arcasde navios estavam fortemente agarrados em seus braccedilos juntamentecom esqueletos de animais terrestres e ndash o mais terriacutevel de tudo ndash umasereiazinha que eles haviam capturado e estrangulado

Chegou entatildeo a um grande charco lodoso onde enormes e cor-pulentas cobras-drsquoaacutegua ondeavam-se no lamaccedilal mostrando seus

horrendos ventres amarelo-esbranquiccedilado No meio do charco haviauma casa construiacuteda com os ossos de humanos naufragados Laacute es-tava a feiticeira do mar deixando um sapo se alimentar na sua bocaassim como as pessoas nutrem agraves vezes um canaacuterio com um torratildeo deaccediluacutecar Ela chamava as asquerosas cobras-drsquoaacutegua de seus pintinhos edeixava-as rastejar sobre seu peito

mdash Eu sei exatamente o que vocecirc deseja ndash disse a feiticeira do

mar mdash Como vocecirc eacute estuacutepida Mas vocecirc deve seguir seu caminhoque vai lhe trazer infortuacutenio minha linda princesa Vocecirc quer se li-vrar de sua cauda de peixe e no lugar ter um par de tocos para andarcomo um ser humano a fim de que o jovem priacutencipe se apaixone porvocecirc e lhe decirc uma alma imortal

E com isso a feiticeira soltou uma gargalhada tatildeo alta e maleacuteficaque o sapo e as cobras caiacuteram estatelados no chatildeo

mdash Vocecirc veio na hora certa ndash disse a feiticeira mdash Amanhatildequando o sol se levantar eu natildeo serei mais capaz de ajudaacute-la Voupreparar um elixir para vocecirc Teraacute de nadar ateacute a costa com ele antesdo nascer do sol sentar-se na praia e tomaacute-lo Sua cauda entatildeo se

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H A R R Y C L A R K E

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dividiraacute em duas e encolheraacute para se transformar naquilo que os sereshumanos chamam de ldquobelas pernasrdquo Mas vai doer Vocecirc sentiraacute como

se uma espada afiada a cortasse Todos que a virem diratildeo que vocecirc eacutea mais bela humana que jaacute encontraram Manteraacute seus movimentosgraciosos nenhuma danccedilarina jamais deslizaraacute tatildeo suavemente mascada passo que der a faraacute sentir como se estivesse pisando em umafaca afiada o bastante para fazer sangrar seus peacutes Se estiver dispostaa suportar tudo isso posso ajudaacute-la

mdash Sim ndash disse a Pequena Sereia com voz hesitante mas voltouseus pensamentos para o priacutencipe e ao precircmio de uma alma imortal

mdash Pense nisso com cuidado ndash alertou a feiticeira mdash Uma vez to-mada a forma de um ser humano nunca mais voltaraacute a ser uma sereiaVocecirc natildeo seraacute capaz de descer nadando ao encontro do palaacutecio de seupai e de suas irmatildes A uacutenica maneira de conseguir uma alma imortaleacute conquistando o amor do priacutencipe e fazer com que ele esqueccedila o pai

e a matildee por amor a vocecirc Ele deve tecirc-la sempre em seus pensamentose permitir que o padre una suas matildeos para que se tornem marido emulher Se o priacutencipe se casar com outra pessoa na manhatilde seguinteseu coraccedilatildeo se quebraraacute e vocecirc se tornaraacute espuma na crista das ondas

mdash Estou pronta ndash declarou a Pequena Sereia paacutelida comouma morta

mdash Mas teraacute que me recompensar ndash disse a feiticeira mdash Vocecirc natildeo

receberaacute minha ajuda sem nada em troca Vocecirc tem a mais formidaacutevelvoz entre todos que aqui habitam no fundo do mar Provavelmentepensa que encantaraacute o priacutencipe com ela mas teraacute que daacute-la para mimVou lhe exigir o que possui de melhor como pagamento por minhapoccedilatildeo Vocecirc entende tenho de misturar nela um pouco do meu proacutepriosangue para que o elixir seja afiado como uma espada de dois gumes

mdash Mas se tirar a minha voz o que me restaraacute ndash perguntou a

Pequena Sereiamdash Sua encantadora figura ndash disse a feiticeira ndash seus movimentos

graciosos e seus olhos expressivos Com eles pode simplesmente fas-cinar um coraccedilatildeo humano Bem onde estaacute sua coragem Estire a

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liacutengua e deixe-me cortaacute-la fora como pagamento Depois receberaacutesua poderosa poccedilatildeo

mdash Assim seja ndash concordou a Pequena Sereia e a feiticeira pocircsseu caldeiratildeo no fogo para destilar a poccedilatildeo maacutegica

mdash Limpeza antes de tudo ndash ela disse enquanto esfregava o re-cipiente com um feixe de viacuteboras que tinha atado num grande noacute

Em seguida deu um talho no proacuteprio seio e deixou gotejar onegro sangue no caldeiratildeo O vapor que subiu criava formas estranhasassustadoras de se ver A feiticeira continuava a juntar coisas novas

dentro do caldeiratildeo e quando o elixir comeccedilou a ferver parecia umchoro de crocodilo Finalmente a poccedilatildeo maacutegica ficou pronta e eraexatamente cristalina como aacutegua

mdash Aiacute estaacute vocecirc ndash disse a feiticeira ao cortar a liacutengua da PequenaSereia que agora estava muda e natildeo conseguia falar e cantar

mdash Se os poacutelipos a apanharem quando vocecirc retornar pela mata

ndash orientou a feiticeira ndash basta jogar sobre eles uma uacutenica gota destapoccedilatildeo e os braccedilos e dedos deles seratildeo dilacerados em mil pedaccedilosPoreacutem a Pequena Sereia natildeo precisou disso Os poacutelipos se enco-

lheram aterrorizados quando avistaram a luzente poccedilatildeo em sua matildeocomo uma estrela cintilante E assim passou rapidamente pela matapelo charco e pelos atroadores redemoinhos

A Pequena Sereia pocircde contemplar o palaacutecio do pai As luzes do

salatildeo de baile estavam apagadas Certamente laacute estavam todos dor-mindo a essa altura Mas natildeo se atreveu ir vecirc-los pois agora estavamuda e prestes a deixaacute-los para sempre Ela sentiu como se seu coraccedilatildeofosse partir de tanta dor Entrou secretamente no jardim pegou umaflor dos leitos de cada uma das irmatildes soprou mil beijos em direccedilatildeodo palaacutecio e depois subiu agrave superfiacutecie atraveacutes das aacuteguas azul-escuras

O sol ainda natildeo despontara no horizonte quando ela avistou o

palaacutecio do priacutencipe e subiu os degraus de maacutermore A lua esplendialiacutempida e viacutevida A Pequena Sereia bebeu a acre poccedilatildeo e parecia queuma faca de dois gumes trespassava seu corpo delicado Ela desmaioue caiu morta

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49A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

E D M U N D D U L A C

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O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

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27 A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

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rosa-avermelhadas que eram como o sol laacute no alto e uma estaacutetuade maacutermore A estaacutetua era de um encantador rapaz esculpida em

pura pedra branca que havia descido ao fundo do mar depois de umnaufraacutegio Perto dela a princesinha havia plantado um salgueiro cor--de-rosa que cresceu esplendidamente e deixava sua fresca folhagemcobrir a estaacutetua ateacute o solo azul arenoso do oceano Sua sombra ga-nhava um matiz violeta e como os ramos nunca ficava parada Asraiacutezes e a copa da aacutervore pareciam estar sempre brincando tentandobeijar uma agrave outra

Natildeo havia nada de que as princesas gostassem mais do que ouvirsobre o mundo dos seres humanos acima do mar Sua vovozinha lhescontava tudo o que sabia sobre os navios e as cidades as pessoas e osanimais Uma coisa em especial as impressionava com sua belezasaber que as flores exalavam uma fragracircncia ndash natildeo havia nenhumano fundo do mar ndash e tambeacutem que as aacutervores na floresta eram verdes

e que os peixes que voavam nas aacutervores sabiam cantar tatildeo docementeque era um prazer ouvi-los A avoacute chamava os passarinhos de peixesDe outro modo as princesinhas do mar que nunca tinham visto umpaacutessaro natildeo a teriam compreendido

mdash Quando vocecircs completarem quinze anos ndash disse a avoacute ndashvamos deixaacute-las subir ateacute a superfiacutecie e se sentar nos rochedos agraveluz do luar para ver os grandes navios passarem Veratildeo florestas e

tambeacutem cidadesNo ano seguinte uma das irmatildes completaria quinze anos mas

as outras ndash bem cada uma era um ano mais nova que a outra demodo que a mais nova teria de esperar nada menos que cincos anospara subir das profundezas do mar para a superfiacutecie e ver como satildeoas coisas por aqui mas cada uma prometia contar agraves outras tudo quevisse e o que lhe parecia mais interessante naquela primeira visita

pois nunca estavam satisfeitas com o que a avoacute contava Havia umainfinidade de coisas sobre as quais ansiavam ouvir

Nenhuma das sereias era mais curiosa do que a caccedilula e eratambeacutem ela tatildeo quieta e pensativa a que tinha de suportar a mais

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30 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

longa espera Em muitas noites ela se postava agrave janela aberta e fitavaatraveacutes das aacuteguas azul-escuras os peixes sacudirem suas nadadeiras ecaudas Olhava bem para o alto e podia ver a lua e as estrelas emborasua luz fosse muito paacutelida ndash atraveacutes da aacutegua pareciam muito maioresque aos nossos olhos Se uma nuvem escura passava acima dela sabiaque era uma baleia que nadava sobre a sua cabeccedila ou um navio cheiode passageiros Aquelas pessoas nem sonhavam que uma sereiazinha

estendia suas matildeos brancas para o casco do navio que fendia as aacuteguas Assim que fez quinze anos a mais velha das princesas foi auto-

rizada a subir agrave superfiacutecie do oceano Quando voltou tinha dezenasde coisas para contar

mdash O mais delicioso ndash ela disse ndash foi ficar deitada em um bancode areia perto da praia numa noite de lua com o mar calmo Foipossiacutevel contemplar a grande cidade onde as luzes brilhavam como

milhares de estrelas Podia ouvir muacutesicas harmoniosas e o ruiacutedo decarros e pessoas Podia ver todas as torres das igrejas e ouvir os sinostocando ndash e exatamente por natildeo ter chegado perto de todas essas ma-ravilhas ansiava ainda mais por todas elas

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Oacute como a irmatilde caccedilulabebia aquelas palavras E mais

tarde agrave noite ficou junto agrave janelaaberta fitando atraveacutes das aacuteguasazul-escuras pensando na cidadegrande com seus ruiacutedos e luzes eateacute imaginou ouvir os sinos dasigrejas tocando para ela

No ano seguinte a segundairmatilde teve permissatildeo para subirmar acima e nadar aonde quisesseChegou agrave superfiacutecie bem na horado pocircr do sol

mdash Foi a visatildeo mais bela detodas ndash ela contou mdash Todo o

ceacuteu parecia ouro e as nuvensndash bem ela simplesmente natildeoconseguia descrever como eramlindas ao passar em tons de car-mesim e violeta sobre sua cabeccedila

Mais veloz ainda que as nu-

vens um bando de cisnes selvagensvoou como um longo e branco veacuteusobre a aacutegua rumo ao sol poenteEla nadou nessa direccedilatildeo mas o solse pocircs e sua luz roacutesea foi engolidapelo mar e pela nuvem

Depois chegou a vez da terceira irmatilde Era a mais ousada de todas

e nadou ateacute um largo rio que desaguava no mar Avistou admiraacuteveis co-linas verdes cobertas com videiras castelos e fazendas situados no meiode florestas soberbas e imensas ouviu o canto dos paacutessaros e o sol eratatildeo quente que teve de mergulhar muitas vezes na aacutegua para refrescar o

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rosto ardente Numa pequena enseada topou com um bando de crian-cinhas humanas divertindo-se completamente nuas na aacutegua

Quis brincar com elas mas ficaram aterrorizadas e fugiram De-pois um animalzinho preto foi ateacute a aacutegua Era um cachorro mas nuncatinha visto um O animal latiu tanto que ela ficou assustada e nadoupara o mar aberto Poreacutem disse que jamais esqueceria a magniacutefica flo-resta as colinas verdes e as lindas criancinhas que sabiam nadar emboranatildeo possuiacutessem caudas

A quarta irmatilde natildeo foi tatildeo ousada Preferiu ficar no meio do marselvagem onde a vista se perdia ao longe todavia foi exatamente issoela lhes contou que tornou sua visita tatildeo maravilhosa Podia ver pormilhas e milhas ao seu redor e o ceacuteu se arredondava em volta da aacuteguacomo um grande sino de vidro Vira navios mas a uma distacircncia tatildeogrande que pareciam gaivotas Os golfinhos brincavam nas ondas eas baleias esguichavam aacutegua tatildeo poderosamente de suas narinas que

pareciam estar cercadas por uma centena de chafarizesE agora era a vez da quinta irmatilde Como seu aniversaacuterio caiacutea no

inverno ela viu coisas que as outras natildeo tinham visto da primeira vezO mar perdera sua cor azul e adquirira um tom esverdeado e sobreele flutuavam enormes icebergs

mdash Cada um parecia uma peacuterola ndash ela disse ndash mas eram mais

altos que as torres de igrejas construiacutedas pelos seres humanos Apareciam nas formas mais fantaacutesticas e brilhavam como dia-mantes Ela se sentara num dos maiores icebergs e todos os naviospareciam ter medo dele pois passavam navegando rapidamente emuito distante do lugar onde ela estava sentada com o vento grace- jando seus longos cabelos

Mais tarde naquela noite uma tempestade cobriu o ceacuteu de nu-

vens Trovotildees estrondeavam relacircmpagos chispavam e as ondas es-curas elevavam os enormes blocos de gelo tatildeo alto que os tiravam daaacutegua fazendo-os reluzir na intensa luz vermelha Todos os naviosrecolheram as velas e em meio ao horror e ao alarme geral a sereia

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permaneceu sentada tranquilamente no iceberg flutuante vendo osrelacircmpagos azuis ziguezaguearem no mar resplandecente

Na primeira vez que as irmatildes subiram agrave superfiacutecie ficaram en-cantadas de ver tantas coisas novas e bonitas Poreacutem quando ficarammais velhas e podiam emergir sempre que queriam mostravam-semenos entusiasmadas Sentiam saudade do fundo do mar E depoisde um mecircs diziam que afinal de contas era muito mais agradaacutevel laacuteembaixo ndash era tatildeo reconfortante estar em casa No entanto muitasvezes ao entardecer as cinco irmatildes davam-se os braccedilos e flutuavam juntas Suas vozes eram encantadoras como nenhuma criatura hu-mana poderia possuir

Antes da aproximaccedilatildeo de uma tempestade quando esperavam onaufraacutegio de um navio as irmatildes costumavam nadar diante do barcoe cantar docemente as deliacutecias das profundezas do mar Diziam aosmarinheiros para natildeo terem medo de mergulhar ateacute o fundo mas eles

nunca entendiam suas canccedilotildees Pensavam estar ouvindo os uivos datempestade e nunca viam as maravilhas que as sereias prometiam Eassim que o navio afundava os homens se afogavam e somente seuscadaacuteveres chegavam ateacute o palaacutecio do rei do mar

Quando as irmatildes subiam pela aacutegua de braccedilos dados a caccedilulasempre ficava para traacutes sozinha acompanhando-as com os olhos Teriachorado mas as sereias natildeo tecircm laacutegrimas e sofrem muito mais que noacutes

mdash Oacute Se pelo menos eu tivesse quinze anos ndash ela dizia mdash Seique vou gostar muito do mundo laacute de cima e de todas as pessoas quevivem nele

Entatildeo finalmente ela fez quinze anosmdash Bem agora vocecirc logo escaparaacute das nossas matildeos ndash disse a velha

rainha sua avoacute mdash Venha deixe-me vesti-la como suas outras irmatildesE pocircs no seu cabelo uma coroa de liacuterios brancos em que cada

peacutetala de flor era metade de uma peacuterola Depois a velha senhoramandou trazer oito grandes ostras para prender firmemente na caudada princesa e mostrar sua alta posiccedilatildeo

mdash Ai Isso doacutei ndash disse a Pequena Sereia

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mdash Sim a beleza tem seu preccedilo ndash respondeu a avoacuteComo a Pequena Sereia teria gostado de se livrar de todos

aqueles adornos e pocircr de lado aquela pesada coroa As flores verme-lhas de seu jardim assentavam-lhe muito melhor mas natildeo ousoufazer nenhuma alteraccedilatildeo

mdash Adeus ndash disse ao subir pela aacutegua tatildeo leve e liacutempida quantoas bolhas se elevam agrave superfiacutecie

O sol acabara de se pocircr quando ela ergueu a cabeccedila sobre as

ondas mas as nuvens ainda estavam tingidas de carmesim e ouroNo alto do ceacuteu paacutelido e rosado a estrela vespertina iluminava clarae viacutevida O ar estava ameno e fresco e o mar apraziacutevel Um grandenavio de trecircs mastros estava agrave deriva na aacutegua com apenas uma velaiccedilada porque o vento estava brando Os marinheiros estavam refes-telados no cordame ou nas jardas Havia muacutesica e canto a bordo equando escureceu uma centena de lanternas foi acesa Com suas

muitas cores tinha-se a impressatildeo de que as bandeiras de todas asnaccedilotildees flutuavam no ar

A Pequena Sereia nadou ateacute a escotilha da cabine e cada vez queuma onda a levantava podia ver atraveacutes do vidro transparente umaquantidade de homens magnificamente trajados O mais belo delesera um jovem priacutencipe com grandes olhos escuros Natildeo tinha mais

de dezesseis anos Era seu aniversaacuterio e era por isso que havia tantoalvoroccedilo Quando o jovem priacutencipe saiu para o conveacutes onde os mari-nheiros estavam danccedilando mais de uma centena de foguetes zuniramrumo ao ceacuteu num esplendor tornando o ceacuteu tatildeo brilhante quanto odia A Pequena Sereia ficou tatildeo assustada que mergulhou escondendo--se sob a aacutegua mas rapidamente pocircs a cabeccedila para fora de novo Eveja Parecia que as estrelas laacute do ceacuteu estavam caindo sobre ela Nunca

vira fogos de artifiacutecios Grandes soacuteis rodopiavam ao seu redor lindospeixes de fogo refulgentes lanccedilavam-se no ar azul e todo esse brilhose refletia nas aacuteguas claras e calmas embaixo O proacuteprio navio estavatatildeo deslumbrantemente iluminado que se podiam ver natildeo soacute todas as

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pessoas que laacute estavam como tambeacutem a corda mais fina Que eleganteparecia o jovem priacutencipe quando apertava as matildeos dos marinheiros

Ele ria e sorria enquanto a muacutesica soava pelo ar da noite agradaacutevel Jaacute era muito tarde mas a Pequena Sereia natildeo conseguia tirar os

olhos do navio ou do belo priacutencipe As lanternas coloridas se apagaramos foguetes natildeo mais subiam no ar e o canhatildeo cessara de dar tirosContudo o mar estava inquieto e era possiacutevel ouvir um som queixososob as ondas Ainda assim a Pequena Sereia continuou na aacutegua balan-ccedilando-se para cima e para baixo para olhar a cabine O navio ganhouvelocidade e uma apoacutes outra as suas velas foram desferidas As ondascresciam nuvens negras se agrupavam no ceacuteu e relacircmpagos faiscavamagrave distacircncia Uma terriacutevel tempestade estava se formando Por isso osmarinheiros recolheram as velas enquanto o vento sacudia o grandenavio e o arrastava pelo mar impetuoso As ondas subiam mais e maisaltas ateacute se assemelharem a enormes montanhas ameaccedilando derrubar

o mastro Ainda assim o navio mergulhava como um cisne entre elase voltava a subir em cristas sublimes e espumosas A Pequena Sereiapensou que devia ser divertido para um navio navegar daquele jeitomas a tripulaccedilatildeo pensava diferente O barco gemia e rangia suas pran-chas soacutelidas rompiam-se sob as violentas pancadas do mar o mastropartiu-se ruidosamente em dois como um junco O navio inclinouquando a aacutegua se precipitou no poratildeo

De repente a Pequena Sereia percebeu que o navio estava emperigo Ela mesma tinha de ter cuidado com as vigas e os destroccedilosagrave deriva Em certos momentos ficava tatildeo escuro que natildeo conseguiaenxergar nada mas entatildeo o claratildeo de um relacircmpago iluminou todosa bordo Agora era cada por um si Ela estava agrave procura do jovem priacuten-cipe e no momento em que o navio se partia viu-o desaparecer nasprofundezas do mar Por um instante ficou bastante entusiasmada

pois pensou que agora ele poderia viver no seu mundo Mas logo selembrou que os seres humanos natildeo vivem debaixo drsquoaacutegua e que ele soacutechegaria morto ao palaacutecio de seu pai Natildeo natildeo ele natildeo podia morrer Assim ela nadou entre os destroccedilos que o mar arrastava indiferente

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ao perigo de ser esmagada Mergulhava profundamente e emergia dasondas e finalmente encontrou o jovem priacutencipe Ele mal conseguianadar no mar tempestuoso Seus membros fraquejavam seus belosolhos estavam fechados e certamente teria se afogado se a PequenaSereia natildeo tivesse ido a seu socorro Ela segurou-lhe a cabeccedila acimada aacutegua e abandonou-se com ele aos caprichos das ondas

Quando amanheceu a tempestade cessara e natildeo havia rastro donavio O sol despontou da aacutegua vermelho e resplandecente e pareceudevolver a cor agraves faces do priacutencipe mas os olhos dele permaneciam fe-chados A sereia beijou-lhe a fronte e ajeitou-lhe para traacutes o cabelo mo-lhado Aos seus olhos ele parecia a estaacutetua de maacutermore que tinha em seu jardinzinho Beijou-o de novo e fez um pedido para que ele pudesse viver

Logo a sereia viu diante de si terra firme com suas majestosas

montanhas azuis no alto das quais brilhava a branca neve parecendocisnes aninhados Perto da costa havia adoraacuteveis florestas verdes e junto a uma delas erguia-se um preacutedio alto se era uma igreja ou umconvento ela natildeo sabia dizer Limoeiros e laranjeiras cresciam no

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jardim e ao lado da porta havia trecircs altas palmeiras A pequena baiacutease formava nesse ponto e a aacutegua era plenamente calma embora muito

profunda A sereia nadou com o belo priacutencipe ateacute a praia coberta defina areia branca Ali colocou-o sob o sol quente fazendo um traves-seiro de areia para sua cabeccedila

Sinos soaram do preacutedio branco e vaacuterias moccedilas apareceram no jardim A Pequena Sereia afastou-se nadando para bem longe dapraia e escondeu-se atraacutes de uma pedra grande que se elevava acimada aacutegua Cobriu o cabelo e o peito com espuma do mar para que nin-gueacutem pudesse vecirc-la Depois ficou espiando para ver quem ajudaria opobre priacutencipe

Natildeo demorou muito e surgiu uma jovem Pareceu muito assus-tada mas soacute por um instante e correu para buscar ajuda A sereia viuo priacutencipe voltar a si e ele sorriu para todos ao seu redor Poreacutem natildeohavia nenhum sorriso para ela pois ele natildeo tinha ideia de quem o sal-

vara Depois que foi levado para o preacutedio a Pequena Sereia se sentiatatildeo infeliz que mergulhou de volta para o palaacutecio do paiEla sempre fora silenciosa e pensativa mas agora estava mais do

que nunca Suas irmatildes lhe perguntaram o que vira durante sua pri-meira visita agrave superfiacutecie mas ela natildeo lhes contava nada Em muitasmanhatildes e entardeceres subia ateacute o local onde deixara o priacutencipe Viuas frutas do jardim amadurecerem e observou-as serem colhidas Viu

a neve derreter nos picos Contudo nunca via o priacutencipe e por issosempre voltava para casa ainda mais cheia de tristeza do que antesSeu uacutenico consolo era ficar em seu jardinzinho com os braccedilos emtorno da estaacutetua de maacutermore tatildeo parecida com o priacutencipe Nuncamais cuidou das suas flores que se espalhavam selvagemente ao longodos caminhos entrelaccedilando seus longos galhos nos ramos das aacutervoresateacute obscurecer tudo

Por fim ela natildeo conseguiu mais guardar aquilo consigo e contoutudo a uma de suas irmatildes Logo as outras ficaram sabendo mas nin-gueacutem mais exceto algumas outras sereias que natildeo diriam nada a nin-gueacutem a natildeo ser agraves suas melhores amigas Uma delas foi capaz de lhe

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dar notiacutecias sobre o priacutencipe Ela tambeacutem vira os festejos realizados abordo e disse mais sobre o priacutencipe e a localizaccedilatildeo de seu reino

mdash Venha irmatildezinha ndash disseram as outras princesas E com osbraccedilos nos ombros uma das outras subiram em uma longa fila ateacute asuperfiacutecie bem diante do lugar onde se erguia o castelo do priacutencipe

O castelo construiacutedo de uma pedra amarela e luzidia tinhalongas escadarias de maacutermore sendo que um dos degraus levava di-reto para o mar Esplecircndidas cuacutepulas douradas elevavam-se do teto eentre as colunas que cercavam toda a construccedilatildeo havia esculturas demaacutermore que pareciam vivas Atraveacutes do vidro transparente das altas janelas era possiacutevel ver magniacuteficos aposentos ornados com suntuosascortinas de seda e tapeccedilarias As paredes eram cobertas com enormespinturas e era um prazer contemplaacute-las No centro do maior salatildeohavia uma fonte que lanccedilava seus jorros espumantes ateacute a cuacutepula devidro do teto atraveacutes do qual o sol brilhava na aacutegua e nas belas plantas

que cresciam ali Agora que sabia onde o priacutencipe vivia passava muitos pores dosol e muitas noites naquele lugar Nadava ateacute muito mais perto dacosta do que as outras ousavam Chegou a avanccedilar pelo estreito canalpara ir ateacute a varanda de maacutermore que projetava uma longa sombrasobre a aacutegua Ali ela se sentava e observava o jovem priacutencipe que pen-sava estar completamente soacute ao claratildeo da lua

Muitas vezes agrave noite a Pequena Sereia o via sair ao mar em seuesplecircndido barco com bandeiras hasteadas ao som de muacutesica harmo-niosa Espiava do meio dos juncos verdes e quando o vento levantavao longo veacuteu branco e prateado do seu cabelo e pessoas a viam ima-ginavam apenas que era um cisne estendendo as asas

Em muitas noites quando os pescadores saiam em alto mar comsuas tochas ela os ouvia elogiar o jovem priacutencipe e suas palavras a dei-

xavam ainda mais feliz por lhe ter salvado a vida E ela recordava comoaninhara a cabeccedila dele em seu peito e com que carinho o beijara Masele natildeo sabia nada disso e nunca sequer sonhara que ela existia

A Pequena Sereia foi se afeiccediloando mais e mais aos seres

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humanos e ansiava profundamente pela companhia deles Omundo em que viviam parecia tatildeo mais vasto que o seu proacuteprio

Veja eles podiam navegar o oceano em navios e escalar montanhasiacutengremes bem acima das nuvens E as terras que possuiacuteam suasflorestas e seus campos se estendiam muito aleacutem de onde sua vistaalcanccedilava Havia uma porccedilatildeo de outras coisas que ela teria gos-tado de saber e suas irmatildes natildeo eram capazes de responder a todasas suas curiosidades Por isso foi visitar sua velha avoacute que sabia

tudo sobre o mundo superior como chamava tatildeo apropriadamenteos paiacuteses acima do marmdash Quando natildeo se afogam ndash perguntou a Pequena Sereia ndash os

seres humanos podem continuar vivendo para sempre Natildeo morremcomo noacutes aqui embaixo no mar

mdash Sim sim ndash respondeu a velha senhora mdash Eles tambeacutem teratildeoque morrer e seu tempo de vida eacute mais curto que o nosso Noacutes por

vezes alcanccedilamos a idade de trezentos anos mas quando nossa vidaaqui chega ao fim simplesmente nos transformamos em espuma naaacutegua Aqui natildeo temos tuacutemulos daqueles que amamos Natildeo temosuma alma imortal e nunca teremos outra vida Noacutes somos como o junco verde Uma vez cortado cessa de crescer Jaacute os seres humanostecircm almas que vivem para sempre mesmo depois que seus corpos se

transformam em poacute Elas voam atraveacutes do ar puro ateacute chegarem agraves es-trelas brilhantes Assim como subimos agrave flor da aacutegua e contemplamosas terras dos seres humanos eles atingem belos reinos desconhecidosndash regiotildees que nunca conheceremos

mdash Por que natildeo podemos ter uma alma imortal ndash a PequenaSereia perguntou angustiada mdash Eu daria de boa vontade todos ostrezentos anos que tenho para viver se pudesse me tornar uma humana

por apenas um dia e participar do mundo celestialmdash Vocecirc natildeo deveria se preocupar com isso Somos muito mais

felizes e vivemos melhor aqui do que os seres humanos laacute em cimamdash Entatildeo estou condenada a morrer e flutuar como espuma do

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42 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mar a nunca mais ouvir a muacutesica das ondas ou ver as lindas flores eo sol vermelho Natildeo haacute nada que eu possa fazer para conquistar umaalma imortal

mdash Natildeo ndash disse a velha senhora mdash Soacute se um ser humano aamasse tanto que vocecirc importasse mais para ele que pai e matildee Se elea amasse de todo o coraccedilatildeo e deixasse o padre pocircr a matildeo direita sobre a

sua como uma promessa de ser fiel e verdadeiro por toda a eternidadeNesse caso a alma dele deslizaria para dentro do seu corpo e vocecirctambeacutem obteria uma parcela da felicidade humana Ele lhe daria umaalma e no entanto conservaria a dele proacuteprio Mas isso jamais acon-teceraacute Sua cauda de peixe que achamos tatildeo bonita parece repulsivaagrave gente da terra Sabem tatildeo pouco sobre isso que acreditam realmenteque as duas desajeitadas escoras que chamam de pernas satildeo belas

A Pequena Sereia suspirou e olhou melancolicamente para suacauda de peixe

mdash Devemos ficar satisfeitas com o que temos ndash disse a velhasenhora mdash Vamos danccedilar e nos alegrar durante os trezentos anos

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de nossa existecircncia isso eacute realmente muito tempo Depois da mortepoderemos descansar e pocircr o sono em dia Hoje teremos um baile

na corteNatildeo se pode fazer ideia na terra de tal magnificecircncia As paredes

e o teto do grande salatildeo do baile eram feitos de cristal espesso mastransparente Centenas de conchas enormes rosa-vermelho e verde--relva dispostas de cada lado cada uma com uma chama azul queiluminava todo o salatildeo e luzindo atraveacutes das paredes iluminavamtambeacutem o mar Inuacutemeros peixes grandes e pequenos podiam servistos nadando em direccedilatildeo agraves paredes de cristal As escamas de algunsfulgiam com um brilho puacuterpura-avermelhado e as de outros comoprata e ouro No meio do salatildeo corria um grande rio nos quais mo-luscos e sereias danccedilavam ao seu proacuteprio som melodioso

Nenhum ser humano tem voz tatildeo encantadora Ningueacutem can-tava mais docemente que a Pequena Sereia e todos a aplaudiram

Por um instante houve alegria em seu coraccedilatildeo pois ela sabia quetinha a voz mais bela em terra ou no mar Mas em seguida seuspensamentos se voltaram para o mundo acima dela Natildeo conseguiaesquecer o belo priacutencipe e a grande dor de natildeo ter a alma imortalque ele possuiacutea Assim se arrastou para fora do palaacutecio do pai eenquanto todos laacute dentro cantavam e se divertiam foi se sentar emseu jardinzinho desolada

De repente ela ouviu o som de uma buzina ecoando atraveacutes daaacutegua e pensou

mdash Ah laacute vai ele navegando laacute em cima Aquele a quem amomais do que meu pai ou minha matildee ele que estaacute sempre em meuspensamentos e em cujas matildeos eu confiaria alegremente minha fe-licidade Arriscaria qualquer coisa para conquistaacute-lo e a uma almaimortal Enquanto minhas irmatildes danccedilam no castelo de meu pai vou

agrave procura da feiticeira do mar Sempre tive um terriacutevel medo delamas talvez possa me ajudar e me dizer o que fazer

E assim a Pequena Sereia deixou seu jardim e partiu paraonde a feiticeira morava no lado mais distante dos redemoinhos

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espumantes Nunca estivera laacute antes Naquele lugar natildeo cresciamflores nem relva do mar Natildeo havia nada aleacutem do fundo arenoso ecinzento que se estendia ateacute os turbilhotildees onde a aacutegua rodopiavacom o estrondo da roda de moinho e sugava para as profundezastudo que podia Tinha de passar pelo meio desses furiosos torveli-nhos para chegar ateacute a feiticeira do mar Por um longo trecho natildeo

havia outro caminho senatildeo pela lama quente e borbulhante ndash que afeiticeira chamava de seu charco

A casa da feiticeira ficava atraacutes do charco no meio de uma flo-resta quimeacuterica Todas as aacutervores e arbustos eram verdadeiros poacuteliposmetade animal e metade vegetal Pareciam serpentes de cem cabeccedilascrescendo do solo Tinham galhos que pareciam braccedilos longos e vis-cosos com dedos tatildeo flexiacuteveis que se assemelhavam a vermes Noacute por

noacute da raiz ateacute a ponta estavam constantemente em movimento eagarravam hermeticamente qualquer coisa que pudessem aproveitardo mar e natildeo soltavam mais A Pequena Sereia ficou apavorada e sedeteve agrave beira da mata Seu coraccedilatildeo palpitava de medo e ela esteve

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prestes a desistir Mas entatildeo lembrou-se do priacutencipe e da alma hu-mana e retomou sua coragem Ela prendeu em torno da cabeccedila seu

longo e esvoaccedilante cabelo para que os poacutelipos natildeo a pudessem agarrarDepois cruzou os braccedilos sobre o peito e disparou adiante como umpeixe lanccedilado na aacutegua no meio dos soacuterdidos poacutelipos que estendiamem sua direccedilatildeo seus braccedilos e dedos buliccedilosos Ela notou como cadaum deles havia agarrado algo e imobilizava firmemente com umacentena de pequenos braccedilos que pareciam aros de ferro Esqueletosbrancos de seres humanos que haviam perecido no mar e afundadonas aacuteguas profundas olhavam dos braccedilos dos poacutelipos Lemes e arcasde navios estavam fortemente agarrados em seus braccedilos juntamentecom esqueletos de animais terrestres e ndash o mais terriacutevel de tudo ndash umasereiazinha que eles haviam capturado e estrangulado

Chegou entatildeo a um grande charco lodoso onde enormes e cor-pulentas cobras-drsquoaacutegua ondeavam-se no lamaccedilal mostrando seus

horrendos ventres amarelo-esbranquiccedilado No meio do charco haviauma casa construiacuteda com os ossos de humanos naufragados Laacute es-tava a feiticeira do mar deixando um sapo se alimentar na sua bocaassim como as pessoas nutrem agraves vezes um canaacuterio com um torratildeo deaccediluacutecar Ela chamava as asquerosas cobras-drsquoaacutegua de seus pintinhos edeixava-as rastejar sobre seu peito

mdash Eu sei exatamente o que vocecirc deseja ndash disse a feiticeira do

mar mdash Como vocecirc eacute estuacutepida Mas vocecirc deve seguir seu caminhoque vai lhe trazer infortuacutenio minha linda princesa Vocecirc quer se li-vrar de sua cauda de peixe e no lugar ter um par de tocos para andarcomo um ser humano a fim de que o jovem priacutencipe se apaixone porvocecirc e lhe decirc uma alma imortal

E com isso a feiticeira soltou uma gargalhada tatildeo alta e maleacuteficaque o sapo e as cobras caiacuteram estatelados no chatildeo

mdash Vocecirc veio na hora certa ndash disse a feiticeira mdash Amanhatildequando o sol se levantar eu natildeo serei mais capaz de ajudaacute-la Voupreparar um elixir para vocecirc Teraacute de nadar ateacute a costa com ele antesdo nascer do sol sentar-se na praia e tomaacute-lo Sua cauda entatildeo se

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46 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

H A R R Y C L A R K E

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47 A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

dividiraacute em duas e encolheraacute para se transformar naquilo que os sereshumanos chamam de ldquobelas pernasrdquo Mas vai doer Vocecirc sentiraacute como

se uma espada afiada a cortasse Todos que a virem diratildeo que vocecirc eacutea mais bela humana que jaacute encontraram Manteraacute seus movimentosgraciosos nenhuma danccedilarina jamais deslizaraacute tatildeo suavemente mascada passo que der a faraacute sentir como se estivesse pisando em umafaca afiada o bastante para fazer sangrar seus peacutes Se estiver dispostaa suportar tudo isso posso ajudaacute-la

mdash Sim ndash disse a Pequena Sereia com voz hesitante mas voltouseus pensamentos para o priacutencipe e ao precircmio de uma alma imortal

mdash Pense nisso com cuidado ndash alertou a feiticeira mdash Uma vez to-mada a forma de um ser humano nunca mais voltaraacute a ser uma sereiaVocecirc natildeo seraacute capaz de descer nadando ao encontro do palaacutecio de seupai e de suas irmatildes A uacutenica maneira de conseguir uma alma imortaleacute conquistando o amor do priacutencipe e fazer com que ele esqueccedila o pai

e a matildee por amor a vocecirc Ele deve tecirc-la sempre em seus pensamentose permitir que o padre una suas matildeos para que se tornem marido emulher Se o priacutencipe se casar com outra pessoa na manhatilde seguinteseu coraccedilatildeo se quebraraacute e vocecirc se tornaraacute espuma na crista das ondas

mdash Estou pronta ndash declarou a Pequena Sereia paacutelida comouma morta

mdash Mas teraacute que me recompensar ndash disse a feiticeira mdash Vocecirc natildeo

receberaacute minha ajuda sem nada em troca Vocecirc tem a mais formidaacutevelvoz entre todos que aqui habitam no fundo do mar Provavelmentepensa que encantaraacute o priacutencipe com ela mas teraacute que daacute-la para mimVou lhe exigir o que possui de melhor como pagamento por minhapoccedilatildeo Vocecirc entende tenho de misturar nela um pouco do meu proacutepriosangue para que o elixir seja afiado como uma espada de dois gumes

mdash Mas se tirar a minha voz o que me restaraacute ndash perguntou a

Pequena Sereiamdash Sua encantadora figura ndash disse a feiticeira ndash seus movimentos

graciosos e seus olhos expressivos Com eles pode simplesmente fas-cinar um coraccedilatildeo humano Bem onde estaacute sua coragem Estire a

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48 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

liacutengua e deixe-me cortaacute-la fora como pagamento Depois receberaacutesua poderosa poccedilatildeo

mdash Assim seja ndash concordou a Pequena Sereia e a feiticeira pocircsseu caldeiratildeo no fogo para destilar a poccedilatildeo maacutegica

mdash Limpeza antes de tudo ndash ela disse enquanto esfregava o re-cipiente com um feixe de viacuteboras que tinha atado num grande noacute

Em seguida deu um talho no proacuteprio seio e deixou gotejar onegro sangue no caldeiratildeo O vapor que subiu criava formas estranhasassustadoras de se ver A feiticeira continuava a juntar coisas novas

dentro do caldeiratildeo e quando o elixir comeccedilou a ferver parecia umchoro de crocodilo Finalmente a poccedilatildeo maacutegica ficou pronta e eraexatamente cristalina como aacutegua

mdash Aiacute estaacute vocecirc ndash disse a feiticeira ao cortar a liacutengua da PequenaSereia que agora estava muda e natildeo conseguia falar e cantar

mdash Se os poacutelipos a apanharem quando vocecirc retornar pela mata

ndash orientou a feiticeira ndash basta jogar sobre eles uma uacutenica gota destapoccedilatildeo e os braccedilos e dedos deles seratildeo dilacerados em mil pedaccedilosPoreacutem a Pequena Sereia natildeo precisou disso Os poacutelipos se enco-

lheram aterrorizados quando avistaram a luzente poccedilatildeo em sua matildeocomo uma estrela cintilante E assim passou rapidamente pela matapelo charco e pelos atroadores redemoinhos

A Pequena Sereia pocircde contemplar o palaacutecio do pai As luzes do

salatildeo de baile estavam apagadas Certamente laacute estavam todos dor-mindo a essa altura Mas natildeo se atreveu ir vecirc-los pois agora estavamuda e prestes a deixaacute-los para sempre Ela sentiu como se seu coraccedilatildeofosse partir de tanta dor Entrou secretamente no jardim pegou umaflor dos leitos de cada uma das irmatildes soprou mil beijos em direccedilatildeodo palaacutecio e depois subiu agrave superfiacutecie atraveacutes das aacuteguas azul-escuras

O sol ainda natildeo despontara no horizonte quando ela avistou o

palaacutecio do priacutencipe e subiu os degraus de maacutermore A lua esplendialiacutempida e viacutevida A Pequena Sereia bebeu a acre poccedilatildeo e parecia queuma faca de dois gumes trespassava seu corpo delicado Ela desmaioue caiu morta

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E D M U N D D U L A C

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O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

H E L E N S T R A T T O N

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53A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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D U G A L D S T E W A R T WA L K E R 1 9 1 4

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seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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60 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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61A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

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28 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

rosa-avermelhadas que eram como o sol laacute no alto e uma estaacutetuade maacutermore A estaacutetua era de um encantador rapaz esculpida em

pura pedra branca que havia descido ao fundo do mar depois de umnaufraacutegio Perto dela a princesinha havia plantado um salgueiro cor--de-rosa que cresceu esplendidamente e deixava sua fresca folhagemcobrir a estaacutetua ateacute o solo azul arenoso do oceano Sua sombra ga-nhava um matiz violeta e como os ramos nunca ficava parada Asraiacutezes e a copa da aacutervore pareciam estar sempre brincando tentandobeijar uma agrave outra

Natildeo havia nada de que as princesas gostassem mais do que ouvirsobre o mundo dos seres humanos acima do mar Sua vovozinha lhescontava tudo o que sabia sobre os navios e as cidades as pessoas e osanimais Uma coisa em especial as impressionava com sua belezasaber que as flores exalavam uma fragracircncia ndash natildeo havia nenhumano fundo do mar ndash e tambeacutem que as aacutervores na floresta eram verdes

e que os peixes que voavam nas aacutervores sabiam cantar tatildeo docementeque era um prazer ouvi-los A avoacute chamava os passarinhos de peixesDe outro modo as princesinhas do mar que nunca tinham visto umpaacutessaro natildeo a teriam compreendido

mdash Quando vocecircs completarem quinze anos ndash disse a avoacute ndashvamos deixaacute-las subir ateacute a superfiacutecie e se sentar nos rochedos agraveluz do luar para ver os grandes navios passarem Veratildeo florestas e

tambeacutem cidadesNo ano seguinte uma das irmatildes completaria quinze anos mas

as outras ndash bem cada uma era um ano mais nova que a outra demodo que a mais nova teria de esperar nada menos que cincos anospara subir das profundezas do mar para a superfiacutecie e ver como satildeoas coisas por aqui mas cada uma prometia contar agraves outras tudo quevisse e o que lhe parecia mais interessante naquela primeira visita

pois nunca estavam satisfeitas com o que a avoacute contava Havia umainfinidade de coisas sobre as quais ansiavam ouvir

Nenhuma das sereias era mais curiosa do que a caccedilula e eratambeacutem ela tatildeo quieta e pensativa a que tinha de suportar a mais

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29A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

W H E A T H R O B I N S O N

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30 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

longa espera Em muitas noites ela se postava agrave janela aberta e fitavaatraveacutes das aacuteguas azul-escuras os peixes sacudirem suas nadadeiras ecaudas Olhava bem para o alto e podia ver a lua e as estrelas emborasua luz fosse muito paacutelida ndash atraveacutes da aacutegua pareciam muito maioresque aos nossos olhos Se uma nuvem escura passava acima dela sabiaque era uma baleia que nadava sobre a sua cabeccedila ou um navio cheiode passageiros Aquelas pessoas nem sonhavam que uma sereiazinha

estendia suas matildeos brancas para o casco do navio que fendia as aacuteguas Assim que fez quinze anos a mais velha das princesas foi auto-

rizada a subir agrave superfiacutecie do oceano Quando voltou tinha dezenasde coisas para contar

mdash O mais delicioso ndash ela disse ndash foi ficar deitada em um bancode areia perto da praia numa noite de lua com o mar calmo Foipossiacutevel contemplar a grande cidade onde as luzes brilhavam como

milhares de estrelas Podia ouvir muacutesicas harmoniosas e o ruiacutedo decarros e pessoas Podia ver todas as torres das igrejas e ouvir os sinostocando ndash e exatamente por natildeo ter chegado perto de todas essas ma-ravilhas ansiava ainda mais por todas elas

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31A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

Oacute como a irmatilde caccedilulabebia aquelas palavras E mais

tarde agrave noite ficou junto agrave janelaaberta fitando atraveacutes das aacuteguasazul-escuras pensando na cidadegrande com seus ruiacutedos e luzes eateacute imaginou ouvir os sinos dasigrejas tocando para ela

No ano seguinte a segundairmatilde teve permissatildeo para subirmar acima e nadar aonde quisesseChegou agrave superfiacutecie bem na horado pocircr do sol

mdash Foi a visatildeo mais bela detodas ndash ela contou mdash Todo o

ceacuteu parecia ouro e as nuvensndash bem ela simplesmente natildeoconseguia descrever como eramlindas ao passar em tons de car-mesim e violeta sobre sua cabeccedila

Mais veloz ainda que as nu-

vens um bando de cisnes selvagensvoou como um longo e branco veacuteusobre a aacutegua rumo ao sol poenteEla nadou nessa direccedilatildeo mas o solse pocircs e sua luz roacutesea foi engolidapelo mar e pela nuvem

Depois chegou a vez da terceira irmatilde Era a mais ousada de todas

e nadou ateacute um largo rio que desaguava no mar Avistou admiraacuteveis co-linas verdes cobertas com videiras castelos e fazendas situados no meiode florestas soberbas e imensas ouviu o canto dos paacutessaros e o sol eratatildeo quente que teve de mergulhar muitas vezes na aacutegua para refrescar o

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32 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

rosto ardente Numa pequena enseada topou com um bando de crian-cinhas humanas divertindo-se completamente nuas na aacutegua

Quis brincar com elas mas ficaram aterrorizadas e fugiram De-pois um animalzinho preto foi ateacute a aacutegua Era um cachorro mas nuncatinha visto um O animal latiu tanto que ela ficou assustada e nadoupara o mar aberto Poreacutem disse que jamais esqueceria a magniacutefica flo-resta as colinas verdes e as lindas criancinhas que sabiam nadar emboranatildeo possuiacutessem caudas

A quarta irmatilde natildeo foi tatildeo ousada Preferiu ficar no meio do marselvagem onde a vista se perdia ao longe todavia foi exatamente issoela lhes contou que tornou sua visita tatildeo maravilhosa Podia ver pormilhas e milhas ao seu redor e o ceacuteu se arredondava em volta da aacuteguacomo um grande sino de vidro Vira navios mas a uma distacircncia tatildeogrande que pareciam gaivotas Os golfinhos brincavam nas ondas eas baleias esguichavam aacutegua tatildeo poderosamente de suas narinas que

pareciam estar cercadas por uma centena de chafarizesE agora era a vez da quinta irmatilde Como seu aniversaacuterio caiacutea no

inverno ela viu coisas que as outras natildeo tinham visto da primeira vezO mar perdera sua cor azul e adquirira um tom esverdeado e sobreele flutuavam enormes icebergs

mdash Cada um parecia uma peacuterola ndash ela disse ndash mas eram mais

altos que as torres de igrejas construiacutedas pelos seres humanos Apareciam nas formas mais fantaacutesticas e brilhavam como dia-mantes Ela se sentara num dos maiores icebergs e todos os naviospareciam ter medo dele pois passavam navegando rapidamente emuito distante do lugar onde ela estava sentada com o vento grace- jando seus longos cabelos

Mais tarde naquela noite uma tempestade cobriu o ceacuteu de nu-

vens Trovotildees estrondeavam relacircmpagos chispavam e as ondas es-curas elevavam os enormes blocos de gelo tatildeo alto que os tiravam daaacutegua fazendo-os reluzir na intensa luz vermelha Todos os naviosrecolheram as velas e em meio ao horror e ao alarme geral a sereia

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permaneceu sentada tranquilamente no iceberg flutuante vendo osrelacircmpagos azuis ziguezaguearem no mar resplandecente

Na primeira vez que as irmatildes subiram agrave superfiacutecie ficaram en-cantadas de ver tantas coisas novas e bonitas Poreacutem quando ficarammais velhas e podiam emergir sempre que queriam mostravam-semenos entusiasmadas Sentiam saudade do fundo do mar E depoisde um mecircs diziam que afinal de contas era muito mais agradaacutevel laacuteembaixo ndash era tatildeo reconfortante estar em casa No entanto muitasvezes ao entardecer as cinco irmatildes davam-se os braccedilos e flutuavam juntas Suas vozes eram encantadoras como nenhuma criatura hu-mana poderia possuir

Antes da aproximaccedilatildeo de uma tempestade quando esperavam onaufraacutegio de um navio as irmatildes costumavam nadar diante do barcoe cantar docemente as deliacutecias das profundezas do mar Diziam aosmarinheiros para natildeo terem medo de mergulhar ateacute o fundo mas eles

nunca entendiam suas canccedilotildees Pensavam estar ouvindo os uivos datempestade e nunca viam as maravilhas que as sereias prometiam Eassim que o navio afundava os homens se afogavam e somente seuscadaacuteveres chegavam ateacute o palaacutecio do rei do mar

Quando as irmatildes subiam pela aacutegua de braccedilos dados a caccedilulasempre ficava para traacutes sozinha acompanhando-as com os olhos Teriachorado mas as sereias natildeo tecircm laacutegrimas e sofrem muito mais que noacutes

mdash Oacute Se pelo menos eu tivesse quinze anos ndash ela dizia mdash Seique vou gostar muito do mundo laacute de cima e de todas as pessoas quevivem nele

Entatildeo finalmente ela fez quinze anosmdash Bem agora vocecirc logo escaparaacute das nossas matildeos ndash disse a velha

rainha sua avoacute mdash Venha deixe-me vesti-la como suas outras irmatildesE pocircs no seu cabelo uma coroa de liacuterios brancos em que cada

peacutetala de flor era metade de uma peacuterola Depois a velha senhoramandou trazer oito grandes ostras para prender firmemente na caudada princesa e mostrar sua alta posiccedilatildeo

mdash Ai Isso doacutei ndash disse a Pequena Sereia

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mdash Sim a beleza tem seu preccedilo ndash respondeu a avoacuteComo a Pequena Sereia teria gostado de se livrar de todos

aqueles adornos e pocircr de lado aquela pesada coroa As flores verme-lhas de seu jardim assentavam-lhe muito melhor mas natildeo ousoufazer nenhuma alteraccedilatildeo

mdash Adeus ndash disse ao subir pela aacutegua tatildeo leve e liacutempida quantoas bolhas se elevam agrave superfiacutecie

O sol acabara de se pocircr quando ela ergueu a cabeccedila sobre as

ondas mas as nuvens ainda estavam tingidas de carmesim e ouroNo alto do ceacuteu paacutelido e rosado a estrela vespertina iluminava clarae viacutevida O ar estava ameno e fresco e o mar apraziacutevel Um grandenavio de trecircs mastros estava agrave deriva na aacutegua com apenas uma velaiccedilada porque o vento estava brando Os marinheiros estavam refes-telados no cordame ou nas jardas Havia muacutesica e canto a bordo equando escureceu uma centena de lanternas foi acesa Com suas

muitas cores tinha-se a impressatildeo de que as bandeiras de todas asnaccedilotildees flutuavam no ar

A Pequena Sereia nadou ateacute a escotilha da cabine e cada vez queuma onda a levantava podia ver atraveacutes do vidro transparente umaquantidade de homens magnificamente trajados O mais belo delesera um jovem priacutencipe com grandes olhos escuros Natildeo tinha mais

de dezesseis anos Era seu aniversaacuterio e era por isso que havia tantoalvoroccedilo Quando o jovem priacutencipe saiu para o conveacutes onde os mari-nheiros estavam danccedilando mais de uma centena de foguetes zuniramrumo ao ceacuteu num esplendor tornando o ceacuteu tatildeo brilhante quanto odia A Pequena Sereia ficou tatildeo assustada que mergulhou escondendo--se sob a aacutegua mas rapidamente pocircs a cabeccedila para fora de novo Eveja Parecia que as estrelas laacute do ceacuteu estavam caindo sobre ela Nunca

vira fogos de artifiacutecios Grandes soacuteis rodopiavam ao seu redor lindospeixes de fogo refulgentes lanccedilavam-se no ar azul e todo esse brilhose refletia nas aacuteguas claras e calmas embaixo O proacuteprio navio estavatatildeo deslumbrantemente iluminado que se podiam ver natildeo soacute todas as

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pessoas que laacute estavam como tambeacutem a corda mais fina Que eleganteparecia o jovem priacutencipe quando apertava as matildeos dos marinheiros

Ele ria e sorria enquanto a muacutesica soava pelo ar da noite agradaacutevel Jaacute era muito tarde mas a Pequena Sereia natildeo conseguia tirar os

olhos do navio ou do belo priacutencipe As lanternas coloridas se apagaramos foguetes natildeo mais subiam no ar e o canhatildeo cessara de dar tirosContudo o mar estava inquieto e era possiacutevel ouvir um som queixososob as ondas Ainda assim a Pequena Sereia continuou na aacutegua balan-ccedilando-se para cima e para baixo para olhar a cabine O navio ganhouvelocidade e uma apoacutes outra as suas velas foram desferidas As ondascresciam nuvens negras se agrupavam no ceacuteu e relacircmpagos faiscavamagrave distacircncia Uma terriacutevel tempestade estava se formando Por isso osmarinheiros recolheram as velas enquanto o vento sacudia o grandenavio e o arrastava pelo mar impetuoso As ondas subiam mais e maisaltas ateacute se assemelharem a enormes montanhas ameaccedilando derrubar

o mastro Ainda assim o navio mergulhava como um cisne entre elase voltava a subir em cristas sublimes e espumosas A Pequena Sereiapensou que devia ser divertido para um navio navegar daquele jeitomas a tripulaccedilatildeo pensava diferente O barco gemia e rangia suas pran-chas soacutelidas rompiam-se sob as violentas pancadas do mar o mastropartiu-se ruidosamente em dois como um junco O navio inclinouquando a aacutegua se precipitou no poratildeo

De repente a Pequena Sereia percebeu que o navio estava emperigo Ela mesma tinha de ter cuidado com as vigas e os destroccedilosagrave deriva Em certos momentos ficava tatildeo escuro que natildeo conseguiaenxergar nada mas entatildeo o claratildeo de um relacircmpago iluminou todosa bordo Agora era cada por um si Ela estava agrave procura do jovem priacuten-cipe e no momento em que o navio se partia viu-o desaparecer nasprofundezas do mar Por um instante ficou bastante entusiasmada

pois pensou que agora ele poderia viver no seu mundo Mas logo selembrou que os seres humanos natildeo vivem debaixo drsquoaacutegua e que ele soacutechegaria morto ao palaacutecio de seu pai Natildeo natildeo ele natildeo podia morrer Assim ela nadou entre os destroccedilos que o mar arrastava indiferente

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ao perigo de ser esmagada Mergulhava profundamente e emergia dasondas e finalmente encontrou o jovem priacutencipe Ele mal conseguianadar no mar tempestuoso Seus membros fraquejavam seus belosolhos estavam fechados e certamente teria se afogado se a PequenaSereia natildeo tivesse ido a seu socorro Ela segurou-lhe a cabeccedila acimada aacutegua e abandonou-se com ele aos caprichos das ondas

Quando amanheceu a tempestade cessara e natildeo havia rastro donavio O sol despontou da aacutegua vermelho e resplandecente e pareceudevolver a cor agraves faces do priacutencipe mas os olhos dele permaneciam fe-chados A sereia beijou-lhe a fronte e ajeitou-lhe para traacutes o cabelo mo-lhado Aos seus olhos ele parecia a estaacutetua de maacutermore que tinha em seu jardinzinho Beijou-o de novo e fez um pedido para que ele pudesse viver

Logo a sereia viu diante de si terra firme com suas majestosas

montanhas azuis no alto das quais brilhava a branca neve parecendocisnes aninhados Perto da costa havia adoraacuteveis florestas verdes e junto a uma delas erguia-se um preacutedio alto se era uma igreja ou umconvento ela natildeo sabia dizer Limoeiros e laranjeiras cresciam no

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jardim e ao lado da porta havia trecircs altas palmeiras A pequena baiacutease formava nesse ponto e a aacutegua era plenamente calma embora muito

profunda A sereia nadou com o belo priacutencipe ateacute a praia coberta defina areia branca Ali colocou-o sob o sol quente fazendo um traves-seiro de areia para sua cabeccedila

Sinos soaram do preacutedio branco e vaacuterias moccedilas apareceram no jardim A Pequena Sereia afastou-se nadando para bem longe dapraia e escondeu-se atraacutes de uma pedra grande que se elevava acimada aacutegua Cobriu o cabelo e o peito com espuma do mar para que nin-gueacutem pudesse vecirc-la Depois ficou espiando para ver quem ajudaria opobre priacutencipe

Natildeo demorou muito e surgiu uma jovem Pareceu muito assus-tada mas soacute por um instante e correu para buscar ajuda A sereia viuo priacutencipe voltar a si e ele sorriu para todos ao seu redor Poreacutem natildeohavia nenhum sorriso para ela pois ele natildeo tinha ideia de quem o sal-

vara Depois que foi levado para o preacutedio a Pequena Sereia se sentiatatildeo infeliz que mergulhou de volta para o palaacutecio do paiEla sempre fora silenciosa e pensativa mas agora estava mais do

que nunca Suas irmatildes lhe perguntaram o que vira durante sua pri-meira visita agrave superfiacutecie mas ela natildeo lhes contava nada Em muitasmanhatildes e entardeceres subia ateacute o local onde deixara o priacutencipe Viuas frutas do jardim amadurecerem e observou-as serem colhidas Viu

a neve derreter nos picos Contudo nunca via o priacutencipe e por issosempre voltava para casa ainda mais cheia de tristeza do que antesSeu uacutenico consolo era ficar em seu jardinzinho com os braccedilos emtorno da estaacutetua de maacutermore tatildeo parecida com o priacutencipe Nuncamais cuidou das suas flores que se espalhavam selvagemente ao longodos caminhos entrelaccedilando seus longos galhos nos ramos das aacutervoresateacute obscurecer tudo

