construindo a parentalidade

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Online Rev Latino-am Enfermagem 2008 maio-junho; 16(3) www.eerp.usp.br/rlae TORNAR-SE MÃE DE CRIANÇA COM CÂNCER: CONSTRUINDO A PARENTALIDADE 1 Patrícia Luciana Moreira 2 Margareth Angelo 3 Este estudo, guiado pelo Interacionismo Interpretativo, teve como objetivo compreender a experiência de tornar-se mãe de uma criança com câncer. Sete mães, cujos filhos se encontravam em tratamento de câncer, participaram de entrevistas semi-estruturadas. Os resultados revelaram que o papel de mãe é construído numa conjugação entre dois temas: VIVER O TEMPO DA DOENÇA, representando um olhar da mãe para si, vivendo uma situação de incertezas inerentes à doença e necessidade de afastar a ameaça de morte; VIVER O TEMPO DE LUTA PELA VIDA DA CRIANÇA, representando a dimensão dos comportamentos da mãe ao construir seu papel. Os temas articulados às epifanias permitiram identificar inter-relação entre a parentalidade e a temporalidade, na qual o tempo está manifestado nas dimensões da construção do papel da mãe. DESCRITORES: mães; relações mãe-filho; oncologia; enfermagem pediátrica BECOMING A MOTHER OF A CHILD WITH CANCER: BUILDING MOTHERHOOD The present study, which was conducted using the Interpretive Interactionism method, had the objective of understanding the experience of becoming a mother of a child with cancer. Seven mothers, whose children were undergoing cancer treatment, took part in semi-structured interviews. The results showed that mothers’ role are built in a process that implies the interaction between two themes: LIVING THE TIME OF THE ILLNESS, in which mothers concentrates in themselves, continuously permeated by the uncertainties inherent in the disease, and the need to remove the threats of the child’s death; and LIVING A TIME OF STRUGGLE FOR THE CHILDREN’S LIFE, which represents the dimension of mothers’ behavior in developing their new role. The articulated theme and the epiphanies allowed identifying the connection between parenthood and temporality, in which the time comes into the dimensions of the development of the mother’s role. DESCRIPTORS: mothers; mother-child relations; medical oncology; pediatric nursing SER MADRE DE UN NIÑO CON CÁNCER: CONSTRUYENDO LA RELACIÓN Este estudio, guiado por el Interaccionismo Interpretativo, tuvo como objetivo comprender la experiencia de ser madre de un niño con cáncer. Siete madres cuyos hijos se encontraban en tratamiento de cáncer participaron de entrevistas semiestructuradas. Los resultados revelaron que el papel de madre es construido en una conjugación entre dos temas: VIVIR EL TIEMPO DE LA ENFERMEDAD, que representa una inspección de la madre consigo misma y vivir una situación de incertidumbre inherente a la enfermedad y la necesidad de alejar la amenaza de la muerte; VIVIR EL TIEMPO DE LUCHA POR LA VIDA DEL NIÑO, que representa la dimensión de los comportamientos de la madre para construir su papel. Los temas articulados a las epifanías permitieron identificar una interrelación entre el parentesco y la temporalidad, en la cual el tiempo se manifiesta en las dimensiones de la construcción del papel de madre. DESCRIPTORES: madres; relaciones madre-hijo; oncología médica; enfermería pediátrica Artigo Original 1 Artigo extraído de Dissertação de Mestrado; 2 Enfermeira, Mestre em Enfermagem, e-mail: [email protected]; 3 Enfermeira, Professor Titular, e- mail: [email protected]. Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, Brasil

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  • OnlineRev Latino-am Enfermagem 2008 maio-junho; 16(3)www.eerp.usp.br/rlae

    TORNAR-SE ME DE CRIANA COM CNCER: CONSTRUINDO A PARENTALIDADE1

    Patrcia Luciana Moreira2

    Margareth Angelo3

    Este estudo, guiado pelo Interacionismo Interpretativo, teve como objetivo compreender a experincia

    de tornar-se me de uma criana com cncer. Sete mes, cujos filhos se encontravam em tratamento de

    cncer, participaram de entrevistas semi-estruturadas. Os resultados revelaram que o papel de me construdo

    numa conjugao entre dois temas: VIVER O TEMPO DA DOENA, representando um olhar da me para si,

    vivendo uma situao de incertezas inerentes doena e necessidade de afastar a ameaa de morte; VIVER

    O TEMPO DE LUTA PELA VIDA DA CRIANA, representando a dimenso dos comportamentos da me ao

    construir seu papel. Os temas articulados s epifanias permitiram identificar inter-relao entre a parentalidade

    e a temporalidade, na qual o tempo est manifestado nas dimenses da construo do papel da me.

    DESCRITORES: mes; relaes me-filho; oncologia; enfermagem peditrica

    BECOMING A MOTHER OF A CHILD WITH CANCER: BUILDING MOTHERHOOD

    The present study, which was conducted using the Interpretive Interactionism method, had the objective

    of understanding the experience of becoming a mother of a child with cancer. Seven mothers, whose children

    were undergoing cancer treatment, took part in semi-structured interviews. The results showed that mothers

    role are built in a process that implies the interaction between two themes: LIVING THE TIME OF THE ILLNESS,

    in which mothers concentrates in themselves, continuously permeated by the uncertainties inherent in the

    disease, and the need to remove the threats of the childs death; and LIVING A TIME OF STRUGGLE FOR THE

    CHILDRENS LIFE, which represents the dimension of mothers behavior in developing their new role. The

    articulated theme and the epiphanies allowed identifying the connection between parenthood and temporality,

    in which the time comes into the dimensions of the development of the mothers role.

    DESCRIPTORS: mothers; mother-child relations; medical oncology; pediatric nursing

    SER MADRE DE UN NIO CON CNCER: CONSTRUYENDO LA RELACIN

    Este estudio, guiado por el Interaccionismo Interpretativo, tuvo como objetivo comprender la experiencia

    de ser madre de un nio con cncer. Siete madres cuyos hijos se encontraban en tratamiento de cncer

    participaron de entrevistas semiestructuradas. Los resultados revelaron que el papel de madre es construido

    en una conjugacin entre dos temas: VIVIR EL TIEMPO DE LA ENFERMEDAD, que representa una inspeccin de

    la madre consigo misma y vivir una situacin de incertidumbre inherente a la enfermedad y la necesidad de

    alejar la amenaza de la muerte; VIVIR EL TIEMPO DE LUCHA POR LA VIDA DEL NIO, que representa la

    dimensin de los comportamientos de la madre para construir su papel. Los temas articulados a las epifanas

    permitieron identificar una interrelacin entre el parentesco y la temporalidad, en la cual el tiempo se manifiesta

    en las dimensiones de la construccin del papel de madre.

    DESCRIPTORES: madres; relaciones madre-hijo; oncologa mdica; enfermera peditrica

    Artigo Original

    1 Artigo extrado de Dissertao de Mestrado; 2 Enfermeira, Mestre em Enfermagem, e-mail: [email protected]; 3 Enfermeira, Professor Titular, e-

    mail: [email protected]. Escola de Enfermagem da Universidade de So Paulo, Brasil

  • OnlineRev Latino-am Enfermagem 2008 maio-junho; 16(3)www.eerp.usp.br/rlae

    INTRODUO

    O cncer em crianas e adolescentes

    corresponde a um grupo de doenas que tm em

    comum a proliferao de clulas de forma

    descontrolada e que, se diagnosticados precocemente

    e tratados em centros especializados, apresentam

    uma perspectiva de cura de aproximadamente 80%.

    Devido complexidade da doena e tratamento, a

    vida da criana e sua famlia passam por diversas

    transformaes, sendo necessrio se adaptarem a

    uma nova rotina e exigncias que passam a fazer

    parte do cotidiano familiar(1).

    Em muitos estudos na rea de Oncologia

    Peditrica, a me identificada como a principal fonte

    de suporte e quem geralmente assume o cuidado da

    criana na situao de doena. A alterao na

    biografia e a transio de ser me de uma criana

    que ela conhece como saudvel para ser me de uma

    criana com cncer requer uma redefinio da auto-

    identidade e do papel de me aps a confirmao do

    diagnstico do filho(2).

    A me considerada o eixo da estrutura

    familiar, e sob o seu controle que esto a criao e

    educao dos filhos, o cuidado com a casa e com a

    sade dos membros da famlia. O papel de cuidadora

    uma expectativa que se tem dela e que ela tem de

    si mesma. Para cumprir este papel, a me acaba

    criando estratgias, como a adequao do horrio

    de trabalho e a desistncia do emprego em favor das

    rotinas domsticas e das demandas dos filhos(3).