Por fim ela natildeo conseguiu mais guardar aquilo consigo e contoutudo a uma de suas irmatildes Logo as outras ficaram sabendo mas nin-gueacutem mais exceto algumas outras sereias que natildeo diriam nada a nin-gueacutem a natildeo ser agraves suas melhores amigas Uma delas foi capaz de lhe

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dar notiacutecias sobre o priacutencipe Ela tambeacutem vira os festejos realizados abordo e disse mais sobre o priacutencipe e a localizaccedilatildeo de seu reino

mdash Venha irmatildezinha ndash disseram as outras princesas E com osbraccedilos nos ombros uma das outras subiram em uma longa fila ateacute asuperfiacutecie bem diante do lugar onde se erguia o castelo do priacutencipe

O castelo construiacutedo de uma pedra amarela e luzidia tinhalongas escadarias de maacutermore sendo que um dos degraus levava di-reto para o mar Esplecircndidas cuacutepulas douradas elevavam-se do teto eentre as colunas que cercavam toda a construccedilatildeo havia esculturas demaacutermore que pareciam vivas Atraveacutes do vidro transparente das altas janelas era possiacutevel ver magniacuteficos aposentos ornados com suntuosascortinas de seda e tapeccedilarias As paredes eram cobertas com enormespinturas e era um prazer contemplaacute-las No centro do maior salatildeohavia uma fonte que lanccedilava seus jorros espumantes ateacute a cuacutepula devidro do teto atraveacutes do qual o sol brilhava na aacutegua e nas belas plantas

que cresciam ali Agora que sabia onde o priacutencipe vivia passava muitos pores dosol e muitas noites naquele lugar Nadava ateacute muito mais perto dacosta do que as outras ousavam Chegou a avanccedilar pelo estreito canalpara ir ateacute a varanda de maacutermore que projetava uma longa sombrasobre a aacutegua Ali ela se sentava e observava o jovem priacutencipe que pen-sava estar completamente soacute ao claratildeo da lua

Muitas vezes agrave noite a Pequena Sereia o via sair ao mar em seuesplecircndido barco com bandeiras hasteadas ao som de muacutesica harmo-niosa Espiava do meio dos juncos verdes e quando o vento levantavao longo veacuteu branco e prateado do seu cabelo e pessoas a viam ima-ginavam apenas que era um cisne estendendo as asas

Em muitas noites quando os pescadores saiam em alto mar comsuas tochas ela os ouvia elogiar o jovem priacutencipe e suas palavras a dei-

xavam ainda mais feliz por lhe ter salvado a vida E ela recordava comoaninhara a cabeccedila dele em seu peito e com que carinho o beijara Masele natildeo sabia nada disso e nunca sequer sonhara que ela existia

A Pequena Sereia foi se afeiccediloando mais e mais aos seres

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41A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

humanos e ansiava profundamente pela companhia deles Omundo em que viviam parecia tatildeo mais vasto que o seu proacuteprio

Veja eles podiam navegar o oceano em navios e escalar montanhasiacutengremes bem acima das nuvens E as terras que possuiacuteam suasflorestas e seus campos se estendiam muito aleacutem de onde sua vistaalcanccedilava Havia uma porccedilatildeo de outras coisas que ela teria gos-tado de saber e suas irmatildes natildeo eram capazes de responder a todasas suas curiosidades Por isso foi visitar sua velha avoacute que sabia

tudo sobre o mundo superior como chamava tatildeo apropriadamenteos paiacuteses acima do marmdash Quando natildeo se afogam ndash perguntou a Pequena Sereia ndash os

seres humanos podem continuar vivendo para sempre Natildeo morremcomo noacutes aqui embaixo no mar

mdash Sim sim ndash respondeu a velha senhora mdash Eles tambeacutem teratildeoque morrer e seu tempo de vida eacute mais curto que o nosso Noacutes por

vezes alcanccedilamos a idade de trezentos anos mas quando nossa vidaaqui chega ao fim simplesmente nos transformamos em espuma naaacutegua Aqui natildeo temos tuacutemulos daqueles que amamos Natildeo temosuma alma imortal e nunca teremos outra vida Noacutes somos como o junco verde Uma vez cortado cessa de crescer Jaacute os seres humanostecircm almas que vivem para sempre mesmo depois que seus corpos se

transformam em poacute Elas voam atraveacutes do ar puro ateacute chegarem agraves es-trelas brilhantes Assim como subimos agrave flor da aacutegua e contemplamosas terras dos seres humanos eles atingem belos reinos desconhecidosndash regiotildees que nunca conheceremos

mdash Por que natildeo podemos ter uma alma imortal ndash a PequenaSereia perguntou angustiada mdash Eu daria de boa vontade todos ostrezentos anos que tenho para viver se pudesse me tornar uma humana

por apenas um dia e participar do mundo celestialmdash Vocecirc natildeo deveria se preocupar com isso Somos muito mais

felizes e vivemos melhor aqui do que os seres humanos laacute em cimamdash Entatildeo estou condenada a morrer e flutuar como espuma do

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42 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mar a nunca mais ouvir a muacutesica das ondas ou ver as lindas flores eo sol vermelho Natildeo haacute nada que eu possa fazer para conquistar umaalma imortal

mdash Natildeo ndash disse a velha senhora mdash Soacute se um ser humano aamasse tanto que vocecirc importasse mais para ele que pai e matildee Se elea amasse de todo o coraccedilatildeo e deixasse o padre pocircr a matildeo direita sobre a

sua como uma promessa de ser fiel e verdadeiro por toda a eternidadeNesse caso a alma dele deslizaria para dentro do seu corpo e vocecirctambeacutem obteria uma parcela da felicidade humana Ele lhe daria umaalma e no entanto conservaria a dele proacuteprio Mas isso jamais acon-teceraacute Sua cauda de peixe que achamos tatildeo bonita parece repulsivaagrave gente da terra Sabem tatildeo pouco sobre isso que acreditam realmenteque as duas desajeitadas escoras que chamam de pernas satildeo belas

A Pequena Sereia suspirou e olhou melancolicamente para suacauda de peixe

mdash Devemos ficar satisfeitas com o que temos ndash disse a velhasenhora mdash Vamos danccedilar e nos alegrar durante os trezentos anos

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43A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

de nossa existecircncia isso eacute realmente muito tempo Depois da mortepoderemos descansar e pocircr o sono em dia Hoje teremos um baile

na corteNatildeo se pode fazer ideia na terra de tal magnificecircncia As paredes

e o teto do grande salatildeo do baile eram feitos de cristal espesso mastransparente Centenas de conchas enormes rosa-vermelho e verde--relva dispostas de cada lado cada uma com uma chama azul queiluminava todo o salatildeo e luzindo atraveacutes das paredes iluminavamtambeacutem o mar Inuacutemeros peixes grandes e pequenos podiam servistos nadando em direccedilatildeo agraves paredes de cristal As escamas de algunsfulgiam com um brilho puacuterpura-avermelhado e as de outros comoprata e ouro No meio do salatildeo corria um grande rio nos quais mo-luscos e sereias danccedilavam ao seu proacuteprio som melodioso

Nenhum ser humano tem voz tatildeo encantadora Ningueacutem can-tava mais docemente que a Pequena Sereia e todos a aplaudiram

Por um instante houve alegria em seu coraccedilatildeo pois ela sabia quetinha a voz mais bela em terra ou no mar Mas em seguida seuspensamentos se voltaram para o mundo acima dela Natildeo conseguiaesquecer o belo priacutencipe e a grande dor de natildeo ter a alma imortalque ele possuiacutea Assim se arrastou para fora do palaacutecio do pai eenquanto todos laacute dentro cantavam e se divertiam foi se sentar emseu jardinzinho desolada

De repente ela ouviu o som de uma buzina ecoando atraveacutes daaacutegua e pensou

mdash Ah laacute vai ele navegando laacute em cima Aquele a quem amomais do que meu pai ou minha matildee ele que estaacute sempre em meuspensamentos e em cujas matildeos eu confiaria alegremente minha fe-licidade Arriscaria qualquer coisa para conquistaacute-lo e a uma almaimortal Enquanto minhas irmatildes danccedilam no castelo de meu pai vou

agrave procura da feiticeira do mar Sempre tive um terriacutevel medo delamas talvez possa me ajudar e me dizer o que fazer

E assim a Pequena Sereia deixou seu jardim e partiu paraonde a feiticeira morava no lado mais distante dos redemoinhos

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44 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

espumantes Nunca estivera laacute antes Naquele lugar natildeo cresciamflores nem relva do mar Natildeo havia nada aleacutem do fundo arenoso ecinzento que se estendia ateacute os turbilhotildees onde a aacutegua rodopiavacom o estrondo da roda de moinho e sugava para as profundezastudo que podia Tinha de passar pelo meio desses furiosos torveli-nhos para chegar ateacute a feiticeira do mar Por um longo trecho natildeo

havia outro caminho senatildeo pela lama quente e borbulhante ndash que afeiticeira chamava de seu charco

A casa da feiticeira ficava atraacutes do charco no meio de uma flo-resta quimeacuterica Todas as aacutervores e arbustos eram verdadeiros poacuteliposmetade animal e metade vegetal Pareciam serpentes de cem cabeccedilascrescendo do solo Tinham galhos que pareciam braccedilos longos e vis-cosos com dedos tatildeo flexiacuteveis que se assemelhavam a vermes Noacute por

noacute da raiz ateacute a ponta estavam constantemente em movimento eagarravam hermeticamente qualquer coisa que pudessem aproveitardo mar e natildeo soltavam mais A Pequena Sereia ficou apavorada e sedeteve agrave beira da mata Seu coraccedilatildeo palpitava de medo e ela esteve

H E L E N S T R A T T O N

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prestes a desistir Mas entatildeo lembrou-se do priacutencipe e da alma hu-mana e retomou sua coragem Ela prendeu em torno da cabeccedila seu

longo e esvoaccedilante cabelo para que os poacutelipos natildeo a pudessem agarrarDepois cruzou os braccedilos sobre o peito e disparou adiante como umpeixe lanccedilado na aacutegua no meio dos soacuterdidos poacutelipos que estendiamem sua direccedilatildeo seus braccedilos e dedos buliccedilosos Ela notou como cadaum deles havia agarrado algo e imobilizava firmemente com umacentena de pequenos braccedilos que pareciam aros de ferro Esqueletosbrancos de seres humanos que haviam perecido no mar e afundadonas aacuteguas profundas olhavam dos braccedilos dos poacutelipos Lemes e arcasde navios estavam fortemente agarrados em seus braccedilos juntamentecom esqueletos de animais terrestres e ndash o mais terriacutevel de tudo ndash umasereiazinha que eles haviam capturado e estrangulado

Chegou entatildeo a um grande charco lodoso onde enormes e cor-pulentas cobras-drsquoaacutegua ondeavam-se no lamaccedilal mostrando seus

horrendos ventres amarelo-esbranquiccedilado No meio do charco haviauma casa construiacuteda com os ossos de humanos naufragados Laacute es-tava a feiticeira do mar deixando um sapo se alimentar na sua bocaassim como as pessoas nutrem agraves vezes um canaacuterio com um torratildeo deaccediluacutecar Ela chamava as asquerosas cobras-drsquoaacutegua de seus pintinhos edeixava-as rastejar sobre seu peito

mdash Eu sei exatamente o que vocecirc deseja ndash disse a feiticeira do

mar mdash Como vocecirc eacute estuacutepida Mas vocecirc deve seguir seu caminhoque vai lhe trazer infortuacutenio minha linda princesa Vocecirc quer se li-vrar de sua cauda de peixe e no lugar ter um par de tocos para andarcomo um ser humano a fim de que o jovem priacutencipe se apaixone porvocecirc e lhe decirc uma alma imortal

E com isso a feiticeira soltou uma gargalhada tatildeo alta e maleacuteficaque o sapo e as cobras caiacuteram estatelados no chatildeo

mdash Vocecirc veio na hora certa ndash disse a feiticeira mdash Amanhatildequando o sol se levantar eu natildeo serei mais capaz de ajudaacute-la Voupreparar um elixir para vocecirc Teraacute de nadar ateacute a costa com ele antesdo nascer do sol sentar-se na praia e tomaacute-lo Sua cauda entatildeo se

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H A R R Y C L A R K E

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dividiraacute em duas e encolheraacute para se transformar naquilo que os sereshumanos chamam de ldquobelas pernasrdquo Mas vai doer Vocecirc sentiraacute como

se uma espada afiada a cortasse Todos que a virem diratildeo que vocecirc eacutea mais bela humana que jaacute encontraram Manteraacute seus movimentosgraciosos nenhuma danccedilarina jamais deslizaraacute tatildeo suavemente mascada passo que der a faraacute sentir como se estivesse pisando em umafaca afiada o bastante para fazer sangrar seus peacutes Se estiver dispostaa suportar tudo isso posso ajudaacute-la

mdash Sim ndash disse a Pequena Sereia com voz hesitante mas voltouseus pensamentos para o priacutencipe e ao precircmio de uma alma imortal

mdash Pense nisso com cuidado ndash alertou a feiticeira mdash Uma vez to-mada a forma de um ser humano nunca mais voltaraacute a ser uma sereiaVocecirc natildeo seraacute capaz de descer nadando ao encontro do palaacutecio de seupai e de suas irmatildes A uacutenica maneira de conseguir uma alma imortaleacute conquistando o amor do priacutencipe e fazer com que ele esqueccedila o pai

e a matildee por amor a vocecirc Ele deve tecirc-la sempre em seus pensamentose permitir que o padre una suas matildeos para que se tornem marido emulher Se o priacutencipe se casar com outra pessoa na manhatilde seguinteseu coraccedilatildeo se quebraraacute e vocecirc se tornaraacute espuma na crista das ondas

mdash Estou pronta ndash declarou a Pequena Sereia paacutelida comouma morta

mdash Mas teraacute que me recompensar ndash disse a feiticeira mdash Vocecirc natildeo

receberaacute minha ajuda sem nada em troca Vocecirc tem a mais formidaacutevelvoz entre todos que aqui habitam no fundo do mar Provavelmentepensa que encantaraacute o priacutencipe com ela mas teraacute que daacute-la para mimVou lhe exigir o que possui de melhor como pagamento por minhapoccedilatildeo Vocecirc entende tenho de misturar nela um pouco do meu proacutepriosangue para que o elixir seja afiado como uma espada de dois gumes

mdash Mas se tirar a minha voz o que me restaraacute ndash perguntou a

Pequena Sereiamdash Sua encantadora figura ndash disse a feiticeira ndash seus movimentos

graciosos e seus olhos expressivos Com eles pode simplesmente fas-cinar um coraccedilatildeo humano Bem onde estaacute sua coragem Estire a

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liacutengua e deixe-me cortaacute-la fora como pagamento Depois receberaacutesua poderosa poccedilatildeo

mdash Assim seja ndash concordou a Pequena Sereia e a feiticeira pocircsseu caldeiratildeo no fogo para destilar a poccedilatildeo maacutegica

mdash Limpeza antes de tudo ndash ela disse enquanto esfregava o re-cipiente com um feixe de viacuteboras que tinha atado num grande noacute

Em seguida deu um talho no proacuteprio seio e deixou gotejar onegro sangue no caldeiratildeo O vapor que subiu criava formas estranhasassustadoras de se ver A feiticeira continuava a juntar coisas novas

dentro do caldeiratildeo e quando o elixir comeccedilou a ferver parecia umchoro de crocodilo Finalmente a poccedilatildeo maacutegica ficou pronta e eraexatamente cristalina como aacutegua

mdash Aiacute estaacute vocecirc ndash disse a feiticeira ao cortar a liacutengua da PequenaSereia que agora estava muda e natildeo conseguia falar e cantar

mdash Se os poacutelipos a apanharem quando vocecirc retornar pela mata

ndash orientou a feiticeira ndash basta jogar sobre eles uma uacutenica gota destapoccedilatildeo e os braccedilos e dedos deles seratildeo dilacerados em mil pedaccedilosPoreacutem a Pequena Sereia natildeo precisou disso Os poacutelipos se enco-

lheram aterrorizados quando avistaram a luzente poccedilatildeo em sua matildeocomo uma estrela cintilante E assim passou rapidamente pela matapelo charco e pelos atroadores redemoinhos

A Pequena Sereia pocircde contemplar o palaacutecio do pai As luzes do

salatildeo de baile estavam apagadas Certamente laacute estavam todos dor-mindo a essa altura Mas natildeo se atreveu ir vecirc-los pois agora estavamuda e prestes a deixaacute-los para sempre Ela sentiu como se seu coraccedilatildeofosse partir de tanta dor Entrou secretamente no jardim pegou umaflor dos leitos de cada uma das irmatildes soprou mil beijos em direccedilatildeodo palaacutecio e depois subiu agrave superfiacutecie atraveacutes das aacuteguas azul-escuras

O sol ainda natildeo despontara no horizonte quando ela avistou o

palaacutecio do priacutencipe e subiu os degraus de maacutermore A lua esplendialiacutempida e viacutevida A Pequena Sereia bebeu a acre poccedilatildeo e parecia queuma faca de dois gumes trespassava seu corpo delicado Ela desmaioue caiu morta

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E D M U N D D U L A C

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O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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60 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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61A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

V

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29A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

W H E A T H R O B I N S O N

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30 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

longa espera Em muitas noites ela se postava agrave janela aberta e fitavaatraveacutes das aacuteguas azul-escuras os peixes sacudirem suas nadadeiras ecaudas Olhava bem para o alto e podia ver a lua e as estrelas emborasua luz fosse muito paacutelida ndash atraveacutes da aacutegua pareciam muito maioresque aos nossos olhos Se uma nuvem escura passava acima dela sabiaque era uma baleia que nadava sobre a sua cabeccedila ou um navio cheiode passageiros Aquelas pessoas nem sonhavam que uma sereiazinha

estendia suas matildeos brancas para o casco do navio que fendia as aacuteguas Assim que fez quinze anos a mais velha das princesas foi auto-

rizada a subir agrave superfiacutecie do oceano Quando voltou tinha dezenasde coisas para contar

mdash O mais delicioso ndash ela disse ndash foi ficar deitada em um bancode areia perto da praia numa noite de lua com o mar calmo Foipossiacutevel contemplar a grande cidade onde as luzes brilhavam como

milhares de estrelas Podia ouvir muacutesicas harmoniosas e o ruiacutedo decarros e pessoas Podia ver todas as torres das igrejas e ouvir os sinostocando ndash e exatamente por natildeo ter chegado perto de todas essas ma-ravilhas ansiava ainda mais por todas elas

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31A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

Oacute como a irmatilde caccedilulabebia aquelas palavras E mais

tarde agrave noite ficou junto agrave janelaaberta fitando atraveacutes das aacuteguasazul-escuras pensando na cidadegrande com seus ruiacutedos e luzes eateacute imaginou ouvir os sinos dasigrejas tocando para ela

No ano seguinte a segundairmatilde teve permissatildeo para subirmar acima e nadar aonde quisesseChegou agrave superfiacutecie bem na horado pocircr do sol

mdash Foi a visatildeo mais bela detodas ndash ela contou mdash Todo o

ceacuteu parecia ouro e as nuvensndash bem ela simplesmente natildeoconseguia descrever como eramlindas ao passar em tons de car-mesim e violeta sobre sua cabeccedila

Mais veloz ainda que as nu-

vens um bando de cisnes selvagensvoou como um longo e branco veacuteusobre a aacutegua rumo ao sol poenteEla nadou nessa direccedilatildeo mas o solse pocircs e sua luz roacutesea foi engolidapelo mar e pela nuvem

Depois chegou a vez da terceira irmatilde Era a mais ousada de todas

e nadou ateacute um largo rio que desaguava no mar Avistou admiraacuteveis co-linas verdes cobertas com videiras castelos e fazendas situados no meiode florestas soberbas e imensas ouviu o canto dos paacutessaros e o sol eratatildeo quente que teve de mergulhar muitas vezes na aacutegua para refrescar o

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32 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

rosto ardente Numa pequena enseada topou com um bando de crian-cinhas humanas divertindo-se completamente nuas na aacutegua

Quis brincar com elas mas ficaram aterrorizadas e fugiram De-pois um animalzinho preto foi ateacute a aacutegua Era um cachorro mas nuncatinha visto um O animal latiu tanto que ela ficou assustada e nadoupara o mar aberto Poreacutem disse que jamais esqueceria a magniacutefica flo-resta as colinas verdes e as lindas criancinhas que sabiam nadar emboranatildeo possuiacutessem caudas

A quarta irmatilde natildeo foi tatildeo ousada Preferiu ficar no meio do marselvagem onde a vista se perdia ao longe todavia foi exatamente issoela lhes contou que tornou sua visita tatildeo maravilhosa Podia ver pormilhas e milhas ao seu redor e o ceacuteu se arredondava em volta da aacuteguacomo um grande sino de vidro Vira navios mas a uma distacircncia tatildeogrande que pareciam gaivotas Os golfinhos brincavam nas ondas eas baleias esguichavam aacutegua tatildeo poderosamente de suas narinas que

pareciam estar cercadas por uma centena de chafarizesE agora era a vez da quinta irmatilde Como seu aniversaacuterio caiacutea no

inverno ela viu coisas que as outras natildeo tinham visto da primeira vezO mar perdera sua cor azul e adquirira um tom esverdeado e sobreele flutuavam enormes icebergs

mdash Cada um parecia uma peacuterola ndash ela disse ndash mas eram mais

altos que as torres de igrejas construiacutedas pelos seres humanos Apareciam nas formas mais fantaacutesticas e brilhavam como dia-mantes Ela se sentara num dos maiores icebergs e todos os naviospareciam ter medo dele pois passavam navegando rapidamente emuito distante do lugar onde ela estava sentada com o vento grace- jando seus longos cabelos

Mais tarde naquela noite uma tempestade cobriu o ceacuteu de nu-

vens Trovotildees estrondeavam relacircmpagos chispavam e as ondas es-curas elevavam os enormes blocos de gelo tatildeo alto que os tiravam daaacutegua fazendo-os reluzir na intensa luz vermelha Todos os naviosrecolheram as velas e em meio ao horror e ao alarme geral a sereia

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E D M U N D D U L A C 1 9 11

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permaneceu sentada tranquilamente no iceberg flutuante vendo osrelacircmpagos azuis ziguezaguearem no mar resplandecente

Na primeira vez que as irmatildes subiram agrave superfiacutecie ficaram en-cantadas de ver tantas coisas novas e bonitas Poreacutem quando ficarammais velhas e podiam emergir sempre que queriam mostravam-semenos entusiasmadas Sentiam saudade do fundo do mar E depoisde um mecircs diziam que afinal de contas era muito mais agradaacutevel laacuteembaixo ndash era tatildeo reconfortante estar em casa No entanto muitasvezes ao entardecer as cinco irmatildes davam-se os braccedilos e flutuavam juntas Suas vozes eram encantadoras como nenhuma criatura hu-mana poderia possuir

Antes da aproximaccedilatildeo de uma tempestade quando esperavam onaufraacutegio de um navio as irmatildes costumavam nadar diante do barcoe cantar docemente as deliacutecias das profundezas do mar Diziam aosmarinheiros para natildeo terem medo de mergulhar ateacute o fundo mas eles

nunca entendiam suas canccedilotildees Pensavam estar ouvindo os uivos datempestade e nunca viam as maravilhas que as sereias prometiam Eassim que o navio afundava os homens se afogavam e somente seuscadaacuteveres chegavam ateacute o palaacutecio do rei do mar

Quando as irmatildes subiam pela aacutegua de braccedilos dados a caccedilulasempre ficava para traacutes sozinha acompanhando-as com os olhos Teriachorado mas as sereias natildeo tecircm laacutegrimas e sofrem muito mais que noacutes

mdash Oacute Se pelo menos eu tivesse quinze anos ndash ela dizia mdash Seique vou gostar muito do mundo laacute de cima e de todas as pessoas quevivem nele

Entatildeo finalmente ela fez quinze anosmdash Bem agora vocecirc logo escaparaacute das nossas matildeos ndash disse a velha

rainha sua avoacute mdash Venha deixe-me vesti-la como suas outras irmatildesE pocircs no seu cabelo uma coroa de liacuterios brancos em que cada

peacutetala de flor era metade de uma peacuterola Depois a velha senhoramandou trazer oito grandes ostras para prender firmemente na caudada princesa e mostrar sua alta posiccedilatildeo

mdash Ai Isso doacutei ndash disse a Pequena Sereia

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mdash Sim a beleza tem seu preccedilo ndash respondeu a avoacuteComo a Pequena Sereia teria gostado de se livrar de todos

aqueles adornos e pocircr de lado aquela pesada coroa As flores verme-lhas de seu jardim assentavam-lhe muito melhor mas natildeo ousoufazer nenhuma alteraccedilatildeo

mdash Adeus ndash disse ao subir pela aacutegua tatildeo leve e liacutempida quantoas bolhas se elevam agrave superfiacutecie

O sol acabara de se pocircr quando ela ergueu a cabeccedila sobre as

ondas mas as nuvens ainda estavam tingidas de carmesim e ouroNo alto do ceacuteu paacutelido e rosado a estrela vespertina iluminava clarae viacutevida O ar estava ameno e fresco e o mar apraziacutevel Um grandenavio de trecircs mastros estava agrave deriva na aacutegua com apenas uma velaiccedilada porque o vento estava brando Os marinheiros estavam refes-telados no cordame ou nas jardas Havia muacutesica e canto a bordo equando escureceu uma centena de lanternas foi acesa Com suas

muitas cores tinha-se a impressatildeo de que as bandeiras de todas asnaccedilotildees flutuavam no ar

A Pequena Sereia nadou ateacute a escotilha da cabine e cada vez queuma onda a levantava podia ver atraveacutes do vidro transparente umaquantidade de homens magnificamente trajados O mais belo delesera um jovem priacutencipe com grandes olhos escuros Natildeo tinha mais

de dezesseis anos Era seu aniversaacuterio e era por isso que havia tantoalvoroccedilo Quando o jovem priacutencipe saiu para o conveacutes onde os mari-nheiros estavam danccedilando mais de uma centena de foguetes zuniramrumo ao ceacuteu num esplendor tornando o ceacuteu tatildeo brilhante quanto odia A Pequena Sereia ficou tatildeo assustada que mergulhou escondendo--se sob a aacutegua mas rapidamente pocircs a cabeccedila para fora de novo Eveja Parecia que as estrelas laacute do ceacuteu estavam caindo sobre ela Nunca

vira fogos de artifiacutecios Grandes soacuteis rodopiavam ao seu redor lindospeixes de fogo refulgentes lanccedilavam-se no ar azul e todo esse brilhose refletia nas aacuteguas claras e calmas embaixo O proacuteprio navio estavatatildeo deslumbrantemente iluminado que se podiam ver natildeo soacute todas as

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pessoas que laacute estavam como tambeacutem a corda mais fina Que eleganteparecia o jovem priacutencipe quando apertava as matildeos dos marinheiros

Ele ria e sorria enquanto a muacutesica soava pelo ar da noite agradaacutevel Jaacute era muito tarde mas a Pequena Sereia natildeo conseguia tirar os

olhos do navio ou do belo priacutencipe As lanternas coloridas se apagaramos foguetes natildeo mais subiam no ar e o canhatildeo cessara de dar tirosContudo o mar estava inquieto e era possiacutevel ouvir um som queixososob as ondas Ainda assim a Pequena Sereia continuou na aacutegua balan-ccedilando-se para cima e para baixo para olhar a cabine O navio ganhouvelocidade e uma apoacutes outra as suas velas foram desferidas As ondascresciam nuvens negras se agrupavam no ceacuteu e relacircmpagos faiscavamagrave distacircncia Uma terriacutevel tempestade estava se formando Por isso osmarinheiros recolheram as velas enquanto o vento sacudia o grandenavio e o arrastava pelo mar impetuoso As ondas subiam mais e maisaltas ateacute se assemelharem a enormes montanhas ameaccedilando derrubar

o mastro Ainda assim o navio mergulhava como um cisne entre elase voltava a subir em cristas sublimes e espumosas A Pequena Sereiapensou que devia ser divertido para um navio navegar daquele jeitomas a tripulaccedilatildeo pensava diferente O barco gemia e rangia suas pran-chas soacutelidas rompiam-se sob as violentas pancadas do mar o mastropartiu-se ruidosamente em dois como um junco O navio inclinouquando a aacutegua se precipitou no poratildeo

De repente a Pequena Sereia percebeu que o navio estava emperigo Ela mesma tinha de ter cuidado com as vigas e os destroccedilosagrave deriva Em certos momentos ficava tatildeo escuro que natildeo conseguiaenxergar nada mas entatildeo o claratildeo de um relacircmpago iluminou todosa bordo Agora era cada por um si Ela estava agrave procura do jovem priacuten-cipe e no momento em que o navio se partia viu-o desaparecer nasprofundezas do mar Por um instante ficou bastante entusiasmada

pois pensou que agora ele poderia viver no seu mundo Mas logo selembrou que os seres humanos natildeo vivem debaixo drsquoaacutegua e que ele soacutechegaria morto ao palaacutecio de seu pai Natildeo natildeo ele natildeo podia morrer Assim ela nadou entre os destroccedilos que o mar arrastava indiferente

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ao perigo de ser esmagada Mergulhava profundamente e emergia dasondas e finalmente encontrou o jovem priacutencipe Ele mal conseguianadar no mar tempestuoso Seus membros fraquejavam seus belosolhos estavam fechados e certamente teria se afogado se a PequenaSereia natildeo tivesse ido a seu socorro Ela segurou-lhe a cabeccedila acimada aacutegua e abandonou-se com ele aos caprichos das ondas

Quando amanheceu a tempestade cessara e natildeo havia rastro donavio O sol despontou da aacutegua vermelho e resplandecente e pareceudevolver a cor agraves faces do priacutencipe mas os olhos dele permaneciam fe-chados A sereia beijou-lhe a fronte e ajeitou-lhe para traacutes o cabelo mo-lhado Aos seus olhos ele parecia a estaacutetua de maacutermore que tinha em seu jardinzinho Beijou-o de novo e fez um pedido para que ele pudesse viver

Logo a sereia viu diante de si terra firme com suas majestosas

montanhas azuis no alto das quais brilhava a branca neve parecendocisnes aninhados Perto da costa havia adoraacuteveis florestas verdes e junto a uma delas erguia-se um preacutedio alto se era uma igreja ou umconvento ela natildeo sabia dizer Limoeiros e laranjeiras cresciam no

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jardim e ao lado da porta havia trecircs altas palmeiras A pequena baiacutease formava nesse ponto e a aacutegua era plenamente calma embora muito

profunda A sereia nadou com o belo priacutencipe ateacute a praia coberta defina areia branca Ali colocou-o sob o sol quente fazendo um traves-seiro de areia para sua cabeccedila

Sinos soaram do preacutedio branco e vaacuterias moccedilas apareceram no jardim A Pequena Sereia afastou-se nadando para bem longe dapraia e escondeu-se atraacutes de uma pedra grande que se elevava acimada aacutegua Cobriu o cabelo e o peito com espuma do mar para que nin-gueacutem pudesse vecirc-la Depois ficou espiando para ver quem ajudaria opobre priacutencipe

Natildeo demorou muito e surgiu uma jovem Pareceu muito assus-tada mas soacute por um instante e correu para buscar ajuda A sereia viuo priacutencipe voltar a si e ele sorriu para todos ao seu redor Poreacutem natildeohavia nenhum sorriso para ela pois ele natildeo tinha ideia de quem o sal-

vara Depois que foi levado para o preacutedio a Pequena Sereia se sentiatatildeo infeliz que mergulhou de volta para o palaacutecio do paiEla sempre fora silenciosa e pensativa mas agora estava mais do

que nunca Suas irmatildes lhe perguntaram o que vira durante sua pri-meira visita agrave superfiacutecie mas ela natildeo lhes contava nada Em muitasmanhatildes e entardeceres subia ateacute o local onde deixara o priacutencipe Viuas frutas do jardim amadurecerem e observou-as serem colhidas Viu

a neve derreter nos picos Contudo nunca via o priacutencipe e por issosempre voltava para casa ainda mais cheia de tristeza do que antesSeu uacutenico consolo era ficar em seu jardinzinho com os braccedilos emtorno da estaacutetua de maacutermore tatildeo parecida com o priacutencipe Nuncamais cuidou das suas flores que se espalhavam selvagemente ao longodos caminhos entrelaccedilando seus longos galhos nos ramos das aacutervoresateacute obscurecer tudo

Por fim ela natildeo conseguiu mais guardar aquilo consigo e contoutudo a uma de suas irmatildes Logo as outras ficaram sabendo mas nin-gueacutem mais exceto algumas outras sereias que natildeo diriam nada a nin-gueacutem a natildeo ser agraves suas melhores amigas Uma delas foi capaz de lhe

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40 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

dar notiacutecias sobre o priacutencipe Ela tambeacutem vira os festejos realizados abordo e disse mais sobre o priacutencipe e a localizaccedilatildeo de seu reino

mdash Venha irmatildezinha ndash disseram as outras princesas E com osbraccedilos nos ombros uma das outras subiram em uma longa fila ateacute asuperfiacutecie bem diante do lugar onde se erguia o castelo do priacutencipe

O castelo construiacutedo de uma pedra amarela e luzidia tinhalongas escadarias de maacutermore sendo que um dos degraus levava di-reto para o mar Esplecircndidas cuacutepulas douradas elevavam-se do teto eentre as colunas que cercavam toda a construccedilatildeo havia esculturas demaacutermore que pareciam vivas Atraveacutes do vidro transparente das altas janelas era possiacutevel ver magniacuteficos aposentos ornados com suntuosascortinas de seda e tapeccedilarias As paredes eram cobertas com enormespinturas e era um prazer contemplaacute-las No centro do maior salatildeohavia uma fonte que lanccedilava seus jorros espumantes ateacute a cuacutepula devidro do teto atraveacutes do qual o sol brilhava na aacutegua e nas belas plantas

que cresciam ali Agora que sabia onde o priacutencipe vivia passava muitos pores dosol e muitas noites naquele lugar Nadava ateacute muito mais perto dacosta do que as outras ousavam Chegou a avanccedilar pelo estreito canalpara ir ateacute a varanda de maacutermore que projetava uma longa sombrasobre a aacutegua Ali ela se sentava e observava o jovem priacutencipe que pen-sava estar completamente soacute ao claratildeo da lua

Muitas vezes agrave noite a Pequena Sereia o via sair ao mar em seuesplecircndido barco com bandeiras hasteadas ao som de muacutesica harmo-niosa Espiava do meio dos juncos verdes e quando o vento levantavao longo veacuteu branco e prateado do seu cabelo e pessoas a viam ima-ginavam apenas que era um cisne estendendo as asas

Em muitas noites quando os pescadores saiam em alto mar comsuas tochas ela os ouvia elogiar o jovem priacutencipe e suas palavras a dei-

xavam ainda mais feliz por lhe ter salvado a vida E ela recordava comoaninhara a cabeccedila dele em seu peito e com que carinho o beijara Masele natildeo sabia nada disso e nunca sequer sonhara que ela existia

A Pequena Sereia foi se afeiccediloando mais e mais aos seres

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humanos e ansiava profundamente pela companhia deles Omundo em que viviam parecia tatildeo mais vasto que o seu proacuteprio

Veja eles podiam navegar o oceano em navios e escalar montanhasiacutengremes bem acima das nuvens E as terras que possuiacuteam suasflorestas e seus campos se estendiam muito aleacutem de onde sua vistaalcanccedilava Havia uma porccedilatildeo de outras coisas que ela teria gos-tado de saber e suas irmatildes natildeo eram capazes de responder a todasas suas curiosidades Por isso foi visitar sua velha avoacute que sabia

tudo sobre o mundo superior como chamava tatildeo apropriadamenteos paiacuteses acima do marmdash Quando natildeo se afogam ndash perguntou a Pequena Sereia ndash os

seres humanos podem continuar vivendo para sempre Natildeo morremcomo noacutes aqui embaixo no mar

mdash Sim sim ndash respondeu a velha senhora mdash Eles tambeacutem teratildeoque morrer e seu tempo de vida eacute mais curto que o nosso Noacutes por

vezes alcanccedilamos a idade de trezentos anos mas quando nossa vidaaqui chega ao fim simplesmente nos transformamos em espuma naaacutegua Aqui natildeo temos tuacutemulos daqueles que amamos Natildeo temosuma alma imortal e nunca teremos outra vida Noacutes somos como o junco verde Uma vez cortado cessa de crescer Jaacute os seres humanostecircm almas que vivem para sempre mesmo depois que seus corpos se

transformam em poacute Elas voam atraveacutes do ar puro ateacute chegarem agraves es-trelas brilhantes Assim como subimos agrave flor da aacutegua e contemplamosas terras dos seres humanos eles atingem belos reinos desconhecidosndash regiotildees que nunca conheceremos

mdash Por que natildeo podemos ter uma alma imortal ndash a PequenaSereia perguntou angustiada mdash Eu daria de boa vontade todos ostrezentos anos que tenho para viver se pudesse me tornar uma humana

por apenas um dia e participar do mundo celestialmdash Vocecirc natildeo deveria se preocupar com isso Somos muito mais

felizes e vivemos melhor aqui do que os seres humanos laacute em cimamdash Entatildeo estou condenada a morrer e flutuar como espuma do

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42 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mar a nunca mais ouvir a muacutesica das ondas ou ver as lindas flores eo sol vermelho Natildeo haacute nada que eu possa fazer para conquistar umaalma imortal

mdash Natildeo ndash disse a velha senhora mdash Soacute se um ser humano aamasse tanto que vocecirc importasse mais para ele que pai e matildee Se elea amasse de todo o coraccedilatildeo e deixasse o padre pocircr a matildeo direita sobre a

sua como uma promessa de ser fiel e verdadeiro por toda a eternidadeNesse caso a alma dele deslizaria para dentro do seu corpo e vocecirctambeacutem obteria uma parcela da felicidade humana Ele lhe daria umaalma e no entanto conservaria a dele proacuteprio Mas isso jamais acon-teceraacute Sua cauda de peixe que achamos tatildeo bonita parece repulsivaagrave gente da terra Sabem tatildeo pouco sobre isso que acreditam realmenteque as duas desajeitadas escoras que chamam de pernas satildeo belas

A Pequena Sereia suspirou e olhou melancolicamente para suacauda de peixe

mdash Devemos ficar satisfeitas com o que temos ndash disse a velhasenhora mdash Vamos danccedilar e nos alegrar durante os trezentos anos

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de nossa existecircncia isso eacute realmente muito tempo Depois da mortepoderemos descansar e pocircr o sono em dia Hoje teremos um baile

na corteNatildeo se pode fazer ideia na terra de tal magnificecircncia As paredes

e o teto do grande salatildeo do baile eram feitos de cristal espesso mastransparente Centenas de conchas enormes rosa-vermelho e verde--relva dispostas de cada lado cada uma com uma chama azul queiluminava todo o salatildeo e luzindo atraveacutes das paredes iluminavamtambeacutem o mar Inuacutemeros peixes grandes e pequenos podiam servistos nadando em direccedilatildeo agraves paredes de cristal As escamas de algunsfulgiam com um brilho puacuterpura-avermelhado e as de outros comoprata e ouro No meio do salatildeo corria um grande rio nos quais mo-luscos e sereias danccedilavam ao seu proacuteprio som melodioso

Nenhum ser humano tem voz tatildeo encantadora Ningueacutem can-tava mais docemente que a Pequena Sereia e todos a aplaudiram

Por um instante houve alegria em seu coraccedilatildeo pois ela sabia quetinha a voz mais bela em terra ou no mar Mas em seguida seuspensamentos se voltaram para o mundo acima dela Natildeo conseguiaesquecer o belo priacutencipe e a grande dor de natildeo ter a alma imortalque ele possuiacutea Assim se arrastou para fora do palaacutecio do pai eenquanto todos laacute dentro cantavam e se divertiam foi se sentar emseu jardinzinho desolada

De repente ela ouviu o som de uma buzina ecoando atraveacutes daaacutegua e pensou

mdash Ah laacute vai ele navegando laacute em cima Aquele a quem amomais do que meu pai ou minha matildee ele que estaacute sempre em meuspensamentos e em cujas matildeos eu confiaria alegremente minha fe-licidade Arriscaria qualquer coisa para conquistaacute-lo e a uma almaimortal Enquanto minhas irmatildes danccedilam no castelo de meu pai vou

agrave procura da feiticeira do mar Sempre tive um terriacutevel medo delamas talvez possa me ajudar e me dizer o que fazer

E assim a Pequena Sereia deixou seu jardim e partiu paraonde a feiticeira morava no lado mais distante dos redemoinhos

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44 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

espumantes Nunca estivera laacute antes Naquele lugar natildeo cresciamflores nem relva do mar Natildeo havia nada aleacutem do fundo arenoso ecinzento que se estendia ateacute os turbilhotildees onde a aacutegua rodopiavacom o estrondo da roda de moinho e sugava para as profundezastudo que podia Tinha de passar pelo meio desses furiosos torveli-nhos para chegar ateacute a feiticeira do mar Por um longo trecho natildeo

havia outro caminho senatildeo pela lama quente e borbulhante ndash que afeiticeira chamava de seu charco

A casa da feiticeira ficava atraacutes do charco no meio de uma flo-resta quimeacuterica Todas as aacutervores e arbustos eram verdadeiros poacuteliposmetade animal e metade vegetal Pareciam serpentes de cem cabeccedilascrescendo do solo Tinham galhos que pareciam braccedilos longos e vis-cosos com dedos tatildeo flexiacuteveis que se assemelhavam a vermes Noacute por

noacute da raiz ateacute a ponta estavam constantemente em movimento eagarravam hermeticamente qualquer coisa que pudessem aproveitardo mar e natildeo soltavam mais A Pequena Sereia ficou apavorada e sedeteve agrave beira da mata Seu coraccedilatildeo palpitava de medo e ela esteve

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prestes a desistir Mas entatildeo lembrou-se do priacutencipe e da alma hu-mana e retomou sua coragem Ela prendeu em torno da cabeccedila seu

longo e esvoaccedilante cabelo para que os poacutelipos natildeo a pudessem agarrarDepois cruzou os braccedilos sobre o peito e disparou adiante como umpeixe lanccedilado na aacutegua no meio dos soacuterdidos poacutelipos que estendiamem sua direccedilatildeo seus braccedilos e dedos buliccedilosos Ela notou como cadaum deles havia agarrado algo e imobilizava firmemente com umacentena de pequenos braccedilos que pareciam aros de ferro Esqueletosbrancos de seres humanos que haviam perecido no mar e afundadonas aacuteguas profundas olhavam dos braccedilos dos poacutelipos Lemes e arcasde navios estavam fortemente agarrados em seus braccedilos juntamentecom esqueletos de animais terrestres e ndash o mais terriacutevel de tudo ndash umasereiazinha que eles haviam capturado e estrangulado

Chegou entatildeo a um grande charco lodoso onde enormes e cor-pulentas cobras-drsquoaacutegua ondeavam-se no lamaccedilal mostrando seus

horrendos ventres amarelo-esbranquiccedilado No meio do charco haviauma casa construiacuteda com os ossos de humanos naufragados Laacute es-tava a feiticeira do mar deixando um sapo se alimentar na sua bocaassim como as pessoas nutrem agraves vezes um canaacuterio com um torratildeo deaccediluacutecar Ela chamava as asquerosas cobras-drsquoaacutegua de seus pintinhos edeixava-as rastejar sobre seu peito

mdash Eu sei exatamente o que vocecirc deseja ndash disse a feiticeira do

mar mdash Como vocecirc eacute estuacutepida Mas vocecirc deve seguir seu caminhoque vai lhe trazer infortuacutenio minha linda princesa Vocecirc quer se li-vrar de sua cauda de peixe e no lugar ter um par de tocos para andarcomo um ser humano a fim de que o jovem priacutencipe se apaixone porvocecirc e lhe decirc uma alma imortal

E com isso a feiticeira soltou uma gargalhada tatildeo alta e maleacuteficaque o sapo e as cobras caiacuteram estatelados no chatildeo

mdash Vocecirc veio na hora certa ndash disse a feiticeira mdash Amanhatildequando o sol se levantar eu natildeo serei mais capaz de ajudaacute-la Voupreparar um elixir para vocecirc Teraacute de nadar ateacute a costa com ele antesdo nascer do sol sentar-se na praia e tomaacute-lo Sua cauda entatildeo se

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H A R R Y C L A R K E

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dividiraacute em duas e encolheraacute para se transformar naquilo que os sereshumanos chamam de ldquobelas pernasrdquo Mas vai doer Vocecirc sentiraacute como

se uma espada afiada a cortasse Todos que a virem diratildeo que vocecirc eacutea mais bela humana que jaacute encontraram Manteraacute seus movimentosgraciosos nenhuma danccedilarina jamais deslizaraacute tatildeo suavemente mascada passo que der a faraacute sentir como se estivesse pisando em umafaca afiada o bastante para fazer sangrar seus peacutes Se estiver dispostaa suportar tudo isso posso ajudaacute-la

mdash Sim ndash disse a Pequena Sereia com voz hesitante mas voltouseus pensamentos para o priacutencipe e ao precircmio de uma alma imortal

mdash Pense nisso com cuidado ndash alertou a feiticeira mdash Uma vez to-mada a forma de um ser humano nunca mais voltaraacute a ser uma sereiaVocecirc natildeo seraacute capaz de descer nadando ao encontro do palaacutecio de seupai e de suas irmatildes A uacutenica maneira de conseguir uma alma imortaleacute conquistando o amor do priacutencipe e fazer com que ele esqueccedila o pai

e a matildee por amor a vocecirc Ele deve tecirc-la sempre em seus pensamentose permitir que o padre una suas matildeos para que se tornem marido emulher Se o priacutencipe se casar com outra pessoa na manhatilde seguinteseu coraccedilatildeo se quebraraacute e vocecirc se tornaraacute espuma na crista das ondas

mdash Estou pronta ndash declarou a Pequena Sereia paacutelida comouma morta

mdash Mas teraacute que me recompensar ndash disse a feiticeira mdash Vocecirc natildeo

receberaacute minha ajuda sem nada em troca Vocecirc tem a mais formidaacutevelvoz entre todos que aqui habitam no fundo do mar Provavelmentepensa que encantaraacute o priacutencipe com ela mas teraacute que daacute-la para mimVou lhe exigir o que possui de melhor como pagamento por minhapoccedilatildeo Vocecirc entende tenho de misturar nela um pouco do meu proacutepriosangue para que o elixir seja afiado como uma espada de dois gumes

mdash Mas se tirar a minha voz o que me restaraacute ndash perguntou a

Pequena Sereiamdash Sua encantadora figura ndash disse a feiticeira ndash seus movimentos

graciosos e seus olhos expressivos Com eles pode simplesmente fas-cinar um coraccedilatildeo humano Bem onde estaacute sua coragem Estire a

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liacutengua e deixe-me cortaacute-la fora como pagamento Depois receberaacutesua poderosa poccedilatildeo

mdash Assim seja ndash concordou a Pequena Sereia e a feiticeira pocircsseu caldeiratildeo no fogo para destilar a poccedilatildeo maacutegica

mdash Limpeza antes de tudo ndash ela disse enquanto esfregava o re-cipiente com um feixe de viacuteboras que tinha atado num grande noacute

Em seguida deu um talho no proacuteprio seio e deixou gotejar onegro sangue no caldeiratildeo O vapor que subiu criava formas estranhasassustadoras de se ver A feiticeira continuava a juntar coisas novas

dentro do caldeiratildeo e quando o elixir comeccedilou a ferver parecia umchoro de crocodilo Finalmente a poccedilatildeo maacutegica ficou pronta e eraexatamente cristalina como aacutegua

mdash Aiacute estaacute vocecirc ndash disse a feiticeira ao cortar a liacutengua da PequenaSereia que agora estava muda e natildeo conseguia falar e cantar

mdash Se os poacutelipos a apanharem quando vocecirc retornar pela mata

ndash orientou a feiticeira ndash basta jogar sobre eles uma uacutenica gota destapoccedilatildeo e os braccedilos e dedos deles seratildeo dilacerados em mil pedaccedilosPoreacutem a Pequena Sereia natildeo precisou disso Os poacutelipos se enco-

lheram aterrorizados quando avistaram a luzente poccedilatildeo em sua matildeocomo uma estrela cintilante E assim passou rapidamente pela matapelo charco e pelos atroadores redemoinhos

A Pequena Sereia pocircde contemplar o palaacutecio do pai As luzes do

salatildeo de baile estavam apagadas Certamente laacute estavam todos dor-mindo a essa altura Mas natildeo se atreveu ir vecirc-los pois agora estavamuda e prestes a deixaacute-los para sempre Ela sentiu como se seu coraccedilatildeofosse partir de tanta dor Entrou secretamente no jardim pegou umaflor dos leitos de cada uma das irmatildes soprou mil beijos em direccedilatildeodo palaacutecio e depois subiu agrave superfiacutecie atraveacutes das aacuteguas azul-escuras

O sol ainda natildeo despontara no horizonte quando ela avistou o

palaacutecio do priacutencipe e subiu os degraus de maacutermore A lua esplendialiacutempida e viacutevida A Pequena Sereia bebeu a acre poccedilatildeo e parecia queuma faca de dois gumes trespassava seu corpo delicado Ela desmaioue caiu morta

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E D M U N D D U L A C

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O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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61A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

V

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30 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

longa espera Em muitas noites ela se postava agrave janela aberta e fitavaatraveacutes das aacuteguas azul-escuras os peixes sacudirem suas nadadeiras ecaudas Olhava bem para o alto e podia ver a lua e as estrelas emborasua luz fosse muito paacutelida ndash atraveacutes da aacutegua pareciam muito maioresque aos nossos olhos Se uma nuvem escura passava acima dela sabiaque era uma baleia que nadava sobre a sua cabeccedila ou um navio cheiode passageiros Aquelas pessoas nem sonhavam que uma sereiazinha

estendia suas matildeos brancas para o casco do navio que fendia as aacuteguas Assim que fez quinze anos a mais velha das princesas foi auto-

rizada a subir agrave superfiacutecie do oceano Quando voltou tinha dezenasde coisas para contar

mdash O mais delicioso ndash ela disse ndash foi ficar deitada em um bancode areia perto da praia numa noite de lua com o mar calmo Foipossiacutevel contemplar a grande cidade onde as luzes brilhavam como

milhares de estrelas Podia ouvir muacutesicas harmoniosas e o ruiacutedo decarros e pessoas Podia ver todas as torres das igrejas e ouvir os sinostocando ndash e exatamente por natildeo ter chegado perto de todas essas ma-ravilhas ansiava ainda mais por todas elas

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31A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

Oacute como a irmatilde caccedilulabebia aquelas palavras E mais

tarde agrave noite ficou junto agrave janelaaberta fitando atraveacutes das aacuteguasazul-escuras pensando na cidadegrande com seus ruiacutedos e luzes eateacute imaginou ouvir os sinos dasigrejas tocando para ela

No ano seguinte a segundairmatilde teve permissatildeo para subirmar acima e nadar aonde quisesseChegou agrave superfiacutecie bem na horado pocircr do sol

mdash Foi a visatildeo mais bela detodas ndash ela contou mdash Todo o

ceacuteu parecia ouro e as nuvensndash bem ela simplesmente natildeoconseguia descrever como eramlindas ao passar em tons de car-mesim e violeta sobre sua cabeccedila

Mais veloz ainda que as nu-

vens um bando de cisnes selvagensvoou como um longo e branco veacuteusobre a aacutegua rumo ao sol poenteEla nadou nessa direccedilatildeo mas o solse pocircs e sua luz roacutesea foi engolidapelo mar e pela nuvem

Depois chegou a vez da terceira irmatilde Era a mais ousada de todas

e nadou ateacute um largo rio que desaguava no mar Avistou admiraacuteveis co-linas verdes cobertas com videiras castelos e fazendas situados no meiode florestas soberbas e imensas ouviu o canto dos paacutessaros e o sol eratatildeo quente que teve de mergulhar muitas vezes na aacutegua para refrescar o

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32 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

rosto ardente Numa pequena enseada topou com um bando de crian-cinhas humanas divertindo-se completamente nuas na aacutegua

Quis brincar com elas mas ficaram aterrorizadas e fugiram De-pois um animalzinho preto foi ateacute a aacutegua Era um cachorro mas nuncatinha visto um O animal latiu tanto que ela ficou assustada e nadoupara o mar aberto Poreacutem disse que jamais esqueceria a magniacutefica flo-resta as colinas verdes e as lindas criancinhas que sabiam nadar emboranatildeo possuiacutessem caudas

A quarta irmatilde natildeo foi tatildeo ousada Preferiu ficar no meio do marselvagem onde a vista se perdia ao longe todavia foi exatamente issoela lhes contou que tornou sua visita tatildeo maravilhosa Podia ver pormilhas e milhas ao seu redor e o ceacuteu se arredondava em volta da aacuteguacomo um grande sino de vidro Vira navios mas a uma distacircncia tatildeogrande que pareciam gaivotas Os golfinhos brincavam nas ondas eas baleias esguichavam aacutegua tatildeo poderosamente de suas narinas que

pareciam estar cercadas por uma centena de chafarizesE agora era a vez da quinta irmatilde Como seu aniversaacuterio caiacutea no

inverno ela viu coisas que as outras natildeo tinham visto da primeira vezO mar perdera sua cor azul e adquirira um tom esverdeado e sobreele flutuavam enormes icebergs

mdash Cada um parecia uma peacuterola ndash ela disse ndash mas eram mais

altos que as torres de igrejas construiacutedas pelos seres humanos Apareciam nas formas mais fantaacutesticas e brilhavam como dia-mantes Ela se sentara num dos maiores icebergs e todos os naviospareciam ter medo dele pois passavam navegando rapidamente emuito distante do lugar onde ela estava sentada com o vento grace- jando seus longos cabelos

Mais tarde naquela noite uma tempestade cobriu o ceacuteu de nu-

vens Trovotildees estrondeavam relacircmpagos chispavam e as ondas es-curas elevavam os enormes blocos de gelo tatildeo alto que os tiravam daaacutegua fazendo-os reluzir na intensa luz vermelha Todos os naviosrecolheram as velas e em meio ao horror e ao alarme geral a sereia

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permaneceu sentada tranquilamente no iceberg flutuante vendo osrelacircmpagos azuis ziguezaguearem no mar resplandecente

Na primeira vez que as irmatildes subiram agrave superfiacutecie ficaram en-cantadas de ver tantas coisas novas e bonitas Poreacutem quando ficarammais velhas e podiam emergir sempre que queriam mostravam-semenos entusiasmadas Sentiam saudade do fundo do mar E depoisde um mecircs diziam que afinal de contas era muito mais agradaacutevel laacuteembaixo ndash era tatildeo reconfortante estar em casa No entanto muitasvezes ao entardecer as cinco irmatildes davam-se os braccedilos e flutuavam juntas Suas vozes eram encantadoras como nenhuma criatura hu-mana poderia possuir

Antes da aproximaccedilatildeo de uma tempestade quando esperavam onaufraacutegio de um navio as irmatildes costumavam nadar diante do barcoe cantar docemente as deliacutecias das profundezas do mar Diziam aosmarinheiros para natildeo terem medo de mergulhar ateacute o fundo mas eles

nunca entendiam suas canccedilotildees Pensavam estar ouvindo os uivos datempestade e nunca viam as maravilhas que as sereias prometiam Eassim que o navio afundava os homens se afogavam e somente seuscadaacuteveres chegavam ateacute o palaacutecio do rei do mar

Quando as irmatildes subiam pela aacutegua de braccedilos dados a caccedilulasempre ficava para traacutes sozinha acompanhando-as com os olhos Teriachorado mas as sereias natildeo tecircm laacutegrimas e sofrem muito mais que noacutes

mdash Oacute Se pelo menos eu tivesse quinze anos ndash ela dizia mdash Seique vou gostar muito do mundo laacute de cima e de todas as pessoas quevivem nele

Entatildeo finalmente ela fez quinze anosmdash Bem agora vocecirc logo escaparaacute das nossas matildeos ndash disse a velha

rainha sua avoacute mdash Venha deixe-me vesti-la como suas outras irmatildesE pocircs no seu cabelo uma coroa de liacuterios brancos em que cada

peacutetala de flor era metade de uma peacuterola Depois a velha senhoramandou trazer oito grandes ostras para prender firmemente na caudada princesa e mostrar sua alta posiccedilatildeo

mdash Ai Isso doacutei ndash disse a Pequena Sereia

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mdash Sim a beleza tem seu preccedilo ndash respondeu a avoacuteComo a Pequena Sereia teria gostado de se livrar de todos

aqueles adornos e pocircr de lado aquela pesada coroa As flores verme-lhas de seu jardim assentavam-lhe muito melhor mas natildeo ousoufazer nenhuma alteraccedilatildeo

mdash Adeus ndash disse ao subir pela aacutegua tatildeo leve e liacutempida quantoas bolhas se elevam agrave superfiacutecie

O sol acabara de se pocircr quando ela ergueu a cabeccedila sobre as

ondas mas as nuvens ainda estavam tingidas de carmesim e ouroNo alto do ceacuteu paacutelido e rosado a estrela vespertina iluminava clarae viacutevida O ar estava ameno e fresco e o mar apraziacutevel Um grandenavio de trecircs mastros estava agrave deriva na aacutegua com apenas uma velaiccedilada porque o vento estava brando Os marinheiros estavam refes-telados no cordame ou nas jardas Havia muacutesica e canto a bordo equando escureceu uma centena de lanternas foi acesa Com suas

muitas cores tinha-se a impressatildeo de que as bandeiras de todas asnaccedilotildees flutuavam no ar