    A parentalidade, no contexto do cncer

    infantil, justificada pela relevncia da compreenso

    das dimenses que envolvem a experincia de ser

    me de uma criana com cncer. A parentalidade

    um processo complexo, no somente produto do

    parentesco biolgico, mas do processo de tornar-se

    pai e me(4). De acordo com a literatura, ser me

    fazer o papel de me, um papel multidimensional que

    abarca dimenses na relao familiar como

    proximidade, suporte, monitorizao, comunicao e

    aceitao(4-5).

    A parentalidade tambm pode ser definida

    como a habilidade de oferecer cuidado e proporcionar

    um ambiente que promova um timo crescimento e

    desenvolvimento a qualquer ser humano. O termo

    famlia pode ser usado amplamente como uma

    referncia ao ambiente social no qual a parentalidade

    conduzida(6).

    As abordagens tradicionais investigam os

    aspectos psicossociais da doena na infncia

    representando a parentalidade em termos de como

    os pais se ajustam doena de sua criana(2). No que

    se refere a experincia da me em vivenciar o cncer

    do filho, a perspectiva do cuidado requer um

    pensamento que, antes de focalizar no sofrimento

    psquico das mes, pense em como elas assumem a

    responsabilidade de ser me frente doena da

    criana(7).

    Assim, considerando as questes que

    envolvem o ser me de uma criana com cncer, as

    perguntas de pesquisa que guiaram este estudo

    foram: Quais seriam, no mbito do cncer infantil, as

    dimenses do ser me na experincia do diagnstico

    de cncer do filho? Quais os significados que a me

    atribui doena do filho? Como a me vivencia o seu

    papel de me frente a esta situao?

    Acreditamos que compreender a experincia

    de ser me de uma criana com cncer, os significados

    atribudos por ela doena, ao tratamento e ao

    impacto no cotidiano familiar, prosseguindo sua

    caminhada como me, so fundamentais para o

    cuidado. Esta compreenso pode nos fornecer

    elementos para direcionar mais precisamente aes

    de apoio e de suporte me enquanto pessoa e sujeito

    ativo neste processo. Assim, este estudo tem como

    objetivo compreender a experincia de tornar-se me

    de uma criana com cncer.

    REFERENCIAL TERICO E METODOLGICO

    O Interacionismo Simblico configurou-se

    como a perspectiva terica deste trabalho, cujas idias

    centrais baseiam-se no processo de interao, no qual

    os indivduos so ativos e aprendem a dar significado

    s coisas, valorizando o significado que o ser humano

    atribui s suas experincias. O significado das coisas

    resulta ou emerge da interao social que os seres

    humanos estabelecem uns com os outros(8). Como

    referencial metodolgico, escolhemos o

    Interacionismo Interpretativo, cujo objetivo obter

    descries densas e detalhadas das vivncias

    biograficamente importantes que alteraram os

    significados e a forma de agir das pessoas. Estas

    experincias de vida significativamente importantes

    recebem o nome de epifanias, momentos

    interacionais que tm influncia direta na forma como

    o indivduo ir interagir com e em seu contexto. A

    Tornar-se me de criana com...Moreira PL, Angelo M.

  • OnlineRev Latino-am Enfermagem 2008 maio-junho; 16(3)www.eerp.usp.br/rlae

    interpretao um processo que segue em busca do

    significado de um evento ou experincia(9).

    Considerando a me na situao de cncer do filho

    interagindo com outras pessoas, eventos e consigo

    mesma, acreditamos que a perspectiva interacionista,

    atravs do processo interpretativo, permite conhecer

    e compreender a realidade de ser me de uma criana

    com cncer definindo-se e compondo sua histria.

    Aspectos ticos: Foram observados todos os

    aspectos presentes na Resoluo CNS 196/96. Antes

    de iniciarmos o processo de coleta de dados, o projeto

    foi submetido apreciao e obteve aprovao do

    Comit de tica em Pesquisa da Escola de

    Enfermagem da Universidade de So Paulo. Aps,

    foi solicitada a autorizao da instituio do Instituto

    de Oncologia Peditrica - IOP, na cidade de So Paulo,

    que permitiu a coleta de dados no local. A aceitao

    dos participantes em compartilhar sua histria foi

    oficializada atravs da assinatura do Termo de

    Consentimento Livre e Esclarecido.

    Participantes do estudo: Participaram do

    estudo sete mes de crianas que estavam em

    tratamento oncolgico. As mes tinham entre 24 e

    41 anos, sendo seis delas casadas e uma viva. Todas

    elas tinham seus filhos em tratamento quimioterpico

    no momento da entrevista, e eram elas o membro

    da famlia quem acompanhava a criana durante o

    processo de tratamento. Trs mes eram de

    provenientes de outros estados. Duas mes

    desenvolviam atividades profissionais fora do lar e

    uma no prprio domiclio. As demais abandonaram

    suas atividades para permanecerem junto criana

    durante o tratamento. O nmero de mes participantes

    no foi previamente determinado. A coleta de dados

    foi realizada at o momento em que percebemos a

    ausncia de dados novos e o desenvolvimento e

    densidades das categorias foram alcanadas.

    Coleta de dados: A coleta de dados foi

    orientada pelo mtodo biogrfico e ocorreu no perodo

    entre dezembro de 2005 e abril de 2006. A estratgia

    para obteno dos dados foi a entrevista do tipo semi-

    estruturada, orientada pela questo norteadora: Por

    favor, conte para mim sua estria de viver a

    experincia de ser me de uma criana com cncer.

    As narrativas foram gravadas e transcritas na ntegra

    logo aps a realizao da entrevista.

    Anlise dos dados: Para a anlise dos dados,

    seguiram-se os passos preconizados pelo

    Interacionismo Interpretativo(9). As fases deste

    mtodo so: Delimitao da questo em estudo;

    desconstruo e anlise crtica das concepes do

    fenmeno; apreenso do fenmeno, localizado e

    situado no contexto; reduo do fenmeno, isolando-

    o do contexto no qual aconteceu atravs da localizao

    e isolamento de frases chave; construo do

    fenmeno, articulando novamente os dados atravs

    dos significados que emergiram na fase anterior;

    contextualizao, recolocando o fenmeno no

    contexto, interpretando-lhe e dando significado.

    Assim, aps a transcrio das entrevistas e

    leitura das narrativas biogrficas das mes, as

    vivncias relatadas foram quebradas em pequenas

    frases, possibilitando a identificao das unidades

    experienciais. A partir de um processo minucioso de

    compreenso da carga semntica e das evidncias

    contidas nas narrativas, as unidades experienciais

    foram comparadas umas s outras de acordo com o

    seu significado na experincia, pelas suas

    similaridades e divergncias. As unidades conectadas

    pelo mesmo significado foram agrupadas, permitindo

    a identificao de categorias e suas subcategorias. A

    comparao e integrao das categorias articuladas

    na experincia possibilitaram a identificao dos

    temas e seus subtemas, que revelaram os

    significados e as vivncias desveladas nos universos

    que compe a experincia. Por fim, ao

    compreendermos como a construo do papel de me

    emerge na experincia de tornar-se me de uma

    criana com cncer, foi possvel identificar os

    momentos relembrados de forma intensa. Esses

    momentos regados de sentimentos e que jamais sero

    esquecidos so chamados de momentos reveladores,

    ou epifanias, que trazem um redirecionamento na

    vida da me e na construo do seu papel na situao

    de cncer do filho.

    RESULTADOS

    A compreenso e anlise das categorias e

    subcategorias permitiu a identificao de dois temas:

    VIVER O TEMPO DA DOENA, que composto pelos

    subtemas DESCOBRIR-SE ME DE UMA CRIANA

    COM CNCER e ARRISCAR-SE COM O TRATAMENTO,

    e VIVER UM TEMPO DE LUTA PELA VIDA DA CRIANA,

    que composto pelos subtemas PREPARAR-SE PARA

    UM TEMPO DE BATALHA e LUTAR PELA VIDA DA

    CRIANA.

    Tornar-se me de criana com...Moreira PL, Angelo M.

  • OnlineRev Latino-am Enfermagem 2008 maio-junho; 16(3)www.eerp.usp.br/rlae

    VIVER O TEMPO DA DOENA: Revela uma

    conversa da me consigo mesma, um olhar

    direcionado para si enquanto me. O trabalho interior

    da me nesta nova condio de vida comea pela

    sua aceitao de que o filho tem cncer e

    continuamente permeado pelas incertezas inerentes

    doena e necessidade de afastar a idia de morte

    da criana. DESCOBRIR-SE ME DE UMA CRIANA

    COM CNCER Viver o tempo do diagnstico,

    vivenciando uma mudana inesperada e deparando-

    se com a ameaa que a doena representa para a

    vida do filho. Apesar disso, a me tenta recuperar o

    equilbrio para dar incio difcil trajetria do cncer.