A Pequena Sereia nadou ateacute a escotilha da cabine e cada vez queuma onda a levantava podia ver atraveacutes do vidro transparente umaquantidade de homens magnificamente trajados O mais belo delesera um jovem priacutencipe com grandes olhos escuros Natildeo tinha mais

de dezesseis anos Era seu aniversaacuterio e era por isso que havia tantoalvoroccedilo Quando o jovem priacutencipe saiu para o conveacutes onde os mari-nheiros estavam danccedilando mais de uma centena de foguetes zuniramrumo ao ceacuteu num esplendor tornando o ceacuteu tatildeo brilhante quanto odia A Pequena Sereia ficou tatildeo assustada que mergulhou escondendo--se sob a aacutegua mas rapidamente pocircs a cabeccedila para fora de novo Eveja Parecia que as estrelas laacute do ceacuteu estavam caindo sobre ela Nunca

vira fogos de artifiacutecios Grandes soacuteis rodopiavam ao seu redor lindospeixes de fogo refulgentes lanccedilavam-se no ar azul e todo esse brilhose refletia nas aacuteguas claras e calmas embaixo O proacuteprio navio estavatatildeo deslumbrantemente iluminado que se podiam ver natildeo soacute todas as

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pessoas que laacute estavam como tambeacutem a corda mais fina Que eleganteparecia o jovem priacutencipe quando apertava as matildeos dos marinheiros

Ele ria e sorria enquanto a muacutesica soava pelo ar da noite agradaacutevel Jaacute era muito tarde mas a Pequena Sereia natildeo conseguia tirar os

olhos do navio ou do belo priacutencipe As lanternas coloridas se apagaramos foguetes natildeo mais subiam no ar e o canhatildeo cessara de dar tirosContudo o mar estava inquieto e era possiacutevel ouvir um som queixososob as ondas Ainda assim a Pequena Sereia continuou na aacutegua balan-ccedilando-se para cima e para baixo para olhar a cabine O navio ganhouvelocidade e uma apoacutes outra as suas velas foram desferidas As ondascresciam nuvens negras se agrupavam no ceacuteu e relacircmpagos faiscavamagrave distacircncia Uma terriacutevel tempestade estava se formando Por isso osmarinheiros recolheram as velas enquanto o vento sacudia o grandenavio e o arrastava pelo mar impetuoso As ondas subiam mais e maisaltas ateacute se assemelharem a enormes montanhas ameaccedilando derrubar

o mastro Ainda assim o navio mergulhava como um cisne entre elase voltava a subir em cristas sublimes e espumosas A Pequena Sereiapensou que devia ser divertido para um navio navegar daquele jeitomas a tripulaccedilatildeo pensava diferente O barco gemia e rangia suas pran-chas soacutelidas rompiam-se sob as violentas pancadas do mar o mastropartiu-se ruidosamente em dois como um junco O navio inclinouquando a aacutegua se precipitou no poratildeo

De repente a Pequena Sereia percebeu que o navio estava emperigo Ela mesma tinha de ter cuidado com as vigas e os destroccedilosagrave deriva Em certos momentos ficava tatildeo escuro que natildeo conseguiaenxergar nada mas entatildeo o claratildeo de um relacircmpago iluminou todosa bordo Agora era cada por um si Ela estava agrave procura do jovem priacuten-cipe e no momento em que o navio se partia viu-o desaparecer nasprofundezas do mar Por um instante ficou bastante entusiasmada

pois pensou que agora ele poderia viver no seu mundo Mas logo selembrou que os seres humanos natildeo vivem debaixo drsquoaacutegua e que ele soacutechegaria morto ao palaacutecio de seu pai Natildeo natildeo ele natildeo podia morrer Assim ela nadou entre os destroccedilos que o mar arrastava indiferente

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ao perigo de ser esmagada Mergulhava profundamente e emergia dasondas e finalmente encontrou o jovem priacutencipe Ele mal conseguianadar no mar tempestuoso Seus membros fraquejavam seus belosolhos estavam fechados e certamente teria se afogado se a PequenaSereia natildeo tivesse ido a seu socorro Ela segurou-lhe a cabeccedila acimada aacutegua e abandonou-se com ele aos caprichos das ondas

Quando amanheceu a tempestade cessara e natildeo havia rastro donavio O sol despontou da aacutegua vermelho e resplandecente e pareceudevolver a cor agraves faces do priacutencipe mas os olhos dele permaneciam fe-chados A sereia beijou-lhe a fronte e ajeitou-lhe para traacutes o cabelo mo-lhado Aos seus olhos ele parecia a estaacutetua de maacutermore que tinha em seu jardinzinho Beijou-o de novo e fez um pedido para que ele pudesse viver

Logo a sereia viu diante de si terra firme com suas majestosas

montanhas azuis no alto das quais brilhava a branca neve parecendocisnes aninhados Perto da costa havia adoraacuteveis florestas verdes e junto a uma delas erguia-se um preacutedio alto se era uma igreja ou umconvento ela natildeo sabia dizer Limoeiros e laranjeiras cresciam no

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jardim e ao lado da porta havia trecircs altas palmeiras A pequena baiacutease formava nesse ponto e a aacutegua era plenamente calma embora muito

profunda A sereia nadou com o belo priacutencipe ateacute a praia coberta defina areia branca Ali colocou-o sob o sol quente fazendo um traves-seiro de areia para sua cabeccedila

Sinos soaram do preacutedio branco e vaacuterias moccedilas apareceram no jardim A Pequena Sereia afastou-se nadando para bem longe dapraia e escondeu-se atraacutes de uma pedra grande que se elevava acimada aacutegua Cobriu o cabelo e o peito com espuma do mar para que nin-gueacutem pudesse vecirc-la Depois ficou espiando para ver quem ajudaria opobre priacutencipe

Natildeo demorou muito e surgiu uma jovem Pareceu muito assus-tada mas soacute por um instante e correu para buscar ajuda A sereia viuo priacutencipe voltar a si e ele sorriu para todos ao seu redor Poreacutem natildeohavia nenhum sorriso para ela pois ele natildeo tinha ideia de quem o sal-

vara Depois que foi levado para o preacutedio a Pequena Sereia se sentiatatildeo infeliz que mergulhou de volta para o palaacutecio do paiEla sempre fora silenciosa e pensativa mas agora estava mais do

que nunca Suas irmatildes lhe perguntaram o que vira durante sua pri-meira visita agrave superfiacutecie mas ela natildeo lhes contava nada Em muitasmanhatildes e entardeceres subia ateacute o local onde deixara o priacutencipe Viuas frutas do jardim amadurecerem e observou-as serem colhidas Viu

a neve derreter nos picos Contudo nunca via o priacutencipe e por issosempre voltava para casa ainda mais cheia de tristeza do que antesSeu uacutenico consolo era ficar em seu jardinzinho com os braccedilos emtorno da estaacutetua de maacutermore tatildeo parecida com o priacutencipe Nuncamais cuidou das suas flores que se espalhavam selvagemente ao longodos caminhos entrelaccedilando seus longos galhos nos ramos das aacutervoresateacute obscurecer tudo

Por fim ela natildeo conseguiu mais guardar aquilo consigo e contoutudo a uma de suas irmatildes Logo as outras ficaram sabendo mas nin-gueacutem mais exceto algumas outras sereias que natildeo diriam nada a nin-gueacutem a natildeo ser agraves suas melhores amigas Uma delas foi capaz de lhe

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dar notiacutecias sobre o priacutencipe Ela tambeacutem vira os festejos realizados abordo e disse mais sobre o priacutencipe e a localizaccedilatildeo de seu reino

mdash Venha irmatildezinha ndash disseram as outras princesas E com osbraccedilos nos ombros uma das outras subiram em uma longa fila ateacute asuperfiacutecie bem diante do lugar onde se erguia o castelo do priacutencipe

O castelo construiacutedo de uma pedra amarela e luzidia tinhalongas escadarias de maacutermore sendo que um dos degraus levava di-reto para o mar Esplecircndidas cuacutepulas douradas elevavam-se do teto eentre as colunas que cercavam toda a construccedilatildeo havia esculturas demaacutermore que pareciam vivas Atraveacutes do vidro transparente das altas janelas era possiacutevel ver magniacuteficos aposentos ornados com suntuosascortinas de seda e tapeccedilarias As paredes eram cobertas com enormespinturas e era um prazer contemplaacute-las No centro do maior salatildeohavia uma fonte que lanccedilava seus jorros espumantes ateacute a cuacutepula devidro do teto atraveacutes do qual o sol brilhava na aacutegua e nas belas plantas

que cresciam ali Agora que sabia onde o priacutencipe vivia passava muitos pores dosol e muitas noites naquele lugar Nadava ateacute muito mais perto dacosta do que as outras ousavam Chegou a avanccedilar pelo estreito canalpara ir ateacute a varanda de maacutermore que projetava uma longa sombrasobre a aacutegua Ali ela se sentava e observava o jovem priacutencipe que pen-sava estar completamente soacute ao claratildeo da lua

Muitas vezes agrave noite a Pequena Sereia o via sair ao mar em seuesplecircndido barco com bandeiras hasteadas ao som de muacutesica harmo-niosa Espiava do meio dos juncos verdes e quando o vento levantavao longo veacuteu branco e prateado do seu cabelo e pessoas a viam ima-ginavam apenas que era um cisne estendendo as asas

Em muitas noites quando os pescadores saiam em alto mar comsuas tochas ela os ouvia elogiar o jovem priacutencipe e suas palavras a dei-

xavam ainda mais feliz por lhe ter salvado a vida E ela recordava comoaninhara a cabeccedila dele em seu peito e com que carinho o beijara Masele natildeo sabia nada disso e nunca sequer sonhara que ela existia

A Pequena Sereia foi se afeiccediloando mais e mais aos seres

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humanos e ansiava profundamente pela companhia deles Omundo em que viviam parecia tatildeo mais vasto que o seu proacuteprio

Veja eles podiam navegar o oceano em navios e escalar montanhasiacutengremes bem acima das nuvens E as terras que possuiacuteam suasflorestas e seus campos se estendiam muito aleacutem de onde sua vistaalcanccedilava Havia uma porccedilatildeo de outras coisas que ela teria gos-tado de saber e suas irmatildes natildeo eram capazes de responder a todasas suas curiosidades Por isso foi visitar sua velha avoacute que sabia

tudo sobre o mundo superior como chamava tatildeo apropriadamenteos paiacuteses acima do marmdash Quando natildeo se afogam ndash perguntou a Pequena Sereia ndash os

seres humanos podem continuar vivendo para sempre Natildeo morremcomo noacutes aqui embaixo no mar

mdash Sim sim ndash respondeu a velha senhora mdash Eles tambeacutem teratildeoque morrer e seu tempo de vida eacute mais curto que o nosso Noacutes por

vezes alcanccedilamos a idade de trezentos anos mas quando nossa vidaaqui chega ao fim simplesmente nos transformamos em espuma naaacutegua Aqui natildeo temos tuacutemulos daqueles que amamos Natildeo temosuma alma imortal e nunca teremos outra vida Noacutes somos como o junco verde Uma vez cortado cessa de crescer Jaacute os seres humanostecircm almas que vivem para sempre mesmo depois que seus corpos se

transformam em poacute Elas voam atraveacutes do ar puro ateacute chegarem agraves es-trelas brilhantes Assim como subimos agrave flor da aacutegua e contemplamosas terras dos seres humanos eles atingem belos reinos desconhecidosndash regiotildees que nunca conheceremos

mdash Por que natildeo podemos ter uma alma imortal ndash a PequenaSereia perguntou angustiada mdash Eu daria de boa vontade todos ostrezentos anos que tenho para viver se pudesse me tornar uma humana

por apenas um dia e participar do mundo celestialmdash Vocecirc natildeo deveria se preocupar com isso Somos muito mais

felizes e vivemos melhor aqui do que os seres humanos laacute em cimamdash Entatildeo estou condenada a morrer e flutuar como espuma do

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42 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mar a nunca mais ouvir a muacutesica das ondas ou ver as lindas flores eo sol vermelho Natildeo haacute nada que eu possa fazer para conquistar umaalma imortal

mdash Natildeo ndash disse a velha senhora mdash Soacute se um ser humano aamasse tanto que vocecirc importasse mais para ele que pai e matildee Se elea amasse de todo o coraccedilatildeo e deixasse o padre pocircr a matildeo direita sobre a

sua como uma promessa de ser fiel e verdadeiro por toda a eternidadeNesse caso a alma dele deslizaria para dentro do seu corpo e vocecirctambeacutem obteria uma parcela da felicidade humana Ele lhe daria umaalma e no entanto conservaria a dele proacuteprio Mas isso jamais acon-teceraacute Sua cauda de peixe que achamos tatildeo bonita parece repulsivaagrave gente da terra Sabem tatildeo pouco sobre isso que acreditam realmenteque as duas desajeitadas escoras que chamam de pernas satildeo belas

A Pequena Sereia suspirou e olhou melancolicamente para suacauda de peixe

mdash Devemos ficar satisfeitas com o que temos ndash disse a velhasenhora mdash Vamos danccedilar e nos alegrar durante os trezentos anos

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de nossa existecircncia isso eacute realmente muito tempo Depois da mortepoderemos descansar e pocircr o sono em dia Hoje teremos um baile

na corteNatildeo se pode fazer ideia na terra de tal magnificecircncia As paredes

e o teto do grande salatildeo do baile eram feitos de cristal espesso mastransparente Centenas de conchas enormes rosa-vermelho e verde--relva dispostas de cada lado cada uma com uma chama azul queiluminava todo o salatildeo e luzindo atraveacutes das paredes iluminavamtambeacutem o mar Inuacutemeros peixes grandes e pequenos podiam servistos nadando em direccedilatildeo agraves paredes de cristal As escamas de algunsfulgiam com um brilho puacuterpura-avermelhado e as de outros comoprata e ouro No meio do salatildeo corria um grande rio nos quais mo-luscos e sereias danccedilavam ao seu proacuteprio som melodioso

Nenhum ser humano tem voz tatildeo encantadora Ningueacutem can-tava mais docemente que a Pequena Sereia e todos a aplaudiram

Por um instante houve alegria em seu coraccedilatildeo pois ela sabia quetinha a voz mais bela em terra ou no mar Mas em seguida seuspensamentos se voltaram para o mundo acima dela Natildeo conseguiaesquecer o belo priacutencipe e a grande dor de natildeo ter a alma imortalque ele possuiacutea Assim se arrastou para fora do palaacutecio do pai eenquanto todos laacute dentro cantavam e se divertiam foi se sentar emseu jardinzinho desolada

De repente ela ouviu o som de uma buzina ecoando atraveacutes daaacutegua e pensou

mdash Ah laacute vai ele navegando laacute em cima Aquele a quem amomais do que meu pai ou minha matildee ele que estaacute sempre em meuspensamentos e em cujas matildeos eu confiaria alegremente minha fe-licidade Arriscaria qualquer coisa para conquistaacute-lo e a uma almaimortal Enquanto minhas irmatildes danccedilam no castelo de meu pai vou

agrave procura da feiticeira do mar Sempre tive um terriacutevel medo delamas talvez possa me ajudar e me dizer o que fazer

E assim a Pequena Sereia deixou seu jardim e partiu paraonde a feiticeira morava no lado mais distante dos redemoinhos

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espumantes Nunca estivera laacute antes Naquele lugar natildeo cresciamflores nem relva do mar Natildeo havia nada aleacutem do fundo arenoso ecinzento que se estendia ateacute os turbilhotildees onde a aacutegua rodopiavacom o estrondo da roda de moinho e sugava para as profundezastudo que podia Tinha de passar pelo meio desses furiosos torveli-nhos para chegar ateacute a feiticeira do mar Por um longo trecho natildeo

havia outro caminho senatildeo pela lama quente e borbulhante ndash que afeiticeira chamava de seu charco

A casa da feiticeira ficava atraacutes do charco no meio de uma flo-resta quimeacuterica Todas as aacutervores e arbustos eram verdadeiros poacuteliposmetade animal e metade vegetal Pareciam serpentes de cem cabeccedilascrescendo do solo Tinham galhos que pareciam braccedilos longos e vis-cosos com dedos tatildeo flexiacuteveis que se assemelhavam a vermes Noacute por

noacute da raiz ateacute a ponta estavam constantemente em movimento eagarravam hermeticamente qualquer coisa que pudessem aproveitardo mar e natildeo soltavam mais A Pequena Sereia ficou apavorada e sedeteve agrave beira da mata Seu coraccedilatildeo palpitava de medo e ela esteve

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prestes a desistir Mas entatildeo lembrou-se do priacutencipe e da alma hu-mana e retomou sua coragem Ela prendeu em torno da cabeccedila seu

longo e esvoaccedilante cabelo para que os poacutelipos natildeo a pudessem agarrarDepois cruzou os braccedilos sobre o peito e disparou adiante como umpeixe lanccedilado na aacutegua no meio dos soacuterdidos poacutelipos que estendiamem sua direccedilatildeo seus braccedilos e dedos buliccedilosos Ela notou como cadaum deles havia agarrado algo e imobilizava firmemente com umacentena de pequenos braccedilos que pareciam aros de ferro Esqueletosbrancos de seres humanos que haviam perecido no mar e afundadonas aacuteguas profundas olhavam dos braccedilos dos poacutelipos Lemes e arcasde navios estavam fortemente agarrados em seus braccedilos juntamentecom esqueletos de animais terrestres e ndash o mais terriacutevel de tudo ndash umasereiazinha que eles haviam capturado e estrangulado

Chegou entatildeo a um grande charco lodoso onde enormes e cor-pulentas cobras-drsquoaacutegua ondeavam-se no lamaccedilal mostrando seus

horrendos ventres amarelo-esbranquiccedilado No meio do charco haviauma casa construiacuteda com os ossos de humanos naufragados Laacute es-tava a feiticeira do mar deixando um sapo se alimentar na sua bocaassim como as pessoas nutrem agraves vezes um canaacuterio com um torratildeo deaccediluacutecar Ela chamava as asquerosas cobras-drsquoaacutegua de seus pintinhos edeixava-as rastejar sobre seu peito

mdash Eu sei exatamente o que vocecirc deseja ndash disse a feiticeira do

mar mdash Como vocecirc eacute estuacutepida Mas vocecirc deve seguir seu caminhoque vai lhe trazer infortuacutenio minha linda princesa Vocecirc quer se li-vrar de sua cauda de peixe e no lugar ter um par de tocos para andarcomo um ser humano a fim de que o jovem priacutencipe se apaixone porvocecirc e lhe decirc uma alma imortal

E com isso a feiticeira soltou uma gargalhada tatildeo alta e maleacuteficaque o sapo e as cobras caiacuteram estatelados no chatildeo

mdash Vocecirc veio na hora certa ndash disse a feiticeira mdash Amanhatildequando o sol se levantar eu natildeo serei mais capaz de ajudaacute-la Voupreparar um elixir para vocecirc Teraacute de nadar ateacute a costa com ele antesdo nascer do sol sentar-se na praia e tomaacute-lo Sua cauda entatildeo se

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46 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

H A R R Y C L A R K E

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47 A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

dividiraacute em duas e encolheraacute para se transformar naquilo que os sereshumanos chamam de ldquobelas pernasrdquo Mas vai doer Vocecirc sentiraacute como

se uma espada afiada a cortasse Todos que a virem diratildeo que vocecirc eacutea mais bela humana que jaacute encontraram Manteraacute seus movimentosgraciosos nenhuma danccedilarina jamais deslizaraacute tatildeo suavemente mascada passo que der a faraacute sentir como se estivesse pisando em umafaca afiada o bastante para fazer sangrar seus peacutes Se estiver dispostaa suportar tudo isso posso ajudaacute-la

mdash Sim ndash disse a Pequena Sereia com voz hesitante mas voltouseus pensamentos para o priacutencipe e ao precircmio de uma alma imortal

mdash Pense nisso com cuidado ndash alertou a feiticeira mdash Uma vez to-mada a forma de um ser humano nunca mais voltaraacute a ser uma sereiaVocecirc natildeo seraacute capaz de descer nadando ao encontro do palaacutecio de seupai e de suas irmatildes A uacutenica maneira de conseguir uma alma imortaleacute conquistando o amor do priacutencipe e fazer com que ele esqueccedila o pai

e a matildee por amor a vocecirc Ele deve tecirc-la sempre em seus pensamentose permitir que o padre una suas matildeos para que se tornem marido emulher Se o priacutencipe se casar com outra pessoa na manhatilde seguinteseu coraccedilatildeo se quebraraacute e vocecirc se tornaraacute espuma na crista das ondas

mdash Estou pronta ndash declarou a Pequena Sereia paacutelida comouma morta

mdash Mas teraacute que me recompensar ndash disse a feiticeira mdash Vocecirc natildeo

receberaacute minha ajuda sem nada em troca Vocecirc tem a mais formidaacutevelvoz entre todos que aqui habitam no fundo do mar Provavelmentepensa que encantaraacute o priacutencipe com ela mas teraacute que daacute-la para mimVou lhe exigir o que possui de melhor como pagamento por minhapoccedilatildeo Vocecirc entende tenho de misturar nela um pouco do meu proacutepriosangue para que o elixir seja afiado como uma espada de dois gumes

mdash Mas se tirar a minha voz o que me restaraacute ndash perguntou a

Pequena Sereiamdash Sua encantadora figura ndash disse a feiticeira ndash seus movimentos

graciosos e seus olhos expressivos Com eles pode simplesmente fas-cinar um coraccedilatildeo humano Bem onde estaacute sua coragem Estire a

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48 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

liacutengua e deixe-me cortaacute-la fora como pagamento Depois receberaacutesua poderosa poccedilatildeo

mdash Assim seja ndash concordou a Pequena Sereia e a feiticeira pocircsseu caldeiratildeo no fogo para destilar a poccedilatildeo maacutegica

mdash Limpeza antes de tudo ndash ela disse enquanto esfregava o re-cipiente com um feixe de viacuteboras que tinha atado num grande noacute

Em seguida deu um talho no proacuteprio seio e deixou gotejar onegro sangue no caldeiratildeo O vapor que subiu criava formas estranhasassustadoras de se ver A feiticeira continuava a juntar coisas novas

dentro do caldeiratildeo e quando o elixir comeccedilou a ferver parecia umchoro de crocodilo Finalmente a poccedilatildeo maacutegica ficou pronta e eraexatamente cristalina como aacutegua

mdash Aiacute estaacute vocecirc ndash disse a feiticeira ao cortar a liacutengua da PequenaSereia que agora estava muda e natildeo conseguia falar e cantar

mdash Se os poacutelipos a apanharem quando vocecirc retornar pela mata

ndash orientou a feiticeira ndash basta jogar sobre eles uma uacutenica gota destapoccedilatildeo e os braccedilos e dedos deles seratildeo dilacerados em mil pedaccedilosPoreacutem a Pequena Sereia natildeo precisou disso Os poacutelipos se enco-

lheram aterrorizados quando avistaram a luzente poccedilatildeo em sua matildeocomo uma estrela cintilante E assim passou rapidamente pela matapelo charco e pelos atroadores redemoinhos

A Pequena Sereia pocircde contemplar o palaacutecio do pai As luzes do

salatildeo de baile estavam apagadas Certamente laacute estavam todos dor-mindo a essa altura Mas natildeo se atreveu ir vecirc-los pois agora estavamuda e prestes a deixaacute-los para sempre Ela sentiu como se seu coraccedilatildeofosse partir de tanta dor Entrou secretamente no jardim pegou umaflor dos leitos de cada uma das irmatildes soprou mil beijos em direccedilatildeodo palaacutecio e depois subiu agrave superfiacutecie atraveacutes das aacuteguas azul-escuras

O sol ainda natildeo despontara no horizonte quando ela avistou o

palaacutecio do priacutencipe e subiu os degraus de maacutermore A lua esplendialiacutempida e viacutevida A Pequena Sereia bebeu a acre poccedilatildeo e parecia queuma faca de dois gumes trespassava seu corpo delicado Ela desmaioue caiu morta

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49A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

E D M U N D D U L A C

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50 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

H E L E N S T R A T T O N

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O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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52 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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53A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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54 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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55A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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57 A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

D U G A L D S T E W A R T WA L K E R 1 9 1 4

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59A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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60 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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61A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

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31A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

Oacute como a irmatilde caccedilulabebia aquelas palavras E mais

tarde agrave noite ficou junto agrave janelaaberta fitando atraveacutes das aacuteguasazul-escuras pensando na cidadegrande com seus ruiacutedos e luzes eateacute imaginou ouvir os sinos dasigrejas tocando para ela

No ano seguinte a segundairmatilde teve permissatildeo para subirmar acima e nadar aonde quisesseChegou agrave superfiacutecie bem na horado pocircr do sol

mdash Foi a visatildeo mais bela detodas ndash ela contou mdash Todo o

ceacuteu parecia ouro e as nuvensndash bem ela simplesmente natildeoconseguia descrever como eramlindas ao passar em tons de car-mesim e violeta sobre sua cabeccedila

Mais veloz ainda que as nu-

vens um bando de cisnes selvagensvoou como um longo e branco veacuteusobre a aacutegua rumo ao sol poenteEla nadou nessa direccedilatildeo mas o solse pocircs e sua luz roacutesea foi engolidapelo mar e pela nuvem

Depois chegou a vez da terceira irmatilde Era a mais ousada de todas

e nadou ateacute um largo rio que desaguava no mar Avistou admiraacuteveis co-linas verdes cobertas com videiras castelos e fazendas situados no meiode florestas soberbas e imensas ouviu o canto dos paacutessaros e o sol eratatildeo quente que teve de mergulhar muitas vezes na aacutegua para refrescar o

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rosto ardente Numa pequena enseada topou com um bando de crian-cinhas humanas divertindo-se completamente nuas na aacutegua

Quis brincar com elas mas ficaram aterrorizadas e fugiram De-pois um animalzinho preto foi ateacute a aacutegua Era um cachorro mas nuncatinha visto um O animal latiu tanto que ela ficou assustada e nadoupara o mar aberto Poreacutem disse que jamais esqueceria a magniacutefica flo-resta as colinas verdes e as lindas criancinhas que sabiam nadar emboranatildeo possuiacutessem caudas

A quarta irmatilde natildeo foi tatildeo ousada Preferiu ficar no meio do marselvagem onde a vista se perdia ao longe todavia foi exatamente issoela lhes contou que tornou sua visita tatildeo maravilhosa Podia ver pormilhas e milhas ao seu redor e o ceacuteu se arredondava em volta da aacuteguacomo um grande sino de vidro Vira navios mas a uma distacircncia tatildeogrande que pareciam gaivotas Os golfinhos brincavam nas ondas eas baleias esguichavam aacutegua tatildeo poderosamente de suas narinas que

pareciam estar cercadas por uma centena de chafarizesE agora era a vez da quinta irmatilde Como seu aniversaacuterio caiacutea no

inverno ela viu coisas que as outras natildeo tinham visto da primeira vezO mar perdera sua cor azul e adquirira um tom esverdeado e sobreele flutuavam enormes icebergs

mdash Cada um parecia uma peacuterola ndash ela disse ndash mas eram mais

altos que as torres de igrejas construiacutedas pelos seres humanos Apareciam nas formas mais fantaacutesticas e brilhavam como dia-mantes Ela se sentara num dos maiores icebergs e todos os naviospareciam ter medo dele pois passavam navegando rapidamente emuito distante do lugar onde ela estava sentada com o vento grace- jando seus longos cabelos

Mais tarde naquela noite uma tempestade cobriu o ceacuteu de nu-

vens Trovotildees estrondeavam relacircmpagos chispavam e as ondas es-curas elevavam os enormes blocos de gelo tatildeo alto que os tiravam daaacutegua fazendo-os reluzir na intensa luz vermelha Todos os naviosrecolheram as velas e em meio ao horror e ao alarme geral a sereia

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permaneceu sentada tranquilamente no iceberg flutuante vendo osrelacircmpagos azuis ziguezaguearem no mar resplandecente

Na primeira vez que as irmatildes subiram agrave superfiacutecie ficaram en-cantadas de ver tantas coisas novas e bonitas Poreacutem quando ficarammais velhas e podiam emergir sempre que queriam mostravam-semenos entusiasmadas Sentiam saudade do fundo do mar E depoisde um mecircs diziam que afinal de contas era muito mais agradaacutevel laacuteembaixo ndash era tatildeo reconfortante estar em casa No entanto muitasvezes ao entardecer as cinco irmatildes davam-se os braccedilos e flutuavam juntas Suas vozes eram encantadoras como nenhuma criatura hu-mana poderia possuir

Antes da aproximaccedilatildeo de uma tempestade quando esperavam onaufraacutegio de um navio as irmatildes costumavam nadar diante do barcoe cantar docemente as deliacutecias das profundezas do mar Diziam aosmarinheiros para natildeo terem medo de mergulhar ateacute o fundo mas eles

nunca entendiam suas canccedilotildees Pensavam estar ouvindo os uivos datempestade e nunca viam as maravilhas que as sereias prometiam Eassim que o navio afundava os homens se afogavam e somente seuscadaacuteveres chegavam ateacute o palaacutecio do rei do mar

Quando as irmatildes subiam pela aacutegua de braccedilos dados a caccedilulasempre ficava para traacutes sozinha acompanhando-as com os olhos Teriachorado mas as sereias natildeo tecircm laacutegrimas e sofrem muito mais que noacutes

mdash Oacute Se pelo menos eu tivesse quinze anos ndash ela dizia mdash Seique vou gostar muito do mundo laacute de cima e de todas as pessoas quevivem nele

Entatildeo finalmente ela fez quinze anosmdash Bem agora vocecirc logo escaparaacute das nossas matildeos ndash disse a velha

rainha sua avoacute mdash Venha deixe-me vesti-la como suas outras irmatildesE pocircs no seu cabelo uma coroa de liacuterios brancos em que cada

peacutetala de flor era metade de uma peacuterola Depois a velha senhoramandou trazer oito grandes ostras para prender firmemente na caudada princesa e mostrar sua alta posiccedilatildeo

mdash Ai Isso doacutei ndash disse a Pequena Sereia

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mdash Sim a beleza tem seu preccedilo ndash respondeu a avoacuteComo a Pequena Sereia teria gostado de se livrar de todos

aqueles adornos e pocircr de lado aquela pesada coroa As flores verme-lhas de seu jardim assentavam-lhe muito melhor mas natildeo ousoufazer nenhuma alteraccedilatildeo

mdash Adeus ndash disse ao subir pela aacutegua tatildeo leve e liacutempida quantoas bolhas se elevam agrave superfiacutecie

O sol acabara de se pocircr quando ela ergueu a cabeccedila sobre as

ondas mas as nuvens ainda estavam tingidas de carmesim e ouroNo alto do ceacuteu paacutelido e rosado a estrela vespertina iluminava clarae viacutevida O ar estava ameno e fresco e o mar apraziacutevel Um grandenavio de trecircs mastros estava agrave deriva na aacutegua com apenas uma velaiccedilada porque o vento estava brando Os marinheiros estavam refes-telados no cordame ou nas jardas Havia muacutesica e canto a bordo equando escureceu uma centena de lanternas foi acesa Com suas

muitas cores tinha-se a impressatildeo de que as bandeiras de todas asnaccedilotildees flutuavam no ar

A Pequena Sereia nadou ateacute a escotilha da cabine e cada vez queuma onda a levantava podia ver atraveacutes do vidro transparente umaquantidade de homens magnificamente trajados O mais belo delesera um jovem priacutencipe com grandes olhos escuros Natildeo tinha mais

de dezesseis anos Era seu aniversaacuterio e era por isso que havia tantoalvoroccedilo Quando o jovem priacutencipe saiu para o conveacutes onde os mari-nheiros estavam danccedilando mais de uma centena de foguetes zuniramrumo ao ceacuteu num esplendor tornando o ceacuteu tatildeo brilhante quanto odia A Pequena Sereia ficou tatildeo assustada que mergulhou escondendo--se sob a aacutegua mas rapidamente pocircs a cabeccedila para fora de novo Eveja Parecia que as estrelas laacute do ceacuteu estavam caindo sobre ela Nunca

vira fogos de artifiacutecios Grandes soacuteis rodopiavam ao seu redor lindospeixes de fogo refulgentes lanccedilavam-se no ar azul e todo esse brilhose refletia nas aacuteguas claras e calmas embaixo O proacuteprio navio estavatatildeo deslumbrantemente iluminado que se podiam ver natildeo soacute todas as

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pessoas que laacute estavam como tambeacutem a corda mais fina Que eleganteparecia o jovem priacutencipe quando apertava as matildeos dos marinheiros

Ele ria e sorria enquanto a muacutesica soava pelo ar da noite agradaacutevel Jaacute era muito tarde mas a Pequena Sereia natildeo conseguia tirar os

olhos do navio ou do belo priacutencipe As lanternas coloridas se apagaramos foguetes natildeo mais subiam no ar e o canhatildeo cessara de dar tirosContudo o mar estava inquieto e era possiacutevel ouvir um som queixososob as ondas Ainda assim a Pequena Sereia continuou na aacutegua balan-ccedilando-se para cima e para baixo para olhar a cabine O navio ganhouvelocidade e uma apoacutes outra as suas velas foram desferidas As ondascresciam nuvens negras se agrupavam no ceacuteu e relacircmpagos faiscavamagrave distacircncia Uma terriacutevel tempestade estava se formando Por isso osmarinheiros recolheram as velas enquanto o vento sacudia o grandenavio e o arrastava pelo mar impetuoso As ondas subiam mais e maisaltas ateacute se assemelharem a enormes montanhas ameaccedilando derrubar

o mastro Ainda assim o navio mergulhava como um cisne entre elase voltava a subir em cristas sublimes e espumosas A Pequena Sereiapensou que devia ser divertido para um navio navegar daquele jeitomas a tripulaccedilatildeo pensava diferente O barco gemia e rangia suas pran-chas soacutelidas rompiam-se sob as violentas pancadas do mar o mastropartiu-se ruidosamente em dois como um junco O navio inclinouquando a aacutegua se precipitou no poratildeo

De repente a Pequena Sereia percebeu que o navio estava emperigo Ela mesma tinha de ter cuidado com as vigas e os destroccedilosagrave deriva Em certos momentos ficava tatildeo escuro que natildeo conseguiaenxergar nada mas entatildeo o claratildeo de um relacircmpago iluminou todosa bordo Agora era cada por um si Ela estava agrave procura do jovem priacuten-cipe e no momento em que o navio se partia viu-o desaparecer nasprofundezas do mar Por um instante ficou bastante entusiasmada

pois pensou que agora ele poderia viver no seu mundo Mas logo selembrou que os seres humanos natildeo vivem debaixo drsquoaacutegua e que ele soacutechegaria morto ao palaacutecio de seu pai Natildeo natildeo ele natildeo podia morrer Assim ela nadou entre os destroccedilos que o mar arrastava indiferente

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ao perigo de ser esmagada Mergulhava profundamente e emergia dasondas e finalmente encontrou o jovem priacutencipe Ele mal conseguianadar no mar tempestuoso Seus membros fraquejavam seus belosolhos estavam fechados e certamente teria se afogado se a PequenaSereia natildeo tivesse ido a seu socorro Ela segurou-lhe a cabeccedila acimada aacutegua e abandonou-se com ele aos caprichos das ondas

Quando amanheceu a tempestade cessara e natildeo havia rastro donavio O sol despontou da aacutegua vermelho e resplandecente e pareceudevolver a cor agraves faces do priacutencipe mas os olhos dele permaneciam fe-chados A sereia beijou-lhe a fronte e ajeitou-lhe para traacutes o cabelo mo-lhado Aos seus olhos ele parecia a estaacutetua de maacutermore que tinha em seu jardinzinho Beijou-o de novo e fez um pedido para que ele pudesse viver

Logo a sereia viu diante de si terra firme com suas majestosas

montanhas azuis no alto das quais brilhava a branca neve parecendocisnes aninhados Perto da costa havia adoraacuteveis florestas verdes e junto a uma delas erguia-se um preacutedio alto se era uma igreja ou umconvento ela natildeo sabia dizer Limoeiros e laranjeiras cresciam no

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jardim e ao lado da porta havia trecircs altas palmeiras A pequena baiacutease formava nesse ponto e a aacutegua era plenamente calma embora muito

profunda A sereia nadou com o belo priacutencipe ateacute a praia coberta defina areia branca Ali colocou-o sob o sol quente fazendo um traves-seiro de areia para sua cabeccedila

Sinos soaram do preacutedio branco e vaacuterias moccedilas apareceram no jardim A Pequena Sereia afastou-se nadando para bem longe dapraia e escondeu-se atraacutes de uma pedra grande que se elevava acimada aacutegua Cobriu o cabelo e o peito com espuma do mar para que nin-gueacutem pudesse vecirc-la Depois ficou espiando para ver quem ajudaria opobre priacutencipe

Natildeo demorou muito e surgiu uma jovem Pareceu muito assus-tada mas soacute por um instante e correu para buscar ajuda A sereia viuo priacutencipe voltar a si e ele sorriu para todos ao seu redor Poreacutem natildeohavia nenhum sorriso para ela pois ele natildeo tinha ideia de quem o sal-

vara Depois que foi levado para o preacutedio a Pequena Sereia se sentiatatildeo infeliz que mergulhou de volta para o palaacutecio do paiEla sempre fora silenciosa e pensativa mas agora estava mais do

que nunca Suas irmatildes lhe perguntaram o que vira durante sua pri-meira visita agrave superfiacutecie mas ela natildeo lhes contava nada Em muitasmanhatildes e entardeceres subia ateacute o local onde deixara o priacutencipe Viuas frutas do jardim amadurecerem e observou-as serem colhidas Viu

a neve derreter nos picos Contudo nunca via o priacutencipe e por issosempre voltava para casa ainda mais cheia de tristeza do que antesSeu uacutenico consolo era ficar em seu jardinzinho com os braccedilos emtorno da estaacutetua de maacutermore tatildeo parecida com o priacutencipe Nuncamais cuidou das suas flores que se espalhavam selvagemente ao longodos caminhos entrelaccedilando seus longos galhos nos ramos das aacutervoresateacute obscurecer tudo

Por fim ela natildeo conseguiu mais guardar aquilo consigo e contoutudo a uma de suas irmatildes Logo as outras ficaram sabendo mas nin-gueacutem mais exceto algumas outras sereias que natildeo diriam nada a nin-gueacutem a natildeo ser agraves suas melhores amigas Uma delas foi capaz de lhe

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dar notiacutecias sobre o priacutencipe Ela tambeacutem vira os festejos realizados abordo e disse mais sobre o priacutencipe e a localizaccedilatildeo de seu reino

mdash Venha irmatildezinha ndash disseram as outras princesas E com osbraccedilos nos ombros uma das outras subiram em uma longa fila ateacute asuperfiacutecie bem diante do lugar onde se erguia o castelo do priacutencipe

O castelo construiacutedo de uma pedra amarela e luzidia tinhalongas escadarias de maacutermore sendo que um dos degraus levava di-reto para o mar Esplecircndidas cuacutepulas douradas elevavam-se do teto eentre as colunas que cercavam toda a construccedilatildeo havia esculturas demaacutermore que pareciam vivas Atraveacutes do vidro transparente das altas janelas era possiacutevel ver magniacuteficos aposentos ornados com suntuosascortinas de seda e tapeccedilarias As paredes eram cobertas com enormespinturas e era um prazer contemplaacute-las No centro do maior salatildeohavia uma fonte que lanccedilava seus jorros espumantes ateacute a cuacutepula devidro do teto atraveacutes do qual o sol brilhava na aacutegua e nas belas plantas

que cresciam ali Agora que sabia onde o priacutencipe vivia passava muitos pores dosol e muitas noites naquele lugar Nadava ateacute muito mais perto dacosta do que as outras ousavam Chegou a avanccedilar pelo estreito canalpara ir ateacute a varanda de maacutermore que projetava uma longa sombrasobre a aacutegua Ali ela se sentava e observava o jovem priacutencipe que pen-sava estar completamente soacute ao claratildeo da lua

Muitas vezes agrave noite a Pequena Sereia o via sair ao mar em seuesplecircndido barco com bandeiras hasteadas ao som de muacutesica harmo-niosa Espiava do meio dos juncos verdes e quando o vento levantavao longo veacuteu branco e prateado do seu cabelo e pessoas a viam ima-ginavam apenas que era um cisne estendendo as asas

Em muitas noites quando os pescadores saiam em alto mar comsuas tochas ela os ouvia elogiar o jovem priacutencipe e suas palavras a dei-

xavam ainda mais feliz por lhe ter salvado a vida E ela recordava comoaninhara a cabeccedila dele em seu peito e com que carinho o beijara Masele natildeo sabia nada disso e nunca sequer sonhara que ela existia

A Pequena Sereia foi se afeiccediloando mais e mais aos seres

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humanos e ansiava profundamente pela companhia deles Omundo em que viviam parecia tatildeo mais vasto que o seu proacuteprio

Veja eles podiam navegar o oceano em navios e escalar montanhasiacutengremes bem acima das nuvens E as terras que possuiacuteam suasflorestas e seus campos se estendiam muito aleacutem de onde sua vistaalcanccedilava Havia uma porccedilatildeo de outras coisas que ela teria gos-tado de saber e suas irmatildes natildeo eram capazes de responder a todasas suas curiosidades Por isso foi visitar sua velha avoacute que sabia

tudo sobre o mundo superior como chamava tatildeo apropriadamenteos paiacuteses acima do marmdash Quando natildeo se afogam ndash perguntou a Pequena Sereia ndash os

seres humanos podem continuar vivendo para sempre Natildeo morremcomo noacutes aqui embaixo no mar

mdash Sim sim ndash respondeu a velha senhora mdash Eles tambeacutem teratildeoque morrer e seu tempo de vida eacute mais curto que o nosso Noacutes por

vezes alcanccedilamos a idade de trezentos anos mas quando nossa vidaaqui chega ao fim simplesmente nos transformamos em espuma naaacutegua Aqui natildeo temos tuacutemulos daqueles que amamos Natildeo temosuma alma imortal e nunca teremos outra vida Noacutes somos como o junco verde Uma vez cortado cessa de crescer Jaacute os seres humanostecircm almas que vivem para sempre mesmo depois que seus corpos se

transformam em poacute Elas voam atraveacutes do ar puro ateacute chegarem agraves es-trelas brilhantes Assim como subimos agrave flor da aacutegua e contemplamosas terras dos seres humanos eles atingem belos reinos desconhecidosndash regiotildees que nunca conheceremos

mdash Por que natildeo podemos ter uma alma imortal ndash a PequenaSereia perguntou angustiada mdash Eu daria de boa vontade todos ostrezentos anos que tenho para viver se pudesse me tornar uma humana

por apenas um dia e participar do mundo celestialmdash Vocecirc natildeo deveria se preocupar com isso Somos muito mais

felizes e vivemos melhor aqui do que os seres humanos laacute em cimamdash Entatildeo estou condenada a morrer e flutuar como espuma do

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mar a nunca mais ouvir a muacutesica das ondas ou ver as lindas flores eo sol vermelho Natildeo haacute nada que eu possa fazer para conquistar umaalma imortal

mdash Natildeo ndash disse a velha senhora mdash Soacute se um ser humano aamasse tanto que vocecirc importasse mais para ele que pai e matildee Se elea amasse de todo o coraccedilatildeo e deixasse o padre pocircr a matildeo direita sobre a

sua como uma promessa de ser fiel e verdadeiro por toda a eternidadeNesse caso a alma dele deslizaria para dentro do seu corpo e vocecirctambeacutem obteria uma parcela da felicidade humana Ele lhe daria umaalma e no entanto conservaria a dele proacuteprio Mas isso jamais acon-teceraacute Sua cauda de peixe que achamos tatildeo bonita parece repulsivaagrave gente da terra Sabem tatildeo pouco sobre isso que acreditam realmenteque as duas desajeitadas escoras que chamam de pernas satildeo belas

A Pequena Sereia suspirou e olhou melancolicamente para suacauda de peixe

mdash Devemos ficar satisfeitas com o que temos ndash disse a velhasenhora mdash Vamos danccedilar e nos alegrar durante os trezentos anos

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de nossa existecircncia isso eacute realmente muito tempo Depois da mortepoderemos descansar e pocircr o sono em dia Hoje teremos um baile

na corteNatildeo se pode fazer ideia na terra de tal magnificecircncia As paredes

e o teto do grande salatildeo do baile eram feitos de cristal espesso mastransparente Centenas de conchas enormes rosa-vermelho e verde--relva dispostas de cada lado cada uma com uma chama azul queiluminava todo o salatildeo e luzindo atraveacutes das paredes iluminavamtambeacutem o mar Inuacutemeros peixes grandes e pequenos podiam servistos nadando em direccedilatildeo agraves paredes de cristal As escamas de algunsfulgiam com um brilho puacuterpura-avermelhado e as de outros comoprata e ouro No meio do salatildeo corria um grande rio nos quais mo-luscos e sereias danccedilavam ao seu proacuteprio som melodioso

Nenhum ser humano tem voz tatildeo encantadora Ningueacutem can-tava mais docemente que a Pequena Sereia e todos a aplaudiram

Por um instante houve alegria em seu coraccedilatildeo pois ela sabia quetinha a voz mais bela em terra ou no mar Mas em seguida seuspensamentos se voltaram para o mundo acima dela Natildeo conseguiaesquecer o belo priacutencipe e a grande dor de natildeo ter a alma imortalque ele possuiacutea Assim se arrastou para fora do palaacutecio do pai eenquanto todos laacute dentro cantavam e se divertiam foi se sentar emseu jardinzinho desolada

De repente ela ouviu o som de uma buzina ecoando atraveacutes daaacutegua e pensou

mdash Ah laacute vai ele navegando laacute em cima Aquele a quem amomais do que meu pai ou minha matildee ele que estaacute sempre em meuspensamentos e em cujas matildeos eu confiaria alegremente minha fe-licidade Arriscaria qualquer coisa para conquistaacute-lo e a uma almaimortal Enquanto minhas irmatildes danccedilam no castelo de meu pai vou

agrave procura da feiticeira do mar Sempre tive um terriacutevel medo delamas talvez possa me ajudar e me dizer o que fazer

E assim a Pequena Sereia deixou seu jardim e partiu paraonde a feiticeira morava no lado mais distante dos redemoinhos

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espumantes Nunca estivera laacute antes Naquele lugar natildeo cresciamflores nem relva do mar Natildeo havia nada aleacutem do fundo arenoso ecinzento que se estendia ateacute os turbilhotildees onde a aacutegua rodopiavacom o estrondo da roda de moinho e sugava para as profundezastudo que podia Tinha de passar pelo meio desses furiosos torveli-nhos para chegar ateacute a feiticeira do mar Por um longo trecho natildeo

havia outro caminho senatildeo pela lama quente e borbulhante ndash que afeiticeira chamava de seu charco

A casa da feiticeira ficava atraacutes do charco no meio de uma flo-resta quimeacuterica Todas as aacutervores e arbustos eram verdadeiros poacuteliposmetade animal e metade vegetal Pareciam serpentes de cem cabeccedilascrescendo do solo Tinham galhos que pareciam braccedilos longos e vis-cosos com dedos tatildeo flexiacuteveis que se assemelhavam a vermes Noacute por

noacute da raiz ateacute a ponta estavam constantemente em movimento eagarravam hermeticamente qualquer coisa que pudessem aproveitardo mar e natildeo soltavam mais A Pequena Sereia ficou apavorada e sedeteve agrave beira da mata Seu coraccedilatildeo palpitava de medo e ela esteve

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prestes a desistir Mas entatildeo lembrou-se do priacutencipe e da alma hu-mana e retomou sua coragem Ela prendeu em torno da cabeccedila seu

longo e esvoaccedilante cabelo para que os poacutelipos natildeo a pudessem agarrarDepois cruzou os braccedilos sobre o peito e disparou adiante como umpeixe lanccedilado na aacutegua no meio dos soacuterdidos poacutelipos que estendiamem sua direccedilatildeo seus braccedilos e dedos buliccedilosos Ela notou como cadaum deles havia agarrado algo e imobilizava firmemente com umacentena de pequenos braccedilos que pareciam aros de ferro Esqueletosbrancos de seres humanos que haviam perecido no mar e afundadonas aacuteguas profundas olhavam dos braccedilos dos poacutelipos Lemes e arcasde navios estavam fortemente agarrados em seus braccedilos juntamentecom esqueletos de animais terrestres e ndash o mais terriacutevel de tudo ndash umasereiazinha que eles haviam capturado e estrangulado

Chegou entatildeo a um grande charco lodoso onde enormes e cor-pulentas cobras-drsquoaacutegua ondeavam-se no lamaccedilal mostrando seus

horrendos ventres amarelo-esbranquiccedilado No meio do charco haviauma casa construiacuteda com os ossos de humanos naufragados Laacute es-tava a feiticeira do mar deixando um sapo se alimentar na sua bocaassim como as pessoas nutrem agraves vezes um canaacuterio com um torratildeo deaccediluacutecar Ela chamava as asquerosas cobras-drsquoaacutegua de seus pintinhos edeixava-as rastejar sobre seu peito

mdash Eu sei exatamente o que vocecirc deseja ndash disse a feiticeira do

mar mdash Como vocecirc eacute estuacutepida Mas vocecirc deve seguir seu caminhoque vai lhe trazer infortuacutenio minha linda princesa Vocecirc quer se li-vrar de sua cauda de peixe e no lugar ter um par de tocos para andarcomo um ser humano a fim de que o jovem priacutencipe se apaixone porvocecirc e lhe decirc uma alma imortal

E com isso a feiticeira soltou uma gargalhada tatildeo alta e maleacuteficaque o sapo e as cobras caiacuteram estatelados no chatildeo

mdash Vocecirc veio na hora certa ndash disse a feiticeira mdash Amanhatildequando o sol se levantar eu natildeo serei mais capaz de ajudaacute-la Voupreparar um elixir para vocecirc Teraacute de nadar ateacute a costa com ele antesdo nascer do sol sentar-se na praia e tomaacute-lo Sua cauda entatildeo se

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H A R R Y C L A R K E

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dividiraacute em duas e encolheraacute para se transformar naquilo que os sereshumanos chamam de ldquobelas pernasrdquo Mas vai doer Vocecirc sentiraacute como

se uma espada afiada a cortasse Todos que a virem diratildeo que vocecirc eacutea mais bela humana que jaacute encontraram Manteraacute seus movimentosgraciosos nenhuma danccedilarina jamais deslizaraacute tatildeo suavemente mascada passo que der a faraacute sentir como se estivesse pisando em umafaca afiada o bastante para fazer sangrar seus peacutes Se estiver dispostaa suportar tudo isso posso ajudaacute-la

mdash Sim ndash disse a Pequena Sereia com voz hesitante mas voltouseus pensamentos para o priacutencipe e ao precircmio de uma alma imortal

mdash Pense nisso com cuidado ndash alertou a feiticeira mdash Uma vez to-mada a forma de um ser humano nunca mais voltaraacute a ser uma sereiaVocecirc natildeo seraacute capaz de descer nadando ao encontro do palaacutecio de seupai e de suas irmatildes A uacutenica maneira de conseguir uma alma imortaleacute conquistando o amor do priacutencipe e fazer com que ele esqueccedila o pai

e a matildee por amor a vocecirc Ele deve tecirc-la sempre em seus pensamentose permitir que o padre una suas matildeos para que se tornem marido emulher Se o priacutencipe se casar com outra pessoa na manhatilde seguinteseu coraccedilatildeo se quebraraacute e vocecirc se tornaraacute espuma na crista das ondas

mdash Estou pronta ndash declarou a Pequena Sereia paacutelida comouma morta

mdash Mas teraacute que me recompensar ndash disse a feiticeira mdash Vocecirc natildeo

receberaacute minha ajuda sem nada em troca Vocecirc tem a mais formidaacutevelvoz entre todos que aqui habitam no fundo do mar Provavelmentepensa que encantaraacute o priacutencipe com ela mas teraacute que daacute-la para mimVou lhe exigir o que possui de melhor como pagamento por minhapoccedilatildeo Vocecirc entende tenho de misturar nela um pouco do meu proacutepriosangue para que o elixir seja afiado como uma espada de dois gumes

mdash Mas se tirar a minha voz o que me restaraacute ndash perguntou a

Pequena Sereiamdash Sua encantadora figura ndash disse a feiticeira ndash seus movimentos

graciosos e seus olhos expressivos Com eles pode simplesmente fas-cinar um coraccedilatildeo humano Bem onde estaacute sua coragem Estire a

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48 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

liacutengua e deixe-me cortaacute-la fora como pagamento Depois receberaacutesua poderosa poccedilatildeo

mdash Assim seja ndash concordou a Pequena Sereia e a feiticeira pocircsseu caldeiratildeo no fogo para destilar a poccedilatildeo maacutegica

mdash Limpeza antes de tudo ndash ela disse enquanto esfregava o re-cipiente com um feixe de viacuteboras que tinha atado num grande noacute

Em seguida deu um talho no proacuteprio seio e deixou gotejar onegro sangue no caldeiratildeo O vapor que subiu criava formas estranhasassustadoras de se ver A feiticeira continuava a juntar coisas novas

dentro do caldeiratildeo e quando o elixir comeccedilou a ferver parecia umchoro de crocodilo Finalmente a poccedilatildeo maacutegica ficou pronta e eraexatamente cristalina como aacutegua

mdash Aiacute estaacute vocecirc ndash disse a feiticeira ao cortar a liacutengua da PequenaSereia que agora estava muda e natildeo conseguia falar e cantar

mdash Se os poacutelipos a apanharem quando vocecirc retornar pela mata

ndash orientou a feiticeira ndash basta jogar sobre eles uma uacutenica gota destapoccedilatildeo e os braccedilos e dedos deles seratildeo dilacerados em mil pedaccedilosPoreacutem a Pequena Sereia natildeo precisou disso Os poacutelipos se enco-

lheram aterrorizados quando avistaram a luzente poccedilatildeo em sua matildeocomo uma estrela cintilante E assim passou rapidamente pela matapelo charco e pelos atroadores redemoinhos

A Pequena Sereia pocircde contemplar o palaacutecio do pai As luzes do

salatildeo de baile estavam apagadas Certamente laacute estavam todos dor-mindo a essa altura Mas natildeo se atreveu ir vecirc-los pois agora estavamuda e prestes a deixaacute-los para sempre Ela sentiu como se seu coraccedilatildeofosse partir de tanta dor Entrou secretamente no jardim pegou umaflor dos leitos de cada uma das irmatildes soprou mil beijos em direccedilatildeodo palaacutecio e depois subiu agrave superfiacutecie atraveacutes das aacuteguas azul-escuras

O sol ainda natildeo despontara no horizonte quando ela avistou o

palaacutecio do priacutencipe e subiu os degraus de maacutermore A lua esplendialiacutempida e viacutevida A Pequena Sereia bebeu a acre poccedilatildeo e parecia queuma faca de dois gumes trespassava seu corpo delicado Ela desmaioue caiu morta

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49A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

E D M U N D D U L A C

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50 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

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O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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52 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

H E L E N S T R A T T O N

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61A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

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rosto ardente Numa pequena enseada topou com um bando de crian-cinhas humanas divertindo-se completamente nuas na aacutegua

Quis brincar com elas mas ficaram aterrorizadas e fugiram De-pois um animalzinho preto foi ateacute a aacutegua Era um cachorro mas nuncatinha visto um O animal latiu tanto que ela ficou assustada e nadoupara o mar aberto Poreacutem disse que jamais esqueceria a magniacutefica flo-resta as colinas verdes e as lindas criancinhas que sabiam nadar emboranatildeo possuiacutessem caudas

A quarta irmatilde natildeo foi tatildeo ousada Preferiu ficar no meio do marselvagem onde a vista se perdia ao longe todavia foi exatamente issoela lhes contou que tornou sua visita tatildeo maravilhosa Podia ver pormilhas e milhas ao seu redor e o ceacuteu se arredondava em volta da aacuteguacomo um grande sino de vidro Vira navios mas a uma distacircncia tatildeogrande que pareciam gaivotas Os golfinhos brincavam nas ondas eas baleias esguichavam aacutegua tatildeo poderosamente de suas narinas que

pareciam estar cercadas por uma centena de chafarizesE agora era a vez da quinta irmatilde Como seu aniversaacuterio caiacutea no

inverno ela viu coisas que as outras natildeo tinham visto da primeira vezO mar perdera sua cor azul e adquirira um tom esverdeado e sobreele flutuavam enormes icebergs

mdash Cada um parecia uma peacuterola ndash ela disse ndash mas eram mais

altos que as torres de igrejas construiacutedas pelos seres humanos Apareciam nas formas mais fantaacutesticas e brilhavam como dia-mantes Ela se sentara num dos maiores icebergs e todos os naviospareciam ter medo dele pois passavam navegando rapidamente emuito distante do lugar onde ela estava sentada com o vento grace- jando seus longos cabelos

Mais tarde naquela noite uma tempestade cobriu o ceacuteu de nu-

vens Trovotildees estrondeavam relacircmpagos chispavam e as ondas es-curas elevavam os enormes blocos de gelo tatildeo alto que os tiravam daaacutegua fazendo-os reluzir na intensa luz vermelha Todos os naviosrecolheram as velas e em meio ao horror e ao alarme geral a sereia

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permaneceu sentada tranquilamente no iceberg flutuante vendo osrelacircmpagos azuis ziguezaguearem no mar resplandecente

Na primeira vez que as irmatildes subiram agrave superfiacutecie ficaram en-cantadas de ver tantas coisas novas e bonitas Poreacutem quando ficarammais velhas e podiam emergir sempre que queriam mostravam-semenos entusiasmadas Sentiam saudade do fundo do mar E depoisde um mecircs diziam que afinal de contas era muito mais agradaacutevel laacuteembaixo ndash era tatildeo reconfortante estar em casa No entanto muitasvezes ao entardecer as cinco irmatildes davam-se os braccedilos e flutuavam juntas Suas vozes eram encantadoras como nenhuma criatura hu-mana poderia possuir