    Descobrir-se me de uma criana com cncer No

    querer perder tempo, revelando a necessidade de

    agir rpido a fim de afastar a possibilidade de perder

    sua criana. tambm Viver a incerteza do

    tratamento, que representa as dvidas da me sobre

    a doena, sobre como agir e cuidar do filho e do

    prprio futuro da criana. Neste tempo de descoberta,

    a me percebe que preciso Aceitar a idia de ser

    me de uma criana com cncer, adaptando-se nova

    situao e prosseguindo sua jornada.

    A, veio aquela coisa de diagnstico, de transferncia

    de um hospital pro outro e aqui, assim, tendo contato com outras

    mes que eu fui sabendo e me adaptando com a idia, de ser,

    me... Muitas crianas que hoje esto curadas e outras infelizmente

    no conseguem, mas a cada caso um caso. Mas pra mim assim,

    agora a gente est acostumando com a situao, mas no comeo,

    pra mim foi muito, super difcil, difcil at hoje, mas no comeo

    mais... Pra mim foi assim... (Me 6)

    VIVER O TEMPO DA DOENA um tempo de

    ARRISCAR-SE COM O TRATAMENTO, sendo essa a

    sua nica opo mediante a possibilidade de perder

    o filho. A me passa a Viver um tempo de temor, que

    representa um tempo de escurido, no qual o que

    acontecer no momento seguinte uma dvida.

    Arriscar-se com o tratamento Vivenciar uma

    sensao de impotncia, pois ao ver o filho sofrer, a

    me percebe que h coisas que gostaria de fazer

    para aliviar este sofrimento, mas que no esto ao

    seu alcance. Para que seja possvel viver o tempo da

    doena preciso Viver o tempo presente, tendo como

    foco o agora. Envolve uma deciso da me sobre

    como usar melhor o tempo que ela tem junto ao filho,

    sendo cada dia uma nova oportunidade para lutar.

    Ao mesmo tempo, preciso Acreditar que o tempo

    da doena vai acabar, que sua criana um dia estar

    a salvo da doena. A esperana de que vencero a

    doena a ncora para que ela no desanime,

    motivando suas decises como me.

    Por que por mais que voc veja uma escurido, esse

    tnel, vamos dizer assim, de coisas s ruins, de coisas que voc

    no tem esperana, que voc pode sim acreditar, que l no fim,

    por tudo que voc passar, mas l no fim sempre vai ter uma luz.

    E que essa luz vai ser de grandeza, vai trazer muita alegria, tudo

    aquilo que um dia voc achar que est perdido, que nada perdido,

    que basta voc buscar, voc confiar, voc crer, se entregar, que

    tudo vai vencer, que tudo pode. (Me 3)

    VIVER UM TEMPO DE LUTA PELA VIDA DA

    CRIANA: Revela a dimenso dos comportamentos

    da me que se expressam nas interaes consigo

    mesma, com a criana e com todos os elementos

    envolvidos na experincia de doena do seu filho,

    evidenciando a construo do seu papel de me de

    uma criana com cncer. Representa a busca da me

    em PREPARAR-SE PARA UM TEMPO DE BATALHA, um

    tempo difcil que a doena trouxe consigo. A me

    procura Conhecer o inimigo, ou seja, saber mais sobre

    o cncer, buscando elementos importantes para se

    fortalecer. Conforme vai conhecendo a doena, vai

    conhecendo tambm outras pessoas que a vivenciam,

    o que alimenta sua esperana e permite que ela

    perceba que no a nica a lutar. Preparar-se para

    um tempo de batalha um tempo de Fazer escolhas.

    A vida do filho e as novas demandas da doena

    passam a ser o foco de ateno e o que impulsiona

    todas as decises, exigindo uma reorganizao dos

    papis e redirecionando a vida. Sendo o filho a

    prioridade neste tempo de batalha, necessrio

    escolher um lugar seguro para o tratamento da

    criana, que se baseia, principalmente, na segurana

    que a instituio proporciona me, a criana e

    famlia.