Antes da aproximaccedilatildeo de uma tempestade quando esperavam onaufraacutegio de um navio as irmatildes costumavam nadar diante do barcoe cantar docemente as deliacutecias das profundezas do mar Diziam aosmarinheiros para natildeo terem medo de mergulhar ateacute o fundo mas eles

nunca entendiam suas canccedilotildees Pensavam estar ouvindo os uivos datempestade e nunca viam as maravilhas que as sereias prometiam Eassim que o navio afundava os homens se afogavam e somente seuscadaacuteveres chegavam ateacute o palaacutecio do rei do mar

Quando as irmatildes subiam pela aacutegua de braccedilos dados a caccedilulasempre ficava para traacutes sozinha acompanhando-as com os olhos Teriachorado mas as sereias natildeo tecircm laacutegrimas e sofrem muito mais que noacutes

mdash Oacute Se pelo menos eu tivesse quinze anos ndash ela dizia mdash Seique vou gostar muito do mundo laacute de cima e de todas as pessoas quevivem nele

Entatildeo finalmente ela fez quinze anosmdash Bem agora vocecirc logo escaparaacute das nossas matildeos ndash disse a velha

rainha sua avoacute mdash Venha deixe-me vesti-la como suas outras irmatildesE pocircs no seu cabelo uma coroa de liacuterios brancos em que cada

peacutetala de flor era metade de uma peacuterola Depois a velha senhoramandou trazer oito grandes ostras para prender firmemente na caudada princesa e mostrar sua alta posiccedilatildeo

mdash Ai Isso doacutei ndash disse a Pequena Sereia

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35A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

mdash Sim a beleza tem seu preccedilo ndash respondeu a avoacuteComo a Pequena Sereia teria gostado de se livrar de todos

aqueles adornos e pocircr de lado aquela pesada coroa As flores verme-lhas de seu jardim assentavam-lhe muito melhor mas natildeo ousoufazer nenhuma alteraccedilatildeo

mdash Adeus ndash disse ao subir pela aacutegua tatildeo leve e liacutempida quantoas bolhas se elevam agrave superfiacutecie

O sol acabara de se pocircr quando ela ergueu a cabeccedila sobre as

ondas mas as nuvens ainda estavam tingidas de carmesim e ouroNo alto do ceacuteu paacutelido e rosado a estrela vespertina iluminava clarae viacutevida O ar estava ameno e fresco e o mar apraziacutevel Um grandenavio de trecircs mastros estava agrave deriva na aacutegua com apenas uma velaiccedilada porque o vento estava brando Os marinheiros estavam refes-telados no cordame ou nas jardas Havia muacutesica e canto a bordo equando escureceu uma centena de lanternas foi acesa Com suas

muitas cores tinha-se a impressatildeo de que as bandeiras de todas asnaccedilotildees flutuavam no ar

A Pequena Sereia nadou ateacute a escotilha da cabine e cada vez queuma onda a levantava podia ver atraveacutes do vidro transparente umaquantidade de homens magnificamente trajados O mais belo delesera um jovem priacutencipe com grandes olhos escuros Natildeo tinha mais

de dezesseis anos Era seu aniversaacuterio e era por isso que havia tantoalvoroccedilo Quando o jovem priacutencipe saiu para o conveacutes onde os mari-nheiros estavam danccedilando mais de uma centena de foguetes zuniramrumo ao ceacuteu num esplendor tornando o ceacuteu tatildeo brilhante quanto odia A Pequena Sereia ficou tatildeo assustada que mergulhou escondendo--se sob a aacutegua mas rapidamente pocircs a cabeccedila para fora de novo Eveja Parecia que as estrelas laacute do ceacuteu estavam caindo sobre ela Nunca

vira fogos de artifiacutecios Grandes soacuteis rodopiavam ao seu redor lindospeixes de fogo refulgentes lanccedilavam-se no ar azul e todo esse brilhose refletia nas aacuteguas claras e calmas embaixo O proacuteprio navio estavatatildeo deslumbrantemente iluminado que se podiam ver natildeo soacute todas as

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36 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

pessoas que laacute estavam como tambeacutem a corda mais fina Que eleganteparecia o jovem priacutencipe quando apertava as matildeos dos marinheiros

Ele ria e sorria enquanto a muacutesica soava pelo ar da noite agradaacutevel Jaacute era muito tarde mas a Pequena Sereia natildeo conseguia tirar os

olhos do navio ou do belo priacutencipe As lanternas coloridas se apagaramos foguetes natildeo mais subiam no ar e o canhatildeo cessara de dar tirosContudo o mar estava inquieto e era possiacutevel ouvir um som queixososob as ondas Ainda assim a Pequena Sereia continuou na aacutegua balan-ccedilando-se para cima e para baixo para olhar a cabine O navio ganhouvelocidade e uma apoacutes outra as suas velas foram desferidas As ondascresciam nuvens negras se agrupavam no ceacuteu e relacircmpagos faiscavamagrave distacircncia Uma terriacutevel tempestade estava se formando Por isso osmarinheiros recolheram as velas enquanto o vento sacudia o grandenavio e o arrastava pelo mar impetuoso As ondas subiam mais e maisaltas ateacute se assemelharem a enormes montanhas ameaccedilando derrubar

o mastro Ainda assim o navio mergulhava como um cisne entre elase voltava a subir em cristas sublimes e espumosas A Pequena Sereiapensou que devia ser divertido para um navio navegar daquele jeitomas a tripulaccedilatildeo pensava diferente O barco gemia e rangia suas pran-chas soacutelidas rompiam-se sob as violentas pancadas do mar o mastropartiu-se ruidosamente em dois como um junco O navio inclinouquando a aacutegua se precipitou no poratildeo

De repente a Pequena Sereia percebeu que o navio estava emperigo Ela mesma tinha de ter cuidado com as vigas e os destroccedilosagrave deriva Em certos momentos ficava tatildeo escuro que natildeo conseguiaenxergar nada mas entatildeo o claratildeo de um relacircmpago iluminou todosa bordo Agora era cada por um si Ela estava agrave procura do jovem priacuten-cipe e no momento em que o navio se partia viu-o desaparecer nasprofundezas do mar Por um instante ficou bastante entusiasmada

pois pensou que agora ele poderia viver no seu mundo Mas logo selembrou que os seres humanos natildeo vivem debaixo drsquoaacutegua e que ele soacutechegaria morto ao palaacutecio de seu pai Natildeo natildeo ele natildeo podia morrer Assim ela nadou entre os destroccedilos que o mar arrastava indiferente

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37 A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

ao perigo de ser esmagada Mergulhava profundamente e emergia dasondas e finalmente encontrou o jovem priacutencipe Ele mal conseguianadar no mar tempestuoso Seus membros fraquejavam seus belosolhos estavam fechados e certamente teria se afogado se a PequenaSereia natildeo tivesse ido a seu socorro Ela segurou-lhe a cabeccedila acimada aacutegua e abandonou-se com ele aos caprichos das ondas

Quando amanheceu a tempestade cessara e natildeo havia rastro donavio O sol despontou da aacutegua vermelho e resplandecente e pareceudevolver a cor agraves faces do priacutencipe mas os olhos dele permaneciam fe-chados A sereia beijou-lhe a fronte e ajeitou-lhe para traacutes o cabelo mo-lhado Aos seus olhos ele parecia a estaacutetua de maacutermore que tinha em seu jardinzinho Beijou-o de novo e fez um pedido para que ele pudesse viver

Logo a sereia viu diante de si terra firme com suas majestosas

montanhas azuis no alto das quais brilhava a branca neve parecendocisnes aninhados Perto da costa havia adoraacuteveis florestas verdes e junto a uma delas erguia-se um preacutedio alto se era uma igreja ou umconvento ela natildeo sabia dizer Limoeiros e laranjeiras cresciam no

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D U G A L D S T E W A R T WA L K E R 1 9 1 4

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39A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

jardim e ao lado da porta havia trecircs altas palmeiras A pequena baiacutease formava nesse ponto e a aacutegua era plenamente calma embora muito

profunda A sereia nadou com o belo priacutencipe ateacute a praia coberta defina areia branca Ali colocou-o sob o sol quente fazendo um traves-seiro de areia para sua cabeccedila

Sinos soaram do preacutedio branco e vaacuterias moccedilas apareceram no jardim A Pequena Sereia afastou-se nadando para bem longe dapraia e escondeu-se atraacutes de uma pedra grande que se elevava acimada aacutegua Cobriu o cabelo e o peito com espuma do mar para que nin-gueacutem pudesse vecirc-la Depois ficou espiando para ver quem ajudaria opobre priacutencipe

Natildeo demorou muito e surgiu uma jovem Pareceu muito assus-tada mas soacute por um instante e correu para buscar ajuda A sereia viuo priacutencipe voltar a si e ele sorriu para todos ao seu redor Poreacutem natildeohavia nenhum sorriso para ela pois ele natildeo tinha ideia de quem o sal-

vara Depois que foi levado para o preacutedio a Pequena Sereia se sentiatatildeo infeliz que mergulhou de volta para o palaacutecio do paiEla sempre fora silenciosa e pensativa mas agora estava mais do

que nunca Suas irmatildes lhe perguntaram o que vira durante sua pri-meira visita agrave superfiacutecie mas ela natildeo lhes contava nada Em muitasmanhatildes e entardeceres subia ateacute o local onde deixara o priacutencipe Viuas frutas do jardim amadurecerem e observou-as serem colhidas Viu

a neve derreter nos picos Contudo nunca via o priacutencipe e por issosempre voltava para casa ainda mais cheia de tristeza do que antesSeu uacutenico consolo era ficar em seu jardinzinho com os braccedilos emtorno da estaacutetua de maacutermore tatildeo parecida com o priacutencipe Nuncamais cuidou das suas flores que se espalhavam selvagemente ao longodos caminhos entrelaccedilando seus longos galhos nos ramos das aacutervoresateacute obscurecer tudo

Por fim ela natildeo conseguiu mais guardar aquilo consigo e contoutudo a uma de suas irmatildes Logo as outras ficaram sabendo mas nin-gueacutem mais exceto algumas outras sereias que natildeo diriam nada a nin-gueacutem a natildeo ser agraves suas melhores amigas Uma delas foi capaz de lhe

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dar notiacutecias sobre o priacutencipe Ela tambeacutem vira os festejos realizados abordo e disse mais sobre o priacutencipe e a localizaccedilatildeo de seu reino

mdash Venha irmatildezinha ndash disseram as outras princesas E com osbraccedilos nos ombros uma das outras subiram em uma longa fila ateacute asuperfiacutecie bem diante do lugar onde se erguia o castelo do priacutencipe

O castelo construiacutedo de uma pedra amarela e luzidia tinhalongas escadarias de maacutermore sendo que um dos degraus levava di-reto para o mar Esplecircndidas cuacutepulas douradas elevavam-se do teto eentre as colunas que cercavam toda a construccedilatildeo havia esculturas demaacutermore que pareciam vivas Atraveacutes do vidro transparente das altas janelas era possiacutevel ver magniacuteficos aposentos ornados com suntuosascortinas de seda e tapeccedilarias As paredes eram cobertas com enormespinturas e era um prazer contemplaacute-las No centro do maior salatildeohavia uma fonte que lanccedilava seus jorros espumantes ateacute a cuacutepula devidro do teto atraveacutes do qual o sol brilhava na aacutegua e nas belas plantas

que cresciam ali Agora que sabia onde o priacutencipe vivia passava muitos pores dosol e muitas noites naquele lugar Nadava ateacute muito mais perto dacosta do que as outras ousavam Chegou a avanccedilar pelo estreito canalpara ir ateacute a varanda de maacutermore que projetava uma longa sombrasobre a aacutegua Ali ela se sentava e observava o jovem priacutencipe que pen-sava estar completamente soacute ao claratildeo da lua

Muitas vezes agrave noite a Pequena Sereia o via sair ao mar em seuesplecircndido barco com bandeiras hasteadas ao som de muacutesica harmo-niosa Espiava do meio dos juncos verdes e quando o vento levantavao longo veacuteu branco e prateado do seu cabelo e pessoas a viam ima-ginavam apenas que era um cisne estendendo as asas

Em muitas noites quando os pescadores saiam em alto mar comsuas tochas ela os ouvia elogiar o jovem priacutencipe e suas palavras a dei-

xavam ainda mais feliz por lhe ter salvado a vida E ela recordava comoaninhara a cabeccedila dele em seu peito e com que carinho o beijara Masele natildeo sabia nada disso e nunca sequer sonhara que ela existia

A Pequena Sereia foi se afeiccediloando mais e mais aos seres

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humanos e ansiava profundamente pela companhia deles Omundo em que viviam parecia tatildeo mais vasto que o seu proacuteprio

Veja eles podiam navegar o oceano em navios e escalar montanhasiacutengremes bem acima das nuvens E as terras que possuiacuteam suasflorestas e seus campos se estendiam muito aleacutem de onde sua vistaalcanccedilava Havia uma porccedilatildeo de outras coisas que ela teria gos-tado de saber e suas irmatildes natildeo eram capazes de responder a todasas suas curiosidades Por isso foi visitar sua velha avoacute que sabia

tudo sobre o mundo superior como chamava tatildeo apropriadamenteos paiacuteses acima do marmdash Quando natildeo se afogam ndash perguntou a Pequena Sereia ndash os

seres humanos podem continuar vivendo para sempre Natildeo morremcomo noacutes aqui embaixo no mar

mdash Sim sim ndash respondeu a velha senhora mdash Eles tambeacutem teratildeoque morrer e seu tempo de vida eacute mais curto que o nosso Noacutes por

vezes alcanccedilamos a idade de trezentos anos mas quando nossa vidaaqui chega ao fim simplesmente nos transformamos em espuma naaacutegua Aqui natildeo temos tuacutemulos daqueles que amamos Natildeo temosuma alma imortal e nunca teremos outra vida Noacutes somos como o junco verde Uma vez cortado cessa de crescer Jaacute os seres humanostecircm almas que vivem para sempre mesmo depois que seus corpos se

transformam em poacute Elas voam atraveacutes do ar puro ateacute chegarem agraves es-trelas brilhantes Assim como subimos agrave flor da aacutegua e contemplamosas terras dos seres humanos eles atingem belos reinos desconhecidosndash regiotildees que nunca conheceremos

mdash Por que natildeo podemos ter uma alma imortal ndash a PequenaSereia perguntou angustiada mdash Eu daria de boa vontade todos ostrezentos anos que tenho para viver se pudesse me tornar uma humana

por apenas um dia e participar do mundo celestialmdash Vocecirc natildeo deveria se preocupar com isso Somos muito mais

felizes e vivemos melhor aqui do que os seres humanos laacute em cimamdash Entatildeo estou condenada a morrer e flutuar como espuma do

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42 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mar a nunca mais ouvir a muacutesica das ondas ou ver as lindas flores eo sol vermelho Natildeo haacute nada que eu possa fazer para conquistar umaalma imortal

mdash Natildeo ndash disse a velha senhora mdash Soacute se um ser humano aamasse tanto que vocecirc importasse mais para ele que pai e matildee Se elea amasse de todo o coraccedilatildeo e deixasse o padre pocircr a matildeo direita sobre a

sua como uma promessa de ser fiel e verdadeiro por toda a eternidadeNesse caso a alma dele deslizaria para dentro do seu corpo e vocecirctambeacutem obteria uma parcela da felicidade humana Ele lhe daria umaalma e no entanto conservaria a dele proacuteprio Mas isso jamais acon-teceraacute Sua cauda de peixe que achamos tatildeo bonita parece repulsivaagrave gente da terra Sabem tatildeo pouco sobre isso que acreditam realmenteque as duas desajeitadas escoras que chamam de pernas satildeo belas

A Pequena Sereia suspirou e olhou melancolicamente para suacauda de peixe

mdash Devemos ficar satisfeitas com o que temos ndash disse a velhasenhora mdash Vamos danccedilar e nos alegrar durante os trezentos anos

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de nossa existecircncia isso eacute realmente muito tempo Depois da mortepoderemos descansar e pocircr o sono em dia Hoje teremos um baile

na corteNatildeo se pode fazer ideia na terra de tal magnificecircncia As paredes

e o teto do grande salatildeo do baile eram feitos de cristal espesso mastransparente Centenas de conchas enormes rosa-vermelho e verde--relva dispostas de cada lado cada uma com uma chama azul queiluminava todo o salatildeo e luzindo atraveacutes das paredes iluminavamtambeacutem o mar Inuacutemeros peixes grandes e pequenos podiam servistos nadando em direccedilatildeo agraves paredes de cristal As escamas de algunsfulgiam com um brilho puacuterpura-avermelhado e as de outros comoprata e ouro No meio do salatildeo corria um grande rio nos quais mo-luscos e sereias danccedilavam ao seu proacuteprio som melodioso

Nenhum ser humano tem voz tatildeo encantadora Ningueacutem can-tava mais docemente que a Pequena Sereia e todos a aplaudiram

Por um instante houve alegria em seu coraccedilatildeo pois ela sabia quetinha a voz mais bela em terra ou no mar Mas em seguida seuspensamentos se voltaram para o mundo acima dela Natildeo conseguiaesquecer o belo priacutencipe e a grande dor de natildeo ter a alma imortalque ele possuiacutea Assim se arrastou para fora do palaacutecio do pai eenquanto todos laacute dentro cantavam e se divertiam foi se sentar emseu jardinzinho desolada

De repente ela ouviu o som de uma buzina ecoando atraveacutes daaacutegua e pensou

mdash Ah laacute vai ele navegando laacute em cima Aquele a quem amomais do que meu pai ou minha matildee ele que estaacute sempre em meuspensamentos e em cujas matildeos eu confiaria alegremente minha fe-licidade Arriscaria qualquer coisa para conquistaacute-lo e a uma almaimortal Enquanto minhas irmatildes danccedilam no castelo de meu pai vou

agrave procura da feiticeira do mar Sempre tive um terriacutevel medo delamas talvez possa me ajudar e me dizer o que fazer

E assim a Pequena Sereia deixou seu jardim e partiu paraonde a feiticeira morava no lado mais distante dos redemoinhos

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espumantes Nunca estivera laacute antes Naquele lugar natildeo cresciamflores nem relva do mar Natildeo havia nada aleacutem do fundo arenoso ecinzento que se estendia ateacute os turbilhotildees onde a aacutegua rodopiavacom o estrondo da roda de moinho e sugava para as profundezastudo que podia Tinha de passar pelo meio desses furiosos torveli-nhos para chegar ateacute a feiticeira do mar Por um longo trecho natildeo

havia outro caminho senatildeo pela lama quente e borbulhante ndash que afeiticeira chamava de seu charco

A casa da feiticeira ficava atraacutes do charco no meio de uma flo-resta quimeacuterica Todas as aacutervores e arbustos eram verdadeiros poacuteliposmetade animal e metade vegetal Pareciam serpentes de cem cabeccedilascrescendo do solo Tinham galhos que pareciam braccedilos longos e vis-cosos com dedos tatildeo flexiacuteveis que se assemelhavam a vermes Noacute por

noacute da raiz ateacute a ponta estavam constantemente em movimento eagarravam hermeticamente qualquer coisa que pudessem aproveitardo mar e natildeo soltavam mais A Pequena Sereia ficou apavorada e sedeteve agrave beira da mata Seu coraccedilatildeo palpitava de medo e ela esteve

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prestes a desistir Mas entatildeo lembrou-se do priacutencipe e da alma hu-mana e retomou sua coragem Ela prendeu em torno da cabeccedila seu

longo e esvoaccedilante cabelo para que os poacutelipos natildeo a pudessem agarrarDepois cruzou os braccedilos sobre o peito e disparou adiante como umpeixe lanccedilado na aacutegua no meio dos soacuterdidos poacutelipos que estendiamem sua direccedilatildeo seus braccedilos e dedos buliccedilosos Ela notou como cadaum deles havia agarrado algo e imobilizava firmemente com umacentena de pequenos braccedilos que pareciam aros de ferro Esqueletosbrancos de seres humanos que haviam perecido no mar e afundadonas aacuteguas profundas olhavam dos braccedilos dos poacutelipos Lemes e arcasde navios estavam fortemente agarrados em seus braccedilos juntamentecom esqueletos de animais terrestres e ndash o mais terriacutevel de tudo ndash umasereiazinha que eles haviam capturado e estrangulado

Chegou entatildeo a um grande charco lodoso onde enormes e cor-pulentas cobras-drsquoaacutegua ondeavam-se no lamaccedilal mostrando seus

horrendos ventres amarelo-esbranquiccedilado No meio do charco haviauma casa construiacuteda com os ossos de humanos naufragados Laacute es-tava a feiticeira do mar deixando um sapo se alimentar na sua bocaassim como as pessoas nutrem agraves vezes um canaacuterio com um torratildeo deaccediluacutecar Ela chamava as asquerosas cobras-drsquoaacutegua de seus pintinhos edeixava-as rastejar sobre seu peito

mdash Eu sei exatamente o que vocecirc deseja ndash disse a feiticeira do

mar mdash Como vocecirc eacute estuacutepida Mas vocecirc deve seguir seu caminhoque vai lhe trazer infortuacutenio minha linda princesa Vocecirc quer se li-vrar de sua cauda de peixe e no lugar ter um par de tocos para andarcomo um ser humano a fim de que o jovem priacutencipe se apaixone porvocecirc e lhe decirc uma alma imortal

E com isso a feiticeira soltou uma gargalhada tatildeo alta e maleacuteficaque o sapo e as cobras caiacuteram estatelados no chatildeo

mdash Vocecirc veio na hora certa ndash disse a feiticeira mdash Amanhatildequando o sol se levantar eu natildeo serei mais capaz de ajudaacute-la Voupreparar um elixir para vocecirc Teraacute de nadar ateacute a costa com ele antesdo nascer do sol sentar-se na praia e tomaacute-lo Sua cauda entatildeo se

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H A R R Y C L A R K E

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dividiraacute em duas e encolheraacute para se transformar naquilo que os sereshumanos chamam de ldquobelas pernasrdquo Mas vai doer Vocecirc sentiraacute como

se uma espada afiada a cortasse Todos que a virem diratildeo que vocecirc eacutea mais bela humana que jaacute encontraram Manteraacute seus movimentosgraciosos nenhuma danccedilarina jamais deslizaraacute tatildeo suavemente mascada passo que der a faraacute sentir como se estivesse pisando em umafaca afiada o bastante para fazer sangrar seus peacutes Se estiver dispostaa suportar tudo isso posso ajudaacute-la

mdash Sim ndash disse a Pequena Sereia com voz hesitante mas voltouseus pensamentos para o priacutencipe e ao precircmio de uma alma imortal

mdash Pense nisso com cuidado ndash alertou a feiticeira mdash Uma vez to-mada a forma de um ser humano nunca mais voltaraacute a ser uma sereiaVocecirc natildeo seraacute capaz de descer nadando ao encontro do palaacutecio de seupai e de suas irmatildes A uacutenica maneira de conseguir uma alma imortaleacute conquistando o amor do priacutencipe e fazer com que ele esqueccedila o pai

e a matildee por amor a vocecirc Ele deve tecirc-la sempre em seus pensamentose permitir que o padre una suas matildeos para que se tornem marido emulher Se o priacutencipe se casar com outra pessoa na manhatilde seguinteseu coraccedilatildeo se quebraraacute e vocecirc se tornaraacute espuma na crista das ondas

mdash Estou pronta ndash declarou a Pequena Sereia paacutelida comouma morta

mdash Mas teraacute que me recompensar ndash disse a feiticeira mdash Vocecirc natildeo

receberaacute minha ajuda sem nada em troca Vocecirc tem a mais formidaacutevelvoz entre todos que aqui habitam no fundo do mar Provavelmentepensa que encantaraacute o priacutencipe com ela mas teraacute que daacute-la para mimVou lhe exigir o que possui de melhor como pagamento por minhapoccedilatildeo Vocecirc entende tenho de misturar nela um pouco do meu proacutepriosangue para que o elixir seja afiado como uma espada de dois gumes

mdash Mas se tirar a minha voz o que me restaraacute ndash perguntou a

Pequena Sereiamdash Sua encantadora figura ndash disse a feiticeira ndash seus movimentos

graciosos e seus olhos expressivos Com eles pode simplesmente fas-cinar um coraccedilatildeo humano Bem onde estaacute sua coragem Estire a

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liacutengua e deixe-me cortaacute-la fora como pagamento Depois receberaacutesua poderosa poccedilatildeo

mdash Assim seja ndash concordou a Pequena Sereia e a feiticeira pocircsseu caldeiratildeo no fogo para destilar a poccedilatildeo maacutegica

mdash Limpeza antes de tudo ndash ela disse enquanto esfregava o re-cipiente com um feixe de viacuteboras que tinha atado num grande noacute

Em seguida deu um talho no proacuteprio seio e deixou gotejar onegro sangue no caldeiratildeo O vapor que subiu criava formas estranhasassustadoras de se ver A feiticeira continuava a juntar coisas novas

dentro do caldeiratildeo e quando o elixir comeccedilou a ferver parecia umchoro de crocodilo Finalmente a poccedilatildeo maacutegica ficou pronta e eraexatamente cristalina como aacutegua

mdash Aiacute estaacute vocecirc ndash disse a feiticeira ao cortar a liacutengua da PequenaSereia que agora estava muda e natildeo conseguia falar e cantar

mdash Se os poacutelipos a apanharem quando vocecirc retornar pela mata

ndash orientou a feiticeira ndash basta jogar sobre eles uma uacutenica gota destapoccedilatildeo e os braccedilos e dedos deles seratildeo dilacerados em mil pedaccedilosPoreacutem a Pequena Sereia natildeo precisou disso Os poacutelipos se enco-

lheram aterrorizados quando avistaram a luzente poccedilatildeo em sua matildeocomo uma estrela cintilante E assim passou rapidamente pela matapelo charco e pelos atroadores redemoinhos

A Pequena Sereia pocircde contemplar o palaacutecio do pai As luzes do

salatildeo de baile estavam apagadas Certamente laacute estavam todos dor-mindo a essa altura Mas natildeo se atreveu ir vecirc-los pois agora estavamuda e prestes a deixaacute-los para sempre Ela sentiu como se seu coraccedilatildeofosse partir de tanta dor Entrou secretamente no jardim pegou umaflor dos leitos de cada uma das irmatildes soprou mil beijos em direccedilatildeodo palaacutecio e depois subiu agrave superfiacutecie atraveacutes das aacuteguas azul-escuras

O sol ainda natildeo despontara no horizonte quando ela avistou o

palaacutecio do priacutencipe e subiu os degraus de maacutermore A lua esplendialiacutempida e viacutevida A Pequena Sereia bebeu a acre poccedilatildeo e parecia queuma faca de dois gumes trespassava seu corpo delicado Ela desmaioue caiu morta

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O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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52 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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53A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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54 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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D U G A L D S T E W A R T WA L K E R 1 9 1 4

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seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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60 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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61A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

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E D M U N D D U L A C 1 9 11

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permaneceu sentada tranquilamente no iceberg flutuante vendo osrelacircmpagos azuis ziguezaguearem no mar resplandecente

Na primeira vez que as irmatildes subiram agrave superfiacutecie ficaram en-cantadas de ver tantas coisas novas e bonitas Poreacutem quando ficarammais velhas e podiam emergir sempre que queriam mostravam-semenos entusiasmadas Sentiam saudade do fundo do mar E depoisde um mecircs diziam que afinal de contas era muito mais agradaacutevel laacuteembaixo ndash era tatildeo reconfortante estar em casa No entanto muitasvezes ao entardecer as cinco irmatildes davam-se os braccedilos e flutuavam juntas Suas vozes eram encantadoras como nenhuma criatura hu-mana poderia possuir

Antes da aproximaccedilatildeo de uma tempestade quando esperavam onaufraacutegio de um navio as irmatildes costumavam nadar diante do barcoe cantar docemente as deliacutecias das profundezas do mar Diziam aosmarinheiros para natildeo terem medo de mergulhar ateacute o fundo mas eles

nunca entendiam suas canccedilotildees Pensavam estar ouvindo os uivos datempestade e nunca viam as maravilhas que as sereias prometiam Eassim que o navio afundava os homens se afogavam e somente seuscadaacuteveres chegavam ateacute o palaacutecio do rei do mar

Quando as irmatildes subiam pela aacutegua de braccedilos dados a caccedilulasempre ficava para traacutes sozinha acompanhando-as com os olhos Teriachorado mas as sereias natildeo tecircm laacutegrimas e sofrem muito mais que noacutes

mdash Oacute Se pelo menos eu tivesse quinze anos ndash ela dizia mdash Seique vou gostar muito do mundo laacute de cima e de todas as pessoas quevivem nele

Entatildeo finalmente ela fez quinze anosmdash Bem agora vocecirc logo escaparaacute das nossas matildeos ndash disse a velha

rainha sua avoacute mdash Venha deixe-me vesti-la como suas outras irmatildesE pocircs no seu cabelo uma coroa de liacuterios brancos em que cada

peacutetala de flor era metade de uma peacuterola Depois a velha senhoramandou trazer oito grandes ostras para prender firmemente na caudada princesa e mostrar sua alta posiccedilatildeo

mdash Ai Isso doacutei ndash disse a Pequena Sereia

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35A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

mdash Sim a beleza tem seu preccedilo ndash respondeu a avoacuteComo a Pequena Sereia teria gostado de se livrar de todos

aqueles adornos e pocircr de lado aquela pesada coroa As flores verme-lhas de seu jardim assentavam-lhe muito melhor mas natildeo ousoufazer nenhuma alteraccedilatildeo

mdash Adeus ndash disse ao subir pela aacutegua tatildeo leve e liacutempida quantoas bolhas se elevam agrave superfiacutecie

O sol acabara de se pocircr quando ela ergueu a cabeccedila sobre as

ondas mas as nuvens ainda estavam tingidas de carmesim e ouroNo alto do ceacuteu paacutelido e rosado a estrela vespertina iluminava clarae viacutevida O ar estava ameno e fresco e o mar apraziacutevel Um grandenavio de trecircs mastros estava agrave deriva na aacutegua com apenas uma velaiccedilada porque o vento estava brando Os marinheiros estavam refes-telados no cordame ou nas jardas Havia muacutesica e canto a bordo equando escureceu uma centena de lanternas foi acesa Com suas

muitas cores tinha-se a impressatildeo de que as bandeiras de todas asnaccedilotildees flutuavam no ar

A Pequena Sereia nadou ateacute a escotilha da cabine e cada vez queuma onda a levantava podia ver atraveacutes do vidro transparente umaquantidade de homens magnificamente trajados O mais belo delesera um jovem priacutencipe com grandes olhos escuros Natildeo tinha mais

de dezesseis anos Era seu aniversaacuterio e era por isso que havia tantoalvoroccedilo Quando o jovem priacutencipe saiu para o conveacutes onde os mari-nheiros estavam danccedilando mais de uma centena de foguetes zuniramrumo ao ceacuteu num esplendor tornando o ceacuteu tatildeo brilhante quanto odia A Pequena Sereia ficou tatildeo assustada que mergulhou escondendo--se sob a aacutegua mas rapidamente pocircs a cabeccedila para fora de novo Eveja Parecia que as estrelas laacute do ceacuteu estavam caindo sobre ela Nunca

vira fogos de artifiacutecios Grandes soacuteis rodopiavam ao seu redor lindospeixes de fogo refulgentes lanccedilavam-se no ar azul e todo esse brilhose refletia nas aacuteguas claras e calmas embaixo O proacuteprio navio estavatatildeo deslumbrantemente iluminado que se podiam ver natildeo soacute todas as

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36 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

pessoas que laacute estavam como tambeacutem a corda mais fina Que eleganteparecia o jovem priacutencipe quando apertava as matildeos dos marinheiros

Ele ria e sorria enquanto a muacutesica soava pelo ar da noite agradaacutevel Jaacute era muito tarde mas a Pequena Sereia natildeo conseguia tirar os

olhos do navio ou do belo priacutencipe As lanternas coloridas se apagaramos foguetes natildeo mais subiam no ar e o canhatildeo cessara de dar tirosContudo o mar estava inquieto e era possiacutevel ouvir um som queixososob as ondas Ainda assim a Pequena Sereia continuou na aacutegua balan-ccedilando-se para cima e para baixo para olhar a cabine O navio ganhouvelocidade e uma apoacutes outra as suas velas foram desferidas As ondascresciam nuvens negras se agrupavam no ceacuteu e relacircmpagos faiscavamagrave distacircncia Uma terriacutevel tempestade estava se formando Por isso osmarinheiros recolheram as velas enquanto o vento sacudia o grandenavio e o arrastava pelo mar impetuoso As ondas subiam mais e maisaltas ateacute se assemelharem a enormes montanhas ameaccedilando derrubar

o mastro Ainda assim o navio mergulhava como um cisne entre elase voltava a subir em cristas sublimes e espumosas A Pequena Sereiapensou que devia ser divertido para um navio navegar daquele jeitomas a tripulaccedilatildeo pensava diferente O barco gemia e rangia suas pran-chas soacutelidas rompiam-se sob as violentas pancadas do mar o mastropartiu-se ruidosamente em dois como um junco O navio inclinouquando a aacutegua se precipitou no poratildeo

De repente a Pequena Sereia percebeu que o navio estava emperigo Ela mesma tinha de ter cuidado com as vigas e os destroccedilosagrave deriva Em certos momentos ficava tatildeo escuro que natildeo conseguiaenxergar nada mas entatildeo o claratildeo de um relacircmpago iluminou todosa bordo Agora era cada por um si Ela estava agrave procura do jovem priacuten-cipe e no momento em que o navio se partia viu-o desaparecer nasprofundezas do mar Por um instante ficou bastante entusiasmada

pois pensou que agora ele poderia viver no seu mundo Mas logo selembrou que os seres humanos natildeo vivem debaixo drsquoaacutegua e que ele soacutechegaria morto ao palaacutecio de seu pai Natildeo natildeo ele natildeo podia morrer Assim ela nadou entre os destroccedilos que o mar arrastava indiferente

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37 A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

ao perigo de ser esmagada Mergulhava profundamente e emergia dasondas e finalmente encontrou o jovem priacutencipe Ele mal conseguianadar no mar tempestuoso Seus membros fraquejavam seus belosolhos estavam fechados e certamente teria se afogado se a PequenaSereia natildeo tivesse ido a seu socorro Ela segurou-lhe a cabeccedila acimada aacutegua e abandonou-se com ele aos caprichos das ondas

Quando amanheceu a tempestade cessara e natildeo havia rastro donavio O sol despontou da aacutegua vermelho e resplandecente e pareceudevolver a cor agraves faces do priacutencipe mas os olhos dele permaneciam fe-chados A sereia beijou-lhe a fronte e ajeitou-lhe para traacutes o cabelo mo-lhado Aos seus olhos ele parecia a estaacutetua de maacutermore que tinha em seu jardinzinho Beijou-o de novo e fez um pedido para que ele pudesse viver

Logo a sereia viu diante de si terra firme com suas majestosas

montanhas azuis no alto das quais brilhava a branca neve parecendocisnes aninhados Perto da costa havia adoraacuteveis florestas verdes e junto a uma delas erguia-se um preacutedio alto se era uma igreja ou umconvento ela natildeo sabia dizer Limoeiros e laranjeiras cresciam no

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D U G A L D S T E W A R T WA L K E R 1 9 1 4

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jardim e ao lado da porta havia trecircs altas palmeiras A pequena baiacutease formava nesse ponto e a aacutegua era plenamente calma embora muito

profunda A sereia nadou com o belo priacutencipe ateacute a praia coberta defina areia branca Ali colocou-o sob o sol quente fazendo um traves-seiro de areia para sua cabeccedila

Sinos soaram do preacutedio branco e vaacuterias moccedilas apareceram no jardim A Pequena Sereia afastou-se nadando para bem longe dapraia e escondeu-se atraacutes de uma pedra grande que se elevava acimada aacutegua Cobriu o cabelo e o peito com espuma do mar para que nin-gueacutem pudesse vecirc-la Depois ficou espiando para ver quem ajudaria opobre priacutencipe

Natildeo demorou muito e surgiu uma jovem Pareceu muito assus-tada mas soacute por um instante e correu para buscar ajuda A sereia viuo priacutencipe voltar a si e ele sorriu para todos ao seu redor Poreacutem natildeohavia nenhum sorriso para ela pois ele natildeo tinha ideia de quem o sal-

vara Depois que foi levado para o preacutedio a Pequena Sereia se sentiatatildeo infeliz que mergulhou de volta para o palaacutecio do paiEla sempre fora silenciosa e pensativa mas agora estava mais do

que nunca Suas irmatildes lhe perguntaram o que vira durante sua pri-meira visita agrave superfiacutecie mas ela natildeo lhes contava nada Em muitasmanhatildes e entardeceres subia ateacute o local onde deixara o priacutencipe Viuas frutas do jardim amadurecerem e observou-as serem colhidas Viu

a neve derreter nos picos Contudo nunca via o priacutencipe e por issosempre voltava para casa ainda mais cheia de tristeza do que antesSeu uacutenico consolo era ficar em seu jardinzinho com os braccedilos emtorno da estaacutetua de maacutermore tatildeo parecida com o priacutencipe Nuncamais cuidou das suas flores que se espalhavam selvagemente ao longodos caminhos entrelaccedilando seus longos galhos nos ramos das aacutervoresateacute obscurecer tudo

Por fim ela natildeo conseguiu mais guardar aquilo consigo e contoutudo a uma de suas irmatildes Logo as outras ficaram sabendo mas nin-gueacutem mais exceto algumas outras sereias que natildeo diriam nada a nin-gueacutem a natildeo ser agraves suas melhores amigas Uma delas foi capaz de lhe

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dar notiacutecias sobre o priacutencipe Ela tambeacutem vira os festejos realizados abordo e disse mais sobre o priacutencipe e a localizaccedilatildeo de seu reino

mdash Venha irmatildezinha ndash disseram as outras princesas E com osbraccedilos nos ombros uma das outras subiram em uma longa fila ateacute asuperfiacutecie bem diante do lugar onde se erguia o castelo do priacutencipe

O castelo construiacutedo de uma pedra amarela e luzidia tinhalongas escadarias de maacutermore sendo que um dos degraus levava di-reto para o mar Esplecircndidas cuacutepulas douradas elevavam-se do teto eentre as colunas que cercavam toda a construccedilatildeo havia esculturas demaacutermore que pareciam vivas Atraveacutes do vidro transparente das altas janelas era possiacutevel ver magniacuteficos aposentos ornados com suntuosascortinas de seda e tapeccedilarias As paredes eram cobertas com enormespinturas e era um prazer contemplaacute-las No centro do maior salatildeohavia uma fonte que lanccedilava seus jorros espumantes ateacute a cuacutepula devidro do teto atraveacutes do qual o sol brilhava na aacutegua e nas belas plantas

que cresciam ali Agora que sabia onde o priacutencipe vivia passava muitos pores dosol e muitas noites naquele lugar Nadava ateacute muito mais perto dacosta do que as outras ousavam Chegou a avanccedilar pelo estreito canalpara ir ateacute a varanda de maacutermore que projetava uma longa sombrasobre a aacutegua Ali ela se sentava e observava o jovem priacutencipe que pen-sava estar completamente soacute ao claratildeo da lua

Muitas vezes agrave noite a Pequena Sereia o via sair ao mar em seuesplecircndido barco com bandeiras hasteadas ao som de muacutesica harmo-niosa Espiava do meio dos juncos verdes e quando o vento levantavao longo veacuteu branco e prateado do seu cabelo e pessoas a viam ima-ginavam apenas que era um cisne estendendo as asas

Em muitas noites quando os pescadores saiam em alto mar comsuas tochas ela os ouvia elogiar o jovem priacutencipe e suas palavras a dei-

xavam ainda mais feliz por lhe ter salvado a vida E ela recordava comoaninhara a cabeccedila dele em seu peito e com que carinho o beijara Masele natildeo sabia nada disso e nunca sequer sonhara que ela existia

A Pequena Sereia foi se afeiccediloando mais e mais aos seres

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humanos e ansiava profundamente pela companhia deles Omundo em que viviam parecia tatildeo mais vasto que o seu proacuteprio

Veja eles podiam navegar o oceano em navios e escalar montanhasiacutengremes bem acima das nuvens E as terras que possuiacuteam suasflorestas e seus campos se estendiam muito aleacutem de onde sua vistaalcanccedilava Havia uma porccedilatildeo de outras coisas que ela teria gos-tado de saber e suas irmatildes natildeo eram capazes de responder a todasas suas curiosidades Por isso foi visitar sua velha avoacute que sabia

tudo sobre o mundo superior como chamava tatildeo apropriadamenteos paiacuteses acima do marmdash Quando natildeo se afogam ndash perguntou a Pequena Sereia ndash os

seres humanos podem continuar vivendo para sempre Natildeo morremcomo noacutes aqui embaixo no mar

mdash Sim sim ndash respondeu a velha senhora mdash Eles tambeacutem teratildeoque morrer e seu tempo de vida eacute mais curto que o nosso Noacutes por

vezes alcanccedilamos a idade de trezentos anos mas quando nossa vidaaqui chega ao fim simplesmente nos transformamos em espuma naaacutegua Aqui natildeo temos tuacutemulos daqueles que amamos Natildeo temosuma alma imortal e nunca teremos outra vida Noacutes somos como o junco verde Uma vez cortado cessa de crescer Jaacute os seres humanostecircm almas que vivem para sempre mesmo depois que seus corpos se

transformam em poacute Elas voam atraveacutes do ar puro ateacute chegarem agraves es-trelas brilhantes Assim como subimos agrave flor da aacutegua e contemplamosas terras dos seres humanos eles atingem belos reinos desconhecidosndash regiotildees que nunca conheceremos

mdash Por que natildeo podemos ter uma alma imortal ndash a PequenaSereia perguntou angustiada mdash Eu daria de boa vontade todos ostrezentos anos que tenho para viver se pudesse me tornar uma humana

por apenas um dia e participar do mundo celestialmdash Vocecirc natildeo deveria se preocupar com isso Somos muito mais

felizes e vivemos melhor aqui do que os seres humanos laacute em cimamdash Entatildeo estou condenada a morrer e flutuar como espuma do

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mar a nunca mais ouvir a muacutesica das ondas ou ver as lindas flores eo sol vermelho Natildeo haacute nada que eu possa fazer para conquistar umaalma imortal

mdash Natildeo ndash disse a velha senhora mdash Soacute se um ser humano aamasse tanto que vocecirc importasse mais para ele que pai e matildee Se elea amasse de todo o coraccedilatildeo e deixasse o padre pocircr a matildeo direita sobre a

sua como uma promessa de ser fiel e verdadeiro por toda a eternidadeNesse caso a alma dele deslizaria para dentro do seu corpo e vocecirctambeacutem obteria uma parcela da felicidade humana Ele lhe daria umaalma e no entanto conservaria a dele proacuteprio Mas isso jamais acon-teceraacute Sua cauda de peixe que achamos tatildeo bonita parece repulsivaagrave gente da terra Sabem tatildeo pouco sobre isso que acreditam realmenteque as duas desajeitadas escoras que chamam de pernas satildeo belas

A Pequena Sereia suspirou e olhou melancolicamente para suacauda de peixe

mdash Devemos ficar satisfeitas com o que temos ndash disse a velhasenhora mdash Vamos danccedilar e nos alegrar durante os trezentos anos

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de nossa existecircncia isso eacute realmente muito tempo Depois da mortepoderemos descansar e pocircr o sono em dia Hoje teremos um baile

na corteNatildeo se pode fazer ideia na terra de tal magnificecircncia As paredes

e o teto do grande salatildeo do baile eram feitos de cristal espesso mastransparente Centenas de conchas enormes rosa-vermelho e verde--relva dispostas de cada lado cada uma com uma chama azul queiluminava todo o salatildeo e luzindo atraveacutes das paredes iluminavamtambeacutem o mar Inuacutemeros peixes grandes e pequenos podiam servistos nadando em direccedilatildeo agraves paredes de cristal As escamas de algunsfulgiam com um brilho puacuterpura-avermelhado e as de outros comoprata e ouro No meio do salatildeo corria um grande rio nos quais mo-luscos e sereias danccedilavam ao seu proacuteprio som melodioso

Nenhum ser humano tem voz tatildeo encantadora Ningueacutem can-tava mais docemente que a Pequena Sereia e todos a aplaudiram

Por um instante houve alegria em seu coraccedilatildeo pois ela sabia quetinha a voz mais bela em terra ou no mar Mas em seguida seuspensamentos se voltaram para o mundo acima dela Natildeo conseguiaesquecer o belo priacutencipe e a grande dor de natildeo ter a alma imortalque ele possuiacutea Assim se arrastou para fora do palaacutecio do pai eenquanto todos laacute dentro cantavam e se divertiam foi se sentar emseu jardinzinho desolada

De repente ela ouviu o som de uma buzina ecoando atraveacutes daaacutegua e pensou

mdash Ah laacute vai ele navegando laacute em cima Aquele a quem amomais do que meu pai ou minha matildee ele que estaacute sempre em meuspensamentos e em cujas matildeos eu confiaria alegremente minha fe-licidade Arriscaria qualquer coisa para conquistaacute-lo e a uma almaimortal Enquanto minhas irmatildes danccedilam no castelo de meu pai vou

agrave procura da feiticeira do mar Sempre tive um terriacutevel medo delamas talvez possa me ajudar e me dizer o que fazer

E assim a Pequena Sereia deixou seu jardim e partiu paraonde a feiticeira morava no lado mais distante dos redemoinhos

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espumantes Nunca estivera laacute antes Naquele lugar natildeo cresciamflores nem relva do mar Natildeo havia nada aleacutem do fundo arenoso ecinzento que se estendia ateacute os turbilhotildees onde a aacutegua rodopiavacom o estrondo da roda de moinho e sugava para as profundezastudo que podia Tinha de passar pelo meio desses furiosos torveli-nhos para chegar ateacute a feiticeira do mar Por um longo trecho natildeo

havia outro caminho senatildeo pela lama quente e borbulhante ndash que afeiticeira chamava de seu charco

A casa da feiticeira ficava atraacutes do charco no meio de uma flo-resta quimeacuterica Todas as aacutervores e arbustos eram verdadeiros poacuteliposmetade animal e metade vegetal Pareciam serpentes de cem cabeccedilascrescendo do solo Tinham galhos que pareciam braccedilos longos e vis-cosos com dedos tatildeo flexiacuteveis que se assemelhavam a vermes Noacute por

noacute da raiz ateacute a ponta estavam constantemente em movimento eagarravam hermeticamente qualquer coisa que pudessem aproveitardo mar e natildeo soltavam mais A Pequena Sereia ficou apavorada e sedeteve agrave beira da mata Seu coraccedilatildeo palpitava de medo e ela esteve

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prestes a desistir Mas entatildeo lembrou-se do priacutencipe e da alma hu-mana e retomou sua coragem Ela prendeu em torno da cabeccedila seu

longo e esvoaccedilante cabelo para que os poacutelipos natildeo a pudessem agarrarDepois cruzou os braccedilos sobre o peito e disparou adiante como umpeixe lanccedilado na aacutegua no meio dos soacuterdidos poacutelipos que estendiamem sua direccedilatildeo seus braccedilos e dedos buliccedilosos Ela notou como cadaum deles havia agarrado algo e imobilizava firmemente com umacentena de pequenos braccedilos que pareciam aros de ferro Esqueletosbrancos de seres humanos que haviam perecido no mar e afundadonas aacuteguas profundas olhavam dos braccedilos dos poacutelipos Lemes e arcasde navios estavam fortemente agarrados em seus braccedilos juntamentecom esqueletos de animais terrestres e ndash o mais terriacutevel de tudo ndash umasereiazinha que eles haviam capturado e estrangulado

Chegou entatildeo a um grande charco lodoso onde enormes e cor-pulentas cobras-drsquoaacutegua ondeavam-se no lamaccedilal mostrando seus

horrendos ventres amarelo-esbranquiccedilado No meio do charco haviauma casa construiacuteda com os ossos de humanos naufragados Laacute es-tava a feiticeira do mar deixando um sapo se alimentar na sua bocaassim como as pessoas nutrem agraves vezes um canaacuterio com um torratildeo deaccediluacutecar Ela chamava as asquerosas cobras-drsquoaacutegua de seus pintinhos edeixava-as rastejar sobre seu peito

mdash Eu sei exatamente o que vocecirc deseja ndash disse a feiticeira do

mar mdash Como vocecirc eacute estuacutepida Mas vocecirc deve seguir seu caminhoque vai lhe trazer infortuacutenio minha linda princesa Vocecirc quer se li-vrar de sua cauda de peixe e no lugar ter um par de tocos para andarcomo um ser humano a fim de que o jovem priacutencipe se apaixone porvocecirc e lhe decirc uma alma imortal

E com isso a feiticeira soltou uma gargalhada tatildeo alta e maleacuteficaque o sapo e as cobras caiacuteram estatelados no chatildeo

mdash Vocecirc veio na hora certa ndash disse a feiticeira mdash Amanhatildequando o sol se levantar eu natildeo serei mais capaz de ajudaacute-la Voupreparar um elixir para vocecirc Teraacute de nadar ateacute a costa com ele antesdo nascer do sol sentar-se na praia e tomaacute-lo Sua cauda entatildeo se

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dividiraacute em duas e encolheraacute para se transformar naquilo que os sereshumanos chamam de ldquobelas pernasrdquo Mas vai doer Vocecirc sentiraacute como

se uma espada afiada a cortasse Todos que a virem diratildeo que vocecirc eacutea mais bela humana que jaacute encontraram Manteraacute seus movimentosgraciosos nenhuma danccedilarina jamais deslizaraacute tatildeo suavemente mascada passo que der a faraacute sentir como se estivesse pisando em umafaca afiada o bastante para fazer sangrar seus peacutes Se estiver dispostaa suportar tudo isso posso ajudaacute-la

mdash Sim ndash disse a Pequena Sereia com voz hesitante mas voltouseus pensamentos para o priacutencipe e ao precircmio de uma alma imortal

mdash Pense nisso com cuidado ndash alertou a feiticeira mdash Uma vez to-mada a forma de um ser humano nunca mais voltaraacute a ser uma sereiaVocecirc natildeo seraacute capaz de descer nadando ao encontro do palaacutecio de seupai e de suas irmatildes A uacutenica maneira de conseguir uma alma imortaleacute conquistando o amor do priacutencipe e fazer com que ele esqueccedila o pai

e a matildee por amor a vocecirc Ele deve tecirc-la sempre em seus pensamentose permitir que o padre una suas matildeos para que se tornem marido emulher Se o priacutencipe se casar com outra pessoa na manhatilde seguinteseu coraccedilatildeo se quebraraacute e vocecirc se tornaraacute espuma na crista das ondas

mdash Estou pronta ndash declarou a Pequena Sereia paacutelida comouma morta

mdash Mas teraacute que me recompensar ndash disse a feiticeira mdash Vocecirc natildeo

receberaacute minha ajuda sem nada em troca Vocecirc tem a mais formidaacutevelvoz entre todos que aqui habitam no fundo do mar Provavelmentepensa que encantaraacute o priacutencipe com ela mas teraacute que daacute-la para mimVou lhe exigir o que possui de melhor como pagamento por minhapoccedilatildeo Vocecirc entende tenho de misturar nela um pouco do meu proacutepriosangue para que o elixir seja afiado como uma espada de dois gumes

mdash Mas se tirar a minha voz o que me restaraacute ndash perguntou a

Pequena Sereiamdash Sua encantadora figura ndash disse a feiticeira ndash seus movimentos

graciosos e seus olhos expressivos Com eles pode simplesmente fas-cinar um coraccedilatildeo humano Bem onde estaacute sua coragem Estire a

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liacutengua e deixe-me cortaacute-la fora como pagamento Depois receberaacutesua poderosa poccedilatildeo

mdash Assim seja ndash concordou a Pequena Sereia e a feiticeira pocircsseu caldeiratildeo no fogo para destilar a poccedilatildeo maacutegica

mdash Limpeza antes de tudo ndash ela disse enquanto esfregava o re-cipiente com um feixe de viacuteboras que tinha atado num grande noacute

Em seguida deu um talho no proacuteprio seio e deixou gotejar onegro sangue no caldeiratildeo O vapor que subiu criava formas estranhasassustadoras de se ver A feiticeira continuava a juntar coisas novas

dentro do caldeiratildeo e quando o elixir comeccedilou a ferver parecia umchoro de crocodilo Finalmente a poccedilatildeo maacutegica ficou pronta e eraexatamente cristalina como aacutegua

mdash Aiacute estaacute vocecirc ndash disse a feiticeira ao cortar a liacutengua da PequenaSereia que agora estava muda e natildeo conseguia falar e cantar

mdash Se os poacutelipos a apanharem quando vocecirc retornar pela mata

ndash orientou a feiticeira ndash basta jogar sobre eles uma uacutenica gota destapoccedilatildeo e os braccedilos e dedos deles seratildeo dilacerados em mil pedaccedilosPoreacutem a Pequena Sereia natildeo precisou disso Os poacutelipos se enco-

lheram aterrorizados quando avistaram a luzente poccedilatildeo em sua matildeocomo uma estrela cintilante E assim passou rapidamente pela matapelo charco e pelos atroadores redemoinhos

A Pequena Sereia pocircde contemplar o palaacutecio do pai As luzes do

salatildeo de baile estavam apagadas Certamente laacute estavam todos dor-mindo a essa altura Mas natildeo se atreveu ir vecirc-los pois agora estavamuda e prestes a deixaacute-los para sempre Ela sentiu como se seu coraccedilatildeofosse partir de tanta dor Entrou secretamente no jardim pegou umaflor dos leitos de cada uma das irmatildes soprou mil beijos em direccedilatildeodo palaacutecio e depois subiu agrave superfiacutecie atraveacutes das aacuteguas azul-escuras

O sol ainda natildeo despontara no horizonte quando ela avistou o

palaacutecio do priacutencipe e subiu os degraus de maacutermore A lua esplendialiacutempida e viacutevida A Pequena Sereia bebeu a acre poccedilatildeo e parecia queuma faca de dois gumes trespassava seu corpo delicado Ela desmaioue caiu morta

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E D M U N D D U L A C

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O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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61A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

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permaneceu sentada tranquilamente no iceberg flutuante vendo osrelacircmpagos azuis ziguezaguearem no mar resplandecente

Na primeira vez que as irmatildes subiram agrave superfiacutecie ficaram en-cantadas de ver tantas coisas novas e bonitas Poreacutem quando ficarammais velhas e podiam emergir sempre que queriam mostravam-semenos entusiasmadas Sentiam saudade do fundo do mar E depoisde um mecircs diziam que afinal de contas era muito mais agradaacutevel laacuteembaixo ndash era tatildeo reconfortante estar em casa No entanto muitasvezes ao entardecer as cinco irmatildes davam-se os braccedilos e flutuavam juntas Suas vozes eram encantadoras como nenhuma criatura hu-mana poderia possuir

Antes da aproximaccedilatildeo de uma tempestade quando esperavam onaufraacutegio de um navio as irmatildes costumavam nadar diante do barcoe cantar docemente as deliacutecias das profundezas do mar Diziam aosmarinheiros para natildeo terem medo de mergulhar ateacute o fundo mas eles

nunca entendiam suas canccedilotildees Pensavam estar ouvindo os uivos datempestade e nunca viam as maravilhas que as sereias prometiam Eassim que o navio afundava os homens se afogavam e somente seuscadaacuteveres chegavam ateacute o palaacutecio do rei do mar

Quando as irmatildes subiam pela aacutegua de braccedilos dados a caccedilulasempre ficava para traacutes sozinha acompanhando-as com os olhos Teriachorado mas as sereias natildeo tecircm laacutegrimas e sofrem muito mais que noacutes

mdash Oacute Se pelo menos eu tivesse quinze anos ndash ela dizia mdash Seique vou gostar muito do mundo laacute de cima e de todas as pessoas quevivem nele

Entatildeo finalmente ela fez quinze anosmdash Bem agora vocecirc logo escaparaacute das nossas matildeos ndash disse a velha

rainha sua avoacute mdash Venha deixe-me vesti-la como suas outras irmatildesE pocircs no seu cabelo uma coroa de liacuterios brancos em que cada

peacutetala de flor era metade de uma peacuterola Depois a velha senhoramandou trazer oito grandes ostras para prender firmemente na caudada princesa e mostrar sua alta posiccedilatildeo

mdash Ai Isso doacutei ndash disse a Pequena Sereia

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mdash Sim a beleza tem seu preccedilo ndash respondeu a avoacuteComo a Pequena Sereia teria gostado de se livrar de todos

aqueles adornos e pocircr de lado aquela pesada coroa As flores verme-lhas de seu jardim assentavam-lhe muito melhor mas natildeo ousoufazer nenhuma alteraccedilatildeo

mdash Adeus ndash disse ao subir pela aacutegua tatildeo leve e liacutempida quantoas bolhas se elevam agrave superfiacutecie

O sol acabara de se pocircr quando ela ergueu a cabeccedila sobre as

ondas mas as nuvens ainda estavam tingidas de carmesim e ouroNo alto do ceacuteu paacutelido e rosado a estrela vespertina iluminava clarae viacutevida O ar estava ameno e fresco e o mar apraziacutevel Um grandenavio de trecircs mastros estava agrave deriva na aacutegua com apenas uma velaiccedilada porque o vento estava brando Os marinheiros estavam refes-telados no cordame ou nas jardas Havia muacutesica e canto a bordo equando escureceu uma centena de lanternas foi acesa Com suas

muitas cores tinha-se a impressatildeo de que as bandeiras de todas asnaccedilotildees flutuavam no ar

A Pequena Sereia nadou ateacute a escotilha da cabine e cada vez queuma onda a levantava podia ver atraveacutes do vidro transparente umaquantidade de homens magnificamente trajados O mais belo delesera um jovem priacutencipe com grandes olhos escuros Natildeo tinha mais

de dezesseis anos Era seu aniversaacuterio e era por isso que havia tantoalvoroccedilo Quando o jovem priacutencipe saiu para o conveacutes onde os mari-nheiros estavam danccedilando mais de uma centena de foguetes zuniramrumo ao ceacuteu num esplendor tornando o ceacuteu tatildeo brilhante quanto odia A Pequena Sereia ficou tatildeo assustada que mergulhou escondendo--se sob a aacutegua mas rapidamente pocircs a cabeccedila para fora de novo Eveja Parecia que as estrelas laacute do ceacuteu estavam caindo sobre ela Nunca

vira fogos de artifiacutecios Grandes soacuteis rodopiavam ao seu redor lindospeixes de fogo refulgentes lanccedilavam-se no ar azul e todo esse brilhose refletia nas aacuteguas claras e calmas embaixo O proacuteprio navio estavatatildeo deslumbrantemente iluminado que se podiam ver natildeo soacute todas as

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pessoas que laacute estavam como tambeacutem a corda mais fina Que eleganteparecia o jovem priacutencipe quando apertava as matildeos dos marinheiros

Ele ria e sorria enquanto a muacutesica soava pelo ar da noite agradaacutevel Jaacute era muito tarde mas a Pequena Sereia natildeo conseguia tirar os

olhos do navio ou do belo priacutencipe As lanternas coloridas se apagaramos foguetes natildeo mais subiam no ar e o canhatildeo cessara de dar tirosContudo o mar estava inquieto e era possiacutevel ouvir um som queixososob as ondas Ainda assim a Pequena Sereia continuou na aacutegua balan-ccedilando-se para cima e para baixo para olhar a cabine O navio ganhouvelocidade e uma apoacutes outra as suas velas foram desferidas As ondascresciam nuvens negras se agrupavam no ceacuteu e relacircmpagos faiscavamagrave distacircncia Uma terriacutevel tempestade estava se formando Por isso osmarinheiros recolheram as velas enquanto o vento sacudia o grandenavio e o arrastava pelo mar impetuoso As ondas subiam mais e maisaltas ateacute se assemelharem a enormes montanhas ameaccedilando derrubar

o mastro Ainda assim o navio mergulhava como um cisne entre elase voltava a subir em cristas sublimes e espumosas A Pequena Sereiapensou que devia ser divertido para um navio navegar daquele jeitomas a tripulaccedilatildeo pensava diferente O barco gemia e rangia suas pran-chas soacutelidas rompiam-se sob as violentas pancadas do mar o mastropartiu-se ruidosamente em dois como um junco O navio inclinouquando a aacutegua se precipitou no poratildeo

De repente a Pequena Sereia percebeu que o navio estava emperigo Ela mesma tinha de ter cuidado com as vigas e os destroccedilosagrave deriva Em certos momentos ficava tatildeo escuro que natildeo conseguiaenxergar nada mas entatildeo o claratildeo de um relacircmpago iluminou todosa bordo Agora era cada por um si Ela estava agrave procura do jovem priacuten-cipe e no momento em que o navio se partia viu-o desaparecer nasprofundezas do mar Por um instante ficou bastante entusiasmada

pois pensou que agora ele poderia viver no seu mundo Mas logo selembrou que os seres humanos natildeo vivem debaixo drsquoaacutegua e que ele soacutechegaria morto ao palaacutecio de seu pai Natildeo natildeo ele natildeo podia morrer Assim ela nadou entre os destroccedilos que o mar arrastava indiferente

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ao perigo de ser esmagada Mergulhava profundamente e emergia dasondas e finalmente encontrou o jovem priacutencipe Ele mal conseguianadar no mar tempestuoso Seus membros fraquejavam seus belosolhos estavam fechados e certamente teria se afogado se a PequenaSereia natildeo tivesse ido a seu socorro Ela segurou-lhe a cabeccedila acimada aacutegua e abandonou-se com ele aos caprichos das ondas

Quando amanheceu a tempestade cessara e natildeo havia rastro donavio O sol despontou da aacutegua vermelho e resplandecente e pareceudevolver a cor agraves faces do priacutencipe mas os olhos dele permaneciam fe-chados A sereia beijou-lhe a fronte e ajeitou-lhe para traacutes o cabelo mo-lhado Aos seus olhos ele parecia a estaacutetua de maacutermore que tinha em seu jardinzinho Beijou-o de novo e fez um pedido para que ele pudesse viver

Logo a sereia viu diante de si terra firme com suas majestosas

montanhas azuis no alto das quais brilhava a branca neve parecendocisnes aninhados Perto da costa havia adoraacuteveis florestas verdes e junto a uma delas erguia-se um preacutedio alto se era uma igreja ou umconvento ela natildeo sabia dizer Limoeiros e laranjeiras cresciam no

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jardim e ao lado da porta havia trecircs altas palmeiras A pequena baiacutease formava nesse ponto e a aacutegua era plenamente calma embora muito

profunda A sereia nadou com o belo priacutencipe ateacute a praia coberta defina areia branca Ali colocou-o sob o sol quente fazendo um traves-seiro de areia para sua cabeccedila

Sinos soaram do preacutedio branco e vaacuterias moccedilas apareceram no jardim A Pequena Sereia afastou-se nadando para bem longe dapraia e escondeu-se atraacutes de uma pedra grande que se elevava acimada aacutegua Cobriu o cabelo e o peito com espuma do mar para que nin-gueacutem pudesse vecirc-la Depois ficou espiando para ver quem ajudaria opobre priacutencipe

Natildeo demorou muito e surgiu uma jovem Pareceu muito assus-tada mas soacute por um instante e correu para buscar ajuda A sereia viuo priacutencipe voltar a si e ele sorriu para todos ao seu redor Poreacutem natildeohavia nenhum sorriso para ela pois ele natildeo tinha ideia de quem o sal-

vara Depois que foi levado para o preacutedio a Pequena Sereia se sentiatatildeo infeliz que mergulhou de volta para o palaacutecio do paiEla sempre fora silenciosa e pensativa mas agora estava mais do

que nunca Suas irmatildes lhe perguntaram o que vira durante sua pri-meira visita agrave superfiacutecie mas ela natildeo lhes contava nada Em muitasmanhatildes e entardeceres subia ateacute o local onde deixara o priacutencipe Viuas frutas do jardim amadurecerem e observou-as serem colhidas Viu

a neve derreter nos picos Contudo nunca via o priacutencipe e por issosempre voltava para casa ainda mais cheia de tristeza do que antesSeu uacutenico consolo era ficar em seu jardinzinho com os braccedilos emtorno da estaacutetua de maacutermore tatildeo parecida com o priacutencipe Nuncamais cuidou das suas flores que se espalhavam selvagemente ao longodos caminhos entrelaccedilando seus longos galhos nos ramos das aacutervoresateacute obscurecer tudo

Por fim ela natildeo conseguiu mais guardar aquilo consigo e contoutudo a uma de suas irmatildes Logo as outras ficaram sabendo mas nin-gueacutem mais exceto algumas outras sereias que natildeo diriam nada a nin-gueacutem a natildeo ser agraves suas melhores amigas Uma delas foi capaz de lhe

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dar notiacutecias sobre o priacutencipe Ela tambeacutem vira os festejos realizados abordo e disse mais sobre o priacutencipe e a localizaccedilatildeo de seu reino

mdash Venha irmatildezinha ndash disseram as outras princesas E com osbraccedilos nos ombros uma das outras subiram em uma longa fila ateacute asuperfiacutecie bem diante do lugar onde se erguia o castelo do priacutencipe

O castelo construiacutedo de uma pedra amarela e luzidia tinhalongas escadarias de maacutermore sendo que um dos degraus levava di-reto para o mar Esplecircndidas cuacutepulas douradas elevavam-se do teto eentre as colunas que cercavam toda a construccedilatildeo havia esculturas demaacutermore que pareciam vivas Atraveacutes do vidro transparente das altas janelas era possiacutevel ver magniacuteficos aposentos ornados com suntuosascortinas de seda e tapeccedilarias As paredes eram cobertas com enormespinturas e era um prazer contemplaacute-las No centro do maior salatildeohavia uma fonte que lanccedilava seus jorros espumantes ateacute a cuacutepula devidro do teto atraveacutes do qual o sol brilhava na aacutegua e nas belas plantas

que cresciam ali Agora que sabia onde o priacutencipe vivia passava muitos pores dosol e muitas noites naquele lugar Nadava ateacute muito mais perto dacosta do que as outras ousavam Chegou a avanccedilar pelo estreito canalpara ir ateacute a varanda de maacutermore que projetava uma longa sombrasobre a aacutegua Ali ela se sentava e observava o jovem priacutencipe que pen-sava estar completamente soacute ao claratildeo da lua

Muitas vezes agrave noite a Pequena Sereia o via sair ao mar em seuesplecircndido barco com bandeiras hasteadas ao som de muacutesica harmo-niosa Espiava do meio dos juncos verdes e quando o vento levantavao longo veacuteu branco e prateado do seu cabelo e pessoas a viam ima-ginavam apenas que era um cisne estendendo as asas

Em muitas noites quando os pescadores saiam em alto mar comsuas tochas ela os ouvia elogiar o jovem priacutencipe e suas palavras a dei-

xavam ainda mais feliz por lhe ter salvado a vida E ela recordava comoaninhara a cabeccedila dele em seu peito e com que carinho o beijara Masele natildeo sabia nada disso e nunca sequer sonhara que ela existia

A Pequena Sereia foi se afeiccediloando mais e mais aos seres

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humanos e ansiava profundamente pela companhia deles Omundo em que viviam parecia tatildeo mais vasto que o seu proacuteprio

Veja eles podiam navegar o oceano em navios e escalar montanhasiacutengremes bem acima das nuvens E as terras que possuiacuteam suasflorestas e seus campos se estendiam muito aleacutem de onde sua vistaalcanccedilava Havia uma porccedilatildeo de outras coisas que ela teria gos-tado de saber e suas irmatildes natildeo eram capazes de responder a todasas suas curiosidades Por isso foi visitar sua velha avoacute que sabia

tudo sobre o mundo superior como chamava tatildeo apropriadamenteos paiacuteses acima do marmdash Quando natildeo se afogam ndash perguntou a Pequena Sereia ndash os

seres humanos podem continuar vivendo para sempre Natildeo morremcomo noacutes aqui embaixo no mar

mdash Sim sim ndash respondeu a velha senhora mdash Eles tambeacutem teratildeoque morrer e seu tempo de vida eacute mais curto que o nosso Noacutes por

vezes alcanccedilamos a idade de trezentos anos mas quando nossa vidaaqui chega ao fim simplesmente nos transformamos em espuma naaacutegua Aqui natildeo temos tuacutemulos daqueles que amamos Natildeo temosuma alma imortal e nunca teremos outra vida Noacutes somos como o junco verde Uma vez cortado cessa de crescer Jaacute os seres humanostecircm almas que vivem para sempre mesmo depois que seus corpos se

transformam em poacute Elas voam atraveacutes do ar puro ateacute chegarem agraves es-trelas brilhantes Assim como subimos agrave flor da aacutegua e contemplamosas terras dos seres humanos eles atingem belos reinos desconhecidosndash regiotildees que nunca conheceremos

mdash Por que natildeo podemos ter uma alma imortal ndash a PequenaSereia perguntou angustiada mdash Eu daria de boa vontade todos ostrezentos anos que tenho para viver se pudesse me tornar uma humana

por apenas um dia e participar do mundo celestialmdash Vocecirc natildeo deveria se preocupar com isso Somos muito mais

felizes e vivemos melhor aqui do que os seres humanos laacute em cimamdash Entatildeo estou condenada a morrer e flutuar como espuma do

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42 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mar a nunca mais ouvir a muacutesica das ondas ou ver as lindas flores eo sol vermelho Natildeo haacute nada que eu possa fazer para conquistar umaalma imortal

mdash Natildeo ndash disse a velha senhora mdash Soacute se um ser humano aamasse tanto que vocecirc importasse mais para ele que pai e matildee Se elea amasse de todo o coraccedilatildeo e deixasse o padre pocircr a matildeo direita sobre a

sua como uma promessa de ser fiel e verdadeiro por toda a eternidadeNesse caso a alma dele deslizaria para dentro do seu corpo e vocecirctambeacutem obteria uma parcela da felicidade humana Ele lhe daria umaalma e no entanto conservaria a dele proacuteprio Mas isso jamais acon-teceraacute Sua cauda de peixe que achamos tatildeo bonita parece repulsivaagrave gente da terra Sabem tatildeo pouco sobre isso que acreditam realmenteque as duas desajeitadas escoras que chamam de pernas satildeo belas

A Pequena Sereia suspirou e olhou melancolicamente para suacauda de peixe

mdash Devemos ficar satisfeitas com o que temos ndash disse a velhasenhora mdash Vamos danccedilar e nos alegrar durante os trezentos anos

H E L E N S T R A T T O N

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43A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

de nossa existecircncia isso eacute realmente muito tempo Depois da mortepoderemos descansar e pocircr o sono em dia Hoje teremos um baile

na corteNatildeo se pode fazer ideia na terra de tal magnificecircncia As paredes

e o teto do grande salatildeo do baile eram feitos de cristal espesso mastransparente Centenas de conchas enormes rosa-vermelho e verde--relva dispostas de cada lado cada uma com uma chama azul queiluminava todo o salatildeo e luzindo atraveacutes das paredes iluminavamtambeacutem o mar Inuacutemeros peixes grandes e pequenos podiam servistos nadando em direccedilatildeo agraves paredes de cristal As escamas de algunsfulgiam com um brilho puacuterpura-avermelhado e as de outros comoprata e ouro No meio do salatildeo corria um grande rio nos quais mo-luscos e sereias danccedilavam ao seu proacuteprio som melodioso

Nenhum ser humano tem voz tatildeo encantadora Ningueacutem can-tava mais docemente que a Pequena Sereia e todos a aplaudiram

Por um instante houve alegria em seu coraccedilatildeo pois ela sabia quetinha a voz mais bela em terra ou no mar Mas em seguida seuspensamentos se voltaram para o mundo acima dela Natildeo conseguiaesquecer o belo priacutencipe e a grande dor de natildeo ter a alma imortalque ele possuiacutea Assim se arrastou para fora do palaacutecio do pai eenquanto todos laacute dentro cantavam e se divertiam foi se sentar emseu jardinzinho desolada

De repente ela ouviu o som de uma buzina ecoando atraveacutes daaacutegua e pensou

mdash Ah laacute vai ele navegando laacute em cima Aquele a quem amomais do que meu pai ou minha matildee ele que estaacute sempre em meuspensamentos e em cujas matildeos eu confiaria alegremente minha fe-licidade Arriscaria qualquer coisa para conquistaacute-lo e a uma almaimortal Enquanto minhas irmatildes danccedilam no castelo de meu pai vou

agrave procura da feiticeira do mar Sempre tive um terriacutevel medo delamas talvez possa me ajudar e me dizer o que fazer

E assim a Pequena Sereia deixou seu jardim e partiu paraonde a feiticeira morava no lado mais distante dos redemoinhos

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44 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

espumantes Nunca estivera laacute antes Naquele lugar natildeo cresciamflores nem relva do mar Natildeo havia nada aleacutem do fundo arenoso ecinzento que se estendia ateacute os turbilhotildees onde a aacutegua rodopiavacom o estrondo da roda de moinho e sugava para as profundezastudo que podia Tinha de passar pelo meio desses furiosos torveli-nhos para chegar ateacute a feiticeira do mar Por um longo trecho natildeo

havia outro caminho senatildeo pela lama quente e borbulhante ndash que afeiticeira chamava de seu charco

A casa da feiticeira ficava atraacutes do charco no meio de uma flo-resta quimeacuterica Todas as aacutervores e arbustos eram verdadeiros poacuteliposmetade animal e metade vegetal Pareciam serpentes de cem cabeccedilascrescendo do solo Tinham galhos que pareciam braccedilos longos e vis-cosos com dedos tatildeo flexiacuteveis que se assemelhavam a vermes Noacute por

noacute da raiz ateacute a ponta estavam constantemente em movimento eagarravam hermeticamente qualquer coisa que pudessem aproveitardo mar e natildeo soltavam mais A Pequena Sereia ficou apavorada e sedeteve agrave beira da mata Seu coraccedilatildeo palpitava de medo e ela esteve

H E L E N S T R A T T O N

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45A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

prestes a desistir Mas entatildeo lembrou-se do priacutencipe e da alma hu-mana e retomou sua coragem Ela prendeu em torno da cabeccedila seu

longo e esvoaccedilante cabelo para que os poacutelipos natildeo a pudessem agarrarDepois cruzou os braccedilos sobre o peito e disparou adiante como umpeixe lanccedilado na aacutegua no meio dos soacuterdidos poacutelipos que estendiamem sua direccedilatildeo seus braccedilos e dedos buliccedilosos Ela notou como cadaum deles havia agarrado algo e imobilizava firmemente com umacentena de pequenos braccedilos que pareciam aros de ferro Esqueletosbrancos de seres humanos que haviam perecido no mar e afundadonas aacuteguas profundas olhavam dos braccedilos dos poacutelipos Lemes e arcasde navios estavam fortemente agarrados em seus braccedilos juntamentecom esqueletos de animais terrestres e ndash o mais terriacutevel de tudo ndash umasereiazinha que eles haviam capturado e estrangulado

Chegou entatildeo a um grande charco lodoso onde enormes e cor-pulentas cobras-drsquoaacutegua ondeavam-se no lamaccedilal mostrando seus

horrendos ventres amarelo-esbranquiccedilado No meio do charco haviauma casa construiacuteda com os ossos de humanos naufragados Laacute es-tava a feiticeira do mar deixando um sapo se alimentar na sua bocaassim como as pessoas nutrem agraves vezes um canaacuterio com um torratildeo deaccediluacutecar Ela chamava as asquerosas cobras-drsquoaacutegua de seus pintinhos edeixava-as rastejar sobre seu peito

mdash Eu sei exatamente o que vocecirc deseja ndash disse a feiticeira do

mar mdash Como vocecirc eacute estuacutepida Mas vocecirc deve seguir seu caminhoque vai lhe trazer infortuacutenio minha linda princesa Vocecirc quer se li-vrar de sua cauda de peixe e no lugar ter um par de tocos para andarcomo um ser humano a fim de que o jovem priacutencipe se apaixone porvocecirc e lhe decirc uma alma imortal

E com isso a feiticeira soltou uma gargalhada tatildeo alta e maleacuteficaque o sapo e as cobras caiacuteram estatelados no chatildeo

mdash Vocecirc veio na hora certa ndash disse a feiticeira mdash Amanhatildequando o sol se levantar eu natildeo serei mais capaz de ajudaacute-la Voupreparar um elixir para vocecirc Teraacute de nadar ateacute a costa com ele antesdo nascer do sol sentar-se na praia e tomaacute-lo Sua cauda entatildeo se

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H A R R Y C L A R K E

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47 A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

dividiraacute em duas e encolheraacute para se transformar naquilo que os sereshumanos chamam de ldquobelas pernasrdquo Mas vai doer Vocecirc sentiraacute como

se uma espada afiada a cortasse Todos que a virem diratildeo que vocecirc eacutea mais bela humana que jaacute encontraram Manteraacute seus movimentosgraciosos nenhuma danccedilarina jamais deslizaraacute tatildeo suavemente mascada passo que der a faraacute sentir como se estivesse pisando em umafaca afiada o bastante para fazer sangrar seus peacutes Se estiver dispostaa suportar tudo isso posso ajudaacute-la

mdash Sim ndash disse a Pequena Sereia com voz hesitante mas voltouseus pensamentos para o priacutencipe e ao precircmio de uma alma imortal

mdash Pense nisso com cuidado ndash alertou a feiticeira mdash Uma vez to-mada a forma de um ser humano nunca mais voltaraacute a ser uma sereiaVocecirc natildeo seraacute capaz de descer nadando ao encontro do palaacutecio de seupai e de suas irmatildes A uacutenica maneira de conseguir uma alma imortaleacute conquistando o amor do priacutencipe e fazer com que ele esqueccedila o pai

e a matildee por amor a vocecirc Ele deve tecirc-la sempre em seus pensamentose permitir que o padre una suas matildeos para que se tornem marido emulher Se o priacutencipe se casar com outra pessoa na manhatilde seguinteseu coraccedilatildeo se quebraraacute e vocecirc se tornaraacute espuma na crista das ondas

mdash Estou pronta ndash declarou a Pequena Sereia paacutelida comouma morta

mdash Mas teraacute que me recompensar ndash disse a feiticeira mdash Vocecirc natildeo

receberaacute minha ajuda sem nada em troca Vocecirc tem a mais formidaacutevelvoz entre todos que aqui habitam no fundo do mar Provavelmentepensa que encantaraacute o priacutencipe com ela mas teraacute que daacute-la para mimVou lhe exigir o que possui de melhor como pagamento por minhapoccedilatildeo Vocecirc entende tenho de misturar nela um pouco do meu proacutepriosangue para que o elixir seja afiado como uma espada de dois gumes

mdash Mas se tirar a minha voz o que me restaraacute ndash perguntou a

Pequena Sereiamdash Sua encantadora figura ndash disse a feiticeira ndash seus movimentos

graciosos e seus olhos expressivos Com eles pode simplesmente fas-cinar um coraccedilatildeo humano Bem onde estaacute sua coragem Estire a

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48 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

liacutengua e deixe-me cortaacute-la fora como pagamento Depois receberaacutesua poderosa poccedilatildeo

mdash Assim seja ndash concordou a Pequena Sereia e a feiticeira pocircsseu caldeiratildeo no fogo para destilar a poccedilatildeo maacutegica

mdash Limpeza antes de tudo ndash ela disse enquanto esfregava o re-cipiente com um feixe de viacuteboras que tinha atado num grande noacute

Em seguida deu um talho no proacuteprio seio e deixou gotejar onegro sangue no caldeiratildeo O vapor que subiu criava formas estranhasassustadoras de se ver A feiticeira continuava a juntar coisas novas

dentro do caldeiratildeo e quando o elixir comeccedilou a ferver parecia umchoro de crocodilo Finalmente a poccedilatildeo maacutegica ficou pronta e eraexatamente cristalina como aacutegua

mdash Aiacute estaacute vocecirc ndash disse a feiticeira ao cortar a liacutengua da PequenaSereia que agora estava muda e natildeo conseguia falar e cantar

mdash Se os poacutelipos a apanharem quando vocecirc retornar pela mata

ndash orientou a feiticeira ndash basta jogar sobre eles uma uacutenica gota destapoccedilatildeo e os braccedilos e dedos deles seratildeo dilacerados em mil pedaccedilosPoreacutem a Pequena Sereia natildeo precisou disso Os poacutelipos se enco-

lheram aterrorizados quando avistaram a luzente poccedilatildeo em sua matildeocomo uma estrela cintilante E assim passou rapidamente pela matapelo charco e pelos atroadores redemoinhos

A Pequena Sereia pocircde contemplar o palaacutecio do pai As luzes do

salatildeo de baile estavam apagadas Certamente laacute estavam todos dor-mindo a essa altura Mas natildeo se atreveu ir vecirc-los pois agora estavamuda e prestes a deixaacute-los para sempre Ela sentiu como se seu coraccedilatildeofosse partir de tanta dor Entrou secretamente no jardim pegou umaflor dos leitos de cada uma das irmatildes soprou mil beijos em direccedilatildeodo palaacutecio e depois subiu agrave superfiacutecie atraveacutes das aacuteguas azul-escuras

O sol ainda natildeo despontara no horizonte quando ela avistou o

palaacutecio do priacutencipe e subiu os degraus de maacutermore A lua esplendialiacutempida e viacutevida A Pequena Sereia bebeu a acre poccedilatildeo e parecia queuma faca de dois gumes trespassava seu corpo delicado Ela desmaioue caiu morta

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E D M U N D D U L A C

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O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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52 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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55A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

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mdash Sim a beleza tem seu preccedilo ndash respondeu a avoacuteComo a Pequena Sereia teria gostado de se livrar de todos

aqueles adornos e pocircr de lado aquela pesada coroa As flores verme-lhas de seu jardim assentavam-lhe muito melhor mas natildeo ousoufazer nenhuma alteraccedilatildeo

mdash Adeus ndash disse ao subir pela aacutegua tatildeo leve e liacutempida quantoas bolhas se elevam agrave superfiacutecie

O sol acabara de se pocircr quando ela ergueu a cabeccedila sobre as

ondas mas as nuvens ainda estavam tingidas de carmesim e ouroNo alto do ceacuteu paacutelido e rosado a estrela vespertina iluminava clarae viacutevida O ar estava ameno e fresco e o mar apraziacutevel Um grandenavio de trecircs mastros estava agrave deriva na aacutegua com apenas uma velaiccedilada porque o vento estava brando Os marinheiros estavam refes-telados no cordame ou nas jardas Havia muacutesica e canto a bordo equando escureceu uma centena de lanternas foi acesa Com suas

muitas cores tinha-se a impressatildeo de que as bandeiras de todas asnaccedilotildees flutuavam no ar

A Pequena Sereia nadou ateacute a escotilha da cabine e cada vez queuma onda a levantava podia ver atraveacutes do vidro transparente umaquantidade de homens magnificamente trajados O mais belo delesera um jovem priacutencipe com grandes olhos escuros Natildeo tinha mais

de dezesseis anos Era seu aniversaacuterio e era por isso que havia tantoalvoroccedilo Quando o jovem priacutencipe saiu para o conveacutes onde os mari-nheiros estavam danccedilando mais de uma centena de foguetes zuniramrumo ao ceacuteu num esplendor tornando o ceacuteu tatildeo brilhante quanto odia A Pequena Sereia ficou tatildeo assustada que mergulhou escondendo--se sob a aacutegua mas rapidamente pocircs a cabeccedila para fora de novo Eveja Parecia que as estrelas laacute do ceacuteu estavam caindo sobre ela Nunca

vira fogos de artifiacutecios Grandes soacuteis rodopiavam ao seu redor lindospeixes de fogo refulgentes lanccedilavam-se no ar azul e todo esse brilhose refletia nas aacuteguas claras e calmas embaixo O proacuteprio navio estavatatildeo deslumbrantemente iluminado que se podiam ver natildeo soacute todas as

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pessoas que laacute estavam como tambeacutem a corda mais fina Que eleganteparecia o jovem priacutencipe quando apertava as matildeos dos marinheiros

Ele ria e sorria enquanto a muacutesica soava pelo ar da noite agradaacutevel Jaacute era muito tarde mas a Pequena Sereia natildeo conseguia tirar os

olhos do navio ou do belo priacutencipe As lanternas coloridas se apagaramos foguetes natildeo mais subiam no ar e o canhatildeo cessara de dar tirosContudo o mar estava inquieto e era possiacutevel ouvir um som queixososob as ondas Ainda assim a Pequena Sereia continuou na aacutegua balan-ccedilando-se para cima e para baixo para olhar a cabine O navio ganhouvelocidade e uma apoacutes outra as suas velas foram desferidas As ondascresciam nuvens negras se agrupavam no ceacuteu e relacircmpagos faiscavamagrave distacircncia Uma terriacutevel tempestade estava se formando Por isso osmarinheiros recolheram as velas enquanto o vento sacudia o grandenavio e o arrastava pelo mar impetuoso As ondas subiam mais e maisaltas ateacute se assemelharem a enormes montanhas ameaccedilando derrubar

o mastro Ainda assim o navio mergulhava como um cisne entre elase voltava a subir em cristas sublimes e espumosas A Pequena Sereiapensou que devia ser divertido para um navio navegar daquele jeitomas a tripulaccedilatildeo pensava diferente O barco gemia e rangia suas pran-chas soacutelidas rompiam-se sob as violentas pancadas do mar o mastropartiu-se ruidosamente em dois como um junco O navio inclinouquando a aacutegua se precipitou no poratildeo

De repente a Pequena Sereia percebeu que o navio estava emperigo Ela mesma tinha de ter cuidado com as vigas e os destroccedilosagrave deriva Em certos momentos ficava tatildeo escuro que natildeo conseguiaenxergar nada mas entatildeo o claratildeo de um relacircmpago iluminou todosa bordo Agora era cada por um si Ela estava agrave procura do jovem priacuten-cipe e no momento em que o navio se partia viu-o desaparecer nasprofundezas do mar Por um instante ficou bastante entusiasmada

pois pensou que agora ele poderia viver no seu mundo Mas logo selembrou que os seres humanos natildeo vivem debaixo drsquoaacutegua e que ele soacutechegaria morto ao palaacutecio de seu pai Natildeo natildeo ele natildeo podia morrer Assim ela nadou entre os destroccedilos que o mar arrastava indiferente

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ao perigo de ser esmagada Mergulhava profundamente e emergia dasondas e finalmente encontrou o jovem priacutencipe Ele mal conseguianadar no mar tempestuoso Seus membros fraquejavam seus belosolhos estavam fechados e certamente teria se afogado se a PequenaSereia natildeo tivesse ido a seu socorro Ela segurou-lhe a cabeccedila acimada aacutegua e abandonou-se com ele aos caprichos das ondas

Quando amanheceu a tempestade cessara e natildeo havia rastro donavio O sol despontou da aacutegua vermelho e resplandecente e pareceudevolver a cor agraves faces do priacutencipe mas os olhos dele permaneciam fe-chados A sereia beijou-lhe a fronte e ajeitou-lhe para traacutes o cabelo mo-lhado Aos seus olhos ele parecia a estaacutetua de maacutermore que tinha em seu jardinzinho Beijou-o de novo e fez um pedido para que ele pudesse viver

Logo a sereia viu diante de si terra firme com suas majestosas

montanhas azuis no alto das quais brilhava a branca neve parecendocisnes aninhados Perto da costa havia adoraacuteveis florestas verdes e junto a uma delas erguia-se um preacutedio alto se era uma igreja ou umconvento ela natildeo sabia dizer Limoeiros e laranjeiras cresciam no

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jardim e ao lado da porta havia trecircs altas palmeiras A pequena baiacutease formava nesse ponto e a aacutegua era plenamente calma embora muito

profunda A sereia nadou com o belo priacutencipe ateacute a praia coberta defina areia branca Ali colocou-o sob o sol quente fazendo um traves-seiro de areia para sua cabeccedila

Sinos soaram do preacutedio branco e vaacuterias moccedilas apareceram no jardim A Pequena Sereia afastou-se nadando para bem longe dapraia e escondeu-se atraacutes de uma pedra grande que se elevava acimada aacutegua Cobriu o cabelo e o peito com espuma do mar para que nin-gueacutem pudesse vecirc-la Depois ficou espiando para ver quem ajudaria opobre priacutencipe

Natildeo demorou muito e surgiu uma jovem Pareceu muito assus-tada mas soacute por um instante e correu para buscar ajuda A sereia viuo priacutencipe voltar a si e ele sorriu para todos ao seu redor Poreacutem natildeohavia nenhum sorriso para ela pois ele natildeo tinha ideia de quem o sal-

vara Depois que foi levado para o preacutedio a Pequena Sereia se sentiatatildeo infeliz que mergulhou de volta para o palaacutecio do paiEla sempre fora silenciosa e pensativa mas agora estava mais do

que nunca Suas irmatildes lhe perguntaram o que vira durante sua pri-meira visita agrave superfiacutecie mas ela natildeo lhes contava nada Em muitasmanhatildes e entardeceres subia ateacute o local onde deixara o priacutencipe Viuas frutas do jardim amadurecerem e observou-as serem colhidas Viu

a neve derreter nos picos Contudo nunca via o priacutencipe e por issosempre voltava para casa ainda mais cheia de tristeza do que antesSeu uacutenico consolo era ficar em seu jardinzinho com os braccedilos emtorno da estaacutetua de maacutermore tatildeo parecida com o priacutencipe Nuncamais cuidou das suas flores que se espalhavam selvagemente ao longodos caminhos entrelaccedilando seus longos galhos nos ramos das aacutervoresateacute obscurecer tudo

Por fim ela natildeo conseguiu mais guardar aquilo consigo e contoutudo a uma de suas irmatildes Logo as outras ficaram sabendo mas nin-gueacutem mais exceto algumas outras sereias que natildeo diriam nada a nin-gueacutem a natildeo ser agraves suas melhores amigas Uma delas foi capaz de lhe

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dar notiacutecias sobre o priacutencipe Ela tambeacutem vira os festejos realizados abordo e disse mais sobre o priacutencipe e a localizaccedilatildeo de seu reino

mdash Venha irmatildezinha ndash disseram as outras princesas E com osbraccedilos nos ombros uma das outras subiram em uma longa fila ateacute asuperfiacutecie bem diante do lugar onde se erguia o castelo do priacutencipe

O castelo construiacutedo de uma pedra amarela e luzidia tinhalongas escadarias de maacutermore sendo que um dos degraus levava di-reto para o mar Esplecircndidas cuacutepulas douradas elevavam-se do teto eentre as colunas que cercavam toda a construccedilatildeo havia esculturas demaacutermore que pareciam vivas Atraveacutes do vidro transparente das altas janelas era possiacutevel ver magniacuteficos aposentos ornados com suntuosascortinas de seda e tapeccedilarias As paredes eram cobertas com enormespinturas e era um prazer contemplaacute-las No centro do maior salatildeohavia uma fonte que lanccedilava seus jorros espumantes ateacute a cuacutepula devidro do teto atraveacutes do qual o sol brilhava na aacutegua e nas belas plantas

que cresciam ali Agora que sabia onde o priacutencipe vivia passava muitos pores dosol e muitas noites naquele lugar Nadava ateacute muito mais perto dacosta do que as outras ousavam Chegou a avanccedilar pelo estreito canalpara ir ateacute a varanda de maacutermore que projetava uma longa sombrasobre a aacutegua Ali ela se sentava e observava o jovem priacutencipe que pen-sava estar completamente soacute ao claratildeo da lua

Muitas vezes agrave noite a Pequena Sereia o via sair ao mar em seuesplecircndido barco com bandeiras hasteadas ao som de muacutesica harmo-niosa Espiava do meio dos juncos verdes e quando o vento levantavao longo veacuteu branco e prateado do seu cabelo e pessoas a viam ima-ginavam apenas que era um cisne estendendo as asas

Em muitas noites quando os pescadores saiam em alto mar comsuas tochas ela os ouvia elogiar o jovem priacutencipe e suas palavras a dei-

xavam ainda mais feliz por lhe ter salvado a vida E ela recordava comoaninhara a cabeccedila dele em seu peito e com que carinho o beijara Masele natildeo sabia nada disso e nunca sequer sonhara que ela existia

A Pequena Sereia foi se afeiccediloando mais e mais aos seres

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humanos e ansiava profundamente pela companhia deles Omundo em que viviam parecia tatildeo mais vasto que o seu proacuteprio

Veja eles podiam navegar o oceano em navios e escalar montanhasiacutengremes bem acima das nuvens E as terras que possuiacuteam suasflorestas e seus campos se estendiam muito aleacutem de onde sua vistaalcanccedilava Havia uma porccedilatildeo de outras coisas que ela teria gos-tado de saber e suas irmatildes natildeo eram capazes de responder a todasas suas curiosidades Por isso foi visitar sua velha avoacute que sabia

tudo sobre o mundo superior como chamava tatildeo apropriadamenteos paiacuteses acima do marmdash Quando natildeo se afogam ndash perguntou a Pequena Sereia ndash os

seres humanos podem continuar vivendo para sempre Natildeo morremcomo noacutes aqui embaixo no mar

mdash Sim sim ndash respondeu a velha senhora mdash Eles tambeacutem teratildeoque morrer e seu tempo de vida eacute mais curto que o nosso Noacutes por

vezes alcanccedilamos a idade de trezentos anos mas quando nossa vidaaqui chega ao fim simplesmente nos transformamos em espuma naaacutegua Aqui natildeo temos tuacutemulos daqueles que amamos Natildeo temosuma alma imortal e nunca teremos outra vida Noacutes somos como o junco verde Uma vez cortado cessa de crescer Jaacute os seres humanostecircm almas que vivem para sempre mesmo depois que seus corpos se

transformam em poacute Elas voam atraveacutes do ar puro ateacute chegarem agraves es-trelas brilhantes Assim como subimos agrave flor da aacutegua e contemplamosas terras dos seres humanos eles atingem belos reinos desconhecidosndash regiotildees que nunca conheceremos

mdash Por que natildeo podemos ter uma alma imortal ndash a PequenaSereia perguntou angustiada mdash Eu daria de boa vontade todos ostrezentos anos que tenho para viver se pudesse me tornar uma humana

por apenas um dia e participar do mundo celestialmdash Vocecirc natildeo deveria se preocupar com isso Somos muito mais

felizes e vivemos melhor aqui do que os seres humanos laacute em cimamdash Entatildeo estou condenada a morrer e flutuar como espuma do

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mar a nunca mais ouvir a muacutesica das ondas ou ver as lindas flores eo sol vermelho Natildeo haacute nada que eu possa fazer para conquistar umaalma imortal

mdash Natildeo ndash disse a velha senhora mdash Soacute se um ser humano aamasse tanto que vocecirc importasse mais para ele que pai e matildee Se elea amasse de todo o coraccedilatildeo e deixasse o padre pocircr a matildeo direita sobre a

sua como uma promessa de ser fiel e verdadeiro por toda a eternidadeNesse caso a alma dele deslizaria para dentro do seu corpo e vocecirctambeacutem obteria uma parcela da felicidade humana Ele lhe daria umaalma e no entanto conservaria a dele proacuteprio Mas isso jamais acon-teceraacute Sua cauda de peixe que achamos tatildeo bonita parece repulsivaagrave gente da terra Sabem tatildeo pouco sobre isso que acreditam realmenteque as duas desajeitadas escoras que chamam de pernas satildeo belas

A Pequena Sereia suspirou e olhou melancolicamente para suacauda de peixe

mdash Devemos ficar satisfeitas com o que temos ndash disse a velhasenhora mdash Vamos danccedilar e nos alegrar durante os trezentos anos

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de nossa existecircncia isso eacute realmente muito tempo Depois da mortepoderemos descansar e pocircr o sono em dia Hoje teremos um baile

na corteNatildeo se pode fazer ideia na terra de tal magnificecircncia As paredes

e o teto do grande salatildeo do baile eram feitos de cristal espesso mastransparente Centenas de conchas enormes rosa-vermelho e verde--relva dispostas de cada lado cada uma com uma chama azul queiluminava todo o salatildeo e luzindo atraveacutes das paredes iluminavamtambeacutem o mar Inuacutemeros peixes grandes e pequenos podiam servistos nadando em direccedilatildeo agraves paredes de cristal As escamas de algunsfulgiam com um brilho puacuterpura-avermelhado e as de outros comoprata e ouro No meio do salatildeo corria um grande rio nos quais mo-luscos e sereias danccedilavam ao seu proacuteprio som melodioso

Nenhum ser humano tem voz tatildeo encantadora Ningueacutem can-tava mais docemente que a Pequena Sereia e todos a aplaudiram

Por um instante houve alegria em seu coraccedilatildeo pois ela sabia quetinha a voz mais bela em terra ou no mar Mas em seguida seuspensamentos se voltaram para o mundo acima dela Natildeo conseguiaesquecer o belo priacutencipe e a grande dor de natildeo ter a alma imortalque ele possuiacutea Assim se arrastou para fora do palaacutecio do pai eenquanto todos laacute dentro cantavam e se divertiam foi se sentar emseu jardinzinho desolada

De repente ela ouviu o som de uma buzina ecoando atraveacutes daaacutegua e pensou

mdash Ah laacute vai ele navegando laacute em cima Aquele a quem amomais do que meu pai ou minha matildee ele que estaacute sempre em meuspensamentos e em cujas matildeos eu confiaria alegremente minha fe-licidade Arriscaria qualquer coisa para conquistaacute-lo e a uma almaimortal Enquanto minhas irmatildes danccedilam no castelo de meu pai vou

agrave procura da feiticeira do mar Sempre tive um terriacutevel medo delamas talvez possa me ajudar e me dizer o que fazer

E assim a Pequena Sereia deixou seu jardim e partiu paraonde a feiticeira morava no lado mais distante dos redemoinhos

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espumantes Nunca estivera laacute antes Naquele lugar natildeo cresciamflores nem relva do mar Natildeo havia nada aleacutem do fundo arenoso ecinzento que se estendia ateacute os turbilhotildees onde a aacutegua rodopiavacom o estrondo da roda de moinho e sugava para as profundezastudo que podia Tinha de passar pelo meio desses furiosos torveli-nhos para chegar ateacute a feiticeira do mar Por um longo trecho natildeo

havia outro caminho senatildeo pela lama quente e borbulhante ndash que afeiticeira chamava de seu charco

A casa da feiticeira ficava atraacutes do charco no meio de uma flo-resta quimeacuterica Todas as aacutervores e arbustos eram verdadeiros poacuteliposmetade animal e metade vegetal Pareciam serpentes de cem cabeccedilascrescendo do solo Tinham galhos que pareciam braccedilos longos e vis-cosos com dedos tatildeo flexiacuteveis que se assemelhavam a vermes Noacute por

noacute da raiz ateacute a ponta estavam constantemente em movimento eagarravam hermeticamente qualquer coisa que pudessem aproveitardo mar e natildeo soltavam mais A Pequena Sereia ficou apavorada e sedeteve agrave beira da mata Seu coraccedilatildeo palpitava de medo e ela esteve

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prestes a desistir Mas entatildeo lembrou-se do priacutencipe e da alma hu-mana e retomou sua coragem Ela prendeu em torno da cabeccedila seu

longo e esvoaccedilante cabelo para que os poacutelipos natildeo a pudessem agarrarDepois cruzou os braccedilos sobre o peito e disparou adiante como umpeixe lanccedilado na aacutegua no meio dos soacuterdidos poacutelipos que estendiamem sua direccedilatildeo seus braccedilos e dedos buliccedilosos Ela notou como cadaum deles havia agarrado algo e imobilizava firmemente com umacentena de pequenos braccedilos que pareciam aros de ferro Esqueletosbrancos de seres humanos que haviam perecido no mar e afundadonas aacuteguas profundas olhavam dos braccedilos dos poacutelipos Lemes e arcasde navios estavam fortemente agarrados em seus braccedilos juntamentecom esqueletos de animais terrestres e ndash o mais terriacutevel de tudo ndash umasereiazinha que eles haviam capturado e estrangulado

Chegou entatildeo a um grande charco lodoso onde enormes e cor-pulentas cobras-drsquoaacutegua ondeavam-se no lamaccedilal mostrando seus

horrendos ventres amarelo-esbranquiccedilado No meio do charco haviauma casa construiacuteda com os ossos de humanos naufragados Laacute es-tava a feiticeira do mar deixando um sapo se alimentar na sua bocaassim como as pessoas nutrem agraves vezes um canaacuterio com um torratildeo deaccediluacutecar Ela chamava as asquerosas cobras-drsquoaacutegua de seus pintinhos edeixava-as rastejar sobre seu peito

mdash Eu sei exatamente o que vocecirc deseja ndash disse a feiticeira do

mar mdash Como vocecirc eacute estuacutepida Mas vocecirc deve seguir seu caminhoque vai lhe trazer infortuacutenio minha linda princesa Vocecirc quer se li-vrar de sua cauda de peixe e no lugar ter um par de tocos para andarcomo um ser humano a fim de que o jovem priacutencipe se apaixone porvocecirc e lhe decirc uma alma imortal

E com isso a feiticeira soltou uma gargalhada tatildeo alta e maleacuteficaque o sapo e as cobras caiacuteram estatelados no chatildeo

mdash Vocecirc veio na hora certa ndash disse a feiticeira mdash Amanhatildequando o sol se levantar eu natildeo serei mais capaz de ajudaacute-la Voupreparar um elixir para vocecirc Teraacute de nadar ateacute a costa com ele antesdo nascer do sol sentar-se na praia e tomaacute-lo Sua cauda entatildeo se

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dividiraacute em duas e encolheraacute para se transformar naquilo que os sereshumanos chamam de ldquobelas pernasrdquo Mas vai doer Vocecirc sentiraacute como

se uma espada afiada a cortasse Todos que a virem diratildeo que vocecirc eacutea mais bela humana que jaacute encontraram Manteraacute seus movimentosgraciosos nenhuma danccedilarina jamais deslizaraacute tatildeo suavemente mascada passo que der a faraacute sentir como se estivesse pisando em umafaca afiada o bastante para fazer sangrar seus peacutes Se estiver dispostaa suportar tudo isso posso ajudaacute-la

mdash Sim ndash disse a Pequena Sereia com voz hesitante mas voltouseus pensamentos para o priacutencipe e ao precircmio de uma alma imortal

mdash Pense nisso com cuidado ndash alertou a feiticeira mdash Uma vez to-mada a forma de um ser humano nunca mais voltaraacute a ser uma sereiaVocecirc natildeo seraacute capaz de descer nadando ao encontro do palaacutecio de seupai e de suas irmatildes A uacutenica maneira de conseguir uma alma imortaleacute conquistando o amor do priacutencipe e fazer com que ele esqueccedila o pai

e a matildee por amor a vocecirc Ele deve tecirc-la sempre em seus pensamentose permitir que o padre una suas matildeos para que se tornem marido emulher Se o priacutencipe se casar com outra pessoa na manhatilde seguinteseu coraccedilatildeo se quebraraacute e vocecirc se tornaraacute espuma na crista das ondas

mdash Estou pronta ndash declarou a Pequena Sereia paacutelida comouma morta

mdash Mas teraacute que me recompensar ndash disse a feiticeira mdash Vocecirc natildeo

receberaacute minha ajuda sem nada em troca Vocecirc tem a mais formidaacutevelvoz entre todos que aqui habitam no fundo do mar Provavelmentepensa que encantaraacute o priacutencipe com ela mas teraacute que daacute-la para mimVou lhe exigir o que possui de melhor como pagamento por minhapoccedilatildeo Vocecirc entende tenho de misturar nela um pouco do meu proacutepriosangue para que o elixir seja afiado como uma espada de dois gumes

mdash Mas se tirar a minha voz o que me restaraacute ndash perguntou a

Pequena Sereiamdash Sua encantadora figura ndash disse a feiticeira ndash seus movimentos

graciosos e seus olhos expressivos Com eles pode simplesmente fas-cinar um coraccedilatildeo humano Bem onde estaacute sua coragem Estire a

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48 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

liacutengua e deixe-me cortaacute-la fora como pagamento Depois receberaacutesua poderosa poccedilatildeo

mdash Assim seja ndash concordou a Pequena Sereia e a feiticeira pocircsseu caldeiratildeo no fogo para destilar a poccedilatildeo maacutegica

mdash Limpeza antes de tudo ndash ela disse enquanto esfregava o re-cipiente com um feixe de viacuteboras que tinha atado num grande noacute

Em seguida deu um talho no proacuteprio seio e deixou gotejar onegro sangue no caldeiratildeo O vapor que subiu criava formas estranhasassustadoras de se ver A feiticeira continuava a juntar coisas novas

dentro do caldeiratildeo e quando o elixir comeccedilou a ferver parecia umchoro de crocodilo Finalmente a poccedilatildeo maacutegica ficou pronta e eraexatamente cristalina como aacutegua

mdash Aiacute estaacute vocecirc ndash disse a feiticeira ao cortar a liacutengua da PequenaSereia que agora estava muda e natildeo conseguia falar e cantar

mdash Se os poacutelipos a apanharem quando vocecirc retornar pela mata

ndash orientou a feiticeira ndash basta jogar sobre eles uma uacutenica gota destapoccedilatildeo e os braccedilos e dedos deles seratildeo dilacerados em mil pedaccedilosPoreacutem a Pequena Sereia natildeo precisou disso Os poacutelipos se enco-

lheram aterrorizados quando avistaram a luzente poccedilatildeo em sua matildeocomo uma estrela cintilante E assim passou rapidamente pela matapelo charco e pelos atroadores redemoinhos

A Pequena Sereia pocircde contemplar o palaacutecio do pai As luzes do

salatildeo de baile estavam apagadas Certamente laacute estavam todos dor-mindo a essa altura Mas natildeo se atreveu ir vecirc-los pois agora estavamuda e prestes a deixaacute-los para sempre Ela sentiu como se seu coraccedilatildeofosse partir de tanta dor Entrou secretamente no jardim pegou umaflor dos leitos de cada uma das irmatildes soprou mil beijos em direccedilatildeodo palaacutecio e depois subiu agrave superfiacutecie atraveacutes das aacuteguas azul-escuras

O sol ainda natildeo despontara no horizonte quando ela avistou o

palaacutecio do priacutencipe e subiu os degraus de maacutermore A lua esplendialiacutempida e viacutevida A Pequena Sereia bebeu a acre poccedilatildeo e parecia queuma faca de dois gumes trespassava seu corpo delicado Ela desmaioue caiu morta

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49A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

E D M U N D D U L A C

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O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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D U G A L D S T E W A R T WA L K E R 1 9 1 4

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seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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61A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

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36 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

pessoas que laacute estavam como tambeacutem a corda mais fina Que eleganteparecia o jovem priacutencipe quando apertava as matildeos dos marinheiros

Ele ria e sorria enquanto a muacutesica soava pelo ar da noite agradaacutevel Jaacute era muito tarde mas a Pequena Sereia natildeo conseguia tirar os

olhos do navio ou do belo priacutencipe As lanternas coloridas se apagaramos foguetes natildeo mais subiam no ar e o canhatildeo cessara de dar tirosContudo o mar estava inquieto e era possiacutevel ouvir um som queixososob as ondas Ainda assim a Pequena Sereia continuou na aacutegua balan-ccedilando-se para cima e para baixo para olhar a cabine O navio ganhouvelocidade e uma apoacutes outra as suas velas foram desferidas As ondascresciam nuvens negras se agrupavam no ceacuteu e relacircmpagos faiscavamagrave distacircncia Uma terriacutevel tempestade estava se formando Por isso osmarinheiros recolheram as velas enquanto o vento sacudia o grandenavio e o arrastava pelo mar impetuoso As ondas subiam mais e maisaltas ateacute se assemelharem a enormes montanhas ameaccedilando derrubar

o mastro Ainda assim o navio mergulhava como um cisne entre elase voltava a subir em cristas sublimes e espumosas A Pequena Sereiapensou que devia ser divertido para um navio navegar daquele jeitomas a tripulaccedilatildeo pensava diferente O barco gemia e rangia suas pran-chas soacutelidas rompiam-se sob as violentas pancadas do mar o mastropartiu-se ruidosamente em dois como um junco O navio inclinouquando a aacutegua se precipitou no poratildeo

De repente a Pequena Sereia percebeu que o navio estava emperigo Ela mesma tinha de ter cuidado com as vigas e os destroccedilosagrave deriva Em certos momentos ficava tatildeo escuro que natildeo conseguiaenxergar nada mas entatildeo o claratildeo de um relacircmpago iluminou todosa bordo Agora era cada por um si Ela estava agrave procura do jovem priacuten-cipe e no momento em que o navio se partia viu-o desaparecer nasprofundezas do mar Por um instante ficou bastante entusiasmada

pois pensou que agora ele poderia viver no seu mundo Mas logo selembrou que os seres humanos natildeo vivem debaixo drsquoaacutegua e que ele soacutechegaria morto ao palaacutecio de seu pai Natildeo natildeo ele natildeo podia morrer Assim ela nadou entre os destroccedilos que o mar arrastava indiferente

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37 A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

ao perigo de ser esmagada Mergulhava profundamente e emergia dasondas e finalmente encontrou o jovem priacutencipe Ele mal conseguianadar no mar tempestuoso Seus membros fraquejavam seus belosolhos estavam fechados e certamente teria se afogado se a PequenaSereia natildeo tivesse ido a seu socorro Ela segurou-lhe a cabeccedila acimada aacutegua e abandonou-se com ele aos caprichos das ondas

Quando amanheceu a tempestade cessara e natildeo havia rastro donavio O sol despontou da aacutegua vermelho e resplandecente e pareceudevolver a cor agraves faces do priacutencipe mas os olhos dele permaneciam fe-chados A sereia beijou-lhe a fronte e ajeitou-lhe para traacutes o cabelo mo-lhado Aos seus olhos ele parecia a estaacutetua de maacutermore que tinha em seu jardinzinho Beijou-o de novo e fez um pedido para que ele pudesse viver

Logo a sereia viu diante de si terra firme com suas majestosas

montanhas azuis no alto das quais brilhava a branca neve parecendocisnes aninhados Perto da costa havia adoraacuteveis florestas verdes e junto a uma delas erguia-se um preacutedio alto se era uma igreja ou umconvento ela natildeo sabia dizer Limoeiros e laranjeiras cresciam no

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38 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

D U G A L D S T E W A R T WA L K E R 1 9 1 4

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39A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

jardim e ao lado da porta havia trecircs altas palmeiras A pequena baiacutease formava nesse ponto e a aacutegua era plenamente calma embora muito

profunda A sereia nadou com o belo priacutencipe ateacute a praia coberta defina areia branca Ali colocou-o sob o sol quente fazendo um traves-seiro de areia para sua cabeccedila

Sinos soaram do preacutedio branco e vaacuterias moccedilas apareceram no jardim A Pequena Sereia afastou-se nadando para bem longe dapraia e escondeu-se atraacutes de uma pedra grande que se elevava acimada aacutegua Cobriu o cabelo e o peito com espuma do mar para que nin-gueacutem pudesse vecirc-la Depois ficou espiando para ver quem ajudaria opobre priacutencipe

Natildeo demorou muito e surgiu uma jovem Pareceu muito assus-tada mas soacute por um instante e correu para buscar ajuda A sereia viuo priacutencipe voltar a si e ele sorriu para todos ao seu redor Poreacutem natildeohavia nenhum sorriso para ela pois ele natildeo tinha ideia de quem o sal-

vara Depois que foi levado para o preacutedio a Pequena Sereia se sentiatatildeo infeliz que mergulhou de volta para o palaacutecio do paiEla sempre fora silenciosa e pensativa mas agora estava mais do

que nunca Suas irmatildes lhe perguntaram o que vira durante sua pri-meira visita agrave superfiacutecie mas ela natildeo lhes contava nada Em muitasmanhatildes e entardeceres subia ateacute o local onde deixara o priacutencipe Viuas frutas do jardim amadurecerem e observou-as serem colhidas Viu

a neve derreter nos picos Contudo nunca via o priacutencipe e por issosempre voltava para casa ainda mais cheia de tristeza do que antesSeu uacutenico consolo era ficar em seu jardinzinho com os braccedilos emtorno da estaacutetua de maacutermore tatildeo parecida com o priacutencipe Nuncamais cuidou das suas flores que se espalhavam selvagemente ao longodos caminhos entrelaccedilando seus longos galhos nos ramos das aacutervoresateacute obscurecer tudo

Por fim ela natildeo conseguiu mais guardar aquilo consigo e contoutudo a uma de suas irmatildes Logo as outras ficaram sabendo mas nin-gueacutem mais exceto algumas outras sereias que natildeo diriam nada a nin-gueacutem a natildeo ser agraves suas melhores amigas Uma delas foi capaz de lhe

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40 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

dar notiacutecias sobre o priacutencipe Ela tambeacutem vira os festejos realizados abordo e disse mais sobre o priacutencipe e a localizaccedilatildeo de seu reino

mdash Venha irmatildezinha ndash disseram as outras princesas E com osbraccedilos nos ombros uma das outras subiram em uma longa fila ateacute asuperfiacutecie bem diante do lugar onde se erguia o castelo do priacutencipe

O castelo construiacutedo de uma pedra amarela e luzidia tinhalongas escadarias de maacutermore sendo que um dos degraus levava di-reto para o mar Esplecircndidas cuacutepulas douradas elevavam-se do teto eentre as colunas que cercavam toda a construccedilatildeo havia esculturas demaacutermore que pareciam vivas Atraveacutes do vidro transparente das altas janelas era possiacutevel ver magniacuteficos aposentos ornados com suntuosascortinas de seda e tapeccedilarias As paredes eram cobertas com enormespinturas e era um prazer contemplaacute-las No centro do maior salatildeohavia uma fonte que lanccedilava seus jorros espumantes ateacute a cuacutepula devidro do teto atraveacutes do qual o sol brilhava na aacutegua e nas belas plantas

que cresciam ali Agora que sabia onde o priacutencipe vivia passava muitos pores dosol e muitas noites naquele lugar Nadava ateacute muito mais perto dacosta do que as outras ousavam Chegou a avanccedilar pelo estreito canalpara ir ateacute a varanda de maacutermore que projetava uma longa sombrasobre a aacutegua Ali ela se sentava e observava o jovem priacutencipe que pen-sava estar completamente soacute ao claratildeo da lua

Muitas vezes agrave noite a Pequena Sereia o via sair ao mar em seuesplecircndido barco com bandeiras hasteadas ao som de muacutesica harmo-niosa Espiava do meio dos juncos verdes e quando o vento levantavao longo veacuteu branco e prateado do seu cabelo e pessoas a viam ima-ginavam apenas que era um cisne estendendo as asas

Em muitas noites quando os pescadores saiam em alto mar comsuas tochas ela os ouvia elogiar o jovem priacutencipe e suas palavras a dei-

xavam ainda mais feliz por lhe ter salvado a vida E ela recordava comoaninhara a cabeccedila dele em seu peito e com que carinho o beijara Masele natildeo sabia nada disso e nunca sequer sonhara que ela existia

A Pequena Sereia foi se afeiccediloando mais e mais aos seres

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41A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

humanos e ansiava profundamente pela companhia deles Omundo em que viviam parecia tatildeo mais vasto que o seu proacuteprio

Veja eles podiam navegar o oceano em navios e escalar montanhasiacutengremes bem acima das nuvens E as terras que possuiacuteam suasflorestas e seus campos se estendiam muito aleacutem de onde sua vistaalcanccedilava Havia uma porccedilatildeo de outras coisas que ela teria gos-tado de saber e suas irmatildes natildeo eram capazes de responder a todasas suas curiosidades Por isso foi visitar sua velha avoacute que sabia

tudo sobre o mundo superior como chamava tatildeo apropriadamenteos paiacuteses acima do marmdash Quando natildeo se afogam ndash perguntou a Pequena Sereia ndash os

seres humanos podem continuar vivendo para sempre Natildeo morremcomo noacutes aqui embaixo no mar

mdash Sim sim ndash respondeu a velha senhora mdash Eles tambeacutem teratildeoque morrer e seu tempo de vida eacute mais curto que o nosso Noacutes por

vezes alcanccedilamos a idade de trezentos anos mas quando nossa vidaaqui chega ao fim simplesmente nos transformamos em espuma naaacutegua Aqui natildeo temos tuacutemulos daqueles que amamos Natildeo temosuma alma imortal e nunca teremos outra vida Noacutes somos como o junco verde Uma vez cortado cessa de crescer Jaacute os seres humanostecircm almas que vivem para sempre mesmo depois que seus corpos se

transformam em poacute Elas voam atraveacutes do ar puro ateacute chegarem agraves es-trelas brilhantes Assim como subimos agrave flor da aacutegua e contemplamosas terras dos seres humanos eles atingem belos reinos desconhecidosndash regiotildees que nunca conheceremos

mdash Por que natildeo podemos ter uma alma imortal ndash a PequenaSereia perguntou angustiada mdash Eu daria de boa vontade todos ostrezentos anos que tenho para viver se pudesse me tornar uma humana

por apenas um dia e participar do mundo celestialmdash Vocecirc natildeo deveria se preocupar com isso Somos muito mais

felizes e vivemos melhor aqui do que os seres humanos laacute em cimamdash Entatildeo estou condenada a morrer e flutuar como espuma do