    Porque eu sei da doena, a quer dizer, quando eu

    descobri, eu no pensei duas vezes, eu vir pra S.P., eu sabia que

    a minha filha menor estava bem, tem a minha me, tem as minhas

    irms, tem um monte de gente pra cuidar dela l (...) Quer dizer,

    eu s pensei no momento nela, no pensei no meu emprego que

    eu larguei, no pensei em nada, nada, nada... Minha nica idia

    era ela. O objetivo era ela, ir daqui com ela curada, eu acredito

    que ela j at esteja, no pensei, eu no me preocupei com meu

    emprego, no pensei mesmo. Tanto que quando eu vim pra c,

    eu soube que tinha casa de apoio. Quando eu vim pra c, o meu

    marido tava com medo: Tu louca, tu vai assim pra l, tu no

    sabe como a estrutura l. Eu olhei e disse: Olha, P., eu posso

    at ficar sentada l numa cadeira, a noite inteira do lado da minha

    filha, mas contanto que eu traga ela curada! Isso pra mim no

    problema nenhum! Quando eu cheguei aqui e eu vi toda essa

    estrutura, no era nada do que ele estava pensando, tanto que

    Tornar-se me de criana com...Moreira PL, Angelo M.

  • OnlineRev Latino-am Enfermagem 2008 maio-junho; 16(3)www.eerp.usp.br/rlae

    quando ele veio tambm, ele viu como a estrutura era boa, tinha

    casa de apoio se eu quisesse ficar...( Me 5)

    LUTAR PELA VIDA DA CRIANA representa

    os comportamentos da me ao estar junto criana

    a todo tempo e Vivenciar a batalha junto ao filho. A

    me busca acompanh-lo em todos os momentos da

    luta contra o cncer. A me procura estar prxima e

    disponvel para a criana em todos os momentos do

    tratamento, tornando-se me em tempo integral, sem

    descanso e vivendo em funo das necessidades do

    filho doente. Lutar pela vida da criana tambm

    Proteger o filho das ameaas que a doena ocasiona.

    O seu cuidado um cuidado especial, protegendo a

    integridade da criana e permitindo que ela continue

    vivendo sua histria apesar do cncer. Para proteger

    o filho, a me observa todos os detalhes, mesmo

    aqueles que antes da doena provavelmente

    passariam despercebidos. Ao lutar contra a doena,

    a me percebe que fundamental Ser suporte para

    a criana, que expressa uma srie de

    comportamentos da me visando preparar o filho para

    lutar contra o cncer. Isso significa no permitir que

    ele desanime, fortalecendo-o na batalha,

    proporcionando os subsdios necessrios para que ele

    possa enfrentar a doena e no se entregar, e cultivar

    a esperana de que tudo vai dar certo. A me conversa

    com a criana sobre o cncer e o tratamento, no

    mentindo ou escondendo os fatos, e estando atenta

    a como e quando falar sobre a doena. Para lutar, a

    me percebe que preciso Fortalecer-se na batalha.

    Ela busca foras para lutar na f em Deus e na

    esperana de um tempo sem a doena. A me

    assume a luta pela vida da criana, mantendo-se firme

    e acreditando que pode suportar todo aquele

    sofrimento. Ela sente que pode ultrapassar qualquer

    barreira para permanecer ao lado do filho, mas para

    isso, preciso cuidar de si e da famlia. Assim, ao

    vivenciar a luta pela vida do filho, protegendo e sendo

    suporte para ele, buscando se fortalecer e fortalecer

    a criana na luta contra a doena, a me capaz de

    Sentir-se mais me. Ela capaz de se doar ao filho,

    dando tudo de si mesma e ultrapassando qualquer

    obstculo para v-lo bem. Tudo que faz no por

    obrigao, mas pelo amor que sente como me

    daquela criana. O seu amor parece aumentar e ser

    mais forte do que antes da doena. este amor,

    somado ao desejo de no querer que seu tempo com

    a criana se acabe, que a faz agir e lutar junto ao

    filho.

    (...) Eu procuro assim, eu sou uma pessoa muito

    positiva, sempre pensando o melhor, sempre pensando que vai

    dar tudo certo. No vou te dizer que fcil, no fcil. Mas a luta

    grande, a gente tem que estar sempre com fora, at para dar

    fora pra eles, porque eles precisam. (...) Ento, quando eu contei

    pra T. o que ela tinha, eu falei pra ela assim, ela tinha sete anos,

    e eu falei: Filha, voc tem uma doena, no escondi nada, falei:

    voc tem um cncer, no to fcil de curar como uma gripe, a

    gripe muito mais fcil... S que ela d um pouquinho de trabalho,

    s que a gente vai cuidar e a gente vai vencer. (...) Realmente foi,

    foi um momento que eu acho at que eu me aproximei mais da T.