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42 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mar a nunca mais ouvir a muacutesica das ondas ou ver as lindas flores eo sol vermelho Natildeo haacute nada que eu possa fazer para conquistar umaalma imortal

mdash Natildeo ndash disse a velha senhora mdash Soacute se um ser humano aamasse tanto que vocecirc importasse mais para ele que pai e matildee Se elea amasse de todo o coraccedilatildeo e deixasse o padre pocircr a matildeo direita sobre a

sua como uma promessa de ser fiel e verdadeiro por toda a eternidadeNesse caso a alma dele deslizaria para dentro do seu corpo e vocecirctambeacutem obteria uma parcela da felicidade humana Ele lhe daria umaalma e no entanto conservaria a dele proacuteprio Mas isso jamais acon-teceraacute Sua cauda de peixe que achamos tatildeo bonita parece repulsivaagrave gente da terra Sabem tatildeo pouco sobre isso que acreditam realmenteque as duas desajeitadas escoras que chamam de pernas satildeo belas

A Pequena Sereia suspirou e olhou melancolicamente para suacauda de peixe

mdash Devemos ficar satisfeitas com o que temos ndash disse a velhasenhora mdash Vamos danccedilar e nos alegrar durante os trezentos anos

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43A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

de nossa existecircncia isso eacute realmente muito tempo Depois da mortepoderemos descansar e pocircr o sono em dia Hoje teremos um baile

na corteNatildeo se pode fazer ideia na terra de tal magnificecircncia As paredes

e o teto do grande salatildeo do baile eram feitos de cristal espesso mastransparente Centenas de conchas enormes rosa-vermelho e verde--relva dispostas de cada lado cada uma com uma chama azul queiluminava todo o salatildeo e luzindo atraveacutes das paredes iluminavamtambeacutem o mar Inuacutemeros peixes grandes e pequenos podiam servistos nadando em direccedilatildeo agraves paredes de cristal As escamas de algunsfulgiam com um brilho puacuterpura-avermelhado e as de outros comoprata e ouro No meio do salatildeo corria um grande rio nos quais mo-luscos e sereias danccedilavam ao seu proacuteprio som melodioso

Nenhum ser humano tem voz tatildeo encantadora Ningueacutem can-tava mais docemente que a Pequena Sereia e todos a aplaudiram

Por um instante houve alegria em seu coraccedilatildeo pois ela sabia quetinha a voz mais bela em terra ou no mar Mas em seguida seuspensamentos se voltaram para o mundo acima dela Natildeo conseguiaesquecer o belo priacutencipe e a grande dor de natildeo ter a alma imortalque ele possuiacutea Assim se arrastou para fora do palaacutecio do pai eenquanto todos laacute dentro cantavam e se divertiam foi se sentar emseu jardinzinho desolada

De repente ela ouviu o som de uma buzina ecoando atraveacutes daaacutegua e pensou

mdash Ah laacute vai ele navegando laacute em cima Aquele a quem amomais do que meu pai ou minha matildee ele que estaacute sempre em meuspensamentos e em cujas matildeos eu confiaria alegremente minha fe-licidade Arriscaria qualquer coisa para conquistaacute-lo e a uma almaimortal Enquanto minhas irmatildes danccedilam no castelo de meu pai vou

agrave procura da feiticeira do mar Sempre tive um terriacutevel medo delamas talvez possa me ajudar e me dizer o que fazer

E assim a Pequena Sereia deixou seu jardim e partiu paraonde a feiticeira morava no lado mais distante dos redemoinhos

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44 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

espumantes Nunca estivera laacute antes Naquele lugar natildeo cresciamflores nem relva do mar Natildeo havia nada aleacutem do fundo arenoso ecinzento que se estendia ateacute os turbilhotildees onde a aacutegua rodopiavacom o estrondo da roda de moinho e sugava para as profundezastudo que podia Tinha de passar pelo meio desses furiosos torveli-nhos para chegar ateacute a feiticeira do mar Por um longo trecho natildeo

havia outro caminho senatildeo pela lama quente e borbulhante ndash que afeiticeira chamava de seu charco

A casa da feiticeira ficava atraacutes do charco no meio de uma flo-resta quimeacuterica Todas as aacutervores e arbustos eram verdadeiros poacuteliposmetade animal e metade vegetal Pareciam serpentes de cem cabeccedilascrescendo do solo Tinham galhos que pareciam braccedilos longos e vis-cosos com dedos tatildeo flexiacuteveis que se assemelhavam a vermes Noacute por

noacute da raiz ateacute a ponta estavam constantemente em movimento eagarravam hermeticamente qualquer coisa que pudessem aproveitardo mar e natildeo soltavam mais A Pequena Sereia ficou apavorada e sedeteve agrave beira da mata Seu coraccedilatildeo palpitava de medo e ela esteve

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45A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

prestes a desistir Mas entatildeo lembrou-se do priacutencipe e da alma hu-mana e retomou sua coragem Ela prendeu em torno da cabeccedila seu

longo e esvoaccedilante cabelo para que os poacutelipos natildeo a pudessem agarrarDepois cruzou os braccedilos sobre o peito e disparou adiante como umpeixe lanccedilado na aacutegua no meio dos soacuterdidos poacutelipos que estendiamem sua direccedilatildeo seus braccedilos e dedos buliccedilosos Ela notou como cadaum deles havia agarrado algo e imobilizava firmemente com umacentena de pequenos braccedilos que pareciam aros de ferro Esqueletosbrancos de seres humanos que haviam perecido no mar e afundadonas aacuteguas profundas olhavam dos braccedilos dos poacutelipos Lemes e arcasde navios estavam fortemente agarrados em seus braccedilos juntamentecom esqueletos de animais terrestres e ndash o mais terriacutevel de tudo ndash umasereiazinha que eles haviam capturado e estrangulado

Chegou entatildeo a um grande charco lodoso onde enormes e cor-pulentas cobras-drsquoaacutegua ondeavam-se no lamaccedilal mostrando seus

horrendos ventres amarelo-esbranquiccedilado No meio do charco haviauma casa construiacuteda com os ossos de humanos naufragados Laacute es-tava a feiticeira do mar deixando um sapo se alimentar na sua bocaassim como as pessoas nutrem agraves vezes um canaacuterio com um torratildeo deaccediluacutecar Ela chamava as asquerosas cobras-drsquoaacutegua de seus pintinhos edeixava-as rastejar sobre seu peito

mdash Eu sei exatamente o que vocecirc deseja ndash disse a feiticeira do

mar mdash Como vocecirc eacute estuacutepida Mas vocecirc deve seguir seu caminhoque vai lhe trazer infortuacutenio minha linda princesa Vocecirc quer se li-vrar de sua cauda de peixe e no lugar ter um par de tocos para andarcomo um ser humano a fim de que o jovem priacutencipe se apaixone porvocecirc e lhe decirc uma alma imortal

E com isso a feiticeira soltou uma gargalhada tatildeo alta e maleacuteficaque o sapo e as cobras caiacuteram estatelados no chatildeo

mdash Vocecirc veio na hora certa ndash disse a feiticeira mdash Amanhatildequando o sol se levantar eu natildeo serei mais capaz de ajudaacute-la Voupreparar um elixir para vocecirc Teraacute de nadar ateacute a costa com ele antesdo nascer do sol sentar-se na praia e tomaacute-lo Sua cauda entatildeo se

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H A R R Y C L A R K E

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47 A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

dividiraacute em duas e encolheraacute para se transformar naquilo que os sereshumanos chamam de ldquobelas pernasrdquo Mas vai doer Vocecirc sentiraacute como

se uma espada afiada a cortasse Todos que a virem diratildeo que vocecirc eacutea mais bela humana que jaacute encontraram Manteraacute seus movimentosgraciosos nenhuma danccedilarina jamais deslizaraacute tatildeo suavemente mascada passo que der a faraacute sentir como se estivesse pisando em umafaca afiada o bastante para fazer sangrar seus peacutes Se estiver dispostaa suportar tudo isso posso ajudaacute-la

mdash Sim ndash disse a Pequena Sereia com voz hesitante mas voltouseus pensamentos para o priacutencipe e ao precircmio de uma alma imortal

mdash Pense nisso com cuidado ndash alertou a feiticeira mdash Uma vez to-mada a forma de um ser humano nunca mais voltaraacute a ser uma sereiaVocecirc natildeo seraacute capaz de descer nadando ao encontro do palaacutecio de seupai e de suas irmatildes A uacutenica maneira de conseguir uma alma imortaleacute conquistando o amor do priacutencipe e fazer com que ele esqueccedila o pai

e a matildee por amor a vocecirc Ele deve tecirc-la sempre em seus pensamentose permitir que o padre una suas matildeos para que se tornem marido emulher Se o priacutencipe se casar com outra pessoa na manhatilde seguinteseu coraccedilatildeo se quebraraacute e vocecirc se tornaraacute espuma na crista das ondas

mdash Estou pronta ndash declarou a Pequena Sereia paacutelida comouma morta

mdash Mas teraacute que me recompensar ndash disse a feiticeira mdash Vocecirc natildeo

receberaacute minha ajuda sem nada em troca Vocecirc tem a mais formidaacutevelvoz entre todos que aqui habitam no fundo do mar Provavelmentepensa que encantaraacute o priacutencipe com ela mas teraacute que daacute-la para mimVou lhe exigir o que possui de melhor como pagamento por minhapoccedilatildeo Vocecirc entende tenho de misturar nela um pouco do meu proacutepriosangue para que o elixir seja afiado como uma espada de dois gumes

mdash Mas se tirar a minha voz o que me restaraacute ndash perguntou a

Pequena Sereiamdash Sua encantadora figura ndash disse a feiticeira ndash seus movimentos

graciosos e seus olhos expressivos Com eles pode simplesmente fas-cinar um coraccedilatildeo humano Bem onde estaacute sua coragem Estire a

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liacutengua e deixe-me cortaacute-la fora como pagamento Depois receberaacutesua poderosa poccedilatildeo

mdash Assim seja ndash concordou a Pequena Sereia e a feiticeira pocircsseu caldeiratildeo no fogo para destilar a poccedilatildeo maacutegica

mdash Limpeza antes de tudo ndash ela disse enquanto esfregava o re-cipiente com um feixe de viacuteboras que tinha atado num grande noacute

Em seguida deu um talho no proacuteprio seio e deixou gotejar onegro sangue no caldeiratildeo O vapor que subiu criava formas estranhasassustadoras de se ver A feiticeira continuava a juntar coisas novas

dentro do caldeiratildeo e quando o elixir comeccedilou a ferver parecia umchoro de crocodilo Finalmente a poccedilatildeo maacutegica ficou pronta e eraexatamente cristalina como aacutegua

mdash Aiacute estaacute vocecirc ndash disse a feiticeira ao cortar a liacutengua da PequenaSereia que agora estava muda e natildeo conseguia falar e cantar

mdash Se os poacutelipos a apanharem quando vocecirc retornar pela mata

ndash orientou a feiticeira ndash basta jogar sobre eles uma uacutenica gota destapoccedilatildeo e os braccedilos e dedos deles seratildeo dilacerados em mil pedaccedilosPoreacutem a Pequena Sereia natildeo precisou disso Os poacutelipos se enco-

lheram aterrorizados quando avistaram a luzente poccedilatildeo em sua matildeocomo uma estrela cintilante E assim passou rapidamente pela matapelo charco e pelos atroadores redemoinhos

A Pequena Sereia pocircde contemplar o palaacutecio do pai As luzes do

salatildeo de baile estavam apagadas Certamente laacute estavam todos dor-mindo a essa altura Mas natildeo se atreveu ir vecirc-los pois agora estavamuda e prestes a deixaacute-los para sempre Ela sentiu como se seu coraccedilatildeofosse partir de tanta dor Entrou secretamente no jardim pegou umaflor dos leitos de cada uma das irmatildes soprou mil beijos em direccedilatildeodo palaacutecio e depois subiu agrave superfiacutecie atraveacutes das aacuteguas azul-escuras

O sol ainda natildeo despontara no horizonte quando ela avistou o

palaacutecio do priacutencipe e subiu os degraus de maacutermore A lua esplendialiacutempida e viacutevida A Pequena Sereia bebeu a acre poccedilatildeo e parecia queuma faca de dois gumes trespassava seu corpo delicado Ela desmaioue caiu morta

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E D M U N D D U L A C

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51A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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52 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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53A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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54 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

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ao perigo de ser esmagada Mergulhava profundamente e emergia dasondas e finalmente encontrou o jovem priacutencipe Ele mal conseguianadar no mar tempestuoso Seus membros fraquejavam seus belosolhos estavam fechados e certamente teria se afogado se a PequenaSereia natildeo tivesse ido a seu socorro Ela segurou-lhe a cabeccedila acimada aacutegua e abandonou-se com ele aos caprichos das ondas

Quando amanheceu a tempestade cessara e natildeo havia rastro donavio O sol despontou da aacutegua vermelho e resplandecente e pareceudevolver a cor agraves faces do priacutencipe mas os olhos dele permaneciam fe-chados A sereia beijou-lhe a fronte e ajeitou-lhe para traacutes o cabelo mo-lhado Aos seus olhos ele parecia a estaacutetua de maacutermore que tinha em seu jardinzinho Beijou-o de novo e fez um pedido para que ele pudesse viver

Logo a sereia viu diante de si terra firme com suas majestosas

montanhas azuis no alto das quais brilhava a branca neve parecendocisnes aninhados Perto da costa havia adoraacuteveis florestas verdes e junto a uma delas erguia-se um preacutedio alto se era uma igreja ou umconvento ela natildeo sabia dizer Limoeiros e laranjeiras cresciam no

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jardim e ao lado da porta havia trecircs altas palmeiras A pequena baiacutease formava nesse ponto e a aacutegua era plenamente calma embora muito

profunda A sereia nadou com o belo priacutencipe ateacute a praia coberta defina areia branca Ali colocou-o sob o sol quente fazendo um traves-seiro de areia para sua cabeccedila

Sinos soaram do preacutedio branco e vaacuterias moccedilas apareceram no jardim A Pequena Sereia afastou-se nadando para bem longe dapraia e escondeu-se atraacutes de uma pedra grande que se elevava acimada aacutegua Cobriu o cabelo e o peito com espuma do mar para que nin-gueacutem pudesse vecirc-la Depois ficou espiando para ver quem ajudaria opobre priacutencipe

Natildeo demorou muito e surgiu uma jovem Pareceu muito assus-tada mas soacute por um instante e correu para buscar ajuda A sereia viuo priacutencipe voltar a si e ele sorriu para todos ao seu redor Poreacutem natildeohavia nenhum sorriso para ela pois ele natildeo tinha ideia de quem o sal-

vara Depois que foi levado para o preacutedio a Pequena Sereia se sentiatatildeo infeliz que mergulhou de volta para o palaacutecio do paiEla sempre fora silenciosa e pensativa mas agora estava mais do

que nunca Suas irmatildes lhe perguntaram o que vira durante sua pri-meira visita agrave superfiacutecie mas ela natildeo lhes contava nada Em muitasmanhatildes e entardeceres subia ateacute o local onde deixara o priacutencipe Viuas frutas do jardim amadurecerem e observou-as serem colhidas Viu

a neve derreter nos picos Contudo nunca via o priacutencipe e por issosempre voltava para casa ainda mais cheia de tristeza do que antesSeu uacutenico consolo era ficar em seu jardinzinho com os braccedilos emtorno da estaacutetua de maacutermore tatildeo parecida com o priacutencipe Nuncamais cuidou das suas flores que se espalhavam selvagemente ao longodos caminhos entrelaccedilando seus longos galhos nos ramos das aacutervoresateacute obscurecer tudo

Por fim ela natildeo conseguiu mais guardar aquilo consigo e contoutudo a uma de suas irmatildes Logo as outras ficaram sabendo mas nin-gueacutem mais exceto algumas outras sereias que natildeo diriam nada a nin-gueacutem a natildeo ser agraves suas melhores amigas Uma delas foi capaz de lhe

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dar notiacutecias sobre o priacutencipe Ela tambeacutem vira os festejos realizados abordo e disse mais sobre o priacutencipe e a localizaccedilatildeo de seu reino

mdash Venha irmatildezinha ndash disseram as outras princesas E com osbraccedilos nos ombros uma das outras subiram em uma longa fila ateacute asuperfiacutecie bem diante do lugar onde se erguia o castelo do priacutencipe

O castelo construiacutedo de uma pedra amarela e luzidia tinhalongas escadarias de maacutermore sendo que um dos degraus levava di-reto para o mar Esplecircndidas cuacutepulas douradas elevavam-se do teto eentre as colunas que cercavam toda a construccedilatildeo havia esculturas demaacutermore que pareciam vivas Atraveacutes do vidro transparente das altas janelas era possiacutevel ver magniacuteficos aposentos ornados com suntuosascortinas de seda e tapeccedilarias As paredes eram cobertas com enormespinturas e era um prazer contemplaacute-las No centro do maior salatildeohavia uma fonte que lanccedilava seus jorros espumantes ateacute a cuacutepula devidro do teto atraveacutes do qual o sol brilhava na aacutegua e nas belas plantas

que cresciam ali Agora que sabia onde o priacutencipe vivia passava muitos pores dosol e muitas noites naquele lugar Nadava ateacute muito mais perto dacosta do que as outras ousavam Chegou a avanccedilar pelo estreito canalpara ir ateacute a varanda de maacutermore que projetava uma longa sombrasobre a aacutegua Ali ela se sentava e observava o jovem priacutencipe que pen-sava estar completamente soacute ao claratildeo da lua

Muitas vezes agrave noite a Pequena Sereia o via sair ao mar em seuesplecircndido barco com bandeiras hasteadas ao som de muacutesica harmo-niosa Espiava do meio dos juncos verdes e quando o vento levantavao longo veacuteu branco e prateado do seu cabelo e pessoas a viam ima-ginavam apenas que era um cisne estendendo as asas

Em muitas noites quando os pescadores saiam em alto mar comsuas tochas ela os ouvia elogiar o jovem priacutencipe e suas palavras a dei-

xavam ainda mais feliz por lhe ter salvado a vida E ela recordava comoaninhara a cabeccedila dele em seu peito e com que carinho o beijara Masele natildeo sabia nada disso e nunca sequer sonhara que ela existia

A Pequena Sereia foi se afeiccediloando mais e mais aos seres

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humanos e ansiava profundamente pela companhia deles Omundo em que viviam parecia tatildeo mais vasto que o seu proacuteprio

Veja eles podiam navegar o oceano em navios e escalar montanhasiacutengremes bem acima das nuvens E as terras que possuiacuteam suasflorestas e seus campos se estendiam muito aleacutem de onde sua vistaalcanccedilava Havia uma porccedilatildeo de outras coisas que ela teria gos-tado de saber e suas irmatildes natildeo eram capazes de responder a todasas suas curiosidades Por isso foi visitar sua velha avoacute que sabia

tudo sobre o mundo superior como chamava tatildeo apropriadamenteos paiacuteses acima do marmdash Quando natildeo se afogam ndash perguntou a Pequena Sereia ndash os

seres humanos podem continuar vivendo para sempre Natildeo morremcomo noacutes aqui embaixo no mar

mdash Sim sim ndash respondeu a velha senhora mdash Eles tambeacutem teratildeoque morrer e seu tempo de vida eacute mais curto que o nosso Noacutes por

vezes alcanccedilamos a idade de trezentos anos mas quando nossa vidaaqui chega ao fim simplesmente nos transformamos em espuma naaacutegua Aqui natildeo temos tuacutemulos daqueles que amamos Natildeo temosuma alma imortal e nunca teremos outra vida Noacutes somos como o junco verde Uma vez cortado cessa de crescer Jaacute os seres humanostecircm almas que vivem para sempre mesmo depois que seus corpos se

transformam em poacute Elas voam atraveacutes do ar puro ateacute chegarem agraves es-trelas brilhantes Assim como subimos agrave flor da aacutegua e contemplamosas terras dos seres humanos eles atingem belos reinos desconhecidosndash regiotildees que nunca conheceremos

mdash Por que natildeo podemos ter uma alma imortal ndash a PequenaSereia perguntou angustiada mdash Eu daria de boa vontade todos ostrezentos anos que tenho para viver se pudesse me tornar uma humana

por apenas um dia e participar do mundo celestialmdash Vocecirc natildeo deveria se preocupar com isso Somos muito mais

felizes e vivemos melhor aqui do que os seres humanos laacute em cimamdash Entatildeo estou condenada a morrer e flutuar como espuma do

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mar a nunca mais ouvir a muacutesica das ondas ou ver as lindas flores eo sol vermelho Natildeo haacute nada que eu possa fazer para conquistar umaalma imortal

mdash Natildeo ndash disse a velha senhora mdash Soacute se um ser humano aamasse tanto que vocecirc importasse mais para ele que pai e matildee Se elea amasse de todo o coraccedilatildeo e deixasse o padre pocircr a matildeo direita sobre a

sua como uma promessa de ser fiel e verdadeiro por toda a eternidadeNesse caso a alma dele deslizaria para dentro do seu corpo e vocecirctambeacutem obteria uma parcela da felicidade humana Ele lhe daria umaalma e no entanto conservaria a dele proacuteprio Mas isso jamais acon-teceraacute Sua cauda de peixe que achamos tatildeo bonita parece repulsivaagrave gente da terra Sabem tatildeo pouco sobre isso que acreditam realmenteque as duas desajeitadas escoras que chamam de pernas satildeo belas

A Pequena Sereia suspirou e olhou melancolicamente para suacauda de peixe

mdash Devemos ficar satisfeitas com o que temos ndash disse a velhasenhora mdash Vamos danccedilar e nos alegrar durante os trezentos anos

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de nossa existecircncia isso eacute realmente muito tempo Depois da mortepoderemos descansar e pocircr o sono em dia Hoje teremos um baile

na corteNatildeo se pode fazer ideia na terra de tal magnificecircncia As paredes

e o teto do grande salatildeo do baile eram feitos de cristal espesso mastransparente Centenas de conchas enormes rosa-vermelho e verde--relva dispostas de cada lado cada uma com uma chama azul queiluminava todo o salatildeo e luzindo atraveacutes das paredes iluminavamtambeacutem o mar Inuacutemeros peixes grandes e pequenos podiam servistos nadando em direccedilatildeo agraves paredes de cristal As escamas de algunsfulgiam com um brilho puacuterpura-avermelhado e as de outros comoprata e ouro No meio do salatildeo corria um grande rio nos quais mo-luscos e sereias danccedilavam ao seu proacuteprio som melodioso

Nenhum ser humano tem voz tatildeo encantadora Ningueacutem can-tava mais docemente que a Pequena Sereia e todos a aplaudiram

Por um instante houve alegria em seu coraccedilatildeo pois ela sabia quetinha a voz mais bela em terra ou no mar Mas em seguida seuspensamentos se voltaram para o mundo acima dela Natildeo conseguiaesquecer o belo priacutencipe e a grande dor de natildeo ter a alma imortalque ele possuiacutea Assim se arrastou para fora do palaacutecio do pai eenquanto todos laacute dentro cantavam e se divertiam foi se sentar emseu jardinzinho desolada

De repente ela ouviu o som de uma buzina ecoando atraveacutes daaacutegua e pensou

mdash Ah laacute vai ele navegando laacute em cima Aquele a quem amomais do que meu pai ou minha matildee ele que estaacute sempre em meuspensamentos e em cujas matildeos eu confiaria alegremente minha fe-licidade Arriscaria qualquer coisa para conquistaacute-lo e a uma almaimortal Enquanto minhas irmatildes danccedilam no castelo de meu pai vou

agrave procura da feiticeira do mar Sempre tive um terriacutevel medo delamas talvez possa me ajudar e me dizer o que fazer

E assim a Pequena Sereia deixou seu jardim e partiu paraonde a feiticeira morava no lado mais distante dos redemoinhos

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espumantes Nunca estivera laacute antes Naquele lugar natildeo cresciamflores nem relva do mar Natildeo havia nada aleacutem do fundo arenoso ecinzento que se estendia ateacute os turbilhotildees onde a aacutegua rodopiavacom o estrondo da roda de moinho e sugava para as profundezastudo que podia Tinha de passar pelo meio desses furiosos torveli-nhos para chegar ateacute a feiticeira do mar Por um longo trecho natildeo

havia outro caminho senatildeo pela lama quente e borbulhante ndash que afeiticeira chamava de seu charco

A casa da feiticeira ficava atraacutes do charco no meio de uma flo-resta quimeacuterica Todas as aacutervores e arbustos eram verdadeiros poacuteliposmetade animal e metade vegetal Pareciam serpentes de cem cabeccedilascrescendo do solo Tinham galhos que pareciam braccedilos longos e vis-cosos com dedos tatildeo flexiacuteveis que se assemelhavam a vermes Noacute por

noacute da raiz ateacute a ponta estavam constantemente em movimento eagarravam hermeticamente qualquer coisa que pudessem aproveitardo mar e natildeo soltavam mais A Pequena Sereia ficou apavorada e sedeteve agrave beira da mata Seu coraccedilatildeo palpitava de medo e ela esteve

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prestes a desistir Mas entatildeo lembrou-se do priacutencipe e da alma hu-mana e retomou sua coragem Ela prendeu em torno da cabeccedila seu

longo e esvoaccedilante cabelo para que os poacutelipos natildeo a pudessem agarrarDepois cruzou os braccedilos sobre o peito e disparou adiante como umpeixe lanccedilado na aacutegua no meio dos soacuterdidos poacutelipos que estendiamem sua direccedilatildeo seus braccedilos e dedos buliccedilosos Ela notou como cadaum deles havia agarrado algo e imobilizava firmemente com umacentena de pequenos braccedilos que pareciam aros de ferro Esqueletosbrancos de seres humanos que haviam perecido no mar e afundadonas aacuteguas profundas olhavam dos braccedilos dos poacutelipos Lemes e arcasde navios estavam fortemente agarrados em seus braccedilos juntamentecom esqueletos de animais terrestres e ndash o mais terriacutevel de tudo ndash umasereiazinha que eles haviam capturado e estrangulado

Chegou entatildeo a um grande charco lodoso onde enormes e cor-pulentas cobras-drsquoaacutegua ondeavam-se no lamaccedilal mostrando seus

horrendos ventres amarelo-esbranquiccedilado No meio do charco haviauma casa construiacuteda com os ossos de humanos naufragados Laacute es-tava a feiticeira do mar deixando um sapo se alimentar na sua bocaassim como as pessoas nutrem agraves vezes um canaacuterio com um torratildeo deaccediluacutecar Ela chamava as asquerosas cobras-drsquoaacutegua de seus pintinhos edeixava-as rastejar sobre seu peito

mdash Eu sei exatamente o que vocecirc deseja ndash disse a feiticeira do

mar mdash Como vocecirc eacute estuacutepida Mas vocecirc deve seguir seu caminhoque vai lhe trazer infortuacutenio minha linda princesa Vocecirc quer se li-vrar de sua cauda de peixe e no lugar ter um par de tocos para andarcomo um ser humano a fim de que o jovem priacutencipe se apaixone porvocecirc e lhe decirc uma alma imortal

E com isso a feiticeira soltou uma gargalhada tatildeo alta e maleacuteficaque o sapo e as cobras caiacuteram estatelados no chatildeo

mdash Vocecirc veio na hora certa ndash disse a feiticeira mdash Amanhatildequando o sol se levantar eu natildeo serei mais capaz de ajudaacute-la Voupreparar um elixir para vocecirc Teraacute de nadar ateacute a costa com ele antesdo nascer do sol sentar-se na praia e tomaacute-lo Sua cauda entatildeo se

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46 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

H A R R Y C L A R K E

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47 A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

dividiraacute em duas e encolheraacute para se transformar naquilo que os sereshumanos chamam de ldquobelas pernasrdquo Mas vai doer Vocecirc sentiraacute como

se uma espada afiada a cortasse Todos que a virem diratildeo que vocecirc eacutea mais bela humana que jaacute encontraram Manteraacute seus movimentosgraciosos nenhuma danccedilarina jamais deslizaraacute tatildeo suavemente mascada passo que der a faraacute sentir como se estivesse pisando em umafaca afiada o bastante para fazer sangrar seus peacutes Se estiver dispostaa suportar tudo isso posso ajudaacute-la

mdash Sim ndash disse a Pequena Sereia com voz hesitante mas voltouseus pensamentos para o priacutencipe e ao precircmio de uma alma imortal

mdash Pense nisso com cuidado ndash alertou a feiticeira mdash Uma vez to-mada a forma de um ser humano nunca mais voltaraacute a ser uma sereiaVocecirc natildeo seraacute capaz de descer nadando ao encontro do palaacutecio de seupai e de suas irmatildes A uacutenica maneira de conseguir uma alma imortaleacute conquistando o amor do priacutencipe e fazer com que ele esqueccedila o pai

e a matildee por amor a vocecirc Ele deve tecirc-la sempre em seus pensamentose permitir que o padre una suas matildeos para que se tornem marido emulher Se o priacutencipe se casar com outra pessoa na manhatilde seguinteseu coraccedilatildeo se quebraraacute e vocecirc se tornaraacute espuma na crista das ondas

mdash Estou pronta ndash declarou a Pequena Sereia paacutelida comouma morta

mdash Mas teraacute que me recompensar ndash disse a feiticeira mdash Vocecirc natildeo

receberaacute minha ajuda sem nada em troca Vocecirc tem a mais formidaacutevelvoz entre todos que aqui habitam no fundo do mar Provavelmentepensa que encantaraacute o priacutencipe com ela mas teraacute que daacute-la para mimVou lhe exigir o que possui de melhor como pagamento por minhapoccedilatildeo Vocecirc entende tenho de misturar nela um pouco do meu proacutepriosangue para que o elixir seja afiado como uma espada de dois gumes

mdash Mas se tirar a minha voz o que me restaraacute ndash perguntou a

Pequena Sereiamdash Sua encantadora figura ndash disse a feiticeira ndash seus movimentos

graciosos e seus olhos expressivos Com eles pode simplesmente fas-cinar um coraccedilatildeo humano Bem onde estaacute sua coragem Estire a

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liacutengua e deixe-me cortaacute-la fora como pagamento Depois receberaacutesua poderosa poccedilatildeo

mdash Assim seja ndash concordou a Pequena Sereia e a feiticeira pocircsseu caldeiratildeo no fogo para destilar a poccedilatildeo maacutegica

mdash Limpeza antes de tudo ndash ela disse enquanto esfregava o re-cipiente com um feixe de viacuteboras que tinha atado num grande noacute

Em seguida deu um talho no proacuteprio seio e deixou gotejar onegro sangue no caldeiratildeo O vapor que subiu criava formas estranhasassustadoras de se ver A feiticeira continuava a juntar coisas novas

dentro do caldeiratildeo e quando o elixir comeccedilou a ferver parecia umchoro de crocodilo Finalmente a poccedilatildeo maacutegica ficou pronta e eraexatamente cristalina como aacutegua

mdash Aiacute estaacute vocecirc ndash disse a feiticeira ao cortar a liacutengua da PequenaSereia que agora estava muda e natildeo conseguia falar e cantar

mdash Se os poacutelipos a apanharem quando vocecirc retornar pela mata

ndash orientou a feiticeira ndash basta jogar sobre eles uma uacutenica gota destapoccedilatildeo e os braccedilos e dedos deles seratildeo dilacerados em mil pedaccedilosPoreacutem a Pequena Sereia natildeo precisou disso Os poacutelipos se enco-

lheram aterrorizados quando avistaram a luzente poccedilatildeo em sua matildeocomo uma estrela cintilante E assim passou rapidamente pela matapelo charco e pelos atroadores redemoinhos

A Pequena Sereia pocircde contemplar o palaacutecio do pai As luzes do

salatildeo de baile estavam apagadas Certamente laacute estavam todos dor-mindo a essa altura Mas natildeo se atreveu ir vecirc-los pois agora estavamuda e prestes a deixaacute-los para sempre Ela sentiu como se seu coraccedilatildeofosse partir de tanta dor Entrou secretamente no jardim pegou umaflor dos leitos de cada uma das irmatildes soprou mil beijos em direccedilatildeodo palaacutecio e depois subiu agrave superfiacutecie atraveacutes das aacuteguas azul-escuras

O sol ainda natildeo despontara no horizonte quando ela avistou o

palaacutecio do priacutencipe e subiu os degraus de maacutermore A lua esplendialiacutempida e viacutevida A Pequena Sereia bebeu a acre poccedilatildeo e parecia queuma faca de dois gumes trespassava seu corpo delicado Ela desmaioue caiu morta

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49A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

E D M U N D D U L A C

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O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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53A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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61A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

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jardim e ao lado da porta havia trecircs altas palmeiras A pequena baiacutease formava nesse ponto e a aacutegua era plenamente calma embora muito

profunda A sereia nadou com o belo priacutencipe ateacute a praia coberta defina areia branca Ali colocou-o sob o sol quente fazendo um traves-seiro de areia para sua cabeccedila

Sinos soaram do preacutedio branco e vaacuterias moccedilas apareceram no jardim A Pequena Sereia afastou-se nadando para bem longe dapraia e escondeu-se atraacutes de uma pedra grande que se elevava acimada aacutegua Cobriu o cabelo e o peito com espuma do mar para que nin-gueacutem pudesse vecirc-la Depois ficou espiando para ver quem ajudaria opobre priacutencipe

Natildeo demorou muito e surgiu uma jovem Pareceu muito assus-tada mas soacute por um instante e correu para buscar ajuda A sereia viuo priacutencipe voltar a si e ele sorriu para todos ao seu redor Poreacutem natildeohavia nenhum sorriso para ela pois ele natildeo tinha ideia de quem o sal-

vara Depois que foi levado para o preacutedio a Pequena Sereia se sentiatatildeo infeliz que mergulhou de volta para o palaacutecio do paiEla sempre fora silenciosa e pensativa mas agora estava mais do

que nunca Suas irmatildes lhe perguntaram o que vira durante sua pri-meira visita agrave superfiacutecie mas ela natildeo lhes contava nada Em muitasmanhatildes e entardeceres subia ateacute o local onde deixara o priacutencipe Viuas frutas do jardim amadurecerem e observou-as serem colhidas Viu

a neve derreter nos picos Contudo nunca via o priacutencipe e por issosempre voltava para casa ainda mais cheia de tristeza do que antesSeu uacutenico consolo era ficar em seu jardinzinho com os braccedilos emtorno da estaacutetua de maacutermore tatildeo parecida com o priacutencipe Nuncamais cuidou das suas flores que se espalhavam selvagemente ao longodos caminhos entrelaccedilando seus longos galhos nos ramos das aacutervoresateacute obscurecer tudo

Por fim ela natildeo conseguiu mais guardar aquilo consigo e contoutudo a uma de suas irmatildes Logo as outras ficaram sabendo mas nin-gueacutem mais exceto algumas outras sereias que natildeo diriam nada a nin-gueacutem a natildeo ser agraves suas melhores amigas Uma delas foi capaz de lhe

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40 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

dar notiacutecias sobre o priacutencipe Ela tambeacutem vira os festejos realizados abordo e disse mais sobre o priacutencipe e a localizaccedilatildeo de seu reino

mdash Venha irmatildezinha ndash disseram as outras princesas E com osbraccedilos nos ombros uma das outras subiram em uma longa fila ateacute asuperfiacutecie bem diante do lugar onde se erguia o castelo do priacutencipe

O castelo construiacutedo de uma pedra amarela e luzidia tinhalongas escadarias de maacutermore sendo que um dos degraus levava di-reto para o mar Esplecircndidas cuacutepulas douradas elevavam-se do teto eentre as colunas que cercavam toda a construccedilatildeo havia esculturas demaacutermore que pareciam vivas Atraveacutes do vidro transparente das altas janelas era possiacutevel ver magniacuteficos aposentos ornados com suntuosascortinas de seda e tapeccedilarias As paredes eram cobertas com enormespinturas e era um prazer contemplaacute-las No centro do maior salatildeohavia uma fonte que lanccedilava seus jorros espumantes ateacute a cuacutepula devidro do teto atraveacutes do qual o sol brilhava na aacutegua e nas belas plantas

que cresciam ali Agora que sabia onde o priacutencipe vivia passava muitos pores dosol e muitas noites naquele lugar Nadava ateacute muito mais perto dacosta do que as outras ousavam Chegou a avanccedilar pelo estreito canalpara ir ateacute a varanda de maacutermore que projetava uma longa sombrasobre a aacutegua Ali ela se sentava e observava o jovem priacutencipe que pen-sava estar completamente soacute ao claratildeo da lua

Muitas vezes agrave noite a Pequena Sereia o via sair ao mar em seuesplecircndido barco com bandeiras hasteadas ao som de muacutesica harmo-niosa Espiava do meio dos juncos verdes e quando o vento levantavao longo veacuteu branco e prateado do seu cabelo e pessoas a viam ima-ginavam apenas que era um cisne estendendo as asas

Em muitas noites quando os pescadores saiam em alto mar comsuas tochas ela os ouvia elogiar o jovem priacutencipe e suas palavras a dei-

xavam ainda mais feliz por lhe ter salvado a vida E ela recordava comoaninhara a cabeccedila dele em seu peito e com que carinho o beijara Masele natildeo sabia nada disso e nunca sequer sonhara que ela existia

A Pequena Sereia foi se afeiccediloando mais e mais aos seres

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humanos e ansiava profundamente pela companhia deles Omundo em que viviam parecia tatildeo mais vasto que o seu proacuteprio

Veja eles podiam navegar o oceano em navios e escalar montanhasiacutengremes bem acima das nuvens E as terras que possuiacuteam suasflorestas e seus campos se estendiam muito aleacutem de onde sua vistaalcanccedilava Havia uma porccedilatildeo de outras coisas que ela teria gos-tado de saber e suas irmatildes natildeo eram capazes de responder a todasas suas curiosidades Por isso foi visitar sua velha avoacute que sabia

tudo sobre o mundo superior como chamava tatildeo apropriadamenteos paiacuteses acima do marmdash Quando natildeo se afogam ndash perguntou a Pequena Sereia ndash os

seres humanos podem continuar vivendo para sempre Natildeo morremcomo noacutes aqui embaixo no mar

mdash Sim sim ndash respondeu a velha senhora mdash Eles tambeacutem teratildeoque morrer e seu tempo de vida eacute mais curto que o nosso Noacutes por

vezes alcanccedilamos a idade de trezentos anos mas quando nossa vidaaqui chega ao fim simplesmente nos transformamos em espuma naaacutegua Aqui natildeo temos tuacutemulos daqueles que amamos Natildeo temosuma alma imortal e nunca teremos outra vida Noacutes somos como o junco verde Uma vez cortado cessa de crescer Jaacute os seres humanostecircm almas que vivem para sempre mesmo depois que seus corpos se

transformam em poacute Elas voam atraveacutes do ar puro ateacute chegarem agraves es-trelas brilhantes Assim como subimos agrave flor da aacutegua e contemplamosas terras dos seres humanos eles atingem belos reinos desconhecidosndash regiotildees que nunca conheceremos

mdash Por que natildeo podemos ter uma alma imortal ndash a PequenaSereia perguntou angustiada mdash Eu daria de boa vontade todos ostrezentos anos que tenho para viver se pudesse me tornar uma humana

por apenas um dia e participar do mundo celestialmdash Vocecirc natildeo deveria se preocupar com isso Somos muito mais

felizes e vivemos melhor aqui do que os seres humanos laacute em cimamdash Entatildeo estou condenada a morrer e flutuar como espuma do

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42 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mar a nunca mais ouvir a muacutesica das ondas ou ver as lindas flores eo sol vermelho Natildeo haacute nada que eu possa fazer para conquistar umaalma imortal

mdash Natildeo ndash disse a velha senhora mdash Soacute se um ser humano aamasse tanto que vocecirc importasse mais para ele que pai e matildee Se elea amasse de todo o coraccedilatildeo e deixasse o padre pocircr a matildeo direita sobre a

sua como uma promessa de ser fiel e verdadeiro por toda a eternidadeNesse caso a alma dele deslizaria para dentro do seu corpo e vocecirctambeacutem obteria uma parcela da felicidade humana Ele lhe daria umaalma e no entanto conservaria a dele proacuteprio Mas isso jamais acon-teceraacute Sua cauda de peixe que achamos tatildeo bonita parece repulsivaagrave gente da terra Sabem tatildeo pouco sobre isso que acreditam realmenteque as duas desajeitadas escoras que chamam de pernas satildeo belas

A Pequena Sereia suspirou e olhou melancolicamente para suacauda de peixe

mdash Devemos ficar satisfeitas com o que temos ndash disse a velhasenhora mdash Vamos danccedilar e nos alegrar durante os trezentos anos

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de nossa existecircncia isso eacute realmente muito tempo Depois da mortepoderemos descansar e pocircr o sono em dia Hoje teremos um baile

na corteNatildeo se pode fazer ideia na terra de tal magnificecircncia As paredes

e o teto do grande salatildeo do baile eram feitos de cristal espesso mastransparente Centenas de conchas enormes rosa-vermelho e verde--relva dispostas de cada lado cada uma com uma chama azul queiluminava todo o salatildeo e luzindo atraveacutes das paredes iluminavamtambeacutem o mar Inuacutemeros peixes grandes e pequenos podiam servistos nadando em direccedilatildeo agraves paredes de cristal As escamas de algunsfulgiam com um brilho puacuterpura-avermelhado e as de outros comoprata e ouro No meio do salatildeo corria um grande rio nos quais mo-luscos e sereias danccedilavam ao seu proacuteprio som melodioso

Nenhum ser humano tem voz tatildeo encantadora Ningueacutem can-tava mais docemente que a Pequena Sereia e todos a aplaudiram

Por um instante houve alegria em seu coraccedilatildeo pois ela sabia quetinha a voz mais bela em terra ou no mar Mas em seguida seuspensamentos se voltaram para o mundo acima dela Natildeo conseguiaesquecer o belo priacutencipe e a grande dor de natildeo ter a alma imortalque ele possuiacutea Assim se arrastou para fora do palaacutecio do pai eenquanto todos laacute dentro cantavam e se divertiam foi se sentar emseu jardinzinho desolada

De repente ela ouviu o som de uma buzina ecoando atraveacutes daaacutegua e pensou

mdash Ah laacute vai ele navegando laacute em cima Aquele a quem amomais do que meu pai ou minha matildee ele que estaacute sempre em meuspensamentos e em cujas matildeos eu confiaria alegremente minha fe-licidade Arriscaria qualquer coisa para conquistaacute-lo e a uma almaimortal Enquanto minhas irmatildes danccedilam no castelo de meu pai vou

agrave procura da feiticeira do mar Sempre tive um terriacutevel medo delamas talvez possa me ajudar e me dizer o que fazer

E assim a Pequena Sereia deixou seu jardim e partiu paraonde a feiticeira morava no lado mais distante dos redemoinhos

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espumantes Nunca estivera laacute antes Naquele lugar natildeo cresciamflores nem relva do mar Natildeo havia nada aleacutem do fundo arenoso ecinzento que se estendia ateacute os turbilhotildees onde a aacutegua rodopiavacom o estrondo da roda de moinho e sugava para as profundezastudo que podia Tinha de passar pelo meio desses furiosos torveli-nhos para chegar ateacute a feiticeira do mar Por um longo trecho natildeo

havia outro caminho senatildeo pela lama quente e borbulhante ndash que afeiticeira chamava de seu charco

A casa da feiticeira ficava atraacutes do charco no meio de uma flo-resta quimeacuterica Todas as aacutervores e arbustos eram verdadeiros poacuteliposmetade animal e metade vegetal Pareciam serpentes de cem cabeccedilascrescendo do solo Tinham galhos que pareciam braccedilos longos e vis-cosos com dedos tatildeo flexiacuteveis que se assemelhavam a vermes Noacute por

noacute da raiz ateacute a ponta estavam constantemente em movimento eagarravam hermeticamente qualquer coisa que pudessem aproveitardo mar e natildeo soltavam mais A Pequena Sereia ficou apavorada e sedeteve agrave beira da mata Seu coraccedilatildeo palpitava de medo e ela esteve

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prestes a desistir Mas entatildeo lembrou-se do priacutencipe e da alma hu-mana e retomou sua coragem Ela prendeu em torno da cabeccedila seu

longo e esvoaccedilante cabelo para que os poacutelipos natildeo a pudessem agarrarDepois cruzou os braccedilos sobre o peito e disparou adiante como umpeixe lanccedilado na aacutegua no meio dos soacuterdidos poacutelipos que estendiamem sua direccedilatildeo seus braccedilos e dedos buliccedilosos Ela notou como cadaum deles havia agarrado algo e imobilizava firmemente com umacentena de pequenos braccedilos que pareciam aros de ferro Esqueletosbrancos de seres humanos que haviam perecido no mar e afundadonas aacuteguas profundas olhavam dos braccedilos dos poacutelipos Lemes e arcasde navios estavam fortemente agarrados em seus braccedilos juntamentecom esqueletos de animais terrestres e ndash o mais terriacutevel de tudo ndash umasereiazinha que eles haviam capturado e estrangulado

Chegou entatildeo a um grande charco lodoso onde enormes e cor-pulentas cobras-drsquoaacutegua ondeavam-se no lamaccedilal mostrando seus

horrendos ventres amarelo-esbranquiccedilado No meio do charco haviauma casa construiacuteda com os ossos de humanos naufragados Laacute es-tava a feiticeira do mar deixando um sapo se alimentar na sua bocaassim como as pessoas nutrem agraves vezes um canaacuterio com um torratildeo deaccediluacutecar Ela chamava as asquerosas cobras-drsquoaacutegua de seus pintinhos edeixava-as rastejar sobre seu peito

mdash Eu sei exatamente o que vocecirc deseja ndash disse a feiticeira do

mar mdash Como vocecirc eacute estuacutepida Mas vocecirc deve seguir seu caminhoque vai lhe trazer infortuacutenio minha linda princesa Vocecirc quer se li-vrar de sua cauda de peixe e no lugar ter um par de tocos para andarcomo um ser humano a fim de que o jovem priacutencipe se apaixone porvocecirc e lhe decirc uma alma imortal

E com isso a feiticeira soltou uma gargalhada tatildeo alta e maleacuteficaque o sapo e as cobras caiacuteram estatelados no chatildeo

mdash Vocecirc veio na hora certa ndash disse a feiticeira mdash Amanhatildequando o sol se levantar eu natildeo serei mais capaz de ajudaacute-la Voupreparar um elixir para vocecirc Teraacute de nadar ateacute a costa com ele antesdo nascer do sol sentar-se na praia e tomaacute-lo Sua cauda entatildeo se

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H A R R Y C L A R K E

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dividiraacute em duas e encolheraacute para se transformar naquilo que os sereshumanos chamam de ldquobelas pernasrdquo Mas vai doer Vocecirc sentiraacute como

se uma espada afiada a cortasse Todos que a virem diratildeo que vocecirc eacutea mais bela humana que jaacute encontraram Manteraacute seus movimentosgraciosos nenhuma danccedilarina jamais deslizaraacute tatildeo suavemente mascada passo que der a faraacute sentir como se estivesse pisando em umafaca afiada o bastante para fazer sangrar seus peacutes Se estiver dispostaa suportar tudo isso posso ajudaacute-la

mdash Sim ndash disse a Pequena Sereia com voz hesitante mas voltouseus pensamentos para o priacutencipe e ao precircmio de uma alma imortal

mdash Pense nisso com cuidado ndash alertou a feiticeira mdash Uma vez to-mada a forma de um ser humano nunca mais voltaraacute a ser uma sereiaVocecirc natildeo seraacute capaz de descer nadando ao encontro do palaacutecio de seupai e de suas irmatildes A uacutenica maneira de conseguir uma alma imortaleacute conquistando o amor do priacutencipe e fazer com que ele esqueccedila o pai

e a matildee por amor a vocecirc Ele deve tecirc-la sempre em seus pensamentose permitir que o padre una suas matildeos para que se tornem marido emulher Se o priacutencipe se casar com outra pessoa na manhatilde seguinteseu coraccedilatildeo se quebraraacute e vocecirc se tornaraacute espuma na crista das ondas

mdash Estou pronta ndash declarou a Pequena Sereia paacutelida comouma morta

mdash Mas teraacute que me recompensar ndash disse a feiticeira mdash Vocecirc natildeo

receberaacute minha ajuda sem nada em troca Vocecirc tem a mais formidaacutevelvoz entre todos que aqui habitam no fundo do mar Provavelmentepensa que encantaraacute o priacutencipe com ela mas teraacute que daacute-la para mimVou lhe exigir o que possui de melhor como pagamento por minhapoccedilatildeo Vocecirc entende tenho de misturar nela um pouco do meu proacutepriosangue para que o elixir seja afiado como uma espada de dois gumes

mdash Mas se tirar a minha voz o que me restaraacute ndash perguntou a

Pequena Sereiamdash Sua encantadora figura ndash disse a feiticeira ndash seus movimentos

graciosos e seus olhos expressivos Com eles pode simplesmente fas-cinar um coraccedilatildeo humano Bem onde estaacute sua coragem Estire a

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liacutengua e deixe-me cortaacute-la fora como pagamento Depois receberaacutesua poderosa poccedilatildeo

mdash Assim seja ndash concordou a Pequena Sereia e a feiticeira pocircsseu caldeiratildeo no fogo para destilar a poccedilatildeo maacutegica

mdash Limpeza antes de tudo ndash ela disse enquanto esfregava o re-cipiente com um feixe de viacuteboras que tinha atado num grande noacute

Em seguida deu um talho no proacuteprio seio e deixou gotejar onegro sangue no caldeiratildeo O vapor que subiu criava formas estranhasassustadoras de se ver A feiticeira continuava a juntar coisas novas

dentro do caldeiratildeo e quando o elixir comeccedilou a ferver parecia umchoro de crocodilo Finalmente a poccedilatildeo maacutegica ficou pronta e eraexatamente cristalina como aacutegua

mdash Aiacute estaacute vocecirc ndash disse a feiticeira ao cortar a liacutengua da PequenaSereia que agora estava muda e natildeo conseguia falar e cantar

mdash Se os poacutelipos a apanharem quando vocecirc retornar pela mata

ndash orientou a feiticeira ndash basta jogar sobre eles uma uacutenica gota destapoccedilatildeo e os braccedilos e dedos deles seratildeo dilacerados em mil pedaccedilosPoreacutem a Pequena Sereia natildeo precisou disso Os poacutelipos se enco-

lheram aterrorizados quando avistaram a luzente poccedilatildeo em sua matildeocomo uma estrela cintilante E assim passou rapidamente pela matapelo charco e pelos atroadores redemoinhos

A Pequena Sereia pocircde contemplar o palaacutecio do pai As luzes do

salatildeo de baile estavam apagadas Certamente laacute estavam todos dor-mindo a essa altura Mas natildeo se atreveu ir vecirc-los pois agora estavamuda e prestes a deixaacute-los para sempre Ela sentiu como se seu coraccedilatildeofosse partir de tanta dor Entrou secretamente no jardim pegou umaflor dos leitos de cada uma das irmatildes soprou mil beijos em direccedilatildeodo palaacutecio e depois subiu agrave superfiacutecie atraveacutes das aacuteguas azul-escuras

O sol ainda natildeo despontara no horizonte quando ela avistou o

palaacutecio do priacutencipe e subiu os degraus de maacutermore A lua esplendialiacutempida e viacutevida A Pequena Sereia bebeu a acre poccedilatildeo e parecia queuma faca de dois gumes trespassava seu corpo delicado Ela desmaioue caiu morta

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E D M U N D D U L A C

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O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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55A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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56 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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D U G A L D S T E W A R T WA L K E R 1 9 1 4

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59A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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60 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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61A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

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39A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

jardim e ao lado da porta havia trecircs altas palmeiras A pequena baiacutease formava nesse ponto e a aacutegua era plenamente calma embora muito

profunda A sereia nadou com o belo priacutencipe ateacute a praia coberta defina areia branca Ali colocou-o sob o sol quente fazendo um traves-seiro de areia para sua cabeccedila

Sinos soaram do preacutedio branco e vaacuterias moccedilas apareceram no jardim A Pequena Sereia afastou-se nadando para bem longe dapraia e escondeu-se atraacutes de uma pedra grande que se elevava acimada aacutegua Cobriu o cabelo e o peito com espuma do mar para que nin-gueacutem pudesse vecirc-la Depois ficou espiando para ver quem ajudaria opobre priacutencipe

Natildeo demorou muito e surgiu uma jovem Pareceu muito assus-tada mas soacute por um instante e correu para buscar ajuda A sereia viuo priacutencipe voltar a si e ele sorriu para todos ao seu redor Poreacutem natildeohavia nenhum sorriso para ela pois ele natildeo tinha ideia de quem o sal-

vara Depois que foi levado para o preacutedio a Pequena Sereia se sentiatatildeo infeliz que mergulhou de volta para o palaacutecio do paiEla sempre fora silenciosa e pensativa mas agora estava mais do

que nunca Suas irmatildes lhe perguntaram o que vira durante sua pri-meira visita agrave superfiacutecie mas ela natildeo lhes contava nada Em muitasmanhatildes e entardeceres subia ateacute o local onde deixara o priacutencipe Viuas frutas do jardim amadurecerem e observou-as serem colhidas Viu

a neve derreter nos picos Contudo nunca via o priacutencipe e por issosempre voltava para casa ainda mais cheia de tristeza do que antesSeu uacutenico consolo era ficar em seu jardinzinho com os braccedilos emtorno da estaacutetua de maacutermore tatildeo parecida com o priacutencipe Nuncamais cuidou das suas flores que se espalhavam selvagemente ao longodos caminhos entrelaccedilando seus longos galhos nos ramos das aacutervoresateacute obscurecer tudo

Por fim ela natildeo conseguiu mais guardar aquilo consigo e contoutudo a uma de suas irmatildes Logo as outras ficaram sabendo mas nin-gueacutem mais exceto algumas outras sereias que natildeo diriam nada a nin-gueacutem a natildeo ser agraves suas melhores amigas Uma delas foi capaz de lhe

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dar notiacutecias sobre o priacutencipe Ela tambeacutem vira os festejos realizados abordo e disse mais sobre o priacutencipe e a localizaccedilatildeo de seu reino

mdash Venha irmatildezinha ndash disseram as outras princesas E com osbraccedilos nos ombros uma das outras subiram em uma longa fila ateacute asuperfiacutecie bem diante do lugar onde se erguia o castelo do priacutencipe

O castelo construiacutedo de uma pedra amarela e luzidia tinhalongas escadarias de maacutermore sendo que um dos degraus levava di-reto para o mar Esplecircndidas cuacutepulas douradas elevavam-se do teto eentre as colunas que cercavam toda a construccedilatildeo havia esculturas demaacutermore que pareciam vivas Atraveacutes do vidro transparente das altas janelas era possiacutevel ver magniacuteficos aposentos ornados com suntuosascortinas de seda e tapeccedilarias As paredes eram cobertas com enormespinturas e era um prazer contemplaacute-las No centro do maior salatildeohavia uma fonte que lanccedilava seus jorros espumantes ateacute a cuacutepula devidro do teto atraveacutes do qual o sol brilhava na aacutegua e nas belas plantas

que cresciam ali Agora que sabia onde o priacutencipe vivia passava muitos pores dosol e muitas noites naquele lugar Nadava ateacute muito mais perto dacosta do que as outras ousavam Chegou a avanccedilar pelo estreito canalpara ir ateacute a varanda de maacutermore que projetava uma longa sombrasobre a aacutegua Ali ela se sentava e observava o jovem priacutencipe que pen-sava estar completamente soacute ao claratildeo da lua

Muitas vezes agrave noite a Pequena Sereia o via sair ao mar em seuesplecircndido barco com bandeiras hasteadas ao som de muacutesica harmo-niosa Espiava do meio dos juncos verdes e quando o vento levantavao longo veacuteu branco e prateado do seu cabelo e pessoas a viam ima-ginavam apenas que era um cisne estendendo as asas

Em muitas noites quando os pescadores saiam em alto mar comsuas tochas ela os ouvia elogiar o jovem priacutencipe e suas palavras a dei-

xavam ainda mais feliz por lhe ter salvado a vida E ela recordava comoaninhara a cabeccedila dele em seu peito e com que carinho o beijara Masele natildeo sabia nada disso e nunca sequer sonhara que ela existia

A Pequena Sereia foi se afeiccediloando mais e mais aos seres

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humanos e ansiava profundamente pela companhia deles Omundo em que viviam parecia tatildeo mais vasto que o seu proacuteprio