    Porque quando a criana est normal, a gente at d carinho, a

    gente conversa, a gente sempre foi muito amiga, mas quando

    est passando por uma situao assim, eu acho que a gente se

    aproxima mais... Ainda mais eu, estando aqui, meu tempo total

    pra ela! (...) A minha parte comea em sempre dar fora pra ela,

    tentar orientar ela no que for necessrio, esclarecer o que eu

    puder pra ela, e cuidar das coisas dela, da alimentao. Cuidar de

    mim tambm, porque eu tambm preciso (Me 7).

    Ao buscarmos compreender a experincia de

    ser me de uma criana com cncer percebemos que

    existe uma interligao entre a parentalidade e a

    temporalidade, ou seja, entre o tornar-se me e fazer

    o papel de me e o tempo, que se manifesta enquanto

    uma das essncias na construo deste papel. Assim,

    foi possvel identificar as seguintes epifanias:

    PERCEBER QUE SEU TEMPO COM A CRIANA EST

    AMEAADO: Ao receber o diagnstico de cncer do

    filho, a me percebe que no somente a vida da

    criana est ameaada pela doena, mas que o seu

    tempo como me desta criana tambm est sob

    perigo. A partir deste momento se desencadeiam

    todas as tomadas de deciso e uma srie de aes

    da me a fim de que seu tempo como me daquela

    criana no se acabe.

    DECIDIR QUE ESTE O TEMPO DA CRIANA:

    Ao perceber que a vida do seu filho est sob ameaa,

    a me se depara com uma situao na qual

    fundamental estabelecer uma prioridade para sua

    vida, que ser o foco de suas preocupaes e em

    torno da qual todas as suas decises sero tomadas.

    Decidir que este o tempo da criana decidir que

    ela ser o que h de mais importante na sua vida e

    na vida da sua famlia, para que todos se preparem e

    no se percam para o tempo difcil que est por vir.

    LUTAR PELA CRIANA MOVIDA POR AMOR:

    A me acredita que lutar pela vida da criana junto

    dela o seu dever como me. Ela est na linha de

    frente, o que significa assumir a luta junto dele, movida

    pelo seu amor de me, como se esta luta tambm

    Tornar-se me de criana com...Moreira PL, Angelo M.

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    fosse sua, vivenciando a experincia em toda sua

    plenitude. Este um tempo de sacrifcio, em que a

    me busca fazer tudo o que puder fazer e estiver ao

    seu alcance para manter a criana o mais longe

    possvel do perigo que a doena representa.

    A forma como esses momentos reveladores se

    expressam na experincia de ser me de uma criana

    com cncer est representada na figura a seguir:

    Figura 1 - Tornar-se me de criana com cncer:

    construindo a parentalidade

    DISCUSSO

    A parentalidade foi a ncora na busca da

    compreenso de ser me de uma criana com cncer,

    considerando que ser me fazer o papel de me.

    Percebemos que o tempo se manifesta como uma

    das essncias da parentalidade. O tempo e a

    parentalidade se expressam nos comportamentos da

    me, na tomada de deciso, na construo do seu

    papel e no significado que ela atribui doena e ao

    prprio ser me. A temporalidade est presente na

    ameaa que a doena representa ao seu tempo com

    a criana; nas tomadas de deciso e reorganizao

    da me considerando o prprio tempo da doena e

    da criana; no tempo em que o foco da sua vida

    lutar pela vida do filho, cumprindo o papel que ela

    acredita ser seu.

    A essncia da maternalidade se expressou

    nos fatores contextuais como a doena ameaadora

    de vida e no compromisso da me de cuidar de seus

    filhos. Para as mes cuidadoras de filhos que

    morreram por AIDS, cuidar de seus filhos foi o que

    elas tinham que fazer enquanto mes, ouvindo e

    respondendo ao chamado da conscincia de fazer o

    que elas acreditavam que cabia a elas como me,

    mulher e ser humano(10). O cuidado protetor permeia

    todas as aes da me com a criana, e para

    proporcion-lo, a me sente a necessidade de ter

    controle acerca da situao(11). Em nosso estudo, esse

    chamado de conscincia vivenciado pela me ao

    lutar pela vida da criana. O que cabe a ela como

    me est presente nas suas aes, no seu papel de

    me desempenhado pelo significado que d ao ser

    me de uma criana com cncer. Proteger o filho

    envolve tambm uma vigilncia intensa, e o nvel do

    cuidado protetor mediado pelo tempo. No presente

    estudo, a me, ao lutar pela vida da criana

    desempenhando seu papel de me, ela busca a todo

    o momento proteger o filho de forma a afast-lo de

    qualquer agravo sua condio e da possibilidade

    da perda. Na inter-relao entre a parentalidade e o

    tempo, proteger o filho uma estratgia para que o

    seu tempo como me no se acabe.

    Tornar-se me de uma criana com cncer

    pode ser considerada uma experincia de transio.

    A transio na vida das pessoas pode ser planejada

    ou acontecer inesperadamente. As transies da vida

    podem ser diversas e tm sido descritas como os

    caminhos pelos quais as pessoas enfrentam

    mudanas(12). A experincia de transio pode

    acontecer em decorrncia de mudanas na situao

    de sade e doena nos indivduos, sendo considerada

    complexa e multidimensional, e dentre suas

    propriedades est o tempo. A transio a extenso

    do tempo que se inicia com os primeiros sinais de

    uma mudana, flui atravs de um perodo de

    instabilidade, confuso e angstia e termina com um

    novo comeo ou um perodo de estabilidade(13).

    Viver o diagnstico de cncer do filho uma

    experincia repentina e no planejada, assim como

    o papel de me, que no fixo e que precisa ser

    revisto, construindo-se um novo papel em funo do

    inesperado. A experincia de ser me de uma criana

    com cncer uma ruptura na sua biografia. O tempo

    de vivenciar o diagnstico do filho e se descobrir me

    de uma criana com cncer permeado pela

    instabilidade de uma vida invadida pela doena. Com

    o tempo, a me decide se arriscar com o tratamento

    compreendendo que este o tempo da criana e de

    lutar pela sua vida. Tudo que est ao seu alcance

    feito para afastar a ameaa de morte representada

    pela doena.

    luz dos pressupostos do Interacionismo

    Simblico, compreendemos que o papel da me

    um papel multidimensional e que se expressa nos

    comportamentos da me com o objetivo de afastar a

    Viv

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    tem

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    luta

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    a cr

    ian

    a

    Arriscar-se com o tratamento

    Perceber que seu tempo com a criana est ameaado

    Descobrir-se me de uma criana com cncer

    Preparar-se para um tempo de batalha

    Lutar pela vida da criana

    Decidir este o tempoda criana

    Lutar pela criana movidapor amor

    PA

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    IDA

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    Tornar-se me de criana com...Moreira PL, Angelo M.

  • OnlineRev Latino-am Enfermagem 2008 maio-junho; 16(3)www.eerp.usp.br/rlae

    possibilidade de perder a sua criana. Os significados

    que ela atribui ao cncer se expressam nas aes,

    reflexes, reorganizaes, decises e

    responsabilidades. A partir do momento que a me

    define sua situao como me de uma criana com

    cncer, em interao com o self e com o outro,

    iniciam-se suas aes, ou seja, ela cumpre com o

    seu papel, tendo como objetivo de lutar pela vida da

    criana sempre e em qualquer circunstncia.

    CONSIDERAES FINAIS

    Considerando a escassez de evidncias na

    literatura que tem como foco a busca da compreenso

    do multidimensional papel da me e da construo

    da parentalidade na experincia de tornar-se me

    de uma criana com cncer, acreditamos que este

    estudo pode contribuir para um a construo de um

    novo pensamento acerca desta experincia. Os

    resultados mostram como a me, mesmo mediante

    todo sofrimento ocasionado pela situao de doena

    do filho, prossegue sua jornada como me e assume

    a luta contra o cncer junto da criana. Novas

    pesquisas podem e devem ser realizadas neste

    sentido, visando a construo do conhecimento da

    parentalidade na situao de doena.

    Na aventura de cada famlia, ela vem ao

    nosso encontro, s vezes apenas de passagem. Seria

    muito bom para ela, que tal como naquela estalagem

    beira do caminho, encontrasse algum esperando

    por ela para poder servi-la, alivi-la de suas demandas

    e restabelecer-se, recuperando foras para prosseguir

    o caminho(14). A compreenso da experincia

    vivenciada pela me da criana com cncer na

    construo da parentalidade proporciona elementos

    que podem direcionar mais precisamente as aes

    de apoio e suporte que envolvem a assistncia de

    enfermagem em oncologia peditrica. Acreditamos

    que essas aes podem suprir as reais necessidades

    da me e garantir a plena vivncia desta experincia

    na complexa trajetria do cncer infantil.

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    Tornar-se me de criana com...Moreira PL, Angelo M.

    Recebido em: 28.5.2007

    Aprovado em: 17.3.2008