Veja eles podiam navegar o oceano em navios e escalar montanhasiacutengremes bem acima das nuvens E as terras que possuiacuteam suasflorestas e seus campos se estendiam muito aleacutem de onde sua vistaalcanccedilava Havia uma porccedilatildeo de outras coisas que ela teria gos-tado de saber e suas irmatildes natildeo eram capazes de responder a todasas suas curiosidades Por isso foi visitar sua velha avoacute que sabia

tudo sobre o mundo superior como chamava tatildeo apropriadamenteos paiacuteses acima do marmdash Quando natildeo se afogam ndash perguntou a Pequena Sereia ndash os

seres humanos podem continuar vivendo para sempre Natildeo morremcomo noacutes aqui embaixo no mar

mdash Sim sim ndash respondeu a velha senhora mdash Eles tambeacutem teratildeoque morrer e seu tempo de vida eacute mais curto que o nosso Noacutes por

vezes alcanccedilamos a idade de trezentos anos mas quando nossa vidaaqui chega ao fim simplesmente nos transformamos em espuma naaacutegua Aqui natildeo temos tuacutemulos daqueles que amamos Natildeo temosuma alma imortal e nunca teremos outra vida Noacutes somos como o junco verde Uma vez cortado cessa de crescer Jaacute os seres humanostecircm almas que vivem para sempre mesmo depois que seus corpos se

transformam em poacute Elas voam atraveacutes do ar puro ateacute chegarem agraves es-trelas brilhantes Assim como subimos agrave flor da aacutegua e contemplamosas terras dos seres humanos eles atingem belos reinos desconhecidosndash regiotildees que nunca conheceremos

mdash Por que natildeo podemos ter uma alma imortal ndash a PequenaSereia perguntou angustiada mdash Eu daria de boa vontade todos ostrezentos anos que tenho para viver se pudesse me tornar uma humana

por apenas um dia e participar do mundo celestialmdash Vocecirc natildeo deveria se preocupar com isso Somos muito mais

felizes e vivemos melhor aqui do que os seres humanos laacute em cimamdash Entatildeo estou condenada a morrer e flutuar como espuma do

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42 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mar a nunca mais ouvir a muacutesica das ondas ou ver as lindas flores eo sol vermelho Natildeo haacute nada que eu possa fazer para conquistar umaalma imortal

mdash Natildeo ndash disse a velha senhora mdash Soacute se um ser humano aamasse tanto que vocecirc importasse mais para ele que pai e matildee Se elea amasse de todo o coraccedilatildeo e deixasse o padre pocircr a matildeo direita sobre a

sua como uma promessa de ser fiel e verdadeiro por toda a eternidadeNesse caso a alma dele deslizaria para dentro do seu corpo e vocecirctambeacutem obteria uma parcela da felicidade humana Ele lhe daria umaalma e no entanto conservaria a dele proacuteprio Mas isso jamais acon-teceraacute Sua cauda de peixe que achamos tatildeo bonita parece repulsivaagrave gente da terra Sabem tatildeo pouco sobre isso que acreditam realmenteque as duas desajeitadas escoras que chamam de pernas satildeo belas

A Pequena Sereia suspirou e olhou melancolicamente para suacauda de peixe

mdash Devemos ficar satisfeitas com o que temos ndash disse a velhasenhora mdash Vamos danccedilar e nos alegrar durante os trezentos anos

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de nossa existecircncia isso eacute realmente muito tempo Depois da mortepoderemos descansar e pocircr o sono em dia Hoje teremos um baile

na corteNatildeo se pode fazer ideia na terra de tal magnificecircncia As paredes

e o teto do grande salatildeo do baile eram feitos de cristal espesso mastransparente Centenas de conchas enormes rosa-vermelho e verde--relva dispostas de cada lado cada uma com uma chama azul queiluminava todo o salatildeo e luzindo atraveacutes das paredes iluminavamtambeacutem o mar Inuacutemeros peixes grandes e pequenos podiam servistos nadando em direccedilatildeo agraves paredes de cristal As escamas de algunsfulgiam com um brilho puacuterpura-avermelhado e as de outros comoprata e ouro No meio do salatildeo corria um grande rio nos quais mo-luscos e sereias danccedilavam ao seu proacuteprio som melodioso

Nenhum ser humano tem voz tatildeo encantadora Ningueacutem can-tava mais docemente que a Pequena Sereia e todos a aplaudiram

Por um instante houve alegria em seu coraccedilatildeo pois ela sabia quetinha a voz mais bela em terra ou no mar Mas em seguida seuspensamentos se voltaram para o mundo acima dela Natildeo conseguiaesquecer o belo priacutencipe e a grande dor de natildeo ter a alma imortalque ele possuiacutea Assim se arrastou para fora do palaacutecio do pai eenquanto todos laacute dentro cantavam e se divertiam foi se sentar emseu jardinzinho desolada

De repente ela ouviu o som de uma buzina ecoando atraveacutes daaacutegua e pensou

mdash Ah laacute vai ele navegando laacute em cima Aquele a quem amomais do que meu pai ou minha matildee ele que estaacute sempre em meuspensamentos e em cujas matildeos eu confiaria alegremente minha fe-licidade Arriscaria qualquer coisa para conquistaacute-lo e a uma almaimortal Enquanto minhas irmatildes danccedilam no castelo de meu pai vou

agrave procura da feiticeira do mar Sempre tive um terriacutevel medo delamas talvez possa me ajudar e me dizer o que fazer

E assim a Pequena Sereia deixou seu jardim e partiu paraonde a feiticeira morava no lado mais distante dos redemoinhos

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44 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

espumantes Nunca estivera laacute antes Naquele lugar natildeo cresciamflores nem relva do mar Natildeo havia nada aleacutem do fundo arenoso ecinzento que se estendia ateacute os turbilhotildees onde a aacutegua rodopiavacom o estrondo da roda de moinho e sugava para as profundezastudo que podia Tinha de passar pelo meio desses furiosos torveli-nhos para chegar ateacute a feiticeira do mar Por um longo trecho natildeo

havia outro caminho senatildeo pela lama quente e borbulhante ndash que afeiticeira chamava de seu charco

A casa da feiticeira ficava atraacutes do charco no meio de uma flo-resta quimeacuterica Todas as aacutervores e arbustos eram verdadeiros poacuteliposmetade animal e metade vegetal Pareciam serpentes de cem cabeccedilascrescendo do solo Tinham galhos que pareciam braccedilos longos e vis-cosos com dedos tatildeo flexiacuteveis que se assemelhavam a vermes Noacute por

noacute da raiz ateacute a ponta estavam constantemente em movimento eagarravam hermeticamente qualquer coisa que pudessem aproveitardo mar e natildeo soltavam mais A Pequena Sereia ficou apavorada e sedeteve agrave beira da mata Seu coraccedilatildeo palpitava de medo e ela esteve

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45A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

prestes a desistir Mas entatildeo lembrou-se do priacutencipe e da alma hu-mana e retomou sua coragem Ela prendeu em torno da cabeccedila seu

longo e esvoaccedilante cabelo para que os poacutelipos natildeo a pudessem agarrarDepois cruzou os braccedilos sobre o peito e disparou adiante como umpeixe lanccedilado na aacutegua no meio dos soacuterdidos poacutelipos que estendiamem sua direccedilatildeo seus braccedilos e dedos buliccedilosos Ela notou como cadaum deles havia agarrado algo e imobilizava firmemente com umacentena de pequenos braccedilos que pareciam aros de ferro Esqueletosbrancos de seres humanos que haviam perecido no mar e afundadonas aacuteguas profundas olhavam dos braccedilos dos poacutelipos Lemes e arcasde navios estavam fortemente agarrados em seus braccedilos juntamentecom esqueletos de animais terrestres e ndash o mais terriacutevel de tudo ndash umasereiazinha que eles haviam capturado e estrangulado

Chegou entatildeo a um grande charco lodoso onde enormes e cor-pulentas cobras-drsquoaacutegua ondeavam-se no lamaccedilal mostrando seus

horrendos ventres amarelo-esbranquiccedilado No meio do charco haviauma casa construiacuteda com os ossos de humanos naufragados Laacute es-tava a feiticeira do mar deixando um sapo se alimentar na sua bocaassim como as pessoas nutrem agraves vezes um canaacuterio com um torratildeo deaccediluacutecar Ela chamava as asquerosas cobras-drsquoaacutegua de seus pintinhos edeixava-as rastejar sobre seu peito

mdash Eu sei exatamente o que vocecirc deseja ndash disse a feiticeira do

mar mdash Como vocecirc eacute estuacutepida Mas vocecirc deve seguir seu caminhoque vai lhe trazer infortuacutenio minha linda princesa Vocecirc quer se li-vrar de sua cauda de peixe e no lugar ter um par de tocos para andarcomo um ser humano a fim de que o jovem priacutencipe se apaixone porvocecirc e lhe decirc uma alma imortal

E com isso a feiticeira soltou uma gargalhada tatildeo alta e maleacuteficaque o sapo e as cobras caiacuteram estatelados no chatildeo

mdash Vocecirc veio na hora certa ndash disse a feiticeira mdash Amanhatildequando o sol se levantar eu natildeo serei mais capaz de ajudaacute-la Voupreparar um elixir para vocecirc Teraacute de nadar ateacute a costa com ele antesdo nascer do sol sentar-se na praia e tomaacute-lo Sua cauda entatildeo se

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46 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

H A R R Y C L A R K E

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47 A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

dividiraacute em duas e encolheraacute para se transformar naquilo que os sereshumanos chamam de ldquobelas pernasrdquo Mas vai doer Vocecirc sentiraacute como

se uma espada afiada a cortasse Todos que a virem diratildeo que vocecirc eacutea mais bela humana que jaacute encontraram Manteraacute seus movimentosgraciosos nenhuma danccedilarina jamais deslizaraacute tatildeo suavemente mascada passo que der a faraacute sentir como se estivesse pisando em umafaca afiada o bastante para fazer sangrar seus peacutes Se estiver dispostaa suportar tudo isso posso ajudaacute-la

mdash Sim ndash disse a Pequena Sereia com voz hesitante mas voltouseus pensamentos para o priacutencipe e ao precircmio de uma alma imortal

mdash Pense nisso com cuidado ndash alertou a feiticeira mdash Uma vez to-mada a forma de um ser humano nunca mais voltaraacute a ser uma sereiaVocecirc natildeo seraacute capaz de descer nadando ao encontro do palaacutecio de seupai e de suas irmatildes A uacutenica maneira de conseguir uma alma imortaleacute conquistando o amor do priacutencipe e fazer com que ele esqueccedila o pai

e a matildee por amor a vocecirc Ele deve tecirc-la sempre em seus pensamentose permitir que o padre una suas matildeos para que se tornem marido emulher Se o priacutencipe se casar com outra pessoa na manhatilde seguinteseu coraccedilatildeo se quebraraacute e vocecirc se tornaraacute espuma na crista das ondas

mdash Estou pronta ndash declarou a Pequena Sereia paacutelida comouma morta

mdash Mas teraacute que me recompensar ndash disse a feiticeira mdash Vocecirc natildeo

receberaacute minha ajuda sem nada em troca Vocecirc tem a mais formidaacutevelvoz entre todos que aqui habitam no fundo do mar Provavelmentepensa que encantaraacute o priacutencipe com ela mas teraacute que daacute-la para mimVou lhe exigir o que possui de melhor como pagamento por minhapoccedilatildeo Vocecirc entende tenho de misturar nela um pouco do meu proacutepriosangue para que o elixir seja afiado como uma espada de dois gumes

mdash Mas se tirar a minha voz o que me restaraacute ndash perguntou a

Pequena Sereiamdash Sua encantadora figura ndash disse a feiticeira ndash seus movimentos

graciosos e seus olhos expressivos Com eles pode simplesmente fas-cinar um coraccedilatildeo humano Bem onde estaacute sua coragem Estire a

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48 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

liacutengua e deixe-me cortaacute-la fora como pagamento Depois receberaacutesua poderosa poccedilatildeo

mdash Assim seja ndash concordou a Pequena Sereia e a feiticeira pocircsseu caldeiratildeo no fogo para destilar a poccedilatildeo maacutegica

mdash Limpeza antes de tudo ndash ela disse enquanto esfregava o re-cipiente com um feixe de viacuteboras que tinha atado num grande noacute

Em seguida deu um talho no proacuteprio seio e deixou gotejar onegro sangue no caldeiratildeo O vapor que subiu criava formas estranhasassustadoras de se ver A feiticeira continuava a juntar coisas novas

dentro do caldeiratildeo e quando o elixir comeccedilou a ferver parecia umchoro de crocodilo Finalmente a poccedilatildeo maacutegica ficou pronta e eraexatamente cristalina como aacutegua

mdash Aiacute estaacute vocecirc ndash disse a feiticeira ao cortar a liacutengua da PequenaSereia que agora estava muda e natildeo conseguia falar e cantar

mdash Se os poacutelipos a apanharem quando vocecirc retornar pela mata

ndash orientou a feiticeira ndash basta jogar sobre eles uma uacutenica gota destapoccedilatildeo e os braccedilos e dedos deles seratildeo dilacerados em mil pedaccedilosPoreacutem a Pequena Sereia natildeo precisou disso Os poacutelipos se enco-

lheram aterrorizados quando avistaram a luzente poccedilatildeo em sua matildeocomo uma estrela cintilante E assim passou rapidamente pela matapelo charco e pelos atroadores redemoinhos

A Pequena Sereia pocircde contemplar o palaacutecio do pai As luzes do

salatildeo de baile estavam apagadas Certamente laacute estavam todos dor-mindo a essa altura Mas natildeo se atreveu ir vecirc-los pois agora estavamuda e prestes a deixaacute-los para sempre Ela sentiu como se seu coraccedilatildeofosse partir de tanta dor Entrou secretamente no jardim pegou umaflor dos leitos de cada uma das irmatildes soprou mil beijos em direccedilatildeodo palaacutecio e depois subiu agrave superfiacutecie atraveacutes das aacuteguas azul-escuras

O sol ainda natildeo despontara no horizonte quando ela avistou o

palaacutecio do priacutencipe e subiu os degraus de maacutermore A lua esplendialiacutempida e viacutevida A Pequena Sereia bebeu a acre poccedilatildeo e parecia queuma faca de dois gumes trespassava seu corpo delicado Ela desmaioue caiu morta

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49A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

E D M U N D D U L A C

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O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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52 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

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dar notiacutecias sobre o priacutencipe Ela tambeacutem vira os festejos realizados abordo e disse mais sobre o priacutencipe e a localizaccedilatildeo de seu reino

mdash Venha irmatildezinha ndash disseram as outras princesas E com osbraccedilos nos ombros uma das outras subiram em uma longa fila ateacute asuperfiacutecie bem diante do lugar onde se erguia o castelo do priacutencipe

O castelo construiacutedo de uma pedra amarela e luzidia tinhalongas escadarias de maacutermore sendo que um dos degraus levava di-reto para o mar Esplecircndidas cuacutepulas douradas elevavam-se do teto eentre as colunas que cercavam toda a construccedilatildeo havia esculturas demaacutermore que pareciam vivas Atraveacutes do vidro transparente das altas janelas era possiacutevel ver magniacuteficos aposentos ornados com suntuosascortinas de seda e tapeccedilarias As paredes eram cobertas com enormespinturas e era um prazer contemplaacute-las No centro do maior salatildeohavia uma fonte que lanccedilava seus jorros espumantes ateacute a cuacutepula devidro do teto atraveacutes do qual o sol brilhava na aacutegua e nas belas plantas

que cresciam ali Agora que sabia onde o priacutencipe vivia passava muitos pores dosol e muitas noites naquele lugar Nadava ateacute muito mais perto dacosta do que as outras ousavam Chegou a avanccedilar pelo estreito canalpara ir ateacute a varanda de maacutermore que projetava uma longa sombrasobre a aacutegua Ali ela se sentava e observava o jovem priacutencipe que pen-sava estar completamente soacute ao claratildeo da lua

Muitas vezes agrave noite a Pequena Sereia o via sair ao mar em seuesplecircndido barco com bandeiras hasteadas ao som de muacutesica harmo-niosa Espiava do meio dos juncos verdes e quando o vento levantavao longo veacuteu branco e prateado do seu cabelo e pessoas a viam ima-ginavam apenas que era um cisne estendendo as asas

Em muitas noites quando os pescadores saiam em alto mar comsuas tochas ela os ouvia elogiar o jovem priacutencipe e suas palavras a dei-

xavam ainda mais feliz por lhe ter salvado a vida E ela recordava comoaninhara a cabeccedila dele em seu peito e com que carinho o beijara Masele natildeo sabia nada disso e nunca sequer sonhara que ela existia

A Pequena Sereia foi se afeiccediloando mais e mais aos seres

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humanos e ansiava profundamente pela companhia deles Omundo em que viviam parecia tatildeo mais vasto que o seu proacuteprio

Veja eles podiam navegar o oceano em navios e escalar montanhasiacutengremes bem acima das nuvens E as terras que possuiacuteam suasflorestas e seus campos se estendiam muito aleacutem de onde sua vistaalcanccedilava Havia uma porccedilatildeo de outras coisas que ela teria gos-tado de saber e suas irmatildes natildeo eram capazes de responder a todasas suas curiosidades Por isso foi visitar sua velha avoacute que sabia

tudo sobre o mundo superior como chamava tatildeo apropriadamenteos paiacuteses acima do marmdash Quando natildeo se afogam ndash perguntou a Pequena Sereia ndash os

seres humanos podem continuar vivendo para sempre Natildeo morremcomo noacutes aqui embaixo no mar

mdash Sim sim ndash respondeu a velha senhora mdash Eles tambeacutem teratildeoque morrer e seu tempo de vida eacute mais curto que o nosso Noacutes por

vezes alcanccedilamos a idade de trezentos anos mas quando nossa vidaaqui chega ao fim simplesmente nos transformamos em espuma naaacutegua Aqui natildeo temos tuacutemulos daqueles que amamos Natildeo temosuma alma imortal e nunca teremos outra vida Noacutes somos como o junco verde Uma vez cortado cessa de crescer Jaacute os seres humanostecircm almas que vivem para sempre mesmo depois que seus corpos se

transformam em poacute Elas voam atraveacutes do ar puro ateacute chegarem agraves es-trelas brilhantes Assim como subimos agrave flor da aacutegua e contemplamosas terras dos seres humanos eles atingem belos reinos desconhecidosndash regiotildees que nunca conheceremos

mdash Por que natildeo podemos ter uma alma imortal ndash a PequenaSereia perguntou angustiada mdash Eu daria de boa vontade todos ostrezentos anos que tenho para viver se pudesse me tornar uma humana

por apenas um dia e participar do mundo celestialmdash Vocecirc natildeo deveria se preocupar com isso Somos muito mais

felizes e vivemos melhor aqui do que os seres humanos laacute em cimamdash Entatildeo estou condenada a morrer e flutuar como espuma do

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42 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mar a nunca mais ouvir a muacutesica das ondas ou ver as lindas flores eo sol vermelho Natildeo haacute nada que eu possa fazer para conquistar umaalma imortal

mdash Natildeo ndash disse a velha senhora mdash Soacute se um ser humano aamasse tanto que vocecirc importasse mais para ele que pai e matildee Se elea amasse de todo o coraccedilatildeo e deixasse o padre pocircr a matildeo direita sobre a

sua como uma promessa de ser fiel e verdadeiro por toda a eternidadeNesse caso a alma dele deslizaria para dentro do seu corpo e vocecirctambeacutem obteria uma parcela da felicidade humana Ele lhe daria umaalma e no entanto conservaria a dele proacuteprio Mas isso jamais acon-teceraacute Sua cauda de peixe que achamos tatildeo bonita parece repulsivaagrave gente da terra Sabem tatildeo pouco sobre isso que acreditam realmenteque as duas desajeitadas escoras que chamam de pernas satildeo belas

A Pequena Sereia suspirou e olhou melancolicamente para suacauda de peixe

mdash Devemos ficar satisfeitas com o que temos ndash disse a velhasenhora mdash Vamos danccedilar e nos alegrar durante os trezentos anos

H E L E N S T R A T T O N

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43A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

de nossa existecircncia isso eacute realmente muito tempo Depois da mortepoderemos descansar e pocircr o sono em dia Hoje teremos um baile

na corteNatildeo se pode fazer ideia na terra de tal magnificecircncia As paredes

e o teto do grande salatildeo do baile eram feitos de cristal espesso mastransparente Centenas de conchas enormes rosa-vermelho e verde--relva dispostas de cada lado cada uma com uma chama azul queiluminava todo o salatildeo e luzindo atraveacutes das paredes iluminavamtambeacutem o mar Inuacutemeros peixes grandes e pequenos podiam servistos nadando em direccedilatildeo agraves paredes de cristal As escamas de algunsfulgiam com um brilho puacuterpura-avermelhado e as de outros comoprata e ouro No meio do salatildeo corria um grande rio nos quais mo-luscos e sereias danccedilavam ao seu proacuteprio som melodioso

Nenhum ser humano tem voz tatildeo encantadora Ningueacutem can-tava mais docemente que a Pequena Sereia e todos a aplaudiram

Por um instante houve alegria em seu coraccedilatildeo pois ela sabia quetinha a voz mais bela em terra ou no mar Mas em seguida seuspensamentos se voltaram para o mundo acima dela Natildeo conseguiaesquecer o belo priacutencipe e a grande dor de natildeo ter a alma imortalque ele possuiacutea Assim se arrastou para fora do palaacutecio do pai eenquanto todos laacute dentro cantavam e se divertiam foi se sentar emseu jardinzinho desolada

De repente ela ouviu o som de uma buzina ecoando atraveacutes daaacutegua e pensou

mdash Ah laacute vai ele navegando laacute em cima Aquele a quem amomais do que meu pai ou minha matildee ele que estaacute sempre em meuspensamentos e em cujas matildeos eu confiaria alegremente minha fe-licidade Arriscaria qualquer coisa para conquistaacute-lo e a uma almaimortal Enquanto minhas irmatildes danccedilam no castelo de meu pai vou

agrave procura da feiticeira do mar Sempre tive um terriacutevel medo delamas talvez possa me ajudar e me dizer o que fazer

E assim a Pequena Sereia deixou seu jardim e partiu paraonde a feiticeira morava no lado mais distante dos redemoinhos

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44 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

espumantes Nunca estivera laacute antes Naquele lugar natildeo cresciamflores nem relva do mar Natildeo havia nada aleacutem do fundo arenoso ecinzento que se estendia ateacute os turbilhotildees onde a aacutegua rodopiavacom o estrondo da roda de moinho e sugava para as profundezastudo que podia Tinha de passar pelo meio desses furiosos torveli-nhos para chegar ateacute a feiticeira do mar Por um longo trecho natildeo

havia outro caminho senatildeo pela lama quente e borbulhante ndash que afeiticeira chamava de seu charco

A casa da feiticeira ficava atraacutes do charco no meio de uma flo-resta quimeacuterica Todas as aacutervores e arbustos eram verdadeiros poacuteliposmetade animal e metade vegetal Pareciam serpentes de cem cabeccedilascrescendo do solo Tinham galhos que pareciam braccedilos longos e vis-cosos com dedos tatildeo flexiacuteveis que se assemelhavam a vermes Noacute por

noacute da raiz ateacute a ponta estavam constantemente em movimento eagarravam hermeticamente qualquer coisa que pudessem aproveitardo mar e natildeo soltavam mais A Pequena Sereia ficou apavorada e sedeteve agrave beira da mata Seu coraccedilatildeo palpitava de medo e ela esteve

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45A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

prestes a desistir Mas entatildeo lembrou-se do priacutencipe e da alma hu-mana e retomou sua coragem Ela prendeu em torno da cabeccedila seu

longo e esvoaccedilante cabelo para que os poacutelipos natildeo a pudessem agarrarDepois cruzou os braccedilos sobre o peito e disparou adiante como umpeixe lanccedilado na aacutegua no meio dos soacuterdidos poacutelipos que estendiamem sua direccedilatildeo seus braccedilos e dedos buliccedilosos Ela notou como cadaum deles havia agarrado algo e imobilizava firmemente com umacentena de pequenos braccedilos que pareciam aros de ferro Esqueletosbrancos de seres humanos que haviam perecido no mar e afundadonas aacuteguas profundas olhavam dos braccedilos dos poacutelipos Lemes e arcasde navios estavam fortemente agarrados em seus braccedilos juntamentecom esqueletos de animais terrestres e ndash o mais terriacutevel de tudo ndash umasereiazinha que eles haviam capturado e estrangulado

Chegou entatildeo a um grande charco lodoso onde enormes e cor-pulentas cobras-drsquoaacutegua ondeavam-se no lamaccedilal mostrando seus

horrendos ventres amarelo-esbranquiccedilado No meio do charco haviauma casa construiacuteda com os ossos de humanos naufragados Laacute es-tava a feiticeira do mar deixando um sapo se alimentar na sua bocaassim como as pessoas nutrem agraves vezes um canaacuterio com um torratildeo deaccediluacutecar Ela chamava as asquerosas cobras-drsquoaacutegua de seus pintinhos edeixava-as rastejar sobre seu peito

mdash Eu sei exatamente o que vocecirc deseja ndash disse a feiticeira do

mar mdash Como vocecirc eacute estuacutepida Mas vocecirc deve seguir seu caminhoque vai lhe trazer infortuacutenio minha linda princesa Vocecirc quer se li-vrar de sua cauda de peixe e no lugar ter um par de tocos para andarcomo um ser humano a fim de que o jovem priacutencipe se apaixone porvocecirc e lhe decirc uma alma imortal

E com isso a feiticeira soltou uma gargalhada tatildeo alta e maleacuteficaque o sapo e as cobras caiacuteram estatelados no chatildeo

mdash Vocecirc veio na hora certa ndash disse a feiticeira mdash Amanhatildequando o sol se levantar eu natildeo serei mais capaz de ajudaacute-la Voupreparar um elixir para vocecirc Teraacute de nadar ateacute a costa com ele antesdo nascer do sol sentar-se na praia e tomaacute-lo Sua cauda entatildeo se

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H A R R Y C L A R K E

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47 A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

dividiraacute em duas e encolheraacute para se transformar naquilo que os sereshumanos chamam de ldquobelas pernasrdquo Mas vai doer Vocecirc sentiraacute como

se uma espada afiada a cortasse Todos que a virem diratildeo que vocecirc eacutea mais bela humana que jaacute encontraram Manteraacute seus movimentosgraciosos nenhuma danccedilarina jamais deslizaraacute tatildeo suavemente mascada passo que der a faraacute sentir como se estivesse pisando em umafaca afiada o bastante para fazer sangrar seus peacutes Se estiver dispostaa suportar tudo isso posso ajudaacute-la

mdash Sim ndash disse a Pequena Sereia com voz hesitante mas voltouseus pensamentos para o priacutencipe e ao precircmio de uma alma imortal

mdash Pense nisso com cuidado ndash alertou a feiticeira mdash Uma vez to-mada a forma de um ser humano nunca mais voltaraacute a ser uma sereiaVocecirc natildeo seraacute capaz de descer nadando ao encontro do palaacutecio de seupai e de suas irmatildes A uacutenica maneira de conseguir uma alma imortaleacute conquistando o amor do priacutencipe e fazer com que ele esqueccedila o pai

e a matildee por amor a vocecirc Ele deve tecirc-la sempre em seus pensamentose permitir que o padre una suas matildeos para que se tornem marido emulher Se o priacutencipe se casar com outra pessoa na manhatilde seguinteseu coraccedilatildeo se quebraraacute e vocecirc se tornaraacute espuma na crista das ondas

mdash Estou pronta ndash declarou a Pequena Sereia paacutelida comouma morta

mdash Mas teraacute que me recompensar ndash disse a feiticeira mdash Vocecirc natildeo

receberaacute minha ajuda sem nada em troca Vocecirc tem a mais formidaacutevelvoz entre todos que aqui habitam no fundo do mar Provavelmentepensa que encantaraacute o priacutencipe com ela mas teraacute que daacute-la para mimVou lhe exigir o que possui de melhor como pagamento por minhapoccedilatildeo Vocecirc entende tenho de misturar nela um pouco do meu proacutepriosangue para que o elixir seja afiado como uma espada de dois gumes

mdash Mas se tirar a minha voz o que me restaraacute ndash perguntou a

Pequena Sereiamdash Sua encantadora figura ndash disse a feiticeira ndash seus movimentos

graciosos e seus olhos expressivos Com eles pode simplesmente fas-cinar um coraccedilatildeo humano Bem onde estaacute sua coragem Estire a

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48 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

liacutengua e deixe-me cortaacute-la fora como pagamento Depois receberaacutesua poderosa poccedilatildeo

mdash Assim seja ndash concordou a Pequena Sereia e a feiticeira pocircsseu caldeiratildeo no fogo para destilar a poccedilatildeo maacutegica

mdash Limpeza antes de tudo ndash ela disse enquanto esfregava o re-cipiente com um feixe de viacuteboras que tinha atado num grande noacute

Em seguida deu um talho no proacuteprio seio e deixou gotejar onegro sangue no caldeiratildeo O vapor que subiu criava formas estranhasassustadoras de se ver A feiticeira continuava a juntar coisas novas

dentro do caldeiratildeo e quando o elixir comeccedilou a ferver parecia umchoro de crocodilo Finalmente a poccedilatildeo maacutegica ficou pronta e eraexatamente cristalina como aacutegua

mdash Aiacute estaacute vocecirc ndash disse a feiticeira ao cortar a liacutengua da PequenaSereia que agora estava muda e natildeo conseguia falar e cantar

mdash Se os poacutelipos a apanharem quando vocecirc retornar pela mata

ndash orientou a feiticeira ndash basta jogar sobre eles uma uacutenica gota destapoccedilatildeo e os braccedilos e dedos deles seratildeo dilacerados em mil pedaccedilosPoreacutem a Pequena Sereia natildeo precisou disso Os poacutelipos se enco-

lheram aterrorizados quando avistaram a luzente poccedilatildeo em sua matildeocomo uma estrela cintilante E assim passou rapidamente pela matapelo charco e pelos atroadores redemoinhos

A Pequena Sereia pocircde contemplar o palaacutecio do pai As luzes do

salatildeo de baile estavam apagadas Certamente laacute estavam todos dor-mindo a essa altura Mas natildeo se atreveu ir vecirc-los pois agora estavamuda e prestes a deixaacute-los para sempre Ela sentiu como se seu coraccedilatildeofosse partir de tanta dor Entrou secretamente no jardim pegou umaflor dos leitos de cada uma das irmatildes soprou mil beijos em direccedilatildeodo palaacutecio e depois subiu agrave superfiacutecie atraveacutes das aacuteguas azul-escuras

O sol ainda natildeo despontara no horizonte quando ela avistou o

palaacutecio do priacutencipe e subiu os degraus de maacutermore A lua esplendialiacutempida e viacutevida A Pequena Sereia bebeu a acre poccedilatildeo e parecia queuma faca de dois gumes trespassava seu corpo delicado Ela desmaioue caiu morta

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E D M U N D D U L A C

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O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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55A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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59A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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60 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

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humanos e ansiava profundamente pela companhia deles Omundo em que viviam parecia tatildeo mais vasto que o seu proacuteprio

Veja eles podiam navegar o oceano em navios e escalar montanhasiacutengremes bem acima das nuvens E as terras que possuiacuteam suasflorestas e seus campos se estendiam muito aleacutem de onde sua vistaalcanccedilava Havia uma porccedilatildeo de outras coisas que ela teria gos-tado de saber e suas irmatildes natildeo eram capazes de responder a todasas suas curiosidades Por isso foi visitar sua velha avoacute que sabia

tudo sobre o mundo superior como chamava tatildeo apropriadamenteos paiacuteses acima do marmdash Quando natildeo se afogam ndash perguntou a Pequena Sereia ndash os

seres humanos podem continuar vivendo para sempre Natildeo morremcomo noacutes aqui embaixo no mar

mdash Sim sim ndash respondeu a velha senhora mdash Eles tambeacutem teratildeoque morrer e seu tempo de vida eacute mais curto que o nosso Noacutes por

vezes alcanccedilamos a idade de trezentos anos mas quando nossa vidaaqui chega ao fim simplesmente nos transformamos em espuma naaacutegua Aqui natildeo temos tuacutemulos daqueles que amamos Natildeo temosuma alma imortal e nunca teremos outra vida Noacutes somos como o junco verde Uma vez cortado cessa de crescer Jaacute os seres humanostecircm almas que vivem para sempre mesmo depois que seus corpos se

transformam em poacute Elas voam atraveacutes do ar puro ateacute chegarem agraves es-trelas brilhantes Assim como subimos agrave flor da aacutegua e contemplamosas terras dos seres humanos eles atingem belos reinos desconhecidosndash regiotildees que nunca conheceremos

mdash Por que natildeo podemos ter uma alma imortal ndash a PequenaSereia perguntou angustiada mdash Eu daria de boa vontade todos ostrezentos anos que tenho para viver se pudesse me tornar uma humana

por apenas um dia e participar do mundo celestialmdash Vocecirc natildeo deveria se preocupar com isso Somos muito mais

felizes e vivemos melhor aqui do que os seres humanos laacute em cimamdash Entatildeo estou condenada a morrer e flutuar como espuma do

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mar a nunca mais ouvir a muacutesica das ondas ou ver as lindas flores eo sol vermelho Natildeo haacute nada que eu possa fazer para conquistar umaalma imortal

mdash Natildeo ndash disse a velha senhora mdash Soacute se um ser humano aamasse tanto que vocecirc importasse mais para ele que pai e matildee Se elea amasse de todo o coraccedilatildeo e deixasse o padre pocircr a matildeo direita sobre a

sua como uma promessa de ser fiel e verdadeiro por toda a eternidadeNesse caso a alma dele deslizaria para dentro do seu corpo e vocecirctambeacutem obteria uma parcela da felicidade humana Ele lhe daria umaalma e no entanto conservaria a dele proacuteprio Mas isso jamais acon-teceraacute Sua cauda de peixe que achamos tatildeo bonita parece repulsivaagrave gente da terra Sabem tatildeo pouco sobre isso que acreditam realmenteque as duas desajeitadas escoras que chamam de pernas satildeo belas

A Pequena Sereia suspirou e olhou melancolicamente para suacauda de peixe

mdash Devemos ficar satisfeitas com o que temos ndash disse a velhasenhora mdash Vamos danccedilar e nos alegrar durante os trezentos anos

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de nossa existecircncia isso eacute realmente muito tempo Depois da mortepoderemos descansar e pocircr o sono em dia Hoje teremos um baile

na corteNatildeo se pode fazer ideia na terra de tal magnificecircncia As paredes

e o teto do grande salatildeo do baile eram feitos de cristal espesso mastransparente Centenas de conchas enormes rosa-vermelho e verde--relva dispostas de cada lado cada uma com uma chama azul queiluminava todo o salatildeo e luzindo atraveacutes das paredes iluminavamtambeacutem o mar Inuacutemeros peixes grandes e pequenos podiam servistos nadando em direccedilatildeo agraves paredes de cristal As escamas de algunsfulgiam com um brilho puacuterpura-avermelhado e as de outros comoprata e ouro No meio do salatildeo corria um grande rio nos quais mo-luscos e sereias danccedilavam ao seu proacuteprio som melodioso

Nenhum ser humano tem voz tatildeo encantadora Ningueacutem can-tava mais docemente que a Pequena Sereia e todos a aplaudiram

Por um instante houve alegria em seu coraccedilatildeo pois ela sabia quetinha a voz mais bela em terra ou no mar Mas em seguida seuspensamentos se voltaram para o mundo acima dela Natildeo conseguiaesquecer o belo priacutencipe e a grande dor de natildeo ter a alma imortalque ele possuiacutea Assim se arrastou para fora do palaacutecio do pai eenquanto todos laacute dentro cantavam e se divertiam foi se sentar emseu jardinzinho desolada

De repente ela ouviu o som de uma buzina ecoando atraveacutes daaacutegua e pensou

mdash Ah laacute vai ele navegando laacute em cima Aquele a quem amomais do que meu pai ou minha matildee ele que estaacute sempre em meuspensamentos e em cujas matildeos eu confiaria alegremente minha fe-licidade Arriscaria qualquer coisa para conquistaacute-lo e a uma almaimortal Enquanto minhas irmatildes danccedilam no castelo de meu pai vou

agrave procura da feiticeira do mar Sempre tive um terriacutevel medo delamas talvez possa me ajudar e me dizer o que fazer

E assim a Pequena Sereia deixou seu jardim e partiu paraonde a feiticeira morava no lado mais distante dos redemoinhos

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espumantes Nunca estivera laacute antes Naquele lugar natildeo cresciamflores nem relva do mar Natildeo havia nada aleacutem do fundo arenoso ecinzento que se estendia ateacute os turbilhotildees onde a aacutegua rodopiavacom o estrondo da roda de moinho e sugava para as profundezastudo que podia Tinha de passar pelo meio desses furiosos torveli-nhos para chegar ateacute a feiticeira do mar Por um longo trecho natildeo

havia outro caminho senatildeo pela lama quente e borbulhante ndash que afeiticeira chamava de seu charco

A casa da feiticeira ficava atraacutes do charco no meio de uma flo-resta quimeacuterica Todas as aacutervores e arbustos eram verdadeiros poacuteliposmetade animal e metade vegetal Pareciam serpentes de cem cabeccedilascrescendo do solo Tinham galhos que pareciam braccedilos longos e vis-cosos com dedos tatildeo flexiacuteveis que se assemelhavam a vermes Noacute por

noacute da raiz ateacute a ponta estavam constantemente em movimento eagarravam hermeticamente qualquer coisa que pudessem aproveitardo mar e natildeo soltavam mais A Pequena Sereia ficou apavorada e sedeteve agrave beira da mata Seu coraccedilatildeo palpitava de medo e ela esteve

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prestes a desistir Mas entatildeo lembrou-se do priacutencipe e da alma hu-mana e retomou sua coragem Ela prendeu em torno da cabeccedila seu

longo e esvoaccedilante cabelo para que os poacutelipos natildeo a pudessem agarrarDepois cruzou os braccedilos sobre o peito e disparou adiante como umpeixe lanccedilado na aacutegua no meio dos soacuterdidos poacutelipos que estendiamem sua direccedilatildeo seus braccedilos e dedos buliccedilosos Ela notou como cadaum deles havia agarrado algo e imobilizava firmemente com umacentena de pequenos braccedilos que pareciam aros de ferro Esqueletosbrancos de seres humanos que haviam perecido no mar e afundadonas aacuteguas profundas olhavam dos braccedilos dos poacutelipos Lemes e arcasde navios estavam fortemente agarrados em seus braccedilos juntamentecom esqueletos de animais terrestres e ndash o mais terriacutevel de tudo ndash umasereiazinha que eles haviam capturado e estrangulado

Chegou entatildeo a um grande charco lodoso onde enormes e cor-pulentas cobras-drsquoaacutegua ondeavam-se no lamaccedilal mostrando seus

horrendos ventres amarelo-esbranquiccedilado No meio do charco haviauma casa construiacuteda com os ossos de humanos naufragados Laacute es-tava a feiticeira do mar deixando um sapo se alimentar na sua bocaassim como as pessoas nutrem agraves vezes um canaacuterio com um torratildeo deaccediluacutecar Ela chamava as asquerosas cobras-drsquoaacutegua de seus pintinhos edeixava-as rastejar sobre seu peito

mdash Eu sei exatamente o que vocecirc deseja ndash disse a feiticeira do

mar mdash Como vocecirc eacute estuacutepida Mas vocecirc deve seguir seu caminhoque vai lhe trazer infortuacutenio minha linda princesa Vocecirc quer se li-vrar de sua cauda de peixe e no lugar ter um par de tocos para andarcomo um ser humano a fim de que o jovem priacutencipe se apaixone porvocecirc e lhe decirc uma alma imortal

E com isso a feiticeira soltou uma gargalhada tatildeo alta e maleacuteficaque o sapo e as cobras caiacuteram estatelados no chatildeo

mdash Vocecirc veio na hora certa ndash disse a feiticeira mdash Amanhatildequando o sol se levantar eu natildeo serei mais capaz de ajudaacute-la Voupreparar um elixir para vocecirc Teraacute de nadar ateacute a costa com ele antesdo nascer do sol sentar-se na praia e tomaacute-lo Sua cauda entatildeo se

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H A R R Y C L A R K E

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dividiraacute em duas e encolheraacute para se transformar naquilo que os sereshumanos chamam de ldquobelas pernasrdquo Mas vai doer Vocecirc sentiraacute como

se uma espada afiada a cortasse Todos que a virem diratildeo que vocecirc eacutea mais bela humana que jaacute encontraram Manteraacute seus movimentosgraciosos nenhuma danccedilarina jamais deslizaraacute tatildeo suavemente mascada passo que der a faraacute sentir como se estivesse pisando em umafaca afiada o bastante para fazer sangrar seus peacutes Se estiver dispostaa suportar tudo isso posso ajudaacute-la

mdash Sim ndash disse a Pequena Sereia com voz hesitante mas voltouseus pensamentos para o priacutencipe e ao precircmio de uma alma imortal

mdash Pense nisso com cuidado ndash alertou a feiticeira mdash Uma vez to-mada a forma de um ser humano nunca mais voltaraacute a ser uma sereiaVocecirc natildeo seraacute capaz de descer nadando ao encontro do palaacutecio de seupai e de suas irmatildes A uacutenica maneira de conseguir uma alma imortaleacute conquistando o amor do priacutencipe e fazer com que ele esqueccedila o pai

e a matildee por amor a vocecirc Ele deve tecirc-la sempre em seus pensamentose permitir que o padre una suas matildeos para que se tornem marido emulher Se o priacutencipe se casar com outra pessoa na manhatilde seguinteseu coraccedilatildeo se quebraraacute e vocecirc se tornaraacute espuma na crista das ondas

mdash Estou pronta ndash declarou a Pequena Sereia paacutelida comouma morta

mdash Mas teraacute que me recompensar ndash disse a feiticeira mdash Vocecirc natildeo

receberaacute minha ajuda sem nada em troca Vocecirc tem a mais formidaacutevelvoz entre todos que aqui habitam no fundo do mar Provavelmentepensa que encantaraacute o priacutencipe com ela mas teraacute que daacute-la para mimVou lhe exigir o que possui de melhor como pagamento por minhapoccedilatildeo Vocecirc entende tenho de misturar nela um pouco do meu proacutepriosangue para que o elixir seja afiado como uma espada de dois gumes

mdash Mas se tirar a minha voz o que me restaraacute ndash perguntou a

Pequena Sereiamdash Sua encantadora figura ndash disse a feiticeira ndash seus movimentos

graciosos e seus olhos expressivos Com eles pode simplesmente fas-cinar um coraccedilatildeo humano Bem onde estaacute sua coragem Estire a

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liacutengua e deixe-me cortaacute-la fora como pagamento Depois receberaacutesua poderosa poccedilatildeo

mdash Assim seja ndash concordou a Pequena Sereia e a feiticeira pocircsseu caldeiratildeo no fogo para destilar a poccedilatildeo maacutegica

mdash Limpeza antes de tudo ndash ela disse enquanto esfregava o re-cipiente com um feixe de viacuteboras que tinha atado num grande noacute

Em seguida deu um talho no proacuteprio seio e deixou gotejar onegro sangue no caldeiratildeo O vapor que subiu criava formas estranhasassustadoras de se ver A feiticeira continuava a juntar coisas novas

dentro do caldeiratildeo e quando o elixir comeccedilou a ferver parecia umchoro de crocodilo Finalmente a poccedilatildeo maacutegica ficou pronta e eraexatamente cristalina como aacutegua

mdash Aiacute estaacute vocecirc ndash disse a feiticeira ao cortar a liacutengua da PequenaSereia que agora estava muda e natildeo conseguia falar e cantar

mdash Se os poacutelipos a apanharem quando vocecirc retornar pela mata

ndash orientou a feiticeira ndash basta jogar sobre eles uma uacutenica gota destapoccedilatildeo e os braccedilos e dedos deles seratildeo dilacerados em mil pedaccedilosPoreacutem a Pequena Sereia natildeo precisou disso Os poacutelipos se enco-

lheram aterrorizados quando avistaram a luzente poccedilatildeo em sua matildeocomo uma estrela cintilante E assim passou rapidamente pela matapelo charco e pelos atroadores redemoinhos

A Pequena Sereia pocircde contemplar o palaacutecio do pai As luzes do

salatildeo de baile estavam apagadas Certamente laacute estavam todos dor-mindo a essa altura Mas natildeo se atreveu ir vecirc-los pois agora estavamuda e prestes a deixaacute-los para sempre Ela sentiu como se seu coraccedilatildeofosse partir de tanta dor Entrou secretamente no jardim pegou umaflor dos leitos de cada uma das irmatildes soprou mil beijos em direccedilatildeodo palaacutecio e depois subiu agrave superfiacutecie atraveacutes das aacuteguas azul-escuras

O sol ainda natildeo despontara no horizonte quando ela avistou o

palaacutecio do priacutencipe e subiu os degraus de maacutermore A lua esplendialiacutempida e viacutevida A Pequena Sereia bebeu a acre poccedilatildeo e parecia queuma faca de dois gumes trespassava seu corpo delicado Ela desmaioue caiu morta

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E D M U N D D U L A C

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O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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54 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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55A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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56 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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D U G A L D S T E W A R T WA L K E R 1 9 1 4

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59A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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60 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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61A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

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42 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mar a nunca mais ouvir a muacutesica das ondas ou ver as lindas flores eo sol vermelho Natildeo haacute nada que eu possa fazer para conquistar umaalma imortal

mdash Natildeo ndash disse a velha senhora mdash Soacute se um ser humano aamasse tanto que vocecirc importasse mais para ele que pai e matildee Se elea amasse de todo o coraccedilatildeo e deixasse o padre pocircr a matildeo direita sobre a

sua como uma promessa de ser fiel e verdadeiro por toda a eternidadeNesse caso a alma dele deslizaria para dentro do seu corpo e vocecirctambeacutem obteria uma parcela da felicidade humana Ele lhe daria umaalma e no entanto conservaria a dele proacuteprio Mas isso jamais acon-teceraacute Sua cauda de peixe que achamos tatildeo bonita parece repulsivaagrave gente da terra Sabem tatildeo pouco sobre isso que acreditam realmenteque as duas desajeitadas escoras que chamam de pernas satildeo belas

A Pequena Sereia suspirou e olhou melancolicamente para suacauda de peixe

mdash Devemos ficar satisfeitas com o que temos ndash disse a velhasenhora mdash Vamos danccedilar e nos alegrar durante os trezentos anos

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de nossa existecircncia isso eacute realmente muito tempo Depois da mortepoderemos descansar e pocircr o sono em dia Hoje teremos um baile

na corteNatildeo se pode fazer ideia na terra de tal magnificecircncia As paredes

e o teto do grande salatildeo do baile eram feitos de cristal espesso mastransparente Centenas de conchas enormes rosa-vermelho e verde--relva dispostas de cada lado cada uma com uma chama azul queiluminava todo o salatildeo e luzindo atraveacutes das paredes iluminavamtambeacutem o mar Inuacutemeros peixes grandes e pequenos podiam servistos nadando em direccedilatildeo agraves paredes de cristal As escamas de algunsfulgiam com um brilho puacuterpura-avermelhado e as de outros comoprata e ouro No meio do salatildeo corria um grande rio nos quais mo-luscos e sereias danccedilavam ao seu proacuteprio som melodioso

Nenhum ser humano tem voz tatildeo encantadora Ningueacutem can-tava mais docemente que a Pequena Sereia e todos a aplaudiram

Por um instante houve alegria em seu coraccedilatildeo pois ela sabia quetinha a voz mais bela em terra ou no mar Mas em seguida seuspensamentos se voltaram para o mundo acima dela Natildeo conseguiaesquecer o belo priacutencipe e a grande dor de natildeo ter a alma imortalque ele possuiacutea Assim se arrastou para fora do palaacutecio do pai eenquanto todos laacute dentro cantavam e se divertiam foi se sentar emseu jardinzinho desolada

De repente ela ouviu o som de uma buzina ecoando atraveacutes daaacutegua e pensou

mdash Ah laacute vai ele navegando laacute em cima Aquele a quem amomais do que meu pai ou minha matildee ele que estaacute sempre em meuspensamentos e em cujas matildeos eu confiaria alegremente minha fe-licidade Arriscaria qualquer coisa para conquistaacute-lo e a uma almaimortal Enquanto minhas irmatildes danccedilam no castelo de meu pai vou

agrave procura da feiticeira do mar Sempre tive um terriacutevel medo delamas talvez possa me ajudar e me dizer o que fazer

E assim a Pequena Sereia deixou seu jardim e partiu paraonde a feiticeira morava no lado mais distante dos redemoinhos

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44 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

espumantes Nunca estivera laacute antes Naquele lugar natildeo cresciamflores nem relva do mar Natildeo havia nada aleacutem do fundo arenoso ecinzento que se estendia ateacute os turbilhotildees onde a aacutegua rodopiavacom o estrondo da roda de moinho e sugava para as profundezastudo que podia Tinha de passar pelo meio desses furiosos torveli-nhos para chegar ateacute a feiticeira do mar Por um longo trecho natildeo

havia outro caminho senatildeo pela lama quente e borbulhante ndash que afeiticeira chamava de seu charco

A casa da feiticeira ficava atraacutes do charco no meio de uma flo-resta quimeacuterica Todas as aacutervores e arbustos eram verdadeiros poacuteliposmetade animal e metade vegetal Pareciam serpentes de cem cabeccedilascrescendo do solo Tinham galhos que pareciam braccedilos longos e vis-cosos com dedos tatildeo flexiacuteveis que se assemelhavam a vermes Noacute por

noacute da raiz ateacute a ponta estavam constantemente em movimento eagarravam hermeticamente qualquer coisa que pudessem aproveitardo mar e natildeo soltavam mais A Pequena Sereia ficou apavorada e sedeteve agrave beira da mata Seu coraccedilatildeo palpitava de medo e ela esteve

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45A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

prestes a desistir Mas entatildeo lembrou-se do priacutencipe e da alma hu-mana e retomou sua coragem Ela prendeu em torno da cabeccedila seu

longo e esvoaccedilante cabelo para que os poacutelipos natildeo a pudessem agarrarDepois cruzou os braccedilos sobre o peito e disparou adiante como umpeixe lanccedilado na aacutegua no meio dos soacuterdidos poacutelipos que estendiamem sua direccedilatildeo seus braccedilos e dedos buliccedilosos Ela notou como cadaum deles havia agarrado algo e imobilizava firmemente com umacentena de pequenos braccedilos que pareciam aros de ferro Esqueletosbrancos de seres humanos que haviam perecido no mar e afundadonas aacuteguas profundas olhavam dos braccedilos dos poacutelipos Lemes e arcasde navios estavam fortemente agarrados em seus braccedilos juntamentecom esqueletos de animais terrestres e ndash o mais terriacutevel de tudo ndash umasereiazinha que eles haviam capturado e estrangulado

Chegou entatildeo a um grande charco lodoso onde enormes e cor-pulentas cobras-drsquoaacutegua ondeavam-se no lamaccedilal mostrando seus

horrendos ventres amarelo-esbranquiccedilado No meio do charco haviauma casa construiacuteda com os ossos de humanos naufragados Laacute es-tava a feiticeira do mar deixando um sapo se alimentar na sua bocaassim como as pessoas nutrem agraves vezes um canaacuterio com um torratildeo deaccediluacutecar Ela chamava as asquerosas cobras-drsquoaacutegua de seus pintinhos edeixava-as rastejar sobre seu peito

mdash Eu sei exatamente o que vocecirc deseja ndash disse a feiticeira do

mar mdash Como vocecirc eacute estuacutepida Mas vocecirc deve seguir seu caminhoque vai lhe trazer infortuacutenio minha linda princesa Vocecirc quer se li-vrar de sua cauda de peixe e no lugar ter um par de tocos para andarcomo um ser humano a fim de que o jovem priacutencipe se apaixone porvocecirc e lhe decirc uma alma imortal

E com isso a feiticeira soltou uma gargalhada tatildeo alta e maleacuteficaque o sapo e as cobras caiacuteram estatelados no chatildeo

mdash Vocecirc veio na hora certa ndash disse a feiticeira mdash Amanhatildequando o sol se levantar eu natildeo serei mais capaz de ajudaacute-la Voupreparar um elixir para vocecirc Teraacute de nadar ateacute a costa com ele antesdo nascer do sol sentar-se na praia e tomaacute-lo Sua cauda entatildeo se

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H A R R Y C L A R K E

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47 A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

dividiraacute em duas e encolheraacute para se transformar naquilo que os sereshumanos chamam de ldquobelas pernasrdquo Mas vai doer Vocecirc sentiraacute como

se uma espada afiada a cortasse Todos que a virem diratildeo que vocecirc eacutea mais bela humana que jaacute encontraram Manteraacute seus movimentosgraciosos nenhuma danccedilarina jamais deslizaraacute tatildeo suavemente mascada passo que der a faraacute sentir como se estivesse pisando em umafaca afiada o bastante para fazer sangrar seus peacutes Se estiver dispostaa suportar tudo isso posso ajudaacute-la

mdash Sim ndash disse a Pequena Sereia com voz hesitante mas voltouseus pensamentos para o priacutencipe e ao precircmio de uma alma imortal

mdash Pense nisso com cuidado ndash alertou a feiticeira mdash Uma vez to-mada a forma de um ser humano nunca mais voltaraacute a ser uma sereiaVocecirc natildeo seraacute capaz de descer nadando ao encontro do palaacutecio de seupai e de suas irmatildes A uacutenica maneira de conseguir uma alma imortaleacute conquistando o amor do priacutencipe e fazer com que ele esqueccedila o pai

e a matildee por amor a vocecirc Ele deve tecirc-la sempre em seus pensamentose permitir que o padre una suas matildeos para que se tornem marido emulher Se o priacutencipe se casar com outra pessoa na manhatilde seguinteseu coraccedilatildeo se quebraraacute e vocecirc se tornaraacute espuma na crista das ondas

mdash Estou pronta ndash declarou a Pequena Sereia paacutelida comouma morta

mdash Mas teraacute que me recompensar ndash disse a feiticeira mdash Vocecirc natildeo

receberaacute minha ajuda sem nada em troca Vocecirc tem a mais formidaacutevelvoz entre todos que aqui habitam no fundo do mar Provavelmentepensa que encantaraacute o priacutencipe com ela mas teraacute que daacute-la para mimVou lhe exigir o que possui de melhor como pagamento por minhapoccedilatildeo Vocecirc entende tenho de misturar nela um pouco do meu proacutepriosangue para que o elixir seja afiado como uma espada de dois gumes

mdash Mas se tirar a minha voz o que me restaraacute ndash perguntou a

Pequena Sereiamdash Sua encantadora figura ndash disse a feiticeira ndash seus movimentos

graciosos e seus olhos expressivos Com eles pode simplesmente fas-cinar um coraccedilatildeo humano Bem onde estaacute sua coragem Estire a

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48 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

liacutengua e deixe-me cortaacute-la fora como pagamento Depois receberaacutesua poderosa poccedilatildeo

mdash Assim seja ndash concordou a Pequena Sereia e a feiticeira pocircsseu caldeiratildeo no fogo para destilar a poccedilatildeo maacutegica

mdash Limpeza antes de tudo ndash ela disse enquanto esfregava o re-cipiente com um feixe de viacuteboras que tinha atado num grande noacute

Em seguida deu um talho no proacuteprio seio e deixou gotejar onegro sangue no caldeiratildeo O vapor que subiu criava formas estranhasassustadoras de se ver A feiticeira continuava a juntar coisas novas

dentro do caldeiratildeo e quando o elixir comeccedilou a ferver parecia umchoro de crocodilo Finalmente a poccedilatildeo maacutegica ficou pronta e eraexatamente cristalina como aacutegua

mdash Aiacute estaacute vocecirc ndash disse a feiticeira ao cortar a liacutengua da PequenaSereia que agora estava muda e natildeo conseguia falar e cantar

mdash Se os poacutelipos a apanharem quando vocecirc retornar pela mata

ndash orientou a feiticeira ndash basta jogar sobre eles uma uacutenica gota destapoccedilatildeo e os braccedilos e dedos deles seratildeo dilacerados em mil pedaccedilosPoreacutem a Pequena Sereia natildeo precisou disso Os poacutelipos se enco-

lheram aterrorizados quando avistaram a luzente poccedilatildeo em sua matildeocomo uma estrela cintilante E assim passou rapidamente pela matapelo charco e pelos atroadores redemoinhos

A Pequena Sereia pocircde contemplar o palaacutecio do pai As luzes do

salatildeo de baile estavam apagadas Certamente laacute estavam todos dor-mindo a essa altura Mas natildeo se atreveu ir vecirc-los pois agora estavamuda e prestes a deixaacute-los para sempre Ela sentiu como se seu coraccedilatildeofosse partir de tanta dor Entrou secretamente no jardim pegou umaflor dos leitos de cada uma das irmatildes soprou mil beijos em direccedilatildeodo palaacutecio e depois subiu agrave superfiacutecie atraveacutes das aacuteguas azul-escuras

O sol ainda natildeo despontara no horizonte quando ela avistou o

palaacutecio do priacutencipe e subiu os degraus de maacutermore A lua esplendialiacutempida e viacutevida A Pequena Sereia bebeu a acre poccedilatildeo e parecia queuma faca de dois gumes trespassava seu corpo delicado Ela desmaioue caiu morta

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E D M U N D D U L A C

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H E L E N S T R A T T O N

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51A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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52 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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53A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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54 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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55A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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57 A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

D U G A L D S T E W A R T WA L K E R 1 9 1 4

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59A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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60 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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61A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

V

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de nossa existecircncia isso eacute realmente muito tempo Depois da mortepoderemos descansar e pocircr o sono em dia Hoje teremos um baile

na corteNatildeo se pode fazer ideia na terra de tal magnificecircncia As paredes

e o teto do grande salatildeo do baile eram feitos de cristal espesso mastransparente Centenas de conchas enormes rosa-vermelho e verde--relva dispostas de cada lado cada uma com uma chama azul queiluminava todo o salatildeo e luzindo atraveacutes das paredes iluminavamtambeacutem o mar Inuacutemeros peixes grandes e pequenos podiam servistos nadando em direccedilatildeo agraves paredes de cristal As escamas de algunsfulgiam com um brilho puacuterpura-avermelhado e as de outros comoprata e ouro No meio do salatildeo corria um grande rio nos quais mo-luscos e sereias danccedilavam ao seu proacuteprio som melodioso

Nenhum ser humano tem voz tatildeo encantadora Ningueacutem can-tava mais docemente que a Pequena Sereia e todos a aplaudiram

Por um instante houve alegria em seu coraccedilatildeo pois ela sabia quetinha a voz mais bela em terra ou no mar Mas em seguida seuspensamentos se voltaram para o mundo acima dela Natildeo conseguiaesquecer o belo priacutencipe e a grande dor de natildeo ter a alma imortalque ele possuiacutea Assim se arrastou para fora do palaacutecio do pai eenquanto todos laacute dentro cantavam e se divertiam foi se sentar emseu jardinzinho desolada

De repente ela ouviu o som de uma buzina ecoando atraveacutes daaacutegua e pensou

mdash Ah laacute vai ele navegando laacute em cima Aquele a quem amomais do que meu pai ou minha matildee ele que estaacute sempre em meuspensamentos e em cujas matildeos eu confiaria alegremente minha fe-licidade Arriscaria qualquer coisa para conquistaacute-lo e a uma almaimortal Enquanto minhas irmatildes danccedilam no castelo de meu pai vou

agrave procura da feiticeira do mar Sempre tive um terriacutevel medo delamas talvez possa me ajudar e me dizer o que fazer

E assim a Pequena Sereia deixou seu jardim e partiu paraonde a feiticeira morava no lado mais distante dos redemoinhos

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espumantes Nunca estivera laacute antes Naquele lugar natildeo cresciamflores nem relva do mar Natildeo havia nada aleacutem do fundo arenoso ecinzento que se estendia ateacute os turbilhotildees onde a aacutegua rodopiavacom o estrondo da roda de moinho e sugava para as profundezastudo que podia Tinha de passar pelo meio desses furiosos torveli-nhos para chegar ateacute a feiticeira do mar Por um longo trecho natildeo

havia outro caminho senatildeo pela lama quente e borbulhante ndash que afeiticeira chamava de seu charco

A casa da feiticeira ficava atraacutes do charco no meio de uma flo-resta quimeacuterica Todas as aacutervores e arbustos eram verdadeiros poacuteliposmetade animal e metade vegetal Pareciam serpentes de cem cabeccedilascrescendo do solo Tinham galhos que pareciam braccedilos longos e vis-cosos com dedos tatildeo flexiacuteveis que se assemelhavam a vermes Noacute por

noacute da raiz ateacute a ponta estavam constantemente em movimento eagarravam hermeticamente qualquer coisa que pudessem aproveitardo mar e natildeo soltavam mais A Pequena Sereia ficou apavorada e sedeteve agrave beira da mata Seu coraccedilatildeo palpitava de medo e ela esteve

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prestes a desistir Mas entatildeo lembrou-se do priacutencipe e da alma hu-mana e retomou sua coragem Ela prendeu em torno da cabeccedila seu

longo e esvoaccedilante cabelo para que os poacutelipos natildeo a pudessem agarrarDepois cruzou os braccedilos sobre o peito e disparou adiante como umpeixe lanccedilado na aacutegua no meio dos soacuterdidos poacutelipos que estendiamem sua direccedilatildeo seus braccedilos e dedos buliccedilosos Ela notou como cadaum deles havia agarrado algo e imobilizava firmemente com umacentena de pequenos braccedilos que pareciam aros de ferro Esqueletosbrancos de seres humanos que haviam perecido no mar e afundadonas aacuteguas profundas olhavam dos braccedilos dos poacutelipos Lemes e arcasde navios estavam fortemente agarrados em seus braccedilos juntamentecom esqueletos de animais terrestres e ndash o mais terriacutevel de tudo ndash umasereiazinha que eles haviam capturado e estrangulado

Chegou entatildeo a um grande charco lodoso onde enormes e cor-pulentas cobras-drsquoaacutegua ondeavam-se no lamaccedilal mostrando seus

horrendos ventres amarelo-esbranquiccedilado No meio do charco haviauma casa construiacuteda com os ossos de humanos naufragados Laacute es-tava a feiticeira do mar deixando um sapo se alimentar na sua bocaassim como as pessoas nutrem agraves vezes um canaacuterio com um torratildeo deaccediluacutecar Ela chamava as asquerosas cobras-drsquoaacutegua de seus pintinhos edeixava-as rastejar sobre seu peito

mdash Eu sei exatamente o que vocecirc deseja ndash disse a feiticeira do

mar mdash Como vocecirc eacute estuacutepida Mas vocecirc deve seguir seu caminhoque vai lhe trazer infortuacutenio minha linda princesa Vocecirc quer se li-vrar de sua cauda de peixe e no lugar ter um par de tocos para andarcomo um ser humano a fim de que o jovem priacutencipe se apaixone porvocecirc e lhe decirc uma alma imortal

E com isso a feiticeira soltou uma gargalhada tatildeo alta e maleacuteficaque o sapo e as cobras caiacuteram estatelados no chatildeo

mdash Vocecirc veio na hora certa ndash disse a feiticeira mdash Amanhatildequando o sol se levantar eu natildeo serei mais capaz de ajudaacute-la Voupreparar um elixir para vocecirc Teraacute de nadar ateacute a costa com ele antesdo nascer do sol sentar-se na praia e tomaacute-lo Sua cauda entatildeo se

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H A R R Y C L A R K E

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47 A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

dividiraacute em duas e encolheraacute para se transformar naquilo que os sereshumanos chamam de ldquobelas pernasrdquo Mas vai doer Vocecirc sentiraacute como

se uma espada afiada a cortasse Todos que a virem diratildeo que vocecirc eacutea mais bela humana que jaacute encontraram Manteraacute seus movimentosgraciosos nenhuma danccedilarina jamais deslizaraacute tatildeo suavemente mascada passo que der a faraacute sentir como se estivesse pisando em umafaca afiada o bastante para fazer sangrar seus peacutes Se estiver dispostaa suportar tudo isso posso ajudaacute-la

mdash Sim ndash disse a Pequena Sereia com voz hesitante mas voltouseus pensamentos para o priacutencipe e ao precircmio de uma alma imortal

mdash Pense nisso com cuidado ndash alertou a feiticeira mdash Uma vez to-mada a forma de um ser humano nunca mais voltaraacute a ser uma sereiaVocecirc natildeo seraacute capaz de descer nadando ao encontro do palaacutecio de seupai e de suas irmatildes A uacutenica maneira de conseguir uma alma imortaleacute conquistando o amor do priacutencipe e fazer com que ele esqueccedila o pai

e a matildee por amor a vocecirc Ele deve tecirc-la sempre em seus pensamentose permitir que o padre una suas matildeos para que se tornem marido emulher Se o priacutencipe se casar com outra pessoa na manhatilde seguinteseu coraccedilatildeo se quebraraacute e vocecirc se tornaraacute espuma na crista das ondas

mdash Estou pronta ndash declarou a Pequena Sereia paacutelida comouma morta

mdash Mas teraacute que me recompensar ndash disse a feiticeira mdash Vocecirc natildeo

receberaacute minha ajuda sem nada em troca Vocecirc tem a mais formidaacutevelvoz entre todos que aqui habitam no fundo do mar Provavelmentepensa que encantaraacute o priacutencipe com ela mas teraacute que daacute-la para mimVou lhe exigir o que possui de melhor como pagamento por minhapoccedilatildeo Vocecirc entende tenho de misturar nela um pouco do meu proacutepriosangue para que o elixir seja afiado como uma espada de dois gumes

mdash Mas se tirar a minha voz o que me restaraacute ndash perguntou a

Pequena Sereiamdash Sua encantadora figura ndash disse a feiticeira ndash seus movimentos

graciosos e seus olhos expressivos Com eles pode simplesmente fas-cinar um coraccedilatildeo humano Bem onde estaacute sua coragem Estire a

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48 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

liacutengua e deixe-me cortaacute-la fora como pagamento Depois receberaacutesua poderosa poccedilatildeo

mdash Assim seja ndash concordou a Pequena Sereia e a feiticeira pocircsseu caldeiratildeo no fogo para destilar a poccedilatildeo maacutegica

mdash Limpeza antes de tudo ndash ela disse enquanto esfregava o re-cipiente com um feixe de viacuteboras que tinha atado num grande noacute

Em seguida deu um talho no proacuteprio seio e deixou gotejar onegro sangue no caldeiratildeo O vapor que subiu criava formas estranhasassustadoras de se ver A feiticeira continuava a juntar coisas novas

dentro do caldeiratildeo e quando o elixir comeccedilou a ferver parecia umchoro de crocodilo Finalmente a poccedilatildeo maacutegica ficou pronta e eraexatamente cristalina como aacutegua

mdash Aiacute estaacute vocecirc ndash disse a feiticeira ao cortar a liacutengua da PequenaSereia que agora estava muda e natildeo conseguia falar e cantar

mdash Se os poacutelipos a apanharem quando vocecirc retornar pela mata

ndash orientou a feiticeira ndash basta jogar sobre eles uma uacutenica gota destapoccedilatildeo e os braccedilos e dedos deles seratildeo dilacerados em mil pedaccedilosPoreacutem a Pequena Sereia natildeo precisou disso Os poacutelipos se enco-

lheram aterrorizados quando avistaram a luzente poccedilatildeo em sua matildeocomo uma estrela cintilante E assim passou rapidamente pela matapelo charco e pelos atroadores redemoinhos

A Pequena Sereia pocircde contemplar o palaacutecio do pai As luzes do

salatildeo de baile estavam apagadas Certamente laacute estavam todos dor-mindo a essa altura Mas natildeo se atreveu ir vecirc-los pois agora estavamuda e prestes a deixaacute-los para sempre Ela sentiu como se seu coraccedilatildeofosse partir de tanta dor Entrou secretamente no jardim pegou umaflor dos leitos de cada uma das irmatildes soprou mil beijos em direccedilatildeodo palaacutecio e depois subiu agrave superfiacutecie atraveacutes das aacuteguas azul-escuras

O sol ainda natildeo despontara no horizonte quando ela avistou o

palaacutecio do priacutencipe e subiu os degraus de maacutermore A lua esplendialiacutempida e viacutevida A Pequena Sereia bebeu a acre poccedilatildeo e parecia queuma faca de dois gumes trespassava seu corpo delicado Ela desmaioue caiu morta

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49A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

E D M U N D D U L A C

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50 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

H E L E N S T R A T T O N

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O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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52 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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D U G A L D S T E W A R T WA L K E R 1 9 1 4

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seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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60 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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61A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

V

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espumantes Nunca estivera laacute antes Naquele lugar natildeo cresciamflores nem relva do mar Natildeo havia nada aleacutem do fundo arenoso ecinzento que se estendia ateacute os turbilhotildees onde a aacutegua rodopiavacom o estrondo da roda de moinho e sugava para as profundezastudo que podia Tinha de passar pelo meio desses furiosos torveli-nhos para chegar ateacute a feiticeira do mar Por um longo trecho natildeo

havia outro caminho senatildeo pela lama quente e borbulhante ndash que afeiticeira chamava de seu charco

A casa da feiticeira ficava atraacutes do charco no meio de uma flo-resta quimeacuterica Todas as aacutervores e arbustos eram verdadeiros poacuteliposmetade animal e metade vegetal Pareciam serpentes de cem cabeccedilascrescendo do solo Tinham galhos que pareciam braccedilos longos e vis-cosos com dedos tatildeo flexiacuteveis que se assemelhavam a vermes Noacute por

noacute da raiz ateacute a ponta estavam constantemente em movimento eagarravam hermeticamente qualquer coisa que pudessem aproveitardo mar e natildeo soltavam mais A Pequena Sereia ficou apavorada e sedeteve agrave beira da mata Seu coraccedilatildeo palpitava de medo e ela esteve

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prestes a desistir Mas entatildeo lembrou-se do priacutencipe e da alma hu-mana e retomou sua coragem Ela prendeu em torno da cabeccedila seu

longo e esvoaccedilante cabelo para que os poacutelipos natildeo a pudessem agarrarDepois cruzou os braccedilos sobre o peito e disparou adiante como umpeixe lanccedilado na aacutegua no meio dos soacuterdidos poacutelipos que estendiamem sua direccedilatildeo seus braccedilos e dedos buliccedilosos Ela notou como cadaum deles havia agarrado algo e imobilizava firmemente com umacentena de pequenos braccedilos que pareciam aros de ferro Esqueletosbrancos de seres humanos que haviam perecido no mar e afundadonas aacuteguas profundas olhavam dos braccedilos dos poacutelipos Lemes e arcasde navios estavam fortemente agarrados em seus braccedilos juntamentecom esqueletos de animais terrestres e ndash o mais terriacutevel de tudo ndash umasereiazinha que eles haviam capturado e estrangulado

Chegou entatildeo a um grande charco lodoso onde enormes e cor-pulentas cobras-drsquoaacutegua ondeavam-se no lamaccedilal mostrando seus

horrendos ventres amarelo-esbranquiccedilado No meio do charco haviauma casa construiacuteda com os ossos de humanos naufragados Laacute es-tava a feiticeira do mar deixando um sapo se alimentar na sua bocaassim como as pessoas nutrem agraves vezes um canaacuterio com um torratildeo deaccediluacutecar Ela chamava as asquerosas cobras-drsquoaacutegua de seus pintinhos edeixava-as rastejar sobre seu peito

mdash Eu sei exatamente o que vocecirc deseja ndash disse a feiticeira do

mar mdash Como vocecirc eacute estuacutepida Mas vocecirc deve seguir seu caminhoque vai lhe trazer infortuacutenio minha linda princesa Vocecirc quer se li-vrar de sua cauda de peixe e no lugar ter um par de tocos para andarcomo um ser humano a fim de que o jovem priacutencipe se apaixone porvocecirc e lhe decirc uma alma imortal

E com isso a feiticeira soltou uma gargalhada tatildeo alta e maleacuteficaque o sapo e as cobras caiacuteram estatelados no chatildeo

mdash Vocecirc veio na hora certa ndash disse a feiticeira mdash Amanhatildequando o sol se levantar eu natildeo serei mais capaz de ajudaacute-la Voupreparar um elixir para vocecirc Teraacute de nadar ateacute a costa com ele antesdo nascer do sol sentar-se na praia e tomaacute-lo Sua cauda entatildeo se

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H A R R Y C L A R K E

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dividiraacute em duas e encolheraacute para se transformar naquilo que os sereshumanos chamam de ldquobelas pernasrdquo Mas vai doer Vocecirc sentiraacute como

se uma espada afiada a cortasse Todos que a virem diratildeo que vocecirc eacutea mais bela humana que jaacute encontraram Manteraacute seus movimentosgraciosos nenhuma danccedilarina jamais deslizaraacute tatildeo suavemente mascada passo que der a faraacute sentir como se estivesse pisando em umafaca afiada o bastante para fazer sangrar seus peacutes Se estiver dispostaa suportar tudo isso posso ajudaacute-la

mdash Sim ndash disse a Pequena Sereia com voz hesitante mas voltouseus pensamentos para o priacutencipe e ao precircmio de uma alma imortal

mdash Pense nisso com cuidado ndash alertou a feiticeira mdash Uma vez to-mada a forma de um ser humano nunca mais voltaraacute a ser uma sereiaVocecirc natildeo seraacute capaz de descer nadando ao encontro do palaacutecio de seupai e de suas irmatildes A uacutenica maneira de conseguir uma alma imortaleacute conquistando o amor do priacutencipe e fazer com que ele esqueccedila o pai

e a matildee por amor a vocecirc Ele deve tecirc-la sempre em seus pensamentose permitir que o padre una suas matildeos para que se tornem marido emulher Se o priacutencipe se casar com outra pessoa na manhatilde seguinteseu coraccedilatildeo se quebraraacute e vocecirc se tornaraacute espuma na crista das ondas

mdash Estou pronta ndash declarou a Pequena Sereia paacutelida comouma morta

mdash Mas teraacute que me recompensar ndash disse a feiticeira mdash Vocecirc natildeo

receberaacute minha ajuda sem nada em troca Vocecirc tem a mais formidaacutevelvoz entre todos que aqui habitam no fundo do mar Provavelmentepensa que encantaraacute o priacutencipe com ela mas teraacute que daacute-la para mimVou lhe exigir o que possui de melhor como pagamento por minhapoccedilatildeo Vocecirc entende tenho de misturar nela um pouco do meu proacutepriosangue para que o elixir seja afiado como uma espada de dois gumes

mdash Mas se tirar a minha voz o que me restaraacute ndash perguntou a

Pequena Sereiamdash Sua encantadora figura ndash disse a feiticeira ndash seus movimentos

graciosos e seus olhos expressivos Com eles pode simplesmente fas-cinar um coraccedilatildeo humano Bem onde estaacute sua coragem Estire a

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48 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

liacutengua e deixe-me cortaacute-la fora como pagamento Depois receberaacutesua poderosa poccedilatildeo

mdash Assim seja ndash concordou a Pequena Sereia e a feiticeira pocircsseu caldeiratildeo no fogo para destilar a poccedilatildeo maacutegica

mdash Limpeza antes de tudo ndash ela disse enquanto esfregava o re-cipiente com um feixe de viacuteboras que tinha atado num grande noacute

Em seguida deu um talho no proacuteprio seio e deixou gotejar onegro sangue no caldeiratildeo O vapor que subiu criava formas estranhasassustadoras de se ver A feiticeira continuava a juntar coisas novas

dentro do caldeiratildeo e quando o elixir comeccedilou a ferver parecia umchoro de crocodilo Finalmente a poccedilatildeo maacutegica ficou pronta e eraexatamente cristalina como aacutegua

mdash Aiacute estaacute vocecirc ndash disse a feiticeira ao cortar a liacutengua da PequenaSereia que agora estava muda e natildeo conseguia falar e cantar

mdash Se os poacutelipos a apanharem quando vocecirc retornar pela mata

ndash orientou a feiticeira ndash basta jogar sobre eles uma uacutenica gota destapoccedilatildeo e os braccedilos e dedos deles seratildeo dilacerados em mil pedaccedilosPoreacutem a Pequena Sereia natildeo precisou disso Os poacutelipos se enco-

lheram aterrorizados quando avistaram a luzente poccedilatildeo em sua matildeocomo uma estrela cintilante E assim passou rapidamente pela matapelo charco e pelos atroadores redemoinhos

A Pequena Sereia pocircde contemplar o palaacutecio do pai As luzes do

salatildeo de baile estavam apagadas Certamente laacute estavam todos dor-mindo a essa altura Mas natildeo se atreveu ir vecirc-los pois agora estavamuda e prestes a deixaacute-los para sempre Ela sentiu como se seu coraccedilatildeofosse partir de tanta dor Entrou secretamente no jardim pegou umaflor dos leitos de cada uma das irmatildes soprou mil beijos em direccedilatildeodo palaacutecio e depois subiu agrave superfiacutecie atraveacutes das aacuteguas azul-escuras

O sol ainda natildeo despontara no horizonte quando ela avistou o

palaacutecio do priacutencipe e subiu os degraus de maacutermore A lua esplendialiacutempida e viacutevida A Pequena Sereia bebeu a acre poccedilatildeo e parecia queuma faca de dois gumes trespassava seu corpo delicado Ela desmaioue caiu morta

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49A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

E D M U N D D U L A C

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O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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52 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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53A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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54 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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57 A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

D U G A L D S T E W A R T WA L K E R 1 9 1 4

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59A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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60 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

H E L E N S T R A T T O N

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61A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

V

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Page 23: Conto: A Pequena Sereia ORIGINAL E COMPLETO!

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45A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

prestes a desistir Mas entatildeo lembrou-se do priacutencipe e da alma hu-mana e retomou sua coragem Ela prendeu em torno da cabeccedila seu

longo e esvoaccedilante cabelo para que os poacutelipos natildeo a pudessem agarrarDepois cruzou os braccedilos sobre o peito e disparou adiante como umpeixe lanccedilado na aacutegua no meio dos soacuterdidos poacutelipos que estendiamem sua direccedilatildeo seus braccedilos e dedos buliccedilosos Ela notou como cadaum deles havia agarrado algo e imobilizava firmemente com umacentena de pequenos braccedilos que pareciam aros de ferro Esqueletosbrancos de seres humanos que haviam perecido no mar e afundadonas aacuteguas profundas olhavam dos braccedilos dos poacutelipos Lemes e arcasde navios estavam fortemente agarrados em seus braccedilos juntamentecom esqueletos de animais terrestres e ndash o mais terriacutevel de tudo ndash umasereiazinha que eles haviam capturado e estrangulado

Chegou entatildeo a um grande charco lodoso onde enormes e cor-pulentas cobras-drsquoaacutegua ondeavam-se no lamaccedilal mostrando seus

horrendos ventres amarelo-esbranquiccedilado No meio do charco haviauma casa construiacuteda com os ossos de humanos naufragados Laacute es-tava a feiticeira do mar deixando um sapo se alimentar na sua bocaassim como as pessoas nutrem agraves vezes um canaacuterio com um torratildeo deaccediluacutecar Ela chamava as asquerosas cobras-drsquoaacutegua de seus pintinhos edeixava-as rastejar sobre seu peito

mdash Eu sei exatamente o que vocecirc deseja ndash disse a feiticeira do

mar mdash Como vocecirc eacute estuacutepida Mas vocecirc deve seguir seu caminhoque vai lhe trazer infortuacutenio minha linda princesa Vocecirc quer se li-vrar de sua cauda de peixe e no lugar ter um par de tocos para andarcomo um ser humano a fim de que o jovem priacutencipe se apaixone porvocecirc e lhe decirc uma alma imortal

E com isso a feiticeira soltou uma gargalhada tatildeo alta e maleacuteficaque o sapo e as cobras caiacuteram estatelados no chatildeo

mdash Vocecirc veio na hora certa ndash disse a feiticeira mdash Amanhatildequando o sol se levantar eu natildeo serei mais capaz de ajudaacute-la Voupreparar um elixir para vocecirc Teraacute de nadar ateacute a costa com ele antesdo nascer do sol sentar-se na praia e tomaacute-lo Sua cauda entatildeo se

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H A R R Y C L A R K E

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dividiraacute em duas e encolheraacute para se transformar naquilo que os sereshumanos chamam de ldquobelas pernasrdquo Mas vai doer Vocecirc sentiraacute como

se uma espada afiada a cortasse Todos que a virem diratildeo que vocecirc eacutea mais bela humana que jaacute encontraram Manteraacute seus movimentosgraciosos nenhuma danccedilarina jamais deslizaraacute tatildeo suavemente mascada passo que der a faraacute sentir como se estivesse pisando em umafaca afiada o bastante para fazer sangrar seus peacutes Se estiver dispostaa suportar tudo isso posso ajudaacute-la

mdash Sim ndash disse a Pequena Sereia com voz hesitante mas voltouseus pensamentos para o priacutencipe e ao precircmio de uma alma imortal

mdash Pense nisso com cuidado ndash alertou a feiticeira mdash Uma vez to-mada a forma de um ser humano nunca mais voltaraacute a ser uma sereiaVocecirc natildeo seraacute capaz de descer nadando ao encontro do palaacutecio de seupai e de suas irmatildes A uacutenica maneira de conseguir uma alma imortaleacute conquistando o amor do priacutencipe e fazer com que ele esqueccedila o pai

e a matildee por amor a vocecirc Ele deve tecirc-la sempre em seus pensamentose permitir que o padre una suas matildeos para que se tornem marido emulher Se o priacutencipe se casar com outra pessoa na manhatilde seguinteseu coraccedilatildeo se quebraraacute e vocecirc se tornaraacute espuma na crista das ondas

mdash Estou pronta ndash declarou a Pequena Sereia paacutelida comouma morta

mdash Mas teraacute que me recompensar ndash disse a feiticeira mdash Vocecirc natildeo

receberaacute minha ajuda sem nada em troca Vocecirc tem a mais formidaacutevelvoz entre todos que aqui habitam no fundo do mar Provavelmentepensa que encantaraacute o priacutencipe com ela mas teraacute que daacute-la para mimVou lhe exigir o que possui de melhor como pagamento por minhapoccedilatildeo Vocecirc entende tenho de misturar nela um pouco do meu proacutepriosangue para que o elixir seja afiado como uma espada de dois gumes

mdash Mas se tirar a minha voz o que me restaraacute ndash perguntou a

Pequena Sereiamdash Sua encantadora figura ndash disse a feiticeira ndash seus movimentos

graciosos e seus olhos expressivos Com eles pode simplesmente fas-cinar um coraccedilatildeo humano Bem onde estaacute sua coragem Estire a

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48 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

liacutengua e deixe-me cortaacute-la fora como pagamento Depois receberaacutesua poderosa poccedilatildeo

mdash Assim seja ndash concordou a Pequena Sereia e a feiticeira pocircsseu caldeiratildeo no fogo para destilar a poccedilatildeo maacutegica

mdash Limpeza antes de tudo ndash ela disse enquanto esfregava o re-cipiente com um feixe de viacuteboras que tinha atado num grande noacute

Em seguida deu um talho no proacuteprio seio e deixou gotejar onegro sangue no caldeiratildeo O vapor que subiu criava formas estranhasassustadoras de se ver A feiticeira continuava a juntar coisas novas

dentro do caldeiratildeo e quando o elixir comeccedilou a ferver parecia umchoro de crocodilo Finalmente a poccedilatildeo maacutegica ficou pronta e eraexatamente cristalina como aacutegua

mdash Aiacute estaacute vocecirc ndash disse a feiticeira ao cortar a liacutengua da PequenaSereia que agora estava muda e natildeo conseguia falar e cantar

mdash Se os poacutelipos a apanharem quando vocecirc retornar pela mata

ndash orientou a feiticeira ndash basta jogar sobre eles uma uacutenica gota destapoccedilatildeo e os braccedilos e dedos deles seratildeo dilacerados em mil pedaccedilosPoreacutem a Pequena Sereia natildeo precisou disso Os poacutelipos se enco-

lheram aterrorizados quando avistaram a luzente poccedilatildeo em sua matildeocomo uma estrela cintilante E assim passou rapidamente pela matapelo charco e pelos atroadores redemoinhos

A Pequena Sereia pocircde contemplar o palaacutecio do pai As luzes do

salatildeo de baile estavam apagadas Certamente laacute estavam todos dor-mindo a essa altura Mas natildeo se atreveu ir vecirc-los pois agora estavamuda e prestes a deixaacute-los para sempre Ela sentiu como se seu coraccedilatildeofosse partir de tanta dor Entrou secretamente no jardim pegou umaflor dos leitos de cada uma das irmatildes soprou mil beijos em direccedilatildeodo palaacutecio e depois subiu agrave superfiacutecie atraveacutes das aacuteguas azul-escuras

O sol ainda natildeo despontara no horizonte quando ela avistou o

palaacutecio do priacutencipe e subiu os degraus de maacutermore A lua esplendialiacutempida e viacutevida A Pequena Sereia bebeu a acre poccedilatildeo e parecia queuma faca de dois gumes trespassava seu corpo delicado Ela desmaioue caiu morta

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49A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

E D M U N D D U L A C

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O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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52 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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53A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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D U G A L D S T E W A R T WA L K E R 1 9 1 4

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59A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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60 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

H E L E N S T R A T T O N

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61A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

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H A R R Y C L A R K E

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47 A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

dividiraacute em duas e encolheraacute para se transformar naquilo que os sereshumanos chamam de ldquobelas pernasrdquo Mas vai doer Vocecirc sentiraacute como

se uma espada afiada a cortasse Todos que a virem diratildeo que vocecirc eacutea mais bela humana que jaacute encontraram Manteraacute seus movimentosgraciosos nenhuma danccedilarina jamais deslizaraacute tatildeo suavemente mascada passo que der a faraacute sentir como se estivesse pisando em umafaca afiada o bastante para fazer sangrar seus peacutes Se estiver dispostaa suportar tudo isso posso ajudaacute-la

mdash Sim ndash disse a Pequena Sereia com voz hesitante mas voltouseus pensamentos para o priacutencipe e ao precircmio de uma alma imortal

mdash Pense nisso com cuidado ndash alertou a feiticeira mdash Uma vez to-mada a forma de um ser humano nunca mais voltaraacute a ser uma sereiaVocecirc natildeo seraacute capaz de descer nadando ao encontro do palaacutecio de seupai e de suas irmatildes A uacutenica maneira de conseguir uma alma imortaleacute conquistando o amor do priacutencipe e fazer com que ele esqueccedila o pai

e a matildee por amor a vocecirc Ele deve tecirc-la sempre em seus pensamentose permitir que o padre una suas matildeos para que se tornem marido emulher Se o priacutencipe se casar com outra pessoa na manhatilde seguinteseu coraccedilatildeo se quebraraacute e vocecirc se tornaraacute espuma na crista das ondas

mdash Estou pronta ndash declarou a Pequena Sereia paacutelida comouma morta

mdash Mas teraacute que me recompensar ndash disse a feiticeira mdash Vocecirc natildeo

receberaacute minha ajuda sem nada em troca Vocecirc tem a mais formidaacutevelvoz entre todos que aqui habitam no fundo do mar Provavelmentepensa que encantaraacute o priacutencipe com ela mas teraacute que daacute-la para mimVou lhe exigir o que possui de melhor como pagamento por minhapoccedilatildeo Vocecirc entende tenho de misturar nela um pouco do meu proacutepriosangue para que o elixir seja afiado como uma espada de dois gumes

mdash Mas se tirar a minha voz o que me restaraacute ndash perguntou a

Pequena Sereiamdash Sua encantadora figura ndash disse a feiticeira ndash seus movimentos

graciosos e seus olhos expressivos Com eles pode simplesmente fas-cinar um coraccedilatildeo humano Bem onde estaacute sua coragem Estire a

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liacutengua e deixe-me cortaacute-la fora como pagamento Depois receberaacutesua poderosa poccedilatildeo

mdash Assim seja ndash concordou a Pequena Sereia e a feiticeira pocircsseu caldeiratildeo no fogo para destilar a poccedilatildeo maacutegica

mdash Limpeza antes de tudo ndash ela disse enquanto esfregava o re-cipiente com um feixe de viacuteboras que tinha atado num grande noacute

Em seguida deu um talho no proacuteprio seio e deixou gotejar onegro sangue no caldeiratildeo O vapor que subiu criava formas estranhasassustadoras de se ver A feiticeira continuava a juntar coisas novas

dentro do caldeiratildeo e quando o elixir comeccedilou a ferver parecia umchoro de crocodilo Finalmente a poccedilatildeo maacutegica ficou pronta e eraexatamente cristalina como aacutegua

mdash Aiacute estaacute vocecirc ndash disse a feiticeira ao cortar a liacutengua da PequenaSereia que agora estava muda e natildeo conseguia falar e cantar

mdash Se os poacutelipos a apanharem quando vocecirc retornar pela mata

ndash orientou a feiticeira ndash basta jogar sobre eles uma uacutenica gota destapoccedilatildeo e os braccedilos e dedos deles seratildeo dilacerados em mil pedaccedilosPoreacutem a Pequena Sereia natildeo precisou disso Os poacutelipos se enco-

lheram aterrorizados quando avistaram a luzente poccedilatildeo em sua matildeocomo uma estrela cintilante E assim passou rapidamente pela matapelo charco e pelos atroadores redemoinhos

A Pequena Sereia pocircde contemplar o palaacutecio do pai As luzes do

salatildeo de baile estavam apagadas Certamente laacute estavam todos dor-mindo a essa altura Mas natildeo se atreveu ir vecirc-los pois agora estavamuda e prestes a deixaacute-los para sempre Ela sentiu como se seu coraccedilatildeofosse partir de tanta dor Entrou secretamente no jardim pegou umaflor dos leitos de cada uma das irmatildes soprou mil beijos em direccedilatildeodo palaacutecio e depois subiu agrave superfiacutecie atraveacutes das aacuteguas azul-escuras

O sol ainda natildeo despontara no horizonte quando ela avistou o

palaacutecio do priacutencipe e subiu os degraus de maacutermore A lua esplendialiacutempida e viacutevida A Pequena Sereia bebeu a acre poccedilatildeo e parecia queuma faca de dois gumes trespassava seu corpo delicado Ela desmaioue caiu morta

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O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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D U G A L D S T E W A R T WA L K E R 1 9 1 4

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seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

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dividiraacute em duas e encolheraacute para se transformar naquilo que os sereshumanos chamam de ldquobelas pernasrdquo Mas vai doer Vocecirc sentiraacute como

se uma espada afiada a cortasse Todos que a virem diratildeo que vocecirc eacutea mais bela humana que jaacute encontraram Manteraacute seus movimentosgraciosos nenhuma danccedilarina jamais deslizaraacute tatildeo suavemente mascada passo que der a faraacute sentir como se estivesse pisando em umafaca afiada o bastante para fazer sangrar seus peacutes Se estiver dispostaa suportar tudo isso posso ajudaacute-la

mdash Sim ndash disse a Pequena Sereia com voz hesitante mas voltouseus pensamentos para o priacutencipe e ao precircmio de uma alma imortal

mdash Pense nisso com cuidado ndash alertou a feiticeira mdash Uma vez to-mada a forma de um ser humano nunca mais voltaraacute a ser uma sereiaVocecirc natildeo seraacute capaz de descer nadando ao encontro do palaacutecio de seupai e de suas irmatildes A uacutenica maneira de conseguir uma alma imortaleacute conquistando o amor do priacutencipe e fazer com que ele esqueccedila o pai

e a matildee por amor a vocecirc Ele deve tecirc-la sempre em seus pensamentose permitir que o padre una suas matildeos para que se tornem marido emulher Se o priacutencipe se casar com outra pessoa na manhatilde seguinteseu coraccedilatildeo se quebraraacute e vocecirc se tornaraacute espuma na crista das ondas

mdash Estou pronta ndash declarou a Pequena Sereia paacutelida comouma morta

mdash Mas teraacute que me recompensar ndash disse a feiticeira mdash Vocecirc natildeo

receberaacute minha ajuda sem nada em troca Vocecirc tem a mais formidaacutevelvoz entre todos que aqui habitam no fundo do mar Provavelmentepensa que encantaraacute o priacutencipe com ela mas teraacute que daacute-la para mimVou lhe exigir o que possui de melhor como pagamento por minhapoccedilatildeo Vocecirc entende tenho de misturar nela um pouco do meu proacutepriosangue para que o elixir seja afiado como uma espada de dois gumes

mdash Mas se tirar a minha voz o que me restaraacute ndash perguntou a

Pequena Sereiamdash Sua encantadora figura ndash disse a feiticeira ndash seus movimentos

graciosos e seus olhos expressivos Com eles pode simplesmente fas-cinar um coraccedilatildeo humano Bem onde estaacute sua coragem Estire a

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liacutengua e deixe-me cortaacute-la fora como pagamento Depois receberaacutesua poderosa poccedilatildeo

mdash Assim seja ndash concordou a Pequena Sereia e a feiticeira pocircsseu caldeiratildeo no fogo para destilar a poccedilatildeo maacutegica

mdash Limpeza antes de tudo ndash ela disse enquanto esfregava o re-cipiente com um feixe de viacuteboras que tinha atado num grande noacute

Em seguida deu um talho no proacuteprio seio e deixou gotejar onegro sangue no caldeiratildeo O vapor que subiu criava formas estranhasassustadoras de se ver A feiticeira continuava a juntar coisas novas

dentro do caldeiratildeo e quando o elixir comeccedilou a ferver parecia umchoro de crocodilo Finalmente a poccedilatildeo maacutegica ficou pronta e eraexatamente cristalina como aacutegua

mdash Aiacute estaacute vocecirc ndash disse a feiticeira ao cortar a liacutengua da PequenaSereia que agora estava muda e natildeo conseguia falar e cantar

mdash Se os poacutelipos a apanharem quando vocecirc retornar pela mata

ndash orientou a feiticeira ndash basta jogar sobre eles uma uacutenica gota destapoccedilatildeo e os braccedilos e dedos deles seratildeo dilacerados em mil pedaccedilosPoreacutem a Pequena Sereia natildeo precisou disso Os poacutelipos se enco-

lheram aterrorizados quando avistaram a luzente poccedilatildeo em sua matildeocomo uma estrela cintilante E assim passou rapidamente pela matapelo charco e pelos atroadores redemoinhos

A Pequena Sereia pocircde contemplar o palaacutecio do pai As luzes do

salatildeo de baile estavam apagadas Certamente laacute estavam todos dor-mindo a essa altura Mas natildeo se atreveu ir vecirc-los pois agora estavamuda e prestes a deixaacute-los para sempre Ela sentiu como se seu coraccedilatildeofosse partir de tanta dor Entrou secretamente no jardim pegou umaflor dos leitos de cada uma das irmatildes soprou mil beijos em direccedilatildeodo palaacutecio e depois subiu agrave superfiacutecie atraveacutes das aacuteguas azul-escuras

O sol ainda natildeo despontara no horizonte quando ela avistou o

palaacutecio do priacutencipe e subiu os degraus de maacutermore A lua esplendialiacutempida e viacutevida A Pequena Sereia bebeu a acre poccedilatildeo e parecia queuma faca de dois gumes trespassava seu corpo delicado Ela desmaioue caiu morta

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O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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52 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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53A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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54 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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55A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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56 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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57 A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

D U G A L D S T E W A R T WA L K E R 1 9 1 4

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59A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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60 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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61A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

V

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Page 26: Conto: A Pequena Sereia ORIGINAL E COMPLETO!

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48 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

liacutengua e deixe-me cortaacute-la fora como pagamento Depois receberaacutesua poderosa poccedilatildeo

mdash Assim seja ndash concordou a Pequena Sereia e a feiticeira pocircsseu caldeiratildeo no fogo para destilar a poccedilatildeo maacutegica

mdash Limpeza antes de tudo ndash ela disse enquanto esfregava o re-cipiente com um feixe de viacuteboras que tinha atado num grande noacute

Em seguida deu um talho no proacuteprio seio e deixou gotejar onegro sangue no caldeiratildeo O vapor que subiu criava formas estranhasassustadoras de se ver A feiticeira continuava a juntar coisas novas

dentro do caldeiratildeo e quando o elixir comeccedilou a ferver parecia umchoro de crocodilo Finalmente a poccedilatildeo maacutegica ficou pronta e eraexatamente cristalina como aacutegua

mdash Aiacute estaacute vocecirc ndash disse a feiticeira ao cortar a liacutengua da PequenaSereia que agora estava muda e natildeo conseguia falar e cantar

mdash Se os poacutelipos a apanharem quando vocecirc retornar pela mata

ndash orientou a feiticeira ndash basta jogar sobre eles uma uacutenica gota destapoccedilatildeo e os braccedilos e dedos deles seratildeo dilacerados em mil pedaccedilosPoreacutem a Pequena Sereia natildeo precisou disso Os poacutelipos se enco-

lheram aterrorizados quando avistaram a luzente poccedilatildeo em sua matildeocomo uma estrela cintilante E assim passou rapidamente pela matapelo charco e pelos atroadores redemoinhos

A Pequena Sereia pocircde contemplar o palaacutecio do pai As luzes do

salatildeo de baile estavam apagadas Certamente laacute estavam todos dor-mindo a essa altura Mas natildeo se atreveu ir vecirc-los pois agora estavamuda e prestes a deixaacute-los para sempre Ela sentiu como se seu coraccedilatildeofosse partir de tanta dor Entrou secretamente no jardim pegou umaflor dos leitos de cada uma das irmatildes soprou mil beijos em direccedilatildeodo palaacutecio e depois subiu agrave superfiacutecie atraveacutes das aacuteguas azul-escuras

O sol ainda natildeo despontara no horizonte quando ela avistou o

palaacutecio do priacutencipe e subiu os degraus de maacutermore A lua esplendialiacutempida e viacutevida A Pequena Sereia bebeu a acre poccedilatildeo e parecia queuma faca de dois gumes trespassava seu corpo delicado Ela desmaioue caiu morta

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49A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

E D M U N D D U L A C

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51A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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52 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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54 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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60 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

H E L E N S T R A T T O N

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61A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

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Page 27: Conto: A Pequena Sereia ORIGINAL E COMPLETO!

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49A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

E D M U N D D U L A C

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O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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60 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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61A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

V

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50 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

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51A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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52 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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53A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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54 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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D U G A L D S T E W A R T WA L K E R 1 9 1 4

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seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

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O sol se levantou e radiante atraveacutes do mar acordou-a Elasentiu uma dor cruciante Mas bem ali na sua frente estava o belo

priacutencipe Os olhos dele negros como carvatildeo a encaravam tatildeo inten-samente que ela baixou os seus e percebeu que sua cauda de peixedesaparecera e que tinha um bonito par de pernas brancas como asque qualquer jovem poderia desejar Poreacutem estava completamentenua e assim se envolveu em seu longo e esvoaccedilante cabelo O priacutencipeperguntou-lhe quem era e como chegara ateacute ali e ela soacute conseguia

fitaacute-lo com um olhar doce e triste com seus olhos azuis pois eacute claronatildeo podia falar Entatildeo ele a tomou pela matildeo e a levou para o palaacutecioCada passo que ela dava como prenunciara a feiticeira a fazia sentirdores atrozes como se estivesse pisando em facas e agulhas afiadasmas suportou de bom grado Caminhou com a leveza de uma bolhade sabatildeo ao lado do priacutencipe Este e todos que a viram ficaram mara-vilhados com a beleza de seus movimentos graciosos

Deram-lhe vestidos suntuosos de seda e musselina Ela era a cria-tura mais bela no palaacutecio mas era muda natildeo conseguia falar e cantarLindas escravas vestidas de seda e ouro apareceram e danccedilaram diantedo priacutencipe e de seus parentes reais Uma cantou mais lindamenteque todas as outras e o priacutencipe bateu palmas e sorriu para ela Issoentristeceu a Pequena Sereia pois sabia que ela proacutepria podia cantar

ainda mais lindamente E pensoumdash Oacute se ele soubesse que dei minha voz para sempre a fim deestar com ele

Em seguida as escravas danccedilaram uma danccedila muito elegantedeslizando ao som da mais encantadora muacutesica E a Pequena Sereiaergueu seus belos braccedilos brancos ficou na ponta dos dedos dos peacutes edeslizou pelo piso danccedilando como ningueacutem danccedilara antes A cada

passo parecia mais e mais formosa e seus olhos atraiacuteam mais profun-damente que o canto das moccedilas escravas

Todos ficaram encantados especialmente o priacutencipe que achamou de sua pequena desamparada Ela continuou danccedilando

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52 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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53A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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54 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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55A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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56 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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D U G A L D S T E W A R T WA L K E R 1 9 1 4

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59A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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60 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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61A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

V

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Page 30: Conto: A Pequena Sereia ORIGINAL E COMPLETO!

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apesar da sensaccedilatildeo de estar pisando em facas afiadas cada vez que seupeacute tocava o solo O priacutencipe disse que ela nunca deveria deixaacute-lo eela teve permissatildeo para dormir do lado de fora de sua porta em umaalmofada de veludo

O priacutencipe ordenou produzir para ela um traje de amazonapara que pudessem andar a cavalo Cavalgaram juntos por florestas

perfumadas onde ramos verdes roccedilavam seus ombros e passarinhoscantavam em meio agraves folhas frescas Ela subiu com o priacutencipe ao topodas altas montanhas e embora seus delicados peacutes sangrassem e todospudessem notar o sangue ela apenas sorria e acompanhava o priacutencipeateacute onde podiam ver as nuvens abaixo deles parecendo um bando depaacutessaros que viajam para terras distantes

No palaacutecio do priacutencipe quando todos dormiam ela desciaa escadaria de maacutermore e ia refrescar os peacutes ardentes na aacutegua friado mar E entatildeo pensava nos que estavam laacute embaixo nas profun-dezas Uma noite suas irmatildes subiram de braccedilos dados cantando

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melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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59A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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60 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

H E L E N S T R A T T O N

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61A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

V

Adquir coleccedilatilde complet co ai d 30 contooriginai sand cupo GRIMM10 ( brinde) e

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Page 31: Conto: A Pequena Sereia ORIGINAL E COMPLETO!

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53A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

melancolicamente enquanto flutuavam sobre a aacutegua Acenou paraelas que a reconheceram e lhes contaram o quatildeo infelizes havia feito

a todos Depois disso passaram a visitaacute-la todas as noites e uma vezela viu ao longe sua velha avoacute que natildeo vinha agrave superfiacutecie do mar haviamuitos anos e tambeacutem o velho rei do mar com sua coroa na cabeccedila Ambos estenderam as matildeos para ela mas natildeo se aventuraram tatildeoperto da costa como as suas irmatildes

Com o tempo ela foi se tornando mais estimada para o priacuten-

cipe Ele a amava como se ama uma pequena crianccedila pois jamais lheocorreu fazer dela sua rainha E no entanto ela precisava se tornarsua esposa pois do contraacuterio nunca receberia uma alma imortal e namanhatilde do casamento dele se dissolveria em espuma do mar

mdash Vocecirc gosta de mim mais do que a todos ndash os olhos da Pe-quena Sereia pareciam perguntar quando ele a tomava nos braccedilos ebeijava sua adoraacutevel fronte

mdash Sim vocecirc eacute muito preciosa para mim ndash dizia o priacutencipe ndash porter o coraccedilatildeo mais amaacutevel que todos E vocecirc eacute mais dedicada a mimque qualquer outra pessoa Vocecirc me lembra uma moccedila que conheciuma vez mas que provavelmente nunca verei de novo Eu estava emum naufraacutegio e as ondas lanccedilaram-me em terra firme perto de umtemplo sagrado onde vaacuterias jovens cumpriam seus deveres A mais

nova delas me encontrou na praia e salvou minha vida Eu a vi apenasduas vezes Ela eacute a uacutenica no mundo a quem eu poderia amar Poreacutemvocecirc eacute tatildeo parecida com ela que quase tirei a imagem dela da minhamente Ela pertence ao templo sagrado e minha boa fortuna enviouvocecirc para mim Nunca nos separaremos

ldquoAh mal sabe ele que fui eu quem lhe salvei a vidardquo ndash pensou aPequena Sereia ldquoCarreguei-o pelo mar ateacute o templo na floresta e es-

perei na espuma que algueacutem viesse ajudaacute-lo Vi a bonita jovem que eleama mais do que a mimrdquo ndash e suspirou profundamente pois natildeo sabiaderramar laacutegrimas ldquoEle diz que a menina pertence ao templo sagradoe que por isso nunca retornaraacute ao mundo Eles nunca se encontraratildeo

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54 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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55A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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56 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

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novamente Eu estou ao seu lado e vejo-o todos os dias Eu vou cuidardele amaacute-lo e dar minha vida por elerdquo

Natildeo muito tempo depois houve um rumor de que o priacutencipese casaria e que a esposa seria a bela filha de um rei vizinho e porisso ele estava equipando um soberbo navio O priacutencipe ia fazeruma visita a um reino vizinho ndash era assim que diziam dando a en-tender que estava indo ver a noiva Ele tinha uma grande comitivamas a Pequena Sereia sacudia a cabeccedila e ria Conhecia os pensa-mentos do priacutencipe muito melhor do que qualquer outra pessoa

mdash Eu tenho que ir ndash ele disse a ela mdash Tenho de visitar essaprincesa porque meus pais insistem nisso Mas eles natildeo podem meforccedilar a trazecirc-la para caacute como minha esposa Nunca poderia amaacute-laEla natildeo eacute bela como a moccedila do templo a quem vocecirc se assemelha Seeu fosse forccedilado a escolher uma noiva preferiria escolher vocecirc minhaquerida mudinha com seus olhos expressivos

Entatildeo beijava a boca rosada da sereia brincava com seu longocabelo e pousava sua cabeccedila contra seu coraccedilatildeo fazendo-a sonhar coma felicidade humana e uma alma imortal

mdash Vocecirc natildeo tem medo do mar natildeo eacute minha querida mudinhandash ele perguntou no conveacutes do esplecircndido navio que os transportariaao reino vizinho E ele lhe falou das poderosas tempestades e de cal-marias dos estranhos peixes das profundezas e do que os mergulha-dores tinham visto laacute embaixo Ela sorria agraves histoacuterias dele pois sabiamelhor do qualquer outra pessoa das maravilhas do fundo do mar

Agrave noite quando havia lua sem nuvens e todos estavam dor-mindo exceto o timoneiro em seu leme a Pequena Sereia sentava-se junto na amurada do navio olhando para baixo atraveacutes da aacutegua claraTinha a impressatildeo de poder ver o palaacutecio do pai com sua velha avoacute

postada no alto dele com a coroa de prata na cabeccedila tentando en-xergar por entre a raacutepida corrente na quilha do navio Em seguidasuas irmatildes apareceram das ondas e a fitavam com olhos cheios detristeza agitando suas matildeos brancas Acenava e sorria para elas e

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teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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59A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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60 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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61A P E Q U E N A S E R E I A | H A N S C H R I S T I A N A N D E R S E N

se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

V

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teria gostado de lhes dizer que estava feliz e que tudo ia bem para elaMas o grumete surgiu exatamente naquele instante e as irmatildes mer-

gulharam fazendo crer ao marinheiro que a coisa branca que vira eraapenas espuma na aacutegua

Na manhatilde seguinte o navio entrou no porto da magniacutefica ca-pital do rei vizinho Os sinos das igrejas estavam tocando e das torrespodia-se ouvir o toque de trompetes Soldados saudaram com relu-zentes baionetas e bandeiras coloridas Todos os dias havia festejo

Bailes e espetaacuteculos se sucederam mas a princesa ainda natildeo tinhaaparecido As pessoas diziam que ela estava sendo criada e educadanum templo sagrado onde estava aprendendo todas as virtudes reaisFinalmente ela chegou

A Pequena Sereia estava ansiosa para ver a beleza dela e teve queadmitir que nunca vira pessoa mais encantadora Sua pele era clara edelicada e por traacutes dos ciacutelios longos e escuros seus olhos azuis sorri-

dentes brilhavam com muita sinceridademdash Eacute vocecirc ndash disse o priacutencipe mdash Vocecirc eacute aquela que me salvou

quando estava estendido na praia semimortoE estreitou nos braccedilos sua noiva de face coradamdash Oacute estou muito feliz ndash ele disse agrave Pequena Sereia mdash Meu

desejo mais caro mais do que eu ousava esperar foi satisfeito Vocecirc

compartilharaacute da minha felicidade porque eacute mais devotada a mimdo que ningueacutem A Pequena Sereia beijou a matildeo dele e sentiu como se seu coraccedilatildeo

estivesse partido O dia do casamento dele significaria a sua morte eela se transformaria em espuma nas ondas do oceano

Todos os sinos das igrejas repicavam enquanto os arautos percor-riam as ruas para proclamar o noivado Oacuteleo perfumado queimava em

preciosas lacircmpadas de prata em cada altar O padre balanccedilava o incen-saacuterio enquanto o noivo e a noiva uniam as matildeos e recebiam a becircnccedilatildeodo bispo Vestida de seda e ouro a Pequena Sereia segurava a cauda danoiva mas seus ouvidos nunca tinham ouvido aquela muacutesica festiva

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

tava junto ao seu leme A Pequena Sereia inclinou-se com seus braccedilosbrancos na amurada e olhou para o leste em busca do sinal da roacuteseaaurora O primeiro raio do sol ela sabia traria sua morte De repenteviu suas irmatildes emergindo Estavam tatildeo paacutelidas como ela proacutepria mas

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seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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60 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

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e seus olhos nunca tinham visto os ritos sagrados Ela pensava emsua uacuteltima noite na terra e em tudo que havia perdido neste mundo

Na mesma noite os noivos embarcaram no navio Os canhotildeestroavam as bandeiras brandiam e no centro do navio fora erguidauma suntuosa tenda de puacuterpura e ouro Estava repleta de luxuosasalmofadas para os receacutem-casados que deveriam dormir ali naquelanoite fresca e calma As velas inflaram com a brisa e o navio deslizouleve e suavemente sobre os mares claros

Quando escureceu acenderam lanternas de vaacuterias cores e osmarinheiros danccedilaram alegremente no conveacutes A Pequena Sereia natildeopocircde deixar de pensar naquela primeira vez em que tinha emergidodo mar e contemplado uma cena de festejos jubilosos igual a esta Eagora ela entrou na danccedila desviando e precipitando-se com a leveza deuma andorinha acuada Clamores de admiraccedilatildeo a cumprimentaramde todos os cantos Nunca antes ela danccedilara com tanta elegacircncia Era

como se facas afiadas estivessem cortando seus delicados peacutes mas elanatildeo sentia nada pois a ferida em seu coraccedilatildeo era muito mais dolorosaEla sabia que aquela era a uacuteltima noite que veria o priacutencipe por quemabandonara sua famiacutelia e seu lar sacrificara sua linda voz e sofrerahoras de agonia sem que ele suspeitasse de nada Era a uacuteltima noite emque respiraria o mesmo ar que ele ou contemplaria o mar profundo

e o ceacuteu estrelado Uma noite eterna sem pensamentos ou sonhosaguardava por ela que natildeo tinha alma e nunca ganharia uma Tudoera regozijo e diversatildeo a bordo ateacute muito depois da meia-noite Ela riue danccedilou com os outros embora em seu coraccedilatildeo ruminasse a morteO priacutencipe beijava sua adoraacutevel noiva que brincava com seu cabeloescuro e de braccedilos dados os dois se retiraram para a magniacutefica tenda

O navio estava tranquilo e silencioso Apenas o timoneiro es-

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seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

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No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

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seus longos e belos cabelos natildeo mais ondulavam ao vento ndash foramsido cortados

mdash Demos nosso cabelo agrave feiticeira ndash disseram elas mdash para quenos ajudasse a salvaacute-la da morte que a espera esta noite Ela nos deuum punhal veja aqui estaacute Vecirc como eacute afiado Antes do nascer dosol vocecirc tem de cravaacute-lo no coraccedilatildeo do priacutencipe Entatildeo quando osangue morno dele tocar seus peacutes eles se uniratildeo e se transformaratildeonuma cauda de peixe e vocecirc seraacute sereia de novo Poderaacute voltar conoscopara a aacutegua e viver seus trezentos anos antes de ser transformada emespuma do mar salgado Apresse-se Ou ele ou vocecirc morreraacute antes doamanhecer Nossa velha avoacute tem sofrido tanto que seu cabelo brancotem caiacutedo como os nossos sob a tesoura da feiticeira Mate o priacutencipee volte para noacutes Mas natildeo demore veja as estrias vermelhas no ceacuteuEm poucos minutos o sol despontaraacute e entatildeo vocecirc morreraacute ndash comum suspiro estranho e profundo elas submergiram

A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

punhal ndash e entatildeo ela o lanccedilou para longe nas ondas A aacutegua ficou ver-melha onde caiu e algo parecido com gotas de sangue ressumou delaCom um uacuteltimo olhar para o priacutencipe os olhos esmaecidos ela se jogou do navio para o mar e sentiu seu corpo se dissolver em espuma

E logo o sol comeccedilou a subir do mar Seus raios caacutelidos e suavescaiacuteram sobre a espuma fria como a morte mas a Pequena Sereia natildeotinha a sensaccedilatildeo de estar morrendo Ela viu o sol esplendoroso e

pairando ao seu redor centenas de criaturas adoraacuteveis ndash podia per-feitamente atraveacutes delas ver as velas brancas do navio e as nuvensrosadas no ceacuteu E a voz delas era a voz da melodia embora eteacuterea de-mais para ser ouvida por ouvidos mortais assim como nenhum olho

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60 C O N T O S D E F A D A S E M S U A S V E R S Otilde E S O R I G I N A I S

mortal poderia contemplaacute-las Natildeo tinham asas mas sua leveza asfazia flutuar no ar A Pequena Sereia viu que tinha um corpo comoo delas e que estava se elevando cada vez mais acima da espuma

mdash Onde estou ndash perguntou e sua voz soava como a dos outrosseres mais eteacuterea do que qualquer muacutesica terrena podia soar

mdash Entre as filhas do ar ndash responderam as outras mdash Uma sereia

natildeo possui uma alma imortal e jamais pode ter uma a menos que con-quiste o amor de um ser humano A eternidade de uma sereia dependede um poder que independe dela As filhas do ar tampouco tecircm umaalma eterna mas podem conseguir uma atraveacutes de suas boas accedilotildeesDevemos voar para os paiacuteses quentes onde o ar pestilento significamorte para os seres humanos Devemos levar brisas frescas Devemosespalhar a fragracircncia das flores atraveacutes do ar e enviar consolo e cura

Depois que tivermos praticado todo o bem que podemos em trezentosanos conquistaremos uma alma imortal e teremos participaccedilatildeo na fe-licidade eterna da humanidade Vocecirc pobrezinha tentou com todo oseu coraccedilatildeo fazer o que estamos fazendo Vocecirc sofreu e perseverou e

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se elevou ao mundo dos espiacuteritos do ar Agora com trezentos anos deboas accedilotildees vocecirc tambeacutem pode ganhar uma alma imortal

A Pequena Sereia levantou seus braccedilos de cristal para o dom deDeus e pela primeira vez conheceu o gosto das laacutegrimas

No navio havia muito alvoroccedilo e sons de vida por todo lado A Pequena Sereia viu o priacutencipe e a bela noiva agrave sua procura Comenorme melancolia eles fitavam a espuma perolada como se sou-bessem que ela se precipitara nas ondas Invisiacutevel ela beijou a fronteda noiva sorriu para o priacutencipe e em seguida com as outras filhas doar subiu para uma nuvem rosa-avermelhada que atravessava o ceacuteu

mdash Assim flutuaremos por trezentos anos ateacute finalmente che-garmos ao reino celestial

mdash E podemos alcanccedilaacute-lo ainda mais cedo ndash sussurrou uma dassuas companheiras mdash Invisiacuteveis flutuamos para dentro de lares hu-manos em que haacute crianccedilas e para cada dia que encontramos uma

boa crianccedila que faz merecer o amor dos pais Deus abrevia nossotempo de sofrimento A crianccedila nunca percebe quando voamos emseu quarto e sorrimos com alegria e assim um ano eacute reduzido dos tre-zentos Mas quando vemos uma crianccedila perversa ou maldosa entatildeoderramamos laacutegrimas de dor e cada laacutegrima acrescenta mais um diaao nosso tempo de provaccedilatildeo

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A Pequena Sereia afastou a cortina puacuterpura da tenda e viu abela noiva adormecida com a cabeccedila apoiada no peito do priacutencipeInclinando-se ela beijou a nobre fronte dele e depois olhou para oceacuteu onde o rubor da aurora se tornava mais e mais luminoso Fitouo punhal afiado em sua matildeo e novamente fixou os olhos no priacutencipeque sussurrou o nome da noiva em seus sonhos ndash soacute ela estava em seuspensamentos Levantou as matildeos que tremiam enquanto empunhava o

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